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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULOFACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PÓS-GRADUAÇÃO EM CIENCIAS DA RELIGIAO A RESSURREIÇÃO CORPÓREA: O DISCURSO IDENTITÁRIO EM PAULO (I CORINTIOS 15: 35-49) ÂNGELA MARIA PEREIRA ALEIXO São Bernardo do Campo — 2014

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO

    PAULOFACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PS-GRADUAO EM CIENCIAS DA RELIGIAO

    A RESSURREIO CORPREA: O

    DISCURSO IDENTITRIO EM PAULO

    (I CORINTIOS 15: 35-49)

    NGELA MARIA PEREIRA ALEIXO

    So Bernardo do Campo 2014

  • NGELA MARIA PEREIRA ALEIXO

    1. A RESSURREIO CORPREA: O

    DISCURSO IDENTITRIO EM PAULO

    (I CORINTIOS 15: 35-49)

    Dissertao apresentada em cumprimento s cumprimento s exigncias do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio para a obteno do grau de mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    So Bernardo do Campo 2014

  • A dissertao de mestrado sob o ttulo A Ressurreio Corprea: O

    Discurso Identitrio em Paulo (I Corntios 15:35-49), elaborada por

    ngela Maria Pereira Aleixo foi apresentada e aprovada em 10 de Abril de

    2014, perante banca examinadora composta por Paulo Roberto Garcia

    (Presidente/UMESP), Paulo Augusto de Souza Nogueira (Titular/UMESP)

    e Jonas Machado (Titular/ FTB ).

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    Orientador e Presidente da Banca Examinadora

    __________________________________________

    Prof. Dr. Helmut Renders

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao

    Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio

    rea de Concentrao: Linguagens da Religio

    Linha de Pesquisa: Literatura e Religio no Mundo Bblico

  • DEDICATRIA

    Ao Prof. Milton Schwantes (in memorian),

    Por seu ensino, dedicao e humanidade.

  • Meus Agradecimentos, Meu Respeito, Minha Amizade

    Ao meu admirvel orientador Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia pelo carinho,

    pacincia nestes dois anos de pesquisa, e pelas maravilhosas conversas

    sempre regadas de sbios conselhos que levarei para a toda vida.

    Ao meu querido co-orientador Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira

    pelas oportunidades e estmulos que me impulsionaram a caminhar sempre

    em frente, rompendo fronteiras e desafiando limites neste novo horizonte

    acadmico/cientfico.

    Aos colegas do Grupo Oracula de Pesquisas pelas descobertas acadmicas

    e amizades compartilhadas possibilitando-me assim desbravar um leque do

    conhecimento do saber num conviver.

    Aos colegas da casa dos estudantes do IEPG que de forma direta e indireta

    participaram da elaborao desta pesquisa e contriburam para meu

    crescimento acadmico e pessoal.

    A secretria do IEPG e amiga Ana Maria Fonseca pelo carinho, apoio e

    acolhimento no s na casa dos estudantes, mas tambm em sua vida.

    A secretria da reitoria da teologia e amiga Eliane Quintella por vivenciar

    comigo momentos significativos de minha vida acadmica e pessoal.

  • Ao estimado casal de amigos Sirley e Ruy pelo imenso e caloroso amor

    com que abriu as portas de sua casa e de seus coraes para mim. E por

    serem como anjos que iluminaram e amaram vida durante todo esse tempo.

    Ao meu amigo Gabriel Arajo pela amizade sincera que compartilhamos.

    Pelos muitos momentos de alegria que vivemos equiparados a um lindo

    soneto de msica. Voc foi o som que nunca mais esquecerei. E tambm

    por abrir as portas de sua casa e famlia deixando ser minha tambm.

    Ao meu amigo/irmo Rafael de Campos pela convivncia do dia-a-dia que

    me proporcionou muitos momentos e aprendizados inesquecveis. Pelas

    dicas literrias e conselhos que me ajudaram muito na construo de minha

    pesquisa. E pela eterna histria de amizade que escrevemos juntos neste

    perodo.

    Ao meu amigo Everson Spolaor pelo carisma e determinao com que me

    conduziu na insero deste novo mundo acadmico. Por acreditar e

    compartilhar deste sonho que, primeiramente, foi teu.

    A minha famlia pelo apoio e incentivo com que aceitaram e conduziram

    todo esse processo comigo, sendo um suporte para mim em todos os

    momentos.

    A CAPES pelo apoio.

  • ALEIXO, NGELA MARIA PEREIRA. A RESSURREIO CORPREA: O DISCURSO IDENTITRIO EM PAULO (I CORINTIOS 15: 35-49). 2014. 138 F. (DISSERTAO DE MESTRADO) UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO, SO BERNARDO DO CAMPO.

    RESUMO

    Este trabalho focaliza o discurso da ressurreio corprea como elemento identitrio em

    Paulo, a partir do texto de 1Corntios 15:35-49 onde o apstolo desenvolve e argumenta

    seu pensamento escatolgico acerca desta temtica. Nosso objetivo de entendermos

    como se desenvolveu esse pensamento e considerar os argumentos dentro dessa nova

    viso teolgica da temtica. Metodologicamente faz-se um estudo exegtico do texto de

    1Corintos 15:35-49 a fim de dialogar com o conceito temtico de Dn12:1-3 e com a

    ideologia ctica presente em Corinto. Baseando-se nos principais autores Nickelsburg,

    Wright e Lehtipuu temos como principais consideraes que a ressurreio corprea em

    Dn 12:1-3 universal, coletiva e tida como ato de justia. Na filosofia ctica a ideologia

    a do relativo e vazio. E em Paulo ela individual e atinge o individuo como um todo.

    Palavras-Chave: Discurso; Paulo; Ressurreio; Corpreo; Identitrio; 1Corntios 15.

  • ALEIXO, NGELA MARIA PEREIRA. THE CORPOREAL RESURRECTION: THE DISCOURSE IDENTITARY IN PAUL (1 CORINTHIANS 15:35-49). 2014. 138 F. (DISSERTAO DE MESTRADO) UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO, SO BERNARDO DO CAMPO.

    ABSTRACT

    This dissertation focuses on the discourse of the corporeal resurrection as an identitary

    in Paul, from the text of 1 Corinthians 15:35-49 where the apostle develops and argues

    his eschatological thoughts about this theme. Our goal is to understand how this thought

    was developed and consider the arguments within this new theological vision of the

    theme. Methodologically, an exegesis of the text of 1 Corinthians 15:35-49 is made in

    order to discourse with the thematic concept of Dn 12:1-3 and with the skeptical

    ideology present in Corinth. Based on the main authors Nickelsburg, Wright and

    Lehtipuu, we have as main considerations that the corporeal resurrection in Daniel 12:1-

    3 is universal, collective and taken as an act of justice. In skeptical philosophy the

    ideology is that of relativism. In Paul, resurrection is personal and comprehends the

    individual as a whole.

    Key-Words: Discourse; Paul; Resurrection; Corporeal; Identitary; 1Corinthians 15.

  • SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................10

    CAPTULO I

    A RESSURREIO SOBRE DOIS MODELOS: DANIEL E CTICO ............................ 14

    1. O MODELO DE DANIEL 12:1-3 ............................................................................... 14

    1.1 Data e Propsito do Livro ..................................................................................................... 15

    1.1.2 O Sheol ............................................................................................................................... 18

    1.2 Gnero Literrio .................................................................................................................... 21

    1.3 Unidade e Coerncia Temtica ............................................................................................. 26

    1.4 O Texto de Daniel 12:1-3 ...................................................................................................... 29

    1.5 O Cenrio Transitrio do Judasmo e Helenismo ................................................................. 43

    2. O Modelo Filosfico Ctico .................................................................................................... 45

    2.1 Os Rudimentos Cticos em Pirro .......................................................................................... 45

    2.2 Ceticismo: Sua Histria e Ideologia ...................................................................................... 48

    Consideraes ............................................................................................................................. 54

    CAPITULO II

    ANLISE EXEGTICA DE 1COR. 15:35-49 ....................................................................... 55

    2. Traduo Literal Interlinear .................................................................................................... 55

    2.1 Traduo do Texto ................................................................................................................ 59

    2.2 Caractersticas Formais ......................................................................................................... 60

    2.2.1 Delimitao da Percope..................................................................................................... 60

    2.2.2 Coeso do Texto ................................................................................................................. 63

    2.2.3 Contexto Literrio .............................................................................................................. 64

    2.2.4 A Estruturao de 1Corntios 15:35-49. ............................................................................. 67

    2.3 Gnero Literrio .................................................................................................................... 70

    2.4 O Contexto Scio Religioso .................................................................................................. 71

    2.5 Anlise de Contedo ............................................................................................................. 74

    2.6 Articulao Paulina em 1Corintios 15 .................................................................................. 91

    Consideraes ............................................................................................................................. 95

    CAPITULO III

  • A RERSSURREIO CORPREA COMO ELEMENTO IDENTITRIO PAULINO..96

    3 Marcas Lingsticas nas Narrativas Paulinas ........................................................................... 96

    3.1 Rudimento e Desenvolvimento da Ressurreio Corprea. ................................................ 100

    3.1.1 Princpios Teolgicos da Ressurreio Corprea ............................................................. 101

    3.1.2 Influncia e Contextualizao: Fatores Fundamentais Desta Teologia ............................ 107

    3.1.3 O Imaginrio Como Norteador Discursivo e 1Corintios 15:35-49 .................................. 112

    3.2 A Ressurreio: Elemento Identitrio em Paulo. ................................................................ 116

    3.2.1 A Correspondncia Paulina da Ressurreio Corprea ................................................... 115

    3.2.2 O novo Olhar na Temtica da ressurreio Corprea ..................................................... 122

    3.2.3 A Ressurreio como Elemento Identitrio em Paulo ..................................................... 124

    Consideraes ........................................................................................................................... 129

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 130

    REFERNCIAS ...................................................................................................................... 134

  • 10

    INTRODUO

    Podemos dizer que a problemtica desta pesquisa se concentra no nico eixo

    narrativo da tipologia corprea que alcanado na ps-morte com a ressurreio do

    corpo. Ou seja, a aceitao na crena de que haver no futuro escatolgico um corpo

    glorioso e totalmente outro.

    Sobre esta problemtica levantamos a seguinte questo: Uma teologia

    formativa como essa no caberia a atribuio de um discurso identitrio paulino? Essa

    a indagao que norteia nossa pesquisa, pois partindo do texto de 1Corntios (15:35-49)

    analisamos em consonncia com os modelos a possibilidade de se constatar ou no essa

    proposta.

    Nossas hipteses se concentram em dois pontos fundamentais: a primeira de

    que tanto o modelo de Dn 12:1-3, quanto o modelo filosfico ctico, de formas

    contrrias forneceram subsdios para esta teologia formativa; a segunda de que este

    novo e desenvolvido pensamento escatolgico peculiar em Paulo.

    Nesta perspectiva que a presente pesquisa objetiva buscar compreender como

    se deu a formao deste discurso escatolgico atentando para suas possveis influncias.

    Com intuito de chegar discusso desta temtica como elemento identitrio em Paulo.

    Tida como doutrina central da teologia crist a ressurreio corprea tem sua

    histria narrada em diferentes pores bblicas do Novo Testamento. Nos evangelhos

    cannicos Jesus anuncia sua morte e ressurreio sobre a afirmao de que este o

    plano de Deus Pai para com a humanidade. Em especial, podemos ver entretecidas na

    teologia crist mais antiga as cartas paulinas que registram a morte e ressurreio de

    Jesus. Entendemos que estas foram escritas por volta de duas dcadas aps a morte de

    Cristo denotando assim neste perodo, a firme crena dos cristos neste evento

    escatolgico.

    Sobre a crena de que a ressurreio em princpio tinha acontecido, Paulo

    exorta e instrui os seguidores de Jesus a reordenar suas vidas, suas narrativas, seus

    smbolos e sua prxis para estarem em conformidade com o segmento desta doutrina

  • 11

    escatolgica na ps-morte. Mas, num segundo olhar a essa temtica podemos levantar

    outro questionamento: Que novidade este tema to debatido pode nos apresentar?

    sabido que os ensinamentos de Paulo se tornaram um elemento chave da

    tradio e da teologia crist. Mais do que isso, nosso pressuposto de que a teologia

    paulina nos fornece um desenvolvimento narrativo sobre a ressurreio corprea.

    Demonstrando tambm uma nova abordagem no discurso desta temtica a partir da

    narrativa de 1Corntios (15:35:49).

    Para tanto, Paulo parte da descrio dos diferentes tipos de carnes de animais,

    de aves, de peixes, do sol, da lua e das estrelas num evolutivo pensamento. Tendo como

    cerne discursivo o enunciado de que entre os corpos tambm h diferentes tipologias,

    pois sua afirmativa de que assim como existe o corpo natural tambm existe o corpo

    espiritual. Assim, neste texto em questo Paulo relata analogicamente o primeiro Ado

    (corpo natural) em relao ao segundo Ado, Cristo (corpo espiritual) demonstrando

    que nele est implcito a memria narrativa de Gn 1-3, cuja nfase est na criao.

    A fim de discorrer sobre o tema proposto na presente pesquisa seu

    desenvolvimento narrativo se dar na abordagem de trs captulos.

    O primeiro captulo trar como esteio investigativo o modelo de Dn 12:1-3.

    Nosso objetivo aqui de averiguarmos o conceito de ressurreio corprea e sua

    extenso hermenutica contextual. Para isso no seguiremos propriamente uma

    abordagem histrica, apesar de conter alguns pontos histricos na pesquisa, mas sim

    uma abordagem hermenutica semitica.

    Seu desenvolvimento metodolgico se dar por Zabatiero na obra Manual de

    Exegese que nos fornece alguns pontos relevantes para a hermenutica desta temtica.

    Nestes captulos os pontos so: data e propsito, gnero literrio, unidade e coerncia

    temtica, o texto de Dn 12:1-3 e o cenrio transitrio do judasmo e helenismo.

    A escolha deste referencial terico se d pelo fato deste autor apresentar nesta

    obra um novo olhar para a metodologia exegtica, ou seja, que percebe a tarefa da

    exegese no sentido da ao do texto e a partir do texto. O que relevante para

    instrumentalizar metodologicamente este primeiro modelo. Mas, esta pesquisa contar

    tambm com o referencial terico de Nickelsburg na obra Resurrection, Immortality,

    and Eternal Life In Intertestamental Judaism, cujo cerne literrio Dn 12:1-3. Sua

  • 12

    abrangente e minuciosa exposio nos fornece uma boa fonte de pesquisa para este

    estudo.

    Tambm exposto neste captulo o modelo ctico. Sua anlise gira em torno de

    trs aspectos principais: sua origem, seu desenvolvimento e seu pensamento filosfico.

    Esta filosofia tem como mago o questionamento e a relatividade das verdades

    absolutas, o que pode denotar caractersticas de conflitos. Contudo, toda essa postura

    relativa e questionadora leva esta ideologia ao vcuo, ou seja, a lugar algum no campo

    das certezas. Nisto est relevncia deste modelo para a formao da teologia paulina,

    cuja metodologia tambm segue o campo hermenutico apontando para os rudimentos

    cticos em Pirro.

    Assim, toda a abordagem hermenutica deste modelo contar com os seguintes

    pontos metodolgicos: seus rudimentos, histria e ideologia, e tambm com o

    referencial terico de Reale na obra Histria da Filosofia Antiga lII: os sistemas da era

    helenstica que nos fornece uma slida fonte de pesquisa neste campo filosfico.

    O segundo captulo trar a anlise exegtica do texto 1Corntios (15:35-49) a fim

    de compreendermos os ensinos paulinos deste texto. Aqui, esta temtica ser abordada

    em aspectos histricos, mas com nfase exegtica e hermenutica sobre a metodologia

    de Zabatiero na obra supracitada. Os pontos hermenuticos analisados neste captulo so

    demonstrados na estrutura abaixo.

    O incio destes passos exegticos se d com a traduo literal interlinear do texto

    grego. Seguindo a anlise com a traduo literal do texto grego e com a traduo

    idiomtica do mesmo tendo como parmetro narrativo a INJ (Bblia Nova Jerusalm).

    Sendo analisado aps este, a crtica textual com intuito de observarmos alguns aspectos

    da transmisso do texto grego.

    Outra etapa necessria em nossa exegese a anlise das caractersticas formais,

    a qual implica em observar quatro pontos: delimitao da percope que nos auxilia no

    recorte do texto que precede e segue a percope demonstrando, assim, os argumentos

    literrios para fazer tal recorte. A coeso do texto visar demonstrar a seqncia de

    contedos entre o incio e o fim da percope. A anlise do contexto literrio buscar

    definir se o texto uma prosa ou uma poesia, observando tambm sua estruturao em

    pargrafos/estrofes, frases e a correlao interna entre as frases de um pargrafo/estrofe.

    E por fim, o gnero literrio que pertence a percope em questo.

  • 13

    A etapa seguinte consiste na anlise do lugar do texto que implica em uma

    abordagem tanto macro quanto micro, isto , uma anlise da data e do contexto scio-

    religioso que est ao pano de fundo de nossa percope. Analisando tambm o ambiente

    vivencial em que foi escrito e pronunciado o texto e a comunidade que o recebeu.

    Finalizando este ponto com a anlise do contedo da percope.

    Nesta etapa, temos tambm a anlise de contedo das palavras e frases do

    texto, sempre observando sua insero dentro dos pargrafos/estrofes e evitando fazer

    anlise isolada de termos, pois, uma exegese s pode ser construda a partir de unidades

    de sentido. E tambm a apresentao de um panorama da articulao paulina sobre a

    ressurreio corprea na carta de 1Corntios 15. Contudo, destacamos que esses pontos

    hermenuticos constaro em cada captulo de acordo com a abordagem requerida. Este

    captulo tambm contar com os referenciais tericos: A ressurreio do Filho de

    Deus, e Paulo, Novas Perspectivas de Wright. Ambos, considerados carro chefe de

    nossa pesquisa em Paulo.

    O terceiro captulo abordar o discurso paulino sobre a ressurreio corprea

    em dilogo com os modelos citados pautando-os nos dois argumentos em prol da

    identidade discursiva da temtica. A metodologia tambm ser por Zabatiero, cuja obra

    j foi mencionada e contar com os seguintes pontos hermenuticos: rudimentos e

    desenvolvimento da ressurreio; influncia e contextualizao; o imaginrio como

    norteador discursivo em 1Corntios (15:35-49); a ressurreio como elemento

    identitrio; a correspondncia paulina da ressurreio corprea; e o Novo olhar da

    ressurreio corprea.

    O terceiro captulo tem como objetivo mostrar paralelos e ecos destes modelos

    para a teologia formativa paulina, e tambm de mostrar o desenvolvimento de seus

    argumentos em prol da ressurreio como elemento identitrio em Paulo.

    Assim, ciente deste desafio que a presente pesquisa ir trilhar seu caminho

    rumo a ao objetivo proposto. Agregando, no trmino de cada captulo, uma breve

    considerao sobre a peculiaridade de cada captulo trabalhado na perspectiva desta

    temtica. De posse destas informaes introdutrias, iniciaremos, a partir de agora, a

    anlise destas questes supracitadas adentrando no primeiro captulo.

  • 14

    CAPTULO I

    A RESSURREIO SOBRE DOIS MODELOS:

    DANIEL E CTICO

    Por que o termo modelo? Podemos dizer que de modo geral as idias

    trabalhadas se agrupam com um referencial comum em escolas. Entretanto, embora

    tecnicamente esse termo no exista no universo acadmico sobre esse mosaico de

    idias que lanaremos mo da terminologia modelo.

    Na presente pesquisa dois modelos literrios se desenvolvero: Dn 12:1-3 e os

    Cticos. O objetivo aqui de investigar o conceito da ressurreio corprea em Daniel e

    o entendimento da ideologia filosfica ctica.

    Assim, mediante a grande problemtica hermenutica que cerca a temtica

    mapearemos inicialmente as discusses que cercam o livro de Daniel seguida pela

    ideologia ctica para, num segundo momento, trabalharmos especificamente a percope

    chave de nosso texto 1Corntios (15: 35-49).

    1- O MODELO DE DANIEL 12:1-3

    Daniel 12:1-3 uma das referncias mais antigas intertestamentarias datveis

    no Canon do cristianismo primitivo sobre a ressurreio (corprea) dos mortos, pois

    neste texto o autor traz a temtica. Talvez, esse seja o motivo pelo qual muitos do

    pensamento judeu posterior, o tenham como o texto central desta temtica. Nesta

    perspectiva, Wright destaca trs pontos importantes que devemos considerar sobre este

    texto.

    Primeiro, ela a mais clara: virtualmente, todos os estudiosos concordam que ela efetivamente fala da ressurreio corporal e que a entende num sentido concreto. Segundo, ela se baseia em vrios dos outros textos relevantes e provavelmente mais antigos, mostrando-nos um modo em que eles estavam sendo lidos no segundo sculo a.C. Terceiro, reciprocamente, parece ter funcionado como uma lente,

  • 15

    atravs da qual os materiais anteriores eram vistos pelos escritores subseqentes1.

    Desta forma, podemos dizer que esses elementos: concreto, dilogo e lente so

    pontos significativos que demonstram a peculiaridade de Daniel em seu texto (12:1-3).

    Wright tambm afirma que tal significncia documental est em que, ler Dn 12:1-3

    significa permanecer na ponte entre a Bblia e o julgamento dos dias de Jesus, olhando

    para traz e para frente e assistindo a passagem de idias que iam e vinham entre ambos2.

    Por isso deste slido e importante modelo literrio que partimos para iniciar nossa

    investigao.

    1.1 Data e Propsito do Livro

    Sobre esta questo podemos dizer que um longo perodo se estabeleceu na

    investigao de uma data3. Contudo, podemos dizer que o contexto do livro de Daniel

    tambm nos aponta uma possibilidade de data. Mas quais foram os propsitos e

    circunstncias em que este livro foi composto? Acreditamos que um sucinto relato de

    seu contexto nos ajudar a compreend-los e a nos posicionar quanto a uma data.

    Depois das fulgurantes conquistas de Alexandre, o Grande, a Palestina

    disputada por uns e outros, pois todos querem controlar o pas. As reviravoltas de

    situao e as guerras so numerosas naquela poca. Entretanto, os novos senhores da

    Palestina, os Selucidas e os sucessores de Alexandre difundem a cultura grega nos

    1WRIGHT, N T. A Ressurreio do Filho de Deus. Santo Andr: Academia Crist & Paulus, 2013, p.175. 2IDEM, p.175. 3Em relao data do livro h controvrsias, pois a opinio do mundo erudito est dividida. De um lado,

    tem-se a maioria que mantm tenazmente uma data no segundo sculo. Do outro lado, um menor grupo que reconhece o peso das evidncias, cuja indicao, de uma data anterior babilnico para os captulos (1-6/7). Postulando uma data entre quinto e terceiro sculo. Neste sentido, Baldwin diz:

    H evidncia dos manuscritos sozinha entre um original dos meados do segundo sculo e a aceitao do livro como cannico. Um nmero crescente de eruditos est argumentando em favor de uma fonte babilnica, para uma grande parte do livro, qual imaginam que foi acrescentado material macabeu. Levando-se em conta todos os fatores relevantes, incluindo-se a os argumentos para a unidade do livro, uma data no fim do sexto ou no incio do quinto sculo para o livro como um todo nos parece ser a que melhor corresponde s evidncias (BALDWIN J G. Daniel: introduo e comentrio. So Paulo: Mundo Cristo, 1978, p.50).

    Para Vermes, o livro de Daniel recebeu sua formulao final nos anos 160 a.C., e atestado em fragmentos manuscritos de Qunram datados do final daquele mesmo sculo, d a primeira expresso definitiva crena na ressurreio dos mortos. Assim, entendemos que o livro de Daniel abrange um longo perodo de constituio, no nos permitindo estabelecer uma data fixa sem dificuldades. (VERMES, Geza. Ressurreio: histria e mito. Rio de Janeiro: Record, 2008. p.52).

  • 16

    territrios conquistados. O que faz com que em pouco tempo o Oriente Prximo, o

    Egito e a Bacia Mediterrnea mergulhem no helenismo. Assim, de forma geral o livro

    de Daniel trata da confrontao entre o judasmo e o helenismo Selucidas.

    Os judeus conservavam seus costumes e leis sem serem muito molestados pela

    nova cultura, ainda que certos grupos se sintam realmente atrados pelo helenismo.

    Embora o selucida Antoco III tenha promulgado um edito de tolerncia

    poltica/religiosa, Asurmendi diz que por volta de 175 o rei Antoco IV decide impor

    aos judeus a cultura grega e proibir as prticas da religio judaica que so estranhas

    cultura grega. Ao comearem as dificuldades e perseguies4.

    Contudo, embora a revelao seja alocada na poca de Ciro, observamos que o

    autor se move rapidamente para a elevao do Imprio Macednio e para alm dele.

    Daniel demonstra ento um ressalto narrativo em Antoco IV, cujo reinado retratado

    como mau. Ele mostra que sua relao com judeus cristos narrada em (11:30-5),

    mostrando que Antoco, em causa comum com os judaizantes, abandona a aliana

    (v.30); profana o Templo ao fazer cessar os sacrifcios, desenvolvendo assim o

    sacrilgio e adorao (v.31); e persegue o povo judaico (vv.32-5). De acordo com

    ARENS, o livro de Daniel foi composto em tempos de perseguio sob Antoco IV

    (167-64aC.)5.

    Assim, entendemos que quando se trata de se fixar uma data para o livro de

    Daniel no devemos rejeitar as correntes que se posicionaram numa possvel data.

    Contudo, destacamos que nosso posicionamento est junto maioria que a fixa no

    sculo II a.C. Quanto s circunstncias adversas descrita neste livro entendemos que,

    provavelmente, contriburam significativamente para que muitos justos questionassem a

    presena-ausncia de Deus e de sua justia. neste contexto de perseguio que a

    pessoa do sbio mencionada aos judeus cristos.

    Neste sentido, entendemos que o autor de Daniel era, sem dvidas, um desses

    sbios, cujo livro provavelmente tencionava ajudar no processo de ensino e exortao

    ao povo. Pois, na figura de um dos quatro profetas do Antigo Testamento, modelo de

    4ASURMENDI, J. O Profetismo: das origens poca moderna. So Paulo: Paulinas,1988, p.101. 5ARENS, Eduardo. A Bblia Sem Mitos: uma introduo crtica. So Paulo: Paulus, 2007, p.111.

  • 17

    sabedoria e tipo de justo perseguido e libertado por Deus [...], que Daniel era

    representado para expressar a esperana da salvao e de ressurreio da morte6.

    Para Nickelsburg, como sbio Daniel tinha o objetivo de conduzir muitos ao

    entendimento do verdadeiro caminho e auxili-los a permanecerem firmes na

    perseguio; mesmo que alguns de seus membros sejam colocados a morte7. Desta

    forma, podemos entender que o livro de Daniel chega ao povo como uma resposta aos

    questionamentos da justia divina; um refrigrio espiritual em relao ao controle

    divino na histria e uma instruo/encorajamento quanto ao curso da caminhada dos

    cristos.

    Quanto estrutura narrativa podemos dizer que esta literatura apresenta

    divises em sua composio. Grande parte dos estudiosos do Antigo Testamento

    concorda que o livro de Daniel est dividido em duas partes. Para Nikelsburg, essa

    diviso est classificada nas sees (1-6); e (7-12) do texto; onde ambas esto

    conectadas por meio dessa figura do sbio. Ele ressalta que nas histrias,

    Daniel descrito como um homem sbio que era capaz de predizer o futuro atravs da interpretao dos sonhos. Nos captulos (7-12), Daniel ele mesmo o receptor de vises sobre o futuro. Essas vises no somente predizem o futuro, mas tambm chamam a ateno dos leitores para eventos correntes e, ento, assegura-lhes de que eles esto beira do julgamento, quando Deus destruir o opressor e iniciar a nova era com todas as suas bnos. O livro ele mesmo

    parte da tarefa exortatria do sbio8.

    Uma observao importante a ser destacada que este livro exerceu grande

    influncia sobre a literatura apocalptica e rabnica: nesta ltima, Daniel se tornou o

    exemplo do justo posto a prova por Deus e a salvo9. Assim, o gnero apocalptico

    consegue traduzir adequadamente a narrativa contextual de Daniel, e, independente dos

    6GRIBOMONT, J; GROSSI V; HAMMAN A; ORLANDI T; SIMONETTI M; SINISCALCO P; STUDER B; TESTINI P; TRIACCA A; VOICU S J. Dicionrio Patrstico e de Antigidades Crists. So Paulo: Vozes & Paulus, 2002, p.378. 7NICKELSBURG, G W. Resurrection, Immortality, and Eternal Life In Intertestamental Judaism. Cambridge/London: Harvard University Press/ Oxford University Press, 1972 (Havard Theological Studies, XXVI), p 170. 8NIKELSBURG, G W. Literatura Judaica, Entre a Bblia e a Mixn: uma introduo histrica e literria. So Paulo: Paulus, 2011, p.173. 9GRIBOMONT, p.378.

  • 18

    propsitos especficos nos quais aqui elas se destinam h um que fundamental e

    inerente a este gnero. Arens diz que de forma geral,

    O propsito fundamental dos escritos apocalpticos era de infundir esperana em uma situao sentida como desesperadora, dar nimo quando parecia melhor renunciar, afirmar a f em momentos em que h dvidas sobre a justia divina, assegurando aos seus leitores (mediante os quadros que pintavam, onde se contrasta o mau com o bom, as trevas com a luz), que no final desse tnel escuro est luz salvadora para os que permanecem fiis ao senhor, apesar de todas as adversidades10.

    Em outras palavras, a finalidade desta obra consiste essencialmente em

    sustentar os judeus perseguidos e assegurar os fiis sofredores de que no final

    triunfariam. Pelas revelaes (apocalipses) feitas a seus eleitos Deus anuncia que por

    sua fidelidade destruir as foras do mal no fim dos tempos, onde os sofrimentos dos

    fiis sero recompensados com a ressurreio, enquanto que os mpios sero punidos

    com a morada do mundo dos mortos, o Sheol. Nesta perspectiva, entendemos que o

    conceito da ressurreio corprea vem dialogar com o conceito de Sheol. Para tanto,

    precisamos compreender sua relevncia nesta mensagem e seu conceito neste contexto

    de Daniel.

    1.1.2 O Sheol

    Como vimos acima, o livro de Daniel traz a mensagem de que a justia divina

    ser aplicada aos justos nos ltimos dias. Onde os justos sero libertos e os mpios sero

    aprisionados aps o julgamento que condenar o mpio e libertar o justo. O que nos

    remete ao entendimento de que esse um contexto de inverso.

    Em outras palavras, o justo oprimido no contexto presente ser

    necessariamente liberto para o mundo futuro (julgamento-ressurreio-vida com Deus),

    enquanto que o mpio opressor do contexto presente ser o aprisionado do mundo futuro

    (julgamento-Sheol-existncia-sem Deus). Como afirma Collins, Devemos ter em

    mente que a retribuio aps a morte tambm um componente crucial em um

    10ARENS, p.111.

  • 19

    apocalipse histrico como Daniel [...]11. Neste sentido, destacamos que nada se

    oferece sob a forma de promessa para o indivduo, ou seja, de que a pessoa ir gozar

    uma vida feliz com Deus aps a morte. O que expresso em Daniel a ressurreio

    como um ato de justia divina para com os fiis na ps-morte. No fornecendo detalhes

    sobre onde e como ocorrer essa ressurreio.

    Contrariamente h informaes e promessas acerca do Sheol uma regio

    debaixo da terra (Nm 16:31-5)12, cuja natureza descrita em J.10:18-22.

    Ento, porque me tiraste do ventre?

    Eu poderia ter morrido sem que olho algum me visse,

    e ser como se no tivesse existido,

    levado do ventre para a sepultura.

    Como so poucos os dias de minha vida

    Deixa de me fixar, para que eu tenha um instante de alegria,

    antes que eu, sem retorno, possa partir

    para a terra soturna e sombria.

    de escurido e desordem,

    onde a claridade uma sombra.

    Isso porque de acordo com Wright, o Sheol era tido geralmente como o lugar

    do p para o qual as criaturas feitas de p retornavam13. J para Vermes, o Sheol

    comparado a uma cidade fortificada cujos portes so trancados por barra de ferro14.

    Contudo, ao observarmos o apelo deste Salmo (139:12s) percebemos que salmista no

    pede uma entrada em algum paraso, mas sim, que essa entrada no Sheol seja adiada ao

    mximo. Jav, ouve minha orao, escuta meu grito pedindo ajuda, no fiques surdo

    diante do meu clamor. Sou teu hspede, mas s por algum tempo, um nmade como

    todos os meus antepassados. Olha para mim, deixa-me tomar respirao, antes que eu

    11COLLINS, J J. A Imaginao Apocalptica: Uma introduo literatura apocalptica judaica. So Paulo: Paulus, 2010, p.32. 12BOWKER, John. Os Sentidos da Morte. So Paulo: Paulus, 1995, p.66. 13Sheol, Abaddon, Cova, Sepultura, Escurido, Regies Profundas da terra do esquecimento. Essas expresses quase intercambiveis denotam um lugar de trevas e desespero; um lugar onde no mais possvel desfrutar da vida, e onde a presena do prprio YHWH se encontra retirada. (WRIGHT, p.148) 14VERMES, Geza. Ressurreio: histria e mito. Rio de janeiro: Record, 2008, p.33.

  • 20

    me v e no mais exista. Assim, entendemos que a idia do Sheol expressa aqui

    caracterizada pelo nada.

    Embora algumas interpretaes sobre o que acontece no Sheol do judasmo

    primitivo tenham surgido, nenhuma delas se acha explcita no perodo bblico. Por isso,

    podemos dizer que implicitamente, alm do nada o Sheol tambm se caracterizava como

    a terra do esquecimento eterno onde tudo se finda; sendo a concepo de

    castigo/punio posterior a este livro. Sobre isso, Bowker afirma:

    claro que no Xeol no h castigos: No temas a morte: se forem dez ou cem ou mil anos, no Xeol no haver castigos por causa da vida (41:3[5]). Em geral, a nica imortalidade que se pode esperar a espcie de retrospectiva, conferida pelos vivos em favor dos mortos, quando aqueles obedecem exortao do Eclesistico (muito apreciada nas formaturas escolares): Honremos os homens ilustres e nossos pais que nos geraram (44:1)15.

    Todo esse imaginrio local contribua para que os (judeus) cristos tentassem

    adiar o momento da partida para esse mundo sombrio e inativo que est inserido em

    algum lugar do cosmos. Mas, onde seria esta localizao csmica? Bem, a maneira

    como as pessoas da Antiguidade imaginavam o mundo provinha de suas observaes e

    impresses empricas. Por isso, sua viso emprica de mundo e suas explicaes acerca

    dos fenmenos csmicos eram mitolgicas. Os hebreus, por exemplo, entendiam que

    esse mundo nos afeta e est totalmente governado por Deus. Arens diz que,

    Deus e seus anjos teriam sua residncia acima desses cus (plural, porque pensavam que haviam vrios nveis, habitando Deus no ltimo). Debaixo da terra se encontrariam os abismos ou profundidades (o Sheol ou Hades), que tambm o lugar de residncia dos mortos, posteriormente separado do lugar dos infernos. Para referir-se ao mundo visvel, usavam a expresso cus e terra16.

    Assim, acredita-se que o Sheol caracterizado como terra do nada; terra do

    esquecimento e mundo dos mortos se localizava num nvel inferior do cosmos, cujo 15BOWKER, p.77. 16ARENS, pp. 125-6. Grifo do autor.

  • 21

    espao subsistente, de carter imaterial e atemporal. Neste sentido, o Sheol

    representava para os fiis uma separao total com Deus e com a vida de dedicao que

    outorgavam a ele. Segundo Vermes, para o monotesmo judaico o Sheol era um lugar

    sem religio ou mesmo sem Deus, pois para o morto, como para algum que no existe,

    o louvor acabou (Ec 17:28)17.

    Por isso, Bowker diz que quando Israel e sua f estavam em vias de formao,

    havia uma aceitao austeramente realista de que nada existe aps a morte, nada pelo

    menos que se compare com essa espcie de relacionamento com Deus18. E, esse

    relacionamento foi descrito por escritores posteriores como amizade, cujo exemplo

    encontramos na narrativa de Abrao (2Cr.20:7; Is.41:8). Desta forma, o nico retorno

    que se pode oferecer a Deus continuar a louv-lo enquanto ele alonga o breve perodo

    de vida nessa terra, pois a entrada no Sheol implicaria na perda deste grande privilgio.

    1.2 GNERO LITERRIO

    Entendemos que redigir um contexto onde o campo religioso apresentado

    atadamente ao campo scio/poltico no deve ter sido uma tarefa fcil para Daniel. E toda essa

    complexidade e abrangncia dos assuntos tratados pode ser o motivo pelo qual encontramos em

    sua composio narrativa mais de um estilo literrio. Esses estilos esto compreendidos entre:

    profecia; apocalptica e escatologia; mas apenas um se estabelece como gnero literrio deste

    livro, o apocalipse19.

    Mas defendemos o imaginrio de que o apocalipse um gnero de literatura

    revelatria com estrutura narrativa, no qual a revelao a um receptor humano

    mediada por um ser sobrenatural, desvendando uma realidade transcendente que tanto

    17VERMES, p.25. 18BOWKER, p.70. 19Quanto sua origem, Asumerdi diz que os textos apocalpticos, como o livro de Daniel, so escritos que nasceram na clandestinidade e para a clandestinidade. Pois so obras de combates das quais se podem dizer que, por sua linguagem, souberam a censura, ainda que tenham malhado sem concesses, a crtica aos acontecimentos/religiosos da poca. Nessa perspectiva, Arens diz que o gnero apocalptico floresceu e era popular em momentos em que o judasmo e, em seguida, o cristianismo experimentavam graves dificuldades pelas hostilidades e pelas perseguies por parte dos poderes pagos (ARENS, p. 110).

  • 22

    temporal, na medida em que vislumbra salvao escatolgica, quanto espacial, na

    medida em que envolve outro mundo, sobrenatural20.

    Contudo, Collins complementou essa definio sobre a observao de Adela

    Collins ao afirmar que estes tipos de escritos so tipicamente voltados para interpretar

    circunstncias terrenas presente a luz do mundo sobrenatural e do futuro, e por

    influenciar, ao mesmo tempo, a compreenso e comportamento da audcia por meio da

    autoridade divina21. Mas, como surgiu e quais desdobramentos este termo nos

    apresenta?

    Embora ambas tenham subsistido por um perodo comum o florescimento

    apocalptico s ocorreu aps o declnio da profecia. Neste sentido, Asurmendi diz que o

    apocalipse a seqncia lgica e normal das profecias, pois se afirma que o apocalipse

    filho da profecia.Verdade que os apocalipses aparecem quando a profecia comea a

    declinar; ou seja; em certo sentido, o apocalipse a continuao das profecias22.

    Encontramos ecos desta compreenso no Novo Testamento. Na poca de Jesus

    o livro de Daniel considerado por muitos como um livro proftico, embora

    oficialmente permanea fora do conjunto dos profetas. Seu estilo literrio semelhante ao

    estilo apocalptico pode ter sido o motivo pelo qual ambos costumavam ser confundidos

    no cristianismo primitivo. Entretanto, apesar das semelhanas elas se diferem na

    singularidade de suas caractersticas narrativas.

    Essas duas literaturas aqui representadas possuem seus pontos de

    convergncias e divergncias, mas tambm seu elemento comum e inerente: as vises.

    Contudo, sublinhamos que cada literatura as apresenta em sua particularidade. Nas

    narrativas profticas as vises so apresentadas num formato mais contido em relao s

    narrativas apocalpticas. De acordo com Asurmendi,

    as vises entre os profetas so simples, nem monstros nem elementos mais ou menos surpreendentes. Mesmo em Ezequielfrequentemente apresentado como pai do apocalptico as coisas so muito mais simples do que se pretende, uma vez que o texto tenha sido expurgado

    20Introduction: Early Christian Apocalypticism, in: Early Christian Apocalypticism: Genre and Social Setting, Adela Y. Collins (ed.). Semeia 36 (1986), p.7. Cf. tambm a obra de Collins, J J. (ed.), The Encyclopedia of Apocalypticism. New York, 1998, p.13. 21IDEM, p.13. 22ASURMENDI, p.104.

  • 23

    dos acrscimos posteriores que, ao invs de esclarec-lo, complicaram-no inutilmente23.

    Nessa viso, profeta e Senhor dialogam e, se for necessrio, o profeta

    intercede. Pois, na viso proftica os interlocutores esto prximos um do outro e no

    h necessidade de intermedirios. J a apocalptica segue outra vertente.

    De acordo com Arens, a apocalptica se apresenta como produto de uma srie

    de revelaes, de segredos (daqui seu nome, do grego apokalypsis = revelao) e de

    planos divinos a um profeta (porta-voz), seja por meio de vises, de sonhos, seja de

    raptos fora deste mundo24. Tricca abrange este pensamento ao dizer que o apocalipse

    uma obra que versa sobre profecias, revelaes de segredos divinos, vises

    escatolgicas, cosmogonia, cu, inferno, na sua primeira vinda ou na segunda (depois

    do grande Julgamento)25. Assim, entendemos que este gnero literrio conta com os

    meios de revelao, diviso, viso e jornada sobrenatural suplementadas por discursos

    ou dilogos.

    Desta forma, entendemos que embora o livro de Daniel seja de carter

    compsito e tm afinidades com mais de um gnero26; ele pode ser adequadamente

    considerado como apocalptico. Segundo Baldwin, os eruditos geralmente concordam

    em que o livro de Daniel exemplo por excelncia da literatura apocalptica no AT; no

    entanto, considerando-se a maior parte das definies desse termo, ele prova ser uma

    exceo27.

    A composio desta literatura apocalptica repleta de imagens e smbolos

    que, hoje em dia, devido s muitas possibilidades de interpretaes, nos resultam em

    obscuros ou incompreensveis. Contudo, Arens afirma que ela tambm uma

    linguagem que em boa medida inspirada na linguagem figurada dos profetas de

    antigamente, com a qual se pintam quadros que, portanto, tm sentido quando so vistos

    como totalidades28. De acordo com Asumerndi,

    23IDEM, p.105. 24ARENS, p.111. Grifo do autor. 25TRICCA, M H O. Apcrifos III: os proscritos da Bblia. So Paulo: Mercuryo, 1996, p.101. Ver tambm as narrativas de Ec.229 e Ap.42:3. 26COLLINS, p.21. 27BALDWIN, J G. Daniel: introduo e comentrio. So Paulo: Mundo Cristo, 1978, p. 55. 28ARENS, p.111.

  • 24

    entre os apocalpticos nos deparamos com uma srie de monstros extraordinrios que, normalmente, no encontramos na vida real. Alm disso, h todo um simbolismo das cores (o branco representa a pureza e a fidelidade, o vermelho a perseguio, o negro o mal); simbolismo dos nmeros (o sete constitui a plenitude, o seis a imperfeio); simbolismo dos elementos, tais como os chifres (poder e dominao) que faz com que as vises sejam absolutamente misteriosas, necessitando de uma interpretao. Se quisermos identificar um texto apocalptico, basta observar se existe, ou no, um relato, um anjo intrprete presente para explicar a viso29.

    Como podemos ver, a narrativa apocalptica em essncia complexa. Por isso,

    Daniel tem vises, mas precisa de uma interpretao que lhe permita compreend-la, se

    tratando assim, de uma revelao em dois momentos: viso e interpretao.

    Pois, neste campo apocalptico no existe contato e dilogo algum entre o

    visionrio e Deus implicando assim na necessidade de intermedirios. Nesta forma

    estrutural em que esta narrativa descrita o mediador humano, neste caso Daniel,

    transmite a salvao escatolgica caracterizadas pelas realidades sobrenaturais

    temporalmente presente e futura. Sendo esta, sempre definitiva no carter e marcada por

    alguma forma de vida aps a morte do individuo. Nesta perspectiva, Collins diz:

    os principais meios de revelao so vises e jornadas sobrenaturais, suplementadas por discurso ou dilogo e, ocasionalmente, por um livro celestial. A presena de um anjo que interpreta a viso ou serve de guia na jornada sobrenatural o elemento constante. Essa figura indica que a revelao no inteligvel sem auxlio sobrenatural. Est fora deste mundo. Em todos os apocalipses judaicos, o receptor humano uma figura venervel do passado distante, cujo nome utilizado como pseudnimo. Esse artifcio fortalece a distncia e mistrio da revelao. A disposio do visionrio ante a revelao e sua reao a ela tipicamente enfatizam o desamparo humano diante do sobrenatural30.

    Desta forma, o livro de Daniel lana mo das vises e do simbolismo mtico

    para descrever a perseguio como rebelio contra o cu e anuncia um ato de

    29ASURMENDI, pp.106-7. 30COLLINS, p.23.

  • 25

    julgamento divino que suprimir a rebelio e marcar o incio de uma era de

    salvao31. Ou seja, um contexto social que tem como caracterstica atuante um

    vnculo mstico com a histria de Israel. Isso se confirma na afirmao de Nogueira.

    Toda a segunda metade de Daniel lida com a contraparte celestial da batalha dos judeus com Antoco Epifanes na terra. No existe nada que sugira que o autor estava interessado na restaurao da vida terrena. Preferencialmente, Dn 12:1-3 descreve a reunio final das duas esferas da vida pela elevao do justo para se juntar hoste anglica32.

    Sobre este contexto scio-mstico Collins diz que alguns, como Daniel,

    contm uma elaborada reviso da histria, apresentada na forma de uma profecia que

    culmina em uma poca de crise e turbulncia escatolgica33. Contudo, alguns

    estudiosos apresentam objees quanto a esse conhecimento de Daniel. Mas, Baldwin

    diz que no h razo para questionar o conhecimento da histria que Daniel tinha, ou

    seja, suas pressuposies histricas. Pois, as indicaes so de que ele tinha tido acesso

    a informaes ainda no disponveis ao historiador dos nossos dias e que, onde no

    existem provas conclusivas do contrrio, ele deve ser considerado digno de crdito34.

    Todo esse contexto de perseguio analgico ao mstico acarreta no julgamento

    divino iniciando assim, a era de salvao onde o povo ser liberto para sempre da

    opresso como ato de justia divina aos fiis 12:1-3. Essa ressurreio da nao ocorrer

    nos ltimos dias. De acordo com Shea,

    a profecia no apenas responde as peties de Daniel, mas revela ainda mais coisas do futuro do povo de Deus em sua terra. Assim, essa profecia no contm as caractersticas bsicas da apocalptica. A escatologia qual ela se refere diz respeito nao judaica, no uma escatologia final para o mundo. Por isso, de acordo com um consenso,

    31NICKELSBURG, p.163. 32NOGUERIA, A S P. Religio de Visionrios: apocalptica e misticismo no cristianismo primitivo. So Paulo: Loyola, 2005, p.95. 33COLLINS, pp.23-4. 34BALDWIN, p.32.

  • 26

    mesmo entre historicistas e futuristas, essa profecia se centralizava na vinda do Messias ao povo judeu na poca dos romanos35.

    Assim, esta rebelio demonstra um considervel conhecimento da histria

    descrita na narrativa de Daniel, alm de apresentar uma analogia contextual.

    Quanto o termo mstico retratado de forma inerente a este gnero Ringgren

    nos fornece o seguinte conceito: o misticismo geralmente definido como experincia

    religiosa interior que acompanha fenmenos de vises, transes, e estados de xtase, e

    que, e alguns casos, denota uma unio mstica, isto , uma unificao com o divino36.

    Esta rebelio apresentada aqui uma analogia contextual descrita na narrativa de Daniel

    revelando que ele possui um considervel conhecimento da histria37.

    Assim, a linguagem apocalptica de Daniel retrata o tema escatolgico da

    ressurreio corprea coletiva da nao de Israel como ato de justia divina a seu povo.

    Contudo, este gnero apocalptico no se restringe ao Antigo Testamento, pois abarcam

    escritos que transitam entre o Novo Testamento e alguns Apcrifos. Segundo Arens

    esse gnero pertence narrativa de Daniel (7-12), ao apocalipse de Joo, alm de

    trechos dos escritos dos profetas (por exemplo, Is. 24-27; Zc 9-11; Jl), e mais de uma

    dzia de apcrifos38. E essa abrangncia abre caminho para que Daniel possa interagir

    com outros textos deste gnero e temtica.

    1.3 UNIDADE E COERENCIA TEMTICA

    Todo esse conjunto de informao adquirida at aqui nos permite dizer que, de

    certa forma, Daniel pode ser considerado um livro bipolar. Isso porque seus primeiros

    seis captulos giram em torno da histria do imprio neobabilnico e do incio da

    supremacia persa em Babilnia. Os ltimos seis captulos do livro nos do um esboo

    35SHEA, W H. Histria e Escatologia no Livro de Daniel. So Paulo: In: Revista Teolgica do Salt-Iaene. vl. 2. Janeiro-Junho 1998. nr. 1. p.40. 36RINGGREN, Helmer. Mysticism. In: D. N. Freedman (ed.). The Achor bible Dictionary. Vol.4 K-N. New York: Doubleday, 1992, pp.945-946. 37Uma das obras nacionais que aborda esta temtica da mstica judaica o livro de Jonas Machado. (cf. O Misticismo Apocalptico do Apstolo Paulo: um novo olhar nas cartas aos Corntios na perspectiva de experincias religiosa. So Paulo: Paulus, 2009). 38ARENS, p.112.

  • 27

    apocalptico que culmina com um grande clmax escatolgico39. Por isso, atentar para

    as duas sees narrativas deste livro imprescindvel para nossa compreenso, uma vez

    que sua seqncia literria culmina em nosso texto Dn 12:1-3.

    A primeira seo composta dos captulos 1-6 vem como foco narrativo oferecer

    uma srie de histrias que demonstram que a f possvel mesmo nas circunstncias

    mais temveis. Como afirma Asurmendi,

    Quando os tempos so difceis, convm que sejam dados exemplos, a intrepidez de uns alimentando a coragem dos outros. As histrias dos seis primeiros captulos de Daniel valorizam essa tica. Aos judeus dos anos 170, que tm dificuldades em permanecerem fiis s leis do Deus de Israel, diante da perseguio40.

    A primeira histria desta srie diz respeito s normas da alimentao no

    captulo 1 muito importante para os judeus ainda em nossos dias. Ser fiel a estas regras

    significa ser fiel a Deus. E, embora o rei Antoco tenha proibido os judeus de seguirem

    estas normas alimentares, a histria dos jovens exilados na Babilnia responde a essa

    situao ao demonstrarem diante de todos uma sade magnfica ao se alimentarem

    somente a base de legumes e gua.

    A segunda histria diz respeito ao sonho da esttua, cuja correspondncia

    recaiu sobre outro problema de Israel, o de ser submetido ao poderio poltico do

    momento. E a terceira histria diz respeito ao episdio dos jovens na fornalha ardente

    autenticando assim, duas afirmaes encontradas no livro de Daniel. A primeira

    afirmao de que o desobedecer das leis do rei Antoco poderia implicar em morte. A

    segunda de que este episdio sublinha a proteo divina nas circunstncias mais

    sombrias, narradas no captulo 3.

    Desta forma, tem-se o trmino desta primeira seo no captulo 6 onde, mais

    uma vez, Daniel refora esse difcil e conflituoso contexto. Neste captulo, ele nos

    apresenta a clebre histria de Daniel na cova dos lees.

    39SHEA, p.33. 40ASURMENDI, p.102.

  • 28

    O rei condenou-o a morte. No h escapatria. A fossa lacrada como um tmulo. E, entretanto, o jovem Daniel protegido pelo Deus de Israel que o salva de uma morte que j havia sido celebrada por seus inimigos; a alegoria clara. O povo viver, graas proteo de Deus, ainda que seus inimigos o conduzam ao suplcio41.

    Nessa primeira sesso, podemos observar ecos do mito do heri que segundo

    Campbell, possui um carter mais ou menos humano por meio do qual cumprido o

    destino do mundo. Isso, porque o heri, alm de ser um portador de mudanas tambm

    no teme a morte/tmulo42. Essas caractersticas ecoam nas histrias de Daniel. Pois seu

    livro descreve o sucesso do homem sbio da corte real, Daniel, que foi salvo no s por

    sua sabedoria mas tambm por sua capacidade de interpretar sonhos/vises cap. 2. No

    captulo 5 a promoo do sbio/heri Daniel novamente o resultado de seus poderes

    interpretativos. De acordo com Nickelsburg,

    Os heris so vtimas de conspiraes da corte. Acusados de violar a lei da terra e dos condenados morte, eles so resgatados e promovidos, e os seus inimigos, punidos. H novos elementos ou motivos que esto presentes em Daniel 3 e 6. Os heris so retratados como homens justos, cuja retido consiste especificamente em sua obedincia ao seu Deus. Os heris devem escolher entre obedecer a Torah ou obedecer a lei da terra. Por causa de sua escolha, eles esto condenados morte (cap.2). Pois, confiam em Deus (3:28, 6:23), e o destaque dado para interveno divina. Os decretos reais anunciam que Deus salvou seus servos e principalmente o seu poder e singularidade que aclamado43.

    A segunda seo deste livro traz consigo outra srie que se localiza entre os

    captulos 7-12, cujo foco as vises. Ou seja, a caracterstica de sbio-heri da nao

    descrita na primeira sesso d agora lugar caracterstica de sbio-visionrio para o

    povo da segunda sesso.

    41IDEM, p.103. 42CAMPBELL, Joseph. O Heri de Mil Faces. So Paulo: Pensamento, 1989, p.306. Cf. Campbell chegamos ao ponto no qual os mitos da criao passam a ceder lugar lenda tal como no Livro de Gnesis, depois da expulso do Paraso. A metafsica substitua pela pr-histria, que vaga e indistinta a princpio, mas aos poucos exibe preciso de detalhes (p.306). Nesta mesma obra o autor diz que o heri, que em vida representava a perspectiva dual, ainda , depois de sua morte, uma imagemsntese: tal como Carlos Magno, ele apenas dorme e se levantar na hora que o destino o determinar, ou est entre ns sob outra forma. (p.342). 43NICKELSBURG, p.53.

  • 29

    A partir do captulo 7 as experincias visionrias se evidenciam nas narrativas

    de Daniel. Neste sentido, Nickelsburg acrescenta que as vises de Daniel foram

    compostas em alguma ocasio entre a profanao do Templo por Antoco (dezembro de

    167) e a retomada do Monte do Templo por Judas, em 16444. Contudo, as aes nas

    vises de Daniel acontecem em dois nveis:

    o apocalipsista v a realidade em dois nveis separados, mas relacionados. Os eventos na terra tm suas contrapartes no cu, e vice-versa. Quando Antoco persegue os judeus, ele est desgastando seus patronos anglicos. Da mesma maneira, as aes na corte celestial tm repercusses na terra. Quando o julgamento acontece no cu, o rei terreno e seu reinado caem45.

    Assim, tm-se no primeiro nvel as bestas que aparecem, agem e so destrudas

    na terra. As quatro bestas so quatro reinos e a investidura significa que os santos do

    Altssimo recebero o reino e o possuiro para sempre. Um destaque aqui que embora

    existam amplas implicaes, o termo santo ou santificado, como freqentemente

    traduzido um nome tpico para os anjos; neste caso, indicam os justos.

    J no segundo nvel temos o relato de que a corte est no cu, e, l que aquele

    como um filho de homem exaltado (2c,4). Daniel, envolvido pela viso do captulo 7

    procura uma interpretao vinda de um membro da corte celestial (vv.15-6). Entretanto,

    sua interpretao inicial breve (vv.17-8).

    O captulo 8 apresenta uma diviso em sua narrativa, sendo elas a viso (vv.1-

    14) e a interpretao (vv.15-26). No verso 2 do captulo 9 o olhar est no refletir sobre o

    significado de que Jerusalm permaneceria desolada por setenta anos (Jr 25:11-12;

    29:10). Assim, a orao de Daniel por esclarecimento respondida por meio da

    apario de Gabriel que interpreta os setenta anos (9:21-7).

    Os captulos 10-12 explicam com mais detalhes todas essas informaes

    adquirida na primeira sesso. Nos mostra como o longo exlio de Israel alcanar seu

    clmax, os arrogantes pagos sero julgados e os justos sero libertados. Entre esses

    captulos, particularmente a passagem no fim no captulo 11 e o incio do captulo 12,

    44NICKELSBURG, p.172. 45IDEM, p.166.

  • 30

    oferecem um olhar diferente quanto aos mesmos eventos narrados em Daniel (2:31-

    45;2-27).

    Corroborando deste pensamento, Wright diz que qualquer judeu do Segundo

    Templo que ponderasse sobre o livro consideraria Dn 12:1-3 no uma idia nova e

    diferente, indita e imprevista, mas a culminao de tudo o que havia sido exposto

    antes46. Assim, Nickelsbrug apresenta a seguinte estrutura tpica das epifanias: Tem-se,

    (1) introduo circunstancial; (2) apario do revelador, 10:5-7; (3) a reao, 10:7b-10;

    (4) a restaurao da confiana 10:18-9; (5) mensagem ou comisso11:2b-2,3; (6) a

    concluso47. Assim, observamos que todos estes acontecimentos de Daniel culminam

    em nossa narrativa central (Dn12:1-3).

    1.4 O TEXTO DE DANIEL 12:1-3

    Todo esse contexto imediato de perseguio poltica/religiosa abre caminho

    para uma esperana futura dos justos ao descrever o tempo do fim (v.13). Este culmina

    aps um longo apocalipse, pois relata os acontecimentos que levaram ao eschaton

    (11:2-45). Assim, a anlise da ressurreio em nossa percope (12:1-3), ser atravs

    da estrutura de estrofes/versos, analisados separadamente48.

    v. 1 E naquele tempo se levantar Miguel, o grande prncipe, que se levanta a

    favor dos filhos do teu povo, e haver um tempo de angstia, qual nunca houve, desde

    que houve nao at quele tempo: mas naquele tempo livrar-se- o teu povo, todo

    aquele que for achado escrito no livro.

    dme[oh' lAdG"h; rF:h; laek'ymi( dmo[]y: ayhih; t[eb'W d[; yAG tAyh.mi( ht'y>h.nI-al{) rv

  • 31

    exrcito dos anjos do Senhor. Entretanto, sua funo como comandante no

    enfatizada49. Sua figura aparece envolvida nas narrativas histricas do captulo 10 e

    nas narrativas escatolgicas do captulo 12.

    No verso 1 do captulo 12, E naquele tempo se levantar Miguel, o grande

    prncipe, que se levanta a favor dos filhos do teu povo, ele mencionado como o

    grande prncipe defensor do sofredor povo de Deus. Esse retrato defensor de Miguel a

    Israel uma luta em seu nome contra o prncipe angelical da Prsia e da Grcia. E a

    teologia judaica antes, contempornea com, e depois de Daniel, atribu as figuras

    anglicas as funes judiciais de defensor e acusador dos justos. Desta forma, muitas

    vezes os dois anjos so apresentados como justapostos.

    Em alguns casos, esta tradio realizada no que claramente uma cena de tribunal. Em outros lugares isso no to clara. Os dois anjos nem sempre so figuras simples e unicamente judicial e, em alguns casos, eles so os chefes militares dos exrcitos angelicais. No entanto, no existe uma linha simples de desenvolvimento a partir de uma funo para a outra. Textos precoces e tardios testemunham a uma ou ambas as funes50.

    Nesse cenrio judicial, tanto o acusador quanto o defensor dos justos se fazem

    presentes de forma significativa. Por um lado, tem-se na esfera terrena o acusador

    tipificado por Antoco; por outro lado, tem-se na esfera celestial o defensor tipificado

    pelo anjo do Senhor. Ainda de acordo com Nickelsburg,

    Antoco no um rei comum. Sua poluio do templo se expressa no imaginrio do captulo 8, constituindo o assalto em si ao cu (vv.9-12). Esta insolncia descrita nos versos (11:36) em linguagem semelhante do mito "Lcifer" em Isaas (14). Talvez os judeus na poca de Daniel reconheceu Isaias (14), o mito do deus cado Athtar, identificando esse deus com um demnio chefe, e reaplicando o mito de um rei ranzinza que pareceu-lhes ser a personificao do anti-Deus. Muito mais tarde, o livro do Apocalipse, as repete com o mito de Lcifer. A existncia dessa figura principal identificada com o Sat, adversrio de Miguel51.

    49NICKELSBURG, p.11. (traduo nossa). 50IDEM, p.14. 51IDEM, pp. 14-5.

  • 32

    Assim, essa esperana futura da justia divina passa ser a locomotiva que

    conduz os justos na permanncia da f crist. Tendo como condutor desta tarefa o anjo

    Miguel.

    Supostamente falando durante o tempo de Ciro, o anjo sem nome descreve como ele e Miguel tem lutado com prncipe angelical da Prsia (10:13-20). Quando a Prsia cai, eles vo disputar com o prncipe da Grcia (vv. 20f). Ento vir o imprio selucida. Seus ltimos reis sero Antoco Epifnio. Sua morte descrita em (11:45). Isto seguido imediatamente por (12:1), E naquele tempo se levantar Miguel". Atividade de Miguel ter lugar no momento da morte de Antoco. Na verdade, Miguel defende os judeus contra Antoco ou, por analogia (10:13,20f.), contra o poder angelical que est por trs do trono selucida. A ltima batalha ser travada. O poder do esprito por trs de Antoco vai cair, e o rei ser morto. Ento o fim ser iniciado52.

    O prprio xodo descrito como uma batalha entre o prncipe mastema e o

    anjo da presena (48:9-19). O verso 1 segue dizendo que haver um tempo de

    angstia, qual nunca houve, desde que houve nao at quele tempo". Ou seja, a poca

    tumultuada do confronto entre o bem e o mal que ser nica na histria de Israel. A

    expresso et-sarah ocorre outras seis vezes no Antigo Testamento. Jeremias (30:7) o

    paralelo mais prximo de Dn 12:1. Tal expresso indica o momento da turbulncia que

    acontece Israel e a restaurao da comunidade na nova aliana.

    interessante observarmos que a analogia de outros textos neotestamentrios,

    tambm fortalece o entendimento de que Miguel defende Israel contra um adversrio

    angelical. Mas naquele tempo livrar-se- o teu povo [...]. Contudo, embora Miguel

    seja grande no os livra de terem de suportar o sofrimento; pelo contrrio, ele os livra

    em meio a ele (cf. Cap. 3 e 6). A sequncia narrativa diz que [...] todo aquele que for

    achado escrito no livro(12:1) [judeu-cristos] sero entregues a partir do momento de

    angstia. Ou seja, o perigo imediato a partir do qual as pessoas so entregues a

    invaso/imposio do rei; contudo, a libertao definitiva. Segundo Collins,

    52IDEM, p.14.

  • 33

    o motivo do livro parte da noo geral de livros celestiais corrente da antiga Sumria aos tempos do Novo Testamento, e alm. Um tipo de livros celestiais a lista dos eleitos. No incio, este rol simbolizava simplesmente pertena ao povo de Deus, mais tarde, passou a representar aqueles destinados para a vida eterna53.

    Ele fonte de eterna justia (9:24) e de vida eterna, palavras cunhadas pela

    primeira vez aqui no Antigo Testamento, embora outros autores expressem a convico

    de que o calor da comunho com Deus de que desfrutaram na terra no poderia terminar

    simplesmente com a morte (Sl. 16:11; 17:15; 73:23; 24: Is:26:19)54.

    Mas, quem poder ser achado nesta lista/livro? Os que sero entregues a morte.

    Estes so constitudos por dois grupos: pelos que sero preservados na morte fsica; e

    pelos que sero resgatados desta morte fsica para ressurreio.

    Nesta perspectiva, podemos dizer que nesse grande combate haver

    sobreviventes, apesar de uma grande perda de vidas. Por isso, esta lista/livro

    denominado de o livro dos vivos como em Salmos (69:28)55. Algumas passagens do

    Antigo Testamento se referem a um livro que contm os nomes dos justos. Por

    exemplo, em Isaas (4:2-6), e Malaquias (3:16-18), encontramos um registro de quem

    vai sobreviver ao julgamento de Deus, e viver como cidados da Nova Jerusalm/Israel.

    Esta noo de lista dos eleitos ocorre no Apocalipse como "o livro da vida". Este motivo de Apocalipse pode muito bem ter sido inspirado, pelo menos em parte, pelo motivo correspondente a Daniel (12:1). Os contextos de Apocalipse (3:5; 20:12,15 e 21:27), so anlogos ao de Daniel (12:1-3), e essa semelhana suporta a hiptese de influncia. De acordo com as passagens do Apocalipse citados, aqueles cujos nomes esto escritos no livro da vida, vo experimentar uma outra vida positiva56.

    Assim, o livro e Daniel conhecido como o livro da vida, ou o livro de quem

    vive; onde a viva nao aguarda o retomo da disperso quando Deus ir resgatar os

    israelitas, cujos nomes esto escritos no livro da vida. Todo esse contexto original do

    53COLLINS, p.110. 54NICKELSBURG, pp. 216-7. (traduo nossa) 55BALDWIN, p.215. 56COLLINS, pp. 110-11.

  • 34

    livro de Daniel atribudo por alguns intrpretes ao perodo Macabeu devido os seus

    muitos combates em prol dos justos.

    Para eles, a peculiaridade dominante que caracterizava e movia seus combates

    era a crena na essencialidade de ver a justia sendo aplicada em seu contexto imediato.

    E essa necessidade ocorria porque nos massacres gerais, tanto bons como maus haviam

    perecido. Neste sentido, Bowker diz:

    O livro de Eclesistico, escrito no muito tempo antes da crise dos Macabeus, mantm-se bem dentro dos limites da expectativa bblica mais geral: reitera o ponto de vista de que a retribuio ocorre nesta vida (3:26; 9:12 [17]; 11:26-8; 12:1-7) e que por outro lado os justos so recompensados aqui e agora (2:10s), particularmente sendo preservados do Xeol (51:6[8]ss)57.

    Com exceo dos (judeus) cristos os demais grupos pagos (caracterizados

    pelos no cristos) acreditavam que a vida era o aqui e o agora. Esse pensamento

    contraria a mortificao o ascetismo muito difundido nos primeiros sculos, mas

    encontra espao nas escrituras do cristianismo primitivo que encoraja seus fiis a

    tirarem pleno prazer de seus dias (Ec 9:7-10).

    Todas as coisas boas acontecem para o homem entre o seu nascimento e sua morte, e a prtica da religio registrada ao aqui e agora. Haja vista que s os vivos louvam o nome do Senhor (Is. 38:19), o valor dos dias desta vida inestimvel. Como se esperava que a devoo fosse recompensada antes da morte, os sbios do Antigo Testamento pregavam uma espcie de hedonismo, consistindo em comer, beber e no bem estar (Ec.3:13)58.

    Assim, no foi sem precedentes que Daniel escreveu seu livro em meio crise

    dos Macabeus, intentando sustentar nos fiis a esperana de que seriam recompensados

    aps a morte. Nesta perspectiva, podemos dizer que Daniel traz em seu imaginrio ecos

    de Eclesiastes e Macabeus sobre a justia dos justos. Mas a transcende quando anuncia

    que esta justia ser aplicada no futuro pelo divino e no no presente pelos homens

    57BOWKER, p. 77. 58VERMES, p.15.

  • 35

    Neste sentido, temos no livro de Ezequiel (37:1-10) o relato da viso de ossos

    secos que, por meio de palavras proferidas por esse profeta, tornaram a viver. Neste

    sentido, podemos enxergar metaforicamente neste texto imagens que ocultam a

    promessa de uma regenerao poltica e religiosa da nao de Israel. Semelhantemente,

    tem-se em (Is. 24-7) um texto visionrio que tambm descreve a vida aps a morte,

    mas, aparentemente de forma diferente. Contudo, ambas tambm representam, mesmo

    que indiretamente, a linguagem da ressurreio no Antigo testamento.

    [...] se as idias da ressurreio sustentavam mesmo um carter metafrico em Isaias e Ezequiel, poucos sculos mais tarde, com o surgimento da literatura apocalptica, a metfora dar lugar formao de uma crena nas obras de certos autores, assumindo fora literal em escritos mais prximos ao fim da Era Comum. Esta mudana pode ser percebida de modo especial em Daniel 12, que parece combinar os textos de Ezequiel 37 3 Isaas 24-27:66 para formar um relato inteiramente novo, onde os justos e injustos que dormem no p da terra sero trazidos novamente vida, os primeiros para uma existncia restaurada e os ltimos para o desprezo e vergonha eterna59

    O interessante que essa mensagem foi expressa por ele num novo formato ao

    utilizar a linguagem apocalptica com imagens simblicas ao transmiti-la (7:13s).

    Contudo, um parntese aqui se faz necessrio, a de que o termo apocalptico e

    escatolgico no quer dizer a mesma coisa, embora estejam enquadradas no mesmo

    campo semntico.

    Em suma, podemos dizer que a diferena est em que o apocalipse retrata as

    espaciais realidades sobrenaturais, o que sempre envolve a atividade de seres de outro

    mundo sejam eles angelicais ou demonacos. Tendo como elemento constante a

    existncia de um mundo, alm do que se acessvel humanidade por meios naturai, j

    a escatologia tem como aspecto mais consistente a vida aps a morte.

    Assim entendemos que Daniel traduz em suas narrativas todo esse contexto do

    fim dos tempos na esteira da grande batalha entre as foras pags; e a nao judaica

    socorrida pelo exrcito de Miguel, o grande prncipe celestial. Pois, os dois pontos

    59SOARES, E A. Variaes Sobre a Vida Aps a Morte. 2006. 56 f. Tese (Mestrado em Cincias da Religio) Universidade Metodista de So Paulo.

  • 36

    fundamentais de sua mensagem apocalptica e escatolgica se concentram na morte e na

    ressurreio.

    v. 2 E muitos dos que dormem no p da terra ressuscitaro, uns para vida

    eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno.

    hL,aew> ~l'A[ yYEx;l. hL,ae WcyqI+y" rp"['-tm;d>a; ynEveY>mi ~yBir:w> 2 s `~l'(A[ !Aar>dIl. tApr"x]l;

    Primeiramente, analisaremos nesta narrativa a morte. Podemos dizer que a

    morte uma vida de sentido nico, na qual os detrs podem segui-la, mas os da frente

    no podem retornar. Davi demonstra isso na narrativa da morte de seu filho com Bate-

    Seba em (2Sm.12:23). Posso eu traz-lo de volta? Posso ir at ele, mas ele no

    retornar para mim. A tenso entre vida e morte, nos remete as narrativas de (Gn.

    2:17, 3:3 e 3:22), onde o comer da rvore do conhecimento resultar em morte.

    Entretanto, mesmo aps o primeiro casal t-lo feito, continua a possibilidade de

    se comer do fruto da rvore da vida e assim viver para sempre. provvel que esse

    imaginrio da eternidade, tenha se mantido na cabea do israelita desde os primeiros

    tempos; pois esta narrativa (v.2) transmite uma analogia com o mito da criao. A

    expresso o p da terra, descrita por Daniel lembra Gn 3. O que pode sugerir que

    este captulo estava na mente do autor ao escrever Dn 12:1-3. Neste sentido, Wright diz:

    Morte significa que o corpo volta para o p e que o flego de vida volta para Deus que o deu; o que no quer dizer que uma parte imortal da pessoa ir viver com Deus, mas que o Deus que soprou o flego de vida nas narinas humanas simplesmente o tomar de volta. [Ec.12:7; cf. Sl. 104:29]60.

    interessante observarmos que, embora a morte seja um fato natural da vida

    pelo qual todo ser que respira passar, muitos so os que no conseguem administr-la.

    60WRIGHT, p.161.

  • 37

    No contexto judaico de Daniel entendia-se que ningum podia escapar dela, tampouco

    era possvel quebrar seu poder depois que se havia chegado, pois ela era oponente.

    Essa oponncia causava divises sobre a questo da ressurreio no ps- morte.

    Segundo Wright, o mundo antigo se dividia entre aqueles que afirmavam a

    impossibilidade da ressurreio, embora podendo t-la desejado, e aqueles que diziam

    no querer que ela acontecesse, sabendo que ela no podia acontecer, no fim das

    contas61.

    Neste sentido, Nickelsburg diz que a estrutura do judasmo proftico popular

    em que a cura dos doentes ocupava um lugar importante, o fenmeno da ressurreio, a

    restaurao vida de uma pessoa recentemente falecida, de modo algum parecia estar

    fora do lugar62. Neste sentido, um parntese se faz necessrio. que, ao mesmo tempo

    em que a escritura hebraica afirmava que a morte e o Sheol so destinos inevitveis da

    espcie humana; ela tambm registra excees a regra.

    Os livros de Reis recontam como os profetas milagreiros, Elias e Eliseu

    trouxeram de volta a vida dois meninos; e que essas histrias de revificaes eram reais,

    pois ocorriam no tempo e no espao. Contudo, essa ressurreio era temporria, o que

    posteriormente, implicaria novamente na experincia mstica da morte. Mas, alm desta

    ressurreio, a transferncia do morto para o mundo supra-terrestre prov outro meio de

    iseno ao destino comum da humanidade, a assuno63 e a ascenso64. Ou seja; uma

    pessoa pode ser levada diretamente ao cu, contornando inteiramente a morte; ou depois

    de uma revificao quase instantnea, aps a morte. Antes de Jesus, a Bblia hebraica

    cita dois casos de transferncia direta.

    Uma aluso referida assuno do patriarca antediluviano Henoc, cuja

    referncia, est em Gnesis (5:24): Henoc andou com Deus, depois desapareceu, pois

    Deus o arrebatou. A segunda parte deste verso explicada por alguns intrpretes como

    a transferncia viva de Henoc dentre os filhos dos homens, posicionando-o em uma

    localizao imprecisa; ou seja; em algum local entre o cu e a terra. 61WRIGHT, p.139. 62VERMES, p.43. 63A palavra assuno significa: ato ou efeito de assumir; ascenso a posio hierrquica superior; subida do corpo de Maria ao cu. (VILLAR, M S; FRANCO, F M M. Dicionrio Houaiss, Rio de Janeiro, 2007, p.325). 64A palavra ascenso significa: ato ou efeito de ascender, acendimento, elevao; qualidade ou estado do que est em ascendncia, movendo-se para cima; acesso ou elevao a cargo ou categoria superior, promoo; elevao das almas para o cu, ou esp. a subida ao cu de Jesus Cristo ressuscitado. (VILLAR, M S; FRANCO, F M M. Dicionrio Houaiss, Rio de Janeiro, 2007, p.313).

  • 38

    Outras interpretaes o situam firmemente no reino celestial. Contudo,

    independente da posio que cada intrprete adote, a Bblia hebraica identifica Henoc

    como o primeiro humano a ser poupado de descer ao Sheol. Assim, ele no precisou da

    ressurreio, pois foi transferido vivo ao paraso ou cu.

    A outra referncia dirigida ao profeta Elias (2Rs.2:1-12). Nela, o narrador

    bblico tambm descreve sua elevao viva esfera celestial testemunhada por seu

    discpulo Eliseu, herdeiro de seu esprito e de seu manto milagroso. Elevado num carro

    de fogo, Elias foi puxado por cavalos de fogo e meio turbilho. De acordo com

    Vermes,

    a tradio judaica bblica e ps-bblica sustenta a realidade da elevao de Elias, pois atribui ao profeta uma importante funo escatolgica: a preparao do dia do Senhor pela reconciliao entre pais e filhos (Ml. 3:23; Ec. 48:10). Com efeito, o prprio Jesus foi associado por alguns dos seus contemporneos com o novo Elias (mc.8:27; Mt.16:14; Lc.9:19), e os prprios evangelistas reconheciam Joo, o Batista, como Elias redivivus (Mc.1:2; Mt.11:10; Lc.7:27)65.

    A tradio judaica tambm acrescenta duas figuras bblicas a quem lhes atribui

    assuno e ascenso. So eles: Moiss e Isaas. No caso de Moiss, Deuteronmio 34:5,

    afirma que ele morreu depois de ter tido permisso de ver a terra prometida do alto do

    Monte Nebo, na Transjordnia. E no h referncia do local de seu sepultamento.

    Contudo, Vermes diz que o apcrifo da Assuno de Moiss relata que aps ter sido

    posto em seu repouso pelos anjos e por Deus, o corpo de Moiss foi vivificado e

    elevado aos cus. J o apcrifo Ascenso de Isaas narra em detalhes a viagem do

    profeta para as alturas aps sua execuo assim como Henoc antes dele, e foi levado por

    um anjo atravs dos sete cus (captulos 7-9)66.

    Assim, Moiss e Isaas e Jesus so retratados passando pela morte, ressurreio

    e ascenso; enquanto que Henoc e Elias so descritos circundando a morte e

    experimentando apenas assuno, sem ressurreio. A ressurreio ligada ascenso

    dos justos a que Daniel proclamou em sua mensagem.

    65VERMES, p.45. Grifo do autor. 66IDEM, p.47.

  • 39

    Porm, isso s foi compreendido a partir de um fenmeno histrico e sem

    precedente ocorrido entre os judeus, no perodo dos Macabeus, o martrio. Este foi

    caracterizado pela disposio dos fiis em sacrificar suas prprias vidas, em vez de

    negar sua f mediante perseguio. Desta forma, este fenmeno abriu uma nova

    hermenutica acerca da ressurreio. Vermes tambm afirma que para os cristos,

    sua morte no foi uma punio por trair a Lei; ao contrrio, eles morreram por sua dedicao a ela, e essa novidade revolucionria abriu a porta para uma representao nova da vida aps a morte, imaginada a partir de ento seja como uma sobrevivncia da alma imortal ou como a ressurreio do corpo67.

    Em outras palavras, podemos dizer que houve um auto-sacrifcio coletivo,

    combatido em nome dos cus, e o martrio individual infligido aos justos pelos

    descrentes, como punio por seu apego a religio judaica, dando vida ao ensinamento

    da ressurreio corprea dos mortos68.

    Assim, nos sculos subseqentes ao exlio babilnico, uma imagem diferente

    do sono eterno sem sonhos da morte resplandece no horizonte religioso judaico. Onde, a

    vitria sobre o Sheol foi revelada na reanimao dos corpos mortos dos virtuosos.

    Isaias diz, Mas os teus mortos vivero, os seus cadveres ressuscitaro. Despertai e

    exultai, os que habitais no p [...] (26:19). Quanto aos Senhores inquos de eras

    passadas, o livro de Isaias diz que colhero a destruio, e suas memrias sero

    apagadas para sempre, como justa recompensa (26:13-4).

    Aqui, um parntese se faz necessrio. a compreenso de que neste contexto

    de Daniel a ressurreio corprea dos mortos repousa sobre o princpio escatolgico da

    unidade, corpo e alma. Ou seja, os hebreus no faziam distino entre corpo e alma,

    mas o pensavam como unidade: no tinha alma, eram alma, um corpo misturado a uma

    67VERMES, p.39. 68Num resumo bastante simplificado, podemos dizer que a ressurreio passou-se de uma idia mais vaga sobre mortos que repousam para sempre num lugar sombrio e longe de Yahweh (o Sheol) no perodo pr-exlio, para uma noo elaborada, envolvendo ressurreio, imortalidade, angelificao etc. no perodo do Segundo Templo. Cf. SOARES, Eizangela A. Variaes sobre a vida aps a morte. 2006. 74 f. Tese (Mestrado em Cincias da Religio) Universidade Metodista de So Paulo.

  • 40

    nefesh, o que talvez pudssemos chamar de pessoa ou personalidade ao invs de

    simples sopro de vida69.

    Contudo, Daniel torna a ressurreio universal e inicia este verso 2 com a

    expresso muitos. Entretanto, importante enfatizar que seu uso no hebraico no

    totalmente paralelo ao seu uso no portugus. De acordo com Collins,

    O hebraico rabbim, muitos, tende a significar todos, como em Deuteronmio (7:1); Isaas (2:2) onde todas as naes se torna muitos povos no paralelo do (v.3); e em Isaias (52:14, 15; 53:11,12), onde esta palavra-chave ocorre nada menos do que cinco vezes, sempre com significao inclusiva. Como o profeta Jeremias, a palavra hebraica kol, tudo, todos significa ou totalidade ou soma; no h palavras para tudo como um plural. Em lugar desta temos rabbm, que aqui vem ento a significar a grande multido, todos; cf. multides que dormem no p da terra [...]70.

    Neste sentido, entendemos que a ressurreio ser para todos, vindo aps ela, o

    julgamento divino que ir justificar os justos e lanar para a terra do esquecimento os

    mpios. De acordo com Isaas seus malfeitores mortos ficaro mortos: [...] no sobem

    para serem julgados (26:14). Ou seja, o ressuscitar neste contexto um meio pelo qual

    todas as partes envolvidas so levadas a julgamento. Mas, este julgamento no ser

    somente com aqueles que estiverem vivos no momento do julgamento, mas tambm

    com algumas pessoas mortas que ele trar a vida porque esta ressurreio est a servio

    do juzo. Neste sentido, Vermes afirma:

    A ressurreio universal, concedida tanto aos vitoriosos quanto aos inquos, prenuncia em Daniel a imagem da cena escatolgica adotada pelo judasmo (e pela cristandade), na qual os mortos ressuscitados esperam o ltimo julgamento de Deus. Mas h uma alternativa na qual a revificao reservada apenas aos justos e negada aos descrentes71.

    Observamos que a linguagem da ressurreio-julgamento em Daniel est

    estreitamente relacionada com Isaias (26:19). Contudo, este fala apenas de uma

    69SOARES, p.36. Grifo do autor. 70COLLINS, pp.110-11. 71VERMES, p.53.

  • 41

    ressurreio dos justos, enquanto que Daniel, fala de uma ressurreio dupla: dos

    mpios e dos justos, ou seja, "uns para a vida eterna, e outros para o desprezo eterno"

    (12:2b).

    Isso porque, de segundo Nickelsburg, para Isaas a ressurreio dos justos

    em si mesma justificativa para os justos, no havendo punio para os mpios que j

    esto mortos72. Mas, para Daniel, a ressurreio um meio pelo qual tanto os justos,

    como os mpios mortos, esto habilitados a receber a respectiva justificao ou

    condenao. Pois, ele entendia que tanto a restaurao quanto a ressurreio so partes

    do juzo divino.

    A expresso os que dormem neste texto retrata os mortos. Talvez, a razo

    para usar dormir como metfora para morrer que o sono um estado temporrio

    do qual normalmente despertamos, estando assim o leitor preparado para a idia da

    ressurreio73. Entretanto, importante entender que a metfora adormecidos ou

    dormir j se difundia bastante em perodos histricos anteriores, especialmente no

    Egito. O termo dormir seqenciado pela expresso no p da terra, que indica a

    localidade deste estado de sono, o Sheol74.

    Era natural, por conseguinte, prolongar a metfora utilizando o despertar

    para compreender que a ressurreio corprea no um tipo diferente de

    adormecimento, mas seu trmino. Esta no , propriamente, uma idia acerca de outro

    mundo, mas um bem em relao a este mundo75. A partir de agora, nossa

    concentrao ser na figura de Daniel que, como sbio, profeta, heri e visionrio,

    conduz a nao de Israel a esperana futura da ressurreio dos mortos.

    v. 3 Os que forem sbios, pois, resplandecero como o fulgor do firmamento; e

    os que a muitos ensinam a justia, como as estrelas sempre e eternamente.

    72NICKELSBURG, p.20. (traduo nossa). 73BALDWIN, p.216. 74Conforme Daniel (12:2), o Sheol apresentado como um lugar de deserto, um lugar de p, para o qual as criaturas feitas de p retornam. Isaas (14:18s), flui o pensamento sobre o Sheol descrito como uma morada mtica das sombras; e tambm como a realidade fsica da sepultura, onde contm pedras, vermes e larvas. 75Assim, EICHRODT, W. Theology of the old Testament. 2 vols. OTL. London: SCM Press; Philadelphia: Westmister. 1961-7, vol. 2, p. 514. Eichrodt na (pg. 513) sugere que a presente declarao to breve porque na poca em que Dn. 12 foi escrito a idia era bem conhecida; tal teoria pelo uso do (primitivo) Enoque aramaico. Ibid. In: WRIGHT, p.176. Grifo do autor.

  • 42

    ~ybik'AKK; ~yBir:h'( yqeyDIc.m;W [:yqI+r"h' rh;zOK. WrhIz>y: ~yliKif.M;h;w> 3 p `d[,(w" ~l'A[l.

    O autor inicia esta frase com a expresso os que forem sbios indicando assim que

    estes possuam um papel peculiar em sua mensagem. Ele afirma que a funo do sbio

    durante a perseguio dos justos o habilitava para uma glria especial no fim dos

    tempos. Mas, como era vista a figura do sbio neste contexto? Segundo Nickelsburg,

    O hiphil do verbo skl pode ser usado como transitivo para significar "instruir". O substantivo maskl era um ttulo dado a um professor. O hiphil de sdq usado no sentido de algum que leva no caminho da justia. Assim, as duas metades deste versculo, que esto em paralelismo, sem dvida, referem-se s mesmas pessoas, a saber, os professores "sbios" da comunidade hassdica, que por sua instruo traziam muitos para a justia 76.

    Assim, a figura do sbio era equiparada a figura do professor-mestre, cujo

    objetivo era instruir e conduzir em sabedoria e conhecimento, seus seguidores (nesse

    caso, os justos) a ressurreio dos mortos.

    Daniel acrescenta nesse verso (2) o sentido de que a ressurreio no

    simplesmente uma ressurgir na qual os mortos retornaro a uma vida muito parecida

    que tinha antes. Mas, que sero ressuscitados a um estado de glria no mundo, no qual o

    melhor paralelo a condio das estrelas, do sol, da lua dentro da ordem criada.

    Segundo Wright,

    As smiles de Dn 12:3 indicam no que os justos e os sbios brilharo e irradiaro como estrelas, mas que, na ressurreio, eles sero lderes e governadores na nova criao de Deus. As imagens, postas no contexto bblico, que sem dvida o mundo elementar no qual se deve entender o que o autor queria dizer, indicam uma compreenso real77.