antónio aniceto monteiro – o matemático que olhava portugal de longe

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António Aniceto Monteiro – O matemático que olhava Portugal de longe Gostaria de agradecer à Direcção do Colégio Militar o convite para proferir esta lição inaugural pois, permitiu-me conhecer um “ menino da luz” que para além de ter sido um notável matemático, com um vasto trabalho científico, reconhecido internacionalmente, se revelou um ser excepcional pela sua força interior e perseverança. O meu agradecimento também ao meu colega Sena Neves grande entusiasta e divulgador da obra de António Aniceto Monteiro e que muito colaborou na exposição e nesta pesquisa. António Aniceto Monteiro nasceu em 1907, em Moçâmedes, filho de um oficial do Exército que viria a desaparecer quando cumpria uma comissão de serviço em Angola. Tal como tem acontecido com muitos jovens desde 1803, ano da fundação do Colégio Militar, a sua Mãe recorreu aos serviços do nosso Colégio e Aniceto Monteiro ingressou nele a 1 de Novembro de 1917 com o nº78. Passado mais de um século sobre o nascimento da “obra” do Marechal Teixeira Rebelo, o Colégio continuava a afirmar-se, em Portugal, como um esteio da educação dos jovens. Decorria o ano de 1917 e em Portugal anunciava-se o milagre de Fátima e apelava-se à oração pela Paz, pois na Europa ela era uma utopia. Na Europa Ocidental assistia-se à 1ª Grande Guerra, 1914-18, onde o desprezo pelos direitos humanos levou ao massacre de dezenas de milhões de civis inocentes. Entretanto, na Europa Oriental, dava-se a revolução bolchevique na Rússia que viria a ter grandes reflexos na futura conjuntura política europeia e mundial. Em contraponto na Inglaterra, livre do flagelo da guerra, a paz, a democracia, o respeito pelos direitos humanos e os desenvolvimentos económico e social eram uma realidade. Longe estaria Aniceto Monteiro de pensar, nesse momento, que algumas consequências destes acontecimentos políticos iriam afectar decisivamente o seu futuro. Mas, voltemos a Aniceto que vai frequentar o Colégio até 1925 onde se revela um aluno mediano, nada fazendo crer que mais tarde se tornaria num ilustre matemático, 1

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Page 1: António Aniceto Monteiro – O matemático que olhava Portugal de longe

António Aniceto Monteiro – O matemático que olhava Portugal de longe Gostaria de agradecer à Direcção do Colégio Militar o convite para proferir esta lição

inaugural pois, permitiu-me conhecer um “ menino da luz” que para além de ter sido um

notável matemático, com um vasto trabalho científico, reconhecido internacionalmente,

se revelou um ser excepcional pela sua força interior e perseverança.

O meu agradecimento também ao meu colega Sena Neves grande entusiasta e

divulgador da obra de António Aniceto Monteiro e que muito colaborou na exposição e

nesta pesquisa.

António Aniceto Monteiro nasceu em 1907, em Moçâmedes, filho de um oficial do

Exército que viria a desaparecer quando cumpria uma comissão de serviço em Angola.

Tal como tem acontecido com muitos jovens desde 1803, ano da fundação do Colégio

Militar, a sua Mãe recorreu aos serviços do nosso Colégio e Aniceto Monteiro ingressou

nele a 1 de Novembro de 1917 com o nº78.

Passado mais de um século sobre o nascimento da “obra” do Marechal Teixeira Rebelo,

o Colégio continuava a afirmar-se, em Portugal, como um esteio da educação dos

jovens. Decorria o ano de 1917 e em Portugal anunciava-se o milagre de Fátima e

apelava-se à oração pela Paz, pois na Europa ela era uma utopia. Na Europa Ocidental

assistia-se à 1ª Grande Guerra, 1914-18, onde o desprezo pelos direitos humanos levou

ao massacre de dezenas de milhões de civis inocentes. Entretanto, na Europa Oriental,

dava-se a revolução bolchevique na Rússia que viria a ter grandes reflexos na futura

conjuntura política europeia e mundial. Em contraponto na Inglaterra, livre do flagelo

da guerra, a paz, a democracia, o respeito pelos direitos humanos e os desenvolvimentos

económico e social eram uma realidade. Longe estaria Aniceto Monteiro de pensar,

nesse momento, que algumas consequências destes acontecimentos políticos iriam

afectar decisivamente o seu futuro.

Mas, voltemos a Aniceto que vai frequentar o Colégio até 1925 onde se revela um aluno

mediano, nada fazendo crer que mais tarde se tornaria num ilustre matemático,

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internacionalmente reconhecido. Aniceto Monteiro possuía uma formação cívica sólida

e foi, ao longo da sua actividade colegial, distinguido com três louvores,

designadamente, dois pelo seu “procedimento moral”; no entanto, jovem e irrequieto

que era, também sofreu castigos um dos quais no último ano por fumar, hábito que não

o largou a vida inteira. Terminou o Curso Complementar de Ciências no Colégio Militar

com a média geral de 12 valores e 14 valores a Matemática tendo, contudo, na

generalidade melhores classificações em Física.

No ano seguinte Aniceto matricula-se no Curso de Ciências Matemáticas da Faculdade

de Ciências de Lisboa, concluindo a sua licenciatura em 1930 com a média de 15

valores. De 1931 a 1936, é bolseiro do Instituto para a Alta Cultura, em Paris, tendo, em

1936, obtido o grau de Doutor em Ciências Matemáticas pela Universidade de Paris

com a menção distintíssima de “très honorable”. O seu doutoramento foi orientado por

Maurice Fréchet, professor da Sorbonne, e mereceu do júri, para além da mais alta

classificação, a seguinte referência: “agradecemos ao Instituto para a Alta Cultura por

nos ter enviado um candidato que revelou grande entusiasmo e aptidões excepcionais

para a investigação” Destaquei apenas esta frase de vários parágrafos da carta, elogiosa,

que foi dirigida ao Instituto para a Alta Cultura.. Em França, Aniceto contacta com a

investigação Matemática e com os moldes da sua organização e aí ganhou incentivo

para o prosseguimento das suas investigações. Regressa a Portugal com o entusiasmo de

um jovem que sempre teve “uma atitude rica perante a vida” que, como um cidadão

exemplar, entende que tendo sido bolseiro, deverá retribuir ao País os frutos do seu

trabalho e da sua capacidade.

Mas se, em 1917, ano em que se torna “menino da luz”, os tempos não são fáceis para a

Europa, em 1936, ano em que regressa a Portugal, a conjuntura política Europeia

adensa-se e adivinham-se novos e terríveis conflitos cada vez mais desumanos. A

Europa continua a não encontrar a Paz e a retardar os caminhos da democracia quer

através de novos conflitos regionais étnicos, quer através de regimes ditatoriais. Os

desenvolvimentos económico e social de alguns países, alicerçados numa democracia

com respeito pelos direitos humanos, continua a não ser um exemplo para muitos

dirigentes políticos europeus. À criação do regime comunista implantado na Rússia,

com a revolução bolchevique, respondem alguns países da Europa Ocidental e

Mediterrânica, entre os quais Portugal, com regimes ditatoriais de direita, cerceando as

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liberdades cívicas de muitos cidadãos, impedindo-os até de exercer actividades

profissionais no seu país.

Foi exactamente isto que aconteceu com Aniceto Monteiro quando chegou a Portugal.

Nesse tempo, era obrigatório assinar um compromisso de fidelidade (estabelecido pela

Constituição Política de 1933) para ter acesso à função pública. Aniceto recusa-se a

assinar tal compromisso, mesmo depois de pressionado por vários amigos, alguns deles

meninos da luz como ele, porque, apesar de não ter qualquer actividade de carácter

político, Aniceto considerava o dito compromisso “um insulto à sua inteligência”.

Entretanto, os apelos da comunidade matemática repetiam-se e o Regime continuava a

negar-lhe o ingresso na carreira universitária. Apesar de consciente que, enquanto se

mantivesse o Regime do Estado Novo, seria marginalizado no seu país, Aniceto

Monteiro não era homem para desistir e, por isso, não podia deixar de fazer o que sabia

e o que mais gostava – exercer funções docentes e de investigação – o que fez mesmo

sem auferir qualquer remuneração.

A crise de desenvolvimento da cultura matemática portuguesa era uma realidade. Até

Fernando Pessoa através de Álvaro de Campos se referiu ao fraco reconhecimento, que

no país, se atribuía ao conhecimento científico afirmando “o binómio de Newton é tão

belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso”. Para

inverter esta situação, Aniceto Monteiro, apesar de não ser professor no ensino oficial,

fez parte de um movimento pela renovação da cultura matemática portuguesa, para a

modernização do ensino e da investigação científica, tendo uma participação associativa

muito activa no seio da sociedade civil, conjugando vontades e articulando esforços.

Neste âmbito foi um dos três impulsionadores do Movimento Matemático em Portugal,

com Bento de Jesus Caraça e Ruy Luís Gomes. Associando-se a estes e a outros

eméritos cientistas portugueses participou também na criação da Junta de Investigação

Matemática, do Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, da Fundação da Sociedade

Portuguesa de Matemática, da qual foi o seu primeiro Secretário-Geral e das revistas

científicas da área: Portugaliae Mathematica e Gazeta Matemática. A Portugaliae

Mathematica veio colmatar uma brecha nas publicações de nível universitário que se

verificou com o desaparecimento, no início do século, da primeira revista portuguesa da

especialidade e passou a constituir um local privilegiado para a publicação de trabalhos

portugueses inéditos. A Gazeta Matemática era dirigida aos professores de Matemática

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e aos estudantes universitários para melhor informação sobre o movimento matemático

nacional e aos pré-universitários para prepararem devidamente o seu ingresso no ensino

superior. Para Aniceto Monteiro, já nesta altura, os jovens, ainda no ensino secundário,

já representavam o futuro cientifico em Portugal.

Finalmente, a 2ª Guerra Mundial, 1939-45, está a terminar mas, os ventos de mudança

não parecem querer chegar a Portugal tão cedo e o Regime, apesar da vitória dos

aliados, irá continuar a não tolerar espíritos livres nem movimentos modernizadores. A

repressão aumenta e torna-se imperioso silenciar os intelectuais. O Regime prepara a

depuração, a nível universitário, mesmo daqueles que assinaram o compromisso político

recusado por Aniceto Monteiro.

Sobrevivendo em condições económicas precárias, Aniceto Monteiro aceita, em 1945,

um contrato como professor de Álgebra Superior na Faculdade Nacional de Filosofia do

Rio de Janeiro, tendo sido recomendado nada mais, nada menos por: Albert Einstein,

John von Neumann e Guido Beck. Aí irá, durante quatro anos, organizar o ensino e

promover a investigação em Matemática junto dos jovens universitários brasileiros,

colaborar na criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Rio de Janeiro e

influenciar um grande número de futuros matemáticos desse país.

Enquanto outros países tudo faziam para importar cérebros Portugal bania-os.

Como foi possível a um país como Portugal não aproveitar o saber de um Matemático

recomendado nomeadamente, por Einstein , “apenas” Prémio Nobel da Física em 1921,

e John von Neumann que para além de Físico Nuclear, realizou trabalhos muito

importantes em Física Quântica, foi especialista na Teoria de Jogos

(Matemática/Economia) e criador do ENIAC o primeiro computador da nova geração!

Apesar do modo como foi tratado pelas autoridades portuguesas, Aniceto Monteiro

estabeleceu, sempre, relações científicas com o país continuando a orientar teses de

doutoramento e a constituir um marco de referência para os jovens Matemáticos

Portugueses. Mas o Governo Português continuava a não lhe perdoar a sua verticalidade

e generosidade e mais uma vez, através da Embaixada Portuguesa no Brasil, o perseguiu

influenciando a decisão da não renovação do seu contrato por parte da Faculdade

Brasileira. Lá teve, em 1950, Aniceto Monteiro de procurar novo país de acolhimento.

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Esse país foi a Argentina onde, para além de ter leccionado em três Universidades,

desfrutou, a partir de 1957, da grande oportunidade de criar um projecto cientifico de

raiz, fazendo do Instituto de Matemática de Bahía Blanca um dos centros de Matemática

mais importantes da América Latina, associado a uma Biblioteca, de nível internacional,

adequada à realização de trabalhos de investigação, à qual em sua homenagem foi dado

o seu nome. É designado «Professor Emérito da Universidade Nacional del Sur» na

Argentina e jubila-se em 1975.

Em 1977, regressa a Portugal, passados trinta e dois anos de exílio e aqui permanece,

como investigador do Instituto Nacional de Investigação Científica, até 1979.

Em 1978, é distinguido com o Prémio Gulbenkian de Ciência e Tecnologia tendo a

Revista da Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar feito uma referência

dessa atribuição ao “bom e querido Aniceto”. Que manifestação de afecto e de

camaradagem por parte dos outros meninos da luz.

Regressa à Argentina continuando a trabalhar até aos seus últimos dias, pois a sua

paixão pela matemática não tinha limites.

Vem a falecer em Bahía Blanca, em 1980.

Em 2000, o então Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio, concede-lhe a

título póstumo, e no âmbito das comemorações do Ano Internacional da Matemática, a

Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago da Espada.

Mais uma vez o nosso país, deixa partir um daqueles que se afirmaram como uma

referência, homenageando-o e à sua obra de forma tardia.

Com a sua energia, visão e persistência Aniceto Monteiro dinamizou, por onde passou,

a criação de Centros de Investigação e Bibliotecas que deixaram uma marca muito

precisa do seu pensamento científico de que a Ciência era para ser partilhada por

todos e não apenas por alguns. Foi, sem dúvida alguma, um percursor da globalização

dos conhecimentos a nível do ensino, da investigação e da divulgação científica.

Fez parte de uma geração que tudo fez para que Portugal entrasse na modernidade mas,

muitos deles, como Aniceto Monteiro foram impedidos de realizar, no nosso País, a sua

ambição científica.

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O seu comportamento cívico exemplar e o seu carácter, com certeza muito enraizados

na sua personalidade pela educação colegial, foram determinantes para as suas

actividades profissional e social granjeando de todos que com ele trabalharam e

privaram o respeito, a estima e uma amizade duradoura.

Referi, apenas, alguns aspectos da vida de um dos maiores matemáticos portugueses do

século XX , de reconhecido mérito internacional, que foi António Aniceto Monteiro -

aluno 78 de 1917-25 e que será mais uma das grandes referências do nosso Colégio no

Âmbito da Matemática juntamente com Fernando Vasconcelos aluno 56 de 1887 e

Luís Albuquerque aluno 89 de 1929.

Muito obrigado pela vossa atenção

Vasco Lynce de Faria

Referências:

Ana Gerschenfeld “António Aniceto Monteiro - O matemático que olhava Lisboa

de longe” - PÚBLICO Comunicação Social SA (Maio 2007).

António M. Fernandes “António Aniceto Monteiro” Educação e Matemática –Revista

da Associação de Professores de Matemática (Junho 2007).

José Manuel Sena Neves “António Aniceto Ribeiro Monteiro – Centenário do

nascimento de um notável matemático (ex-aluno 78 / 1917-25 do CM) – Revista O

COLÉGIO MILITAR (Julho 2007).

Sociedade Portuguesa de Matemática “António Aniceto Monteiro – Uma

fotobiografia a várias vozes” Coordenadores: Jorge Rezende, Luíz Monteiro e Elza

Amaral (Maio 2007).

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Page 7: António Aniceto Monteiro – O matemático que olhava Portugal de longe

1958 “Ele fundou tudo quanto havia a fundar,

participou em tudo quanto havia a participar” Jorge Rezende

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