antropologia formação docente

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  Florianópolis, v. 13, n. 01, p. 120 – 132, jan/jun. 2012 ANTROPOLOGIA E ANTROPÓLOGOS, EDUCAÇÃO E EDUCADORES: o lugar do ensino de Antropologia na formação docente Amurabi Oliveira  Resumo O presente trabalho visa trazer uma contribuição em torno do debate da antropologia da educação no Brasil, considerando sua dinâmica teórica e de ensino, problematizando o seu lugar na formação de professores, em especial junto aos cursos de pedagogia, o que se caracteriza por uma formação antropológica para não antropólogos, bem como a pouca atenção que tem sido dada a tal campo de investigação por parte da antropologia brasileira. Palavras- chave: Antropologia da Educação. Formação de Professores. Ensino de Antropologia. Introdução As Ciências Sociais e a Educação: Aproximações, afastamentos e outras danças Discorrer sobre da interface estabelecida entre as ciências sociais e a educação é uma tarefa que exige atenção, para que não caiamos em julgamentos e afirmações apressados, tampouco que olvidemos que neste debate está em jogo mais que uma simples  problematizaçã o de um campo de investigaçã o, estamos aqui n os circunscreve ndo diretamente a um debate em torno das políticas de formação docente. No que tange especificamente a discussão em torno da antropologia da educação, devemos destacar que em termos comparativos com a sociologia da educação, este campo ainda é pouco explorado (Gouveia, 1989), e muitas vezes centrado em análises educacionais que comtemplam realidades não escolares, tornando-se uma área de menor interesse por parte dos pesquisadores do campo educacional, cujos projetos de investigação debruçam-se majoritariamente sobre realidades que envolvem a educação formal. Doutor em Sociologia e Professor de Antropologia da Educação e de Estágio Supervisionado em Ciências Sociais do Centro de Ed ucação da Universidade Federal de Alagoas . Email: [email protected] 

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    ANTROPOLOGIA E ANTROPLOGOS, EDUCAO E EDUCADORES: o lugar do ensino de Antropologia na

    formao docente

    Amurabi Oliveira

    Resumo O presente trabalho visa trazer uma contribuio em torno do debate da antropologia da educao no Brasil, considerando sua dinmica terica e de ensino, problematizando o seu lugar na formao de professores, em especial junto aos cursos de pedagogia, o que se caracteriza por uma formao antropolgica para no antroplogos, bem como a pouca ateno que tem sido dada a tal campo de investigao por parte da antropologia brasileira. Palavras- chave: Antropologia da Educao. Formao de Professores. Ensino de Antropologia.

    Introduo

    As Cincias Sociais e a Educao: Aproximaes, afastamentos e outras danas

    Discorrer sobre da interface estabelecida entre as cincias sociais e a educao uma

    tarefa que exige ateno, para que no caiamos em julgamentos e afirmaes apressados,

    tampouco que olvidemos que neste debate est em jogo mais que uma simples

    problematizao de um campo de investigao, estamos aqui nos circunscrevendo diretamente

    a um debate em torno das polticas de formao docente. No que tange especificamente a

    discusso em torno da antropologia da educao, devemos destacar que em termos

    comparativos com a sociologia da educao, este campo ainda pouco explorado (Gouveia,

    1989), e muitas vezes centrado em anlises educacionais que comtemplam realidades no

    escolares, tornando-se uma rea de menor interesse por parte dos pesquisadores do campo

    educacional, cujos projetos de investigao debruam-se majoritariamente sobre realidades

    que envolvem a educao formal. Doutor em Sociologia e Professor de Antropologia da Educao e de Estgio Supervisionado em Cincias Sociais do Centro de Educao da Universidade Federal de Alagoas. Email: [email protected]

  • Antropologia e Antroplogos, Educao e Educadores: O lugar do ensino de Antropologia na formao docente

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    Contudo, antes de simplesmente afirmamos o maior ou menor interesse em torno da

    antropologia da educao, ao menos no Brasil, devemos investigar de forma mais apurada as

    tenses que se colocam neste campo, bem como as possveis origens desse menor interesse no

    campo da investigao da antropologia da educao, seja por parte das cincias sociais, seja

    por parte da educao, ainda que nesta encontremos maior ressonncia das investigaes com

    este carter.

    Ao contrrio de muitas interpretaes recorrentes no Brasil, em que se atribui a

    institucionalizao da antropologia fundao da Escola Livre de Sociologia e Poltica de

    So Paulo ELSP e da Universidade de So Paulo USP nos anos 30 (MICELI, 1989),

    destacamos que j entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX encontramos junto

    Escola Normal da Praa as primeiras incurses da antropologia da educao no processo de

    formao de professores, com destaque para a fundao do Gabinete de Psicologia e

    Antropologia Pedaggica, por parte de Ugo Pizzoli, j em 1914. Destaquemos que as prticas

    investigativas adotadas em tal gabinete assentavam-se, principalmente, na antropologia

    italiana de Cesare Lombroso. De acordo com Sganderla e Carvalho (2008):

    Os estudos ali realizados centravam-se na observao positiva e na mensurao das conexes entre o mundo fsico e psquico. Para tanto, eram utilizados procedimentos e tcnicas da antropologia fsica e dos testes mentais. Os dados levantados com esses procedimentos levavam identificao das disposies fsicas, intelectuais, morais e a conseqente classificao hierrquica do tipo de aluno. Esse gabinete, por estar locado em uma instituio de ensino renomada, gerou um movimento expressivo em torno da pedagogia cientifica que vinha como resposta s demandas sociais prticas que se fazia da cincia (ibid.). (Ibidem, p. 177).

    O que estava em consonncia com o projeto de Estado Nacional Moderno, posto em

    curso naquele momento. Como nos chama ateno Meucci (2011), a introduo de novas

    disciplinas no currculo das Escolas Normais representava uma renovao intelectual, que

    almejava uma formao cientfica para os futuros professores.

    Neste sentido, devemos destacar que a gnese da antropologia no Brasil encontra-se

    ligada, visceralmente, ao campo educacional. Talvez esta passagem da histria da

    antropologia brasileira seja deixada de lado pela forte ligao que esta antropologia

    educacional, que florescia no incio do sculo XX no Brasil, mantinha com uma antropologia

    fsica, antropomtrica, o que a distancia dos paradigmas da antropologia social e cultural que

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    se instaura na ELSP e na USP, o que reforado com a vinda de antroplogos renomados

    como Levi-Strauss em 1934, e de Radcliffe Brown em 1942.

    Costa e Silva (2003) ao tentarem compreender o afastamento dos cientistas sociais do

    mbito educacional levantam algumas possibilidades, que podemos tomar aqui como

    pertinentes para as nossas interrogaes. Destacam o papel que o Centro Brasileiro de

    Pesquisas Educacionais (CBPE) fundado em 1955 por Ansio Teixeira se props a ocupar,

    buscando realizar uma cincia social aplicada, em termos de pesquisas educacionais, o que

    Silva (2002) vai apontar como a grande oportunidade de se constituir um policy Science no

    Brasil no mbito da sociologia da educao, contudo, muitos dos pesquisadores que

    orbitavam em torno deste Centro demonstravam pouco interesse na rea da educao,

    realizando, por vezes, pesquisas que no faziam meno ao universo educacional.

    Atrelado a tal cenrio institucional, devemos destacar o contexto poltico e social que

    est como pano de fundo a estas tenses acadmicas, afinal, como nos aponta Bourdieu

    (2004, 2005), os campos so sempre relativamente autnomos, alguns mais outros menos,

    sendo a autonomia de cada campo medida pela capacidade de refratar as influncias externas,

    neste sentido, o campo educacional e acadmico seria pouco autnomo, uma vez que sofre

    grandes presses por parte do campo poltico, social, cultural e econmico.

    O surgimento do CBPE se d num breve interstcio de democracia no Brasil, num

    perodo entre duas ditaduras, a de Vargas que termina em 1945 e a militar que inicia em 1964,

    portanto, num perodo ainda de instabilidade poltica. Costa e Silva (2003) destacam que com

    o advento da ditadura em 1964, perodo tambm de grande popularizao das teorias

    reprodutivistas na educao (NOGUEIRA, 1990), o interesse dos cientistas sociais pela

    educao diminui ainda mais, por compreenderem esta como um instrumento de dominao

    do Estado e de reproduo social.

    Tambm neste perodo instala-se a reforma universitria no Brasil, em 1968, por

    intermdio da qual as Faculdades de Filosofia e Cincias Humanas so separadas das

    Faculdades de Educao, criadas neste perodo. Segundo Cunha (1992):

    A segregao institucional da seo da pedagogia da FFCL, por muitos vista como uma valorizao, resultou, a meu ver, em perda dos efeitos positivos advindos da interao atual ou potencial com outras sees (agora faculdades, escolas e institutos) em especial de filosofia, de histria, de cincias sociais, de psicologia, de comunicao, de letras. [] Assim, no foram poucas as Faculdades de Educao que, para comporem seus currculos reforaram essa segregao carregando consigo (ou criando) disciplinas prprias para o ensino das

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    demais cincias sociais (filosofia, histria, psicologia, sociologia, economia, seguidas ou no do qualitativo da educao) (Ibidem, p. 11).

    Com este passo temos um cenrio institucional que aprofunda a distncia das cincias

    sociais com relao educao, e em especial da antropologia, cujo arcabouo terico mais

    bem delimitado foca-se nos estudos etnolgicos das populaes tradicionais, com destaque

    para as indgenas, no toa, tal marca encontra-se ainda hoje muito bem inscrita inclusive no

    campo da antropologia da educao, cujos trabalhos em torno da educao indgena so, de

    fato, os mais numerosos neste campo.

    Apesar deste cenrio institucional, percebemos o crescente interesse em torno da

    interface entre a antropologia e a educao, o que pode ser atestado pelo crescimento da

    produo acadmica nesta esteira, ainda que se d prioritariamente junto s Faculdades de

    Educao, bem como por meio do crescimento institucional de tal discusso junto

    Associao Brasileira de Antropologia ABA (GUSMO, 2009). Buscaremos explorar o

    lugar que a Antropologia da Educao pode ocupar junto ao processo de formao de

    professores, considerando, especialmente, a realidade escolar na sociedade moderna.

    Antropologia, Educao: Apropriaes e dilogos

    Dentre os debates travados no mbito das cincias sociais, no mbito da educao,

    destaca-se o trabalho de Durkheim, que possui trs obras especficas sobre a educao:

    Educao e Sociologia (2011 [1922]), A Educao Moral (2008 [1902-1903]), A Evoluo

    Pedaggica na Frana (2002 [1938]); dentre estas trs obras daremos destaque a primeira, j

    que, nela o autor define claramente a educao, situando o seu lugar na formao humana. Na

    interpretao de Durkheim a educao tem por base a inculcao das geraes adultas nas

    mais novas de determinados estados fsicos, intelectuais e morais, voltados para determinada

    sociedade, isso implica em dizer que a educao conforma os sujeitos determinada realidade

    social. Contudo, Fauconnet (2011) nos chama a ateno para o fato de que a interpretao de

    Dukheim no to simples assim, uma vez que o autor situa que a educao capaz de

    individualizar socializando. Segundo Freitag (1986), a interpretao durkheiminiana de

    educao a situa como um fator essencial e constitutivo da prpria sociedade.

    Interessa-nos aqui o fato de que Durkheim d o passo inicial para pensarmos uma

    ligao direta entre a educao e a realidade social e cultural, destacando que, considerando

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    que a educao se baseia numa concepo de ser humano, que singular para dada realidade

    social, significa dizer que no podemos pensar em modelos universais de educao o que

    ser explorado de forma mais enftica pela antropologia culturalista americana bem como,

    que a educao encontra-se numa relao de mo dupla com a prpria sociedade,

    constituindo-a e sendo constituda por ela.

    No campo da antropologia, afora da herana de Boas cuja participao nos debates

    educacionais do seu tempo pouco conhecida na antropologia brasileira (GUSMO, 1997),

    devemos destacar os trabalhos de Margaret Mead, que produziu consistentes pesquisas sobre

    da realidade educacional, com destaque para os livros Coming of Age in Samoa (1961

    [1928]), fruto de sua tese de doutorado, e Growing Up in New Guinea (2001 [1930]), este

    ltimo, alis, possui o seguinte subttulo: A comparative study of primitive education, ambos

    os trabalhos ainda no possuem traduo para o portugus, o que aponta para o pouco

    interesse em torno desta problemtica em sua obra no Brasil.

    A questo central presente na obra de Mead, em torno dos padres de personalidade

    constitudos pela dinmica cultural encontra sua resposta nas prticas educativas, o que se

    pode perceber na sua obra Sexo e Temperamento (2004), que apesar de no ser lida como uma

    obra que trata de educao possui os processos educacionais com fio condutor, que

    respondem a grande questo de Mead, uma vez que, so os processos educacionais que

    permitem com que os padres culturais sejam vivenciados pelos sujeitos.

    Destacamos tais trabalhos para dar relevo ao fato de que, o campo educacional sim

    um objeto de investigao legtimo para as cincias sociais, que merece o apreo por parte de

    tais pesquisadores. A concentrao de tais pesquisas, no que diz respeito tanto sociologia da

    educao quanto antropologia da educao, nas faculdades de educao, sendo

    desenvolvidas por acadmicos que, por vezes, no possuem formao na rea das cincias

    sociais tem levado a elaborao de pesquisas frgeis, em termos tericos e metodolgicos

    (SILVA, 2002; MARTINS, WEBER, 2010). No que tange especificamente ao campo da

    antropologia da educao Valente (1996) nos chama a ateno para o seguinte fato:

    No Brasil, estudos precursores no campo educacional bastante conhecidos e que so indicaes obrigatrias nas pesquisas adeptas do mtodo antropolgico, dispensando outras menes evidenciam um problema que chama a ateno daqueles que esto um pouco familiarizados com a bibliografia antropolgica: na problematizao do emprego de tcnicas da Antropologia pela Educao, esto ausentes as referncias produo matricial. Esta omisso que alcana inclusive conceitos de autores bastante conhecidos parece

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    difcil de justificar-se apenas com a explicao de que no processo de transplante de um campo para outro, houve adaptaes que provocam mudanas em seu sentido original. (...) Talvez como decorrncia da no considerao dos conhecimentos acumulados pela Antropologia e pela tentativa de demarcar as diferenas entre o emprego de tcnicas etnogrficas por essa ltima e pela Educao, incorre-se numa confuso entre procedimentos e pesquisa e objeto de investigao. Finalmente, no se consegue explicar a especificidade do objeto (nem dos procedimentos) da Educao ante o objeto da Antropologia, construdo em torno do objeto de cultura, ou seria melhor dizer no plural, dos conceitos de cultura. Negligencia-se, ainda, que, apesar da verdade, tais conceitos mantm compromissos com perspectivas tericas diferenciadas que indicam os limites, alcances e desdobramentos de uma anlise (Ibidem, p. 55).

    Percebamos, portanto, com base nas reflexes de Valente que apesar de ser um

    dilogo necessrio, entre a antropologia e a educao, nem sempre um dilogo fcil, devido

    aos prprios saltos epistemolgicos necessrios para a apropriao da antropologia pela

    educao, bem como o inverso.

    As contribuies potenciais oriundas de tal dilogo s podem ser pensadas ante a uma

    perspectiva terica porosa, em que estes campos se interpenetrem, o que demanda, dentre

    outras questes, em termos objetivos, uma presena mais efetiva dos antroplogos neste

    campo, tanto no que tange anlise dos processos educacionais no sentido mais amplo do

    termo, o que aproximaria a questo de uma antropologia da aprendizagem; quanto se

    pensarmos a anlise da educao no sentido formal institucionalizado, o que nos faria

    aproximarmos de uma antropologia escolar, ou uma antropologia dos sistemas escolares.

    O que podemos observar que, o olhar antropolgico um olhar necessrio para se

    compreender os fenmenos educacionais. Se compreendermos que a cultura distributiva,

    como nos coloca Barth (2000), isso implica em dizer que os diversos sujeitos que vivenciam a

    experincia educacional possuem trajetrias distintas, e experincias culturais diferenciadas, o

    que lhes possibilita diversas formas de percepo, apropriao e construo do saber. Se de

    fato a cultura lente atravs da qual ns vemos o mundo, como nos coloca Benedict (2004),

    tambm a cultura a lente atravs da qual ns vemos a educao, logo, compreender a

    dinmica desta lente mostra-se como uma tarefa fundamental para aqueles que esto

    envolvidos no ato de ensinar e de aprender. Pois, tanto os processos educativos de uma

    determinada sociedade so partes constitutivas de sua cultura, como a prpria cultura deve ser

    compreendida como um processo educativo, na medida em que se trata de um processo

    atrelado constituio do prprio sujeito, vivenciada no processo de socializao, que ,

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    essencialmente, aprendido. Buscaremos destacar no prximo tpico o lugar que a

    antropologia da educao ocupa no processo de formao de professores.

    Antropologia e Antroplogos, Educao e Educadores

    Como j destacamos, desde a formao das Escolas Normais a antropologia ocupa um

    lugar de destaque no processo de formao de professores, ainda que no mbito das cincias

    sociais a sociologia tenha alcanado maior evidncia nesta seara. Por mais que possamos tecer

    crticas s primeiras aproximaes realizadas, baseadas nos mtodos antropomtricos,

    principalmente, devemos reconhecer que desde j havia um fio condutor que percorria as

    indagaes levantadas pela antropologia da educao naquele momento, que diz respeito a

    conhecer o outro. Com o impacto da antropologia cultural no Brasil, a partir das dcadas de

    1930 e 1940, este conhecimento do outro passa a remeter a seu universo simblico, a suas

    prticas culturais, o que gera uma alterao profunda no significado de conhecer o outro,

    aproximando-nos do conceito de alteridade. Segundo Gusmo (2003):

    A alteridade revela-se no fato de que o que eu sou e o outro no se faz de modo linear e nico, porm constitui um jogo de imagens mltiplo e diverso. Saber o que eu sou e o que o outro depende de quem eu sou, do que acredito que sou, com quem vivo e porqu. Depende tambm das consideraes que o outro tem sobre isso, a respeito de si mesmo, pois nesse processo que cada um se faz pessoa e sujeito, membro de um grupo, de uma cultura e de uma sociedade. Depende tambm do lugar a partir do qual ns nos olhamos. Trata-se de processos decorrentes de processos culturais que nos formam e informam, deles resultando nossa compreenso do mundo e nossas prticas frente ao igual e ao diferente. (GUSMO, 2003, p. 87).

    Neste sentido, o avano do debate na teoria antropolgica nos leva a compreend-la

    no apenas enquanto uma cincia a compor o quadro epistemolgico da formao de

    educadores, mas sim, como uma cincia que se prope a realizar uma mudana de perspectiva

    na forma de encarar o outro, o humano. Contudo, o debate existente na cincia antropolgica

    por si s no traz garantias de xito para este desafio, pois, as condies objetivas em que este

    debate trazido para as faculdades de educao so condicionantes para o desenvolvimento

    de tal debate.

    Tomando como um exemplo ilustrativo, ao analisarmos os Projetos Pedaggicos de

    Curso das licenciaturas em Pedagogia de nove Universidades Pblicas da regio Nordeste do

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    Brasil, sendo de distintas unidades federativas, observamos que em sua maioria encontramos

    alguma disciplina que se prope a realizar tal interface, sob pequenas variaes de

    denominaes, momento em que aparecem nos cursos e carga horria (variando de 40 a 75

    horas no total): Antropologia da Educao (Universidade Federal do Cear 3 semestre);

    Antropologia e Educao (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - 4 semestre);

    Antropologia na Educao (Universidade Federal de Sergipe 4 semestre); Fundamentos

    Antropolgicos da Educao (Universidade Federal de Alagoas 3 semestre); Antropologia

    da Educao (Universidade Federal de Pernambuco 1 semestre); Antropologia da Educao

    (Universidade Estadual do Maranho 3 semestre); Fundamentos Antropolgicos da

    Educao (Universidade Federal do Piau 1 semestre). Na Universidade Federal da Bahia,

    desde o ano de 2009 a disciplina de Antropologia da Educao passou a figurar no quadro de

    disciplinas eletivas do referido curso, e no caso da Universidade Federal da Paraba tambm

    esta disciplina figura como eletiva junto s demais licenciaturas, mas no na pedagogia,

    contudo, no PPC deste curso h a presenta de uma disciplina intitulada Educao e

    Diversidade (60 horas), que busca suprir esta lacuna, ainda que sua proposta no se centre

    exclusivamente na perspectiva antropolgica.

    Percebemos por tal amostra que a presena, no sentido formal, da Antropologia da

    Educao significativa junto aos cursos de pedagogia, contudo, apenas a sua existncia no

    garante per se que se conseguir atingir aos objetivos propostos pela Antropologia.

    Uma caracterstica comum nestas disciplinas que elas acabam por ocupar, tambm, o

    lugar de uma disciplina de Introduo Antropologia, at mesmo porque para a maior parte

    dos alunos ingressantes em tais cursos este ser o primeiro (e talvez ltimo) momento de

    contato com a cincia antropolgica, de modo que a dinmica de tais disciplinas se constitui

    por uma articulao entre uma apresentao geral da antropologia o que inclui na maioria

    dos casos uma discusso sobre sua origem histrica e desenvolvimento com uma discusso

    sobre a possvel interface entre a Antropologia e a Educao. Apenas em uma ementa

    (UEMA) encontramos referncias diretas s categorias de etnocentrismo e de relativismo

    cultural, que no nosso entender possuem uma centralidade neste debate, quando voltado para

    o processo de formao de professores. Dauster (2007) ao debater as possveis contribuies

    do debate antropolgico para a formao de professores destaca:

    Sem dvida, sempre julguei esta dmarche enriquecedora para o pesquisador da rea da educao. Ao mesmo tempo acreditei que o professor, em qualquer nvel, na sua prtica de ensino lucraria com o conhecimento da abordagem antropolgica, pois passaria a olhar seu

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    alunado com outras lentes, apto que estaria a analisar a heterogeneidade e a diversidade socioculturais em uma sala de aula. Por outro lado, tinha como hiptese que os conhecimentos antropolgicos permitiriam que o professor desenvolvesse uma viso crtica face s possveis posturas etnocntricas que, por vezes, o levariam a considerar as diferenas de estilos e de histrias de vida dos estudantes como manifestao de circunstncias de inferioridade, incapacidade ou privao cultural. (DAUSTER, 2007, p. 14).

    Sendo assim, compreendemos que a antropologia no processo formativo de

    professores aloca-se justamente nesta possibilidade de questionamento das posies

    etnocntricas encontradas na realidade social, e em especial, na realidade educacional. O

    conhecimento antropolgico permite ao docente em formao desnaturalizar a realidade

    social, ao questionar as formas estticas de compreenso da dinmica cultural, ao mesmo

    tempo em que permite que eles possam tambm familiarizar o que lhes parece estranho, por

    meio do relativismo cultural. Leva ainda tais educandos a questionar a suposta neutralidade

    cultural da escola, demarcando uma postura crtica com relao aos discursos produzidos em

    torno desta suposta neutralidade, subsidiando o educador em formao para a desconstruo

    de tal concepo, o que s possvel quando compreendemos a cultura uma perspectiva

    plural e polifnica.

    Macedo (2010) ao assumir o carter criador da linguagem, destacando a vinculao

    entre linguagem e cultura, destaca:

    A cultura passou, assim, a ser definida como produo do presente pela hibridizao de fragmentos de sentidos partilhados. Ainda que continuemos a nomear supostos repertrios de significados partilhados como cultura por exemplo, branca, negra, feminina, masculina, heterossexual, homossexual , advogamos a necessidade de faz-los conscientes de sua impossibilidade e simplificaes que as tornaram possveis. Assim, defendemos que uma escola preocupada com a diferena deve construir diuturnamente os mecanismos sociais que permitem estas simplificaes, liberando os fluxos que se espremem em qualquer classificao. (MACEDO, 2010, p. 37)

    Compreendemos aqui que no processo formativo docente, a problematizao

    em torno da realidade cultural condio sine qua non para a realizao plena do trabalho

    educativo, em especial se considerarmos a dinmica das sociedades modernas, essencialmente

    multiculturais (HALL, 2009), em que sujeitos com as mais diversas trajetrias sociais e

    culturais se cruzam, em especial no espao escolar. No toa, Silva (2009) aponta como uma

    das questes mais proeminentes no campo educacional o debate em torno da identidade,

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    questionando s estabelecidas. Ainda segundo o autor Uma politica pedaggica e curricular

    da identidade e da diferena tem a obrigao de ir alm das benevolentes declaraes de boa

    vontade para com a diferena. Ela tem que colocar no seu centro uma teoria que permita no

    simplesmente reconhecer e celebrar a diferena e a identidade, mas question-las. (SILVA,

    2009, p. 100).

    Contudo, tais possibilidades abertas pelo debate antropolgico, no so

    garantidas apenas com a existncia de uma disciplina denominada Antropologia da Educao,

    nos currculos dos cursos de formao de professores. Demanda-se uma articulao em nvel

    de ensino e pesquisa, em torno deste saber de fronteira, o que vem sendo incrementado ainda

    que timidamente. Rocha e Tosta (2009) ao examinar algumas pesquisas que vm sendo

    desenvolvidas neste sentido apontam Experincias como essas carregam nitidamente as

    cores da interdisciplinaridade envolvendo mltiplos e consistentes entendimentos tericos e

    metodolgicos e que ampliam o foco sobre a realidade educacional e escolar e nos

    possibilitam ensaiar outras crticas, outros olhares, outras alternativas s instituies que a

    esto. (ROCHA, TOSTA, 2009, p. 136).

    Tal incremento no mbito da pesquisa, articulado ao ensino, deve tomar os

    cuidados necessrios apropriao de um campo por outro, em especial quando incorremos

    no perigo de reduzir a contribuio da antropologia ao campo educacional ao nvel de mera

    contribuio em termos de tcnica de pesquisa, por meio da etnografia. Sobre tal questo

    Dauster (2007) aponta que: No se trata de reduzir a etnografia a uma tcnica, mas sim,

    trat-la como uma opo terico-metodolgica, o que implica conceber a prtica e a descrio

    etnogrficas ancoradas nas perguntas provenientes da teoria antropolgica. (Ibidem, p. 20)

    At mesmo porque, a expanso das metodologias qualidades se deu mesmo

    no mbito das cincias sociais sem a devida preocupao epistemolgica (CARDOSO,

    1986), de modo que, ao pensarmos neste dilogo entre a antropologia e a educao devemos

    retomar esta preocupao epistmica. Tais esforos so necessrios para que possamos, de

    fato, trazer uma contribuio significativa ao processo de formao docente por meio da

    antropologia.

    Para (in) concluir

    Este breve trabalho buscou apenas delinear algumas linhas do debate, que se

    estabelecem no campo da antropologia da educao, que apesar de no ser um campo novo

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    dentro desta cincia social apresenta-se ainda como incipiente, com muito material a ser

    desbravado.

    Destaquemos ainda um grande desafio, para que possamos incrementar e solidificar o

    campo da pesquisa na Antropologia da Educao, que faz-la avanar para alm das

    Faculdades de Educao, tornando-se, de fato, um campo expressivo junto aos antroplogos.

    No postulamos aqui que a antropologia ser capaz de sozinha alterar

    substancialmente o processo de formao de professores pois, como aponta Saviani (2009)

    um dos grandes dilemas do educador no Brasil que ele possui a Escola Nova em sua cabea,

    porm ante a um modelo de escola tradicional, e de cobranas tecnicistas, ou seja, no basta

    mudar as conscincias contudo, uma vez em que esta se prope a ser uma cincia que nos

    leva a encontrar o outro, e a refletir sobre este outro e sobre ns mesmos, compreendemos que

    a antropologia mostra-se fundamental no fazer docente, j que este se baseia,

    primordialmente, nos encontros entre ns e os outros que se do na realidade escolar. A

    antropologia nos permite, neste sentido, analisarmos criticamente o lugar do outro, inclusive o

    lugar do outro na construo de nossa prpria subjetividade, elemento primordial para nos

    apropriarmos criticamente do fazer educacional.

    ANTHROPOLOGY AND ANTHROPOLOGISTS, EDUCATION AND EDUCATORS: The place of teaching Anthropology in

    teacher formation

    Abstract The present work aims to make a contribution in the debate of educational anthropology in Brazil, considering its dynamics theoretical and teaching, questioning its place in teacher education, especially along the courses of pedagogy, which is characterized by an anthropological formation to not anthropologists and little attention has been given to this field of investigation by the Brazilian anthropology. Keywords: Anthropology of Education. Teacher Training.Teaching Anthropology.

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