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Brasília a. 38 n. 151 jul./set. 2001 29 Introdução Se a democracia, uma variedade de me- canismos políticos e processos de decisão em que predomina a expressão da sobera- nia popular, é um bem inquestionável – e certamente estamos em face da mais impor- tante conquista política do Ocidente no úl- timo quartel do século XX, referimo-nos à recuperação e revalorização dos valores democráticos clássicos –, não é certo que a democracia representativa deva estar com ela identificada, ou muito menos que a en- cerre, porque não se trata, esta, de governo do povo, mas de processo de exercício do governo ou de elaboração de leis, de que o povo não participa, senão indiretamente. Se ao povo (isto é, ao colégio eleitoral) é dado escolher, com as distorções insuperáveis do Apontamentos para a reforma política A democracia representativa está morta; viva a democracia participativa Roberto Amaral Roberto Amaral é Advogado, jornalista e escritor, ensaísta e ficcionista, Professor da PUC-Rio e vice-presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro, PSB. Sumário Introdução. 1. Os novos atores. 2. Os meios de comunicação de massa. 3. A manipulação legal. 4. Nossas raízes autoritárias. 5. A crise constituinte. 5.1. As medidas provisórias. 5.2. A falência do poder legiferante do Congresso. 6. A crise partidária. 6.1. Os partidos no direito constitucional. 6.2. Os partidos na última rede- mocratização. 7. A crise do Legislativo. 8. A democracia representativa não é democrática. 9. A democracia participativa: a democracia do terceiro milênio. 9.1. A raiz ateniense. 9.2. A democracia participativa. 10. A Constituição de 1988: uma promessa frustrada. 11. A promessa venezuelana da Constituição de 1999. 11.1. Uma experiência de democracia participativa.

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Brasília a. 38 n. 151 jul./set. 2001 29

IntroduçãoSe a democracia, uma variedade de me-

canismos políticos e processos de decisãoem que predomina a expressão da sobera-nia popular, é um bem inquestionável – ecertamente estamos em face da mais impor-tante conquista política do Ocidente no úl-timo quartel do século XX, referimo-nos àrecuperação e revalorização dos valoresdemocráticos clássicos –, não é certo que ademocracia representativa deva estar comela identificada, ou muito menos que a en-cerre, porque não se trata, esta, de governodo povo, mas de processo de exercício dogoverno ou de elaboração de leis, de que opovo não participa, senão indiretamente. Seao povo (isto é, ao colégio eleitoral) é dadoescolher, com as distorções insuperáveis do

Apontamentos para a reforma políticaA democracia representativa está morta; viva ademocracia participativa

Roberto Amaral

Roberto Amaral é Advogado, jornalista eescritor, ensaísta e ficcionista, Professor daPUC-Rio e vice-presidente nacional do PartidoSocialista Brasileiro, PSB.

SumárioIntrodução. 1. Os novos atores. 2. Os meios

de comunicação de massa. 3. A manipulaçãolegal. 4. Nossas raízes autoritárias. 5. A criseconstituinte. 5.1. As medidas provisórias. 5.2.A falência do poder legiferante do Congresso.6. A crise partidária. 6.1. Os partidos no direitoconstitucional. 6.2. Os partidos na última rede-mocratização. 7. A crise do Legislativo. 8. Ademocracia representativa não é democrática.9. A democracia participativa: a democracia doterceiro milênio. 9.1. A raiz ateniense. 9.2. Ademocracia participativa. 10. A Constituição de1988: uma promessa frustrada. 11. A promessavenezuelana da Constituição de 1999. 11.1. Umaexperiência de democracia participativa.

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mecanismo político-eleitoral, algumas pes-soas encarregadas do processo de tomadade decisões – governamentais ou legislati-vas –, não lhe cabe interferir diretamentenessas decisões. A democracia representa-tiva não é uma forma de governo popular,mas tão-somente um conjunto de procedi-mentos de controle sobre o governo, ou demera legitimação do poder, mediante o pro-cesso eleitoral, mediatizado pelo poder eco-nômico, pelo (abuso) do poder político e pelamanipulação da vontade eleitoral pelosmeios de comunicação, questões insolúveisna sociedade de massa. É o que pretende-mos demostrar.

A sociedade de massas, fenômeno daúltima metade do século findo, ao impor,por necessidade de sua lógica, o império damediação, revelou, à luz do sol, a crise dademocracia representativa. Esse vício deri-va da intercorrência do poder econômico,desde sempre, do poder legal manipuladordo sistema (processos de votação, constru-ção dos distritos eleitorais, tipos de assem-bléias, regulamentação dos partidos, cláu-sulas de desempenho, controle de presençade partidos e candidatos no rádio e na tele-visão, formas e extensão do sufrágio, repre-sentação majoritária e proporcional, finan-ciamento das campanhas etc.) e, de último,do poder político dos meios de comunica-ção de massas, monopolizados ou oligopo-lizados, apartando o representante da von-tade do representado, anulando o poder davontade autônoma do cidadão, seja a von-tade individual ou particular, seja a vonta-de decisória do representante, seja a vonta-de geral, a volonté générale rousseauneana,de índole contratualista não-liberal, impli-cando a prioridade do público ou comumsobre o privado ou individual, do geral so-bre o particular, assim distinta da ‘vontadede todos’. É nessa fonte que se alimentari-am Montesquieu, Hegel (v.g. o conceito deSittlichkeit) e mesmo o Kant do imperativocategórico (cuja ética antepunha a razãouniversal ao interesse particular), Marx1 e,modernamente, Gramsci, instruindo seu

conceito de hegemonia, mas de uma hege-monia fundada no consenso e não na coer-ção: para o autor dos Cadernos do cárcere,como é sabido, a hegemonia compreendiauma relação de prioridade da vontade geralsobre a vontade singular, do interesse co-mum sobre o interesse privado (COUTI-NHO, 1999, p. 223).

A vontade geral e o contrato social fun-dado no auto-governo, em Rousseau, quetanta influência exerceu sobre o autor de Ocapital, pode ser a fonte do Estado sem clas-ses, como seguramente foi a matriz da ‘soci-edade regulada’ gramsciana, “na qual osaparelhos coercitivos do Estado serão ab-sorvidos progressivamente pelos mecanis-mos consensuais (ou contratuais) da socie-dade civil” (Idem, p. 231).

A raiz de todos é Aristóteles (A política),distinguindo as formas de governo entreboas e más consoante o governante se guia-va, nas primeiras pelo interesse coletivo, nassegundas pelo próprio interesse.

Escreve o Estagirita:“(VI, 11) Portanto, está claro que

todas as constituições que têm em vis-ta o interesse geral (το κοινη συµφερον)são, de fato, corretas e essencialmentejustas; enquanto aquelas que têm emvista o interesse pessoal (το σφετερονµονον) dos governantes são defeituo-sas, e são desvios de constituições cor-retas: são formas de despotismo; ora,a cidade é uma comunidade de ho-mens livres.

“(VII) Fixados estes princípios fal-ta-nos examinar o nome e a naturezadas diferentes formas de governo, ecomeçaremos por aquelas que são cor-retas; pois, uma vez definidas, ficarámais fácil a tarefa de definir as consti-tuições más. Posto que as palavrasconstituição e governo significam amesma coisa, e considerando que ogoverno é a autoridade soberana dosEstados, essa soberania deve estarnecessariamente nas mãos de um sóindivíduo, ou de um pequeno núme-

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ro, ou nas mãos da massa de cidadãos.Quando o indivíduo, ou o pequenonúmero de cidadãos ou a multidãogovernam tendo em vista o interessegeral, diz-se que a constituição é ne-cessariamente pura e saudável; masquando se governa tendo em vista ointeresse particular, isto é, atendendo aointeresse de um só indivíduo, ou depequeno número da multidão, trata-se de um desvio (uma constituição vi-ciosa e corrompida). Porque ou bemos cidadãos participam do interessegeral ou não participam dele” (ARIS-TÓTELES, 1971, p. 67).

Esse interesse geral2 é o intérêt général doContrato social3.

Só a vontade geral pode dirigir as forçasdo Estado – e o Estado legítimo é unicamen-te aquele regido pelos atos da vontade geral-, porque, se a oposição dos interesses parti-culares (Montesquieu) tornou necessário oestabelecimento das sociedades, foi o acor-do desses interesses que o possibilitou. Re-tornamos a Jean-Jacques. Por isso, a so-berania é indivisível e inalienável. O pactosocial dá existência e vida ao corpo político.Pela legislação adquire movimento e vonta-de, porque o ato primitivo, pelo qual essecorpo se forma e se une, nada determinadaquilo que deverá fazer para conservar-se.O governo é um corpo intermediário entre osúdito e o soberano para sua mútua corres-pondência.

Rousseau, em oposição a Montesquieu,manifesta sua aversão à vontade (individu-al) do representante, porque nela implícitaestava a alienação da vontade soberana dohomem livre, com a conseqüente dissoluçãodo conceito de vontade popular, compreen-dida como expressão de unidade, sobera-nia e governo. A democracia participativaretoma o conceito rousseauneano de povo,povo ícone, o povo do contrato social, don-de a democracia compreendida como o re-gime que possibilita a participação dosgovernados na formação da vontade go-vernativa.

A crítica rousseauneana aos institutosda representação se apresenta nos dias dehoje como irretorquível, e os óbices que che-gara a admitir (Considerações sobre o governoda Polônia) à democracia direta nos grandesEstados revelam-se demolidos pela poten-cialidade das modernas tecnologias da co-municação e da teleinformática, e mesmopor recursos formais que o constituciona-lismo moderno vem incorporando às cartaspolíticas4. De outra parte, parece inquestio-nável o fracasso da democracia representa-tiva – como supomos será demonstrado naseqüência –, com seu rosário de vícios e frau-des, ilaqueando a vontade mandatária,transformando o povo-ícone em povo-obje-to, destruindo o povo-real, o povo legítimo,titular da soberania. Esta, por fim, foi apro-priada pelas elites, pelo poder econômico,por instituições e organismos e empresasmultinacionais desapartadas da soberania,pelos meios de comunicação de massas,politizados e partidarizados, pela usurpa-ção do poder constituinte e do poder legife-rante, pela bulha da vontade popular.

Herdeiro de Rousseau, que tanto o influ-enciou, Marx terá sido entre os filósofosmodernos um dos principais críticos da de-mocracia representativa, de par com a defe-sa da democracia direta, abrindo uma sen-da, que em nossos dias conheceria textos deGramsci, Lukács, Bobbio, Poulantzas, semdesconhecer mesmo a crítica clássica, seja oanarco-socialismo de Proudhon5, seja até oliberalismo de Stuart Mill, para quem a de-mocracia representativa, longe de ser o go-verno de todo o povo por todo o povo igual-mente representado, era o governo de todo opovo por uma simples maioria do povo, ex-clusivamente representada, de que resultaum governo de privilégio em favor da maio-ria numérica, que, de fato, é a única titularde voz no Estado (1862, p. 155 - ).

A crítica do autor do Contrato social é se-minal, mas não esgota a reflexão da ciênciapolítica.

Gramsci, também claramente recorren-do à rica fonte do Contrato social, transita

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para a construção de uma sociedade civilque assegure a possibilidade do autogover-no (democrático) dos cidadãos, ou o ‘auto-governo das massas operárias’, alimentadopelas organizações de base, a única hipóte-se de uma democracia plenamente realiza-da, fundamento de um novo modelo de so-cialismo que, livrando-se do Estado (e as-sim recuperando a essência marxista con-tra a ‘estatolatria’ estalinista?), proclama aampliação da ‘sociedade civil’, isto é, de umespaço público não estatal, a caminho da ‘so-ciedade regulada’, seu pseudônimo de comu-nismo (COUTINHO, 1999, p. 34, 266-267).

Mas à crítica não ficaram alheios mes-mo pensadores liberais e conservadores.Para Schumpeter (1984, p. 277-), por exem-plo, pensador liberal, a democracia nadamais era do que um simples método de sele-ção das elites através de eleições periódi-cas, alinhando-se não muito longe, portan-to, da denúncia leninista da democracia re-presentativa como a melhor forma de domi-nação burguesa, ou de Max Weber, paraquem, se a democracia direta é um tipo degoverno, a democracia representativa é alegitimação do poder, uma forma plebisci-tária de escolha e legitimação de líderes, quepassam a dominar as massas com um po-der autoritário de mando (1964, p. 951).

Arendt, após destacar, conservadora-mente, os méritos do sistema bipartidáriocomo instrumento assecuratório das liber-dades constitucionais – sistema que, enten-demos, sendo característica tendencial dademocracia representativa, mais serve à ex-clusão –, reconhece sua incapacidade emensejar que o cidadão se converta em partí-cipe dos assuntos públicos, pelo que se cons-tituem os partidos em instrumentos efica-zes para cercear e controlar o poder do povo.Para a autora de The Origins of Totalitarism,o governo representativo se converteu, naprática, em governo oligárquico, ainda quenão seja no sentido clássico de governo depoucos em seu próprio interesse; o que ago-ra chamamos democracia é uma forma degoverno na qual poucos governam em nome

do interesse da maioria, ou, pelo menos, as-sim se supõe. O governo é democrático por-que seus principais objetivos são o bem-es-tar popular e a felicidade privada; podemosporém chamá-lo de oligárquico, porque afelicidade pública e a liberdade pública seconverteram, de novo, em privilégio de unspoucos (ARENDT, 1967, p. 281-282).

Mesmo para Bobbio, advogado da demo-cracia representativa ou parlamentar – que,reconhece, limita a participação do voto àseleições de representantes não investidos demandato imperativo –, qualquer projeto dedemocracia haveria de fundar-se sobre trêspilastras fundamentais, ausentes da demo-cracia representativa: participação (popu-lar), controle (social) e liberdade de dissen-so. Escreve:

“Na sociedade capitalista avança-da, onde o poder econômico é sempremais concentrado, a democracia, ape-sar do sufrágio universal, da forma-ção de partidos de massa e de um graubastante alto de mobilização política,não conseguiu manter as própriaspromessas, que eram, sobretudo, detrês ordens: participação (ou partici-pação coletiva e generalizada, aindaque indireta, nas tomadas de decisõesválidas para toda a comunidade), con-trole a partir de baixo (com base noprincípio de que todo poder não con-trolado tende ao abuso) e liberdade dedissenso”. Nos estados onde as insti-tuições democráticas são formalmen-te mais aperfeiçoadas, verificam-doisfenômenos contrastantes”(1987, p. 32-33).

Referindo-se aos “estados [ocidentais]onde as instituições democráticas são maisaperfeiçoadas”, Bobbio registra, de um lado,a apatia política, como uma das faces daausência de participação, e, de outro, “aparticipação distorcida, deformada ou ma-nipulada pelos organismos de massa quetêm o monopólio do poder ideológico”, agra-vadas ambas as manifestações pela presen-ça de organismos que diríamos afastados

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da raiz da soberania popular, e sobre osquais a coletividade não exerce qualquersorte de controle democrático, embora sejam,esses organismos, centros efetivos de poder.Bobbio se refere às forças armadas, à buro-cracia e às grandes empresas.

“Quanto ao dissenso, este é limi-tado a uma área bem circunscrita, queé aquela do sistema econômico domi-nante, e não oferece nunca a possibi-lidade de uma alternativa radical. Daísurge, entre outras coisas, uma segun-da razão de desconfiança na demo-cracia: o método democrático, como épraticado no sistema capitalista, nãoparece permitir a transformação dosistema, isto é, a passagem do sistemacapitalista ao socialista” (p. 33),

ou mesmo uma mudança social e políticaampla, ainda que dentro do sistema, pormeios parlamentares (HIRST, 1993, p. 8).

Não é pois, recente, a crítica à democra-cia representativa, e na América ela se ins-tala com a própria democracia, pela voz deseus próprios corifeus, como Madison, con-siderado o ‘pai’ do constitucionalismo nor-te-americano, a quem afligia a questão ain-da hoje crucial da democracia, a distânciaentre a vontade de governantes e governa-dos. Santos (1991, p. 21) lembra James Millafirmando que, “a menos que um corpo re-presentativo seja escolhido por uma parteda comunidade, cujo interesse não pode di-ferir do da comunidade, o interesse da co-munidade será infalivelmente sacrificado aointeresse dos governantes”. A proposta derepresentação proporcional de Stuart Mill,escrevendo quase cem anos após Madison,é esforço visando, na crítica ao governo re-presentativo, garantir a sobrevivência dasminorias, contra o princípio majoritário.Esta é questão contemporânea que mais seobserva nos regimes bipartidários, tendên-cia dominante da democracia representati-va contemporânea, principalmente nas cha-madas ‘grandes democracias’ ocidentais,com a exclusão, da cidadania, de setorescrescentes da sociedade.

Entre nós, Alencar, escrevendo ainda nosegundo Império, foi dos primeiros críticos,formulando sua teoria da representação pro-porcional antes de John Stuart Mill (1862).Sua defesa da representação proporcional éa denúncia da ditadura da vontade majori-tária, expressa na democracia representati-va que conheceu, assim anatematizada: “Odomínio da maioria e a anulação completada maioria; eis portanto o pensamento iní-quo e absurdo que repousa atualmente ogoverno representativo” (ALENCAR, 1997,p. 14). Para Alencar, o ideal do governo de-mocrático só se realizaria na medida em queassegurasse a representação de todas as for-ças da nação, retomando a legitimidade deri-vada do caráter integral da democracia daágora e do fórum: “Somente nesta condição osistema representativo será legítimo” (p. 47).

Debruçando-se sobre os primeiros anosda República (sua Democracia representativaé de 1893), refletindo portanto mais precisa-mente a experiência ainda do segundo Im-pério, Assis Brasil defenderá acima de tudoo sufrágio universal regular, periódico, plu-ralista e competitivo, como condição essen-cial da democracia moderna. Adversário dademocracia direta e plebiscitária, defende-rá porém a participação política popularautônoma (1990, p. 27).

Gilberto Amado – crítico e personagemda primeira República –, entusiasta defen-sor da democracia representativa, e nela dosistema proporcional em oposição às formasmajoritárias (no que se associa a Assis Bra-sil), autor elitista e conservador6, não eco-nomizou palavras na sua crítica à demo-cracia representativa norte-americana, mo-nopolizável pelo poder econômico7, aos sis-temas inglês e francês, e principalmente àdemocracia da primeira república brasilei-ra (um sistema de dominação e não de re-presentação), na qual identifica o falsea-mento da representação política e a corrup-ção, destacando o papel do ordenamentolegal como instrumento de legitimação, oulegalização, da defraudação da vontadepopular.

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Mesmo esse analista conservador e eli-tista chega a defender a iniciativa popular,o referendo e o recall (revocação) como mei-os aptos tanto a livrar os parlamentos e osgovernos (referia-se à experiência norte-americana em governos locais) “das influ-ências e dos grupos capitalistas” quanto aproporcionar a “colaboração imediata damassa popular na direção da coisa públi-ca”, atingindo o máximo realizado nos can-tões suiços (p. 17).

1. Os novos atores

O desvanecimento do poder represen-tante do cidadão, limitado na escolha domandatário, e a liberdade do mandatário,agindo sem vínculo com a representação,agravam a falência da democracia represen-tativa tanto mais quanto outros órgãos, or-ganismos, instituições e entidades, sem raizna vontade popular, sem pouso na sobera-nia do voto, sem legitimidade popular, ad-quirem poder constituinte, e, assim, passama gerar direitos, numa flagrante usurpaçãode mandato, que fratura de forma irremedi-ável a democracia e a representação popu-lar, sem a qual aquela falece por inanição.

São esses novos atores, no plano inter-nacional as multinacionais (que podem deci-dir desde suas matrizes os destinos econômi-cos dos países periféricos nos quais atuam,empresas e corporações que em muitos casosrepresentam economias superiores a muitospaíses) e instituições como FMI, BID, BIRD,ditando, à margem das nações e de seus po-vos e de seus Parlamentos, os destinos denações e povos; são eles, nos planos nacio-nais, os novos meios de comunicação de mas-sas, eletrônicos, as grandes corporações, o sis-tema financeiro e a alta burocracia, no exercí-cio ilegítimo de poder legiferante, interferin-do na constituição do poder, interferindo naordem governativa. Governando, enfim.

Quando dizemos interferindo, estamostambém dizendo manipulando, isto é, alte-rando a vontade original; também estamosdizendo subtraindo a vontade popular, frau-

dando-a, anulando em sua sede a sobera-nia do voto.

É esse o novo papel dos meios de comu-nicação de massas, politizados e partidari-zados, construtores do discurso único, dodiscurso unilateral, do discurso monocór-dio do sistema. Esses meios de há muitoabandonaram o clássico papel de interme-diação social. São hoje atores, a serviço dosinteresses dos grupos que os controlam. Nãoreportam: interferem no fato e passam a sero fato; não narram, invadem o andamentodo evento em narração; não informam, cons-tróem a opinião; não noticiam, valoram. Ofato, a realidade, o acontecimento, o evento,não é o fato acontecido, a ocorrência em si,mas o fato que logrou ser narrado e, princi-palmente, como foi narrado. Mais do quenunca, a realidade não é o fato objetivo, masa versão que lhe emprestam os meios de co-municação de massa. Ou seja, e finalmente:real não é o fato, mas a notícia do fato; realnão é o que ocorre, mas o que é noticiado8.

2. Os meios de comunicação de massa

Além de seu papel clássico, de constru-tores da realidade e, assim, de edificadoresda opinião pública, os meios de comunica-ção – propriedade de grupos econômicospoderosíssimos –, monopolizando a infor-mação e controlando suas fontes, transfor-mam-se em sujeitos ativos da política.

Esse papel não se dá, apenas, mediantea manipulação, o parti pris, a opção partidá-ria. Ele opera num círculo fechado de influ-ências e interinfluências que passa a condi-cionar o processo político e o processo elei-toral. Os meios influenciam quando dão ounegam espaço ao candidato, e o candidatodepende do espaço nos meios para consoli-dar-se, no partido (para fazer-se candidato)e na sociedade (para pretender eleger-se).Essa maior ou menor exposição pelos mei-os determina sua presença nas pesquisasde opinião pública, que, manipuladas ounão, influenciam o processo eleitoral. Influ-enciam primeiro a opinião interna dos par-

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tidos, que procuram, entre seus candidatos,aqueles melhor situados nas pesquisas, e aseguir influenciam o próprio eleitorado, quepersegue os candidatos mais fortes, e o can-didato mais forte é aquele com maior índicede preferência, o qual, por estar com melhoríndice de preferência num determinadomomento, será sempre citado. A presençanas pesquisas determina o espaço nos mei-os, a cobertura jornalística, o convite paraentrevistas e debates, e essa exposição pas-sa a ser a medida dos apoios financeiros.

Outra questão é saber se há alguma ra-zão ontológica ou deontológica para as pes-quisas de intenção de voto. Por que e paraque são feitas essas pesquisas, que papeldesempenham e procuram desempenhar?Qual a utilidade, ou função de uma pesqui-sa de intenção de voto, pensando-se estrita-mente no processo eleitoral, em seu âmbitointerno, em sua natureza, em seu caráter,em sua finalidade? A que interesses cívicosou democráticos atende essa mercadeliza-ção do processo eleitoral? Por que, para bem-escolher seu candidato, o eleitor precisa sa-ber se ele tem x ou y % das intenções de voto?Não encontramos justificativas, fora dosargumentos da mercadologia. Outrossim,identificamos nas pesquisas, mesmo naspesquisas não manipuladas, um instru-mento de desvio da atenção eleitoral. A dis-cussão que toma conta dos meios – e, expli-que-se: os meios promovem as pesquisas e adiscussão em torno delas – são os números,as metodologias de pesquisa, os índices deaceitação e rejeição de candidatos, de conhe-cimentos ou desconhecimentos etc., em pre-juízo das discussões programáticas, dasdiscussões mesmo políticas em torno de pro-gramas de governo ou de mandato parla-mentar. Discute-se tudo, menos os candida-tos, as candidaturas e o processo eleitoral.

Retirada a política das praças, retiradaa campanha eleitoral dos comícios (substi-tuídos pelos shows) e das manifestações demassas, enclausurada a campanha no ví-deo e no rádio, a escolha dos partidos ne-cessariamente se volta para aqueles candi-

datos com domínio do veículo, os quais, ge-ralmente, são os candidatos já com melhor/maior exposição, porque, para ser alvo deentrevistas e convites para debate, o candi-dato, aprovado no vestibular político daempresa jornalística, haverá de demonstrarcompetência no domínio da linguagem domeio. Ao fim e ao cabo, a televisão é um mer-cado e a política é um produto a ser vendi-do. Para isso, o veículo busca audiência,busca audiência em suas novelas, busca nosprogramas de entretenimento, mas buscaigualmente no telejornalismo e nos progra-mas políticos. Daí a videopolítica construin-do a videodemocracia, que exige, como a tele-visão, atores, isto é, vendedores, e audiên-cia, ou seja, boas vendas9.

No país em que as campanhas eleitoraissaíram das ruas para o vídeo, a participa-ção dos candidatos e dos partidos é absolu-tamente assimétrica, anulando qualquerpossibilidade de concorrência digna de ho-nesta consideração10.

No período pré-eleitoral, os partidos po-líticos dispõem de horário gratuito no rádioe na televisão para a divulgação de seusprogramas e exposição de seus principaisquadros eleitorais. Mas a partilha do tempodesses programas é proporcional às banca-das na Câmara dos Deputados, as quaisvariam de 108 parlamentares (PMDB) a umparlamentar (PV, PRP e PRN). Assim osgrandes partidos dispõem, anualmente, dedois programas de 20 minutos, cada, e mais20 minutos de inserções de 30 segundos aum minuto. Enquanto os demais partidosdispõem apenas do direito às inserções, va-riando segundo as respectivas bancadas,chegando a casos em que o total de tempodisponível é inferior, em todo o ano, a dezminutos. No período eleitoral, no chamadohorário eleitoral gratuito, o mesmo critériofaz com que partidos como o PMDB, o PFL eo PSDB tenham, respectivamente, sete, seise cinco minutos diários, contra quatro mi-nutos do PT, três minutos do PTB, dois mi-nutos do PSB, e um minuto do PL e doPCdoB, tudo em números redondos.

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Por isso, os meios de comunicação inter-ferem, até, no processo de formação das co-ligações partidárias, porque essas, por taisrazões, deixam de seguir critérios de afinida-de eleitoral ou programática ou ideológica,para obedecer à lógica da soma de tempo paraseus programas no rádio e na televisão11.

Esse novo papel dos meios de comuni-cação, na sociedade de massas – de cons-truir ou re-constituir a realidade –, comple-ta o sonho consumista: em síntese e em re-sumo, a comunicação de massas, a infor-mação, a notícia, como a política, é apenasmais um bem de consumo – um sabonete,um sapato, uma marca de cigarro, um refri-gerante, a casa própria, a marca de cerveja –matizado pelo neoliberalismo, isto é, pelaapropriação desigual dos bens de consumo,de bens simbólicos e de cidadania.

Por tudo isso, a política é transformadaem um bem, em uma mercadoria, e, assimmanufaturada, é também um produto desti-nado a ser consumido desigualmente; o ci-dadão deixa de ser um ator da política, parase reduzir a um consumidor.

É a vitória do mercado.Tal fenômeno, grave em sua descrição,

preocupante em qualquer país desenvolvi-do, assume, no Brasil, contornos de extremoperigo quando, em sociedade ágrafa, semi-alfabetizada e semi-letrada, desafeita à lei-tura quando letrada, os meios de comunica-ção de massas, principalmente os audiovi-suais, o rádio e a televisão, associados aosmeios impressos, estão entregues a um sis-tema de oligopólio que transita para o mo-nopólio, sob todos os aspectos: monopólioda propriedade, monopólio da audiência ouda circulação, monopólio da informação,monopólio dos conteúdos.

Em suas mãos, a construção da opiniãopública.

Se, na ‘democracia’ representativa dasociedade de massas, não há o controle, pelasociedade, a partir de baixo, do sistema decomunicação e do sistema político, verifica-se a existência do controle que sobre a soci-edade e a política exerce o terceiro poder,

um poder incontrolável (e por isso tendenteao abuso), o poder ideológico – “imensocomo ensina a história de todos os tempos enão somente, como se acredita e se afirma hoje,a história dos nossos tempos, nos quais sedesenvolveram as comunicações de massa”– monopolizado (econômica e politicamente)por um grupo de proprietários e transmisso-res de doutrina, que, sem qualquer sorte decontrole social, e no exercício de um podermonopolizado unilateral, se julga competen-te para declarar quais são as idéias justas e asequivocadas, transformando suas idéias par-ticulares (isto é seus interesses) em idéiasuniversais (Cf. BOBBIO, 1987, p. 34-35).

Pelo que a representação é uma farsa. A‘democracia’ fundada nessa farsa é umacontrafação.

3. A manipulação legal

O poder legiferante de funcionários e tec-nocratas de segundo e terceiro escalões –como o Diretor da Receita Federal ou o Dire-tor de Mercado do Banco Central – chega arivalizar-se com o do Congresso, parecendomais ágil e mais eficiente; atrás de Portariase Regulamentos e Normas, constituem di-reitos, editam regras que interferem na vidaeconômica do país e dos cidadãos.

Essas questões se abatem de forma maisgrave nos países periféricos – em face daconsabida fragilidade institucional que oscaracteriza –, mas se encontram e são obser-vadas em todo o mundo, em face da globali-zação (de ordem política e ideológica que serealiza pela via econômica) e do neolibera-lismo, os quais, associados, intentam apar-tar a vida política (vista como uma artificia-lidade) da sociedade (a vida real). Daí, numsegundo momento, já próximo se essa tragé-dia não for espancada, o desaparecimento dospartidos, a oclusão das lideranças (acoima-das de ‘populistas’, uma categoria arcaica aser exorcizada…) e, finalmente, a liquidaçãoda política, a alienação programada.

Tais afirmações, que se aplicam à perfei-ção à nossa tragédia política contemporâ-

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nea, a ela não são exclusivas12. Trata-se,mesmo, de categorias intrínsecas à demo-cracia representativa, que tem, como umade suas pilastras, a interferência da simbio-se tautológica poder econômico-corrupção.Esse binômio é o centro das discussões dejuristas e políticos alemães estarrecidos (epor que estarrecidos?), com os escândalosdas contas inexplicáveis de Helmut Kohl ede sua CDU, a Democracia Cristã alemã.Trata-se, apenas, de uma variante da mes-ma sorte de ‘relação perigosa’ que, pelosmesmos métodos, e pelas suas relações com amáfia13, selou tantos anos de dominação da

política italiana pela mesma Democracia Cris-tã (PDC). Escândalos envolvendo a manipu-lação do processo político-eleitoral são carac-terísticos das políticas japonesa e coreana, eatingem com ritma freqüência a França.

Os Estados Unidos, a par de exacerbar aparticipação do poder econômico no pro-cesso eleitoral, com a única e vitoriana res-salva de que a intervenção manipuladorado poder econômico se faça às claras, tam-bém convivem com denúncias de subornoem seu processo eleitoral e, significativa-mente, com um constante absenteísmo deseus eleitores14.

Ano

19321936194019441948195219561960196419681972197619801984198819921996

Abstenção%

47,644

41,144

48,938,440,737,438,137,744,846,546

46,949,844,149

Candidatos

Roosevelt-HooverRoosevelt-LandonRoosevelt-Wilkie

Roosevelt-DeweyTruman-Dewey

Eisenhower-StevensonEisenhower-Stevenson

Kennedy-NixonJohnson-Goldwater

Nixon-HumphreyNixon-McGovern

Carter-FordReagan-Carter

Reagan-MondaleBush-Dukakis

Clinton-Bush-PerotClinton-Robert Dole

O conceito de democracia – qualquer – éincompatível com o absenteísmo, pois a re-gra que a legitima é o governo produto davontade da maioria, expressa no processoeleitoral.

A grande democracia representativa oci-dental, paradigma a ser obedecido, é mode-lo de democracia indireta15, sem voto e semcidadania. Walter Dean Burhan estima queapenas 38% dos cidadãos norte-americanossão eleitores ‘regulares’ em pleitos nacio-nais e estaduais, 17% são eleitores ‘eventu-

ais’ e 45% sequer são eleitores16. Nas elei-ções presidenciais de 1996, das mais con-corridas, votaram apenas 49% dos eleitoreshabilitados, ou 35% da população.

Esse absenteísmo também tem fulcro napercepção, pelo eleitorado, do evidente jogode cartas marcadas em que se converteramas eleições, pré-definidas pelas estruturaspartidárias, de dois partidos, irmãos germa-nos, que decidem quem vai concorrer, de-pois de decidido quem vai ganhar. Aos elei-tores, depois do concerto da cúpula e do jogo

Abstenção em eleições presidenciais nos Estados Unidos – 1932-1992(AFFONSO, 1999, p. 8)

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ensaiado das primárias, cabe simplesmentehomologar a decisão anunciada, elegendo umcolégio de eleitores que vai votar como toda anação e o mundo sabem como irá votar.

O processo eleitoral americano – mode-lo que as democracias representativas per-seguem no Ocidente, em seus méritos e emseus defeitos, daí termos nele nos detido –caracteriza-se por negociatas nos bastido-res, truques e espertezas, bem aprendidaspela política brasileira; se o processo é pré-decidido, nos bastidores, as eleições, isto é,o chamamento dos eleitores ao voto, podetransformar- se, como transformado está, emum grande espetáculo, uma grande feira,

também um grande negócio, presidido e or-ganizado pelos grandes meios de comuni-cação, televisão à frente. No processo eleito-ral, não há lugar para a política, que cede aoespetáculo; não há lugar para políticos, quecedem a cena a atores; não há lugar para aciência política: o espaço é ocupado pelosconsultores de marketing. A política é ummercado, o candidato é uma mercadoria, oeleitor é um consumidor 18.

Que acrescentar respeitante às eleiçõesde 2000, nas quais o candidato que obteve amaioria dos votos não foi eleito17, e a legiti-midade do pleito é atacada por suspeitas decorrupção e fraude?

Eleições norte-americanas de 2000População (senso de 1999) 272.878.000 / Eleitorado: 201.000.000

50.158.09449.820.518

3.895.294103.873.906

GoreBushOutrosTotal

267271

-538

Nessas eleições – que passarão à histó-ria como símbolo da falência do regime re-presentativo – compareceram ao pleito pou-co mais da metade dos eleitores inscritos eapenas 38% da população norte-america-na, e o novo Presidente teve o respaldo deapenas 18% de seus concidadãos, desvelan-do a obsolescência do sistema político e dosistema eleitoral norte-americano, manipu-lado pelo poder econômico, manipuladopelos meios de comunicação e ainda acusa-do de fraude eleitoral, um sistema que che-ga às raias desse anacronismo – eleição in-direta, cálculo ponderado dos eleitores dosEstados, arredondamento permitindo trans-ferência de eleitores de um Estado para ou-tro, destruindo com um dos axiomas da de-mocracia representativa que é cada cidadãoum voto, e cada voto valer um voto – parapoder preservar privilégios e injustiças.

Nada muito distante do que ocorreria nasúltimas eleições em Israel (2001), quando,de 4,5 milhões de cidadãos aptos a votar,

apenas 2,8 milhões, ou 46,66%, da popula-ção compareceram ao pleito.

No Brasil, os escândalos envolvendo ofinanciamento da campanha presidencialde 1989 e o Governo Collor ainda estãomuito distantes de seu fiel esclarecimento.E todos sabemos que não se trata de fatoisolado, como isolado não foi o processo,acoimado de fraude e corrupção, que garan-tiu, no Congresso, a aprovação da emendaconstitucional permissiva da reeleição.

Não é democrático nem representativo oregime que se alimenta na fraude contra avontade do representado; não é democráti-co porque, na sociedade de massas e domercado, o processo eleitoral é seletivo, cons-tituindo uma nova forma de pleito censitá-rio: é o reino do poder econômico. Não sediz, apenas, que a democracia representati-va abriga a ação do capital; diz-se que com-preende a corrupção, a corrupção do sufrá-gio e a corrupção no exercício do mandato,negando a representação; a ação do capital

Votos populares Votos no Colégio Eleitoral

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se abate sobre o pleito e sobre o desempe-nho do mandato, corrompendo parlamen-tares e executivos.

Em todos os países, ao lado da manipu-lação da vontade coletiva pela intervençãodo poder econômico, às escâncaras ou sobcínico controle, a classe dominante tambémse vale de mecanismos legiferantes que vi-sam a contornar a emergência do voto po-pular e de esquerda, de que são simbólicostanto a legislação italiana (que garantiu opoder ao PDC, obstando o avanço do PCI)quanto o voto distrital gaullista que impe-diu, na França, a conquista do poder pelacoalizão de esquerda, a mesma reforma elei-toral que garantiu por tantos anos o poderda CDU na Alemanha. No Reino Unido, alegislação impede o crescimento do PartidoLiberal. No Chile, as regras para as eleiçõesgarantem aos conservadores, na Câmara,um número de cadeiras superior aos votosobtidos. No Brasil, a proposta de aboliçãodas coligações nas eleições proporcionais,de par com a introdução de ‘cláusula debarreira’ ao funcionamento parlamentar,pode eliminar a representação de váriospartidos, na sua maioria os de índole ideo-lógica.

De outra parte, o sistema de aproveita-mento de sobras, no cálculo das cadeiras ena formação do quociente eleitoral, implica,com a transferência de votos do menos vo-tado para o mais votado, vício e fraude con-tra o eleitorado.

Trata-se, portanto, essa democracia re-presentativa, de sistema em que a burla davontade do eleitor é a regra. Votando no can-didato de sua preferência, o eleitor pode es-tar elegendo outro, dele desconhecido, e deoutro partido, porque seu voto, em face dosistema de sobras, pode ser transferido paraoutro partido. Votando em um partido, podeestar elegendo candidato de outro partido,hipótese das coligações proporcionais. Vo-tando na oposição, pode estar elegendo umsituacionista. Votando na legenda de umpartido, com a evidente intenção de reforçá-la, o eleitor pode estar elegendo candidato

de outra legenda, elegendo candidato departido que sequer atingiu o quociente elei-toral. Finalmente: o eleitor vota num candi-dato e pode estar elegendo outro.

Estudando o sistema eleitoral brasileiro,Paulo S. Tarfner chega às seguintes conclu-sões:

“Considerando assim sob essa óti-ca do eleitor, nosso sistema eleitoralnos coloca como um dos países commaior esterilização de votos e, portan-to, com elevada exclusão política. Da-dos comparativos internacionais per-mitem-nos afirmar que o Brasil se en-contra entre os países de mais eleva-da desproporcionalidade e o campeãode exclusão em termos absolutos.

“…“A exclusão política de milhões de

cidadãos, como ocorre entre nós, as-sociada a outras características dosistema político brasileiro, cujo resul-tado é colocar as recompensas e in-centivos do sistema nos indivíduospolíticos e não nos partidos, tende aprovocar maiores descompassos en-tre a vontade do representado e a gera-ção de políticas públicas, por parte dolegislador, o que, em última instância,compromete e submete a riscos a de-mocracia brasileira”(1997, p. 80-81).

Toda iniciativa que visa a reduzir a re-presentação das minorias, ademais de feriro pluripartidarismo, cláusula pétrea do di-ploma de 1988 inserta no inciso V do art. 1º,é antidemocrática porque condena uma par-cela da cidadania à não-representação. Asexigências da cláusula de barreira ou dedesempenho afastariam do quadro partidá-rio de hoje nada menos de 22 legendas, numuniverso de 30 organizações. A cláusula deexclusão, no modelo de representação pro-porcional, ademais de antidemocrática, éinconstitucional, pois dela resultaria a for-çosa existência de minorias sem condiçõespara se representar.

A democracia representativa – e essa éuma característica contemporânea – favo-

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rece o trânsito do pluralismo ao bipartida-rismo, reduzindo, assim, os espaços da con-vivência e manifestação/expressão das mi-norias. O bipartidarismo (Estados Unidos,Inglaterra, Alemanha, Suécia, entre outros),limitando a representação e a democracia, éo estuário natural do pensamento único.Com o esmagamento da representação e dasminorias, a democracia representativa tam-bém constrói o fim das expressões/mani-festações das diferenças, das regiões, dasdiversidades políticas, culturais, étnicas emesmo religiosas.

Mas não cabe aqui, nos limites de nos-sos objetivos, a resenha das mazelas quefazem do sistema representativo uma pato-logia. Contentemo-nos com o registro deduas distorções, levantadas por Jairo Mar-coni Nicolau. A primeira, denominada ger-

rymander pela literatura política, é, nos paí-ses que utilizam a representação majoritá-ria (que no Brasil tomou a denominação dedistrital), a manipulação das fronteiras dosdistritos eleitorais, com o intuito de favore-cer ou prejudicar candidatos ou partidos; asegunda é a alocação desproporcional dascadeiras de um Parlamento:

“Os legislativos são em geral com-postos por representantes de váriosdistritos eleitorais19. Quando o percen-tual de eleitores de cada distrito não éigual ao percentual de representantes(cadeiras) desses distritos no Parla-mento, produzem-se distorções dedois tipos. A primeira é a violação doprincípio de que todos os eleitoresdevem ter votos com mesmo valor; asegunda é a sub-representação dos

Câmara dos Deputados

888

17888

178889

392218122510

810534670303116

513

AcreAmapáAmazonasParáRondôniaRoraimaTocantinsGoiásMato Grosso do SulMato GrossoDistrito FederalAlagoasBahiaCearáMaranhãoParaíbaPernambucoPiauíRio Grande do NorteEspírito SantoMinas GeraisRio de JaneiroSão PauloParanáRio Grande do SulSanta Catarina

TOTAL

*16

15414

146766

3822141124

989

5750

113313417

513

Unidade Federativa Representação real Representação proporcional

* Pelo cálculo da proporcionalidade populacional, não teria direito a representação.Fonte: DIRCEU, José; IANONI, Marcus. Reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p. 41.

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partidos que têm voto concentradonos distritos que perdem cadeiras e asobre-representação dos partidos queconcentram votação nos distritos queganham cadeiras”(NICOLAU, 1995,p. 5).

No Brasil, que adota o sistema proporci-onal, com lista aberta de candidatos20, fa-cultado o voto na legenda, uma das distor-ções é a sobre-representação de Estados deeleitorado predominantemente rural, menospopulosos, em prejuízo das representaçõesde Estados, e, portanto, distritos eleitorais,mais populosos e de eleitorado predominan-temente urbano.

Assim, um eleitor de Roraima, estadocom uma bancada de oito deputados fede-rais, vale 33 eleitores de São Paulo, que pos-sui 70 parlamentares, mas cuja representa-ção deveria ter 113 deputados federais. En-quanto os estados do Sudeste, e neles ospartidos que nessas regiões têm sua princi-pal influência política, são os mais prejudi-cados, os maiores beneficiários são: MatoGrosso do Sul e o Distrito Federal, cada umcom duas cadeiras a mais do que deveriamter, pelo cálculo puro e simples de sua po-pulação; Sergipe e Goiás, com três cadeirasa mais; Rondônia, quatro; Tocantins, cinco;Acre, Amapá e Roraima, sete cada um.

A distorção decorre da ordem constitu-cional, que, no seu art. 45, determina oito e70 como os números mínimo e máximo derepresentação por unidade federativa. Nasduas pontas, Roraima e São Paulo, os quais,dividido o número de cadeiras (513) peloeleitorado, deveriam ter um e 113 represen-tantes e, como vimos, têm oito e 70.

A Constituição de 1988 absorve disposi-tivo da legislação castrense. Mas não datado golpe sua recepção pelo direito brasilei-ro. Ele já estava presente na Constituição de1946, numa possível reação do constituinteà ditadura eleitoral da composição Minas-São Paulo que havia caracterizado a Repú-blica Velha até o decreto de seu crepúsculocom a Revolução de 1930. Jairo Nicolau, quese debruçou sobre o tema, afirma que sem-

pre houve distorção na representação par-lamentar no Brasil, indicando sua existên-cia de 1872 até nossos dias (Cf. MELO, 1997).

Eis por que o regime representativo, noBrasil, como observa Bonavides, havendodominado quatro repúblicas e mais de umséculo,

“não eliminou as oligarquias, nãotransferiu ao povo o comando e a di-reção dos negócios públicos, não for-taleceu nem legitimou nem tampoucofez genuína a presença dos partidosno exercício do poder. Ao contrário,tornou mais ásperas e agudas as con-tradições partidárias em matéria departicipação governativa eficaz. Domesmo passo fez, também, do poderpessoal, da hegemonia executiva e darede de interesses poderosos e privi-legiados, a essência de toda uma polí-tica guiada no interesse próprio deminorias refratárias à prevalência davontade social e sem respaldo de opi-nião junto das camadas majoritáriasda Sociedade”(BONAVIDES, p. 351).

Trata-se, pois, de princípio – o institutorepresentativo, tal o conhecemos no Brasil –incuravelmente eivado de ilegitimidade.Esta a sua história republicana, reforçandoa exclusão social, a exclusão política, a ex-clusão econômica, a sotoposição das mas-sas por minorias cada vez menores e maispoderosas. Nessa ‘democracia’ representa-tiva, povo é bibelô, mero arabesco, destina-do a compor a decoração barroca dos pre-âmbulos constitucionais, gravados para aretórica populista.

O fracasso da democracia representati-va, sendo o fracasso de toda a teoria da so-berania popular, donde a ilegitimidade dopoder que nela se assenta, também está ex-posto na falência da separação dos pode-res. A teoria tripartite dos poderes, separa-dos e harmônicos entre si, é uma burleta emface da efetiva ditadura dos Executivos e,nas Federações, da União sobre os Estados,seja controlando os recursos públicos, sejacontrolando a arrecadação de tributos, seja

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disciplinando a vida dos Estados e dos Mu-nicípios, seja, mesmo, legislando. Com a pre-eminência do Executivo, também se assinalaa supremacia da União sobre os demais en-tes federados e a virtual exaustão federativa.

A democracia representativa fracassou.É preciso corrigi-la o mais urgente pos-

sível, para que não contamine o coletivo doscidadãos com a descrença na democraciatout court, direito fundamental da humani-dade, direito da quarta geração.

4. Nossas raízes autoritárias

No Brasil, a democracia representativajamais medrou em campo fértil, jamais sehauriu na expressão legítima da vontadesoberana do voto livre. A raiz mais remotadesse fracasso rotundo pode estar nos con-tornos próprios de nossa formação de país,nação e povo – desgraçadamente nessa or-dem –, construindo uma sociedade autori-tária e, daí, um Estado autoritário, regidopor um direito autoritário. O direito da casa-grande que sempre tratou o país, o seu cole-tivo, o seu ‘povo’, como senzala, com ofíciopróprio e definido: o trabalho, escravo depreferência. A senzala não podia ter voz,nem a casa grande precisava ouvi-la. O fatomesmo de ser proprietário e branco, e pro-prietário porque branco, dava ao senhor to-dos os poderes constituintes, e ele soube sersempre o senhor de baraço e cutelo de suagente, decidindo sobre as coisas, os negóci-os e as pessoas, sobre a liberdade e a vida,desde nossas origens coloniais aos primór-dios de nossa organização política, quandouma constituinte de brancos e doutores semmandato foi dissolvida para que nossa pri-meira Carta política, redigida a quatro mãosnas antecâmaras da Corte, fosse outorgadapelo príncipe absoluto e assim se inaugu-rasse a crise constituinte na qual ainda hojenos debatemos, sem alternativas a olho nu.

O ato de força que está no vestibular denossa maioridade política não é episódioisolado na história dessa democracia sere-níssima, sem representação popular.

O primeiro colégio da soberania nacio-nal, convocado, nomeado e dissolvido peloPríncipe, era formado por 23 doutores emdireito, sete em cânones, três em medicina,22 desembargadores, nove clérigos, sete mili-tares. Todos ligados à propriedade da terra.

Quando se abre para o processo eleito-ral, o país inaugura o voto censitário, aque-le que requeria do eleitor a posse de bens oupropriedade. A partir da Constituição de1824 o corpo eleitoral se separa em votantese eleitores, excluídos do voto os que não ti-vessem uma renda anual líquida, por bensde raiz, indústria, comércio ou emprego.Votavam os homens, não votavam as mu-lheres. Votavam os letrados, não votavamas massas incultas e analfabetas, votava aminoria mínima, não votava a maioria. Vo-tavam os brancos proprietários. Foi esse oBrasil colonial que chegou ao Império e feza Independência, para dar lugar aos con-des, aos viscondes, aos barões, aos mare-chais, aos almirantes, aos cônegos. Umasociedade do latifúndio, da monocultura edo escravismo; por isso, e, finalmente, naRepública, as oligarquias e o ‘coronelismo’.A uma economia voltada para fora, de cos-tas para a terra e com as vistas e o coraçãoprojetados sobre o além-mar, correspondiauma elite urbana alienada – nossos bacha-réis, os primeiros funcionários públicos, oscomerciantes, os ‘correspondentes’ dosgrandes fazendeiros, padres, professores delatim, a pequena nobreza na corte colonial–, com os olhos, a mente e o coração fixadosna praia, à espera do paquete, meio de in-formação e comunicação, que lhe vinha tra-zer tudo, desde a manteiga, o linho, o vinhoe as poucas ferramentas de que carecia, atéas idéias, a ideologia de que se alimentava,porque, desde cedo, jamais se interessou empensar o país.

A alienação de nossas elites, a inexis-tência de uma burguesia nacional compro-metida com um projeto nacional não são fe-nômenos de hoje.

Sem povo, fizemos a Independência (en-genho e arte de uma diplomacia corrupta e

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perdulária com o erário), fizemos a Aboli-ção tardia (obra de um gabinete anticrônicoe graça de uma Regente interina); sem opi-nião pública e sem campanha republicana,sem apelo republicano e sem o concurso doPartido Republicano, fizemos a República,obra de oficiais do exército e meia dúzia deintelectuais fluminenses. Sem povo e semruptura, sem mesmo a mudança do mando.Sem qualquer mudança social. Sem opiniãopública, sem vida partidária.

Na República, alcançada pela aliançaentre intelectuais e militares, a que estive-ram ausentes os políticos e o povo (o Parti-do Republicano veio a saber da Proclama-ção pelos jornais), os barões são substituí-dos pelos ‘coronéis’. Depois da casa-gran-de e da senzala, a política é dominada pelotrinômio coronelismo, enxada e voto. Surgea classe-média, alguma indústria, a burgue-sia industrial de origem rural, mais precisa-mente da lavoura cafeeira, e, finalmente, oproletariado, camponeses que haviam feitosua ‘revolução’ pessoal com a só imigraçãoque os trouxera do campo para a cidade, dafome para a marmita e a bóia-fria, da enxa-da sem campo para arar para os teares dagrande cidade, para os cortiços da grandecidade, para o desemprego da grande cida-de, para as favelas que irão construir nasgrandes cidades. E alguns imigrantes es-trangeiros, italianos e portugueses em suamaioria. E por largo tempo, a cena seria do-minada pelos generais. Do início, da primei-ra república ao fim da quarta república. Sempovo, fizemos a República Velha, consoli-damos a República, juncada de quarteladase insurgências militares numa querela en-tre a classe dominante, ligada ao latifúndioe ao livre-cambismo, e uma classe-médiaemergente que vai buscar apoio nos quar-téis; sem povo, fizemos mesmo uma revolu-ção que teve por objetivo impedir a Revolu-ção, e assim em nossa história se introniza-va o grande herói, ícone da política brasilei-ra: o príncipe de Lampeduza, tão genuina-mente nacional quanto Macunaíma, e, comoo herói de Mário de Andrade, igualmente

sem qualquer caráter. Por isso mesmo, asmudanças de regime, as reformas, as ‘revo-luções’, os levantes, as ‘marchas’, as colu-nas, nada alteraria a nomenclatura e o pó-dio de nossos heróis; ao poder absoluto dossenhores da terra, segue-se o poder absolu-to dos senhores do capital concentrado; oescravo é substituído pelo excluído. E quan-do a explosão urbana (antes de mais nadaconsequência do esvaziamento do campodepredado pelo latifúndio) constrói as gran-des cidades, o povo-massa vai às ruas, semconhecer sua organização, mas não faz his-tória própria. Quase sempre serve de mas-sa-de-manobra da mesma burguesia, que,de crise em crise, vai-se conservando nomando político, mantendo o mesmo governo,em que pese a sucessão dos governantes.

Do Fico às ‘diretas-já’.No notável movimento das ‘diretas-já’,

o povo, com o estímulo das organizaçõessociais e o concurso de parte do aparelhoestatal, em mãos de províncias oposicionis-tas, finalmente vai às ruas; mas não fez his-tória. Esta ficou por conta de um Congressosem legitimidade que, violando a represen-tação, rejeitou a emenda que o povo exigia,naquele que talvez tenha sido, na Repúbli-ca, o único momento de consenso políticonacional.

Eis por que toda a história política destepaís, do Império à República que ingressano terceiro milênio, pode ser escrita sem umasó referência aos partidos políticos, aqueleelemento essencial das democracias repre-sentativas.

5. A crise constituinte

A crise constituinte nasce com o País, eaté hoje estamos à espera de uma ordemconstitucional estável.

No relativamente curto período de pou-co mais de cem anos de vida republicana,nosso país conheceu, entre cartas, ordena-ções e Constituições, sete diplomas. Quatro(1891, 1934, 1946 e 1988) derivados de as-sembléias constituintes (algumas, como a de

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1988, carentes de poder constituinte origi-nário), um promulgado por um congressosem legitimidade mesmo derivada (1967),dois ditados por ditaduras (a Carta 1937 e aOrdenação de 1969). A esse rol pode-se in-cluir a reforma de 1926, levada a cabo porum Congresso ordinário.

O país não sabe o que é ordem constitu-cional estável.

Durante todo esse período, e mesmo apósa redemocratização post Estado Novo e aConstituição de 1946, o que temos tido é pre-sidentes de República que, ao invés de guar-diães da Constituição que juraram obede-cer, se transformam em chefes de Estado cujoprojeto de governo é promover a reforma daConstituição, submetendo-a aos seus inte-resses políticos e administrativos. DesdeDeodoro, que renunciou por não poder go-vernar com a Constituição, até o atual Presi-dente, que, ‘para governar’, desmonta a or-dem constitucional, graças ao concurso deum Congresso que lhe é dócil na concessãode emendas e na aprovação de medidas-pro-visórias que transferem para o Executivo fun-ção legiferante exclusiva do Legislativo, e gra-ças a um Supremo sem ânimo para assumirseu papel político de Corte constitucional.

Em 11 anos de vida, o texto de 1988 jáincorporou 31 emendas e, presentemente,correm, no Congresso Nacional, dados de16 de fevereiro de 2001, nada menos de 649projetos de Emenda Constitucional.

Enquanto isso, em seus 213 anos, a Cons-tituição norte-americana sofreu 27 emendas.

Mesmo o largo período de normalida-de constitucional democrática, largo nos ter-mos restritos da realidade brasileira, ressal-ve-se, de 1946 a 1964, foi perturbado porseguidas crises institucionais, com reper-cussões óbvias na vida política: um presi-dente (Vargas) se suicidou, no auge de crisepolítico-militar; dois presidentes foram de-clarados impedidos por um Congresso ani-mado em seu civismo pelo cerco das tropasmilitares (Carlos Luz e Café Filho); um pre-sidente (Juscelino Kubitscheck) enfrentouduas sublevações militares (Jacareacanga e

Aragarças), um renunciou (Jânio) e outro foideposto por um levante militar (Goulart).Entre essa renúncia e essa deposição, umajunta militar de fato e um presidente títere(Mazilli), depois da tentativa de impedir aposse do vice-presidente constitucional,impuseram, uma vez mais e sempre contan-do com a docilidade do Congresso, a refor-ma parlamentarista, porque no Brasil o Par-lamentarismo não é uma forma de governo,mas um expediente de golpe-de-Estadoconstitucional.

Já sob o regime da Constituição de 1988,tivemos o impeachment do primeiro Presiden-te da República eleito pelo sufrágio univer-sal desde 1960 (Fernando Collor de Mello).De 1930 a 1999, durante 69 anos de demo-cracia representativa, conhecemos pelo me-nos 32 anos sob ditadura franca (1930-32;1937-45; 1964-85). Em vários episódios e porlargos períodos, vivemos sob estado-de-sí-tio. E que dizer dos 30 anos da democracia‘representativa’ da República Velha, a re-pública das oligarquias, dos caciques e dos‘coronéis’, das eleições a bico de pena? Quedizer dessa democracia representativa as-sentada na fraude eleitoral? Na ausência dedebate e de opinião pública?

5.1. As medidas provisórias

Como um dos indicadores da crise cons-tituinte brasileira nomeamos o Executivoimitindo-se em tarefa típica e privativa doLegislativo. Referimo-nos, por evidente, àsMedidas Provisórias, excrescência de índo-le parlamentarista incrustada na ordem ju-rídica presidencialista. Não se trata de re-clamar de um Parlamento, de natureza ge-nuflexo em face do Poder, um mínimo deousadia moral na rejeição das Medidas fla-grantemente inconstitucionais; não se tratade querer desse Congresso, e o atual não émais flébil que os anteriores, o exercício dojuízo de admissibilidade, rejeitando ab ini-tio as Medidas que não se conformam comas exigências constitucionais; não se tratade reclamar do Congresso seu dever consti-tucional de zelar pela preservação de sua

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competência legislativa (C.F. art. 49, XI);nem se trata mesmo de regulamentar a edi-ção desse mostrengo. Trata-se, tão-só, de re-vogar o art. 62 da CF, ou, regulamentando-o, subordinar a eficácia da medida à suaaprovação por referendo, opção, aliás, queestá consorte com o art. 14, como única for-ma de salvar a soberania popular. Crimepior, só o do Executivo, reeditando-as. Emqualquer hipótese, haverá o veto do art. 246

à admissibilidade de Medida Provisória naregulamentação constitucional.

Os dados oficiais são escandalosos edesenham um escárnio contra a ordem cons-titucional. Desde a promulgação da Consti-tuição de 1988 até o dia 16 de fevereiro de2001, foram editadas 5.702 Medidas Provi-sórias, das quais 4.890 nos seis primeirosanos de governo FHC! As reedições soma-ram 5.121 Medidas Provisórias.

125

22

109

2

5

9

-

147

Originárias

Reeditadas

Convertidas

Revogadas

Sem Eficácia

Rejeitadas

Em Tramitação

Editadas

87

73

66

5

5

11

-

160

141

364

121

5

15

-

-

505

160

6991

1.750

82

11

3

1

40

2.609

71

1371

2.076

73

5

1

1

12

2.281

584

5.121

451

28

29

22

52

5.702

1 Reedições de Medidas de Governos anteriores.Fonte: Presidência da República – Subchefia para Assuntos Jurídicos.

Medidas ProvisóriasEdição e Reedição por Governo

Atualizado em 16.2.2001

Governo

José Sarney(3.1985 a3.1990)

FernandoCollor

(3.1990 a10.1992)

Itamar Franco(10.1992 a12.1994)

Fernando H.Cardoso

1º Governo(1.1995 a12.1998)

Fernando H.Cardoso

2º Governo(12.1998 a16.2.2001)

Total Geral

Sucedâneo ao decreto-lei da ditaduramilitar, a Medida Provisória é ainda maisautoritária do que seu antecessor; aquele,quando não aprovado pelo Congresso em30 dias, perdia validade e não podia ser re-editado; já a medida provisória, se tem vali-dade inicial de 30 dias, pode ser reeditadaindefinidamente. Assim, ao Executivo, é ir-relevante trabalhar a apreciação congressu-

al, pois está em suas mãos o expediente dareedição sem peias. Por isso mesmo, porexemplo, para citar um episódio paradig-mático, a MD que implantou o Plano real,emitida pelo Executivo em julho de 1994, sófoi apreciada na convocação extraordiná-ria de fevereiro de 2001, depois de seis anos,duas eleições presidenciais e 73 reedições!Jogando com o recurso da reedição – ou seja,

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com a não-apreciação do mérito pelo Con-gresso –, o Executivo legisla sobre tudo: des-de finanças a matérias penais (vedadas aosantigos decretos-leis), ou questões irrelevan-tes como auxílio-transporte para militaresou vale-pedágio para caminhoneiros.

Ausente o Congresso da formulação dasgrandes diretrizes da política do País, vê suacompetência legislativa transferir-se perma-nentemente para o Executivo. E isso interes-sa ao sistema, porque para toda a gente émuito mais fácil e conveniente exercer o lobbyjunto a um burocrata do que ter de enfrentar opluralismo partidário no Congresso; é muitomais fácil lidar reservadamente com um téc-nico do governo do que ter de entender-se coma pluralidade de lideranças partidárias.

Embora inserta no corpo da Carta Mag-na, a Medida Provisória é inconstitucional,“porquanto fere e anula dois princípios daordem constitucional que não podem serquebrantados: o da legalidade e o da legiti-midade”21. Elas não conhecem remédio, forada pura e simples revogação do art. 62, ouda subordinação de sua eficácia a referen-do popular.

5.2. A falência do poderlegiferante do Congresso

Aprofundando a crise constituinte, háque se registrar a falência do Poder Legisla-tivo cedendo sua competência legiferante.Não se trata só das Medidas Provisórias.No ano legislativo de 1999, o Congresso bra-sileiro editou 83 leis. Dessas, 59, ou seja,63,4%, foram de iniciativa do Executivo, 32(34,4%) de iniciativa de uma das duas Casase duas (2,2%) oriundas do Judiciário22. No anode 2000, piorou. O Congresso aprovou e fo-ram sancionadas 218 leis (143 das quais tra-tavam de crédito suplementar ou abertura decrédito). Desse total de 218 projetos converti-dos em lei, 188 (ou seja, 86,23%) foram origi-nários do Poder Executivo, 24 (ou seja, ape-nas 11%) tiveram origem em uma das duasCasas do Parlamento e seis (2,76%) tiveramorigem no Poder Judiciário. Definitivamente,o Executivo tomou a si a função legislativa23.

Mas o melhor indicador do esvaziamentodo poder legiferante do Congresso Nacionaltalvez seja oferecido pela análise aos pro-cessos de elaboração e execução do Orça-mento Geral da União.

Uma das mais importantes funções doCongresso brasileiro é a elaboração do Or-çamento da União. A relevância é de tal or-dem que foi alçada a matéria constitucio-nal, a que nosso ordenamento dedicou umaSeção (Dos orçamentos) e cinco artigos. Umdeles (art. 166) regula o processo legislativoe (§ 1º) cria uma comissão mista permanen-te, de Senadores e Deputados. Mas a elabo-ração orçamentária, pelo Congresso, resul-ta numa ficção! Senão, vejamos: do total doOrçamento aprovado (a partir de propostado Executivo), os parlamentares só podeminterferir em cerca de 3% (mas suas emen-das não podem aumentar a previsão de re-ceita), percentual esse que ainda pode sercontigenciado em 50%. Do que sobra, aUnião executa apenas 18 ou 20%. Mesmoaqueles 97% nos quais o Congresso nãopode interferir, limitando-se sua competên-cia a homologar a proposta do Executivo talqual recebida (despesas de pessoal e seusencargos, serviço da dívida e fundos e trans-ferências constitucionais, art. 166, § 3º, II),podem ser alterados pelo Governo, por meiode remanejamentos.

Examinemos o Orçamento para o exercí-cio financeiro de 2001. Ele importa em R$950.202.360.392,00 – receita esperada (sem-pre realizada a mais) e despesa fixada (sem-pre realizada a menos).

Qual a participação do Congresso Naci-onal em sua elaboração?

Desses 950,2 bilhões, apenas R$ 398,6bilhões (orçamento fiscal e da seguridade)puderam ser movimentados pelo Congres-so Nacional; sua intervenção mediante re-manejamentos foi de R$ 12,1 bilhões (R$12.067.787.676,00), ou seja, apenas 3,04% dototal.

Mas ainda não é tudo.Mediante o instituto da Desvinculação de

Receita da União-DRU (Emenda Constituci-

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onal nº 27/2000), o governo federal obtevea desvinculação, linear, de 20% da arreca-dação da União de todas as contribuições eimpostos destinados a seus fundos, órgãosou despesas, excluídas as transferênciasconstitucionais obrigatórias (Fundo deParticipação dos Estados, Fundo de Par-ticipação dos Municípios etc.) e o salário-educação.

No exercício financeiro de 2000, adesvinculação foi de $31,1 bilhões (R$31.062.232.686,00) e para 2001 foi de R$ 35,1bilhões (R$ 35.097.151.662,00).

Tais números mostram que a DRU ofere-ceu ao governo, nos dois exercícios estuda-

dos, 66,2 bilhões em orçamento desvincula-do de qualquer destinação originária, ou,em outras palavras, para cumprimento decontratos fiscais.

Mas, se o Congresso se vê coartado emseu papel legiferante, não conhece termo oarbítrio do Executivo, que, do total do Orça-mento Geral da União, realiza tão-só o quan-to lhe interessa: pois é de seu arbítrio limitara execução, efetuar cortes e promover conti-genciamentos.

A análise a alguns Programas, em 2000,revela a distância entre a Lei orçamentáriatal qual aprovada pelo Congresso e sua efe-tiva execução:

Programa Execução(%)

Saúde do trabalhadorImplantação de redes de bancos de leite humanoCapacitação profissional (enfermagem)Atenção a portadores de deficiênciaSaúde mental

1,045,756,077,978,16

Não bastassem todas as intervenções jádescritas, o Executivo, por meio do Decreton. 3.746, de 6.2.2001, contigenciou mais de7,5 bilhões do Orçamento aprovado para2001, atingindo a Justiça (R$ 28.104 em33.102), a defesa nacional, a segurança pú-blica, a saúde, enfim todos os setores da ati-vidade pública nacional. Dessa forma – e alistagem é puramente exemplificativa –, aSecretaria Especial de DesenvolvimentoUrbano sofreu um corte de 84,9% em seuorçamento, o Ministério do Esporte e Turis-mo um corte de 64,4%, o Ministério da Inte-gração Nacional um corte de 52,5%, Minis-tério da Agricultura e do Abastecimento umcorte de 40,7%24.

6. A crise partidária

A crise dos partidos reflete a crise políti-ca brasileira e é denotativa da fragilidadeda democracia representativa.

A rigor, a vida partidária, entre nós, res-salvadas as discutibilíssimas experiênciasdo segundo reinado e da república velha,

só tem início com a redemocratização de1946, para ser logo interrompida pela vio-lência do Ato institucional nº 2, de 1965.

Mesmo para o regime democrático deri-vado da carta liberal de 46, era insuportávela sobrevivência das organizações à esquer-da do regime, um regime que cassava regis-tro de partidos e os mandatos de parlamen-tares comunistas.

Nada obstante, a ordem partidária deri-vada da Carta de 46, um pluripartidarismocondensado em três siglas de âmbito nacio-nal (PSD, UDN e, de último, PTB), não dura-ria mais de 18 anos, golpeada em 1965 peladitadura militar. Até extinguir-se por inani-ção o sistema de partidos dos generais, avida política brasileira seria reduzida a duassiglas, organizadas de forma burocrática, esegundo os ditames do regime de exceção.

Esse bipartidarismo formal – no começoARENA-MDB, na última fase PDS-PDMB –,encerrando um unipartidarismo de fato,pois só o partido do governo podia ganhar,elegendo os delfins indicados pelo Olimpocastrense, não chega a constituir um siste-

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Revista de Informação Legislativa48

ma de partidos. Partidos de fancaria, essasduas siglas consentidas compunham o corode uma ópera bufa, cujo libreto era ditadopelas casernas; no palco, marionetas orgu-lhosas dos cordéis que as ligavam aos seusmanipuladores; na platéia, um público en-fastiado.

Sob o regime de exceção, foram organi-zados, dissolvidos e reorganizados os par-tidos na camisa-de-força do bipartidarismoformal; realizaram-se eleições vigiadas, su-jeitos seus resultados à ‘depuração’ (via cas-sações de mandatos quando fracassava afiltragem das impugnações e das restriçõeslegais) da vigilância militar, a mesma vigi-lância que mantinha aberto o Congresso edecretava seu recesso quando isso atendiaa ‘razões de segurança nacional’ desconhe-cidas da Nação. Sob o comando do poder, esegundo suas regras, e seu calendário, foioperada a lenta e gradual transição da dita-dura para a Nova República, que compre-endeu cassações amplas, anistia restrita,atentados da direita terrorista encrustradano aparato estatal, e eleições presidenciaispor um colégio indireto previamente ilegiti-mado pela Nação no memorável movimen-to das ‘Diretas-já’.

E nesse episódio, ao derrotar a emendaque instituía as eleições diretas para Presi-dente e vice-Presidente da República, o Con-gresso Nacional decidia contra a expressavontade constituinte da Nação, e, assim, vir-tualmente decretava a ilegitimidade da de-mocracia representativa brasileira.

O episódio põe de manifesto mais umadas características da democracia represen-tativa, que é a incurável diacronia entre avontade do representado e a ação parlamen-tar do representante.

6.1. Os partidos no direito constitucional

A Constituição de 1824, compreensivel-mente, ignorou a existência de partidos. AConstituição republicana de 1891 seguiu-lhe os passos, embora os partidos, regionais,desde há muito existissem e funcionassemcomo instrumento das oligarquias e sem

qualquer diferenciação ideológica, nadaobstante se denominassem conservadores ouliberais. Todos serviam aos senhores da ter-ra. A Constituição de 1934 – nossa experi-ência weimariana – limitou-se a prever aperda de cargo imposta ao funcionário pú-blico que favorecesse ‘partido político cominfluência de autoridade ou pressão’ (art.179, 9º). E a Carta de 1937 é evidentementeomissa.

Aparecem os partidos pela vez primeirano Código Eleitoral de 1932, Dec. nº 21.076,de 24.3.1932, arts. 58-1º, 99, 100 e 101.

Com a Constituição de 1946, os partidospassam a ser referidos, mas de forma quasee só burocrática e repressiva, dedicando-se-lhe duas menções: a) do registro e da cassa-ção (119, I) e b) dos que não se podem orga-nizar, registrar ou funcionar (art. 141, § 13).

A preocupação constitucional com ospartidos políticos começa, de fato, e ironica-mente, com a Carta de 1967, originária doregime militar e do Congresso ordinário queconformou. Assim dispõe: 1) art. 20, III (imu-nidade tributária); 2) art. 32, parágrafo úni-co e art. 39 (participação na organização dascomissões parlamentares; 3) art. 37, § 20 (re-presentação à Câmara para declaração deperda de mandato); 4) art. 149 e incisos (or-ganização, funcionamento e extinção); e 5)art. 166, III (possibilidade de partido políti-co ser acionista de empresa jornalística).

A Ordenação de 1969, editada pela JuntaMilitar, tratava dos partidos em seu art. 152.

A Emenda Constitucional nº 25, de 15de maio de 1985, que abre o processo de re-democratização, já sob o comando do pri-meiro governo civil após a vintena militar,disporia:

“Capítulo IIIDos Partidos PolíticosArt. 152. É livre a criação de Parti-

dos Políticos. Sua organização e fun-cionamento resguardarão a SoberaniaNacional, o regime democrático, opluralismo partidário e os direitosfundamentais da pessoa humana,observados os seguintes princípios

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(…).”Como falar em democracia representati-

va em regime constitucional que assim ig-nora a vida partidária?

6.2. Os partidos na últimaredemocratização

Se bem que a abertura partidária já seinsinuasse em 1982, só com o fim do regimemilitar é que recomeça a construção de umnovo sistema de partidos; que no entanto éregido pela ordenação militar, a Lei Orgâni-ca dos Partidos Políticos (de 1971), sobrevi-vente até à redemocratização, para final-mente conhecer sua revogação, tardia, coma lei 9.096 de 1995. Só a partir dessa lei, edas regras democráticas da Constituição de1988, é que se começa, neste país, a cons-truir um sistema democrático de partidos,fundado na autonomia e na liberdade auto-organizativa. Mas sobrevive o Código Elei-toral, de 1965…

Mesmo essa ordem jurídica, a lei eleito-ral, de 1997, e a lei dos partidos políticos, de1995, já está sendo contestada. Hoje, nãotemos garantias de qual será o regime elei-toral e partidário brasileiro que presidirá aseleições de 2002.

O atual sistema de partidos, embora te-nhamos partidos registrados desde 1981(PMDB, PTB e PDT), portanto, começa a de-finir-se com a Emenda Constitucional nº 25/85, mas só entraria a consolidar-se a partirde 1988, com a definição das novas regrasconstitucionais. Mesmo hoje, todavia, nãose pode dizer definido, nem juridicamente,nem politicamente, nem do ponto de vistasociológico, vale dizer, de sua homologaçãopela consciência coletiva nacional.

Trata-se de sistema que remonta aos me-ados dos anos 80, quando na Europa e nosEstados Unidos, para citar nossas matrizespara tudo, a vida partidária recorre a maisde cem anos.

A referência à legislação ordinária assi-nala uma cronologia e não ressalta os méri-tos do ordenamento. Pois a atual legislação,elaborada sob as asas democráticas da

Constituição de 1988, tem por objetivo coar-tar a representação, estagnar a vida partidá-ria, congelar o processo político, para, final-mente, manipular a manifestação da sobera-nia popular. A intervenção do poder econô-mico nas eleições é consentida, e não são es-tabelecidos limites de doações financeiras àscampanhas dos candidatos; o horário eleito-ral gratuito frusta todas as possibilidades deigualdade de disputa entre candidatos e par-tidos. Os titulares de cargos executivos po-dem concorrer às suas próprias sucessõessem sequer terem de se licenciar dos respecti-vos cargos, numa intolerável agressão a todaa experiência republicana25.

Por que resulta grave para a democraciaa fragilidade dos partidos políticos?

O partido político é o espaço único daação político-eleitoral nas democracias re-presentativas; nosso regime, de um lado,proscreve as candidaturas avulsas, fora dospartidos, e, de outro, proíbe às entidadessindicais e congêneres qualquer sorte devida partidária. O monopólio da via políti-co-eleitoral, pelos partidos, completa-sequando uma das condições de elegibilida-de é a filiação partidária prévia.

Entre nós, os cargos políticos nos pode-res Legislativo e Executivo são preenchidosmediante eleições, e só se admite candidatomediante a inscrição partidária (cf. art. 14,§3º, V, da Constituição). O partido político,livre, apto à alternância no poder, é o supra-sumo do pluralismo, e é por meio da solidezdo sistema de partidos que se mede a robus-tez da democracia representativa. Portanto,sem o concurso dos partidos, essa ficção darealidade brasileira, não há como organi-zar e desempenhar as funções estatais. Nademocracia representativa, não há poderpolítico se não há partido político. No en-tanto, o declínio dos partidos políticos é fe-nômeno que percorre quase todas as demo-cracias representativas. A intermediaçãopolítica – a quinta-essência da democraciarepresentativa – entra em declínio; daí, afalência das instituições representativas, ésó um passo.

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7. A crise do Legislativo

Não há uma só pena de analista da polí-tica brasileira que não escreva, como denún-cia, a crise do Poder Legislativo. Variáveissão os enfoques, mas a crítica é consensualem face de seu desempenho, seja em punir adocilidade com que as duas Casas se cur-vam aos impérios do Executivo, seja ao ver-berar o preço cobrado por essas concessões;seja a denúncia do esvaziamento dos ple-nários, seja a denúncia do nepotismo lar-var. Outras vozes se agigantam contra o cor-porativismo que, numa leitura equivocadae muito peculiar do princípio da imunida-de parlamentar, tem transformado esse ins-tituto, de inestimável importância para ademocracia parlamentar, em mero instru-mento de proteção a criminosos comuns.

A Comissão Parlamentar de Inquérito,que na legislatura 1994-1998 desvendou asentranhas da Comissão de Orçamento, nasduas Casas, pôs a nu a malha/máfia de inte-resses e negócios ilegais, contra o erário, reu-nindo parlamentares, altos funcionários daRepública, empreiteiros e fornecedores dogoverno federal em verdadeiras organiza-ções criminosas, concertadas no ofício dedepredar o bem público.

As críticas, e aqui não há a menor inten-ção de proceder à sua listagem, não se cir-cunscrevem às Casas maiores da Repúbli-ca. Ao contrário, pervagem todo o poder le-gislativo. E lá na ponta, nas Câmaras Muni-cipais, onde se suporia fosse mais efetiva afiscalização da cidadania, maiores são osdesmandos e mais graves as denúncias en-volvendo tráfico de influência, nepotismo,suborno, ‘caixinhas’, comissões e o crimeorganizado.

O rompimento de padrões éticos, amea-çando a legalidade do mandato e manchan-do de ilegitimidade a representação popular.

Localizamos na crise da representaçãoa raiz de todos esses problemas, os quais,em seu conjunto, constituem um dos maissérios óbices à consolidação, em nosso país,da democracia, direito fundamental.

Já vimos como labora o processo legisla-tivo, esvaziando a efetividade da represen-tação popular, que mais se distancia de suafonte em face da concorrência de tantos ele-mentos negativos, a saber:

1. A fragilidade do sistema de partidoscomposto, em sua esmagadora maioria, semdistinção programática, a não ser formal, naletra dos manifestos sem conseqüência navida real, e que, por isso mesmo, seja nosexecutivos, seja nos parlamentos, terminampor se confundirem perante o eleitorado, emface dos métodos comuns, dos objetivos co-muns, dos resultados comuns. Como os ga-tos noturnos, no poder, os partidos brasilei-ros são pardos. Daí decorre, em grande inci-dência, como resposta de uma sociedadedesiludida, a ausência do voto partidário,do voto de legenda, com a prevalência da-quele que mais desserve à democracia: o votodo compadrio, o voto do interesse, o voto datroca de favores, abrindo caminho à maislarga atuação do poder econômico, medi-ante a compra do voto, o aluguel do caboeleitoral, o fisiologismo, e o assistencialis-mo, doenças genéticas da democracia repre-sentativa brasileira. O custo altíssimo doprocesso eleitoral, o custo altíssimo de umaeleição parlamentar em qualquer de seusníveis, promove uma pré-seleção perversa,na base da sociedade, eliminando do pleitoaqueles candidatos sem visibilidade públi-ca (privilégio dos chefes de executivo, ad-ministradores, atores, personagens de rádioe televisão, esportistas), ou sem ligações cor-porativas ou sindicais, ou sem integraçãocom um grupo econômico. Por isso mesmotemos representantes que fraudam o man-dato, violando a vontade eleitoral, e um Par-lamento que não representa o País, mas osgrupos econômicos que financiaram as cam-panhas26. Assim, o voto não elege o repre-sentante do cidadão, mas o do capital, doaparelho corporativo, da grande empresa eda grande imprensa, do latifúndio, do mer-cado, do cotista do capital errático, os quaisvão legislar em benefício exclusivo de seuspatronos, seus verdadeiros eleitores. O re-

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presentado, o cidadão, o homem do povo, dáao seu representante parte de um poder quenão tem mais. Este, o representante, que játinha o poder, legitima-o por via dessa ficção.

2. Dessa distorção, que nega, na sua ori-gem, a legitimidade do voto, resulta o divór-cio entre eleito e eleitor, entre representantee representado, pelo que o parlamentar, pas-sado o pleito, satisfeitos seus compromis-sos econômicos com os grupos que o elege-ram, ou quitados seus compromissos assis-tencialistas, faz-se senhor absoluto de seumandato.

3. Na seqüência de mazelas que desna-turam o sistema representativo brasileiro, odeputado ou vereador eleito, uma vez que avotação é nominal e não partidária, e nãosegue o sistema de listas, também se senteacima de seu partido de cuja legenda e decujo quociente eleitoral dependeu para con-quistar o mandato, e se comporta sem deverrespeito ao seu partido e a seus eleitores, oque desnatura o princípio do mandato po-pular. Cada deputado ou vereador, previa-mente liberto dos compromissos com seueleitorado, que nada lhe pode cobrar, com-porta-se, no exercício do mandato, comouma instituição autônoma, inalcansávelpela disciplina partidária, ou pela fiscali-zação do eleitor. Daí, em nossos parlamen-tos, a proliferação de bancadas de interessede nominata inesgotável, organizadas ergapartidos: são a ‘bancada’ dos evangélicos,a da saúde, a da medicina privada, a dos

radialistas, a do ensino privado, a dos rura-listas e, até, a dos policiais-militares. Sãoesses interesses, acima da representação doeleitorado ou do programa partidário, quedeterminam as votações em Plenário.

4. Ao cabo e ao fim, e porque não temcompromissos quer partidários quer com arepresentação de seu eleitorado, por consi-derar-se uma instituição autônoma, o par-lamentar pode migrar de partido em parti-do, em alguns casos mais de uma vez namesma legislatura, e raramente a migração,que não conhece punição partidária ou le-gal, encontra justificativa doutrinária, ideo-lógica ou programática27. A migração e a au-tonomia da ação parlamentar constituemfraude contra a representação quando a atu-ação parlamentar – e essa é a regra, lamen-tavelmente – deixa de respeitar seja a vonta-de do eleitor, seja o programa do partido como qual se apresentou à sociedade.

Na legislatura 1990-94, desconsideradaa fusão de siglas, 35 parlamentares troca-ram de partido. No curso da legislatura1994-98, esse número alcançou a escanda-losa marca de 218 parlamentares, ou seja,42,5% do total da representação (TAFNER,1997, p. 12).

As mudanças – ‘dança’ de partidos –visando às eleições e as composições daMesa e das Comissões da Câmara, e a trocade favores que faz crescer as bancadas go-vernistas, são regra em todas as legislatu-ras, e não poderia ser diferente na atual:

Partido

PFL

PSDB

PMDB

PPB

PT

PTB

PDT

PSB

PL

16/2/2000

101

103

96

52

60

24

21

12

11

Representação partidária na Câmara dos Deputados

Eleição de 1998

105

99

83

60

60

29

25

19

12

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Revista de Informação Legislativa52

Assim, nessa democracia exemplaríssi-ma, o tamanho de cada bancada não depen-de do número de votos obtidos, nem corres-ponde à vontade do eleitor depositada naurna; o crescimento partidário prescinde deeleições.

5. Por todas essas razões, observada aexceção que merecem as organizações deesquerda, não temos, a rigor, partidos, masaglomerados de mandatários, correntes deindividualidades que desmoralizam mesmoo instituto da filiação partidária: porque opartido é buscado não como instrumento deluta política, mas como mera via jurídica –exigência legal que se aceita a contragosto –indispensável à obtenção do mandato. Porisso, no Brasil, o candidato se elege com umprograma de governo e governa com outro eo parlamentar pode ignorar o programapartidário. Por isso e finalmente os parti-dos, no governo, não governam: respaldamo governo.

Essa composição de interesses de ordemvária (na qual, todavia, não habitam nem aética nem a ideologia) inevitavelmente de-terminaria a pauta do Congresso e determi-naria sua pobreza política.

Não há espaço para a representação.A crise legislativa, todavia, não é parti-

cularidade da democracia representativaassim como a praticamos entre nós. Está

Partido

PCdoB

PPS

PSD

PMN

PSC

PRONA

PSL

PST

PV

PHS

PTN

TOTAL

16/2/2000

7

13

-

-

-

-

-

-

1

1

1

513

Eleição de 1998

7

3

3

2

2

1

1

1

1

-

-

513

Fontes: Tribunal Superior Eleitoral e Câmara dos Deputados – Secretaria Geral da Mesa.

presente em todos os parlamentos ociden-tais cuja competência se restringe cada vezmais, “além dos limites de fato do poder es-tritamente político em uma sociedade capi-talista, onde as grandes decisões econômi-cas são tomadas por um poder em parte pri-vado e, hoje, em parte não nacional” (BOB-BIO, 1987, p. 72), a classe dominante nacio-nal, as grandes multinacionais e organis-mos internacionais como o FMI, o BIRD, oBanco Mundial, a OMC etc., fazendo cadavez mais distante o controle democrático dosistema econômico pelo sistema político.

8. A democracia representativanão é democrática

Por que a democracia representativa nãoé democrática?

Porque, se todos os cidadãos com maio-ridade e no pleno gozo de seus direitos polí-ticos dispõem, universalmente, do direito de,por meio do sufrágio, eleger seu represen-tante, o voto não tem peso idêntico, seja porforça dos mecanismos da proporcionalida-de ou da construção dos distritos eleitorais,ou dos colégios eleitorais, como na demo-cracia representativa norte-americana; setem o direito ao voto, não exerce na plenitu-de o direito de escolha, limitado pelo qua-dro partidário, limitado pelas legendas par-

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tidárias, limitada pela interferência do po-der econômico, pela interferência do poderpolítico e pelo monopólio da informação quemanipula a construção da opinião pública.O sistema trabalha para impedir a rotativi-dade no poder, de sorte que às minorias énegado o direito de tornarem-se, em condi-ções de igualdade, maioria, pelo que a trocano poder, ainda quando premiando parti-dos distintos, promove a rotação entreiguais.

Assim podemos resumir as principaisrestrições à democracia representativa:

1. burocratização crescente do aparelhoestatal e aumento do poder político-decisó-rio da burocracia, intervindo, inclusive, noprocesso legiferente; essa burocratizaçãoalimenta a predominância do tecnicismo noprocesso decisório político, afastando a in-fluência da soberania popular;

2. tendência à massificação da socieda-de civil, associada à apatia política (via des-politização da política) e à manipulação doconsenso, de que, por seu turno, decorremora a não-participação, ora a participaçãodistorcida;

3. baixos níveis de prestação de contaspelo governo, donde ausência de controlesocial sobre o aparelho político e ausênciade responsabilização;

4. tendência ao bipartidarismo e à con-centração política, donde restrições ao plu-ripartidarismo e ao pluralismo ideológico(um e outro fundamentos de qualquer de-mocracia), daí a concentração do poder pe-las direções partidárias, atuando de formasoberana sobre todo o conjunto do Estado (eda vida institucional) e da sociedade;

5. baixos níveis de influência popularno processo de tomada de decisões;

6. ausência de margem de mudançasocial e política por meios parlamentares,donde o reforço do conservadorismo;

7. redução da participação da cidada-nia nas eleições (transformadas em um pro-cesso simples de escolha entre pequeno nú-mero de alternativas similares), que cada vezmenos influem ou determinam mudanças;

as eleições, ademais de não serem veículosde mudança, são cada vez mais espaçadas,e assim mais funcionam como reforço e legi-timação do poder;

8. controle da agenda política pelas di-reções dos grandes partidos (que controlamo Executivo e o Parlamento) e dos meios decomunicação de massa;

9. tendência à concentração do poder,ao unitarismo e, por conseqüência, ao en-fraquecimento da federação;

10. crescente caráter plebiscitário e legi-timador do poder governamental estabele-cido;

11. substituição da vontade dos repre-sentados pela vontade dos representantes;

12.facilidade para a ação dos lobbies erepresentação direta dos grupos de inte-resse;

13. crescente poder legiferante do Execu-tivo;

14. autonomização política da burocra-cia em face das mudanças políticas de sorteque a mudança política pode não significarmudança administrativa;

15. as eleições se convertem em meromecanismo administrativo, perdendo suafunção de exercício da soberania e como for-ma de governo popular;

16. representação mediatizada pelo po-der econômico, pelo abuso do poder políti-co e pela manipulação dos meios de comu-nicação de massa.

A democracia representativa, finalmente,enseja o monopólio do poder político, quan-do a ação combinada de (i) partidos políticoshierarquicamente controlados com (ii) gover-no concentrado, num Estado centralizado,serve para destruir o pluralismo e negar a in-fluência popular (HIRST, 1993, p. 14).

Essas questões são insolúveis na demo-cracia representativa.

9. A democracia participativa: ademocracia do terceiro milênio

É impossível salvar a democracia repre-sentativa, porque ela contém uma contradi-

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ção intrínseca: a impossibilidade de umarepresentação legítima (seu pressuposto),isto é, não-eivada de manipulação – mani-pulação que apenas cresce e se agiganta etoma as formas de um moloch na sociedadede massas –, pela exigência de instrumen-tos de mediação que se constituem, ao mes-mo tempo, incontornáveis instrumentos dedefraudação da vontade cidadã original.

Quando falamos de democracia repre-sentativa, estamos nos referindo a uma for-ma de governo, uma modalidade de Estado,um regime político, uma forma precisa, decorte ocidental-montesqueniano-iluministae teleologicamente formal, e, por isso, intrin-secamente e irrecuperavelmente injusta,para dizer que a democracia tout court pedesua salvação, recuperando-se sua raiz ate-niense e projetando-se para o futuro, comoa democracia do terceiro milênio, que é ademocracia participativa, livre da ditadurado representante sobre a vontade do repre-sentado, repondo a sincronia entre a vonta-de da cidadania e a ação política.

As críticas à democracia representativanão podem abrir caminho à não-democra-cia ou à democracia-nenhuma. Ao contrá-rio, elas derivam de uma opção intransigente,radical, pela democracia. A democracia par-ticipativa é a forma de corrigi-la, ampliá-la,aperfeiçoá-la, aprofundá-la.

O ponto de partida da democracia parti-cipativa, ou capilar, é a democracia repre-sentativa, cujas conquistas – como o sufrá-gio universal, voto direto e secreto, manda-to com termo certo, liberdade e pluralismopartidário e ideológico - são aprofundadas,substituindo-se a preeminência da represen-tação pela participação permanente do ci-dadão, seja atendendo a mecanismos deconsulta, seja principalmente participandodo processo deliberativo, administrativo ouparlamentar. Se, na democracia representa-tiva, a participação é um episódio, restritoàs eleições, às quais o eleitor comparece edeposita seu voto, perdendo o contato como eleito e deixando de influir no desempe-nho de seu mandato, na democracia parti-

cipativa a cidadania é permanente, diária,cotidiana, é “o chamamento ao eleitor paraque no curso da ação ele esteja permanente-mente colado, integrado, articulado, entendi-do, próximo do governante, para que as açõessejam permanentemente discutidas” (SOU-SA, p. 112). O projeto da democracia partici-pativa é superar a democracia representati-va; entendendo a democracia como um pro-cesso que não se conclui, e que precisa avan-çar para além das esferas públicas e políticase institucionais, como a vida nas organiza-ções, no trabalho, nas relações comunitáriasde vizinhança, nas relações associativas, nasrelações familiares, nas relações entre mari-do e mulher, entre pais e filhos, entre profes-sores e alunos, entre patrões e empregados,todas impregnadas de forte autoritarismo.

9.1. A raiz ateniense

Ainda que possa parecer revelação desegredo de polichinelo, é preciso dizer quea democracia representativa faliu, mas épreciso igualmente pôr de manifesto queessa forma de governo, sendo a mais notá-vel das experiências políticas da civilizaçãoocidental e o seu mais rotundo fracasso, nãoencerra toda a experiência da humanidade.

A democracia representativa é um ramodo gênero democracia, mas não esgota a es-pécie, nem é sua melhor experiência. Suabiografia remonta à história ateniense, ààgora e a uma modalidade de democraciadireta que nela se praticava. Não se diz quea democracia direta possa ser reproduzida,mecanicistamente, até porque não se trata-va, aquela experiência grega, de uma demo-cracia universal, como deverá ser a demo-cracia participativa qual pleiteamos, e de-pendia, para sua efetividade, de uma estrutu-ra social ignominiosa, pois fundada era naescravidão. Diz-se que ela é um ponto de par-tida. Diz-se que a democracia direta é a fontehistórica da democracia participativa do ter-ceiro milênio, que compreende, em sua fasetransitiva, formas de democracia semidireta.

A democracia28 grega, como a romana,era uma democracia de proprietários de ter-

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ras. Na pólis da Antiguidade, uma condi-ção para o exercício pleno da cidadania eraa propriedade de um lote agrícola (kleros,‘fundos’) e de escravos. Em Atenas, para 90mil cidadãos, isto é, proprietários, havia 365mil escravos, nesse número incluídas mu-lheres e crianças, e 45 mil imigrantes (mete-cos) e libertos. Para cada cidadão adultohavia, no mínimo, 18 escravos e mais trêsmetecos. Em Corinto (460 mil escravos) e emEgina (470 mil escravos), apenas 10% dapopulação usufruíam a cidadania. (Havia,assim, uma ‘divisão social do trabalho’: otrabalho, não só o trabalho social mas o tra-balho qualquer, era ônus do escravo; o la-zer, leia-se a filosofia, a poesia, o teatro, amagistratura, e, principalmente, a política eas funções de Estado, eram o ‘ofício’ do ci-dadão, isto é, do proprietário). O exercícioda democracia se fazia, portanto, somenteentre uma parcela da população, os cida-dãos, iguais entre si, posto que todos, massó eles, estavam habilitados a participar dosorteio para o desempenho de qualquermagistratura.

As decisões podiam ser tomadas na ágo-ra (Αγoρα: reunião, assembléia, comunida-de reunida; praça pública; mercado) porqueos cidadãos eram poucos, e, em certo senti-do, a democracia direta da pólis compreen-dia um forma de representação, pois essaminoria de eleitos legislava, governava edecidia, decidindo inclusive sobre a paz e aguerra, em nome de todos os habitantes, dossorteados e dos não sorteados, das mulheres,das crianças, dos metecos e dos escravos.

9.2. A democracia participativa

A democracia não é uma só idéia, ummero conceito, um juízo de valor: é ação per-manente, a saber, efetividade. Pressupõe aigualdade (efetiva) de todos perante a lei(isonomia), sem distinções quaisquer, de raça,credo, gênero, mas também sem distinçãode classe ou riqueza; se todos são iguaisperante a lei, todos são igualmente sujeitosà lei, todos são igualmente cidadãos, nãohá cidadãos mais titulares de direitos do que

outros, não há cidadãos irresponsáveis ouininputáveis, não há privilégios, não há ju-ízos nem foros privilegiados, como não hácidadãos permanentemente “acima de qual-quer suspeita” ou previamente suspeitos econdenados até prova em contrário… To-dos são (efetivamente) iguais perante o Es-tado e têm os mesmos direitos de integrá-lo(isotomia), ou seja, os cargos públicos nãosão preenchidos por sucessão, ou por influ-ência do poder econômico, mas tão-só comomandato da soberania. Na democracia, to-dos têm (efetivamente) o direito não só depensar livremente como de livremente ex-pressar-se (isagoria), ou seja, o direito de fa-lar e condições objetivas – meios, instrumen-tos, recursos – de serem ouvidos; intrínsecoé o direito de reunião, mas reunir-se paradeliberar.

A ‘democracia’ representativa modernae contemporânea é uma contrafação de to-dos esses princípios, vertida que foi ao go-verno das minorias privilegiadas – as queestão acima das leis – dirigentes do podereconômico e controladoras da vontade ge-ral por artifícios os mais diversos, a come-çar pelo controle dos modernos meios decomunicação de massas. Tal qual praticadano Brasil, a ‘democracia’ representativa, fun-dada no poder econômico e na informaçãomanipulada, na usurpação do voto e na vi-olentação da consciência, é mera e pérfidacaricatura da soberania do povo e da na-ção. Da igualdade é pura ficção, da verdadeuma impostura, da razão uma fantasmago-ria. Ainda quando legal, é ilegítima. Ilegíti-ma porque não é do povo nem das forçasmajoritárias que decorre a vontade represen-tativa. É do poder econômico cartelizado, édo monopólio da informação.

Desapartada da soberania popular, ademocracia foi colher sua representativida-de na vontade e nos interesses de agentesde um poder escandaloso que não encon-tra abrigo na constituição, como observaPaulo Bonavides, certamente o mais im-portante defensor da democracia partici-pativa entre nós:

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“É o poder dos chamados meiosde comunicação de massa liberados aum oligopólio fático de pessoas cujotítulo de legitimidade não passa pelaoutorga nem pela sanção do elementopopular, nominalmente sede de todosos poderes da soberania. Manipulan-do e fabricando opinião, os grandesempresários dos meios de comunica-ção acabam por se transverter numcírculo privilegiado que dispõe comdesenvoltura da vontade social paraamparar situações em oposição aoslegítimos interesses da Sociedade e doPaís. Esse quarto poder fora do Esta-do e da Constituição não raro colocaambos sob seu centro, fazendo da so-berania do povo a irrisão e o escárnioda democracia”(BONAVIDES, 1993).

Os corifeus da ‘democracia’ representa-tiva não cogitaram, e não cogitam ainda osneo-liberais, da incompatibilidade do mo-delo clássico da democracia representativaindireta com aquela que viria a ser a demo-cracia de massas, contemporânea, assina-lada pela interveniência de dois fatores, ir-mãos germanos, responsáveis pela manipu-lação dos pleitos: o poder econômico e a for-ça dos meios de comunicação de massas.

Não cogitaram, igualmente, da capaci-dade de intervenção do poder público e doEstado, da máquina federal, das máquinasestaduais e municipais no processo eleito-ral. Não apenas em sua feição clássica, tra-dicional, associando fisiologismo, corrup-ção, empreguismo e nepotismo, política par-tidária de liberação de recursos etc., mas nasua capacidade de ditar estratégias, no quepoderia cingir-se ao campo estrito de suacompetência de governo.

A democracia não é apenas um sistemade governo, uma modalidade de Estado, umregime político, uma forma de vida. É umdireito da humanidade (dos povos e dos ci-dadãos). Democracia e participação se exi-gem, democracia-participativa constituiuma tautologia virtuosa. Porque não há de-mocracia sem participação, sem povo, mas

povo sujeito ativo e passivo do processopolítico, no pleno exercício da cidadania,povo nas ruas, povo na militância partidá-ria, povo nos sindicatos, povo na militânciacivil, povo na militância social. Povo-nação,participando da construção da vontade go-vernativa. O regime será tanto mais demo-crático quanto tenha desobstruído canais,obstáculos, óbices à livre e direta manifesta-ção da vontade do cidadão. Se a mediação,qualquer mediação, implica distorção davontade, impondo ruído na comunicaçãocidadania-Estado/representado-represen-tante, esse fenômeno se revela como meca-nismo de manipulação nas modernas soci-edades de massa que exigem a intermedia-ção dos meios de comunicação de massa.

A questão central da democracia partici-pativa, direito da quarta geração, é tanto mi-nimizar a intermediação – inerente à demo-cracia indireta –, quanto, e paralela e progres-sivamente, substituir a ‘representação’ assimcomo a conhecemos (que implica alienação)pela manifestação direta da soberania. É umprocesso de construção gradual que não com-preende o banimento de todas as formas derepresentação (v.g. Poder Legislativo), mas suacompatibilidade com aqueles instrumentosde participação popular que implicam inter-venção do governado na governança e seucontrole sobre os governantes.

A democracia do terceiro milênio, sobreser participativa, será universal, pois delatodos participarão; ignorando distinçõeseconômicas ou sociais, ou raciais, ou de gê-nero, ou de origem ou de naturalidade; aigualdade política abolirá a delegação, e to-dos poderão participar ativa e diretamente,pois todos terão assento na nova ágora.

Até lá, a possibilidade de consulta ime-diata e constante e permanente complemen-tará a representação e a delegação, reduziráo papel das mediações, minimizará as dis-torções, seja a interveniência do poder eco-nômico, seja a manipulação dos meios decomunicação de massa, os quais, sob con-trole social, passarão a desempenhar papeldiverso na nova sociedade29.

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Não se trata de defender a democracianenhuma em face do fracasso da democra-cia representativa, repete-se. Trata-se de, semprejuízo da sobrevivência dos mecanismosdemocráticos da representação, ampliar seuraio mediante a democracia participativa oucapilar, articulando a democracia represen-tativa com a democracia direta, cujos insti-tutos cohabitarão por muito tempo.

A democracia participativa compreende,senão o consenso, a ampla consulta popu-lar e, dela conseqüente, o compromisso detodos os atores sociais afetados, a integra-ção de todos os povos, a busca de novas ex-pressões do coletivo, a descentralização dasiniciativas e da gestão, a desconcentraçãoadministrativa e funcional, a desconcentra-ção do poder, a quebra do monopólio dapolítica pelas classes dominantes. Ela com-preende a emergência, no cenário da políti-ca, com poder decisório, das instituiçõespopulares e sociais das mais diversas índo-les, cuja organização enseja e estimula, des-de agrupamentos espontâneos e conjuntu-rais aglutinados para resolver um proble-ma concreto, até amplos movimentos, v.g.,pelos direitos da mulher, a defesa do consu-midor, do meio-ambiente, a defesa das mi-norias contra todas as formas de discrimi-nação, a proteção dos direitos humanos e adenúncia de sua violação, a defesa de inte-resses nacionais concretos, a iniciativa le-gislativa e constitucional bem como a utili-zação, desmitificada, popularizada, à mar-gem do controle estatal, de novos meios ele-trônicos, como as rádios comunitárias, asredes de computadores e todos os meios einstrumentos tecnológicos disponíveis. En-fim: participação dos governados na vonta-de governativa.

Mas a democracia participativa não éuma democracia direta remontando à ágo-ra, mesmo a uma ágora teleletrônica; trata-sede democracia semidireta marchando nosentido da democracia direta. Mas demo-cracia semidireta na qual a porção repre-sentativa será mínima, ao passo que a pre-sença dos mecanismos da democracia dire-

ta será máxima. Assim, poderá compreen-der formas de exercício do poder legislativopor meio de Casas submetidas ao controledos mecanismos da consulta popular, Ca-sas cujos componentes estarão submetidosà imperatividade do mandato, que tambémserá revogável; processo legislativo que com-preenderá a iniciativa popular, o plebiscito,o referendo, o veto e a revogação, vale dizer,processo legislativo que terá sempre, nopovo, a instância suprema que ditará a apro-vação ou derrogação das decisões adotadas.As questões relevantes, como toda matériaconstitucional, só serão legisladas e só te-rão eficácia quando submetidas a iniciativapopular, plebiscito e referendo.

10. A Constituição de 1988: umapromessa frustrada

A Constituição de 1988 foi festejada portodos os epígonos da democracia participa-tiva por enxergarem, no parágrafo único doart. 1º e na redação inovadora do art. 14,uma nova concepção de exercício da sobe-rania popular, reiterado pelo inciso XV doart. 19. De fato, aqueles dispositivos, queassociavam ao sufrágio universal e ao votodireto e secreto, com valor igual para todos,o plebiscito, o referendo e a iniciativa popu-lar, sugeriam a possibilidade de uma demo-cracia semidireta.

Reza o Parágrafo Único do art. 1º: “Todoo poder emana do povo, que o exerce pormeio de representantes eleitos ou diretamen-te, nos termos desta Constituição”.

Dispõe o caput do art. 14: “A soberaniapopular será exercida pelo sufrágio univer-sal e pelo voto direto e secreto, com valorigual para todos, e, nos termos da lei, medi-ante: I – plebiscito; II – referendo; III – inicia-tiva popular.”

Mas, atrás da regra constitucional, nãohavia, animando-a e dando-lhe vida, a von-tade política da nação. Não se tratava deavanço constitucional conquistado no de-bate ou na peleja, mas de consecução doconstituinte progressista, que talvez mais se

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deva a descuido dos conservadores, justa-mente preocupados com as questões objeti-vas da ordem econômica e social. A inexis-tência de contemporaneidade com o proces-so político, que, atrasado, não a requeria enão a respaldava, esvaziou o significado daconquista, frustrou seus objetivos e a normapositiva se transformou em mera aspiração,sem uma vontade política para efetivá-la.

Democracia participativa não quer dizerque todas as formas de representação sejamnecessariamente abolidas. Ao contrário,importa a convivência, com os institutos dademocracia representativa sobreviventes, demecanismos da democracia direta, como oreferendo, o plebiscito e a iniciativa legislati-va popular (também prevista em nosso orde-namento constitucional), o direito de revoga-ção (o recall e o Abberufungsrecht) e o veto.Compreende formas de exercício de man-dato popular, mas sob controle absoluto dasociedade, o que compreende, ab initio, acompleta imperatividade social-eleitoral.

O direito de revogação permite ao povo– ao eleitorado - pôr fim (antes do prazo no-minal/legal) ao mandato de autoridades,funcionário ou parlamentar.

O recall, espécie do gênero revogação, é acapacidade de o eleitor, isto é, de uma par-cela do eleitorado, destituir o funcionárioou o representante no curso do mandato.Os deputados como os magistrados estãoobrigados a prestar contas periódicas de seutrabalho, podendo ter o mandato revogado.O recall também é conhecido como revoga-ção individual, para distingui-lo do abberun-fungsrecht, forma de revogação coletiva: ocorpo eleitoral, determinada parcela de seusintegrantes, pode requerer a dissolução desua respectiva assembléia.

O veto é a faculdade de que é titular oeleitorado de manifestar-se coletivamentecontra determinada medida governamentalou lei, já devidamente aprovada, ou em viasde ser posta em execução (DUVERGER,1956, p. 22).

Essas três formas notáveis de exercíciodemocrático, o plebiscito, o referendo e a

iniciativa popular – de todos os institutosda democracia semidireta o que mais aten-de à exigência popular de participação po-sitiva nos atos legislativos (BONAVIDES,1972, p. 349) –, permanecem, no corpo posi-tivo constitucional brasileiro, como merasexpectativas de direito, passados 13 anosde vigência da ordem constitucional, pois,regulamentados pelo legislador ordinário(lei nº 9.709/98), aguardam da Câmara e doSenado a adaptação de seus respectivos re-gimentos. Impõe-se não apenas tirar do pa-pel essas conquistas, por enquanto merasconquistas doutrinárias, e fortalecê-las comoutras, como o recall, o veto e o mandato im-perativo, que vincula o representante – par-lamentar ou executivo – à vontade do repre-sentado – expresso no apoio a um progra-ma de partido, ou a um programa de gover-no ou a ambos –, sob pena de revogação. Omandato imperativo implica a eleição deparlamentares pelo sistema de listas e o votode legenda, donde o fortalecimento dos par-tidos e do coletivo, contra a autonomia dorepresentante (mandato fiduciário), desper-sonalizando a relação eleitor/eleito. Repi-tamos até à exaustão: não se pode falar emdemocracia sem a obrigação legal de cadacandidato, partido ou coligação, majoritá-ria ou proporcional, respeitar, no exercíciodo mandato, o programa e os compromis-sos assumidos, na campanha, com o eleito-rado, sob pena de quebra do mandato. Omandato é concedido pelo eleitor em face decompromissos concretos e o desrespeito aesses compromissos vale como violação docontrato. Dito de outra forma, o eleito nãopode votar na sua Casa legislativa ou apli-car no cargo executivo medidas que contra-riem os compromissos que assumiu com oeleitorado, compromissos nos quais o elei-tor se baseou para dar o seu voto.

Se a promessa constitucional de umademocracia semidireta se frustou, entre nós,há, porém, avanços que precisam ser apro-fundados, e cuja origem remonta a muitoantes da Carta democrática de 198830, comoas diversas experiências de Orçamento par-

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ticipativo, Planejamento cidadão e outrasiniciativas que ensejam a participação dire-ta da cidadania, como os comitês ou conse-lhos de bairro, conselho escolar e conselhode segurança, todos eleitos diretamente pelapopulação, eleições para diretores de esco-la, eleição para as administrações regionaise distritais, criação de conselhos municipaiscom a participação majoritária da popula-ção na administração de questões cruciaiscomo o Plano Diretor, a política de saúdeetc., ensejando a descentralização, quebran-do com a ditadura da concentração do po-der, substituindo o poder concentrado pelopoder de baixo para cima, deslocando docentro hegemônico para a periferia a dis-cussão dos problemas coletivos.

Temos afirmado que o diploma federalde 1988 deu vazão a muitas formas de de-mocracia direta ou participativa que o le-gislador ordinário não se interessou em re-gulamentar e muito menos o Executivo empôr em prática, nada obstante o princípioda participação direta do cidadão perme-ar a Carta constitucional, como a sugeriruma tomada de posição do legislador cons-tituinte. Mas iniciativas estaduais, funda-das na autorização constitucional, abriramcaminho para novas experiências partici-pativas. Exemplo é a Emenda Constituci-onal nº 7 aprovada pela Assembléia Le-gislativa do Rio Grande do Sul, que agre-gou (art. 19) a participação como um prin-cípio da administração estadual, coman-do explícito da Constituição do Estado atodos os poderes.

Medidas alternativas de governos demo-cráticos e de esquerda cujo sucesso põe a nua fragilidade da representação. Mas, se osEstados e Municípios pelo menos admitemos limites da representação, para superá-los,a União deles se vale para aprofundar suasrelações imperativas com a sociedade.

Sem a descentralização política, sem ofortalecimento do poder local, sem a organi-zação autônoma das comunidades, contrao que conspira a representação, não há comofalar em democracia.

A vida política, a democratização dapolítica, depende de partidos organizados,depende do sufrágio universal e dependeda liberdade de escolha, isto é, é preciso quecada cidadão seja livre (objetiva e subjetiva-mente) para escolher, o que exige pluralida-de política e pluralidade ideológica. Só háescolha quando o cidadão está em face dealternativas distintas, assegurado à mino-ria o direito de poder tornar-se maioria, semrompimento do código democrático. Masdepende, acima de tudo, da efetiva capaci-dade de o indivíduo – o cidadão livre – in-terferir em tudo aquilo que, no Estado e nasociedade, diga respeito à sua vida, aos seusinteresses sociais, econômicos e políticos.Depende da capacidade de a coletividadede indivíduos controlar o poder político.Finalmente: depende da materialização dasoberania popular. Não se trata, mais, de au-mentar ou estender o sufrágio, mas de pro-mover a ocupação de espaços e de alargar oexercício deliberativo dos indivíduos, ampli-ando os direitos políticos da cidadania.

É evidente que a questão não se encerranuma pura e simples reforma política, ouna aplicação, democrática, de avanços tec-nológicos. A democratização da política,tanto quanto a democratização dos meiosde comunicação de massa (e a democratiza-ção da informática, da teleinformática etc.)serão consequências da democratização dasociedade brasileira, com o rompimento dasbases atuais do poder político e do podereconômico. Não se trata de uma reformaconstitucional à espera da vontade políticadominante para efetivar-se. É uma reformaque depende da inversão do mando. De pro-fundas transformações sociais, do rompi-mento do statu quo que as classes dominan-tes brasileiras mantêm intacto, para a pre-servação secular de seus interesses.

Só merece o título de democrática aquelasociedade na qual todos os cidadãos exer-çam o direito objetivo de influir nas deci-sões políticas.

A democracia participativa é a subver-são do terceiro milênio.

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11. A promessa venezuelana daConstituição de 1999

A democracia participativa é a única for-ma de realização – dentro dos quadros daatual institucionalidade – de mudanças ra-dicais em nossas sociedades, as únicas ap-tas a alterar o rumo da política, substituin-do as velhas estruturas, desde sempre a ser-viço da exclusão, por instrumentos moder-nos de participação.

Entre as experiências em curso em nos-so Continente, a Venezuela parece demons-trar, na prática, que a profunda democrati-zação da sociedade e do sistema econômicoé a mais eficiente forma de promover mu-danças sociais e públicas. E que a profundademocratização da sociedade pode ser omelhor antídoto às pressões forâneas, àspressões do grande capital, das grandespotências que não admitem projeto própriopara os países periféricos.

Merecedor de todo registro é o esforço dopovo venezuelano – após o colapso de umregime democrático-representativo que im-pôs por mais de 40 anos a corrupção e aconcentração de renda, donde o empobreci-mento das populações de um dos mais ri-cos países de nosso Continente –, constru-indo, com o voto reiterado, um processo deruptura com as velhas estruturas e promo-vendo, na ordem constitucional, profundasmudanças que ensejam um nova democra-cia, semidireta, abrindo caminho seguropara uma democracia participativa. Um dosprodutos desse processo de mudança, semcorrespondente na América Latina, e todoele pautado em estrita legalidade, é a Cons-tituição bolivariana de 1999, elaborada poruma Constituinte autônoma e exclusiva,convocada por plebiscito, e confirmada pelopovo por intermédio de referendo. O que,por exemplo, não foi permitido ao povo bra-sileiro na última redemocratização.

A nova sociedade venezuelana tem comoforma de participação popular a reiteraçãodo voto: em pouco mais de um ano, os cida-dãos foram chamados às urnas 1) para ele-

ger seu presidente, que obteve 57% dos vo-tos válidos; 2) para, em Plebiscito, convocaruma Constituinte (por intermédio de 88%dos votos); 3) para, em referendo, confirmar(90% dos votos) a Constituição elaboradapela Assembléia constituinte exclusiva; e,finalmente, 4) para eleger todos os corposde direção nacional, desde os municípios àpresidência da República.

A nova ordem constitucional tem comoobjetivo: a democracia semidireta que tran-sita para a democracia participativa.

A Constituição venezuelana, denomina-da bolivariana, para remontar ao ideal daunificação continental, abriga o direito àobjeção de consciência, uma defensoria dopovo (uma espécie de poder moderador), aigualdade e a paridade entre mulheres ehomens, o reconhecimento dos direitos dosindígenas e a criação de um poder denomi-nado ‘moral’ consagrado a combater a cor-rupção e o abuso31.

Atribui maior poder e autonomia às co-munidades, consagra o plebiscito, o referen-do e a iniciativa (legislativa e constitucio-nal) popular; submete todos os eleitos (in-clusive o Presidente da República) a novaeleição, no curso do mandato, segundo avontade do eleitorado32.

O ponto de partida positivado em ter-mos constitucionais consta do seu art. 5,verbis:

“A soberania reside intransferivel-mente no povo, que a exerce diretamen-te na forma prevista nesta Constitui-ção e na lei, e, indiretamente, median-te o sufrágio, pelos órgãos que exer-cem o Poder Público. Os órgãos doEstado emanam da soberania popu-lar e a ela estão submetidos”.

A inversão (preeminência do exercíciodireto sobre o indireto) caracteriza exemplar-mente o salto da democracia representativapara a democracia participativa. Nesta, opoder tem sede no povo e por ele é exercido,preferentemente; a participação dos repre-sentantes eleitos é subsidiária, complemen-tar33.

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Trata-se não apenas de um Estado de-mocrático, é a afirmação do novo ordena-mento, mas de um Estado democrático e so-cial, de direito e de justiça, que, para isso,propugna como valores superiores de suaordem jurídica e de sua atuação a vida, aliberdade, a justiça, a igualdade, a solidari-edade, a democracia, a responsabilidadesocial, a preeminência dos direitos huma-nos, a ética e o pluralismo político (art. 2º).

Essa nova ordem se materializa na con-cepção de um governo democrático e parti-cipativo, fundado no processo eletivo, nadescentralização, na responsabilidade, nopluralismo político (de que deriva o plura-lismo partidário) e na revogabilidade dosmandatos (art. 6º), e na representação pro-porcional (art. 63).

É direito dos cidadãos participar livre-mente dos assuntos políticos, diretamenteou por intermédio de seus representanteseleitos (art. 62). Entre esses direitos está o devotar.

Desdobramento e efetivação do princí-pio da revocabilidade dos mandatos, o art.66 introduz a obrigatoriedade da prestaçãode contas do representante ao representa-do, essencial para o recall, e ainda inovaquando estabelece como regra, para a legiti-midade do mandato, a correspondência en-tre seu exercício e as promessas de campa-nha, evitando a fraude e a bulha contra avontade eleitoral:

“Os eleitores e as eleitoras têm di-reito a que seus representantes pres-tem contas públicas, transparentes eperiódicas sobre sua gestão, de acor-do com o programa apresentado”.

11.1. Uma experiência dedemocracia participativa

O projeto de democracia participativavenezuelana está consagrado mediante osseguintes princípios e instrumentos (art. 70):

I - instrumentos políticos:a. a eleição para o exercício de cargos

públicos;b. o referendo;

c. a consulta popular;d. a assembléia aberta; ee. a assembléia dos cidadãos, cujas deci-

sões têm caráter vinculante.II – instrumentos sociais e econômicos:a. a autogestão;b. a co-gestão;c. as cooperativas, em todas as suas for-

mas, inclusive as de caráter financeiro;d. as caixas de poupança;e. a empresa comunitária.O referendo poderá ser consultivo, con-

firmatório ou revogatório.As matérias de especial interesse nacio-

nal poderão ser submetidas a referendo con-sultivo, seja por iniciativa do Presidente daRepública, seja por decisão da AssembléiaNacional, seja por requerimento de pelomenos dez por cento dos eleitores. A regrase aplica, igualmente, às instâncias estadu-ais, municipais e distritais (art. 71).

Toda e qualquer emenda constitucional,para que tenha vigência, será submetida areferendo confirmatório, trinta dias após suapromulgação. A regra também se aplica àshipóteses de Reforma constitucional (art.341).

São ainda submetidos a referendo:a. aqueles projetos de lei em discussão

na Assembléia Nacional, por decisão depelo menos dois terços de seus membros;

b. os tratados, convênios ou acordos in-ternacionais que possam comprometer asoberania nacional ou transferir competên-cias a órgãos supranacionais, por decisãode dois terços do membros da AssembléiaNacional ou a requerimento de 15% dos elei-tores (art.73).

E, lição que poderíamos de logo incor-porar ao nosso processo constitucional, es-tancando as Medidas Provisórias, são sub-metidos a referendo os decretos com forçade lei ditados pela Presidência da Repúbli-ca (art.74).

Serão submetidas a referendo para revo-gação total ou parcial as leis cuja revogaçãotenha sido solicitada por iniciativa de pelomenos dez por cento dos eleitores (art. 74).

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A iniciativa legislativa (art. 204) pode serexercida a requerimento de zero vírgula umpor cento dos eleitores.

A iniciativa de emenda constitucionalpode ser exercida por quinze por cento doseleitores. A emenda de iniciativa da Assem-bléia ou do Presidente da República depen-derá de referendo (art. 341). O projeto de re-forma constitucional aprovado pela Assem-bléia será submetido a referendo no prazode trinta dias após sua sanção (art. 344).

Todos os cargos e magistraturas ocupa-dos mediante eleição popular são revogá-veis. Esta a regra do art. 72: transcorrida ametade do período para o qual foi eleito ofuncionário, um número não menor de vin-te por cento dos eleitores inscritos na mes-ma circunscrição poderá solicitar a convo-cação de um referendo para revogar seumandato.

O mesmo se aplica aos membros da As-sembléia Nacional.

Os deputados devem manter seus eleito-res informados de sua atuação, e, anualmen-te, prestar contas de seu mandato aos eleito-res da circunscrição pela qual foram eleitose estão sujeitos ao referendo revogatório domandato (art. 197).

A democracia participativa venezuela-na, embora positivada, significando umgrande progresso para a vida política doContinente, é ainda um só projeto, um notá-vel projeto de um constitucionalismo mo-derno, mas carente de apoio para objetivar-se. Não lhe basta a vontade política dos di-rigentes, essencial mas não suficiente, poisreformas dessa ordem não se solidificamsenão quando resultam de exigência domovimento social, como está a demonstrara frustração do tímido ensaio da Constitui-ção brasileira de 1988.

A Carta bolivariana, que também retomaas tão caras teses da unificação continen-tal34, imperativo em face da globalização, éexperimento cujo sucesso interessa a todosos democratas. Com seu destino, portanto,também estamos comprometidos, pois, con-sabidamente, são poderosos os interesses

que em nossa região resistem a toda sorte demudança e participação. Não se trata, pois,de obra do acaso o concerto de forças pode-rosas que, naquele país e no Continente, játerçam as armas da maquinação visando apromover o naufrágio de um esforço políti-co que nada mais significa senão a repre-sentação constitucional da emergência po-lítica das forças populares por tantos anose décadas submetidas à dominação de umaelite forânea, descomprometida com os in-teresses daquele povo e daquela nação.

Mas os compromissos das forças conser-vadoras, em nosso Continente, com a demo-cracia, jamais foram estratégicos. Democra-tas são enquanto o sistema serve à conser-vação do statu quo, e não vacilam em golpe-ar a ordem constitucional ao menor sinal demudança na ordem do poder ou de emer-gência das forças populares. Na Venezuela,o concerto dos grandes empresários – decujos interesses os meios de comunicaçãosão porta-vozes – ameaça esse experimentoque seu povo tem todo o direito de testar.

Notas1 Cf. por exemplo Crítica ao programa de Gotha.2 Em grego to (i) koienhi (ii) synpheron: (i) =

comum; (ii) ao pé da letra, ‘syn-‘é um prefixo quesignifica ‘com’ ou ‘junto a’, ‘pheron’ vem do verbo‘levar com’, ‘contribuir para’. Este é o sentido queemprega Aristóteles: ‘aquilo que contribui para to-dos’, ‘que ajuda a todos’. O autor agradece a cola-boração de Susana de Castro.

3 Contrat Social. Liv. II ch. VI.4 Adiante examinaremos a Constituição e a ve-

nezuelana de 1999.5 Cf. Idée générale de la révolution aux xix siècle.6 Escreve: “ É um axioma de ciência política

verdadeiro em todos os regimes – no regime demo-crático como nos demais – que a sociedade deve serdirigida pelos mais avisados (sages), pelos maisinteligentes, pelos mais capazes, pelos melhores,em uma palavra pela elite” (AMADO, 1999, p.110).

7 Depois de afirmar que “(…) eleições formal-mente perfeitas levaram às câmaras, aos postos decomando um grupo de homens que deviam repre-sentar o país permanentemente considerado, o paísno seu conjunto material e espiritual, e não repre-

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sentam senão certa soma de interesses confedera-dos no momento, interesses que podem ser apenasexpressão de influências transitórias, alheias senãohostis aos interesses do país”, cita D. Saville Mu-zzey: É sabido que “nos Estados Unidos em nossaépoca, de 1896 em diante, os grandes monopóliosregulam os interesses econômicos da nação, pro-dução, salários, preço dos gêneros de primeira ne-cessidade, assim como os interesses políticos; elei-ção do poder legislativo e do poder judiciário” (p.15-16).

8 Estudamos a questão, com mais rigor em: Acontradição público versus privado e a construçãoda realidade pelos meios de comunicação de mas-sa. Comunicação & Política. vol. 2, n. 1, 2, p. 53-62,mar./jun. 1984. Retornaremos nos dois ensaios se-guintes.

9 Escrevendo sobre ‘O espetáculo da políticaamericana – Campanha presidencial não seria amesma sem a TV e Hollywood’, Priscilla Leal (JB,p. 23, 27 ago. 2000.) traz o depoimento do merca-dólogo Bruce Newman (assessor de Clinton nasduas últimas eleições e de Vicente Fox), para quem“As pessoas acompanham os acontecimentos naCasa Branca como se assistissem a uma novela.Uma estrela é Bill Clinton, a outra é Hillary”, econclui: “99,99% dos americanos só conhecem opresidente pela televisão, acompanham a política eos escândalos, como o de Monica Lewinsky, comoum drama. Para muitos americanos a Casa Brancaé apenas mais uma estação de TV”.

10 Com humor, o cronista Artur Xexéo (Jornal doBrasil, 11 set. 1998) resume o desânimo do cidadãodiante do processo eleitoral mediatizado: “O durode ter mais de 40 anos – ou quase 50 para ser maisexato – é que a gente se lembra de eleições em queum comício era capaz de virar um resultado, umdebate tinha força para o eleitor escolher seu candi-dato, uma passeata mobilizava multidões. Quedroga de eleição é esta em que a gente só acompa-nha o insosso horário eleitoral obrigatório e as mai-ores emoções são reservadas para o último resulta-do de pesquisa!”.

11 A propósito da videopolítica e da videode-mocracia, consultar SARTORI, Giovanni. Engenha-ria constitucional. Brasília: UnB, 1996, p. 162. Vertambém: RAMONET, Ignacio. La tyrannie de la com-munication. Paris: Galilée, 1999.

12 O que estamos afirmando se aplica a qual-quer sociedade de massa. Reportando-se às últi-mas eleições norte-americanas, o sr. Douglas Hat-taway, porta-voz democrata, dizia em outubro de2000: “A campanha vai ser decidida por um tipoparticular de eleitor. É aquela pessoa que quando lêa palavra política, no jornal, vira a página. Quandovê chamada para um debate, muda de canal. Éuma pessoa que não tem informação e nem faz

muita questão de ser muito informada. O instru-mento mais fácil para conversar com esse tipo deeleitor são os anúncios de TV. Relativamente bemcomportados, até agora, pode-se apostar que fica-rão agressivos nos próximos dias – pelo impacto,pelo sensacionalismo e pela violência se pretendealcançar aquele eleitor desinteressado antes que eledescubra o que está assistindo e mude de canal”(Gazeta Mercantil, p a-16, 19 out. 2000).

13 Exemplarmente lembramos as acusações detráfico de influência da Loja Maçônica P-2, de LicioGelli, a falência fraudulenta do Banco Ambosino,ligado ao Vaticano e à DC, as acusações que leva-ram os ex-primeiros ministros Giulio Andreotti eBettino Craxi ao banco dos réus, as ligações doprimeiro Ministro Silvio Berlusconi com o escânda-lo do grupo financeiro Finivest.

14 HALIMI, Serge (L’argent ou coeur des débats),comentando as primárias presidenciais norte-ame-ricanas de 2000, destaca o papel do poder econô-mico na política americana e informa que só a cam-panha do republicano George Bush recolheu 70 mi-lhões de dólares. (Le Monde Diplomatique, 4 fev.2000). Segundo Paulo Moreira Leite (Gazeta Mer-cantil, 19.10.2000, p.16), o comitê democrata encer-rou sua arrecadação com perto de US$ 100 mi-lhões, “US$ 20 milhões a menos do que GeorgeBush”. Sobre o papel do dinheiro no processo elei-toral americano, ver: HAMILI, Serge. Quand ceuxqui signent les chèques font les lois. Mai. 1997.PERTSCHUK, Mark. Des responsables politiquessi influençables. FERGUSON, Thomas. Le trésor deguerre du président Clinton. Aoüt, 1996. Disponí-vel em: http://www.monde-diplomatique.fr

15 O complicado e obsoleto sistema eleitoral in-direto para a escolha do Presidente, nos EstadosUnidos, prevê uma primeira rodada de voto popu-lar, Estado por Estado, e um segundo turno, numcolégio indireto composto pelos delegados de cadaEstado. Ocorre que o número de delegados varia,Estado por Estado, para beneficiar os pequenosEstados (trata-se de uma maioria estadual ponde-rada pelo número de habitantes, admitindo arre-dondamentos ora para mais, ora para menos), e osistema atribui ao ganhador, em cada um dos 50Estados, o total dos votos daquele Estado, semconsiderar, portanto, a proporcionalidade de can-didatos em face dos votos obtidos. Nesse sistemamajoritário, os votos do candidato derrotado sãotransferidos para o candidato vencedor no distrito,pelo que, votando num candidato democrata, ouverde, ou liberal, o eleitor norte-americano podeestar assegurando a vitória de um candidato repu-blicano. Foi o que ocorreu em 2000.

16 Idem. Idem.17 Este tema pode ser aprofundado em Vitor

Palozzi (1996).

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18 Repetindo os episódios das eleições de 1824,1876 e 1888.

19 No sistema brasileiro, cada Estado pode serconsiderado como um distrito. A questão radicana extrema desproporção eleitoral entre os Esta-dos. Assim, temos ‘distritos’ como São Paulo, Mi-nas e Rio de Janeiro, cujo eleitorado é, respectiva-mente, 24 milhões, 12 milhões e 10 milhões, ao ladode distritos como Rondônia (900 mil eleitores), Acre(320 mil eleitores), Amapá (215 mil eleitores) e Ro-raima (170 mil eleitores). Fonte: TSE.

20 Em nosso sistema, o eleitor pode votar a) emum dos candidatos constantes das nominatas decada partido, ou b) na legenda, sufragando o nomede um partido.

21 Idem. Oração da medalha Teixeira de Freitas.Rio de Janeiro: Instituto dos Advogados Brasileiro,1999. p. 33.

22 Dados fornecidos pela Casa Civil da Presi-dência da República e publicados pela FSP,22.03.2000, que esclarece: “Esse cálculo inclui osprojetos de lei sancionados e as medidas provisóri-as convertidas em lei durante todo o ano. Não es-tão incluídas as quatro propostas de emendas àConstituição promulgadas – duas delas tambémde autoria do Executivo –, e as outras duas, doCongresso”.

23 Dados fornecidos pela Mesa da Câmara dosDeputados.

24 O autor agradece a colaboração de AlexandreNavarro, assessor técnico da Câmara dos Deputa-dos.

25 Estudamos o processo eleitoral brasileiro emRoberto Amaral e Sérgio Sérvulo (2000).

26 Reportando-se à ‘democracia-representativa’norte-americana, Gore Vidal observa: “(…) Nós nãopossuímos uma democracia representativa. Quemfoi eleito para o Congresso não representa a Cali-fórnia ou a Virgínia Ocidental, senão a General Mo-tors ou a Boeing. Todo mundo sabe disso, e as pes-soas se assustam com essa situação”. Entrevistaao Suddeutsche Zeitung. 2-3 jun.1999.

27 Na legislatura 1994-1998, nada menos de 64%dos deputados federais brasileiros trocaram de le-genda pelo menos uma vez; alguns, 5,5%, chega-ram a trocar três, quatro e seis vezes (NICOLAU,1999, p. 65).

28 Democracia. A palavra, grega, é atestada pri-meiro em Herodoto (século V a.C.) como ‘governo(do povo) pelo povo’. A lição foi colhida pelo histo-riador dos lábios de Péricles, na oração póstumaaos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso:“Nosso regime político é a democracia e assim sechama porque busca a utilidade do maior númeroe não a vantagem de alguns. Todos somos iguaisperante a lei, e quando a república outorga honrari-as o faz para recompensar virtudes e não para con-

sagrar privilégios. Nossa cidade se acha aberta atodos os homens. Nenhuma lei proíbe nela a entra-da aos estrangeiros, nem os priva de nossas insti-tuições, nem de nossos espetáculos; nada há emAtenas oculto e permite-se a todos que vejam eaprendam nela o que bem quiserem sem esconder-lhes sequer aquelas coisas, cujo conhecimento pos-sa ser de proveito para os nossos inimigos, por-quanto confiamos, para vencer, não em preparati-vos misteriosos, nem em ardis e estratagemas, se-não em nosso valor e em nossa inteligência”(ApudVIAMONTE, 1959, p. 186).

29 Jacob Gorender (1999, p. 249), alinha-se entreaqueles muitos autores, como Paulo Bonavides (p.349) que vêem no avanço tecnológico mais um fa-tor viabilizador da democracia direta. Depois deafirmar que a democracia representativa se soldaráorganicamente à democracia direta, escreve: “a de-mocracia direta se praticará sem burocracia, atodo momento, e sem hora marcada, o que a tecno-logia informática atual já prefigura e será muitomais desenvolvida no futuro”.

30 Registrem-se as experiências pioneiras de de-mocracia participativa em Lajes, Santa Catarina(administração Dirceu Carneiro, 1977-1982) e aspráticas participativas em Pelotas (administraçãoBernardo de Souza, de 1983 a 1987), destacando-se a primeira experiência nacional de elaboraçãoparticipativa do orçamento municipal.

31 A fonte é o pensamento de Simón Bolívar.Está no Discurso de angostura, pronunciado ante oCongresso de Angostura em 15 de fevereiro de 1819.

32 A tudo isso a grande imprensa brasileira (porexemplo Veja 11 jul. 1999, p. 53), espelhando aimprensa norte-americana (Cf. CNN), chama de‘demagogia’.

33 Compare-se com a redação do Parágrafo úni-co do art. 1º da Constituição brasileira (repete-se):“Todo poder emana do povo, que o exerce por meiode representantes eleitos ou diretamente, nos termosdesta Constituição”.

34 Também nesse sentido foi inovador o textobrasileiro de 1988, ao dispor no parágrafo único doart. 4º: “A República federativa do Brasil buscará aintegração econômica, política, social e cultural dospovos da América Latina, visando à formação deuma comunidade latino-americana de nações”.

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