anais ii enapehc

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Fábio Freitas; Francismary Alves da Silva; Frederik Moreira dos Santos; Gabriel da Costa Ávila; Gustavo Rodrigues Rocha; Nilton de Almeida Araújo; Paloma Porto Silva; Thiago Hartz (Organizadores) Universidade Federal da Bahia - UFBa Salvador 29 de novembro a 02 de dezembro de 2011 Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das Ciências ENAPEHC 2011 ISBN: 978-85-62707-30-8

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Fábio Freitas; Francismary Alves da Silva; Frederik Moreira dos Santos; Gabriel da Costa Ávila; Gustavo Rodrigues Rocha; Nilton de Almeida

Araújo; Paloma Porto Silva; Thiago Hartz (Organizadores)

Universidade Federal da Bahia - UFBa Salvador – 29 de novembro a 02 de dezembro de 2011

Anais do II Encontro Nacional dePesquisadores em História das Ciências –

ENAPEHC 2011

ISBN: 978-85-62707-30-8

SUMÁRIO

Prefácio..........................................................................................03

Textos completos em ordem alfabética.........................................06

Organização, Realização e Apoio................................................305

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC

2011. Salvador: UFBa / UEFS / UFMG, 2012. ISBN: 978-85-62707-30-8

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PREFÁCIO

Nos últimos anos, o número de Programas de Pós-Graduação e de Grupos de Pesquisa

relacionados à História das Ciências se multiplicou por todo o Brasil. Com o intuito

de estimular o diálogo entre os jovens pesquisadores e contribuir para as suas

formações, foi realizado, em 2010, na Universidade Federal de Minas Gerais, o I

Encontro Nacional de Pesquisadores em História das Ciências (I ENAPEHC). Dando

continuidade à proposta de fazer interagir os pesquisadores interessados na temática,

foi realizado o II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das

Ciências (II ENAPEHC). Destinado principalmente a estudantes de doutorado,

mestrado, iniciação científica e recém-doutores, o II ENAPEHC teve lugar na

Universidade Federal da Bahia, em Salvador, entre os dias de 29 de novembro a 02 de

dezembro de 2011.

O encontro se propôs a realizar um duplo objetivo: formativo e dialogal. Depois das

intensas atividades ocorridas durante o evento – apresentações de trabalhos, debates,

mini-cursos, sessão de painéis, conferência de abertura e mesa-redonda de

encerramento – acreditamos que esses objetivos foram satisfatoriamente

contemplados. Os participantes do evento, alunos de graduação e de pós-graduação,

professores, técnicos, pesquisadores e acadêmicos, são provenientes de diversas áreas

do conhecimento, reforçando a multiplicidade característica da História das Ciências.

Assim, estiveram presentes participantes de áreas como a Biologia, a Química, a

Filosofia,a Educação Física, a História, a Antropologia, a Física, a Sociologia, a

Matemática, entre outras. A consolidação de um espaço de diálogo entre essas

diversas disciplinas é uma conquista do II ENAPEHC e um compromisso contínuo do

evento.

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC

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No II ENAPEHC, recebemos uma quantidade expressiva de trabalhos, advindos de

diversas regiões do Brasil. Ao todo, foram selecionados quarenta resumos para

apresentação de trabalhos e quarenta e cinco resumos para painéis. Inicialmente, as

apresentações orais ocorreriam em uma única sessão plenária. No entanto, devido ao

grande número de apresentações, impossível de acomodar no tempo disponível, a

Comissão Organizadora decidiu por dividir as apresentações em sessões temáticas que

ocorreram paralelamente. Essas sessões foram: Abordagens e debates em História

das Ciências 1, Interdisciplinaridade e Ensino de Ciências, História da Física no

Século XX, Ciências da Saúde no contexto brasileiro, Eugenia e demografia,

Abordagens e debates em História das Ciências 2, Abordagens e debates em

História das Ciências 3 e Práticas e profissionalização das Ciências. Além das

apresentações e painéis, o ENAPEHC contou com a conferência de abertura da

professora Ana Carolina Vimieiro Gomes (UFMG) e com mesa-redonda de

encerramento intitulada “História, Ciências e História das Ciências: fronteiras e

tensões disciplinares”, com participação dos professores Carlos Ziller Camenietzki

(UFRJ), Flavio Coelho Edler (FIOCRUZ) e da professora Maria Margaret Lopes

(MAST).

A programação teve ainda a realização de dois mini-cursos, com duração de seis horas

cada um. O mini-curso “Wittgenstein e a Ciência” foi ministrado pelo professor

João Carlos Salles (UFBA) e por seu orientando, Bruno da Mata Rodrigues. O mini-

curso “A História da Ciência por meio da Iconografia” foi ministrado pelo

professor Amílcar Baiardi (UFRB/UFBA).

Como resultado final do evento, apresentamos os Anais do II Encontro Nacional de

Pesquisadores em História das Ciências / ENAPEHC. Com essa publicação,

esperamos contribuir para a circulação dos trabalhos de História das Ciências e

mostrar o amadurecimento acadêmico de uma comunidade em franca expansão no

Brasil.

Inteiramente organizado por alunos de pós-graduação e recém-doutores, a segunda

edição do ENAPEHC ocorreu sob os auspícios do Programa de Pós-Graduação em

Ensino, Filosofia e História das Ciências (da Universidade Federal da Bahia e da

Universidade Estadual de Feira de Santana) e do Scientia - Grupo de Teoria e História

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da Ciência da Universidade Federal de Minas Gerais. Contou ainda com o apoio da

Sociedade Brasileira de História das Ciências e do Programa de Pós-Graduação em

História da UFMG.

Por fim, a Comissão Organizadora agradece ao Programa de Pós-Graduação em

Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA/UEFS) e ao Scientia pela realização

do II ENAPEHC. Agradece também à Sociedade Brasileira de História das Ciências e

ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMG pelo constante apoio. Em

especial, gostaríamos de agradecer aos professores convidados e aos professores

colaboradores que, desde o início de nossa jornada, se dispuseram gentilmente a

participar do II ENAPEHC, fazendo do mesmo um evento de representatividade

nacional. São eles: Carlos Ziller Camenietzki (UFRJ), Flavio Coelho Edler

(FIOCRUZ), Maria Margaret Lopes (MAST), Ana Carolina Vimieiro Gomes

(UFMG), João Carlos Salles (UFBA), Amílcar Baiardi (UFBA/UFRB), Olival Freire

Jr. (UFBA), José Carlos de Barreto Santana (UEFS), André Luís Mattedi Dias

(UFBA), Kátia Gerab Baggio (UFMG), Betânia Gonçalves Figueiredo (UFMG),

Mauro Lúcio Leitão Condé (UFMG).

Esperamos que essa segunda edição do Encontro Nacional de Pesquisadores em

Histórias das Ciências tenha cumprido seus objetivos e rumado em direção à

consolidação de um espaço de constante interação e aprendizado para os jovens

pesquisadores em História das Ciências e áreas afins.

Fábio Freitas

Francismary Alves da Silva

Frederik Moreira dos Santos

Gabriel da Costa Ávila

Gustavo Rodrigues Rocha

Nilton de Almeida Araújo

Paloma Porto Silva

Thiago Hartz

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TAL CIÊNCIA, QUAL HISTERIA? REFLEXÕES SOBRE O DIÁLOGO ENTRE

LITERATURA E CIÊNCIA NO SÉCULO XIX1

Alessandra Mara Vieira

Mestre em Estudos Literários pela

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

[email protected]

Resumo

A proposta do trabalho intitulado “TAL CIÊNCIA, QUAL HISTERIA?” é o estudo de como

a literatura nacional, em especial a literatura Naturalista, problematiza as discussões e certo

imaginário sobre ciência. A partir do romance O homem, de Aluísio Azevedo – da

composição de suas personagens e dos diálogos empreendidos por elas –, buscamos

depreender como a obra de Azevedo dialoga com os debates históricos sobre imaginário

científico e saúde metal. Sem perder de vista a especificidade dos arranjos dos discursos

científico e literário, trata-se de perceber como o texto literário absorve as idéias em debate

sobre a histeria e saúde mental.

Palavras-chave: histeria, Aluísio Azevedo, O homem.

O romance O homem, de Aluísio Azevedo, publicado em 1887, embora, de certa

forma, apresente o desdobramento e evolução da histeria, não é uma obra que intente ser um

documento histórico sobre o regime hospitalar no Brasil, dos estudos de temperamento ou de

qualquer outra discussão social. O próprio Aluísio Azevedo, quando questionado pelo amigo

Alcides Flávio sobre “erros” em efeitos de medicamentos na sua obra literária, respondeu que

“o romance não é uma dissertação inaugural de medicina” (MALARD, 2003:215).

Em Literatura e Sociedade, Antonio Cândido ressalta a necessidade da

consciência sobre o que ele chama relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico

estabelece com a realidade. Tratando exatamente do romance O homem, o crítico afirma que

esta liberdade “mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que às

vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva; de tal

maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição metódica”

(CÂNDIDO, 2006:21).

1 O título deste artigo é uma referência ao livro de Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance?, publicado pela

Achiamé, Rio de Janeiro.

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Assim, sem ignorar o caráter literário e ficcional, o objetivo deste trabalho é o de

realçar como o texto literário em questão problematiza as discussões da época e certo

imaginário sobre saúde mental. A analogia possível do texto naturalista ao referente

extratextual, além de pertinente, é necessária para a compreensão de como a obra de arte

dialoga com os debates históricos, sem que essa análise perca de vista a especificidade dos

arranjos dos discursos científico e literário. Buscaremos não cair nos extremos para os quais

chama a atenção Antonio Cândido: ou se relaciona obra e condicionamento social – em que o

aspecto social se torna chave para a compreensão da obra – ou se entende essa relação como

falha de visão do crítico. Nenhum dos dois extremos respeita, como ele diz, a integridade da

obra; buscaremos atingir, como sugere Cândido, a fusão entre texto e contexto “numa

interpretação dialeticamente íntegra” (CÂNDIDO, 2006:13), em que o social seja visto como

elemento que desempenha papel na constituição da estrutura da obra.

A relutância de José Veríssimo e de Lúcia Miguel-Pereira em relação aos estudos

de temperamento, presentes em romances como O Homem, de Aluísio Azevedo, está ligada

ao que seria uma possível falta de preocupação em relação aos problemas da pátria, aqui

entendidos por eles como critério de valor literário. Para Lúcia Miguel-Pereira, o Naturalismo

foi-nos imposto pela moda e mal assimilado pelos romancistas que o teriam praticado

“sempre como quem executa uma receita” (MIGUEL-PEREIRA, 1988:122). Segundo ela, “o

sexo, que dantes fôra banido das narrativas, entrou a ocupar uma posição exagerada (...). O

determinismo biológico então em voga e as lições de Charcot sôbre a histeria transformaram,

efetivamente, em fêmeas os antigos anjos” (MIGUEL-PEREIRA, 1988:30).

Em seu livro Tal Brasil, qual romance?, Flora Süssekind discorda dessa posição e

não acredita que o Naturalismo no Brasil tenha seguido uma receita; para ela quando “há a

apropriação de elementos culturais estrangeiros é porque correspondem a algum vazio

existente na cultura que os acolhe” (SÜSSEKIND, 1984:58), além disso, acredita ainda que

sempre há uma imediata tradução, via de regra, pouco inocente. Nos casos de alcova, talvez

“os vestígios das condições históricas e do panorama intelectual brasileiros no século XIX não

estejam tão „nítidos‟ quanto em textos que funcionem como claramente documentais daquilo

que se toma por nacionalidade brasileira” (SÜSSEKIND, 1984:123), mas os estudos de

temperamento seriam exemplos da ligação estreita entre literatura e ciência que se configura

no Naturalismo.

A preferência pelos estudos de comportamento está muito mais próxima das

mudanças sociais do nosso país do que aparenta. Além da criação, em 1881, da cadeira de

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psiquiatria na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, é também nessa época que surgem os

primeiros trabalhos sobre alienação. Além disso, a imprensa já noticiava temas como loucura

e hospício e, no fim de século, aparecem as críticas cada vez mais acirradas e difundidas ao

regime hospitalar e sanitário em vigor e a luta por uma medicalização mais ampla e radical da

sociedade brasileira.

O debate sobre as questões do regime hospitalar chega à imprensa através dos

jornais O Paiz e Diário Oficial que “publicam artigos do médico João Carlos Teixeira

Brandão, nos quais ele denunciava a situação dos loucos no Brasil e apontava a insuficiência e

o isolamento do Hospício de Pedro II na paisagem social” (MACHADO, 1978:480). Mas o

debate é mais antigo: desde 1830 surgiram as primeiras manifestações de desaprovação em

relação à situação dos loucos no Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

Para os autores de Danação da Norma, o próprio conceito de loucura dos

primeiros textos científicos brasileiros sobre alienação tem forte influência européia; também

a obra citada de Flora Süssekind demonstra como os textos naturalistas, produzidos no Brasil,

sofreram forte influência da literatura de Zola. Apesar disso, os estudos de temperamento na

literatura brasileira faziam ecoar uma preocupação com um debate nacional sobre o regime

hospitalar e as formas de compreensão das doenças psiquiátricas.

Além dessas motivações, “a boa recepção da escola naturalista e do cientificismo

correspondia ao crescimento acelerado de uma pequena burguesia urbana (...) em busca de

uma maior influência política e cultural, em meio às transformações sociais que se

processavam no país” (MACHADO, 1978:480). Essa busca de influência da burguesia

termina por se configurar na popularidade dos temas dos naturalistas, sobre o que José

Veríssimo se manifesta da seguinte forma: “Os seus assuntos prediletos, o seu objeto, os seus

temas, os seus processos, a sua estética, tudo nele estava ao alcance de tôda a gente, que se

deliciava em se dar ares de entender literatura discutindo livros que traziam tôdas as

vulgaridades da vida ordinária e se lhe compraziam na descrição minudenciosa.”

(VERÍSSIMO, 1963:260)

Na Europa, em meados dos anos oitenta do século XIX, com Jean-Martin Charcot,

começava uma mudança paradigmática em relação ao conhecimento da histeria e das demais

neuroses. Segundo Sigmund Freud, com o médico francês Charcot, “a mais enigmática de

todas as doenças nervosas, para cuja avaliação a medicina ainda não achara nenhum ângulo de

enfoque aproveitável, acabara então de cair no mais completo descrédito” (FREUD, 1986:27).

Foi em 1881 que o governo francês criou uma Cátedra de Neuropatologia na Faculdade de

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Medicina da Universidade de Paris e também uma clínica, com departamentos científicos

auxiliares, no Hospital de Salpêtrière, oportunidade em que, segundo Freud, Charcot teria

promovido a “restauração da dignidade desse tópico” (FREUD, 1986:27). Para o médico

alemão, Charcot colocou o peso da autoridade de seu nome “em favor da autenticidade e

objetividade dos fenômenos histéricos” (FREUD, 1986:27). Submetida ao método

anatomoclínico, “a histeria se tornava uma doença como as outras, ela entrava para a ciência”

(FREUD, 1986:27).

Na clínica que se inaugurava com Charcot, segundo os relatos de Freud, a

observação era um traço importante para a nova abordagem do estado histérico:

Costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para

aprofundar sua impressão delas dia a dia, até que subitamente a compreensão

reinava nele.(...)

Costumava indagar por que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o

que tinham aprendido a ver. Falava em como era maravilhoso que alguém

pudesse subitamente ver coisas novas – novos estados de doença –

provavelmente tão velhas quanto a raça humana, e em como tinha que

confessar a si mesmo que via agora nas enfermidades hospitalares inúmeras

coisas que lhe haviam passado despercebidas durante trinta anos (FREUD,

1988:22).

O depoimento de Freud sugere a indignação de Charcot em relação à abordagem

que a histeria tinha recebido até então e também sobre o modo como o olhar médico

“treinado” é incapaz de lidar com novos estados ou com estados de saúde pouco solucionados.

No caso da clínica de Charcot, o método da observação pretendia encontrar uma abordagem

científica para um estado para o qual a ciência ainda não encontrara tratamento convincente.

Esse mesmo procedimento – o de observar para conhecer – aparece nos métodos de pesquisa

para a escrita de romances naturalistas. Segundo Letícia Malard, o biógrafo de Aluísio

Azevedo, Raimundo de Menezes, afirma que, para escrever sua obra, o romancista “saía cedo

de casa, à procura de documento humano, e regressava à noite com uma papelada de

anotações: visitava as pedreiras, familiarizava-se com seus trabalhadores, comia e conversava

com eles, estudava-lhes os tipos, os costumes, a linguagem, os instintos” (MALARD,

2003:213).

Charcot era o tipo de médico que defendia o trabalho clínico em oposição às

usurpações da medicina teórica. A um aluno, que baseado na teoria vigente sobre histeria

discorda de suas afirmações sobre um caso clínico, o médico francês, segundo Freud, teria

respondido: “La théarie, c‟ est bom, mas ça n‟empê pás d‟ exister”. Teoria para Charcot não

impedia as coisas de existirem, donde se depreende a postura e o trabalho inovador do médico

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que atraiu discípulos de toda a Europa, sinalizando mudanças profundas na abordagem e no

tratamento das neuroses e, principalmente, na compreensão da histeria.

Todas essas mudanças de enfoque ocorridas na Europa e a situação da saúde

mental no Brasil se tornam interesse da literatura. Os estudos de temperamento, no Brasil,

começam a aparecer na literatura naturalista, a tal ponto que Flora Süssekind afirma que

quando se liam romances como O homem, “a associação a monografias médicas sobre a

histeria era inevitável” (SÜSSEKIND, 1984:65). Além da obra tratada aqui, lembramos que a

histeria foi tema em romances como A carne, de Julio Ribeiro, em que Lenita se envolve com

um homem casado em meio às crises histéricas; O mulato, de Aluísio Azevedo, em que Ana

Rosa, proibida de casar de Raimundo, é acometida pela doença; e A normalista, de Adolfo

Caminha, em que Maria do Carmo é abandonada por Zuza e sofre com os sintomas histéricos.

Essa mudança de perspectiva sobre as doenças mentais – em especial sobre a

histeria – termina, de certa forma, por ser incorporada à estrutura do romance de Aluísio

Azevedo, e, como afirma Süssekind, “A patologização da mulher, tal como é feita pelos

romances naturalistas, obedece estritamente ao perfil da histeria traçado pelos estudos

comportamentais do fim de século” (SÜSSEKIND, 1984:127). Vejamos como isso se dá no

romance em questão.

A protagonista de O homem, Madalena, é órfã de mãe e está frustrada em seu

amor por Fernando, de quem descobre ser irmã; recusa todos os pretendentes que o pai

sugere, e a doença, manifestada quando a moça soube do segredo, evolui sistematicamente.

Recém-chegada da Europa, depois de um longo passeio, ela não conseguia se desvencilhar do

estado de impertinência. Essas viagens terapêuticas, a fim de apaziguar nervos, eram

recomendadas naquela época; o próprio Charcot acompanhou seu primeiro paciente, um rico

banqueiro, numa dessas viagens. Há no romance uma tentativa de dissecar o estado histérico:

a desilusão atua como elemento catalisador. O casamento se impõe como medida profilática

da histeria e exerce forte fator de manutenção da sociedade patriarcal.

Através da observação, o leitor do romance pode acompanhar a evolução da

doença; a mesma observação metódica através da qual a ciência lida com os fenômenos. O

próprio Charcot, em 1870, monta um quadro clínico da histeria (TRILLAT, 1991:143),

quadro que vai do mais neurológico ao mais psicológico e no qual distingue fases, exatamente

como nos oferece o Dr. Lobão, médico que acompanha a doença de Madalena.

Primeiramente, o médico diz: “Olhe! (...) Isto ainda não é precisamente a tal febre

de três dias, mas para isso pouco lhe falta!... (AZEVEDO, 1970:65). Noutro momento declara

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“Ora aí tem! É a febre histérica!” (AZEVEDO, 1970:76). Por fim, ele diz: “A letargia! Agora

é que eram elas! Aí estava o que êle menos desejava que viesse!” (AZEVEDO, 1970:77).

Depois, é o narrador quem afirma que a moça estava “no período da coréia e das convulsões.

(AZEVEDO, 1970:67). Interessante notar que uma das afirmações sobre o estágio da doença

de Magdá não é dada pelo Dr. Lobão, homem de confiança da família cujo discurso estava

supostamente autorizado a despejar nomes técnicos a cada ataque da moça; mas trata-se de

uma afirmação do narrador, em discurso indireto, recurso estético que pode ser visto como

sugestão de como estão amalgamados os discursos do narrador, das personagens, numa

mistura em que não se pode determinar exatamente quem é o especialista, quem não é. Nesse

caso, narrador e personagem estão no mesmo patamar, capazes de contribuir para formar no

leitor uma visão sobre o desdobramento dessa doença. Aluísio Azevedo, pois, cria um

movimento duplo: reafirma a importância do discurso do médico, representante do paradigma

que está se tornando o mais importante naquele momento histórico; mas, ao mesmo tempo,

relativiza esse discurso ao colocar o narrador, juntamente com o Dr. Lobão, nomeando as

fases da doença.

Na figura do médico que trata Magdá vemos um misto das concepções de Platão e

de Hipócrates sobre a histeria e a condição da mulher. Dr. Lobão, citando Platão afirma que o

útero “é uma bêsta que quer a todo o custo conceber no momento oportuno; se lho não

permitem – dana! Ora aí tem!” (AZEVEDO, 1986:58). Segundo o autor de História da

histeria, Platão desenvolve a concepção de que o útero é matriz da mulher e que precisa ser

“usado”:

Na mulher, o que se chama de matriz ou útero é como um ser vivo,

possuído do desejo de fazer crianças. Quando durante muito tempo e apesar

da estação favorável a matriz permanece estéril, ela se irrita perigosamente;

ela se agita em todos os sentidos pelo corpo, obstrui as passagens do ar,

impede a inspiração, mete o corpo, assim, nas piores angústias e lhe

ocasiona outras doenças de todas as espécies (TRILLAT, 1991:23).

Para a medicina clássica de Hipócrates, “O tratamento preventivo é simples: para

as moças, o casamento; para a mulher casada, o coito para umedecer e manter a matriz em seu

lugar; para a viúva, a gravidez.” (TRILLAT, 1991:21). É exatamente o que sugere o médico

no romance, Dr. Lobão: “Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! – Ela

precisa de homem!” (AZEVEDO, 1986:59).

Noutro momento, Dr. Lobão tenta demonstrar que conhece e acompanha as novas

discussões e afirma que a histeria pode ter várias causas e que nem sempre é produzida pela

abstinência: “Convenho mesmo com alguns médicos modernos em que ela nada mais seja que

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uma nevrose do encéfalo e não estabeleça a sua sede nos órgãos genitais, como queriam os

antigos” (AZEVEDO, 1986:58). Ao mesmo tempo em que nomeia as fases da doença como

quer a medicina contemporânea – a de Charcot – Dr. Lobão atribui, como Platão e Hipócrates,

à abstinência toda a culpa pela doença, numa clara demonstração de que compartilha dos

passos ainda incertos e titubeantes que a medicina dava em direção à solução para os casos

histéricos.

O médico de Magdá ainda dá outra amostra de que está atualizado em relação às

teorias novas: “No fim de longas horas de esforços, (...) já desesperado, teve, a contragosto,

de aceitar o conselho de um colega ainda môço e de idéias modernas – a compressão do

ovário” (AZEVEDO, 1986:83). Curiosamente, o que aparece no romance como parte das

“idéias modernas” a que o Dr. Lobão – a contragosto – sujeitava-se, era uma concessão ao

passado feita por Charcot: “Num primeiro momento, Charcot faz um curioso retorno à teoria

uterina: O que retém sua atenção é a existência, na histérica, de uma „hiperestesia ovariana‟

(...). Quanto ao acesso histérico, pode-se desencadeá-lo pela pressão da região ovariana, e

pode-se suspendê-lo por uma compressão enérgica” (TRILLAT, 1991:141).

Nesse sentido, as contradições do Dr. Lobão estão em dia com as próprias

contradições do tema: o próprio Charcot, aquele que teria devolvido a dignidade à doença,

possui dúvidas sobre as causas dessa neurose. Os estudos do médico francês começam

exatamente no ponto em que Platão havia deixado a histeria: no útero. É por esse ponto

também que o médico de Magdá tenta compreender os fenômenos histéricos.

Em meio a tantas explicações para a doença e suas respectivas causas, o leitor de

O homem ainda assiste à disputa entre ciência e religiosidade. Paradigma que se impõe cada

vez mais, o domínio discursivo científico disputa terreno com o religioso e sai vencedor.

Além do fato de o Dr. Lobão não ser contrariado – suas receitas e determinações são seguidas

sem discussão –, o representante da ciência, mesmo que em muitos momentos seja um misto

de ciência, medicina de Hipócrates e platonismo, determina ao pai de Magdá que afaste a filha

das questões religiosas, pois já bastavam os terríveis elementos que agravavam a doença,

“Como então deixar nascer e desenvolver-se o demônio daquela beatice, que só por si era

mais que suficiente para derreter os miolos a qualquer mulher?!” (AZEVEDO, 1986:73).

“A qualquer mulher”, diz o médico, porque a mulher é frágil, impressionável e

possui uma matriz que deve estar em atividade, embora o médico não saiba exatamente a

causa da doença de Magdá. Para ele, tudo parece confuso e cheio de informações, exatamente

como o discurso científico do qual tenta se apropriar.

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Enquanto o médico Charcot inicia seus trabalhos com “um certo número de

jovens histéricas cujas famílias, cansadas de suas crises e, frequentemente, também de seu

humor extravagante, empenharam-se em delas se livrarem, internando-as no Salpêtrière”

(TRILLAT, 1991:139), Magdá, presa por assassinato, foi entre policiais, conduzida para uma

célula nos braços do Dr. Lobão, que praguejava, furioso, por lhe não permitirem as lei

carregá-la consigo no mesmo instante para a sua casa de saúde.

O desfecho da narrativa de Aluísio Azevedo está emblematicamente ligado às

condições do início do trabalho de Charcot. As mulheres daquele hospital, de certa forma, são

libertadas quando Jean-Martin Charcot resolve que a sociedade e a medicina devem lidar com

elas. A mulher, em O homem, é aprisionada quando a família, o médico Dr. Lobão, a

sociedade e o ainda em formação discurso científico não conseguem mais lidar com seu

estado, sinalizando os rumos que a doença tinha percorrido até então.

O romance em questão não é uma tentativa de classificar, representar ou informar

sobre a histeria, assim como nossa intenção aqui não reside em apresentar diferenças entre as

teorias em voga e o romance numa busca de delatar as imperfeições dele em relação ao debate

histórico da época. O que pretendemos é um esboço de como a ficção absorve, incorpora as

discussões sociais, culturais e históricas. A própria criação de um personagem como o Dr.

Lobão é uma sugestão das mudanças de abordagem que os estudos de temperamento estavam

sofrendo; é através do médico e da própria Magdá que podemos vislumbrar certos momentos

dessa retomada de uma doença de tão difícil compreensão.

Referências

AZEVEDO, Aluísio. O Homem. São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1970.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 2.ed. Rio de Janeiro: Imago,

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O USO DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA NO ENSINO COMO FORMA DE REFLETIR SOBRE INFLUÊNCIAS

SOCIAIS E CULTURAIS NA COSMOLOGIA DO SÉCULO XX

Alexandre Bagdonas Henrique

Programa Interunidades em Ensino de Ciências

USP, bolsista FAPESP

[email protected],

João Zanetic

Instituto de Física, USP

[email protected]

Ivã Gurgel

Instituto de Física, USP

[email protected]

Resumo

Nesta pesquisa estudamos alguns episódios da história da cosmologia no século XX,

buscando episódios interessantes que possam contribuir para a introdução de conteúdos de

história e filosofia da ciência nos cursos de formação de professores e consequentemente na

educação básica. Num primeiro momento, abordamos a controvérsia entre a teoria do Big

Bang e a do Estado Estacionário, entre as décadas de 1930 e 1950. Tendo em vista a

possibilidade de analisar as influências religiosas sobre essa controvérsia, argumentamos

sobre a importância de se discutir a relação entre ciência e religião nas aulas de física. Em

seguida, analisamos as diferentes abordagens entre astrônomos e físicos teóricos na

construção de modelos cosmológicos na primeira metade do século XX, ilustrando diferentes

metodologias utilizadas por estes cientistas. Na continuação da pesquisa, pretendemos

explorar outros episódios da história da cosmologia no século XX, como o desenvolvimento

da cosmologia na ex-URSS e as influências políticas sobre a atividade científica, assim como

os debates entre Herbert Dingle, defensor do empirismo e do indutivismo, em oposição às

posturas de cosmólogos teóricos como Milne, Eddington, Hoyle, Bondi e Gold.

Palavras-chave: história da cosmologia, natureza da ciência, método científico

Introdução

A utilização da história da ciência no ensino é uma das formas de se

contextualizar discussões conceituais, epistemológicas e sociais, facilitando tanto a

compreensão de conteúdos científicos quanto o aprendizado de noções sobre as ciências e sua

relação com a sociedade. Isso gerou uma longa tradição de autores que defendem a presença

da história, da filosofia e, mais atualmente, da sociologia da ciência nas salas de aula dos

diversos níveis de ensino (cf. Zanetic 1989, Matthews 1994, Silva 2006, entre outros).

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De forma geral, tem-se utilizado o termo “Natureza da Ciência” (NdC) para

designar um conjunto de saberes e práticas envolvidos na construção do conhecimento

científico, incluindo crenças e valores intrínsecos a este processo (Lederman 2007). É bem

aceito entre os pesquisadores que escreveram sobre a NdC no ensino de ciências que a própria

definição de natureza da ciência não é muito precisa, nem consensual, pois existem diversas

visões sobre a ciência entre os estudiosos deste tema. Como existem várias ciências e suas

naturezas são constituídas de elementos que mudam muito ao longo da história, a ciência seria

um fenômeno cultural muito difuso para ser caracterizado por uma natureza única. No

entanto, ainda que haja muitos opositores à noção de uma única natureza da ciência no âmbito

das discussões epistemológicas, é possível definir alguns pontos de concordância entre

filósofos, historiadores e pesquisadores do ensino de ciências e apresentar alguns tópicos

considerados mais relevantes para o ensino (Eflin et al. 1999, Lederman 2007).

Nessa pesquisa pretendemos investigar quais questões sobre a natureza da

ciência, com grande relevância para o ensino de física na educação básica, podem ser

problematizadas a partir de estudos da história da cosmologia. Utilizaremos a História, a

Filosofia e a Sociologia da Ciência em dois níveis: como uma forma de problematizar as

discussões a respeito da natureza da ciência, estabelecendo um corpo teórico ao trabalho; e

como uma possível abordagem didática para ensinar cosmologia e astronomia, como um

conjunto de teorias historicamente localizadas. Nosso objetivo é discutir a especificidade da

cosmologia como ciência e como conteúdo escolar, mostrando quais questões de ordem

filosófica e cultural são características deste corpo de conhecimento e quais delas podem ser

trabalhadas em cursos da escola básica.

A chamada “visão consensual” da NdC, que tem sido apresentada por diversos

pesquisadores no ensino de ciências (como Lederman 2007, Teixeira et al 2009, Forato 2009,

entre outras), busca contornar as dificuldades relacionadas ao ensino da natureza da ciência,

apresentando apenas os aspectos menos controversos. No entanto, Irzik e Nola (2011)

afirmam que embora esta abordagem possa ser considerada produtiva, caso os itens listados

como consensuais sejam adequadamente compreendidos pelos professores, ela tem algumas

fraquezas:

1) Ela mostra uma visão muito pobre da ciência, por exemplo, ao simplesmente

afirmar que “não existe um método científico universal e atemporal”. Apesar de esta

afirmação ser consensual, ao dizer apenas isso os professores estariam deixando de ilustrar as

diferentes metodologias utilizadas pelos cientistas em sua prática. 2) Mostra uma visão única

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de ciência, cega às diferenças entre as disciplinas, como entre a cosmologia, uma ciência

baseada em observações astronômicas e modelos físicos, e a química e outras ciências com

forte base empírica, cujas teorias podem ser testadas em laboratórios. 3) Não ficam claras as

relações entre certos itens apresentados nas listas “consensuais”, existindo inclusive tensões

entre alguns deles. Por exemplo, muitas vezes é apresentada como consensual a tese de que o

conhecimento científico é carregado de teoria e que as interpretações de dados experimentais

são influenciadas por fatores subjetivos. Mas isso torna a objetividade da ciência impossível?

Os desdobramentos filosóficos da relação teoria e realidade não são desenvolvidos, limitando

muito o próprio debate sobre a NdC.

Há diversos debates ainda travados entre epistemólogos que envolvem questões

relevantes para o ensino de ciências, mesmo na educação básica. Pretendemos estudar e

problematizar diferentes respostas encontradas na literatura para questões como: o que é

ciência? Há um método científico? Qual a diferença entre opinião, crença e conhecimento?

Qual a relação entre teoria, experimento e observação? Ainda que estas questões não tenham

respostas definidas, consideramos que elas são muito importantes para a formação de

professores de ciências e até mesmo para a educação de estudantes no ensino médio, por que

estão diretamente relacionadas à autoridade e ao valor atribuído ao conhecimento científico.

Reflexões sobre estes assuntos devem facilitar a compreensão da cultura científica. Devido a

isso, em uma segunda parte de nosso trabalho, avaliaremos a possibilidade de transformar tais

questões em sequências didáticas para o ensino médio.

História da cosmologia no século XX

Em um trabalho anterior (Henrique 2011), orientado pela profa. Dra. Cibelle

Silva, discutimos questões sobre a natureza da ciência a partir do estudo da história da

cosmologia no século XX. O episódio enfatizado foi a controvérsia entre a teoria do Big Bang

e a teoria do Estado Estacionário, ocorrida entre 1940 e 1970, em torno da questão “o

universo teve um começo ou sempre existiu?”. Particularmente, foi abordada a questão das

influências religiosas sobre essa controvérsia, criando um contexto para debater como poderia

o futuro professor de ciências, ao lidar com questões envolvendo diferentes visões de mundo

nas suas aulas, convidar seus alunos a problematizar esse tema.

As principais fontes históricas utilizadas nessa dissertação de mestrado foram dois

livros escritos pelo historiador da ciência norueguês Helge Kragh: Cosmology and

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Controversy: The Historical Development of Two Theories of the Universe (Kragh 1996) e

Matter and Spirit in the Universe (Kragh 2004). O estudo histórico aqui apresentado foi

baseado principalmente no uso de fontes secundárias. O curso também foi bastante

influenciado pelo livro Cosmology, the science of the universe, escrito pelo prof. Edward

Harrison (1981), que ministrou durante muitos anos cursos de cosmologia para não-cientistas

em universidades estadunidenses.

Na continuidade desta pesquisa vamos abordar outros aspectos interessantes sobre

a natureza da ciência que podem ser encontrados nos estudos da história da cosmologia no

século XX, como a influência de fatores políticos e econômicos sobre a atividade científica.

Neste trabalho discutiremos sobre as diferentes comunidades de cientistas que

participaram da história da cosmologia entre as décadas de 1920 e 1950, enfatizando as

diferenças entre os métodos utilizados pelos matemáticos e físicos teóricos (como Einstein,

Friedman, Lemaître, Hoyle, Bondi e Gold) e astrônomos (como Hubble e Humason).

Em trabalhos futuros pretendemos abordar o ataque de Herbert Dingle (1937,

1953) aos modelos cosmológicos teóricos que faziam pouco uso de observações

astronômicas, explorando a tensão entre empirismo e racionalismo (Videira 2005, Kragh

1996, p. 225); e estudaremos o desenvolvimento da cosmologia na ex- URSS no mesmo

período, marcada pela visão materialista ortodoxa do partido comunista que valorizava a

ciência aplicada e desvalorizava as investigações teóricas denominando-as de “ciência

burguesa” (Kragh 1996, pp. 259-268; Kojevnikov 2011).

As diferentes comunidades na cosmologia da primeira metade do século XX

Até a década de 1920, o espaço era normalmente visto como um lugar vazio,

sereno e estático. As estrelas se distribuíam pelo universo, com planetas girando ao redor do

Sol. A grande maioria dos modelos cosmológicos atuais tem como premissa básica a hipótese

de que a interação entre corpos do universo é de origem gravitacional. Hoje, a teoria mais

aceita para explicar essa interação, utilizada em quase todas as teorias cosmológicas, é a

relatividade geral.

As primeiras soluções das equações da relatividade geral

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Não se pode dizer que Einstein inventou a cosmologia, mas ele contribuiu para o

estabelecimento das bases matemáticas necessárias para os desenvolvimentos seguintes: uma

nova teoria física para o tratamento de fenômenos gravitacionais que ficou conhecida como

relatividade geral (Kragh 1996, p. 6).

Em 1917, Einstein desenvolveu uma teoria cosmológica, tentando explorar os

resultados das equações da relatividade geral para o universo como um todo. De acordo com o

modelo de Einstein, o universo não poderia ser estático, já que permanecia sem solução a

questão da estabilidade do universo: uma vez que todas as galáxias causam curvaturas no

espaço-tempo, por que todas não se juntam em um ponto só, criando um colapso no universo?

Para resolver este problema ele introduziu em suas equações um fator chamado

constante cosmológica, que representa um tipo de repulsão, equilibrando a atração

gravitacional e permitindo a existência de um universo estático, em equilíbrio.

Para muitos cosmólogos, a introdução da constante cosmológica foi uma

modificação artificial, não muito bem recebida. O próprio Einstein admitiu que a introdução

da constante não era justificável pelo conhecimento cosmológico da época. Por outro lado,

para outros autores, introduzir artificialmente essa constante era o mais sensato a se fazer, já

que o universo parecia ser estático. De forma geral, a constante cosmológica acabou sendo

admitida como uma possibilidade a ser investigada (Martins 1994, p. 136, Kragh 1996, p. 9).

Einstein publicou seu famoso modelo de universo com a constante cosmológica,

acreditando que sua solução seria a única possível. Contudo, no mesmo ano Willem De Sitter

(1872-1934), um matemático, físico e astrônomo holandês, publicou outra solução para as

equações de Einstein, que hoje é conhecida como modelo de universo de De Sitter. Trata-se

de um universo semelhante ao de Einstein: estático e finito1, porém sem matéria (Herrera

2002, p.59; Kragh 2004, p. 74).

A solução de De Sitter também envolvia a constante cosmológica, cujo efeito

seria equivalente a uma força repulsiva, numa analogia newtoniana. Ele mostrou que quando

partículas materiais de teste estivessem presentes, elas se espalhariam com uma velocidade

proporcional à distância. Este fenômeno ficou conhecido como efeito de Sitter. No entanto,

ele não interpretou esse efeito como se os corpos estivessem realmente se afastando por causa

da expansão do espaço. Para ele isso era um resultado particular da métrica do espaço-tempo

descrevendo esse tipo de universo. Ele escreveu:

1 Para De Sitter as unidades de comprimento crescem sem limite quando a distância ao centro tende ao infinito.

O universo permanece finito, no sentido de que é possível percorrê-lo em um tempo finito. Como De Sitter

escreve, “o universo é finito em medida natural” (Herrera 2002, p.59).

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As linhas espectrais de várias nebulosas distantes devem, portanto,

ser sistematicamente desviadas em direção ao vermelho, dando

origem a uma velocidade radial positiva (De Sitter citado em Kragh

1996, p. 12, tradução livre).

Como vemos, trata-se de uma solução estática, em que o significado físico do

desvio espectral era bastante obscuro2 (Blanchard 2001, p.238). Einstein criou a constante

cosmológica para manter o seu modelo de universo estático. De Sitter também manteve tanto

a constante cosmológica, quanto a imposição de que o universo deveria ser estático. Apesar

do estranho “efeito de Sitter” indicar que as galáxias podiam estar se afastando, ele utilizou o

termo “velocidade fictícia”, indicando que não adotava uma concepção realista para esse

afastamento.

Como em 1917 estava acontecendo a Primeira Guerra Mundial, a relatividade

geral não ficou muito conhecida fora da Alemanha. No entanto, uma vez que a Holanda

manteve-se neutra durante a guerra, De Sitter pôde manter contato com Einstein e agiu como

um diplomata, divulgando a relatividade geral para os países de língua inglesa. Além de ser

holandês, De Sitter tinha prestígio na comunidade científica da época e fazia parte da Royal

Society de Londres (Kragh 1996, p. 11).

Após o fim da primeira guerra mundial, com a divulgação da teoria da

relatividade pela Europa, alguns pesquisadores continuaram a investigar as soluções das

equações de Einstein. Dentre eles, podemos citar Friedman, Lemâitre, Eddington, Robertson

e Tolman, que investigaram outras possibilidades de universos não-estáticos.

O matemático russo Alexander Friedman (1888-1925) publicou seu trabalho em

1922, portanto numa época em que a ideia de um universo em expansão ainda não era

difundida na comunidade científica. Ele investigou soluções das equações da relatividade

geral, mostrando que havia várias possibilidades de universos em expansão ou contração. Seu

artigo chegou a receber respostas de Einstein (já famoso na época), que julgou ter encontrado

erros nas contas de Friedman. Mas este refez os cálculos e respondeu, mostrando que sua

teoria estava correta. Einstein aceitou as soluções, mas apenas a matemática, pois acreditava

que elas não tinham sentido físico (Kragh 1996, p. 26). Tanto é assim que, no trabalho de

Friedman, há soluções cuja densidade de matéria é negativa, o que realmente não tinha

significado físico. Ele acreditava que o conhecimento disponível na época não seria suficiente

para decidir quais das possíveis soluções seriam correspondentes ao nosso universo

2 Posteriormente, foi possível demonstrar que o modelo criado por De Sitter pode ser visto como estático, mas

também como dinâmico (Ellis 1990)

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(Blanchard 2001, p. 238). Assim, não se pode dizer que Friedman propôs o universo em

expansão, mas sim um universo em expansão (Kragh 1996, p. 27). A partir da noção de um

começo do tempo e do espaço, Friedman foi provavelmente um dos primeiros a introduzir na

cosmologia relativística dois conceitos muito importantes: a criação e a idade do universo,

contudo, ele nunca mencionou quaisquer evidências observacionais que pudessem testar seus

modelos cosmológicos (Blanchard 2001, p. 238).

Observações astronômicas que levaram à construção da teoria da expansão

do universo

Até o começo do século XX o conceito de galáxia ainda estava em construção.

Desde o século XVII os astrônomos debatiam sobre o que seriam as então chamadas

“nebulosas”, objetos difusos que, quando observados com um telescópio, não eram pontuais

como as estrelas, pois ocupavam uma pequena área do campo de visão. Só no século XX,

quando foram construídos grandes telescópios, foi possível observar essas nebulosas com uma

ampliação muito maior, permitindo perceber que elas eram conjuntos de estrelas e não nuvens

de gás como se acreditava anteriormente (Martins 1994, p. 143). Hoje em dia boa parte dos

corpos, que antes eram chamados de nebulosas, é conhecida como galáxias e a visão mais

aceita é a de um universo em evolução, repleto de galáxias que se afastam com velocidades

altíssimas.

O astrônomo estadunidense Edwin Hubble (1889-1953) conseguiu medir as

distâncias de algumas “nebulosas” através do estudo de estrelas de brilho variável, chamadas

cefeidas, na então “nebulosa” de Andrômeda. Ele utilizou o método de medir distâncias

estelares desenvolvido pela astrônoma estadunidense Henrietta Leavitt (1868-1921), baseado

na relação entre a magnitude absoluta e o período de variação do brilho das cefeidas.

Conhecendo a magnitude absoluta de uma estrela, é possível medir sua distância. Em 1923

Hubble calculou uma distância de cerca de um milhão de anos luz3 para a cefeida que

observara (Kragh 1996, p. 17). Como o valor da distância encontrado é muito maior do que o

das estrelas da Via Láctea, a medida de Hubble foi vista como um indício de que Andrômeda

era um corpo exterior à nossa galáxia. Então Andrômeda deixou de ser vista como uma

3 A distância da galáxia de Andrômeda conhecida atualmente, através de medidas mais precisas que a de Hubble,

é de cerca de dois milhões de anos luz.

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nebulosa em nossa galáxia, passando a ser considerada outra galáxia. Com o tempo constatou-

se que o mesmo ocorria com outras “nebulosas”.

Nos anos seguintes, trabalhando no grande observatório de Monte Wilson, nos

EUA, com seu colaborador, o astrônomo estadunidense Milton Humason (1891-1972),

Hubble conseguiu medidas de distâncias e redshift para corpos mais distantes do que se

conseguira até então (Kragh 1996, p. 18). Supondo que nosso planeta não se encontra num

local privilegiado do cosmo, é plausível pensar que ao observar os espectros de tais galáxias,

algumas delas se afastariam, enquanto outras se aproximariam da Via Láctea. É de se esperar

também que a distribuição angular de galáxias que se afastam e que se aproximam seria

isotrópica, isto é, igual em todas as direções. Entretanto não foi isso que Hubble observou.

Em 1929 publicou um trabalho em que apresentava os dados de 46 galáxias, com medidas

razoavelmente confiáveis das distâncias de 20 delas. A quase totalidade das galáxias vizinhas,

exceto algumas muito próximas e, portanto, sujeitas ao nosso campo gravitacional, estariam

se afastando.

Hubble teve que se deparar com uma série de dificuldades técnicas para medir os

valores das velocidades e distâncias das galáxias. Com esses dados ele chegou à relação linear

entre os redshift das galáxias e a sua distância, que ficou conhecida como a Lei de Hubble.

A conexão entre modelos cosmológicos teóricos e as observações

astronômicas

Nas primeiras décadas do século XX havia duas comunidades diferentes

trabalhando em problemas relevantes para a cosmologia: os astrônomos, que realizavam

observações dos corpos celestes distantes com telescópios cada vez melhores, e os físicos e

matemáticos especialistas em relatividade geral, que investigavam soluções das equações de

campo de Einstein para modelar o universo como um todo. Um passo muito importante para o

surgimento da cosmologia contemporânea foi a aproximação destas duas comunidades

(Blanchard 2001, p. 237-238).

Até então, cosmólogos teóricos como Einstein e Friedman não haviam discutido

eventuais evidências observacionais que pudessem embasar seus modelos cosmológicos.

Apesar disso, já havia esforços para unir estas duas comunidades, dentre os quais se destacam

os nomes de De Sitter, Eddington e Lemaître.

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Willem De Sitter (1872-1934), que trabalhou no Royal Observatory, em Cape

Town (África do Sul) e foi assistente do astrônomo Jacobus Kapetyen em Groningem

(Holanda), antes de criar seu modelo cosmológico estático. Já Arthur Eddington (1882-1944)

estudou matemática em Manchester e Cambridge, e depois foi trabalhar entre 1906 e 1913 no

Royal Observatory em Greenwich (North 1990, p. 15)

Eddington tornou-se um dos astrônomos mais importantes do século XX, por seus

trabalhos em diversos campos da astronomia. Dentre eles organizou uma expedição para

observar um eclipse solar na Ilha do Príncipe, na África, para testar previsões da relatividade

geral sobre o desvio gravitacional da luz das estrelas causado pela massa do Sol (Videira 2005

b). Eddington também estudava cosmologia e na época em que conheceu Lemaître, ambos

estavam investigando novas soluções para as equações da relatividade geral

Georges Lemaître (1894-1966), padre e cosmólogo belga, chegou de modo

independente aos mesmos resultados obtidos por Friedman. No entanto, a abordagem do seu

trabalho não era apenas matemática, ele queria também explicar o universo real em que

vivemos. Esta diferença fez com que Lemaître se preocupasse com as evidências

observacionais que pudessem dar suporte ao seu modelo (Kragh 2004, p. 129).

Lemaître nasceu em 1894, em uma família profundamente religiosa. Estudou num

colégio de jesuítas, tendo uma educação bastante diversificada, incluindo filosofia, teologia,

engenharia, matemática e física (Laracy 2009, p. 2). Serviu o exército belga na Primeira

Guerra Mundial e então começou sua carreira como físico teórico, ao mesmo tempo em que

estudava para se tornar padre na Igreja Católica. Entre 1923 e 1924 estudou em Cambridge,

onde foi aluno de pós-graduação de Eddington quando este já era um renomado astrofísico

britânico (Kragh 2004, p. 127).

Em 1925 Lemaître foi estudar nos EUA, onde entrou em contato com trabalhos de

outros astrônomos, como Harlow Shapley, Hubble e Slipher, que investigavam a natureza das

nebulosas espirais e já haviam obtido medidas do seu desvio espectral. Ele se convenceu de

que havia um desvio sistemático para o vermelho do espectro das nebulosas e que os modelos

cosmológicos precisavam explicar esse dado experimental (Herrera 2002, p. 72).

Depois disso Lemâitre publicou, ainda em 1925, um artigo em que propunha uma

reinterpretação do modelo de De Sitter, fazendo duas objeções: ele rejeitava a ideia de que o

universo fosse infinito e exigia que houvesse uma quantidade não nula de matéria. Dois anos

depois, publicou um novo modelo correspondente a um universo estático (semelhante ao de

Einstein), mas que após certo tempo saiu do equilíbrio e passou a se expandir. Neste artigo,

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ele deu uma explicação física à relação observada por astrônomos entre o desvio espectral das

galáxias e sua distância, a já mencionada “Lei de Hubble”. Isso mostra que ele estava

efetivamente preocupado em explicar o universo real, contribuindo para o surgimento de uma

nova cosmologia em que as comunidades de astrônomos e físicos teóricos pudessem

colaborar entre si (Blanchard 2001, pp. 239-240).

Em 1922 Friedman já havia publicado um artigo com um modelo cosmológico

em expansão na prestigiosa revista Zeitschrift fur Physik, mas que não recebeu atenção dos

estudiosos da cosmologia. Da mesma forma, o artigo de Lemaître de 1927 não recebeu a

devida atenção, talvez por ter sido publicado em um jornal pequeno, de pouco impacto.

Aparentemente a comunidade científica não estava ainda preparada para uma adequada

interpretação desses artigos. Sua obra só foi reconhecida no começo da década de 1930,

quando a ideia do universo em expansão se tornou mais aceita entre os cosmólogos (Kragh

2004, p. 131).

Somente em 1930, Eddington teria se dado conta que o trabalho de Lemaître de

1927 era uma importante contribuição para a cosmologia. Em 1931 ele anunciou e traduziu

para ao inglês o artigo escrito pelo padre belga em francês (Blanchard 2001, p. 241). A partir

de então, o trabalho de Lemaître ficou famoso, divulgando entre os cosmólogos a

interpretação do trabalho de Hubble como evidência experimental da expansão do universo

(Kragh 1996, p. 31).

O modelo de Lemaître, apoiado e desenvolvido por Eddington, se transformou em

uma nova versão da teoria que ficou conhecida como modelo de Lemaître-Eddington. Trata-

se de um modelo de universo em expansão que sempre existiu. Porém a concordância entre

Lemaître e Eddington não durou muito tempo (Kragh 1996, p. 45). Em 1931, Lemaître

introduziu na cosmologia a ideia audaciosa de um começo do universo numa perspectiva

realista, contrariando Eddington, que admitiu ter postulado um passado infinito, porque a

ideia de um começo no tempo lhe parecia desagradável. Em um texto curto publicado na

revista Nature, ele escreveu que discordava de Eddington:

“Sir Arthur Eddington afirma que a noção de um começo da ordem

atual da natureza é repugnante para ele. Eu estou inclinado a pensar

que o estado atual da teoria quântica sugere um começo do mundo

bem diferente da atual ordem da Natureza. [...] podemos conceber o

começo do universo na forma de um único átomo, cujo peso atômico é

dado pela massa total do universo. Este átomo altamente instável, teria

começado a se dividir, fragmentando-se em pedaços cada vez

menores, numa espécie de super processo radioativo” (Lemaître 1931,

tradução livre).

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O universo de Lemaître teria um começo abrupto, um “dia sem ontem” (Midbon

2000). Este modelo contém certo tempo “de hesitação”, em que o universo permanece

estático, como o de Einstein e posteriormente passa a se expandir exponencialmente. Ficou

conhecido como “o modelo do átomo primordial” e pode ser visto como um dos precursores

do modelo do Big Bang.

Porém, o novo modelo não chamou muito a atenção da comunidade científica até

a década de 1950. De maneira geral, os cosmólogos preferiam o modelo de Lemaître-

Eddington, em especial na primeira metade da década de 1930, que foi defendido por diversos

autores, como De Sitter, Tolman e Robertson por permitir a existência de um mundo sem

catástrofes, tanto no passado quanto no futuro (Kragh 1996, p. 56).

Uma consequência do pequeno impacto do modelo do átomo primordial de

Lemaître é que atualmente é comum a associação da teoria do Big Bang a George Gamow e

não a Lemaître ou aos demais autores que já haviam estudado o universo em expansão.

Continuidade da pesquisa

Na continuidade desta pesquisa, vamos aprofundar os estudos sobre a história da

cosmologia, com ênfase nas obras de Herbert Dingle, envolvendo o choque entre empirismo e

racionalismo em debates cosmológicos, assim como no desenvolvimento da cosmologia na

ex-URSS, discutindo a tensão entre investimento em ciência pura e ciência aplicada.

O ataque de Dingle: empirismo contra o racionalismo

Um debate interessante para se perceber a diferença de abordagem entre os

astrônomos observacionais e os físicos teóricos na cosmologia da primeira metade do século

XX teve como protagonista Herbert Dingle (1890-1978), presidente da Royal Society de

Londres, entre 1951 e 1953, e professor de História e Filosofia da Ciência do University

College de Londres. Na década de 1930 atacou as teorias racionalistas dos físicos ingleses

Edward Milne (1896-1950), Arthur Eddington e Paul Dirac (1902-1984). A sua crítica contém

basicamente dois pontos:

1. O ponto de partida da ciência deve ser a observação empírica dos fenômenos;

2. Os componentes teóricos são produzidos através de uma generalização

indutiva das observações (Videira 2005 a, p. 245).

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A posição de Dingle pode ser classificada como empirista e indutivista. Dingle

acusou os cosmólogos matemáticos de agirem como aristotélicos modernos, porque

negligenciavam os experimentos e confiavam excessivamente no poder da razão: “devemos

deduzir conclusões particulares de princípios gerais a priori ou derivar princípios gerais de

observações? A atividade intelectual envolve dois elementos – chame-os Natureza e mente

humana, ou experiência e razão” (Dingle 1937, p. 250, tradução de Videira 2005).

Dingle associou a postura racionalista ao aristotelismo, em contraposição à

postura empirista de Galileu. Duas décadas depois, ele voltou a atacar os cosmólogos

teóricos. Em 1953, utilizou o discurso presidencial para fazer duras críticas à cosmologia

atual, em especial a teoria do Estado Estacionário. Como em seus artigos da década de 1930,

ele se opunha à tendência racionalista dos cosmólogos de tirar conclusões teóricas sobre o

universo sem embasamento experimental e reafirmou a necessidade de que as teorias

científicas comecem pela observação e não pela formulação de hipóteses (Videira 2005 a, p.

247).

Dingle não era contrário ao uso de argumentos filosóficos nas teorias. Mas

acreditava que os argumentos usados por Hoyle, Bondi e Gold eram fracos, principalmente

devido à falta de conhecimento sobre história da ciência. Ele dizia que se tivessem lido as

obras de Galileu, Newton ou Faraday teriam reconhecido suas tolices (Kragh 1996, p. 225).

Dizia ainda que a teoria do Estado Estacionário, sem a proteção das equações matemáticas,

era como a “roupa nova do imperador”. Essa teoria teria embasamento muito fraco por se

pautar mais na matemática que na observação da natureza:

É difícil, para os que não estão habituados à matemática, treinados na

tradição científica, acreditar que os princípios elementares da ciência

estão sendo tão abertamente destruídos. Pode parecer que a ideia da

criação contínua de matéria tenha surgido a partir de uma discussão

matemática, ou de uma observação científica. [...] Na verdade, não

tem outra base senão o desejo de alguns matemáticos que pensaram

como seria bom se o mundo fosse feito desta maneira. A matemática

segue o desejo e não o contrário (Dingle 1953, p. 403, tradução livre).

Ele afirmou que o Princípio Cosmológico foi verificado experimentalmente para uma

fração muito pequena do universo conhecido e que parecia razoável assumir que as leis

válidas em nossa vizinhança podem ser generalizadas para o universo como um todo, até que

mais evidências observacionais estivessem disponíveis. Já a favor do Princípio Cosmológico

Perfeito, segundo o autor, não haveria qualquer tipo de evidência. Por isso ele afirmou:

Causa-me desconforto utilizar nomes que são enganosos, eu prefiro

me referir ao “princípio cosmológico” como “suposição cosmológica”

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e ao “Princípio Cosmológico Perfeito” como a “presunção

cosmológica” (Dingle 1953, p. 396, tradução livre).

Na mesma época, entre as décadas de 1930 e 1950, a cosmologia teórica marcada

pelo uso de princípios não observáveis também era vista com desconfiança na comunidade

científica soviética. Muitos autores, tanto ocidentais quanto soviéticos, viam o estudo do

universo como um todo com desconfiança, apontando que não havia dados observacionais

suficientes para justificar o caráter científico da cosmologia.

Cosmologia soviética

A ciência soviética sofreu grande desenvolvimento entre as décadas de 1920 e

1950, exatamente num período em que estava submetida a um regime ditatorial. Porém,

apesar de estes anos terem sido marcados por guerras e destruição, com a Revolução Russa e

as duas Guerras Mundiais, além de perseguições políticas conduzidas pela ditadura de Stalin,

neste período a ciência e a tecnologia soviética avançaram muito, como fruto das

transformações sociais e políticas que então ocorreram e que têm sido alvo de muitos e

variados estudos. Apresentamos uma breve e preliminar exemplificação desses estudos.

Os valores associados à ideologia do partido comunista soviético, como o

marxismo, materialismo, ateísmo e comunismo influenciaram fortemente o tipo de pesquisa

realizada pelos cientistas soviéticos. A análise de historiadores da ciência é bastante delicada,

já que é difícil entender o grande desenvolvimento científico dessa época e sua relação com o

regime comunista. Alexei Kojevnikov (2011) aponta que muitos autores enaltecem os feitos

dos cientistas soviéticos colocando as circunstâncias políticas e sociais principalmente como

obstáculos e distrações, mas não como parte da produção acelerada de conhecimento no

período. Dessa forma, é um desafio comparar a importância de fatores políticos e econômicos

no desenvolvimento da ciência soviética nesse período.

O historiador norueguês Helge Kragh (1996, p. 260) parece ter cometido essa

assimetria, já que aponta apenas aspectos negativos da influência do partido comunista sobre

o desenvolvimento da cosmologia. Afirma que astrônomos soviéticos deveriam servir ao

partido fornecendo propaganda anticlerical e rejeitando os modelos cosmológicos

“ocidentais”, como os de Lemaître e Gamow, que apontavam para uma criação do mundo.

Estes modelos eram associados à visão da criação cristã e a valores ocidentais que deviam ser

erradicados.

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Os cientistas reacionários como Lemaître, Milne e outros fizeram uso

do redshift para fortalecer as visões religiosas do universo... Falsários

da ciência querem reviver o conto de fadas da origem do mundo a

partir do nada (Zhdanov apud Kragh 1996, p. 260)

A teoria do Big Bang de George Gamow era severamente criticada pelos

soviéticos, dentre eles Vorontzoff – Velyaminov, não só por ser “não científica”, mas também

por ser criada por um ex-cidadão soviético que traiu sua nação. A maior parte dos soviéticos

apontava que o universo deveria ser infinito no tempo e no espaço, o que estaria de acordo

com a teoria do Estado Estacionário, mas a idéia de criação de matéria era inaceitável para os

Marxistas-Leninistas, por ser algo visto como idealista ou religioso.

Na década de 1960 a cosmologia passou a ser mais incentivada, diminuindo a

influência dos argumentos ideológicos sobre a pesquisa científica. Segundo Kragh (1996, p.

264) essa mudança foi nítida nos trabalhos de Yakov Zel´dovich. Surgiram vários outros

cosmólogos soviéticos que propuseram modelos cosmológicos, como os de Fisher e Shirkov,

que era um modelo não homogêneo com alterações das equações de campo da relatividade

geral. Como resultado, a singularidade inicial era evitada (Kragh 1996, p. 266). Essa proposta

foi posteriormente desafiada pelos cosmólogos britânicos Roger Penrose e S. Hawking.

Dessa forma, na continuidade desta pesquisa pretendemos aprofundar os estudos

históricos sobre as críticas de Dingle aos cosmólogos teóricos, comparando-as com as

dificuldades do desenvolvimento da cosmologia na união soviética no mesmo período,

buscando contextualizar futuras discussões interessantes para cursos de cosmologia na

educação básica, como a relação entre ciência pura e ciência aplicada e o papel da população

nas decisões sobre o investimento em pesquisa científica.

Considerações finais e implicações para o ensino

Neste trabalho apresentamos uma caracterização de diferenças entre

pesquisadores envolvidos na criação de modelos cosmológicos na primeira metade do século

XX. Apresentamos aspectos dos desenvolvimentos da cosmologia relativística, criada a partir

de soluções das equações da relatividade geral, por cientistas europeus como Einstein,

Friedman, Lemaître e Eddington. Paralelamente, nos Estados Unidos da América, um grupo

de astrônomos, como Slipher, Hubble e Humason, realizava observações dos espectros de

galáxias. Apenas a partir da década de 1930 estas comunidades se uniram, com a

consolidação da teoria do universo em expansão a partir dos modelos de Lemaître e

Eddington.

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Estas discussões podem ser interessantes para o ensino de física, tanto no que diz

respeito a conceitos de cosmologia, como galáxia, “desvio espectral”, expansão do universo,

quanto para fomentar discussões sobre a natureza da ciência. A visão empírico-indutivista da

ciência normalmente presente nas obras de divulgação de cosmologia costuma apresentar

Hubble como o “descobridor da expansão do universo”, muitas vezes até passando a

impressão de que ele teria visto as galáxias se afastando por meio de seu telescópio. Além

disso, essa seria uma das “provas empíricas” da teoria do Big Bang.

A análise histórica, filosófica e cultural da ciência permite problematizar essa

visão de mundo, mostrando uma construção mais rica sobre a natureza da ciência, incluindo

diferentes interpretações possíveis para o desvio espectral das galáxias e para a origem do

universo.

Na continuidade da pesquisa também pretendemos abordar os debates envolvendo

tensões entre as visões empírico-indutivistas e racionalistas, hipotético-dedutivistas da

ciência, a partir dos debates envolvendo Dingle e cosmólogos teóricos, e no desenvolvimento

da cosmologia na antiga URSS. Estes episódios permitem comparar a relevância de fatores

“internos” (lógicos, experimentos, interpretações de observações) e “externos” (política,

religião, cultura, estética) sobre atividade dos cosmólogos da primeira metade do século XX.

Além disso, também permitem reflexões sobre a questão “Por que estudar cosmologia?”,

problematizando o utilitarismo tanto dos opositores à cosmologia soviética, quanto dos alunos

que exigem aplicações práticas imediatas para que um assunto estudado seja interessante.

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ACADEMIAS DE CIÊNCIAS, HISTÓRIA E PECULIARIDADES

Amilcar Baiardi

Professor Titular da UFBA/UFRB

Atua no Programa de Pós-Graduação em Ensino,

Filosofia e História da Ciência - UFBA/UEFS

Na história das ciências a primeira academia foi a de Platão, que funcionava como

escola superior, uma espécie de proto-universidade, que instituiu a produção coletiva do saber

e a avaliação inter-pares. Antes dela há registro de associações de filósofos como a

comunidade de Pitágoras e a escola Jônica de Thales de Mileto, mas nem a primeira, pelo seu

caráter místico, e nem a segunda por ser mais uma agregação em torno de crenças, chegaram

a se organizar como centro de produção do saber. A Academia de Platão jogou um papel

fundamental por superar o paradigma dominante de produção intelectual individual, na forma

de tratados, que se propunham a abarcar todos os conhecimentos ou formas de saber. O nome

Academia se deve à localização no jardim ou parque Akademos ou Hekademos, cuja

designação homenageava um herói ático. Havia também neste parque ginásios para a prática

de esportes. O próprio Platão praticava a luta e chegou a ser premiado nos Jogos Ístmicos.

Após a Academia de Platão e durante a Antiguidade Clássica, mais duas experiências de

associativismo de filósofos adquiriram fama: o Liceu de Aristóteles, (Lyceum) localizado no

bosque em homenagem a Apolo Lykeios, em um subúrbio de Atenas, e a Escola de

Alexandria, localizada na cidade do mesmo nome, no Egito, a qual reunia no mesmo espaço a

biblioteca e o mouseion (ambiente para coleções e experimentos). Ambas organizações,

combinavam o ensino com a pesquisa, assemelhando-se às universidades modernas. Foram

epistemologicamente precursoras da vertente empirista, por valorizarem a percepção física e a

experiência.

Um surto de criação de novas academias, a esta altura a denominação já se

consagrara, acontece durante o Renascimento, espalhando-se da Península Itálica para o resto

da Europa no período da chamada Revolução Científica. As academias renascentistas

constituíram uma iniciativa dos filósofos - na ocasião denominando-se “filósofos da natureza”

porque se distanciavam da religião e da metafísica - para criar um espaço erudito que se

distinguisse das universidades antigas, nas quais predominava a visão de mundo escolástica,

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fundamentada na tradição aristotélica e inseparável da teologia. Entre 1560 e 1807 foram

criadas cerca de 80 academias, algumas das quais tiveram vida efêmera e outras que existem

até hoje. A primeira delas foi a Accademia Secretorum Naturae, fundada em Napoles, em

1568. Ainda na Itália tornaram-se famosas duas outras academias. A primeira foi a Accademia

dei Lincei, (1600), localizada em Roma, que teve Galileu como membro e como mecenas a

família Cesi, pertencente à nobreza. A Academia dos Linces, o que sugeria o nome, destacou-

se na produção bibliográfica e tentou convencer o Papa Urbano VIII a inocentar Galileu. A

segunda foi a Accademia del Cimento (1657), localizada em Florença e mantida pela corte dos

Medici. A Academia da Prova ou do Risco, o que sugeria o nome, foi a primeira publicar

artigos decorrentes de pesquisas experimentais na forma de anais, vide imagem 1.

Fora do território italiano a primeira academia foi a Societas Ereneutica, (1622)

em Rostock, Alemanha, e em território do Novo Mundo a primeira foi a Boston Philosophical

Society (1683). No século XVII, na pré-modernidade, foram criadas a Royal Society of

London for the Improvement of Natural Knowledge, (1662) a Royal Society, e a Académie

Royale des Sciences (1666), a Academia Real Francesa. Embora contemporâneas, tinham um

escopo e uma composição bem diferentes. A Royal Society era uma típica iniciativa da

sociedade civil, criada por filósofos da natureza, mas com 40% de seus membros sendo

homens de negócio. A Royal Society não recebia apoio governamental regular na forma de

orçamentos, mas sim doações da corte. A Académie Royale, por seu lado, era uma típica

organização estatal, composta exclusivamente de filósofos da natureza que eram

remunerados, restaurando uma tradição que havia na Alexandria, pagar com salários

pesquisadores. Enquanto a Royal Society fomentava a cultura de ciência e financiava

pesquisadores independentes a Académie Royale, que funcionava em dependências do palácio

real, era, ao mesmo tempo, centro de pesquisa e agência de controle da propriedade intelectual

e da normatização metrológica, vide imagem 2.

Presentemente, com enorme prestígio como academias nacionais têm-se a US

National Academy of Sciences, NAS, e a Royal Society. Embora resultantes da mesma

cultura, a US National Academy of Sciences, NAS, e a Royal Society, separadas por dois

séculos quanto à gênese, tiveram diferentes concepções. A NAS, igualmente a outras

academias nacionais, foi criada em 1863, patrocinada pelo Presidente Abraham Lincoln,

durante a Guerra Civil Norte Americana. Uma ação típica e governo, embora contasse com

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mecenas privados. A Royal Society, por sua vez, foi obra de filósofos da natureza1 e se

consolidou na gestão de Isac Newton, embora tenha recebido generoso apoio do rei Charles

II. A independência do Estado no caso da Royal Society foi sempre era tão marcante que a

entidade convidou Benjamin Franklin para debater em seu ambiente a forma dos condutores

de luz, mesmo sabendo que Franklin fomentava a rebelião das colônias inglesas.

A NAS, localizada em Washington DC, tem cerca de 1.100 servidores de tempo

integral e anualmente gera aproximadamente 200 relatórios para o Governo Federal. Tem um

status de órgão quase-governamental, mas é bastante transparente para a sociedade, mais até

que a Royal Society, entidade não governamental. A NAS é para os Estados Unidos,

guardadas as proporções, o que a CGEE, Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, é para o

Brasil.

Durante a vigência do denominado socialismo real, expressão cunhada pela

Escola de Frankfurt, as academias de ciência criadas nos países que o adotaram, eram parte

efetiva do Estado e se responsabilizavam por programas nacionais de pesquisa. Academias de

países ex-socialistas e a Academia Chinesa de Ciências, continuam tendo esta concepção.

Um outro modelo contemporâneo de academia de ciências é o da Academy of

Sciences for the Developing World, TWAS, localizada em Trieste, Itália nas instalações do

International Centre for Theoretical Physics, que opera sob um acordo tripartite entre o

Governo Italiano, a Agência Internacional de Energia Atômica, IAEA, e a United Nations

Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). A TWAS tem como missão

desenvolver a ciência no Terceiro Mundo e evitar a drenagem de cérebros para os países

industrializados. A TWAS provê, sobretudo para países africanos, recursos para

infraestrutura, bolsas, publicações, organizações de eventos, publicações etc.

Na contemporaneidade foram se cristalizando estes e outros papéis das academias

de ciência: lócus de pesquisa, agência de fomento a pesquisa, assessoria ao Estado, ente

fomentador da cultura de C&T, colegiado destinado a reconhecer méritos e conferir honrarias,

lócus de debate e análise para toda a sociedade de temas relevantes (como mudança climática,

1 O termo cientista foi cunhado em 1833 por William Whewell

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energia, reprodução biológica e modificação genética), ente promotor de campanhas em favor

da educação básica etc. É também função de uma academia científica, na opinião de Bruce

Alberts, ex-presidente da NAS, prover o consenso de visões dentro do corpo da comunidade

de pesquisadores, embora o mesmo reconheça não ser fácil esta tarefa, diante da ampla

diversidade de pontos de vista.

Com maior ou menor participação do Estado, na contemporaneidade e no

Ocidente, prevaleceu o modelo de Academia Científica que procura difundir uma cultura de

C&T e atua como organização da sociedade civil que controla e subsidia o Estado e a

sociedade com propostas de diretrizes e políticas, participação em comissões etc. Este é o

caso da Academia Brasileira de Ciências. A Academia de Ciências da Bahia, recentemente

criada, deverá, em alguma medida, se assemelhar à Academia Brasileira de Ciências, atuando

como organização da sociedade civil no cultivo e difusão de uma cultura de C&T, no controle

social da pesquisa e no subsidio ao Estado e a sociedade civil com propostas de ações e de

políticas locais, regionais e nacionais de C&T&I, mas deve ir além, de acordo com o que

estabelece de forma detalhada o Artigo 4º de seu Estatuto.

É possível esperar que a cultura de ciência e tecnologia na Bahia comece a ser

valorizada e que várias manifestações tomem forma para que se possa contra-restar a

tendência de valorizar mais outras manifestações culturais em detrimento da ciência e da

tecnologia, como chama atenção o professor Olival Freire em sua entrevista concedida à

agencia de noticias Ciência e Cultura, Agência de Noticias em C&T&I.

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Reunião e brasão da

Academia do “Cimento”

Imagem 1: No Brasão está escrito “Provando e Riprovando” o que expressa a

natureza experimental da Accademia del Cimento.

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Imagem 2: Louis XIV visitando a Académie Royale des Sciences em 1671.

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“A CIÊNCIA MÉDICA NAS PÁGINAS DA GAZETA DE NOTÍCIAS”

Ana Flávia Cernic Ramos

Professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Doutora em História Social pela UNICAMP

[email protected]

Resumo

Em 1883, o Rio de Janeiro vivia não apenas mais um verão repleto de epidemias, como

presenciava uma das discussões científicas mais acirradas daquele final de século: a

criação de uma vacina para a febre amarela. Influenciado pelos trabalhos de Pasteur,

Domingos José Freire chega à conclusão de que a febre amarela era transmitida pelo

“criptococo xantogênico”, um vegetal microscópico encontrado nos restos mortais dos

infectados. Isolado o suposto agente causador da doença, Freire cria uma vacina e é

autorizado a inoculá-la na população da cidade. Tal fato gera grande alvoroço, dando

início a inúmeras polêmicas na imprensa carioca em torno da legitimidade de ciência

médica. Este trabalho tem por objetivo analisar a maneira como essa polêmica se ampliou

para as mais diferentes colunas da Gazeta de Notícias, invadindo espaços que iam desde o

editorial político às séries de humor, mobilizando médicos, jornalistas e literatos.

Pretendemos observar como o tema foi tratado nesses diferentes espaços, lidando com a

questão da consolidação da ciência como uma grande arena de tensões políticas e sociais.

Palavras-chave: Ciência, Literatura, Imprensa.

Estamos no ano de 1883 e o Rio de Janeiro presencia uma das discussões

científicas mais acirradas do século: a criação de uma vacina para a febre amarela. Em

março de 1883, Domingos José Freire, renomado cientista da época, obtém do governo

imperial a autorização para retomar suas pesquisas sobre a causa e o tratamento desta

doença. Já em abril do mesmo ano, Freire inicia a publicação de uma série de artigos na

Gazeta de Notícias, nos quais tenta convencer os leitores sobre a contagiosidade da febre

amarela (BENCHIMOL, 1999). Influenciado pelos trabalhos de Pasteur, Freire realiza

experiências de transmissão da febre em animais como coelhos e porquinhos-da-índia, e

chega à conclusão de que a doença é transmitida pelo chamado “criptococo xantogênico”,

um vegetal microscópico encontrado nos restos mortais dos infectados. Isolado o agente

supostamente causador da doença, Domingos Freire cria uma vacina e recebe autorização

do ministério para inoculá-la na população da cidade do Rio de Janeiro. Estava iniciado o

confronto. Poucos meses depois de descoberta, a vacina ganhava das instituições

responsáveis o selo de veracidade. O grande impacto desta decisão pode ser observado nas

páginas dos maiores jornais do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, este se tornou um dos

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

Salvador: UFBa / UEFS / UFMG, 2012. ISBN: 978-85-62707-30-8

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temas mais recorrentes nas discussões entre literatos, jornalistas, políticos e médicos. Um

debate no qual os opositores de Freire acusavam-no de inocular a vacina sem antes ter

certeza de seus resultados e de sua eficiência (BENCHIMOL, 1999, p.75).

A partir da autorização para inoculação da vacina na população, a imprensa

carioca transformou-se em uma grande arena de discussões sobre a validade do

conhecimento médico-científico produzido naquele momento. Qual era a eficácia da

vacina? Seria ela uma ameaça? O que estava sendo inoculado na população da cidade, a

cura ou a dúvida? A perplexidade diante do tema era tanta que, como relata Benchimol,

um mesmo jornal podia ser flagrado emitindo opiniões diversas e muitas vezes

contraditórias sobre a questão. É o caso, por exemplo, do autor da “Chronica da semana”,

coluna publicada semanalmente no jornal Gazeta de Notícias. O colunista, que a princípio

rejeitou a noção de que a profilaxia da febre amarela pudesse provir do “fac-símile

reduzido” da “horrível moléstia”, acabou por aplaudir, semanas depois, o esforço do

governo e do cientista em subjugar a doença com o micróbio “amansado” (BENCHIMOL,

1999, pp. 78-79).

A Gazeta de Notícias, um dos maiores jornais da cidade, dedicou especial

atenção ao debate, reservando muitas de suas páginas ao tema. Colunas como “Questões

Científicas”, “Higiene Pública” e “Febre Amarela” revelavam toda a preocupação deste

jornal não apenas com a discussão sobre a ciência médica do período, mas principalmente

com as políticas de saúde e higiene pública implementadas na cidade. Em uma época de

tantas polêmicas, como foi o ano de 1883, o jornal de Ferreira de Araújo (médico formado

pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro) não tinha como se abster dos embates

surgidos sobre a vacina inventada por Domingos Freire. Um jornal que se propunha

popular, que era vendido a preços mais baixos e que tinha a pretensão de ampliar seu

público leitor (SODRÉ, 1999, p.224), tornava-se um local privilegiado para debater o

papel da ciência, em especial a médica, na sociedade.

O interessante em observar, entretanto, é a maneira como este assunto acabou

por extravasar as chamadas colunas “científicas” do jornal e se embrenhou em colunas de

caráter mais literário e humorístico, indicando que o tema da ciência podia ser mais que

uma questão de saúde pública. Surgindo quase simultaneamente aos novos estudos de

Domingos Freire sobre a febre amarela, a coluna “Balas de Estalo”, por exemplo, também

participou intensamente das discussões sobre a ciência médica, mostrando-se um espaço

heterogêneo e aberto a opiniões divergentes. Esta série, que foi publicada diariamente

entre os anos de 1883 e 1886 na Gazeta de Notícias, contou com a participação de

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renomados literatos do período, todos assinando pseudônimos nas crônicas. Entre seus

principais colaboradores estavam Machado de Assis, Capistrano de Abreu, Valentim

Magalhães e o próprio Ferreira de Araújo1. “Balas de Estalo”, publicada na movimentada

década de 1880, destacou-se por vivenciar e relatar as tensões políticas e sociais ocorridas

nos últimos anos de vida da monarquia brasileira. Assuntos como política imperial,

religião, escravidão, imigração, polícia e mesmo a própria imprensa fizeram parte esta

série, que registrou as grandes discussões que desde a década anterior marcavam o

cotidiano da política brasileira. O humor e o formato coletivo marcaram a trajetória desta

série, que em pouco tempo se transformou em um sucesso na cidade (RAMOS, 2005).

Para observar a maneira como o assunto da vacina de Freire foi incorporado

por diferentes espaços do jornal, destacamos quatro narradores de “Balas de Estalo” que

dão testemunhos muito diferentes sobre a ciência médica do período. Entre eles, dois são

médicos, o que, no entanto, não assegura um discurso homogêneo. O objetivo desta

seleção é analisar como esses testemunhos tão diferentes estão dialogando e construindo

uma memória sobre o assunto, evidenciando um ambiente de incertezas, imprecisões,

descobertas e, principalmente, de falta de consenso entre os médicos. Apesar de nem

sempre estar falando diretamente das pesquisas de Domingos Freire e nem de sua

polêmica vacina, “Balas” está totalmente imersa nesta discussão, pois em muitas de suas

crônicas ela debate, duvida e questiona as credenciais do saber médico, a função da

medicina – e da ciência – na sociedade. Em plena campanha de aplicação da vacina contra

a febre amarela, o que parecia reinar na cidade era, por fim, a dúvida e a perplexidade

diante dos embates da ciência.

A caracterização das personagens no debate de “Balas de Estalo”

Ferreira de Araújo doutorou-se em medicina em 1867, pela Faculdade de

Medicina do Rio de Janeiro. Após dez anos, abandonou a profissão para se dedicar ao

jornalismo, fundando posteriormente a Gazeta de Notícias. Embora tenha abdicado do

exercício da medicina, Ferreira de Araújo, entretanto, deixava transparecer nas páginas de

seu jornal o seu comprometimento com esta ciência. A publicação de colunas como

“Questões Científicas” e “Higiene Pública” revelavam a preocupação com os assuntos

1 Inicialmente a série contava com a participação dos seguintes pseudônimos: Lulu Sênior (Ferreira de Araújo),

Zig-Zag e João Tesourinha (ambos assinados por Henrique Chaves), Décio e Publicola (assinados por Demerval

da Fonseca), Lélio (Machado de Assis), Mercutio e Blick (assinados por Capistrano de Abreu) e José do Egito

(Valentim Magalhães). Posteriormente, ingressaram Confúcio, LY e Carolus, todos ainda sem identificação.

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médicos. Discussões sobre a destruição de cortiços, sobre a manutenção da salubridade da

cidade do Rio de Janeiro, sobre a autonomia da Junta Central de Higiene, as descobertas

científicas sobre doenças como a febre amarela e o beribéri e até sobre a importância dos

laboratórios para o avanço dos conhecimentos médicos sempre estiveram presentes nas

páginas da Gazeta de Notícias2. Através de seu personagem Lulu Sênior, Araújo

construiu, ao longo da série, um ponto de vista como médico alopata e, principalmente,

como crítico das práticas alternativas de cura, diferentes da medicina oficial. Exemplo

disso pode ser encontrado na crônica de 22/04/1883, quando o narrador comenta uma peça

teatral em cartaz, chamada O Homem da Máscara Negra:

O Homem da Máscara Negra é um desses dramas que não deixam, ao

domingo, um só lugar vazio no Theatro São Pedro. Hoje, se alguma

lacuna lhe notarem os espectadores, é que não se lhes apagou da memória

o nome do grande ator, do imenso Sr. Germano, que a estas horas, no Rio

Grande do Sul, exerce a medicina homeopática com um brilho em nada

menor que o que adquiriu na cena. Somente agora os seus espectadores,

em vez de o aplaudirem, vão cochichar na terra santa com as raízes de

mandioca3.

Ou seja, para Lulu Sênior, a homeopatia manda seus pacientes para debaixo da

terra. Crítica repleta de ironia, o pseudônimo de Araújo ridiculariza a liberdade

profissional existente na província do Rio Grande do Sul, pondo em xeque a

convivência entre diferentes terapêuticas nesta região4. Lulu Sênior não escondia,

assim, seu olhar de médico alopata, defensor desse tipo de medicina como única

alternativa de cura. Uma postura que será reafirmada na crônica do dia 18/07/1883,

quando o mesmo narrador ao responder a um artigo publicado no jornal católico O

Apóstolo, escreve uma “bala” na qual acusa a Igreja católica de omissão diante do

“problema” dos curandeiros. O artigo do Apóstolo afirmava que os literatos da Gazeta

de Notícias estavam contra os salesianos, chegados recentemente ao Rio de Janeiro.

Com muita ironia, Lulu Sênior responde:

(...) o reverendo Apóstolo (Benedicite, padre mestre) fala de tudo o que

eu disse e que não disse nas Balas, menos de uma cousinha que aliás era 2 Para ler sobre esses assuntos na Gazeta de Notícias ver, por exemplo, os dias 12, 13, 17, 23 e 27 de setembro

de 1883 e dias 2, 4, 5, 6, 8 e 9 de outubro de 1883. 3 “Balas de Estalo”, 22/04/1883, Lulu Sênior (Ferreira de Araújo). 4 Sobre a convivência entre diversas práticas de cura no Rio Grande do Sul conferir As Artes de Curar.

Medicina, Religião e Positivismo na República Rio Grandense – 1889-1928, de Beatriz Weber. Nesta obra,

autora acompanha toda a dificuldade dos médicos em estabelecer sua ciência, nos dá uma idéia do contexto, dos

conflitos em torno da consolidação da Medicina. Influenciado pelo Positivismo, o Rio Grande do Sul, permitindo

a liberdade profissional, presenciou um dos mais complexos processos de efetivação do saber médico (WEBER,

1999).

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o melhor bocado do meu pastel: o tal milagre do padre Bosco, que se

fechou num quarto sem testemunhas com um cadáver, e depois veio cá

para fora dizer que tinha ressuscitado o morto durante cinco minutos.

Este proposital silêncio do colega, que é macaco velho, enche-me de

satisfação desde o dedo mindinho do pé direito até o cocuruto da cabeça,

porque me confirma na idéia que eu tinha, de que os reverendos cá da

terra não são como os Boscos, que imaginam que o mundo é povoado por

pedaços de asno5.

O narrador da “Balas” satiriza o fato de a própria igreja não acreditar em

milagres nem nos efeitos da “água de Lourdes”. Uma vez que nem os reverendos do

Apóstolo acreditam nas ações milagrosas, Lulu Sênior cobra do jornal uma atitude em

relação a um anúncio que, segundo ele, havia surgido na imprensa no dia 15 de julho de

1883 e prometia curar diversas doenças através da oração:

“Cura-se por orações dores de cabeça, atalha-se empigens, cobreiras,

convulsões, erisipelas, e sendo a primeira vez não torna a vir tumores,

bichas, maus olhares nas crenças, saídas dos bens, perigoso parto, todo

mal desaparece como por encanto, etc., etc.; no beco de tal, números

tantos...” Não vai o número da casa para não fazer reclame ao traste6.

Indignado diante do anúncio, chamando o “rezador” de “malandro”,

“pantomimeiro” e “patife”, o narrador ironiza a hipótese de Deus só curar as pessoas

depois que estas tivessem se dirigido ao “beco” para dar “pataca e meia” a um

“malandro”. Há para ele uma clara distinção entre religião e medicina, sendo esta última

mais prática, positiva e real. Para que ir ao “beco” tratar com um malandro, se é possível

ir ao “Faria” para que ele resolva o problema com “um golpe de bisturi”? O narrador

prossegue na crônica dando soluções diversas para outras doenças apontadas no anúncio:

para “maus olhares”, um “bom cacete” e para a tal “erisipela”, um copo de cerveja. Nada

de rezas, milagres, nem intervenções divinas.

Na segunda metade do século XIX há toda uma campanha por parte da

imprensa e dos médicos contra as práticas “ilegais” de cura. Segundo Gabriela dos Reis

Sampaio, no Rio de Janeiro, assim como em todo o país neste período, conviviam as mais

variadas práticas de cura, todas em constante diálogo e embate com a medicina oficial do

império. Segundo a autora, “embora proibidas por lei, e arduamente combatidas por

grupos médicos e por setores da imprensa, as práticas ilegais de medicina estavam

presentes com bastante força no cotidiano dos mais variados cidadãos do império”

(SAMPAIO, 2001, p.24). A fala de Lulu Sênior revela um pouco destes embates, no qual

5 “Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 18/07/1883. 6 “Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 18/07/1883.

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muitos médicos lutaram para conseguir maior prestígio junto às autoridades brasileiras,

ressaltando a medicina alopática como a “mais científica” dentre as outras práticas de

cura. O prestígio de Domingos Freire e sua vacina junto ao ministério não deixam de ser

um dos resultados dessas disputas. Para Sampaio, tentando estruturar e fortalecer a sua

medicina, e visando torná-la a única forma legítima de exercício da arte de curar, esses

médicos precisavam realizar reformas e melhorias no interior da própria medicina, mas

era também fundamental que criticassem e combatessem as práticas de cura diferentes da

sua (SAMPAIO, 2001, pp.25-26).

Na crônica do dia 15/07/1883 o narrador encerra o assunto afirmando que

quando tem dores de cabeça, “em vez de ir à reza”, deita “sinapismos nas pernas”, dando -

se muito bem com a receita. Lulu Sênior acusa o “patife rezador” de estar fazendo

“concorrência” à medicina “cá da terra”, e cobra um artigo bem “cheio de latim” do

Apóstolo contra o “malandro”. Assim, fica claro que, para Lulu Sênior, religião e

medicina são coisas totalmente diferentes, sendo esta última muito mais concreta na cura

das doenças.

Testemunho diferente será dado, entretanto, por Lélio, pseudônimo de

Machado de Assis em “Balas de Estalo”7. Para este narrador, marcado pela perplexidade

diante de diversos assuntos debatidos na série, a separação entre medicina e religião não

se fazia tão evidente e delimitada, como queria Lulu Sênior. Ao falar da dosimetria8, por

exemplo, nova tendência medicinal na época, Lélio questionava as tantas alternativas de

cura que observava nas notícias de jornal. Depois da abertura de uma enfermaria

“dosimétrica” na Sociedade Portuguesa de Beneficência, o narrador publica uma crônica,

na qual sugere que as enfermarias não deveriam ser apenas abertas, mas explicadas:

Mas não basta abrir enfermarias; é útil explicá-las. Se a dosimetria quer

dizer que os remédios dados em doses exatas e puras curam melhor ou

mais radicalmente, ou mais depressa, é, na verdade, grande crueza privar

os restantes enfermos de tão excelso benefício, uns ficarão meio curados,

ou mal curados, outros sairão dali lestos e pimpões; e isto não parece

justo. Note-se bem que eu não ignoro que os doentes, por estarem

doentes, não perdem o direito à liberdade; mas entendamo-nos: é a

liberdade do voto, a liberdade da consciência, a liberdade de testar, a

liberdade do ventre (teoria Lulú Sênior); por um sentimento de

compaixão, de liberdade de descompor. Mas, no que toca aos

medicamentos, não! Concedo que o doente possa escolher entre a alopatia

e a homeopatia, porque são dois sistemas – duas escolas -, a escola 7 Sobre a participação de Machado de Assis na série “Balas de Estalo” conferir As máscaras de Lélio (RAMOS,

2010). 8 A “dosimetria” de Borggraeve, sistema terapêutico lançado no século 19 e baseado na administração de

medicamentos sob a forma de grânulos que continham os princípios ativos das substâncias medicinais, dados a

tomar em intervalos certos, teve seus adeptos no Brasil (SANTOS FILHO, 1947, p.240).

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cadavérica (versão Maximiano) e a escola aquática. Mas não tratando a

dosimetria senão da perfeita composição dos remédios, não há para o

doente a liberdade de medicar-se mal. Ao contrário, este era o caso de

aplicar o velho grito muçulmano: - crê ou morre9.

Lélio neste trecho satiriza a possibilidade de o doente medicar-se mal,

pressuposto da dosimetria segundo ele. Ele reconhece, mesmo com ironia, o direito do

paciente de escolher entre alopatia e homeopatia, porque esses são “dois sistemas”, “duas

escolas”. A personagem parece retratar todo o ambiente de incertezas e descrenças na

ciência médica do período como, por exemplo, o que se refere à criação de uma teoria

médica na qual há a possibilidade de o paciente tomar o remédio em doses ou horários

errados. Ou mesmo num ambiente no qual os médicos estão se atacando nos jornais

diariamente no que diz respeito à descoberta da vacina contra a febre amarela e a sua

inoculação na população do Rio de Janeiro. E é devido a essas incertezas que o narrador

propõe: “crê ou morre”. A medicina, suas descobertas científicas e suas teorias de cura são

como um “grito muçulmano”, ou seja, são um ato de fé. E ele continua:

Se, ao menos, a própria dosimetria permitisse o uso de ambos os modos,

doses bem medidas e doses mal medidas, tinha a enfermaria uma

explicação. E não seria absurdo. Conheci um médico que dava alopatia

aos adultos, e homeopatia às crianças, e explicava essa aparente

contradição com uma resposta épica de ingenuidade: para que hei de

martirizar uma pobre criança? A própria homeopatia, quando estreou no

Brasil, teve seus ecléticos; entre eles, o Dr. R. Torres e o Dr. Tloesquelec,

segundo afirmou em tempo (há quarenta anos) o Dr. João V. Martins, que

era dos puros. Os ecléticos tratavam os doentes “como a eles

aprouvesse”. É o que imprimia então o chefe dos propagandistas. Mas a

dosimetria é contrária a esses tristes recursos. Parece mesmo que esta

nova religião ainda não passou do versículo 18, cap. IV de S. Mateus, que

é o lugar em que Jesus chama os primeiros apóstolos, Pedro e André:

“Vinde a mim, e farei que sejais pescadores de homens”. Não há ainda

tempo de ter hereges nem cismáticos: está nas primeiras pescas de

doentes.

Neste trecho fica mais uma vez clara a associação entre medicina e religião. A

medicina tal qual uma religião precisa “pescar” novos adeptos. A própria construção do

texto nos sugere isso com o uso de exemplos bíblicos para discutir o assunto. A

contradição de alguns médicos também diz muito sobre o ambiente de incertezas da

medicina no final do século XIX. Também nesta passagem há outra ironia interessante do

narrador: a da inocuidade da homeopatia – que não faz bem nem mal aos pacientes, não

tem efeito algum e por isso é dada às crianças, não causando dor nem agravando o estado

9 “Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 02/07/1883.

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de saúde delas. Lélio descreve essa ciência que está “tateando” respostas para as doenças

existentes, mostrando como estão confusos os médicos, e como este estado de coisas

causa ceticismo nas pessoas ou, no mínimo, a perplexidade. E Lélio continua:

O único ponto em que a escola dosimétrica se parece com a homeopatia é

na facilidade que dá ao doente de tratar-se a si mesmo; mas isto não quer

dizer que tenha de cair no mesmo abuso do ecletismo. Quer dizer que a

ciência, como todas as moedas, tem seus trocos miúdos. Dois amigos

meus andam munidos de caixas dosimétricas; ingerem isto ou aquilo,

conforme um papelinho impresso, que trazem consigo. Levam a saúde

nas algibeiras; chegam mesmo a distribuí-la aos amigos. Lá que isto seja

novo, é o que nego redondamente. O autor destas vulgarizações parece

ser um certo Asclepíades, contemporâneo de Pompeu. Esse cavalheiro era

mestre de eloqüência; mas sentindo em si outros talentos, estudou a

medicina, criou uma arte nova, e anunciou cinco modos de cura

aplicáveis a todas as enfermidades. Estão ouvindo? Cinco, nem mais uma

pílula para remédio. Essas drogas eram: dieta, abstinência de vinho,

fricções, exercícios a pé e passeios de liteira. Cada um sentia que podia

medicar-se a si próprio, escreve Plínio – e o entusiasmo foi geral. Tal

qual a homeopatia e a dosimetria. Nem uma nem outra tocou ao sublime

daquele Asclepíades, que, segundo o mesmo autor, encontrando um

saimento de um desconhecido, fez com que o inculcado morto não fosse

deitado à fogueira, levou-o consigo e curou-o; mas, em suma,

aguardemos o primeiro freguês que a escola cadavérica remeter para a

Jurujuba10.

Outra grande ironia do narrador é ligar o passado remoto da medicina a um

certo Asclepíades, que segundo ele era mestre de eloqüência, e que, “sentindo em si outros

talentos, estudou medicina”. Ou seja, além de aproximar os limites entre medicina e

religião, Lélio ainda imprime nas origens dessa ciência uma grande dose de eloqüência, ou

seja, de convencimento do paciente através da palavra. De qualquer forma, é preciso

convencer as pessoas da eficiência da medicina, é preciso fazer-se crer. O ceticismo

parece ser tão grande neste narrador que, mesmo após falar dos cinco bons remédios

criados por Asclepíades e das vantagens de medicar-se a si próprio – característica

presente também na homeopatia e na dosimetria -, ele encerra seus elogios dizendo estar

aguardando o “primeiro freguês que a escola cadavérica remeter a Jurujuba”, ou seja, que

morrer. A crítica parece clara: até o que parece inofensivo, como a homeopatia, pode

matar.

Assim, Machado de Assis cria uma personagem perplexa e descrente nas

tantas medicinas que se dizem verdadeiras. Porém, devemos lembrar que é a personagem

quem está confusa diante de tantas alternativas, e só através dela podemos chegar às

opiniões de Machado de Assis. Lélio em momento nenhum se revela como Machado de 10 Cemitério existente na cidade do Rio de Janeiro.

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Assis, ele é uma personagem, com sua “autonomia”, suas opiniões. É através desse

narrador que Machado satiriza as múltiplas ciências médicas existentes no período, mas

isso não significa, necessariamente, que ele estivesse perplexo como sua personagem.

Lélio e Lulu Sênior parecem, então, se opor em suas posições em relação à medicina. De

uma forma geral, Lulu Sênior, pseudônimo de um médico, acredita na medicina como

forma certa de cura, na sua cientificidade e nas suas credenciais. Lélio, por seu lado,

desconfia dessa cientificidade.

Passemos agora a uma figura bastante interessante: Décio, pseudônimo do

médico Demerval da Fonseca, que também é jornalista e colaborador das “Balas de

Estalo”. Longe dos extremos, como são os casos de Lulu Sênior e Lélio, esta personagem

caracteriza-se pela contradição, algo que Benchimol já havia detectado em outras colunas

da Gazeta de Notícias. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Demerval

da Fonseca foi delegado da Inspetoria Geral da Higiene e ajudante do diretor da biblioteca

da mesma. Na Gazeta de Notícias, colaborou com colunas como a “Dizia-se Hontem” e

“Omnibus”, ambas satíricas, além de escrever notícias e críticas musicais11

. Em “Balas”

ele também deixou registradas suas impressões sobre aquele final de século, inclusive

sobre a medicina, assunto bastante freqüente em suas crônicas. Na crônica do dia

5/05/1883, por exemplo, Décio comenta uma série de artigos publicados no Jornal do

Commercio sobre a febre amarela e o emprego de salicilato de quinina, nos quais o

médico Bento Azevedo Maia Rubião, além de escrever um texto em prosa, escreveu um

poema dedicado à Santíssima Princesa Imperial:

Assim como a febre amarela, reveste uma fórmula típica, segundo afirma

o doutor (médico) no artigo em prosa oferecido à consideração dos

homens da ciência; do mesmo modo o seu arrazoado em verso reveste a

forma de um Hino oferecido à Sereníssima princesa imperial. Não se

pode ser ao mesmo tempo nem mais médico nem mais Santo Agostinho!

Ninguém tão profundamente conhece as virtudes dos antitérmicos – e do

Creio em Deus Padre! Apenas este distinto apóstolo da ciência e

convicto correligionário do Apóstolo, há dous pontos que ele nem

profunda nem levemente procura conhecer: o mistério da Santíssima

Trindade e o que cerca o elemento morbígeno das febres palustres!

Mistério – e miasma!(...) Não discutiremos as opiniões do católico acerca

da origem da hypoemia dos caipiras dos sertões de Santa Izabel,

hypoemia que é causada pela intoxicação carbônica emanada da riqueza

das vegetações. (...) Apenas tentaremos contestar uma ou outra opinião

do médico acerca da Cruz (...). (...) O ilustre médico, consagrado ao

11 Demerval da Fonseca – “(...) Ele é tudo quanto quer ser. Médico, cirurgião, folhetinista, chronisemanista,

noticiarista, polemista, pianista, crítico musical, calemburguuista, omnibista, diziasehontista, tudo. (...) Como

médico, dizem ser bastante hábil e muito feliz nas curas”. Zeca, “Galeria Jornalística”, A Semana, 16/05/1885.

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estudo da patogenia da febre amarela e à contemplação do dogma da

infalibilidade, podia no seu duplo caráter de homem da ciência e autor de

hinos religiosos pretender:

- A graça de beijar a mão do Eterno;

- A satisfação de receber do Rei da equidade o segredo do tratamento

específico do tifo americano; (...)

- A glória de possuir por intermédio d’Ele meio de por uma vez

extinguir o micróbio; (...)

Mas não. Quis só e simplesmente – nem rosto, nem olhos: As graças do

Eterno Assento. A comoção impede-me de continuar. Décio12

Em primeiro lugar, Décio ridiculariza as opiniões do tal médico sobre as

causas e sobre a cura da febre amarela. Ele simplesmente desconhece o “mistério” e o

“miasma”, ou pelo menos não se aprofunda em os conhecer. Tal é o desprezo de Décio

pelas opiniões científicas do médico que diz nem querer discutir as razões da “hypoem ia

dos caipiras de Santa Izabel”, ele prefere discutir as questões acerca da Cruz, tão

satirizadas quanto às da ciência. A associação entre ciência e religião é motivo para piadas

na opinião de Décio, que o tempo inteiro ironiza o duplo caráter do médico – “Não se

pode ser ao mesmo tempo nem mais médico nem mais Santo Agostinho!” – além de fazer

o trocadilho: as opiniões sobre a febre amarela são do “católico” e as sobre a Cruz são do

médico, e são justamente as opiniões deste “médico” que o narrador vai discutir. Ele

desconfia das credenciais deste médico “correligionário do Apóstolo” e certamente

concorda com Lulu Sênior na total separação entre medicina e religião.

Uma vez que as opiniões de Maia Rubião acerca da febre amarela são

desprezíveis para Décio, este sugere que ele se dirija a Deus, já que é católico tão

fervoroso, e peça para descobrir o tratamento do tifo e o extermínio do micróbio. Se a fé é

tão grande, que o médico não peça apenas “as graças do eterno assento”, peça a solução

para as doenças que atacam a cidade. Décio parece ficar bastante irritado com um médico

que, depois de publicar vários artigos sobre a febre amarela e seus tratamentos, apele para

a religiosidade, como se os cientistas não fossem capazes de solucionar e descobrir as

causas da doença. Décio, então, está falando como alguém que acredita na ciência médica

(pelo menos neste primeiro momento).

No dia 23/08/1883, entretanto, Décio escreve ainda uma outra crônica

bastante interessante. Nesta, ele critica e ridiculariza a Faculdade de Medicina do Rio de

Janeiro e suas práticas de ensino. Primeiro, afirma ser a faculdade uma “fonte inesgotável

de balas de estalo”, depois satiriza o diretor da instituição – Conselheiro Sabóia –, seus

12 “Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 05/05/1883.

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atos administrativos, seu português errado, sua exígua permanência na faculdade, enfim,

quase nada escapa ao nosso “atirador”. Quanto às aulas da faculdade, deixa bem clara sua

opinião:

É ali que os rapazes têm um certo número de aulas... para inglês ver,

criadas ad majorem Sabóia gloriam e que até agora só têm a precisa

consagração nos livros de pagamentos do Thesouro Nacional.

Ao fazer esta afirmação, Décio critica a formação dos que saem médicos

desta instituição, o que, em outras palavras, significa dizer que, embora ele acredite na

ciência médica, ele consegue fazer críticas a ela e as suas possíveis falhas. Décio ao

mesmo tempo em que acredita na ciência médica, acha que esta deve ser aperfeiçoada.

Porém, sua crítica não acaba aí. O verdadeiro alvo desta crônica são as aulas de cirurgia

desta faculdade, que utilizam cachorros nas operações experimentais:

O que, porém, ninguém conhece como tipo, como título de recomendação

à estima e admiração dos póesteros, é a tal aula de operações da mesma

faculdade. Por ali passamos anteontem, e forçoso é que confessemos:

jamais imaginamos que tão feliz fosse o gênero humano, que tivesse para

representá-lo nas tais operações experimentais... os indefesos cães! Um

consolo para os que o não são. Uma verdadeira felicidade para os pobres

doentes, que, não tendo para onde recorrer, vendo-se entre a moléstia e o

tal operador, só pudessem volver os olhos – para um padre. (...) Chegados

lá dentro [os alunos da faculdade], encontram o professor rodeado de um

certo número de vítimas para o sacrifício, o que equivale a dizer de

indivíduos votados a uma demonstração científica: são os pobres, os

inocentes, os miseráveis cães (...). (...) O professor, cheio de ferros e

ciência, avança para um cão, e, terrivelmente inspirado, repete as

palavras do livro. Depois, fazendo objeto da lição, a compressão de uma

artéria ou a recessão de um membro, transforma um cão morto em um

cão vivo. (...) O cão não protesta, limita-se a estrebuchar, e, ganindo um

pouco, estica a canela, tão vivo como se fora um homem.

Para terminar a crônica, Décio sugere que a Câmara Municipal não gaste mais

dinheiro comprando “bolinhas de estricnina”, restabelecendo assim suas finanças, e mande

os cachorros para a sala de operações da faculdade de medicina. E conclui: “Haverá daí

por diante um só cão leal nesta cidade?”. O narrador ridiculariza todo o ensino de

operações da Faculdade de Medicina e o professor por ele chamado “Matta-cães” –

referindo-se ao Dr. Cláudio Velho da Motta Maia. Mas não é só isso. Sua sátira tem outras

implicações: primeiro desacredita as pessoas na prática cirúrgica, ele mesmo não acredita

nela quando fala da felicidade do gênero humano escapando de tais cirurgias e se

lamentando quando conclui que para um doente entre a moléstia e a operação só resta

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“volver os olhos para um padre”. É aí que parece estar a contradição: um médico, formado

pela faculdade que acaba de criticar, defensor da ciência médica - como vimos na crônica

do dia 05/05/1883 – cria uma personagem que desmoraliza todo o ensino daquela

instituição, afirmando ser preferível recorrer a um padre, no caso de moléstia, que a um

médico-cirurgião. No dia 23/07/1883 Décio já havia feito uma menção a esse assunto e

concluía satirizando que “o lente de operações faz experiências para provar que em caso

de moléstias de homens, ele sabe operar perfeitamente em cães”.

A dificuldade no caso de Décio, entretanto, consiste na relação estabelecida

entre Demerval da Fonseca e o narrador criado por ele. Que distância existe entre a

opinião de um e de outro neste caso da medicina? Demerval da Fonseca, diferentemente

de Ferreira de Araújo, nunca revelou a identidade de seu pseudônimo – pelo menos não

durante todo o ano de 1883. Sabemos que Décio é o pseudônimo de um médico pela

sugestão de outros narradores da série13

, mas definir a relação entre o literato e a sua

personagem parece-nos algo mais complexo. No entanto, a crítica à ciência médica e ao

mesmo tempo o seu reconhecimento como única possibilidade de cura estão presentes nas

crônicas deste narrador de “Balas”. Não estando nos extremos das opiniões sobre o

assunto, como Lulu Sênior e Lélio, Décio se caracteriza de forma mais dúbia, mais crítica

mesmo com relação àquilo em que acredita.

Passemos agora a José do Egito, pseudônimo de Valentim Magalhães. No dia

28/07/1883 este narrador escreve uma “bala” comentando a crônica de Lulu Sênior,

publicada no em 18/07/1883, já analisada aqui por nós, na qual este narrador cobrava uma

postura da Igreja em relação ao anúncio de “cura por orações”. José do Egito se diz

indignado com o posicionamento de Lulu Sênior e afirma:

Se eu não soubesse que é mais de curar abusos do que erisipelas que

viveis, que o vosso empenho social não é extrair as mazelas dos corpos,

mas injetar a luz nas consciências, eu afirmaria intemeratamente que o

móvel da tua deplorável ação fora fazer reclame à clínica. Isto, porém,

não vos justifica de todo; se não foi para a vossa sardinha que puxaste a

brasa, bem podia ter sido para a sardinha do Decio, do Gabizo, do Pedro

Paulo e dos outros, que em vez do Padre-Nosso e do raminho de arruda

receitam pílulas e ventosas. Em todo caso permiti que vos diga (...):

andaste mal. Neste tempo de maravilhosas descobertas e de incessantes

progressos na arte de despachar para o outro mundo os habitantes deste, é

mais do que uma injustiça, é uma verdadeira iniqüidade expelir do seio

das medicinas a Bruxopathia. É tão boa como as outras e como elas, tem

13 Nas crônicas dos dias 28/07/1883 e 20/11/1883, José do Egito e Lulú Sênior respectivamente nos sugerem que

Décio é um médico. Cf.Gazeta de Notícias.

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igual direito à vida. O que a distingue das outras é ser mais aperfeiçoada,

menos materialista. (...) Em fundo, sinceramente, é uma questão que

sempre termina em pathas: o fim é sempre o mesmo. É do livre concurso

que nasce a supremacia do bem. Me parece mesmo que isto é uma idéia

positivista: Ensine quem quiser, cure quem quiser. Nada de privilégios.

A crônica de José do Egito realiza dois movimentos bastante interessantes:

ao mesmo tempo em que defende a “bruxopathia” e a liberdade de cura, satiriza algumas

práticas alternativas que ele chama de “fórmulas bruxopathicas”. Um dos exemplos de que

se utiliza em sua ironia é o tratamento para asma, que consistiria em pendurar no pescoço

de um enfermo um “vaga-lume metido dentro de um breve”, sem que, no entanto, o

paciente percebesse o conteúdo do breve. E vai além afirmando que “para matar os bichos

nas plantas e nos animais não há melhor enxofre, nem mais evidente mercúrio do que

certa lengalenga (grifo meu) cabalística, saída tão somente dos rezadores especialistas”.

Ou seja, num primeiro momento, o narrador chama a atenção de Lulu Sênior

para as vantagens da liberdade de cura – “é do livre concurso que nasce a supremacia do

bem” -, dizendo ser a “Bruxopathia” mais um sistema médico tal como os outros que

viviam em um tempo de “descobertas e de incessantes progressos na arte de despachar

para o outro mundo os habitantes deste”. Além de nos sugerir completa descrença em

todas as práticas de cura do período, o narrador ainda diz que negar a “Bruxopathia” e a

liberdade de cura seria uma questão de “privilégios”. Conforme avançamos na leitura,

tudo nos leva a crer que o autor, desacreditando em tudo, não se importa que diferentes

sistemas, terminados em “patha”, convivam pacificamente, uma vez que todos matavam

seus pacientes. “O fim é sempre o mesmo”. Porém, num segundo momento, o narrador,

ironicamente, parece desconstruir tudo o que havia sido dito na primeira parte da crônica.

A “Bruxopathia” passa a ser constituída por uma porção de práticas. No final da crônica,

José do Egito conclui seu texto com uma história cujo objetivo parece ser desmoralizar

totalmente a “Bruxopathia”. A história consiste no sumiço de algumas moedas de prata

que levantou suspeitas sobre uma mulher que havia passado pela casa pedindo “não sei o

que”. Várias pessoas são então chamadas para ajudar a descobrir a verdade sobre as

moedas. Estando a suspeita presente em uma conversa sobre o roubo, foi dito que o tal

dinheiro desaparecido pertencia a Nossa Senhora e que por isso o ladrão não conseguiria

se aproveitar dele como forma de castigo. Segundo José do Egito, no mesmo instante em

que isso foi dito a “indiciada tremeu”. Em seguida, a mulher afirmou saber uma reza

infalível para “achar o perdido”, e assim entrou para o quarto e “sozinha, rezando,

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mexendo e remexendo” permaneceu longo tempo até que saiu dizendo ter encontrado as

moedas. José do Egito conclui:

Caímos todos de joelhos, constritos e lacrimantes, e eu, sem demora,

escrevi ao bispo, narrando-lhe o inaudito e estupendo milagre. À vista do

que deixo exposto, meu caro Lulú Sênior, estou bem convencido que

fareis uma reforma completa em vossas opiniões médicas e que ireis sem

demora, vós, o Décio e os mais sequazes das medicinas experimentais e

profanas à confissão aos pés do Apóstolo (...).

Após a leitura da história podemos compreender finalmente esse duplo

movimento da crônica de José do Egito, que parece querer confundir o leitor, defendendo

irônica e involuntariamente outras práticas de cura, ou mesmo criticar todos os sistemas

terapêuticos através da ridicularização da “bruxopathia”, uma vez que a igualou a todas as

outras logo no início da crônica. Uma única alternativa parece ficar de fora das intenções

do narrador: a defesa irrestrita da medicina oficial e legalizada. Isso nos é sugerido

quando o autor afirma que todos os sistemas de cura “despacham” seus pacientes para o

outro mundo. A posição de José do Egito em nenhum momento dessa e de outras crônicas

– (como exemplo a do dia 13/10/1883) - parece ser a de total defesa da medicina, como

faz Lulu Sênior. Porém, defini-lo como um total descrente nas ciências médicas seria

negar o duplo movimento realizado na crônica do dia 28/07/1883. José do Egito parece

não querer se decidir claramente pela defesa ou pela crítica da ciência médica, ele deseja

provocar a discussão.

Assim, o que o conjunto desses tão diferentes narradores pode estar nos

sugerindo é o ambiente de dúvidas e incertezas com relação à medicina vivida naquele

final de século. Não são apenas os médicos e cientistas que se sentem “perdidos” em

relação às causas e curas das doenças – como no caso de Domingos Freire e seus

opositores; as pessoas hesitam no que acreditar. Mesmo no caso daqueles literatos que são

médicos, como Demerval da Fonseca, não há uma homogeneidade de opinião. Ele acredita

na medicina, exerce-a, mas não concorda com tudo que ela pressupõe. A voz da

personagem de Machado de Assis, Lélio, não é a única a demonstrar perplexidade diante

de tantas ciências que se afirmam verdadeiras e que se negam mutuamente, a dúvida e a

insegurança parecem estar presentes no discurso de todos, com exceção de Lulu Sênior. A

série “Balas de Estalo”, reunindo essas diversas opiniões numa mesma coluna, nos ajuda a

reconstruir esse ambiente de perplexidade, no qual as pessoas estão sendo vacinadas sem

sequer ter a certeza de que aquela é realmente a cura para a febre amarela, ambiente no

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qual os médicos mais conceituados do período estão brigando e discutindo diariamente

nas páginas dos principais jornais da cidade. “Balas” nos dá, então, seu testemunho sobre

as incertezas da ciência médica, nos mostra as contradições dessa ciência, seu caráter

multifacetado e impreciso, as disputas que fomentaram a desconfiança nos mais variados

grupos sociais.

Há muito que a historiografia vem questionando a idéia de “medicalização da

sociedade” suscitada nos trabalhos de Roberto Machado14

, Kátia Muricy15

e Jurandir

Freire Costa16

. Escrito nos anos de 1970, o texto de Roberto Machado vai construir a

noção de uma “medicina social” para o século XIX, cuja maior preocupação seria a

“prevenção” das doenças e na qual o médico é visto como um “cientista social”. Essa

medicina seria não só voltada para o indivíduo, mas para a sociedade como um todo.

Segundo o autor, o médico passa a ser um “analista de instituições”, um “planejador

urbano”, o responsável por transformar a “cidade doente” e neutralizar todo o “perigo

possível” (MACHADO, 1978, pp.153-154). A medicina, então, é vista por Machado como

um instrumento de poder do Estado, como uma ciência que tem a responsabilidade de

regular e disciplinar a sociedade. Ocorre, então, o que Machado chama de processo de

“medicalização da sociedade”, que seria o “reconhecimento que a partir do século XIX a

medicina em tudo intervém e começa a não ter mais fronteiras”, um processo de

institucionalização e reconhecimento do saber médico.

Muitos são os autores, porém, que problematizam essa noção de

“medicalização”, afirmando que o autor, ao defender a idéia de imanência política do

saber médico, ignora as divergências, as resistências e os grandes conflitos gerados ao

longo de todo o século XIX no processo de estabelecimento da ciência médica como

hegemônica. Para Gabriela Sampaio, por exemplo, Roberto Machado , “acaba exagerando

na idéia de imanência política do saber médico”. Para a autora, “o fato de a

“medicalização da sociedade” estar sendo imposta pelos médicos higienistas não

significava em hipótese alguma que toda a sociedade estivesse aceitando facilmente as

regras”. Segundo Sampaio, é necessário verificar as outras respostas dadas a essa tentativa

de “medicalização” da sociedade e legitimação do saber médico, analisar como os

diferentes grupos sociais reagiam a esse saber médico. (SAMPAIO, 2001, pp.35-36). E

14 MACHADO, Roberto (org.). Danação da Norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio

de Janeiro: Graal, 1978. 15 MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo: Cia das Letras,

1988. 16 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 4a. ed, 1999.

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uma parte significativa destes embates pode ser encontrada nas páginas dos jornais. A

imprensa tornou-se, assim, arena fundamental destas discussões, destes enfrentamentos.

Se muitas vezes os jornais assumiam declaradamente a bandeira do combate a tudo que

era considerado charlatanismo, em outros momentos eram eles mesmos que faziam duras

críticas aos doutores.

Referências

BENCHIMOL, Jaime Larry. Dos Micróbios aos Mosquitos: febre amarela no Rio de Janeiro

(1880-1903). Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo:

Companhia das Letras, 1996.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 4a. ed, 1999.

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Anfiteatro da Cura: pajelança e medicina na Amazônia no

limiar do século XIX” in CHALHOUB et al. (org.), Artes e Ofícios de Curar no Brasil.

Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

MACHADO, Roberto (org.). Danação da Norma: medicina social e constituição da psiquiatria

no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo . São Paulo: Cia

das Letras, 1988.

RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e Humor nos últimos anos da monarquia: a série “Balas de

Estalo” (1883-1884). Dissertação de Mestrado em História: Unicamp, 2005.

________________________. As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas “Balas de Estalo” de

Machado de Assis, 2010. 410 p. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade Estadual de Campinas, SP: 2010.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas do Rio de Janeiro

imperial. Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT, IFCH, 2001.

SANTOS FILHO, Licurgo. História da Medicina no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1947.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 4ª ed., 1999.

WEBER, Beatriz, As Artes de Curar – medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-

grandense (1889-1928), Bauru, SP/Santa Maria, RS, EDUSC/ Ed. da UFSM, 1999.

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REFLEXÕES TEÓRICAS NA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS DA SAÚDE: A NOÇÃO

DE PODER EM BOURDIEU E NORBERT ELIAS1

Bráulio Silva Chaves

Doutorando em História/UFMG

Prof. do CEFET-MG

Maria Terezinha Bretas Vilarino

Doutoranda em História/UFMG

Profa. da UNIVALE

Resumo

A prevalência do sentido político do conceito de poder marca a tradicional História

Política, que atualmente vem sendo revista pela historiografia. No campo da discussão

ciência/saúde/doença o conceito está presente ao nos referirmos às questões do imaginário e

das práticas sociais relacionadas; bem como se apresenta na abordagem da

institucionalização da ciência e saúde pública. Ao tratarmos de temas como saúde e Estado,

instituições de saúde, saber científico, saber médico, práticas populares, atuação de

curandeiros e benzedores, dentre outros, certamente teremos um pano de fundo em que a

prática de variadas formas de poder/poderes se concretiza. Para essa discussão, elegemos as

reflexões de dois autores – Pierre Bourdieu e Norbert Elias –, que serão abordados no

sentido de um encontro teórico, suas aproximações e dessemelhanças, as contribuições de

tais arcabouços para se pensar no conceito de poder. Ambos confluem numa análise do

poder a partir de uma prática social que não é apenas material, ou puramente de instâncias

hegemônicas coercitivas, mas se dão na contingência histórica e sociológica, com sujeitos

determinados pelo seu tempo e espaço.

Palavras-chave: Bourdieu; Norbert Elias; poder.

1. Introdução

Em tempos de discussão da questão da pós-modernidade, em que o próprio

paradigma pós-moderno passa a ser questionado - da flexibilidade, das novas formas de

organização do trabalho, da razão e da ideia de progresso em xeque e pelo predomínio do

mercado numa lógica massacrante do consumismo, na esteia da reverberação de um

indivíduo marcado pela apatia, descomprometimento com a ação política e com o político –

, trazer à tona a questão do poder deve fazer parte do esforço de análise do historiador. A

hegemonia neoliberal redefiniu as noções de cidadania e inserção política, fez a sua “opção”

1 Este texto é produto das discussões do grupo de estudos sobre História da Saúde do Scientia (grupo de Teoria e

História da Ciência do Departamento de História/UFMG).

Luã Lança
Realce

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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por um sujeito apático, cínico, hedonista e que se arvora da fluidez da definição de poder

como justificativa de (não) comportamento2.

Retomar os clássicos do pensamento social é vital em um contexto como o

descrito acima. Para além da Ciência Política, a própria História das Ciências também não

pode se furtar da discussão. Se o paradigma econômico e político do nosso tempo definiu os

termos da (in)ação política, no campo das ciência também há o que se ressaltar. O cenário é

marcado pela lógica produtivista, o poder do mercado e das grandes corporações no

financiamento da ciência e dos cientistas, as chamadas “redes” que eles teceram em torno de

si mesmos como forma de sobreviver no campo da concorrência do todos contra todos,

regido por interesses que sobrepujam uma definição da “ciência como atividade para o

melhoramento e progresso social”. Tal expressão foi jogada por terra, diante do regime de

normas em que os grandes laboratórios, clientelas transnacionais dos cientistas bem

relacionados com o mercado e com o poder (que não deixou de existir) acabam por

engendrar outra lógica ao fazer científico.

Por outro lado, cabe ressaltar que a prevalência do sentido político do conceito

marca a tradicional História Política, que atualmente vem sendo revista pela historiografia.

Ao viés político do conceito agregam-se novas questões e possibilidades investigativas.

Entretanto, o través político é ainda forte o bastante para que no senso comum essa

perspectiva também predomine, ou seja, a menção ao conceito frequentemente remeta a

questões do Estado, das instituições, da força.

No campo da discussão saúde/doença o conceito está presente ao nos referirmos

às questões do imaginário e das práticas sociais relacionadas; bem como se apresenta na

abordagem da institucionalização da saúde pública. Ao tratarmos de temas como saúde e

Estado, instituições de saúde, saber científico, saber médico, práticas populares, atuação de

curandeiros e benzedores, dentre outros, certamente teremos um pano de fundo em que a

prática de variadas formas de poder/poderes se concretiza.

Não podemos perder de vista a historicidade do conceito e sua polifonia. A

contribuição de Stoppino (1986) sinaliza que

2 Sobre essa concepção de tempo presente, política e poder, concordamos com a seguinte definição: “Ao fazer

com que noções como igualdade, justiça social, cidadania e nação sejam substituídas, no espaço de discussão

política, pelos novos termos condicionantes da „modernidade‟ – consumidor, mercado, produtividade, eficiência,

qualidade -, o neoliberalismo transforma a nação num mercado. Sobe esse prisma, nação, historicamente

constituída por cidadão – sujeitos políticos que tem uma história comum de solidariedade, de lutas, de conquista

de direitos, passa a ser apenas um mercado, constituído de consumidores cujas ações são definidas pela

competitividade e pelo individualismo. No mercado, não há história social, identidade de classe, solidarismo”

(GROS, 2003, p. 88).

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em seu significado mais geral, a palavra Poder designa a capacidade ou a

possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida a

indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenômenos naturais

(como na expressão Poder calorífico, Poder de absorção).

Se o entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua

relação com a vida do homem em sociedade, o Poder torna-se mais preciso,

e seu espaço conceptual pode ir desde a capacidade geral de agir, até à

capacidade do homem em determinar o comportamento do homem: Poder

do homem sobre o homem. O homem é não só o sujeito, mas também o

objeto do Poder social (STOPPINO et al, 1986, p. 933).

Para tal discussão, elegemos as abordagens de dois autores – Pierre Bourdieu e

Norbert Elias –, que apresentaremos, de forma bastante preliminar, no intuito de

proporcionar aproximações e, mais que isso, suscitar, abrir o debate em torno das filiações

(ou não) desses autores com a noção pós-moderna de poder e das suas possibilidades

teóricas que esses autores podem abrir em torno dos estudos no campo da História das

Ciências.

2. Bourdieu e a noção de poder no interior do “campo científico”

Pierre Bourdieu (1930-2002) foi professor do Collège de France, diretor de

pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales, dirigiu a Revista Actes de La

Recherche em Sciences Sociales e a Revista Internacional Liber. Sua teoria social teve

repercussões nas várias esferas do conhecimento, como nos estudos sobre a arte, a questão

intelectual, a comunicação, o direito, a antropologia, entre outros.

No que tange especificamente aos estudos que abordam a ciência, seja numa

perspectiva histórica ou sociológica, suas reflexões foram fundamentais para o fomento do

debate da ciência no interior das ditas ciências humanas. Basta lembrar que Bourdieu

inaugura uma contenda com o texto clássico da história das ciências, A estrutura das

revoluções científicas, de Thomas Kuhn, publicado no início dos anos 1960. Ao propor a

noção de “campo científico”3, Bourdieu desferiu uma crítica ácida a Kuhn que não teria

visto os interesses que permeiam a sua comunidade científica, além de uma visão que

misturava descrição e prescrição da atividade científica. Como alternativa à comunidade

3 Bourdieu entende o campo da seguinte forma: “Chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é,

o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a

literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou

menos específicas” (BOURDIEU, 2004, p. 20).

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kuhniana, Bourdieu traz a idéia de um “campo científico”, com reflexões de grande

influência nos estudos científicos posteriores4.

A questão do poder é central na teoria de Bourdieu, sobretudo sobre o

entendimento que ele faz da ciência e de sua dinâmica. No escopo da sua teoria geral, os

conceitos que desenvolve giram em torno dessa dimensão social em que o poder é

constituído e que engendra as noções de habitus, de conhecimento praxiológico e da

estrutura e funcionamento dos campos como instâncias de análise sociológica que se

detém na reprodução das ações pelos indivíduos historicamente condicionados:

Os estudos de Bourdieu acentuam, sobretudo, essa dimensão social em que

as relações entre os homens se constituem em relações de poder, mais

ainda, em que elas reproduzem o sistema objetivo de dominação

interiorizado enquanto subjetividade; a sociedade é, dessa forma,

apreendida como estratificação de poder. A reprodução da ordem não se

confina simplesmente aos aparelhos coercitivos do Estado ou às ideologias

oficiais, mas se inscreve em níveis mais profundos para atingir inclusive as

representações sociais ou as escolhas estéticas. Ela é, neste sentido, dupla e

se instaura objetiva e subjetivamente, pois toda a ideologia compõe um

conjunto de valores, mas também consiste numa forma de conhecimento

(ORTIZ, 1994, pp. 26-27).

Bourdieu assevera suas posições a respeito do poder a partir de um imperativo

sociológico, quase axiomático, ao afirmar que a ciência é um campo social como outro

qualquer, que não se diferencia em termos de estruturas e relações de força da arte, da

religião, da política, apesar de manter suas especificidades. Diz o autor:

A sociologia da ciência repousa no postulado de que a verdade do produto

– mesmo em se tratando esse produto particular que é a verdade científica

– reside numa espécie particular de condições sociais de produção; isto é,

mais precisamente, num estado determinado da estrutura e do

funcionamento do campo científico. O universo „puro‟ da mais „pura‟

ciência é um campo social como outro qualquer, com suas relações de

força e monopólio, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros, mas

onde todas essas invariantes revestem formas específicas (BOURDIEU,

1994, p. 122) (grifo do autor).

Isto significa dizer que, para o entendimento da ciência, a ideia de poder é

imprescindível. Bourdieu é categórico ao dizer que o campo científico é o lugar de uma luta

4 Como exemplo, podemos citar a influência de Bourdieu no chamado Programa Forte da Sociologia da Ciência

e nos trabalhos de Bruno Latour.

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pelo monopólio da autoridade científica. Nessa construção discursiva sobre a ciência,

termos como luta concorrencial, espaço de jogo, monopólios são recorrentes:

O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da

autoridade científica definida, de maneira inseparável como capacidade

técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência

científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir

legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é

socialmente outorgada a um agente determinado” (Idem, pp. 122-123)

(itálicos do autor).

Com esse texto, da década de 1970, Bourdieu assume não apenas uma posição

teórica, mas militante no debate a respeito da ciência, tendo como objetivos:

1. Romper com o que chama de uma imagem quase sagrada de entendimento da

“comunidade científica”, segundo ele, “tal como a hagiografia científica

descreve”. Isto implicou no rompimento com a idéia da ciência como reino dos

fins, sendo a prática científica dotada de interesses;

2. Afastar a distinção entre competência, no sentido da razão puramente técnica,

da representação social, do poder simbólico, marcado, segundo Bourdieu, por

um conjunto de “emblemas e signos”.

Bourdieu insere a perspectiva de que a ciência está para além da definição da

autoridade científica como uma mera atribuição de natureza técnica. Por trás dela existe um

poder simbólico, de que “os julgamentos sobre a capacidade científica de um estudante ou

de um pesquisador estão sempre contaminados, no transcurso de sua carreira, pelo

conhecimento da posição que ele ocupa nas hierarquias instituídas” (Idem, p. 124). A noção

de poder simbólico é pedra angular como instância mediatizadora das relações sociais no

interior dos campos, numa perspectiva multidimensional de entendimento dos indivíduos

como integrantes de um jogo desigual de forças em que as trocas simbólicas ditam as

regras, pois

tudo se passa como se os sistemas simbólicos estivessem destinados pela

lógica de seu funcionamento enquanto estrutura e homologias e de

oposições, ou melhor, de desvios diferenciais, a preencher uma função

social de sociação e dissociação, ou então, a exprimir os desvios

diferenciais que definem a estrutura de uma sociedade enquanto sistemas

de significações, arrancando os elementos constitutivos desta estrutura,

grupos ou indivíduos, da insignificância. Assim, a linguagem e as roupas,

ou melhor, certas maneiras de tratar a linguagem e as roupas, introduzem

ou exprimem desvios diferenciais no interior da sociedade, sob forma de

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signos ou insígnias da condição ou da função. (BOURDIEU, 2007, p. 17-

18)

A atividade científica, para Bourdieu, está relacionada a uma forma de poder

específica, que se nota pela capacidade que os indivíduos tem de acumular autoridade –

prestígio, reconhecimento, celebridade – que é o seu “interesse” (do cientista). Isto significa

dizer que nela não existe uma dimensão exclusivamente política, mas o poder das “grandes

burocracias científicas” se definiu pela capacidade que tiveram de impor a sua maneira de

fazer ciência, constituindo uma metodologia específica. Dessa forma, “os conflitos

epistemológicos são sempre, inseparavelmente, conflitos políticos; assim, uma pesquisa

sobre o poder no campo científico poderia perfeitamente só comportar questões

aparentemente epistemológicas” (Idem, p. 124).

Em síntese, a noção de poder para Bourdieu delineia-se a partir da noção de um

campo científico como um espaço de luta concorrencial, dotado de sujeitos interessados e

da prática científica que exige uma forma particular de para sua manifestação, personificada

na autoridade científica dos cientistas, como sujeitos capazes de acumular um capital

científico que os possibilita a imposição de uma idéia de ciência, uma forma de se fazer

ciência, uma prática científica específica.

Tais cientistas não apenas impõem a sua noção ciência para os seus pares, mas fazem

a sua atividade parecer importante, também, “aos olhos dos outros”, o que provoca uma

grande adesão a um determinado fazer científico, tendo em vista que será ele que

possibilitará a acumulação de um lucro simbólico que poderá ser convertido em outras

formas de capital.

O poder desses vencedores – entendidos como aqueles que estrategicamente

conseguiram maior lucro simbólico e revestiram-se de autoridade científica – pode ser visto

na sua capacidade em definir as fronteiras da ciência em um momento histórico específico,

sendo eles capazes de, nesse momento, delimitar o que é científico do que não é científico.

Bourdieu, utilizando de outros estudos a respeito de outras esferas sociais (como a arte, a

política), destitui a ciência de uma aura de infalibilidade no que se refere às outras

atividades humanas e dota-a de dos mesmos mecanismos e códigos sociais, instrumentos de

domínio e consentimento dos subordinados, a partir do “poder simbólico”, que Reis (2009)

define da seguinte forma:

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Para Bourdieu, o “poder simbólico” é invisível e só pode ser exercido com a

cumplicidade daqueles que o sofrem. Os sistemas simbólicos (arte, religião, língua) são

instrumentos de conhecimento e de comunicação que exercem o poder simbólico. Eles

constroem a realidade estabelecendo uma ordem lógica, estabelecem uma compreensão

homogênea do espaço, do tempo, do nº, que torna possível o consenso. A solidariedade

social se assenta num sistema simbólico. Estes instrumentos de conhecimento e

comunicação tornam possível o consenso que mantém a ordem social. O poder

simbólico eufemiza as lutas econômicas e políticas entre as classes através de discursos

informativos e comunicativos, e consegue impor a ordem dominante como uma

invisível “ordem natural” (REIS, 2009, p. 41).

Tal imperativo teórico provoca outro rompimento da ordem da própria História das

Ciências: a análise internalista ou externalista não faz mais sentido diante da natureza

indissociada entre problemas políticos e científicos.

Os campos científicos caminham para um processo de autonomização, em que a

validação e reconhecimento – ou a distribuição de autoridade científica – se dará cada vez

mais dentro do campo, o que significa dizer que “um produtor particular só pode esperar

reconhecimento do valor de seus produtos [...] dos outros produtores que, sendo também

seus concorrentes, são os menos inclinados a reconhecê-lo sem discussão ou exame” (Idem:

127).

O fato científico está para além da descoberta da anomalia persistente, mas define a

posição de um grupo dominante dentro do campo, que consegue impor – por sua capacidade

de acumulação de capital científico – sua definição de fazer ciência. Dessa forma, o campo

científico é um espaço de uma luta mais ou menos desigual, tendo em vista que o capital

científico é distribuído desigualmente entre dominantes e dominados (novatos) e a relação

ou influência de outros campos no campo científico (religioso, político etc.) depende do seu

grau de autonomia.

3. Norbert Elias e o conceito de poder

Filho único de judeus alemães, Norbert Elias nasceu na cidade alemã de

Breslau5 em 22 de junho de 1897 e morreu em 1990. Em sua juventude viu a ascensão do

nacional-socialismo e a chegada de Adolf Hitler ao poder; também sofreu as agruras do

antisemitismo, tendo se exilado em 1933; sua mãe foi presa e morreu em Auschwitz, em

1941. Antes da sociologia, estudou medicina e filosofia nas universidades de Breslau e

5 Hoje é Wroclaw, na Polônia.

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Heidelberg. Lecionou na Inglaterra por quase 20 anos, mas teve como “base” a universidade

de Amsterdã, onde lecionou por mais de 30 anos.

Sua obra mais conhecida, O processo Civilizador, foi pela primeira vez

publicada na Suíça em 1939, e teve pouca repercussão, possivelmente pelo momento

inconveniente do lançamento da obra, que somente teve uma edição definitiva em 1969

(Berna/Alemanha). Tardiamente reconhecida, na década de 1960 sua produção ganha maior

visibilidade, e o centenário de seu nascimento, em 1997, suscitou uma serie de eventos e

publicações comemorativos. Atualmente, seus livros tem se tornado fonte de inspiração para

muitos pesquisadores sociais.

Elias define a sociedade como processo, algo dinâmico. Nesse sentido, utiliza o

termo „Configuração (figuration)‟, para explicar que o indivíduo e a sociedade são

indistinguíveis, ligados um ao outro por dependências recíprocas; em suas palavras: "o

conceito de indivíduo refere-se a pessoas interdependentes, o conceito de sociedade a

pessoas interdependentes no plural" (Elias, 1999, 136). Elias entende a interdependência

como uma forma de se pensar o mundo social como uma rede de relações interpessoais,

mesmo que alguns indivíduos estejam em posições privilegiadas de poder. Nas suas

palavras:

A configuração seria uma formação social, cujas dimensões podem

ser muito variáveis (uma classe escolar, uma aldeia, uma cidade,

uma nação), em que os indivíduos estão ligados uns aos outros por

um modo específico de dependências recíprocas (ELIAS, 1978, p.

12).

A categoria figuração/configuração em Elias está associada a outras, como

interdependência, coerção, função. É a partir da primeira concepção que Elias discute em

seus trabalhos o processo civilizador (europeu) e a questão do poder. Para o sociólogo:

Em realidade, o que chamamos de poder é um aspecto de uma relação,

de cada uma das relações humanas. O poder relaciona-se com o fato

de que existem grupos ou indivíduos que podem reter ou monopolizar

aquilo que outros necessitam, como por exemplo, comida, amor, ou

proteção, assim como conhecimento e outros coisas (ELIAS, 1994, p.

53).

De acordo com Elias, todos os indivíduos que integram um grupo social

possuem poder, em menores ou maiores doses. E o poder consiste em ter o que o outro

necessita e na capacidade de negociar o modo em que esses bens, símbolos ou capacidades

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serão compartilhados. Nesse sentido, quanto maior for a necessidade de um individuo ou

grupo, maior será o poder daquele que detém aquilo que é necessidade do primeiro. Sem

ingenuidade, porém, entende que alguns grupos tendem a acumular maiores cotas de poder,

como os empresários, os religiosos, os sindicalistas, os políticos. Segundo o autor, o

equilíbrio de poder, como as relações humanas em geral, é bipolar, pelo menos, e,

normalmente, multipolar (MENNEL, 1998, pp. 115-116).

Para ilustrar a discussão de Elias, tomamos seu livro Os Estabelecidos e os

Outsiders – Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade , escrito

em conjunto com seu orientando John L. Scotson. Fruto de pesquisa de campo realizada em

fins de 1950, o livro foi publicado pela primeira vez em 1965. O estudo realizado numa

pequena comunidade inglesa, ficticiamente chamada Winston Parva, partiu da verificação

de alto índice de delinquência infantil em um dos bairros que compunham a mesma.

Entretanto, o processo de pesquisa apontou para outra questão, mais complexa, e que

envolvia a primeira: “a relação entre diferentes zonas de uma mesma comunidade‟, que

afinal pode ser relacionada com questões sociais mais globalizadas.

O título da obra já indica uma relação de poder: os „estabelecidos‟ distingue o

grupo de moradores de mais longa data no bairro, enquanto os „outsiders‟ eram os

moradores chegados mais recentemente. Os primeiros se autopercebiam como „boa

sociedade‟, mais poderosos e melhores, apoiados numa combinação de autoridade, tradição

e prestigio. Os outsiders, por sua vez, estavam fora desse círculo. Elias e Scotson não

identificaram entre os dois grupos diferenças em relação à etnia, nacionalidade, religião,

trabalho, ou renda, comuns nos estudos sociais clássicos. Nesse caso, o que conferia melhor

status e poder aos estabelecidos era o tempo maior de morada no local, o que lhes garantia

maior grau de coesão; no caso dos outsiders, a falta dessa coesão resultava na sua exclusão

dos cargos importantes das organizações sociais locais bem como das atividades

comunitárias, tais como as da religião e lazer. A verificação de que a questão da

delinquência não era como se apontava tão assustadora ou volumosa, não diminuía o

distanciamento entre os grupos, sendo que os chamados outsiders acabaram por incorporar o

sentimento „inferior‟ que lhes fora imputado pelos estabelecidos. Por sua vez,

A exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram

armas poderosas para que este ultimo preservasse sua identidade e

afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar

(ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 22).

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O caso estudado evidencia um exemplo de formação de hierarquia entre

“superiores e inferiores”, em que o desequilíbrio não é imposto por relação de violência ou

de poder, nem é justificado por diferenças de renda, raça ou escolaridade; entretanto ela é

interiorizada tanto por aqueles que se autodestacam como por aqueles que são vitimas da

desigualdade estabelecida. Foi por meio da observação das práticas do dia-a-dia que Elias e

Scotson identificaram os desequilíbrios de poder em Winston Parva. Nesse sentido, o

„modelo‟ desvelado pode ajudar no entendimento das nuances do poder, não como algo

extraordinário, mas como ocorrência cotidiana. O poder, na sociologia elisiana “não é um

amuleto que se carrega na bolsa; mas é uma característica estrutural de todas as relações

humanas” (ELIAS, 1998, p. 116).

De acordo com Stephen Mennel, na nota introdutória ao livro Estabelecidos e

Outsiders (em maio de 1994) o estudo foi (re)elaborado de tal maneira “a esclarecer

processos sociais de alcance geral na sociedade humana”, por exemplo, “como um grupo de

pessoas é capaz de monopolizar as oportunidades de poder e utilizá-las para marginalizar e

estigmatizar membros de outro grupo muito semelhante, e a maneira como isso é

vivenciado” (ELIAS, 2000, p. 13). É no “equilíbrio instável de poder, com as questões que

lhe são inerentes” que encontramos a peça central para o entendimento das diversificadas

relações estabelecidos-outsiders, que podem ser “não só pequenas comunidades, mas

também homens e mulheres, governos e partidos políticos, assim como dúzias de grupos

que costumamos caracterizar por sua proveniência étnica” (ELIAS, 2000, p. 201).

Norbert Elias trabalha com a perspectiva de uma trama ao mesmo tempo pessoal

e social configurada no próprio contexto social dos envolvidos. Neste sentido, não são

avaliadas atividades e decisões de homens isolados, mas o foco instala-se no aspecto das

relações humanas que constituem o contexto de suas interações. É nesta

interação/configuração que os grupos se posicionam na trama e se hierarquizam dentro de

uma linha de tensões que irá perpassar todos os demais grupos sociais. Desse modo, talvez

uma contribuição da sociologia de Elias para os estudos da História da Ciência esteja no

fato do autor expor as engrenagens do poder, por essência relacional, configuradas nas

ações que perpassam o cotidiano.

4. Considerações Finais

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Reis (2009), em um texto que discute o papel da filosofia para a história, no

chamado mundo pós-moderno, aproxima as teorias de Elias, Foucault e Bourdieu, busca

nesse três autores filiações e entrelaçamentos que ajudam a explicar a concepção de poder

que se difunde na sociedade e, por suposto, na tessitura do pensamento histórico. Conclui

que:

O processo civilizador não se impõe mais também pela força militar, pela

invasão e conquista dos territórios daqueles povos que estão ainda à sua

margem. O combate, agora, é feito na esfera cultural. Os Ocidentais procuraram

convencê-los, dissuadi-los, persuadi-los, torná-los dóceis, disciplinados,

produtivos, aculturando-os, inculcando-lhes os valores, os comportamentos, o

“habitus” Ocidental. A dominação se exerce, agora, através do “poder

simbólico”, que Bourdieu, reinterpretando o marxismo procura ensinar àqueles

que o sofrem a reconhecer e a resistir. O grande tema da filosofia da história

pós-moderna é o “poder”: em Foucault os micro-poderes, em Elias, o macro-

poder civilizador e, em Bourdieu, o “poder simbólico”, o poder que se deixa ver

menos, ignorado e reconhecido (p. 41)

Para o nosso caso, cabe ressaltar que Reis confere uma aproximação aos estudos

de Elias e Bourdieu, no que tange a um processo em que o poder na pós-modernidade se

transfigura em outro, mais sutil, dos discursos, dos códigos, do enviesamento discursivo,

regras, autocontrole, novas formas de resistência, fortalecimento de uns em detrimento de

outros, aceitação e consentimento daqueles menos favorecidos na distribuição de poder

social.

À procura de uma incipiente aproximação entre Bourdieu e Elias, propomos as

seguintes assertivas:

1 – O conceito de poder, na relação estabelecidos-outsiders de Elias e no campo

dominante-dominado de Bourdieu, se aproxima, apesar das perspectivas e objetos

diferenciados de análise. Mesmo com esse percurso empírico-teórico distinto, ambos

autores acabam chegando a conclusões similares, que podem contribuir para o debate sobre

a história das ciências. Elias pensa o poder numa situação relacional, como uma

característica estrutural das relações humanas, que acaba engendrando uma hierarquia social

e um equilíbrio instável de poder; já Bourdieu, ao partir do mundo numa ótica

multidimensional, com sujeitos interessados e em constante luta pela acumulação de capital

simbólico no interior dos campos, também propõe uma espécie conformação social

desigual.

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2- Numa relação com a proposição anterior, podemos dizer que a

conformação/estruturação do poder acaba por produzir instâncias de mediações sociais que,

se para Bourdieu envolvem o “poder simbólico”, na perspectiva elisiana elas estão

implícitas nas tramas cotidianas, também simbólicas e que se materializam na prática. Dessa

forma, ambos os autores confluem no estabelecimento do poder a partir de uma prática

social que não é apenas material, ou puramente de instâncias hegemônicas coercitivas, mas

se dão na contingência histórica e sociológica, com sujeitos determinados pelo seu tempo e

espaço.

Por tais interseções, acreditamos que Bourdieu e Elias podem ser usinas de força

importantes na discussão do poder na perspectiva da História das Ciências, sobretudo das

ciências da saúde, pois suas reflexões matizam concepções que podem auxiliar o trabalho

empírico e os mecanismos de funcionamento dos campos científicos no interior do cotidiano

e das práticas sociais.

Referências

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A UNIÃO DA RAZÃO E DO EXPERIMENTO EM ISAAC NEWTON

Bruno Camilo de Oliveira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Mestrado

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Resumo

Através da análise do pensamento de Isaac Newton (1642-1727) encontramos os postulados

metafísicos que fundamentam a sua filosofia natural. A causa primeira na qual toda a ordem e

leis tiveram início, a qual para ele assume um caráter divino, aponta segundo Newton, para

um Deus sábio e poderoso e responsável pela ordem inteligente e pela a harmonia das leis

físicas e universais de tudo o que existe – Deus como criador e preservador da ordem do

universo. Analisaremos os conceitos newtonianos de sua mecânica de caráter racionalista e

materialista, passando a considerar esta nova visão, ou novo método, como a própria

expressão da verdade científica, compreendendo como é possível propor uma união entre

ciência e filosofia, a partir de conceitos como os de “massa”, de “espaço” e “tempo

absolutos”, e “leis naturais”, abordando a racionalidade por trás das leis físicas e como esses

conceitos evocam necessariamente a existência o surgimento de uma “filosofia da ciência”.

Palavras-chave: Fenômenos, Racionalidade, Filosofia da ciência.

INTRODUÇÃO

Filósofos, cientistas e historiadores de Newton admitem que as suas realizações

científicas compreendem o auge da revolução científica dos séculos XVI e XVII, a forma de

encarar a natureza a partir de novos conceitos e maneiras de estudar os fenômenos naturais foi

o grande marco da ciência moderna e este período é comumente citado como a “Revolução

Newtoniana” 1, marcado por lançar as bases de um sistema que permanece atual ainda hoje,

capaz de associar os fenômenos empíricos da natureza do céu e da Terra à linguagem mais

formal do pensamento (matemática e filosofia), realizando deste modo o objetivo de alguns

expoentes anteriores a Newton como Kepler, Galileu, Copérnico, Descartes, dentre outros, de

obter um conhecimento mais seguro acerca da realidade, buscando compreender união entre

as vias empíricas e racionais do conhecimento. Além disso, Newton também é valorizado

como formulador do método apropriado de investigação científica, método que busca a união

entre matemática e fenômenos. Essa revolução foi realizada no campo da ciência mecânica e

1 (COHEN & WESTFALL, 2002, p.11).

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da “mecânica racional” que estabeleceu as três leis newtonianas do movimento, bases

fundamentais da mecânica atual. Foi ele quem definiu o conceito de massa mais essencial

para o estudo acerca da matéria, reconhecendo que existem duas medidas diferentes da massa,

uma chamada de “gravitacional” e outra chamada de “inercial” no caso da queda dos corpos,

e ainda “corpos fluidos” e “corpos sólidos” no caso da luz e as cores 2. Ainda neste campo,

Newton confere o reconhecimento da importância da experimentação, a partir de hipóteses,

para se chegar à conclusão das certezas matemáticas e científicas. Esta equivalência entre

matemática e experimentação é uma característica fundamental da Teoria da Relatividade, de

Einstein, porém o método da necessidade de uma comprovação pela a experiência, aliada à

matemática, deve figurar como uma das descobertas primordiais dessa revolução newtoniana.

É aqui, que as duas correntes que essencialmente convergiam desde os gregos antigos,

surgem, e definem as novas epistemes, que irão permear toda a ciência moderna em diante. A

metodologia newtoniana, de uso de metodologias para se aproximar de uma conhecimento

mais verdadeiro acerca dos fenômenos da natureza, não negava esta ou aquela disciplina,

simplesmente, por divergirem em seu método, mas, como disciplinas que podiam andar

juntas, pois seus métodos almejam se aproximar do verdadeiro conhecimento, e juntos

contribuem ainda mais para um salto maior para o verdadeiro conhecimento. A primeira

corrente, a da filosofia mecânica, compreende que a única forma de garantir a certeza de algo,

é dispô-lo matematicamente, e propõe, a redução da natureza às categorias matemáticas, e

deste modo, conforme Galileu, o “alfabeto com que Deus escreveu o universo”. A outra

corrente, a filosofia empírica, argumentando sobre a capacidade humana diante da diversidade

das coisas, de propor grandes sistemas coerentes, cujo experimento criterioso é fundamental

para o estabelecimento de verdades ou conceitos acerca da realidade. O talento e o

discernimento experimental de Newton ajudaram-no em uma completa compreensão, bastante

clara, do método e do sentido de investigação, que o novo pensamento científico exigia.

Analisemos brevemente como a ciência e a filosofia descrevem seus métodos, para que seja

necessária uma apreciação de sua influência ao surgimento da mecânica racional newtoniana

na ciência moderna.

2 Admitia o conceito de massa espiritual e material. Em O peso e o Equilíbrio dos Fluidos percebemos pistas

para acreditar que Newton admitia a luz como um corpo fluido e a matéria como um corpo sólido ao analisar

como a luz viaja pelo espaço e consegue vibrar os sensores do nervo óptico e interferir na imagem que temos no

cérebro, a conclusão era que a luz teria que ser um corpo para interferir em corpos mais sólidos, a luz como uma

espécie de corpo, embora de maneira muito mais tênue, porque consegue vibrar os sensores do nervo óptico e

interferir na imagem que temos no cérebro. Era preciso responder: como a luz consegue se relacionar com

corpos?

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1. O Nascimento de uma nova filosofia natural

Os Tempos Modernos iniciam-se após o fim da Idade Média, precisamente em

1453 e, inspirado pelo pensamento medieval, no que a filosofia da ciência moderna busca, ou

seja, outro elemento de relação entre o mundo natural e os homens, outra via de acesso para o

conhecimento da natureza, disposta a não partir apenas da experiência para fundamentar um

conhecimento verídico, mas também das formalidades que os fenômenos podem transmitir

pelas disciplinas formais, como a matemática por exemplo, as empíricas como a ciência, e

metafísicas como a filosofia.

Na Grécia Antiga a filosofia natural atribuía qualidades ocultas a várias espécies

de coisas, dando a suposição de que os fenômenos de corpos particulares acontecem de forma

um tanto confusa. Pois, o conjunto da doutrina das escolas derivadas de Aristóteles e dos

peripatéticos 3 fundamenta-se neste princípio – afirmam que os vários efeitos dos corpos

surgem das naturezas particulares daqueles corpos. Talvez o maior obstáculo do pensamento

aristotélico seja a apreensão imediata da realidade pelo os sentidos: Descartes, Newton,

Leibniz, Berkeley, Kant, e tanto outros, têm um mesmo interesse, de além de devolver ao

homem o seu devido lugar de importância na estrutura cósmica, resgatar a matemática e a

aritmética para a formulação dos conceitos da realidade fenomênica. O impacto causado pelo

os interesses da igreja, e por alguns aspectos do aristotelismo nos homens e na sua forma de

conceber o mundo, havia deixado os homens em uma espécie de fracasso intelectual, no qual

ele mesmo havia criado obstáculos que impediam o seu desenvolvimento científico e

intelectual. Surgia a necessidade por parte dos pensadores modernos de devolver ao homem

sua integridade intelectual frente às questões da natureza e de Deus. Tratava-se agora de

revelar ao senso comum o poder da influência que a visão errônea acerca dos fatos havia

doutrinado a visão das pessoas, e talvez neste momento, do que em qualquer outro da história,

encontramos filósofos ansiosos por serem honestos intelectualmente para devolver a

dignidade intelectual aos homens. A visão moderna acerca da relação do homem com o seu

ambiente almeja, exclusivamente, uma visão verdadeira. A característica apaixonada do

homem, ou seja, de criar conceitos que sustentem os seus interesses, o leva, facilmente, aos

equívocos do pensamento, de forma a determinar um modo errôneo de viver e de enxergar a

realidade, fazendo com que o homem pense sobre si em termos mais elevados que os devidos.

Tal problema é percebido pelos os primeiros pensadores modernos, e a tarefa de mudar esta

3 Discípulos de Aristóteles.

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conjectura passa a ser uma característica marcante deste período – era a época de uma espécie

de “renascimento” 4 do conhecimento humano, uma volta ao período grego clássico de

desmistificação da realidade, no qual o homem poderia se apoiar em um conhecimento

íntegro, baseado na razão.

Segundo Koyré, o pensamento moderno tem início com Bacon quando se opôs ao

pensamento escolástico e passa a ter uma linha de raciocínio baseada na razão 5. Contudo, na

opinião dele, a grande inimiga da Renascença, do ponto de vista científico e filosófico, foi à

visão de mundo baseada no aristotelismo, duramente predominante tanto nas academias

quanto no senso comum e, ainda diz que a grande obra do renascimento foi à destruição desta

visão de mundo. O primeiro passo é dado por Tycho Brahe, em meados de 1453, quando

destruiu definitivamente a concepção das órbitas celestes aristotélicas e impôs a seus

sucessores a considerarem a causa física dos movimentos celestes. Copérnico, em meados de

1535, retirou a Terra da sua condição especial e a encaixou dentro do infinito, classificando-a

como um planeta móvel como qualquer outro, destruindo a estrutura hierarquizada do

aristotelismo, e unificando o Universo regido pelas mesmas leis. Entre 1609 e 1619, Kepler

postula as leis do movimento dos corpos celestes, destruindo a hierarquia aristotélica dos

astros do Cosmo fechado, o que é especialmente importante para a nova concepção de mundo

de Kepler: a unificação do Universo, sendo regido pelas mesmas leis, e por leis estritamente

matemáticas. Em seguida, Galileu observa o Céu com telescópios, revelando novos corpos

celestes não previstos no modelo da cosmologia aristotélica. A matemática ressurge como

uma esquecida ferramenta que é encontrada no porão e que volta a ser Utilizada! Juntamente

com suas descobertas acerca do princípio da inércia, assim como a lei da queda livre dos

corpos, Galileu acabou derrubando a coerência do pensamento aristotélico acerca da queda

dos corpos leves e pesados, e o surgimento de uma nova física e uma nova cosmologia

tornou-se necessário para explicar as novas questões deste novo universo heliocêntrico.

Galileu e Descartes indicam a matemática como uma nova ferramenta desta nova descrição da

natureza – esta é a herança para Newton. A obra de Newton representa a culminância deste

4 O termo foi registrado pela primeira vez por Giorgio Vasari, já no século XVI, porém a noção do termo como

redescoberta e revalorização das referências culturais da antigüidade clássica surgiu a partir da publicação do

livro de Jacob Burckhardt A cultura do renascimento na Itália (1867), onde ele definia o período como uma

época de "descoberta do mundo e do homem" (BURCKHARDT, 1991, pags. 139 a 142). Ouso aqui atribuir um

significado metafísico ao termo, de uma tentativa de buscar o verdadeiro conhecimento acerca das coisas, assim

como aconteceu entre os antigos gregos. 5 (KOYRÉ, 1982, p. 15).

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processo: transformação que destronou de vez a cosmologia aristotélica e fundamentou a

origem da ciência moderna.

Segundo I. Bernard Cohen e Richard S. Westfall, na época em que Newton

ingressou como graduando na Universidade de Cambridge em 1661, um jovem aos 19 anos,

logo se deparou com o aristotelismo que ainda dominava a visão de mundo das universidades.

Porém, com o desenvolvimento da sua carreira acadêmica, ele pode descobrir um novo

conjunto de autores e leituras que, gradualmente, já vinham substituindo a filosofia natural

aristotélica, num processo de criar uma nova ciência da natureza, processo que se realizou por

completo no final do século XVII. O conjunto dessas novas leituras foi fundamental para a

formação do pensamento de Newton: Robert Boyle, Pierre Gassendi, Renè Descartes, dentre

outros, determinaram a direção de sua vida intelectual e o sucesso de suas descobertas; estes

autores pioneiros abriram caminho para a revolução newtoniana.

Newton devorou os livros que havia descoberto e se alistou efetivamente nas

fileiras de seus autores. Como a palavra “cientista” não existia no século

XVII, é provável que, se solicitado a definir sua nova vocação, Newton se

denominasse filósofo natural, alguém que procurava compreender a natureza

do mundo em que vivemos. (COHEN & WESTFALL, 2002, p. 19).

Este conjunto de novas ideias acerca da filosofia natural preencheu seus escritos,

desde a época de jovem universitário até a maturidade, num ultimo conjunto de questões

chamadas Algumas questões filosóficas 6, que foram acrescentados em Óptica em 1717. É

interessante que acima deste título ele grafou o lema “Platão é meu amigo, Aristóteles é meu

amigo, porém minha maior amiga é a verdade”, mostrando, nesta fase, a maturidade de

Newton com relação às questões filosóficas e do conhecimento, as quais, não era o caso de

pertencer às correntes platônicas ou aristotélicas, mas aquela que fosse verdadeira e coerente,

em perfeita comunhão a um conhecimento mais verdadeiro, ou seja, “a nova filosofia natural,

que Robert Boyle passara a chamar, pouco tempo antes, de filosofia mecânica” 7; Newton

havia deixado para sempre o mundo de Aristóteles.

Muitos cientistas modernos acabaram adotando certa metafísica de caráter

racionalista e materialista, passando a considerar esta nova visão, ou novo método, como a

6 Tradução nossa de “Quaestiones quaedam philosophicae”, denominção dada por Newton ao conjunto de

anotações filosóficas iniciada em algum momento de 1664 que constituem os primeiros passos de Newton na

carreira científica. Acima deste título Newton grafou a frase “Amicus Plato amicus Aristoteles magis amica

veritas”, cuja tradução livre pode ser “Platão é meu amigo, Aristóteles é meu amigo, porém minha maior amiga é

a verdade”. (NEWTON, 1983, p. 349-431. In: COHEN & WESTFALL, 2002, p. 22). 7 (COHEN & WESTFALL, 2002, p. 20).

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própria expressão da verdade científica. Esta nova filosofia experimental busca compreender

a causa das coisas a partir dos princípios mais simples possíveis, mas, então, não aceitam nada

como princípio, a não ser que tenha sido provado empiricamente. Procede, portanto, em um

método duplo: sintético (experimental) e analítico (racional). Ademais, a separação entre

filosofia e ciência ocorre na medida em que se constituíam suas independentes formas de

compreender os fatos, a partir de seus próprios métodos, características que culminaram em

particularidades específicas a cada uma, mas se relacionam na medida em que se definem

enquanto duas epistemes, que irão permear toda a forma de produzir o conhecimento na

modernidade.

A filosofia mecânica pretende compreender a certeza de algo a partir das

disposições geométricas (empíricas) e matemáticas, reduzindo a natureza a categorias

aritméticas. Assim a natureza passa ser um grande livro, onde a sua linguagem é

compreendida pela matemática dos seus fenômenos. A ciência defende o experimento

criterioso como fundamental para o estabelecimento de verdades científicas. Ambas correntes

são imediatamente tomadas como método da filosofia da ciência moderna. Mas, infelizmente,

o que restou dessa nova maneira de fazer ciência, foi uma incongruência destes métodos, de

forma a classificá-los, gradativamente na história, como distintos epistemologicamente e com

finalidades diferentes.

A esta evolução do pensamento que conduziu à criação da ciência

experimental no renascimento, provocou divergência acentuada entre

“ciência” e “filosofia”, fazendo a filosofia assumir um sentido cada vez mais

extenso e englobando até a ética individual e social bem como as partes mais

subjetivas da reflexão do homem sobre si mesmo. (MOLES, 1981, p. 4).

Em que medida, a partir da evolução do pensamento, podemos fazer uma

comparação entre o pensamento filosófico e o pensamento científico? A origem do

conhecimento científico não se desprende da filosofia. Um e outro já estavam mutuamente

compreendidos no termo “filosofia natural” 8. A palavra cientista não existia no século XVII,

contudo, em que medida podemos falar que filosofia se aproxima da ciência em uma relação?

O que significam e como ambas podem juntas atingir seu mérito? Antes de tudo, precisamos

compreender o que distingue filosofia e ciência, para termos êxito na nossa investigação.

2. Aspectos de metodologia: científica e filosófica

8 (MOLES, 1981, p. 3)

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Os cientistas não procuram esclarecer seus problemas a partir da reflexão

metafísica, mas de uma reflexão que é própria da ciência, que a identifica como tal, sua

própria metodologia para o estabelecimento de uma base mais “particularmente rica de

conhecimentos bem adquiridos, de conhecimentos bem articulados” 9. Por causa dessa

necessidade de comprovação empírica os cientistas desconsideram uma reflexão metafísica

que esteja além do domínio empírico. Devemos refletir até que ponto a metodologia

científica, que trabalha com evidencias experimentais, não pode considerar as ciências

matemáticas, almejando princípios da evidencia racional. Os cientistas consideram a filosofia,

apenas quando já realizou todo o trabalho efetivo de demonstração. Por outro lado, o sistema

filosófico tem sua eficácia na faculdade do conhecimento pelo plano espiritual – ele se

movimenta desta forma, e perder esta faculdade, é como perder certa identidade que lhe é

próprio –, esta “finalidade íntima” 10

é quem dá sentido a um sistema filosófico, acima de

tudo, porque o filósofo é aquele que toma consciência da unidade do pensamento; é nesta

síntese que o filósofo coloca o problema geral do conhecimento.

O filósofo pede apenas à ciência exemplos para provar a atividade

harmoniosa das funções espirituais, mas pensa ter sem a ciência, antes da

ciência, o poder de analisar esta atividade harmoniosa. (BACHELARD,

1976, p. 9).

Segundo Gastón Bachelard, se pretendermos misturar ciência e filosofia – os

experimentos científicos com as reflexões filosóficas – precisamos aplicar uma “filosofia

necessariamente finalista e fechada a um pensamento científico aberto” 11

, mesmo que isto

não venha a agradar os cientistas. Em outras palavras, o filósofo deve tomar consciência,

exatamente no ato do exercício da reflexão e da síntese da investigação filosófica, de uma

coerência e unidade do pensamento, que não ultrapasse o problema geral do conhecimento.

Quando o filósofo se propõe fazer uma “filosofia da ciência”, pensa em limitar-se unicamente

aos princípios das ciências, almejando articular o princípio das ciências com o princípio de

um pensamento puro, se preocupando com os temas mais gerais – ele busca manter a sua

reflexão do mundo empírico, sempre pronto a relativizar, transformar hipóteses em suposições

e transformar axiomas em verdades práticas. Por outro lado, a ciência recolhe-se a um aspecto

mais particular, limita-se a permanecer em seu mundo empírico.

9 (BACHELARD, 1976, p. 9). Fenômenos explicados por racionalidade não nega a finalidade científica, não se

tornam menos fenômenos, mas fenômenos mais ricos porque são também confirmados pela razão. 10 (BACHELARD, 1976, p. 7). 11 (BACHELARD, 1976, p. 8).

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É nesse sentido que consideramos a filosofia das ciências como um resumo dos

fatos totalmente já compreendidos pelo método científico. Para o cientista, a filosofia das

ciências está sempre no reino dos fatos; ela só tem significado, quando a ciência já realizou

todo o trabalho de investigação.

3. Filosofia da ciência

Por esse motivo Bachelard em Filosofia do novo espírito científico orienta que a

“filosofia da ciência” deve tomar cuidado para não entrar em conflito por dois caminhos

divergentes: o caminho dos princípios muito gerais, feito pelo o estudo dos filósofos, e dos

resultados particulares, realizados pelo os estudos dos cientistas. A filosofia da ciência precisa

ser uma harmonia entre estes dois aspectos, da filosofia e da ciência, deve ultrapassar os dois

obstáculos epistemológicos, contrários, que limitam o pensamento, pois, ambas se propõem

em busca da investigação em construção do conhecimento. O mediato e o imediato. Somente

na abstração desses valores epistemológicos, entre o a priori e o a posteriori, entre os

“valores racionais” e os “valores experimentais”, é que a filosofia da ciência pode atingir seu

mérito.

Assim, a filosofia da ciência é este duplo movimento que anima o pensamento

moderno, que tem a obrigação de mediar a alternância do a priori e do a posteriori, de ligar o

empirismo ao racionalismo, por um estranho mas bem sucedido laço, capaz de se nutrir a

partir da divergência – tanto o empirismo precisa ser compreendido quanto o racionalismo

precisa ser aplicado. Um fato empírico, sem leis claras, coordenadas e dedutivas, não pode ser

pensado ou ensinado. Por outro lado, “um racionalismo sem provas materiais, sem aplicação a

realidade imediata, não pode convencer plenamente” 12

. Mais ainda, o racionalismo, propõe-

se a fundamentar os próprios fenômenos, que agem segundo leis, portanto, a filosofia da

ciência é um desenvolvimento dialético, porque seus conceitos se esclarecem segundo dois

pontos de vista diferentes.

A filosofia natural de Newton buscava compreender várias questões acerca do

sistema da natureza como a conjunção dos corpos da matéria e dos orbes celestes; a

característica e desempenho do Sol, das estrelas, dos planetas e dos cometas; da gravidade e

da leveza; constituição, reflexão, refração e cor da luz; o surgimento da sensação nos homens

a partir dos corpos externos a si; dos fluxos e refluxos do mar; do éter como meio de

12 (BACHELARD, 1976, p. 11).

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propagação de ondas; da química; da alquimia; da metafísica. A partir de alguns fenômenos

selecionados, deduz, por análise, as forças da Natureza e as mais simples leis das forças, e daí,

por síntese, a constituição do resto. Que o atributo da gravidade, fosse encontrado, em todos

os corpos, outros até suspeitaram ou imaginaram antes dele, mas ele foi o único, e primeiro

filósofo, que pôde demonstrá-lo e torná-lo numa base sólida para as discussões mais

matemáticas. É uma prova para nós que o empirismo e o racionalismo newtoniano se

complementam efetivamente, um respondendo ao outro. Esta nova ciência moderna busca um

campo epistemológico intermediário, entre teoria e prática, entre matemática e experiência, e

Newton é o expoente maior desta revolução – ele percebe que conhecer cientificamente uma

lei natural, por exemplo, é conhecê-la simultaneamente como fenômeno e como número.

4. Conclusão

O entendimento fenomênico, da realidade, só é possível porque traduzimos as

ações práticas em programas de realização lógica. Não podemos tentar compreender os

fenômenos sem fundamentar esta compreensão na própria razão. A ação científica, guiada

pelo racionalismo matemático, não é uma negação da condição empírica, mas, a ação

racional, determina uma realidade experimental sem irracionalidade. Em outras palavras, o

fenômeno, ordenado por um raciocínio lógico é mais rico que o fenômeno puramente natural,

sem nenhum conteúdo racional. O que a filosofia da ciência procura, é, justamente, eliminar a

ideia de que a realidade é uma fonte inesgotável de irracionalidade 13

– busca, justamente,

uma eliminação da irracionalidade dos fenômenos – a ciência moderna busca esta eliminação,

esta proteção contra toda a perturbação irracional. Para o racionalismo científico, a aplicação

da lógica racional, não é uma derrota, mas um compromisso com o conhecimento mais puro.

A ciência moderna quer aplicar a esta cooperação, e se acabar aplicando de forma errônea esta

cooperação, modifica-se a aplicação, e isso não nega os seus princípios. Talvez, a filosofia da

ciência, é a única filosofia aberta, por superar os seus próprios princípios 14

.

Deste modo, é o racionalismo newtoniano que dirige toda a física matemática

do século XIX, a partir de seus elementos fundamentais como o espaço absoluto, o tempo

absoluto, massa absoluta, estabelece-se o sistema fundamental de medida da construção da

13 (BACHELARD, 1976, p. 13). 14 Segundo Bachelard, qualquer outra filosofia coloca os seus princípios como intocáveis, as suas verdades

primeiras como totais e acabadas, se glorificando pelo seu caráter fechado. A filosofia da ciência se aplica

determinando uma superação dos seus princípios experimentais, modificando-se quando necessário.

(BACHELARD, 1976, p. 13).

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realidade. Segundo Bachelard, tais elementos são a base daquilo que podemos chamar de

átomos nocionais 15

, ou seja, elementos a priori que fundamentam as bases métricas de tudo

o que pode ser medido. A noção de massa, por exemplo, define-se não apenas como um

elemento primitivo de uma experiência imediata e puramente direta, mas num corpo de

noções racionais. Newton é o principal precursor deste racionalismo científico, que tem a

pretensão de ir além da física da balança, e de outros instrumentos puramente empíricos, para

atingir, um grau maior, que é o pensamento racionalista, fomentando o surgimento da sua

mecânica racional. E, não se trata de ultrapassar as barreiras empíricas, numa necessidade de

simplificar o fenômeno em algo puramente racional, mas, procurar um maior esclarecimento

do fenômeno, enriquecendo-o. Newton consegue isto, quando define, por exemplo, a massa

como o quociente da força pela a aceleração. Percebemos os conceitos de massa, força e

aceleração em perfeita harmonia, numa relação racional, analisada pelas leis racionais da

aritmética.

Assim, a definição de filosofia do conhecimento científico que pretendemos

chegar, é de uma filosofia aberta, sem preconceitos, consciente de um espírito e ações, que se

fundam, na medida em que trabalham sobre o desconhecido, sempre com a disposição de

encontrar na realidade aquilo que contradiz conhecimentos anteriores. Newton é um grande,

se não o maior, expoente desse novo espírito científico, que busca uma „transcendência

experimental‟ 16

. Ele é o grande responsável à objeção que impõe uma leitura necessariamente

sensível do conhecimento científico, à objeção que pretende reduzir a experimentação a

apenas a leitura física dos fenômenos, negligenciando a leitura teórica 17

. Assim, não é

nenhum absurdo, dizer que a experiência, nas ciências físicas tem um além, uma

transcendência, que ela não está fechada sobre si própria. Isto é claramente exposto, por

Bachelard, para ele, a razão não deve sobrevalorizar uma experiência imediata, mas deve pôr-

se em equilíbrio com a experiência, de modo a construir uma estrutura mais rica, naquilo que

ele chama de “filosofia do não”. Deste modo, o racionalismo que explica ou informa uma

experiência, deve estar de aceite com esta abertura, deve permitir esta transcendência

empírica. Bloqueio que a ciência tradicional, pré-newtoniana, insistiu em adotar, mas que a

cultura científica de Newton e seus contemporâneos determinaram mudanças profundas nesta

15 (Notionnels), bases nocionais que fundamentam a estrutura das coisas, permitindo estabelecer a

correspondência entre as noções e a medida das coisas. “Tudo o que se mede, deve e pode depois apoiar-se

nestas bases métricas”. (BACHELARD, 1976, p. 41). 16 Com efeito, esta expressão não é exagerada para definir a ciência instrumentada como uma transcendência da

ciência de observação natural. 17 (BACHELARD, 1976, p. 16).

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forma de pensamento científico, estabelecendo novas bases para o que ficou conhecido como

o “novo espírito científico”.

Referências

ARISTÓTELES. Physics, books I-IV. Translated by P. H. Wicksteed and F. M. Cornford. Cambridge,

Massachusetts: Harvard University Press. London: William Heinemann LTD, 1993. (The Loeb

Classical Library, vol. IV).

BACHELARD, G. A filosofia do não: filosofia do novo espírito científico. Trad. de Joaquim José

Moura Ramos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

BACHELARD, G. Filosofia do novo espírito científico. Trad. de Joaquim J. M. Ramos. Lisboa:

Presença, 1976.

BURTT. E. A. As bases metafísicas da ciência moderna. Trad. De José Viegas Filho e Orlando Araújo

Henriques. Brasília: Ed UNB, 1991.

COHEN, B. / WESTFALL, R. S. Newton: textos, antecedents, comentários. Trad. de Vera Ribeiro.

Rio de Janeiro: Contraponto e EdUERJ, 2002.

GALILEI, G. O ensaiador. Trad. de Helda Barraco. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores).

KOYRÈ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Trad. de Donaldson M. Garschagen. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2006.

KOYRÉ, A. Estudos de história do pensamento científico. Trad. de Márcio Ramalho. Rio de Janeiro:

Ed. Forense Universitária; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.

MOLES, A. A criação científica. Trad. de Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1981.

NEWTON, I. O peso e o equilíbrio dos fluidos. Trad. de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova

Cultural, 1991. (Os Pensadores).

NEWTON, I. Óptica. Trad. de André Koch Torres Assis. São Paulo: EDUSP, 2002.

NEWTON, I. Principia: princípios matemáticos de filosofia natural. São Paulo: EDUSP, 2008.

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“VÁ LÁ E TOME POSSE!”: O GOLPECIVIL-MILITAR E A CAPES (1964-1966)

Caio Fernandes Barbosa

Mestrando em História Social

Universidade Federal da Bahia

Bolsista da Capes

[email protected]

Resumo

Neste trabalho vamos analisar as transformações ocorridas na Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior (Capes) durante os primeiros anos da Ditadura

militar brasileira (1964-1966), com atenção, tanto para as transformações que possibilitaram o

crescimento da instituição em questão, como as rupturas ocorridas. Esta analise tanto pode ser

um exemplo ilustrativo do problema enfrentado por órgãos governamentais dirigidos por

personagens ligados ao presidente deposto João Goulart edos desafios desses novos atores

levados ao centro do palco pelos eventos que se desenrolaram durante o ano de 1964. Os

afastamentos políticos em meio à transição política e o aparecimento de novos personagens.

Aproximando a História da Ciência da História Política a partir da perspectiva em que a

politica científica não é algo neutro, mas integrado a política geral, contribuindo na

compreensão dos embates travados na consolidação dessa nova ordem em 1964. Neste sentido

percebemos a política cientifica nestes anos como resultado de negociações, mas também de

conflitos entre o governo militar e a comunidade científica.

Palavras-chave: Historia Social da Ciência, História da Capes, Golpe Civil-Militar de 1964

Este artigo pretende abordar as transformações ocorridas no Brasil a partir da

analise da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES no

intervalo temporal de 1964 à 1966. Isso significa dizer que analizaremos os primeiros

movimentos do regime que se instalava após o Golpe Civil-militar em relação a política de

pós-graduação, já que a a CAPES se tornou uma das principal agencia de fomento de

pesquisas através da concessão de bolsas e quase que a materialização da politica de pós-

graduação brasileira.

Chamaremos atenção aqui para o papel dúbio jogado pelos novos personagens

trazidos a frente do palco graças ao pustch de 1964, expremidos entre a ruptura e a

continuidade. Se por um lado era uma nova ordem que se instalava, por outro precisava

dialogar dentro do estado com os funcionários e, no caso da CAPES, também com a

comunidade científica.

Para isso, pretendo utilizar duas abordangens historiograficas distintas mas de

maneira nenhuma antagônica ou excludentes. A intenção proposta aqui é justamente

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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incentivar o uso combinado dessas duas abordagens como forma de melhor problematizar os

acontecimentos relativos a política científica e fazer com que a analise sobre ela articule

elementos que contribuam na compreensão da consolidação dessa nova ordem em 1964.

A primeira delas é a abordagem da História Política, na qual a esfera do político

não é uma dimensão isolada do social mas um local de articulação de outras dimensões da

vida coletiva e dos aspectos da existência individual.1 A segunda é a História da Ciência a

partir da perspectiva em que a política científica não é algo neutro, mas integrado a política

geral, fruto de acordos, arranjos, disputas e negociações.

A historia da politica científica não pode está completamente desarticulada com as

proposições oriundas da historia política, pelo contrário elas devem confluir e se enriquecer

mutuamente. Dessa forma vamos escapar das armadilhas de uma historia institucional

internalista e pouco problematizadora.

A produção acadêmica sobre a história da CAPES é bastante reduzida, salvo

algumas exceções.2Buscamos aqui, dar mais uma contribuição historiográfica para essa

entidade que teve papel fundamental na consolidação e institucionalização da comunidade

cientifica brasileira.

Quando se estuda o período do regime militar, não podemos perder de vista que a

batalha travada pelamemória deste período está em plena efervescência. Questões polêmicas

como a abertura dos arquivos secretos, a revisão da lei de Anistia,a criação dos Conselhos da

Verdade e o pagamento de indenizações às vítimas do regime de 1964 estão na ordem do dia e

demandam cuidado em sua abordagem.

Os primeiros alvos da Ditadura, além dos parlamentares ligados ao presidente

João Goulart, foram às organizações de esquerda, os movimentos populares do campo e da

cidade que antes de 1964 apresentavam uma atuação mais dinâmica, afinal“Havia projetos

diferentes entre os vencedores de 1964, o único ponto consensual era o propósito de expurgar

as esquerdas, particularmente os comunistas, embora a definição sobre comunismo fosse

elástica e imprecisa.”3 O resultado foi que “sete em cada dez confederações de trabalhadores e

sindicatos com mais de 5 mil associados tiveram suas diretorias depostas”.4

1Ver RÉMOND, René. Por uma História Política: Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996. 2Ver FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOC-

CAPES, 2002 e CÓRDOVA, Rogério de Andrade. Capes, 45 anos de história. Brasília (DF), [s.n.], 1996

(mimeo). 3MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do Regime militar brasileiro nos campi. As assessorias de segurança e

informações das universidades. In Topoi, v. 9, n. 16, jan.-jun. 2008, p. 30. 4 GASPARI, Elio. Ditadura Envergonhada. São Paulo. Companhia das Letras. 2002, p. 131.

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O tal conceito eclético e impreciso também atingiu o intelectual baiano Anísio

Teixeira logo nos primeiros dias de Abril daquele ano.Na época, Anísio Teixeira eraum dos

fundadores e Secretário Geral da CAPES, “foi logo afastado e classificado como comunista”.5

Outra personagem de destaque na CAPES pré-1964 também foi afastado das suas

atividades. Almir Castro ocupava o cargo de diretor executivo desde 1954e era uma peça

importante da equipe montada por Anísio Teixeira. Teve sua exoneração anunciada no Diário

Oficial nas primeiras semanas de Abril.

Na sua despedida pediu aos servidores que zelassem pela instituição contra

“quaisquer ameaça a indoneidade e o prosseguimento dessa rica experiência de trabalho que

juntos iniciamos”6 (Boletim n.137,p.33).

O primeiro movimento do regime que se instalava em 1964 em relação à

instituição, no entanto,teria sidosupostamente uma tentativa deextinção,

“ação neutralizada pela ação de professores da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, sobretudo Paulo de Góis e Amadeus Cury, puseram-se em campo

para convencer o governo de que isso, positivamente, não devia ser feito. [...]

Felizmente, o ministro Flávio Suplicy de Lacerda foi sensível á argumentação

e teve o discernimento de manter a instituição funcionando”7.

Aqui se vê, nitidamente, membros da comunidade científica mantendo relações

privilegiadas com os militares, negociando para garantir a existência da instituição, enquanto

isso, outros em conflito, sendo aposentados obrigatoriamente e interrompendo suas carreiras

graças ao governo de coturnos.

O perfil de seu diretor e os vinculos com outros intelectuais progressistas que

conviviam na CAPES, a exemplo do Darcy Ribeiro,somado a motivos ligados a racionalidade

do estado, tenham pesado no primeiro impulso de extinguir a instituição. A CAPES era

umainstituição pequena, oferecia apenas 10 bolsas no exterior e 108 no país,e montada a

partir da iniciativa de um suposto “comunista”. Ainda pesava sobre a instituição a

superposição das funções com outras instituições de maior prestígio naquele contexto, como o

CNPq.8

5FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). op.cit.58 6Boletim Informativo da Camapanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Legislação,

Objetivos, programas, organização, funções dos setores de trabalho, síntese das princiapais realizações, anexos.

n.137,1964, p.33 7FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOC-CAPES,

2002, p.46 8Sobre a historia do CNPq, ver ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de .Físicos, Mésons e Política: A Dinâmica da

Ciência na Sociedade, Editora Hucitec, Museu de Astronomia e Ciências Afins, São Paulo, 1999.

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Um mês após o afastamento de Anísio Teixeira e Almir Castro, foi indicada, pelo

Presidente Castelo Branco, para assumir a CAPES; Suzana Gonçalves. Ela não era uma

intelectual de destaque ou importância nacional, pelo menos não quando a comparamos com

seu antecessor. Lecionava no Instituto Feminino da Pontifícia Universidade Católica do Rio

de Janeiro (PUC/RJ) e em cursos de preparação cívica da mulher, iniciativa vinculada a Ação

Católica.

O central na sua escolha para ocupar o cargo não foi o seu currículo, mas os laços

de parentesco com o então Presidente da República, que lhe levaram à direção da instituição.

Foi à primeira mulher a assumir tal tarefa.

Ela mesma nos conta como se processou seu “convite”para assumir a CAPES:

“... devo dizer que sequer fui consultada se queria ou não ser diretora da

CAPES. [...] Foi o presidente que me indicou, foi assim que fui parar na

CAPES. [...] quando a coisa (o convite) chegou aos meus ouvidos, foi como

uma ordem peremptória: „Vá lá e tome posse”.9

Por todas estas questões políticas e pessoais, o clima institucional na CAPES era

delicado. O professor Anísio Teixeira era um diretor que gozava de prestígio entre os

funcionários e, além disso, os acontecimentos que levaram Suzana Gonçalves a assumir o seu

lugar gerou uma grande apreensão sobre qual seria sua postura e qual o seu compromisso com

aquela instituição. A própria mensagem de despedida de Almir Castro, já citada aqui,

evidenciam essa preocupação.

Como a CAPES não tinha funcionários próprios, os servidores eram locados de

outras instituições, por exemplo, Carol Paixão, secretária de Anísio Teixeira, era locada no

Departamento de Estrada e Rodagem. Com o afastamento do Professor Anísio esses

funcionários teriam pensado em usar essa brecha legal de não pertencerem a CAPES para

cogitar transferências coletivas como forma de protesto ao afastamento do diretor, tal qual

podemos apreender da percepção da diretora Suzana Gonçalves:

“[...] fiquei sabendo que havia toda uma resistência mesmo, uma intenção de

todos [os funcionários da equipe de Anísio Teixeira] saírem. [...] A intenção de voltar aos

órgãos de origem era uma forma de solidariedade ao Dr. Anísio Teixeira.” 10

No entanto, a

situação foi contornada sem nenhuma transferência, nenhuma demissão ou qualquer tipo de

protesto coletivo e/ou público.

9FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOCCAPES,

2002 p.45 10Ibid., p. 48.

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A concessão de Bolsas de Estudo continuou funcionando normalmente.

Inicialmente, foram ratificadas 108 bolsas no país e 10 no Exterior pelo conselho

Deliberativo. Em Junho, foram aprovadas mais 62 candidaturas a bolsa no Exterior. Também

os auxílios para aperfeiçoamento no exterior foram concedidos, sendo 80 em Agosto e 48 em

Dezembro. Mais 14 solicitações de bolsas no País foram atendidas no mesmo mês.

Suzana Gonçalvesesteve à frente da CAPES entre 1964 e 1966 e durante esse

tempo manteve a idéia fixa de conservar a essência “teixeiriana” da instituição. O que parece

ser aparentemente contraditório, já que ela foi colocada naquela posição para barrar o trabalho

até então executado de um importante intelectual supostamente comunista.

A professora Suzana provavelmentesofria uma forte pressão da comunidade

acadêmica e do próprio corpo técnico da instituição. Optou pela tática da sucessão em

detrimento da ruptura, afinal ela “... tinha que mostrar à CAPES que não estava ali como pára-

quedista, para uma caça às bruxas.” E parece que sua estratégia deu resultados, o próprio

Anísio Teixeira mais tarde, no ano de 1968, reconheceria seu esforço presenteando-a com

uma coleção de livros. Em resposta ao gesto do intelectual baiano,Suzana envio-lhe um

cartão, trancrito em seguida, que parece reforçar essa postura de reverência:

“Prezado Professor Anísio Teixeira 9/4/68

Ensina-nos a vida que a têmpera dos homens se mede pela persistência, pois

rara é a compreensão, como prêmio da lucidez.

A CAPES é uma excelência. Porém, estimável é o requinte humano. Esta é a

lição que bem poucos podem dar.

Recebi, ontem [08/04/68], os seus livros. Mais do que palavras generosas que

os acompanham, comoveu-me o seu gesto.

Não posso deixar de transmitir-lhe minha sensibilidade ao dizer-lhe do meu

reconhecimento e do meu respeito.

Atenciosamente,

Suzana Gonçalves.”11

Essa postura adotada por ela demonstra o grau de complexidade que um órgão

governamental pode apresentar. Mudanças não costumam ser muito bem vistas quando se

trata de um pequeno corpo técnico de uma instituição coesa e, se forem feitas sem os cuidados

necessários, podem gerar crises internas agudas.

11FCV/CPDOC. Classificação: AT c 1968.04.09. Série: c – Correspondência, Data de produção: 09/04/1968.

Quantidade de documentos: 1 (2 folhas).

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No mês de Maio, a CAPES sofreu sua primeira transformação, mudando de

“Campanha” para “Coordenação”. O decreto nº 53.932, não modificou apenas o nome da

instituição preservando a sigla, ele submeteu a CAPES ao Ministério da Educação e Cultura

(MEC), vinculando-a à política nacional da educação superior através da Diretoria do Ensino

Superior (DESu). Aquele decreto significou a subordinação da hierarquia institucional ao

então Ministro da Educação, Flavio Suplicy de Lacerda, que a partir de então tinha autoridade

sobre a regulamentação de atividades e sobre a aprovação dos regimentos internos da agência.

Em setembro foi publicado um segundo decreto, o de nº 54.356, que

regulamentou o novo regime interno da CAPES, ao qual a entidade já vinha se adequando. A

direção passou a ser exercida pela diretora-executiva, Suzana Gonçalves – nossa personagem

principal nesse artigo – a quem caberia a execução das decisões tomadas pelo Conselho

Deliberativo; todos os membros do Conselho Deliberativo, de acordo com o artigo 7, seriam

escolhidos pelo Ministro da Educação, e a atuação do diretor executivo teria, portanto,

importância reduzida. Deste modo, o novo decreto explicitou ainda mais a subordinação da

Agência em relação ao MEC. A CAPES deveria executar os planos aprovados pelo

Ministério, através de uma colaboração intimamente relacionada com a DESu.

Naquele mês a CAPES trânsitou de uma estrutura mais autônoma que vigorava

desde 1951, para uma estrutura organizativa mais complexa e burocrática, que

institucionalizou a participação da comunidade científica, submetendo-a aos poderes de

escolha e intervenção do Ministro da Educação.

Junto com essas mudanças, a CAPES incorporou outras políticas do Ministério da

Educação como o Programa de Expansão do Ensino Tecnológico (Protec), cuja finalidade era

aplicar recursos no desenvolvimento das universidades de engenharia, e a Comissão

Supervisora dos Planos de Institutos (Cosupi), responsável por implantar institutos de

matemática, química e física.

No ano posterior ao golpe, o então Ministro da Educação Flávio Suplicy de

Lacerda pediu ao Conselho Federal de Educação (CFE) que regulamentasse os cursos de pós-

graduação, indicativo expresso, inclusive, no artigo 69 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB),

que dizia respeito diretamente à CAPES. Para o ministro, “a pós- graduação deveria não

apenas estimular a formação de pesquisadores, mas também assegurar treinamento eficaz e de

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alto padrão a técnicos e intelectuais, para fazer face ao desenvolvimento nacional em todos os

setores.” 12

O Ministro da Educação entendia que a pós-graduação deveria garantir a elevação

dos níveis de qualidade das instituições de ensino já existentes, e dar conta da possível

expansão quantitativa do ensino de terceiro grau, que se confirmou nos anos seguintes. É

importante registrar também que ele tinha preferência pelo sistema de pós-graduação

americano estruturado em dois ciclos, correspondentes aos graus de Master e de Doctor.

Em 3 Dezembro de 1965, a Câmara de Ensino Superior (CES) respondeu ao

pedido do Ministério com o parecer nº 977/65. Assinaram este parecer além do presidente do

CES, A. Almeida Júnior, politicos e intelectuais importantes como Clóvis Salgado, José

Barreto Filho, Maurício Rocha e Silva, Durmeval Trigueiro, Alceu Amoroso Lima, Anísio

Teixeira, Valmir Chagas, Rubens Maciel e o relator Newton Lins Buarque

Sucupira.13

Percebe-se aqui, a presença de Anísio Teixeira, que após ser afastado das suas

funções manteve em momentos pontuais niveis de colaboração com o MEC.

Neste parecer, assim como nas noções de pós-graduação do então Ministro da

Educação e Cultura, há uma forte presença do modelo americano, além do uso de vários

termos em língua inglesa - master, doctor, college, graduate school, undergraduate,

qualifying, scholarship, major, acreditation - um dos capítulos tem o sugestivo título de “Um

exemplo de pós-graduação: a norte-americana”, o “American way of life” se consolidava na

pós-graduação e na ciência brasileira. Para Ernest Hamburguer “a regulamentação da pós-

graduação no Brasil foi copiada até nos mínimos detalhes da norte-americana” 14

Sem dúvida Anísio Teixeira teve forte influência na adoção do modelo norte-

americano para a pós-graduação no Brasil. Sua admiração pelo Jonh Dewey e a vivencia nos

Estados Unidos anos antes pesaram nesse processo.

Este parecer de 1965 foi extremamente relevante para a construção dos cursos de

pós-graduação no que diz respeito à questão conceitual, mas também para a própria

institucionalização desse nível de ensino no país. Amplamente conhecido como “Parecer

Sucupira”, esse documento lançou as bases e os critérios da pós-graduação no Brasil. É a

12MARTINS, Carlos Benedito, Balanço: A Capes e a formação do sistema nacional de pós-graduação. In

FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOC-CAPES,

2002.p. 300. 13BRASIL. Conselho Fderal de Educação/MEC. Parecer nº 977 CES, de 3 de dezembro de 1965, Brasilia, DF,

p16. 14 HAMBURGUER, E. Para que pós-graduação? Encontros com a civilização brasileira, Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira, 1980, p.84.

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partir dele que subdividem os cursos de pós-graduação em dois tipos: Stricto sensu e Lato

sensu.

O primeiro compreendia as atividades de pesquisa cientifica e acadêmica, mais

relacionadas com a Universidade, onde as duas modalidades de diploma superior seriam o

mestrado e, acima deste, o doutorado. O segundo tipo (Lato Sensu), o mesmo documento

atribuiu um papel fundamentalmente prático para essa modalidade.

O parecer nº 977/65 foi construído de maneira que fosse possível aos cursos de

pós-graduação variar em função das especificidades de cada área do conhecimento e da

iniciativa das instituições de ensino. A implantação dos cursos de mestrado e doutorado seria

modelada pelo conceito de pós-graduação presente no parecer nº 977/65 e pelas normas de

organização e credenciamento estabelecidas pelo parecer 77/96 do Conselho Federal de

Educação, também elaborado sobre a coordenação de Newton Sucupira, o parecer 77/96

estabelecia que o credenciamento dos cursos de pós-graduação fosse concedido após

aprovação pela maioria de seus membros do CFE e homologado pelo Ministro da Educação.

Esse processo deu mais uniformidade estrutural às pós-graduações que tinham sido criadas

anteriormente.

Essa normatização da pós-graduação orientou a política da CAPES, tanto na

concessão de bolsas quanto no fomento.

Essas alterações se propunham a responder a difícil situação da Universidade

brasileira na época e a desafios futuros. Os “... cursos de pós-graduação, em funcionamento

regular, quase não existem” 15

alertou o Parecer Sucupira, sendo que “... a expansão da

indústria brasileira requer número crescente de profissionais criadores, capazes de desvendar

novas técnicas e processos, e para cuja formação não basta a simples graduação. ”16

Depois dessa primeira regulamentação, a pós-graduação voltaria a figurar em

documentos oficiais no bojo da discussão provocada pelo Grupo de Trabalho da Reforma

Universitária durante o conturbado ano de 1968.

Em paralelo a criação dos marcos legais da pós-graduação, as universidades

viviam períodos delicados do ponto de vista político, não podemos esquecer que em 1965,

mesmo ano do Parecer Sucupira, cerca de 120 professores da UnB pediram demissão de

forma coletiva como protesto ao processo de desmantelamento dos princípios que nortearam a

1515BRASIL. Conselho Fderal de Educação/MEC. Parecer nº 977 CES, de 3 de dezembro de 1965, Brasilia, DF,

p.4. 16Ibid., p.4.

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criação daquela instituição anos antes. Os professores que haviam sido trazidos para inaugurar

um novo período na educação brasileira tiveram seus sonho e desejos interrompidos.

Além das mudanças estritamente administrativas, outras questões relevantes no

contexto do pustch de 1964 atingiram a CAPES, como o aumentoda preocupação do novo

governo com o monitoramento da sociedade e do Estado.

A CAPES passou a ser monitorada por uma ASI (Assessoria de Segurança

Interna) que estava ligada ao DSI/MEC (Divisão de Segurança Interna do MEC) que por sua

vez estabelecia a relação com o SNI - Sistema Nacional de Informações. Essa rede de órgãos

subordinados ao SNI estava presente em todos os ministérios, para ajudar na identificação de

sujeitos “subversivos”, mas também para monitorar casos de corrupção. Afinal de contas o

golpe também foi dado para acabar com a bagunça do supostamente corrupto governo de João

Goulart.A experiência da ASI na CAPES, converge com o artigo do historiador Rodrigo Pato

Sá Motta que analisa o monitoramento da DSI/MEC e das ASI´s nas universidades publicas.17

Suzana Gonçalves revela como funcionava a vigilância do Regime:

“Durante todo tempo tive que lidar com um personagem meio misterioso, uma

espécie de „olheiro‟ do SNI – eles estavam em todos os ministérios. No

governo do Castelo Branco o „olheiro‟ [da CAPES] era também professor,

uma pessoa que me dava à impressão de ser muito equilibrada e nunca

permitiu absurdos e intromissões indesejáveis.”18

Fica latente neste trecho a relação de poder que esses “olheiros” acabavam

acumulando, eram personagens misteriosos, que estavam em todos os órgãos públicos e que

tinham relativo poder de permitir ou não “absurdos e intromissões indesejáveis”.

Independente de ser “um professor” o depoimento junto com as demais fontes

trabalhadas evidenciam que desde o primeiro momento a CAPES estava sobre constante

vigilância, principalmente por integrar o MEC e lidar diretamente com a comunidade

universitária, principal foco de mobilização e questionamento da ditadura civil-militar. Apesar

dos registros da presença da AESI na CAPES, eles não estavam previstos pelo organograma

da instituição, eram organismos externos de controle que estavam, inclusive, subordinados a

outro órgão. Essa disposição administrativa dava uma boa autonomia para os olheiros atuarem

sem que precisassem dialogar com a hierarquia da instituição.Neste primeiro momento, da

17MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do Regime militar brasileiro nos campi. As assessorias de segurança e

informações das universidades. In Topoi, v. 9, n. 16, jan.-jun. 2008 18 FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOC-CAPES,

2002, p.45

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CAPES residente no Rio de Janeiro, a ASI não funcionava no mesmo prédio onde se

realizavam as atividades.

No entanto, apesar de Suzana Gonçalves assumir uma postura em defesa do golpe

e do Regime noperíodo de 1964 á 1966 – o mesmo do governo do presidente militar Castelo

Brancoe da sua passagem como diretora-executiva da CAPES – adota posteriormente em suas

memórias uma postura mais crítica quando se trata dos outros governos militares,. Para ela a

“Revolução” teria se degenerado.

Para melhor compreendermos essa parte do seu testemunho, não podemos nos

esquecer que

“Na memória política, os juízos de valor intervêm com mais insistência. O

sujeito não se contenta em narrar como testemunha histórica “neutra”. Ele

quer também julgar, marcando bem o lado em que estava naquela altura da

história, e reafirmando sua posição ou matizando-a” 19

Analisando a partir desses termos Suzana Gonçalves parece tentar defender o

governo de Castelo Branco como “democrático” quando na realidade as perseguições, o uso

da violência e das práticas de tortura foram parceiros de primeira hora do regime que se

instalava.

“O presidente Castelo Branco, do meu ponto de vista, tinha uma vocação

democrática, mas foi praticamente deposto pelo general Costa e Silva e a turma da caserna.”

20relacionando-se neste ponto com a tese amplamente difundida do “golpe dentro do golpe”e

se utilizando deste “fechamento” político pós-Castelo Branco como motivo para sua saída em

1966. “Enfim, houve um fechamento do regime político, as coisas se alteraram, e eu não

estava mais me sentindo confortável naquele posto.” 21

É sabido o que levou Suzana Gonçalves a assumir a Capes, sua saída, no entanto,

é obscurecida. Em seu depoimento a protagonista parece evitar entrar nos pormenores do

desconforto que provocou sua saída. Ao invés disso, utiliza o endurecimento do regime

militar, o quadro mais geral da memória social, para evitar o tema de maneira mais específica

e individual.

Não há provas conclusivas sobre sua saída, no entanto, se buscarmos mais

elementos para além da motivação politica ligada ao endurecimento, temos que levar em

consideração que a saida de Suzana Gonçalves pode ser fruto da transição de um governo para

19 BOSI, Ecléia, Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 1994. p. 453. 20Ibid., p. 53 21 FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOC-CAPES,

2002, p.53

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o outro, cujo novo arranjo usaria o cargo de direção da CAPES para acomodar as novas forças

políticas que legitimavam o governo. Afinal, no ano de 1966, O governo de Castelo Branco já

estava no seu limite. Essa prática de trocar os funcionários quando se busca montar um outro

governo novo vem sendo reproduzida na historia do Brasil a muito tempo. Não podemos

esquecer que mesmo os governos militares se utilizavam de composições para acomodar as

forças políticas que lhe legitimavam.

Se considerarmos que sua saída esta relacionada principalmente com o

endurecimento da Ditadura, como explicar seu regresso no período em que ela mesma

considera o mais violento? A chave para a crise institucional na CAPES no momento

posterior (1966-1969) pode estar no motivo da saída da professora. Mas deixemos

especulações sobre a saida da Diretora Suzana Gonçalves.

O depoimento de Suzana Gonçalves parece mesmo corroborar com as teses que

apontam para o endurecimento e a escalada da violência do regime no final da década de 60 e

inicio da década de 70.“Quando voltei a CAPES [em 1970 no governo de Médici], como

assessora de Programas, o agente do SNI não era mais aquele professor do período inicial,

mas um militar.” 22

Seu tom de crítica chega ao auge nesse trecho: “O governo Costa e Silva

realmente endureceu, mas o seguinte foi pior, o do Médici. Apesar de seu ar tranqüilo, seu

governo foi o pior de todos, inclusive com sacrifício de vidas” 23

Ora, se a justificativa para a

saída da CAPES era o endurecimento do regime, o desconforto e se não havia Castelo Branco

para lhe dar ordens peremptórias porque retornar, mesmo que em outra posição, para aquele

ambiente mais fechado?

Ao mesmo passo que este é o período de maior crescimento e institucionalização

não só da CAPES, mas da ciência brasileira como um todo. Aqui, aparecem dois problemas

importantes para os estudiosos sobre política científica na ditadura, primeiro a questão da não-

automática relação entre democracia política e desenvolvimento científico e tecnológico, e

segundo a questão da dupla memória conflitante.

A primeira questão está amplamente enraizada no senso comum, mas não só nele,

também estão presentes em trabalhos acadêmicos de envergadura como é o caso de dois

importantes ícones intelectuais do século XX; o filosofo austríaco Karl Popper e o sociólogo

estadunidense Robert K. Merton.

22FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOC-CAPES,

2002, p.53 23Ibid., p.53

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O que salta aos olhos é que ambos escreveram entre as décadas de 1930 a 1950,

período que compreende justamente a ascensão do Regime Nazista, a Segunda Guerra

Mundial e a Guerra Fria.

Ao escrever durante a Segunda Guerra, Merton indicou que o desenvolvimento

científico era incompatível com o Nazismo. No contexto posterior, o da Guerra Fria, sua

mensagem foi interpretada e estendida ao Regime Stalinista. Seu argumento era de que a

autonomia da comunidade científica era regulada por um ethos constituído de normas

(universalismo, comunialismo, desinteresse, ceticismo organizado), as quais seriam

incompatíveis com regimes autoritários.24

Seguindo caminhos semelhantes, Popper elaborou a idéia de que Democracia

Política e Ciência seriam indissociáveis, sendo a existência da primeira condição sine qua non

para o desenvolvimento da segunda.25

Essa formulação, assim como a de Merton, também foi

concebida sobre a experiência do Nazi-Fascismo e estendida subseqüentemente, a partir da

década de 1950, ao regime de Moscou.

Se levarmos em consideração as formulações tanto de Merton quanto de Karl

Popper sobre a relação automática entre Democracia Política e Desenvolvimento Científico,

teríamos como implicação a tese de que os regimes de caráter autoritário seriam terrenos

estéreis para o florescimento da Ciência o que não parece ter sustentação quando confrontado

com a realidade brasileira. Neste ponto este trabalho se articula com o esforço de historiadores

brasileiros como Olival Freire Jr26

, mas também russos como Kojevnikov27

; argentinos como

Eduardo L. Ortiz28

;alemães como Kristie Macrakis e Dieter Hoffmann29

; e espanhóis como

José Manuel Sanchez-Ron30

, Javier Ordoñez31

, María Jésus Santes Mases32

, Víctor Navarro-

24 FREIRE JR, Olival. Sobre a relação entre Regimes políticos e Desenvolvimento cientifico: Apontamentos

para um estudo sobre a História da C&T durante o Regime Militar Brasileiro. In Revista Fênix, Vol. 4, Ano IV,

nº 3, 2007. p 4. 25 Ver POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974. 26 Ver FREIRE JR, Olival. Sobre a relação entre Regimes políticos e Desenvolvimento cientifico: Apontamentos

para um estudo sobre a História da C&T durante o Regime Militar Brasileiro. In RevistaFênix, Vol. 4, Ano IV,

nº 3, 2007 27 KOJEVNIKOV, A. B. Stalin´s Great Science: The Times and Adventure of Soviet Physicits, London: Imperial

College Press. 2004. 28 ORTIZ, Eduardo L. 1996. Army and science in Argentina: 1850-1950. In: FORMAN; SÁNCHEZRON, 1996,

op. cit. p. 153-184. 29Ver MACRAKIS, Kristie; HOFFMANN, Dieter. Science under Socialism – East Germany in

Comparative Perspective: Cambridge: Harvard University Press, 1999. 30 Ver SÁNCHEZ-RON, José Manuel. International relations in Spanish physics from 1900 to Cold War

Historical Studies in the Physical and Biological Sciences, 33(1), p. 3-31, 2002. 31 Ver ORDOÑEZ, Javier; SÁNCHEZ-RON, José Manuel. Nuclear Energy in Spain: From Hiroshima to the

Sixties. In: FORMAN, Paul; SÁNCHEZ-RON, José Manuel. (Eds.). National Military Establishments and the

Advancement of Science and Technology – Studies in the 20th Century History. Dordrecht: Kluwer, 1996. p.

185-213.

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90

Brotóns33

e Albert Presas Puig34

que ao analisarem os regimes autoritários em seus países tem

problematizado a validade dessas formulações.

Sobre a segunda questão, o problema da dupla memória, é necessário dizer que ela

ocorre de forma análoga à memória sobre o “Milagre Econômico”. Como percebeu Elio

Gaspari: “O Milagre Brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos reais,

coexistiram negando-se [...] Quem acha que houve um, não acredita (ou não gosta de admitir)

que houve o outro.”35

Quando Suzana Gonçalves saiu da CAPES em 1966, a instituição havia mantido a

média de concessão de bolsas no exterior, com um aumento nos dois últimos anos de sua

gestão, passando de 249 no final de 1964 para 343 bolsas em 1966. Mas a ampliação mais

acentuada ocorreu em relação à concessão de bolsas no país, de 158 bolsas em 1964 para

1493 em 1966. O que significa que a CAPES teve durante este curto período, um aumento na

concessão total de bolsas no Brasil e no exterior de mais de 300%. Uma marca realmente

considerável.36

Se durante os anos de Suzana Gonçalves a situação foi delicada, com sua saída a

CAPESentrounum período de instabilidade ainda maior, ao todo foram cinco diretores em três

anos passaram pela instituição, sendo queMario Werneck de Alencar Lima foi diretor por dois

momentos, primeiro em 1966 e depois em 1967, os demais são: Gastão Dias Velloso, Nelson

Brandão Libânio, Nelson Afonso do Valle Silva e Jeferson Andrade Machado de Góis Soares,

e o crescimento dos três primeiros anos se transformou em um declínio considerável, este

período não será analisado aqui.

O período da primeira mulher diretora-executiva da CAPES ficará para trás, mas

Suzana ainda reaparecerá, como ela mesma já antecipou a cima, quatroanos mais tarde para

assumir outro cargo na mesma instituição, numa outra conjuntura. A Ditadura não era a

mesma, tinha se “escancarado” e a CAPES mudará de endereço, da pequena instituição

localizada no centro dalinda cidade do Rio de Janeiro paraa rua da imprensa, pertodo poder,

sob o céu de Brasília próxima dos traços do arquiteto.

Esta breve analise tanto pode ser um exemplo ilustrativo do problema enfrentado

por alguns órgãos governamentais dirigidos por personagens ligados ao presidente deposto

32 Ver MASES, María Jésus Santes. Severo Ochoa and the Biomedical Sciences in Spain under Franco, 1959 –

1975. ISIS, 91(4), p. 706-734, 2000. 33 Ver NAVARRO-BROTÓNS, Víctor. The Birth of Particle Physics in Spain.Minerva, 43, p. 183-196, 2005. 34Ver PUIG, Albert Presas. Science on the Periphery. The Spanish Reception of Nuclear Energy: An Attempt at

Modernity? Minerva, 43, p. 197-218, 2005. 35GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo, Companhia das Letras. 2002. p.13. 36CAPES. (1964 a 1994). Relatórios. MEC/CAPES.

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

Salvador: UFBa / UEFS / UFMG, 2012. ISBN: 978-85-62707-30-8

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João Goulart, como pode mostrar as mudanças e os desafios desses novos atores levados ao

centro do palco pelos eventos que se desenrolaram durante o ano de 1964. Os expurgos em

meio à transição política e o aparecimento de novos personagens.Espero que esse artigo tenha

contribuído na compreensão dos conflitos que foram travados na consolidação dessa nova

ordem em 1964, e percebendo que a política cientifica nestes anos foram resultado de

negociações, mas também de conflitos entre o governo e a comunidade científica.

Referências

BOSI, Ecléia, Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

CÓRDOVA, Rogério de Andrade. Capes, 45 anos de história. Brasília (DF), [s.n.], 1996 (mimeo).

FERREIRA, Marieta de Moraes; MOREIRA, Regina da Luz, (org.). Capes, 50 anos. FGV\CPDOC-

CAPES, 2002.

FREIRE JR, Olival. Sobre a relação entre Regimes políticos e Desenvolvimento cientifico:

Apontamentos para um estudo sobre a História da C&T durante o Regime Militar Brasileiro. In

Revista Fênix, Vol. 4, Ano IV, nº 3, 2007

GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo, Companhia das Letras. 2002.

HAMBURGUER, E. Para que pós-graduação? Encontros com a civilização brasileira, Rio de Janeiro,

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MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do Regime militar brasileiro nos campi. As assessorias de

segurança e informações das universidades. In Topoi, Rio de Janeiro, v. 9, n. 16, jan.-jun. p.30-67,

2008.

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MARIE CURIE: A MULHER QUE REVOLUCIONOU A FÍSICA NO SÉCULO XX

Danilo Sabino da Silva Lima

Graduando em ciências da Natureza-UNIVASF

[email protected]

Elayne Ferreira de Negreiros

Graduanda em ciências da Natureza-UNIVASF

[email protected]

Fágner de Jesus Nascimento

Graduando em ciências da Natureza-UNIVASF

[email protected]

Mayane Nóbrega

Professora -UNIVASF

[email protected]

Resumo

Maria Sklodowski Curie (1867-1934) foi a primeira mulher a ganhar o prêmio Nobel,

destacando-se como pesquisadora, descobrindo a radioatividade e novos elementos

radioativos – o tório, o polônio e o rádio. Marie tentou aquilo que nenhuma mulher havia

conseguido: um título de doutora em física, pela Sorbonne. O tema para o doutorado foi a

estranha radiação emitida pelos compostos de urânio. Notara que diversas substâncias

contendo urânio emitiam certos raios invisíveis parecidos com raios X, que

atravessavampapeis e produziam manchas em chapas fotográficas. Após resultados positivos

de sua pesquisa, tendo a certeza de que a radiação é uma propriedade atômica, Marie Curie

anuncia a existência do radioativo que denomina de Rádio. As descobertas dos Curie vinham

quebrar algumas concepções aceitas há séculos na Física, pois contradizia as ideias sobre a

composição da matéria. As pesquisas de Marie Curie vieram a culminar com o recebimento

do Prêmio Nobel em 1903. A contribuição de Marie Curie foi grandiosa tanto na química

quanto na física. O objetivo deste trabalho é mostrar as contribuições da mesma na área da

física destacando suas contribuições para o estudo da radioatividade que a levou a ganhar o

Nobel.

Palavras-chave: Marie Curie, Física no Século XX, Radioatividade

Introdução

Maria Sklodowski Curie (1867-1934) é uma famosa personagem da história da

ciência. Foi a primeira mulher a ganhar um prêmio Nobel, conseguindo se destacar como

pesquisadora em uma época em que as universidades eram um domínio masculino,descobriu a

radioatividade e novos elementos radioativos – o tório, o polônio e o rádio. Foi apenas a partir

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do seu trabalho que surgiu um enorme interesse pelos fenômenos radioativos e que essa área

começou a se desenvolver de fato.

Objetivo

O nosso objetivo é mostrar a importância dessa personalidade no universo

científico e as suas descobertas sobre a radioatividade.

Discussão

Marie Nasceu no dia 7 de Novembro de 1867, na Varsóvia, Polônia. Durante os

anos do ginásio recebeu uma medalha de ouro por seu desempenho, revelando-se a melhor

aluna, concluiu seus estudos com dezesseis anos.Aos dezoito anos, para ajudar a sua irmã que

foi cursar medicina em Paris, foi ser preceptora no campo, enviando parte do dinheiro

recebido para a sua irmã Bronia, mas seu sonho era aprender em vez de ensinar. Em 1891

ingressa na Faculdade de Ciências da Universidade de Sorbonne. Trabalhando sempre com

substâncias químicas e cálculos, em 1893, obteve o primeiro lugar em ciências físicas e no

ano seguinte obteve o segundo lugar no exame de Matemática. Conhece Pierre Curie, um

bacharel e licenciado em ciência, com quem veio a se casar e ter duas filhas.

Marie resolveu tentar aquilo que nenhuma mulher havia ainda conseguido: um

título de doutora em física, pela Sorbonne, O tema escolhido para o doutorado foi a estranha

radiação emitida pelos compostos de urânio. Nessa época, não se falava sobre “radioatividade.

Ela notara que diversas substâncias contendo urânio emitiam certos raios invisíveis parecidos

com os raios X, que atravessavam o papel e produziam manchas em chapas fotográficas.

Após resultados positivos de sua pesquisa, tendo a certeza de que a radiação é

uma propriedade atômica, Marie decide examinar todos os corpos químicos conhecidos.Após

a continuidade da pesquisa, Marie e Pierre anunciam em dezembro do mesmo ano a existência

do segundo elemento radioativo e o denomina de Rádio. As descobertas dos Curie vinham

quebrar algumas concepções aceitas há séculos na Física, pois contradizia as idéias sobre a

composição da matéria.O trabalho do casal Curie foi reconhecido, e em 1900 eles eram os

mais importantes pesquisadores nessa área. Em 1903, enfim, Marie Curie defendeu a sua tese

de doutorado em física na Sorbonne, e foi aprovada com distinção e louvor. Em dezembro do

mesmo ano, o casal Curie recebeu o reconhecimento internacional pelo seu trabalho,

ganhando o prêmio Nobel de física, pela descoberta do polônio e do rádio.

Até 1904, os Curie já haviam publicado mais de trinta memórias científicas. A

radioatividade passa a dominar o mundo e a descoberta do rádio balança o mundo físico.

Marie e Pierre descobrem que o rádio pode causar queimaduras perigosas e às vezes fatais,

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que era muito eficaz na cura de certas doenças, pois destruía as células infeccionadas e

detinha o desenvolvimento dos tumores malignos, inclusive de certas formas do cancro. Em

1902, a Academia de Ciências entregou vinte mil francos para que os Curie trabalhassem para

a extração da matéria radioativa. A Universidade de Paris outorgou a Marie o título de Doutor

em Ciências Físicas.

Marie acabou por falecer em 1934com uma febre desconhecida e dores no corpo,

suspeitas da sua manipulação com oselementos radioativos descobertos.

Agora, então, a comunidade científica e a sociedade reconheciam a grandiosidade

das descobertas e a genialidade de Marie.

Conclusão

A contribuição de Marie Curie foi grandiosa tanto na química quanto na física,

mas o nosso trabalho foca as contribuições da mesma na área da física. Marie Curie marcou e

continua a marcar o grande momento histórico da Física do século vinte. Observamos que os

estudos dessa ciência contribuiu para o avanço em campos distintos, como por exemplo na

Medicina.Por fim, devido a relevância das descobertas realizadas por Marie Curie em 34 anos

dedicados ao campo da radioatividade, esta ilustre cientista foi homenageada por grandes

universidades e agremiações científicas do mundo. Enfim, Marie é um marco na história da

ciência; um exemplo de determinação, simplicidade, genialidade e sabedoria. Uma mulher

que contribuiu muito para o progresso da ciência, a partir da sua busca incessante pelo

conhecimento científico.

Referências

CURIE, E. Madame Curie. 12 ed. São Paulo: Companhia editora nacional, 1976. 319 p.

FONSECA, M. R. M. Completamente química: físico-química. São Paulo: FTD. 2001.

BEZERRA,Geni Barbosa; RODRIGUES, Gizella Menezes.Marie Curie: A Célebre Cientista do

Século XX.Departamento de Educação – Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE ,

2010.

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LOMBROSO: ERGUE-SE UMA VOZ BIOLÓGICA NUM MAR DE RESPONSABILIDADE CRIMINAL

Diana Ferreira Stephan

Graduanda em História pelo IH/UFRJ

[email protected]

Resumo

O criminalista italiano Cesare Lombroso destaca-se em uma Europa do século XIX na qual a

medição de cérebros e crânios assegurava seu espaço. Por meio de suas pesquisas e,

especialmente, da formulação do conceito de criminoso nato, ainda que constantemente

criticado, o pesquisador estimula o crescimento do campo da antropometria. Esta é então

aplicada aos mais diversos grupos – alienados, presidiários, crianças, mulheres, prostitutas –,

dividindo-os em um número cada vez maior de categorizações, sempre inseridos em uma

hierarquia polarizada entre homens civilizados e degenerados. A nítida preferência de

Lombroso pelo estudo de criminosos e alienados, num contexto intelectual em que a fronteira

entre estes dois conceitos é imprecisa, faz com que ele apareça como uma figura central

dentro de uma proposta de mudança do sistema penal e punitivo. Nessa comunicação,

analisaremos como o discurso de Lombroso alia-se ao dos alienistas para criticar o sistema

jurídico corrente, enfatizando a centralidade do criminoso e a imprescindibilidade do médico

legista.

Palavras-chave: Lombroso, antropometria, criminologia

Cesare Lombroso (1836-1909) foi uma figura que se destacou em uma Europa do

século XIX, na qual a busca dos intelectuais para entender seu lugar na natureza e na

sociedade era muitas vezes respondida empiricamente através de teses biológicas calcadas na

prática de medições e comparações. Diversos pesquisadores, como J. F. Blumenbach (1752-

1840), um dos primeiros a trabalhar a noção e divisões das raças humanas, e Franz-Joseph

Gall (1758-1828), fundador da frenologia, buscavam melhor compreender o funcionamento e

relação entre o corpo e a mente humana. Dentre as pesquisas comuns à época, apareciam

diversas análises e teses direcionadas para entender melhor o cérebro e a formação craniana, e

qual sua relação com a moral, a personalidade e as decisões humanas. Influenciado por estes

questionamentos, Lombroso realizou diversas pesquisas e estendeu seu conhecimento e seus

estudos antropométricos para além deste campo, propondo, a partir desta abordagem médico

científica, uma reformulação do sistema penal europeu.

Posteriormente conhecido como pai do conceito de "criminoso nato", o

antropólogo nasceu em Verona e, recebendo uma boa educação, iniciou seus estudos na

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faculdade de medicina. Nesta entrou em contato com obras e idéias que seriam de suma

importância em suas produções intelectuais, além de desenvolver seu interesse por psiquiatria

e anatomia cerebral. Durante esses anos, Lombroso distanciou-se cada vez mais da filosofia

do livre-arbítrio, aproximando-se do positivismo francês, do materialismo alemão e do

evolucionismo inglês, que perpassariam, em maior ou menor grau, suas idéias e produções

intelectuais até o final de seus dias (WOLFGANG, 1973: 234).

Desde suas primeiras produções acadêmicas, Lombroso abordou temas que seriam

centrais ao longo de todo o seu trabalho, como o da patologia cerebral e suas constatações

acerca de biomorfismos associados às personalidades e à moral, utilizando os métodos da

antropometria correntes na escola italiana de seu período. A mesma coerência pode ser

encontrada na sua escolha dos grupos a serem analisados. Muitos dos biomorfismos, cérebros

e crânios estudados ao longo de toda sua carreira advinham de pessoas de grupos

marginalizados, utilizando integrantes de camadas mais pobres da sociedade ou de esqueletos

de criminosos célebres, selecionando majoritariamente aqueles considerados como fora da

normalidade. Os estudos do italiano, portanto, analisavam categorias da sociedade que

incluíssem homens considerados como possuidores de personalidade e caráter violento ou

perverso, como criminosos ou soldados, ou de qualidades mentais debilitadas, como era o

caso de alienados e epilépticos.

Ainda no início de sua carreira Lombroso teve acesso a medições e

experimentações realizadas em prisioneiros em Turim, as quais foram fundamentais na

elaboração de seu primeiro livro: L’Uomo Delinquente (1876). Este lhe rendeu grande

reconhecimento, sendo logo traduzido para diversas línguas (DARMON, 1991: 36). Nos anos

seguintes à publicação, o prestígio de Lombroso apenas cresceu, atingindo seu ápice em 1885,

com a organização do Primeiro Congresso Internacional de Antropologia Criminal, no qual

foi figura central.

As pesquisas do antropólogo utilizavam uma metodologia calcada em premissas

empíricas extremas, estando Lombroso inclinado a apenas considerar características passíveis

de serem diretamente observadas e mesuradas, daí sua preferência pela análise das

características congênitas e físicas. Essa proposta seguia um padrão forte em seu período e foi

adotada por muitos dos seguidores de Lombroso. Ainda sim, as críticas permearam o trabalho

do antropólogo italiano, atacando diversos aspectos de sua metodologia. Algumas destas

censuras foram posteriormente apropriadas pelo intelectual e podem ser observadas em

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algumas de suas publicações mais novas, como a adoção do uso de estatísticas e de grupo

controle. Porém, a mudança não atingiu de maneira profunda o cerne dos ideais lombrosianos.

Uma das principais críticas à Lombroso, advinda especialmente da Escola

Francesa, correspondia ao pouco espaço dado em suas análises a fatores sociais. Ainda que

estes viessem a tornar-se mais presente em seus trabalhos mais recentes, como podemos

observar claramente em seu livro Le Crime, Causes et Remèdes (1899), a mudança não

chegou a atingir intimamente sua proposta. Lombroso continuou a privilegiar os fatores

biológicos e o atavismo como causas da criminalidade, ainda que passasse a considerar

elementos sociais e naturais como possíveis desencadeadores de ações negativas.

A categorização lombrosiana dos corpos normais e dos que sofriam de

anormalidades não restringia-se a categorias amplas. Através de uma metodologia qualitativa

e quantitativa, antropólogos italianos delimitavam diferentes grupos de anormais e

acreditavam que através do levantamento de determinadas características, podia-se definir os

traços particulares de cada tipo de criminoso: homicidas, estupradores, ladrões, etc.

Paralelamente à identificação dos criminosos, estes também eram taxados de

acordo com a origem de sua anormalidade em grupos hierarquicamente definidos por seu grau

de periculosidade e perversidade. Duas separações principais foram delineadas nos estudos de

Lombroso: a da criminalidade decorrente de causas externas ao organismo e a oriunda de

anomalia orgânica. E cada uma destas possui suas respectivas sub-divisões. No primeiro

gênero de criminalidade, encontram-se os criminosos ocasionais, que cometeriam crimes

involuntariamente, sem representarem ameaça à sociedade. É o caso dos que infringem a lei

por defesa pessoal, pela sua honra ou por sua família. Neste grupo são incluídos ainda os

criminalóides, levados a realizar seus crimes por fatores do meio ambiente ou por

oportunidade. Ainda que neste caso as influências externas exerçam função essencial, estes

criminosos já apresentariam em seu organismo tendências inatas que os aproximavam do

crime. Entretanto, estas eram menos intensas do que no caso dos criminosos natos. Outros

tipos de criminosos foram ainda identificados e inseridos nesta categoria, tal como os

perpetradores de crimes políticos.

Já na seleção de homens de criminalidade decorrente de anomalias orgânicas,

levou-se em consideração tanto aqueles cujas características são congênitas quanto

adquiridas. Incluindo no mesmo grupo epilépticos, “loucos racionais” e criminosos natos – os

de criminalidade inata –, e também aqueles que contraíram doenças como a sífilis, a

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meningite crônica, a tuberculose ou a paralisia progressiva geral. Apesar dos integrantes deste

bloco poderem vir a realizar delitos de igual ou menor gravidade dos que os dos demais

criminosos, estão inseridos em um patamar mais alto na hierarquia de perversidade e

periculosidade, da qual o criminoso nato ocupa o topo.

As discussões acerca da validade científica da obra de Lombroso permaneceram

intensas durante as décadas seguintes ao Primeiro Congresso Internacional de Antropologia e

a discordância entre a Escola Francesa e Italiana manteve sua força até o falecimento do

italiano. Porém, independentemente destas questões, a teoria de Lombroso, já presente em sua

obra inicial L’Uomo Delinquente, pode ser descrita como “a mais influente jamais produzida

pela tradição antropométrica”. Mais do que afirmar o determinismo biológico do caráter

hereditário do crime, o antropólogo italiano desenvolveu uma “teoria evolucionista específica,

baseada em dados antropométricos” (GOULD, 1999: 122-3). Apesar de ser criticado por seu

“empirismo simplista”, Lombroso foi capaz de produzir categorizações e gerar uma lapidação

do método de distinção dos criminosos que foi de extrema importância para o

desenvolvimento de trabalhos científicos e para a discussão jurídica em voga.

Durante o período áureo de Lombroso, este defendeu uma antropotecnia gestora

do corpo social, concebendo o livre arbítrio como uma “quimera metafísica” que deveria ser

combatida mediante análises estatísticas biológicas. Para ele, estudar o crime de forma

abstrata, tal como faziam os juristas, consistia em um erro, sendo necessária uma análise que

observasse o criminoso empiricamente. A partir desta argumentação, unida às suas análises

antropométricas e categorizantes, Lombroso e seus discípulos tornaram-se importantes vozes

dentro da luta pela mudança do sistema jurídico e carcerário tradicional de seu período.

A filosofia penal da Escola Clássica repousava suas raízes nos trabalhos do

italiano Cesare Beccaria (1738-1794) e dos ingleses Jeremy Bentham (1748-1832) e John

Howard (1726-1790). Durante o final do XVIII e início do XIX, estes juristas auxiliaram na

formulação de um sistema penal no qual a gravidade do crime funcionava como engrenagem

central, sendo os infratores julgados segundo uma equação complexa, porém inflexível, que

levava em conta somente seus atos, incluindo possíveis atenuantes e agravantes. Um dos

aspectos capitais deste sistema era a imprescindibilidade da aplicação da pena. A certeza e o

medo de receber uma punição severa seriam os elementos que impediriam os homens de

cometerem crimes. Entretanto, apesar das implementações realizadas no sistema penal

europeu durante o período, o nível de criminalidade e reincidências permaneciam altos no

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final do século XIX (DARMON, 1991: 83), o que provocou críticas e revisões nas normas

correntes.

Posteriormente central para os alienistas, antropólogos e sociólogos, a figura do

criminoso permaneceu desimportante durante o século XVIII. Não podemos afirmar que não

havia preocupações acerca do trabalho a ser feito com os presos, porém esta atenção dedicada

aos criminosos pelos juristas referia-se à aplicação da pena e ao trato com os condenados.

John Howard em seu livro The state of prisions in England and Wales (1776) propunha que

os criminosos fossem sentenciados a períodos de isolamento e silêncio, que unidos a uma

rotina de trabalho e à educação religiosa e moral serviria para reintegrar estes à sociedade. Já

Bentham desenvolveu alguns anos mais tarde a noção do panóptico, cuja sensação perene de

vigilância sobre os condenados estimularia a disciplina, permitindo a melhor aplicação de um

sistema penitencial voltado para a reclusão regrada. Em ambos os casos, havia uma

preocupação com o comportamento do aprisionado e que as formas como a aplicação da pena

que se distanciassem da prática do suplício, visando a reeducação do preso (FOUCAULT,

1997: 16).

De todo modo, estas análises não discutiam a origem da formação do criminosos,

o motivo de sua escolha pelo crime ou o que os diferenciava das pessoas normais, mas

somente preocupava-se com seu destino e com as possibilidades de recuperação. Definia-se,

portanto, que os homem partilhariam de uma igualdade para tomar escolhas. Seriam os

homens dotados de livre-arbítrio e, portanto, deveriam responder igualmente por seus atos,

sem que fossem necessárias maiores investigações sobre as particularidades de cada

indivíduo. As principais críticas dos antropólogos italianos a estas propostas eram que estas

seriam construídas a partir de reflexões abstratas, calcadas principalmente na noção de uma

responsabilidade moral homogênea, sem haver análises empíricas que comprovassem suas

teorias. Para os juristas, o importante era examinar as infrações, para os antropólogos, o

criminoso.

Anteriormente a estas questões, o quesito da diferenciação entre criminoso e

alienados já era motivo de discussões. Ainda que ao longo do século XVIII essa separação

existisse, sendo possível que um acusado fosse considerado como irresponsável por seu crime

devido à insanidade, estes casos permaneciam raros e o destino daqueles julgados como

alienados não era muito invejável, estando fadados a serem acorrentados dentro de casas de

detenção por tempo indeterminado (DARMON,1973: 122).

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Este contexto foi modificado ao longo do final do século XVIII, início do XIX,

quando o médico Philippe Pinel (1765-1826) combateu a violência com a qual os alienados

eram tratados, lutando para que eles não fossem simplesmente depositados em casas de

correção, onde sofriam constantes abusos, mas levados para asilos nos quais deveriam receber

tratamento adequado e especializado. Unido a isto, neste período a irresponsabilidade penal

devido à alienação passou a ser inserida dentro de códigos penais, sendo utilizado o trabalho

de Pinel para definir os limites da categoria de alienados.

Esta, originalmente reduzida, foi rapidamente ampliada quando o psiquiatra e

discípulo de Pinel, Jean-Étienne Esquirol (1772-1840), formula o conceito de monomania.

Através deste, o alienista distingue casos em que um paciente apresenta manifestações

específicas de loucura, exercendo as demais funções perfeitamente. Gradativamente a

monomania passou a ser aceita dentro dos tribunais, porém isto significou um estímulo ao

aumento do conflito entre médicos e juristas para definir as fronteiras da categoria de

irresponsáveis criminais. Seria, porém, somente com Étienne Georget (1795-1828) que as

discordâncias mais profundas se anunciariam.

O psiquiatra identificou, ao longo de uma série de artigos, o estado de monomanie

instinctive (HARRIS,1993:18), mais tarde apropriado por Bénédict Morel (1809-1873) com o

nome de “loucura racional”. Esta nova categoria qualifica um tipo de alienado que sofre

exclusivamente de uma “lesão da vontade”, mantendo, porém, suas faculdades racionais

intactas. Através desta formulação, Georget transformava a fronteira entre o criminoso e o

alienado em algo deveras sutil e complexo de ser definido, exigindo o olhar especialista do

médico para separá-los e, consequentemente, colocando em cheque a validade da autoridade

do juiz e, principalmente, do júri como indivíduos aptos a julgar os crimes e a decidir sobre as

penas.

Devido sobretudo à dificuldade em definir claramente a linha separatória entre o

criminoso e o louco racional e às profundas implicações que a aceitação do conceito de

“monomania racional” provocaria dentro de todo sistema jurídico, os alienistas defensores

desta proposta não foram capazes de validá-la dentro do campo penal. Foi exatamente sobre

esta discussão que a antropologia criminal apareceu como uma forte voz influenciadora.

A antropologia criminal, contrária à idéia de livre-arbítrio e do que consideravam

um excesso de abstração dentro das teorias penais clássicas, pleiteava por um sistema jurídico

pautado no resultado de experimentações empíricas. Se a principal dificuldade dos alienistas

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estava em propor uma definição de “loucos racionais” que fosse clara e compreensível para

todos, inclusive por aqueles que não estivessem familiarizados com os estudos médicos, a

noção lombrosiana de criminoso nato, pautada em características passíveis de serem

observadas através de uma análise metódica e que já gozava da validação do meio científico e

acadêmico, aparecia como uma resposta a este impasse. Intelectuais como Morel haviam

anteriormente destacado a perversidade inata à figura do “louco moral”, afirmando que estes

seriam fruto de traços hereditários e biomórficos, tendo seu trabalho inclusive influenciado

profundamente as pesquisas de Lombroso (DARMON:1991, 80). Porém, seria com os

antropólogos italianos que os alienistas procurariam aproximar definitivamente o campo

médico ao judicial.

Tal como propunham os alienistas, Lombroso e seus discípulos defendiam que as

penas deveriam basear-se não no crime, mas no criminoso (GOULD,1999: 140) e exigiam

que o médico legista especializado ganhasse maior centralidade dentro do sistema judiciário.

No desenvolvimento desta discussão, a classificação dos diferentes tipos de criminosos por

Lombroso foi essencial. O perito deveria ser capaz não apenas de reconhecer os sintomas de

loucura ou perversidade estampados na personalidade e biomorfismos de seu paciente, mas

classificá-lo corretamente quanto a seu nível de periculosidade, sabendo diferenciar

criminosos natos de ocasionais ou criminalóides.

A identificação precisa do infrator seria essencial para que se determinasse

corretamente a pena dos infratores, um outro ponto fundamental de questionamento dos

antropólogos criminais. Para estes positivistas, a punição tal qual era aplicada não dava

resultados, voltando o criminoso a realizar crimes após ser solto. Colocando a proteção social

acima do indivíduo, a proposta destes era radical. Caso o médico concluísse que o criminoso

era passível de mudança, ele devia ser internado em um asilo para delinqüentes, onde seria

tratado, e seria autorizado a sair de lá somente quando fosse constatada sua cura por parte dos

médicos. Porém, se o condenado fosse identificado como criminoso nato, incoercível, deveria

ser condenado à morte. Deste modo, tal como o julgamento, a pena deveria ser igualmente

pautada na pessoa do infrator, e não no ato por ele cometido.

Ainda que muitas das inovações propostas pelos alienistas e antropólogos

criminais não tenham se concretizado, eles foram capazes de provocar profundas mudanças e

inquietações ao longo de todo o mundo. As premissas lombrosianas tiveram boa recepção ao

longo de toda Europa e nas Américas, exportando uma série de idéias novas e provocadoras

que seriam apropriadas de diferentes formas em cada local. Porém, foi na Itália onde estas

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fixaram raízes mais fortes. No século XX, as teorias antropométricas e hierarquizantes, unidas

a uma noção de superioridade biológica e ao receio da degeneração humana foram

apropriados pelos fascistas. Apesar de muitos seguidores de Lombroso não compartilharem

dos ideais de Mussolini, seu regime utilizou a antropologia criminal de seu país e incorporou

algumas de suas noções sobre legislação policial, justiça juvenil e moralidade (GIBSON,

2002: 240-1). Além do fascismo italiano, o ambiente intelectual promovido pela defesa destas

propostas estratificantes e categorizantes dos homens foi propício para a consolidação de

diversas outras as ditaduras durante o século XX. Apesar destas apropriações, as propostas de

Lombroso não limitavam-se a uma construção calcada somente no determinismo e empirismo

simplista e preconceituoso, como por vezes associa-se a sua figura.

Desde seu período de ascensão, Lombroso sofreu duras críticas e gerou intensos

debates acerca da legitimidade e veracidade de seus estudos e propostas. Estas perduraram por

toda sua vida, e permanecem existindo mesmo décadas após seu falecimento. Porém,

atualmente o médico e antropólogo italiano é majoritariamente reconhecido pela importância

que teve dentro do ambiente científico no qual trabalhava. Foi capaz não apenas de trazer

propostas inovadoras para seu campo de estudo, como também de expandi-lo e articulá-lo

com as áreas da psicologia e do direito penal. Na penologia, a importância de compreender os

traços de personalidade do incidente e da escolha de tratamentos individualizados é

amplamente aceita. Certamente tais mudanças, assim como a crescente utilização de centros

diagnósticos e classificatórios e a adoção da liberdade condicional para presos que

comprovem estar sendo afetados pelo cumprimento de sua pena, não são consequências de

uma simples adoção dos ideais de Lombroso. Porém, são resultado de pesquisas e propostas

desenvolvidas por estudos profundamente influenciados pelo trabalho do antropólogo acerca

das diferenças psicológicas entre presos e pela sua ênfase na importância de se analisar os

criminosos individualmente. Isto se deu pois através de suas idéias, Lombroso e seus

discípulos abriram uma nova área de pesquisa e trouxeram reflexões originais para todo um

campo de estudo. Tal como van Kan postulou: “Cesare Lombroso teve o esplendido mérito de

haver sido o maior investigador das idéias do campo da criminologia, ele formulou sistemas e

concebeu hipóteses engenhosas e corajosas” (WOLFGANG, 1973: 288). E foi deste modo

que o cientista italiano tornou-se uma das figuras mais conhecidas e proeminentes dentro da

história da criminologia.

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

Salvador: UFBa / UEFS / UFMG, 2012. ISBN: 978-85-62707-30-8

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SERIA POSSÍVEL RETIRAR O ESTEREÓTIPO INTERNALISTA DE ALEXANDRE KOYRÉ?

MOTIVOS PARA NÃO FAZÊ-LO

Francismary Alves da Silva

Mestre em História pela UFMG

Doutoranda em História pela UFMG

Bolsista FAPEMIG

[email protected]

Resumo

Até meados da década de 1960, quando aspectos teóricos – fossem metodológicos,

empíricos ou conceituais – regiam a análise histórica sobre as ciências, configurou-se o

que se convencionou chamar de história “Internalista”. Os trabalhos desenvolvidos por

Alexandre Koyré foram denominados internalistas, pois iluminavam apenas os aspectos

internos à ciência stricto sensu. A chamada vertente “Externalista”, em oposição aos

estudos de Koyré, era composta por narrativas que se detinham nas determinantes

econômicas, políticas ou culturais ao descrever o desenvolvimento das ciências. A célebre

querela entre o Internalismo e o Externalismo dominou a cena dos estudos históricos sobre

as ciências até meados de 1962, ano em que Thomas Kuhn publicou A Estrutura das

Revoluções Científicas, obra que supostamente teria posto fim à querela. O presente

trabalho pretende abordar o embate entre as correntes Internalista e Externalista,

analisando as implicações do epíteto “internalista” presente na fortuna literária de

Alexandre Koyré.

Palavras-chave: Internalismo, Alexandre Koyré, historiografia

Até meados da década de 1960, quando aspectos teóricos – fossem

metodológicos, empíricos ou conceituais – regiam a análise histórica sobre as ciências,

configurou-se o que se convencionou chamar de história “Internalista”. Em oposição, a

chamada vertente “Externalista” era composta por narrativas que se detinham nas

determinantes econômicas, políticas ou culturais ao descrever o desenvolvimento das

ciências. Segundo a tradição historiográfica, os trabalhos desenvolvidos por Alexandre

Koyré foram denominados internalistas, pois iluminavam apenas os aspectos internos à

ciência stricto sensu. Ampliando os argumentos que defendem a característica teórico-

conceitual como sendo a principal marca dos trabalhos desse autor, pode-se afirmar que o

legado deixado por Koyré ultrapassa seu mais conhecido epíteto: “internalista”.

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Em artigo intitulado History of Science through Koyre´’s Lenses (A História da

Ciência através das Lentes de Koyré), de 2001, James Stump afirma que a interpretação

padrão – internalista – utilizada para caracterizar os trabalhos de Koyré talvez não seja a

mais adequada. Segundo o autor, a tradição crítica teria promovido um descrédito frente à

real potencialidade interpretativa presentes nos trabalhos de Alexandre Koyré. Tal

descrédito teria sido proporcionado pela força das emergentes narrativas externalistas,

próximas dos estudos sociológicos das ciências que, posteriormente, se aproximariam

enfaticamente da História das ciências pela obra de Thomas Kuhn. Segundo explica

Stump, os trabalhos de Koyré sobre o desenvolvimento das ciências concentraram atenção

sobre o que pode ser entendido como estruturas ou “unidades de pensamento”. Segundo a

concepção de unidade de pensamento, uma nova teoria não pode emergir de forma

independente das demais teorias já aceitas. Também não pode emergir de forma

independente do sistema sócio-cultural do qual essas teorias já aceitas fazem parte. Isto é,

toda nova idéia científica, para ser considerada racional e válida, deveria estar conectada a

um sistema científico já estabelecido e, também, a um sistema sócio-cultural. A unidade

de pensamento, que segundo Stump é formada pelo contexto científico-filosófico e

também pelo contexto sócio-cultural específico de uma época, rege as novas idéias,

tornando-as passíveis de aprovação ou reprovação. Essas idéias científicas, por mais

inovadoras que fossem, deveriam estabelecer relações, diálogo com a unidade de

pensamento mais ampla (teórico e sócio-cultural) na qual pretendiam se estabelecer. De

acordo com essa concepção de desenvolvimento científico presente nas obras de Koyré, as

novas teorias científicas se relacionam, de alguma maneira, com o sistema filosófico, o

sócio-cultural, o econômico, o político ou o religioso. Dessa forma, uma nova idéia ou

uma nova teoria só poderia justificar sua validade se essa validade fosse alcançada dentro

de um sistema, de uma rede mais ampla de contextualização. As descobertas não se

realizariam isoladamente, “[...] o pensamento científico não se desenvolve in vácuo.”

(KOYRÉ, 1991b, p. 204).

Percebe-se que o entendimento de Stump sobre as unidades de pensamento em

Koyré vai além das questões ditas internas, englobando também os fatores sócio-culturais.

Contudo, isso não implica que Koyré tenha afirmado que os contextos sócio-culturais

determinariam as transformações no pensamento científico. Transformar o autor em um

representante da vertente externalista seria negar toda uma tradição crítica e, além disso,

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deslocar o propósito da revisão dos trabalhos do autor. Esse não é o intento dessa breve

relato de pesquisa. Pretendo, por ora, entender como os trabalhos de Koyré nos permitem

pensar que determinado conhecimento científico, por estar submerso numa complexa

trama social, está exposto a um processo mútuo de interação. Novamente, isso não quer

dizer que esse fator atue como uma determinante máxima, tal como nas análises extremas

da vertente externalista, por exemplo. Em concordância com a leitura de James Stump,

também é possível observar uma tensão inerente entre as idéias científico-filosóficas e o

contexto no qual elas se desenvolvem. Nesse sentido, talvez fosse mais interessante

entender o legado de Koyré como sendo mais um legado hegeliano, dialético, do que

propriamente internalista. (STUMP, 2001). Resta-nos, então, tentar responder a pergunta

motivadora desse relato de pesquisa: se é possível entender os estudos koyrenianos de

formas díspares daquelas empregadas pela tradição crítica, retirando assim o estereótipo

“internalista” do autor, qual poderia ser a atual função historiográfica do referido epíteto?

A conhecida Querela entre o Internalismo e o Externalismo dominou as cenas

dos estudos históricos sobre as ciências até meados de 1962, ano em que Thomas Kuhn

publicou o livro A Estrutura das Revoluções Científicas. Pela natureza argumentativa da

obra kuhniana, muitos críticos acreditavam que a Querela teria, finalmente, sido resolvida.

Ao descrever o desenvolvimento científico, Kuhn divide sua narrativa em dois momentos:

ciência normal e ciência extraordinária.1 Por meio dessa divisão, o autor poderia dar maior

ênfase a um tipo de elemento em detrimento de outro. Por exemplo, o autor poderia

concentrar-se mais nas negociações sociais da comunidade científica (um fator externo)

durante o período chamado “ciência extraordinária”. Em oposição, poderia concentrar -se

mais nas questões teóricas (um fator interno) durante o momento de dominação de um

“paradigma”, chamado “ciência normal”. A tradição crítica entendeu que a solução

encontrada pela narrativa de Kuhn sintetizaria as duas vertentes (Interna e Externa) em

uma só, constituindo uma “síntese pacificadora” (MAIA, C. A. No prelo). Segundo afirma

Kuhn, “[...] Embora as abordagens interna e externa à história da ciência tenham uma

espécie de autonomia natural, elas são, de facto, interesses complementares.” (KUHN,

1989a, p. 160).

1 Os conceitos kuhnianos, tais como “paradigma”, “ciência normal” ou “ciência extraordinária” podem ser

encontrados em: KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva

S.A., 1990.

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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A grande repercussão dos conceitos kuhnianos lhe rendeu severas críticas,

algumas, inclusive, colocaram seu trabalho sob suspeita epistemológica. Alguns críticos

deram a Kuhn o título de relativista. “O mito do referencial (psicológico, sociológico), em

nosso tempo, é o baluarte central do irracionalismo”, diz Karl Popper ao descrever os

trabalhos de Kuhn. (POPPER, 1979, p. 70). Popper alega que para a teoria kuhniana a

troca de paradigmas seria regida mais pela psicologia da pesquisa do que pela lógica da

descoberta, da verdade absoluta, objetiva. As revoluções científicas seriam regidas por

fatores não científicos, tal fato inviabilizava a aceitação do modelo kuhniano e o

classificava como relativista. Ao tentar solucionar a Querela, Thomas Kuhn criou

conceitos que, posteriormente, mostraram-se problemáticos.2 Muito embora Thomas Kuhn

alegasse estar trabalhando na reformulação de sua obra, um novo livro nunca foi lançado.

Por mais que os artigos publicados separadamente (KUHN, 2006) revisassem sua teoria e,

por vezes o aproximasse das concepções desenvolvidas por Ludwik Fleck, é importante

ressaltar, Kuhn jamais recusou por completo o conceito de revolução ou de

incomensurabilidade, tal como a primeira reavaliação de seu trabalho sugeriria. Se, por

um lado, Thomas Kuhn enveredou por caminhos que o trouxeram os (questionáveis)

títulos de relativista e de sintetizador das vertentes internas e externas, por outro lado,

autores da mesma tradição kuhniana não seguiram o mesmo caminho, como é o caso de

Alexandre Koyré.

Conforme demonstra James Stump (2001), a interpretação padrão utilizada

para caracterizar os trabalhos de Koyré talvez não seja a mais adequada para entender os

estudos históricos desse autor. Apesar de a tradição crítica ter taxado seus trabalhos, o

conceito de unidade de pensamento nos permite entender a ciência como um

conhecimento que interage com fatores diversos, como os políticos, os sociais, os

culturais. A ciência não seria um conhecimento autônomo, “natural”. Feita essa

ponderação acerca da natureza do conhecimento científico presente nos trabalhos de

Koyré, percebe-se que as críticas que separaram as vertentes narrativas em Internas e

2 Para uma síntese das principais críticas direcionadas aos trabalhos kuhnianos, bem como as respostas e

reformulações do autor diante dessas críticas, ver: SILVA, Francismary Alves da. Historiografia da revolução

científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin. Dissertação (mestrado). Belo Horizonte:

FAFICH/UFMG, 2010. Disponível em

<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=191712>. Acesso:

14 jan. 2012.

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Externas consideravam possível estabelecer tal cisão. Isto é, consideravam que a ciência

pudesse ser entendida como um conhecimento autônomo, passível de ser analisada a

revelia de seu contexto social. Foi justamente por isso, aliás, que essa tradição crítica

estabeleceu a diferença entre as formas narrativas: internas e externas. De fato, a

concepção acerca do conhecimento científico segundo Koyré, percebida por meio do

conceito unidade de pensamento, era muito diferente daquela empregada por seus críticos.

Por fim, sabe-se que alguns autores acreditavam que o embate entre o

Internalismo e o Externalismo devesse ser sumariamente abandonado por se tratar de uma

falsa questão. Creio que a Querela entre o Internalismo e o Externalismo possa (e deva)

ser considerada um problema de pesquisa desde que haja contextualização histórica. Isso é

possível porque a Querela pode ser entendida como um embate entre correntes de

pensamento do início do século XX. Em outras palavras, mesmo que o debate em torno

dos modos de fazer e narrar a História das ciências já tenha avançado, mesmo que se

entenda que não é possível narrar exclusivamente aspectos internos, a dita Querela, apesar

de datada, pode ser estudada como um objeto histórico. Nesse sentido, analisar o legado

de Koyré a partir dessa tradição crítica que separava as duas vertentes é viável desde que

se entenda o contexto em que essa divisão foi forjada. Assim, acredito que existam

relevantes motivos para estudar o epíteto internalista empregado para designar o legado de

Koyré, pois tal emprego nos possibilita entender um momento específico de produção de

estudos históricos acerca das ciências. Possibilita-nos entender, por exemplo, como a

tradição crítica taxou os trabalhos koyrenianos por ser crédula de que a ciência poderia ser

estudada a revelia da sociedade em que se desenvolve. Essa concepção acerca do

conhecimento científico, embora aparentemente estivesse presente na obra kuhniana, não

foi corroborada pelos estudos históricos daquele que é considerado seu precursor,

Alexandre Koyré.

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AS FRONTEIRAS INCERTAS E MOVEDIÇAS ENTRE “CIÊNCIA” E MISTICISMO: O RABINO

ASTRÓLOGO ABRAÃO ZACUTO COMO CENTRO DE ESTUDO DA ASTRONOMIA IBÉRICA

(1478-1518)

Geraldo Barbosa Neto

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Mestrando em Hstória

Bolsista do Cnpq

[email protected]

Resumo

Conhecer a astronomia ibérica do período moderno exige do pesquisador um

distanciamento da cultura científica que lhe é contemporânea, colocando-se, assim, no

paradigma de conhecimento da época estudada. Alicerçar-se na demarcação estrita de uma

dimensão de investigação objetiva para interpretar a astronomia dos modernos constitui um

anacronismo, visto que ao estilo de sua época, a astronomia se misturava com outros

saberes. Para esse exame, elencou-se como figura-chave o influente Abraão Zacuto. A

escolha se justifica por sua biografia permitir uma aproximação com a conjuntura

epistemológica de seu tempo. O entrecruzamento da obra astronômica de Zacuto (Almanach

Perpetuum, 1478) com a sua literatura astrológica (Tratado breue en las influências del

cielo, Dos Eclipses del Sol y la Luna escritas em 1486, e Juízo dos astrólogos), mais do que

revelar enredos comuns, mostrou uma astronomia que entrelaçou medições e cálculos

precisos com o misticismo da influência celeste.

Palavras-chave: Astronomia ibérica, Abraão Zacuto, Literatura astrológica.

[...] Não sou astrólogo, repito, mas também não sou nada severo no

julgamento dos homens que até o Renascimento acreditaram no poder da

astrologia (ALBUQUERQUE, 1974, p. 1).

De acordo com seus biógrafos, Abraão Zacuto teria nascido aproximadamente

em 1452, na cidade espanhola de Salamanca. De ascendência judaica, vivenciou as

perseguições da inquisição espanhola iniciada em 1478. Em 1492, após a expedição de um

édito de expulsão dos judeus dos reinos espanhóis, se refugiou no reino vizinho de Portugal,

servindo a coroa portuguesa como astrólogo. Entretanto, o monarca português D. Manuel,

pretendendo casar-se com a filha primogênita dos reis espanhóis, assumiu em uma cláusula

de seu acordo nupcial que também expulsaria os judeus de seu reino. Assim, segundo os

principais biógrafos de Zacuto, em 1497 ele seguiu para o norte da África e depois foi para

a Ásia, onde morreu provavelmente em 1515 para alguns, ou por volta de 1520 para outros.

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Zacuto foi capaz de efetuar cálculos precisos e medições exatas dos movimentos

e posições dos corpos celestes, o que credencia sua capacidade matemática e seu largo

conhecimento astronômico. Essas indicações possibilitaram reconhecer Abraão Zacuto

como um instruído no legado astronômico ibérico, em virtude de seus escritos apresentarem

um modelo teórico e convenções de análise que se filiaram nessa tradição epistemológica.

Sua biografia permite uma aproximação com a conjuntura epistemológica de seu

tempo. Deste modo, este artigo se detém especificamente na análise de sua produção escrita.

Publicou em hebraico o ha-Hibbur ha-Gadol (O Grande Compêndio) conhecido

posteriormente como Almanach Perpetuum. Também publicou o Tratado breue en las

ynfluencias del Cielo (Tratado breve das influências do céu) e De los Eclipses del Sol y la

Luna (Dos eclipses do Sol e da Lua). Já tendo deixado os reinos espanhóis, escreveu os

livros Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo) e Sefer Yuchasin (Livro das

Genealogias). Nessas obras ele expressou um vínculo com o legado científico de seu tempo.

Uma compreensão séria do pensamento científico no passado necessita de uma

reflexão prévia sobre o ofício do historiador das ciências. A maneira como o historiador das

ciências pensa no presente, independente do rigor que confere a sua pesquisa, incide sobre o

objeto de estudo que elenca do passado. Isso significa que a interpretação que o historiador

das ciências fornece para as realizações científicas passadas que analisa, resulta em um

discurso histórico permeado por uma perspectiva que mantém em seu conteúdo certo grau

de subjetividade.

Para que o historiador das ciências identifique os pontos de descontinuidade e de

ruptura com suas convicções científicas, precisa ter em mente que a compreensão de ciência

no passado está separada dele pelo tempo. O historiador se encontra perante um sentido de

ciência que não é seu. Em ultima análise, se situa em presença de uma aproximação com

uma concepção de ciência preenchida por uma significação marcada por uma época diversa

da sua. De modo que se constrói um passo importante para a pesquisa, considerar o

entendimento de ciência de uma determinada época dentro de sua integridade histórica e

desvencilhá-la de um compromisso com os princípios científicos contemporâneos ao

historiador, para que se revele uma leitura da ciência de um período com historicidade.

Conhecer a ciência do período moderno exige do pesquisador um distanciamento da cultura

científica que lhe é contemporânea, colocando-se, assim, no paradigma de conhecimento da

época estudada. Alicerçar-se na demarcação estrita de uma dimensão de investigação

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objetiva para interpretar a astronomia dos modernos constitui um anacronismo, visto que ao

estilo de sua época, a ciência se misturava com outros saberes que não se manifestaram em

um âmbito integralmente objetivo, se levar-se em consideração as formas atuais de

concepção de ciência.

ASTROLOGIA, RENASCIMENTO E HISTORIOGRAFIA

De acordo com Lynn Thorndike, no artigo The True Place of Astrology in the

History of Science, escrito em 1955, antes de serem suplantados pelas leis propostas por

Isaac Newton, os princípios gerais que organizavam o universo eram astrológicos. A

cosmologia milenar dos astrólogos, além de sistematizar a configuração celeste, a elegeu

como causa primária dos fenômenos que ocorriam no mundo natural. Esse foi o cenário

cosmológico que serviu de modelo para nomes de notoriedade na história da ciência como

Isaac Newton, Thomas de Aquino, Alberto Magno, Kepler e Francis Bacon. Apoiando-se

em concepções astrológicas, os pensadores modernos, em um processo que ocorreu

lentamente, retiraram o caráter dogmático da astrologia, considerando apenas suas

características objetivas. A astrologia ganhou, no artigo precursor de Lynn Thorndike, o

sentido de uma ciência com aspectos diferentes da ciência moderna, mas que a precedeu e

auxiliou fundamentalmente em sua elaboração. Ele retirou da astrologia uma aura de

superstição em relação as teorias e procedimentos científicos modernos e a inseriu na base

em que a ciência moderna foi construída (THORNIDIKE, 1955, p. 273-278).

O artigo de Thornidike abriu o precedente para que outras pesquisas abordassem

a astrologia como parte da construção de um conhecimento científico. A enorme quantidade

de fontes astrológicas acumuladas nas bibliotecas, desprezadas por conter textos

“supersticiosos”, começaram a ganhar espaço nos estudos históricos. Eugênio Garin, em sua

obra O Zodíaco da Vida, na qual investigou a astrologia no Renascimento, escreveu que a

literatura astrológica mantinha um enredo inextrincável “[...] de temas religiosos e

„científicos‟, de motivos míticos e racionais, de reflexos de acontecimentos reais e de

transfigurações fantásticas” 1. Também registrou, em relação a astrologia dos modernos, que

“[...] por detrás das fantasias mítico-religiosas das „influências‟ e das „imagens‟, existe uma

trama racional, suscetível de ser rigorosamente calculada e definida segundo os princípios

1GARIN, 1988, p. 9.

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do conhecimento científico” 2. A astrologia comportaria ainda o dilema de suas origens:

uma matriz grega que impingiu nela a racionalidade e uma raiz oriental que a marcou com

mitos e superstições, situando-a “[...] entre lógica e a magia, entre matemática e mitologia,

entre Atenas e Alexandria” 3. Atenas simboliza o pensamento grego (racional) e Alexandria

congrega os saberes orientais (mitos e superstições) que moldaram um conhecimento que

apresentou um “[...] inextrincável entrançado de teoria e de prática, de conceitos e

sentimentos, de mitos e raciocínios” 4. O termo único da astrologia reuniria “[...]

concepções gerais da realidade e da história que aspiram ao rigor das ciências e técnicas” e

“[...] heranças complexas de antigas crenças e de cultos” 5 .

Paolo Rossi, em A Ciência e a Filosofia dos Modernos, filiando-se nessa linha

de pensamento que identificou na astrologia uma “pré-história” da revolução científica,

escreveu sobre os aspectos centrais que a constituíram. A astrologia congregou “[.. .] a

mistura dos temas „religioso-emotivos‟ e dos temas „matemáticos‟” 6. Também abarcou uma

“[...] dimensão operativa de uma série de técnicas utilizadas para „persuadir‟ ou para

dominar as forças presentes na natureza tida como ameaçadora e hostil” 7. Para Rossi, a

astrologia “[...] nasceu no terreno de uma mistura híbrida de „religião‟ e de „ciência‟” 8·, ele

escreveu que “[...] nascida nos templos da Caldéia e do Egito, jamais conseguiu libertar-se,

na sua longa história, nem de suas origens „sacerdotais‟ nem de suas características de

crença religiosa” 9. A astrologia, combinando “cultos” e “técnicas”, foi definida por Rossi

como:

[...] um tipo de saber que jamais consegue configurar-se como um saber

rigoroso, e que, entretanto, queria ser considerado como tal. Para superar

esta dificuldade, os astrólogos misturam matemática com as cerimônias e,

simultaneamente, apelam para uma temática “religiosa” (ROSSI, 1992, p.

38).

2Ibid., p. 14. 3Ibid., p. 14. 4Ibid., p. 15. 5Ibid., p. 59. 6ROSSI, 1992, p. 32. 7Ibid., p. 32. 8Ibid., p. 36. 9Ibid., p. 37.

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Rossi (1992, p. 39) escreveu que a astrologia se apresentou no período moderno:

[...] como uma “arte” e uma “ciência” que, ao contrário do que ocorre com

as outras artes e ciências, pode fazer “grandes promessas” e, portanto,

estimular a “curiosidade e a cupidez humanas”, a natural veneração dos

homens por tudo que é antigo. Daí vem “o ar de verossimilhança” da

astrologia, a sua “loucura” que “tem na superfície um falso aspecto de

sapiência” e que da sapiência “ostenta o aspecto e o hábito”, daí a sua

aparência “bela e veneranda e plena de séria autoridade”.

Paolo Rossi considerou, portanto, que a astrologia configura-se “[...] como uma

pseudociência” (ROSSI, 1992, p. 42). Em O Nascimento da Ciência Moderna na Europa,

Rossi registrou que na astrologia “[...] convivem cálculos sofisticados e vitalismo

antropológico” 10

como na magia e na alquimia convivem “[...] misticismo e

experimentalismo” 11

.

Outra questão acentuada por Paolo Rossi é a restrição da astrologia, da magia e

da alquimia a uma condição erudita. De acordo com ele, esses saberes tinham como

pressuposto que “[...] O que é precioso não é para todos, a verdade deve ser mantida secreta,

pois sua difusão é perigosa”12

. Esse segredo sobre as coisas essenciais se fundava na “[...]

distinção entre a exígua falange dos sábios [...] e a massa de incultos” 13

. Projeta-se nesses

conhecimentos a imagem de se revelarem “[...] como iniciação e como um patrimônio que

somente poucos podem alcançar” 14

·. A maneira utilizada pelos sábios para conservar seu

segredo foi omitir “[...] tais assuntos em seus escritos” 15

ou “[...] ocultá-los sobre uma

linguagem metafórica” 16

. Assim, “[...] os poucos eleitos que são capazes de captar a

verdade escondida debaixo da escrita e dos símbolos e que são iniciados aos sagrados

mistérios” 17

, protegem o saber essencial da “[...] multidão dos simples e dos ignorantes” 18

.

O sábio é aquele que “[...] conhece as correntes de correspondências que descem do alto e

sabe construir – por meio de invocações, números, imagens, nomes, sons, acordes de sons,

10(ROSSI, 2001: 49) 11Ibid., p. 49. 12Ibid., p. 45. 13Ibid., p. 45. 14Ibid., p. 46. 15Ibid., p. 46. 16Ibid., p. 46. 17Ibid., p. 47. 18Ibid., p. 47.

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talismãs – uma corrente ininterrupta de elos ascendentes” 19

. Rossi levantou questões sobre

esse aspecto dos saberes astrológicos, como se o “[...] caráter sensacionalista dos feitos

realizados” 20

pelo sábio oferecesse “[...] uma prova da sua pertença ao escalão dos eleitos”

21. A distinção entre os escolhidos e os ignorantes implica em idéias que “[...] devem ser

ocultadas a ponto de parecerem identificáveis” 22

. A complexidade desses saberes os

restringem a alguns eleitos. Em vista disso, esses sábios empregam uma linguagem:

[...] ambígua e alusiva porque não tem qualquer sentido que a idéia de uma

verdade oculta ou de um segredo possa ser expressa com clareza e com

palavras não alusivas e não ambíguas. Aquela linguagem é estruturalmente

e não acidentalmente cheia de deslizes semânticos, de metáforas, analogias

e alusões (ROSSI, 2001, p. 50).

O natural e o místico coincidem e somente os iniciados compreendem seus

segredos. Deste modo:

[...] a ciência se divide em duas partes uma das quais é manifesta e a outra

é oculta. A parte oculta é profunda: as palavras que se referem à ordem do

mundo são as mesmas que Adão recebeu de Deus e podem ser entendidas

apenas por pouquíssimos indivíduos (ROSSI, 2001, p. 52).

Para Rossi, essa “[...] verdade se transmite mediante o contato pessoal e pelos

„murmúrios das tradições e os discursos orais‟. A comunicação direta entre o mestre e o

discípulo é o instrumento privilegiado da comunicação” (ROSSI, 2001, p. 53).

Francis Amelia Yates, em sua obra Giordano Bruno e a Tradição Hermética,

coloca a questão de “[...] como eram incertas e movediças as fronteiras entre ciência

genuína e o hermetismo23

na Renascença” 24

. Para Yates, a astrologia é uma “[...] ciência

matemática, baseada na crença de que o destino humano é irreversivelmente governado 19Ibid., p. 48. 20Ibid., p. 49. 21Ibid., p. 49. 22Ibid., p. 49. 23 Os magos renascentistas acreditavam em um conhecimento que advinha de uma fonte sagrada, de uma versão

gnóstica da filosofia grega presente nas reminiscências pagãs do cristianismo primitivo. Recuperando os textos

remanescentes da Antiguidade e empregando suas idéias, muitos filósofos modernos viram o conhecimento

como uma forma de ascensão espiritual e de intervenção nas forças do universo. Em linhas gerais, a isso

denominamos como hermetismo. 24YATES, 1995, p.179.

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pelas estrelas” 25

, definição que se entende nessa pesquisa como consistente com a

astrologia do Renascimento, contudo, parcial, somando-se ao “destino humano” também o

“mundo natural”. O homem moderno, no ponto de vista de Yates, cumpriu o papel “[...] de

cruzar a ponte entre o teórico e o prático” 26

e “[...] o de se dedicar totalmente à aplicação

dos conhecimentos, para produzir operações” 27

.

Antonio Beltrán cita de Koiré que o pensamento científico moderno se ligava a

idéias “[...] transcientíficas, filosóficas, metafísicas y religiosas” 28

. Esse autor escreveu que:

[...] Como historiadores debemos actuar más o menos a la manera de

Wanda Landowska a la hora de interpretar a Bach. Se cuenta que tras oír

tocar um pianista le decía: “tú interpretas a Bach a tu manera, yo lo

interpreto a la suya”. Com los científicos del s. XVI ó XVII, el historiador

debe tratar de escribir la história de su ciencia. Sólo así es posible escribir

la historia de la R.C29”30 .

Beltrán ressaltou que o aporte científico do Renascimento se engendrou “[...] de

la recuperación de los textos científicos griegos” 31

. Desse modo, o pensamento científico

do Renascimento se caracterizou por se apresentar:

[...] sin ontología, sin poder decidir qué es posible y qué no lo és. Por lo

que la caracterización más adecuada de la mentalidade renascentista se

formularia deciendo que „todo es posible‟, que su credulidad no tiene

limites, que es „una de las épocas menos dotadas de espírito crítico que

haya conocido el mundo. 32

O sábio renascentista “[...] casi podríamos decir que ‘sabe todo‟”33

e que “[...]

la ignorancia fingida, como producto dela duda ‘sistemática.‟” não era considerado como

“[...] fuente del conocimiento”34

.

25Ibid., p. 73. 26Ibid., p. 180. 27Ibid., p. 180. 28BELTRÁN apud AFONSO-GOLDFARB; MAIA, 1995, p. 54. 29 Revolução Científica. 30Ibid., p. 54. 31Ibid., p. 55. 32Ibid., p. 56. 33Ibid., p. 60. 34Ibid., p. 60.

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Para Beltrán, “[...] debemos aceptar que, en el s. XVI, la ‘ciencia ‘normal’ era la

que Boas llama ‘mística’, más aun que la ‘ciencia mistica’ no simplesmente dominaba, sino

que era ‘la’ ciencia sin más”35

.

Para Keith Thomas (1991, p. 237 - 238) “A despeito de alguns requintes nos

detalhes [...]”, a astrologia conhecida no século XVI “[...] era visivelmente a mesma exposta

pelo egípicio Ptolomeu em seu Tetrabiblos, no segundo século de nossa era”. Se a

astronomia “[...] é o estudo dos movimentos dos corpos celestes, a astrologia é o estudo dos

efeitos desses movimentos”. Quanto a esses efeitos dos movimentos “Não havia nada de

esotérico nessas suposições gerais. No início do século XVI a astrologia fazia parte da

imagem que o homem culto tinha do universo e do seu funcionamento”. A astrologia era

“[...] uma imagem do mundo aceita por todos”. As mais variadas áreas do conhecimento

“[...] pressupunham uma boa quantidade de dogmas astrológicos”:

“Durante a Renascença [...] a astrologia permeava todos os aspectos

do pensamento científico. Não se tratava de uma doutrina de um

círculo fechado, mas um aspecto essencial da estrutura intelectual em

que os homens eram educados (1991, p. 238).

O ALMANACH PERPETUUM: UM COMPÊNDIO PARA SÁBIOS

Em 1478, o Almanach Perpetuum originalmente foi editado na cidade espanhola

de Salamanca. Escrito em língua hebraica, recebeu de seu autor Abraão Zacuto o título ha-

Hibbur ha-Gaddol (O Grande Compêndio). Em 1481, veio a lume uma versão castelhana do

Hibbur de Zacuto. Essa versão foi produzida com a ajuda de Zacuto, por Juan de Salaya,

com quem lecionou astronomia na Universidade de Salamanca (CHABÁS;

GOLDENSTEIN, 2000, p. 7). O Almanach Perpetuum foi traduzido do hebraico para o

latim por José Vezinho. Ele foi editado na cidade portuguesa de Leiria, em 1496. Nessa

obra, Zacuto atribuiu contornos aritméticos aos movimentos e posições dos corpos celestes,

apoiando-se em uma racionalidade matemática. Essa obra principia com uma epistola de

35Ibid., p. 57.

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dedicação dirigida à um bispo de Salamanca. De seu primeiro capítulo, até o décimo

segundo, aborda como identificar nas tabelas o ascendente e as doze casas zodiacais, o lugar

do Sol, a entrada do Sol nos signos do zodíaco, o lugar da Lua, as conjunções e oposições

dos corpos celestes, os eclipses, os lugares de Saturno, Júpiter, Marte, Vênus e Mercúrio

(Almanach Perpetuum, 1496, folha. 1verso-11).

Nesta obra, Abraão Zacuto ocultou sob o idioma hebraico o conhecimento

presente no Hibbur a uma maioria de não judeus. O autor tornou o conteúdo de sua obra

restrito a poucos. Esse Hibbur conteve originalmente uma astronomia que não foi concebida

com a intencionalidade de estar ao alcance de todos.

Figura 1. Tábuas do ha-Hibbur ha-Gadol (O Grande Compêndio), obra escrita em hebraico por

Zacuto, em 1478.

Fonte: Disponível em: <http://tipografos.net/blowups/zacuto-tabelas-big.jpg>. Acesso em:

29/01/2011.

O teor do Hibbur esteve circunscrito mesmo no seio da comunidade judaica. A

complexidade do assunto abordado nessa obra, com um emaranhado de cálculos e medições

substancialmente aprofundadas o resguardaram a um círculo minguado de doutos judeus.

A elaboração original do Hibbur se opôs a uma idéia de que o seu conhecimento

seria aberto. A utilização de uma linguagem que não era clara para um público amplo,

situou o Hibbur em uma noção de conhecimento inacessível para uma grande maioria. Os

refinamentos e detalhes dos prolixos cálculos e medições que preencheram as páginas desse

livro se destinaram aos sábios e letrados de um grau elevado de conhecimento. O conteúdo

desse livro apresentou uma característica de alta cultura, de uma forma de saber restrito.

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O ALMANACH PERPETUUM E A DOUTRINA DAS NATIVIDADES

A aritmética que preencheu as páginas do Almanach Perpetuum manteve apenas

uma aparência de “ciência” matemático-astronômica. Desdobrados em cálculos, medições,

tabulações e datações, os números apresentados no Almanach Perpetuum fundamentaram

tópicos como a Tabula more infantis in utero matris (Tabua de duração da criança no útero

materno) (ZACUTO, 1496, folha 161 verso). Encontrou-se subjacente nos algarismos que

compuseram esta Tabula a doutrina das natividades. A Tabula foi alicerçada sobre o

preceito de que a influência celeste presidia as características fisiológicas, fisionômicas e

psicológicas que se encontrariam no homem, de acordo com a configuração celeste que

situaria seu nascimento. No Tratado Breve en las Ynfluencias del Cielo, Zacuto estabeleceu

uma relação entre a obesidade e a posição de um planeta no zodíaco: “[...] si esta planeta

sobre dicha tiene ladeza de zodiaco significa ser gordo”36

. A fisionomia humana foi

vinculada por Zacuto aos planetas Jupiter e Vênus: “[...] se ade notar que los signos

humanos significã hermosura: y Jupiter y venus siginificã hermosura”37

. O nascimento no

ano em que a Lua e Mercúrio oferecessem danos poderia ser acometido pela loucura: “[...]

si en la Revolucion del año del mundo la luna y mercurio estouieren dañados el que

nasciere em aquel año terna alguna significacion de locura”38

.

Figura 2. Primeira tábua da De animodar ptholomei. Tabula more infantis in utero matris.

36ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 161. 37Ibid., p. 161. 38Ibid., p. 161.

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Fonte: (ZACUTO, 1496, folha 161 verso).

Para uma interpretação da vida de uma criança, o método principal indicado

pelos astrólogos foi fixar o signo ascendente na hora exata do nascimento da criança. No

Tratado Breve en lasYnfluencias del Cielo, Zacuto elencou a definição do grau do

ascendente como um dos principais métodos para conferir uma significação ao nascimento

(ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 158). A Tabula more infantis in utero matris

introduzida no Almanach Perpetuum foi ajustada com as De animodar ptholomei, tabelas de

cálculos elaboradas por Ptolomeu que permitiam fixar os signos ascendentes.

A presença da Tabula more infantis in utero matris e da De animodar ptholomei

no Almanach Perpetuum evidenciou a mistura da matemática na crença do destino humano

governado pelos astros. Cálculos sofisticados se entrelaçaram com o princípio de que pela

leitura dos astros no instante inicial da vida de uma criança se definiria todo o devir de sua

existência.

As equações matemáticas da Tabula more infantis in utero matris se

constituíram em uma dimensão parcial da significação astrológica do nascimento. A

apresentação desses cálculos no Almanach Perpetuum evidenciou que seu conteúdo se

caracterizava como transcientífico.

O ALMANACH PERPETUUM E A MEDICINA ASTROLÓGICA

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Zacuto abriu espaço no Almanach Perpetuum para o artifício dos físicos de

fornecer uma medicação para que o doente expelisse os viciosos humores, atividade

definida “dar las purgas”. Entre os físicos, médicos que exerciam a astrologia conjugada

com seu ofício, alguns estados de humor foram considerados enfermidades e eram

recorrentemente diagnosticados e tratados pela via da influência celeste.

O Almanach Perpetuum seria o elemento teórico que inspirava uma dimensão

operativa. Nele se fundamentariam uma série de técnicas e interpretações que colocariam o

homem na condição de mediador entre o mundo natural e as influências celestes. No

Tratado Breve en lasYnfluencias del Cielo, esteve presente em seu autor Abraão Zacuto a

intenção do aproveitamento da influência celeste para atuar sobre a salubridade do homem,

de modo que o médico pudesse usar a astrologia para interferir de forma positiva na saúde

de seus pacientes:

[...] Como sea de la perfeción del astrólogo saber en todas las cosas

naturales y en el arte de la medicina que con esto se podra ayudar para la

ynfluencia de los cielos y para desponer los pasivos para que rrescibã la

buena ynfluencia de los ajentes o para desviar la mala ynfluenci”

(ZACUTO, 1486, apud CARVALHO, 1947, p. 148).

Foi nesse sentido que Zacuto empregou em seu texto a frase que atribuiu à

Hipócrates: “[...] ciego es el medico que nõ sabe astrologia” (ZACUTO, 1486, apud

CARVALHO, 1947, p. 127).

O ALMANACH PERPETUUM E O CONJUNCIONISMO

No Almanach Perpetuum, Zacuto estabeleceu as datas de seis eclipses solares e

de dezesseis eclipses lunares para o período entre 1493 e 1523. A indicação dos eclipses se

deu nos exatos dias, meses e anos de suas ocorrências. Zacuto se mostrou ainda mais

minucioso ao fixar o momento inicial e final de cada eclipse (ZACUTO, 1496, folha. 163).

FIGURA 3. Tábua dos eclipses lunares e solares previstos para o período entre 1493 e 1523

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Fonte: (ZACUTO, 1496: folha. 163).

Confrontada com o tratado De los Eclipses del Sol y la Luna, escrito por Zacuto

em 1486, e com a obra Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo), a aritmética que

auxiliou na antecipação desses eventos celestes, foi transfigurada em base de apoio para a

construção de previsões amparadas na idéia de que os astros influenciavam países, cidades e

distritos.

O ajustamento do evento natural da Lua se posicionando entre a Terra e o Sol

(eclipse solar) e da Terra ocupando um lugar entre o Sol e a Lua (eclipse lunar) em um

esquema de datações, cálculos e medições, compunha apenas o cenário para a encenação

dos “[...] secretos y cosas escondidas para bien” ou “[...] ascondimento de mjedos o de

celadas de guerras” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 178). Zacuto em seu

tratado De los Eclipses del Sol y la Luna, escrito em 1486, registrou que o fenômeno dos

eclipses poderia ocultar destruições, enfermidades, fome, pestilências, batalhas e mortes

(ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 178). Enquanto os cronistas de seu tempo

tomavam da pena para registrar com belas letras os feitos passados de seus monarcas,

Zacuto através de números e interpretações transcendentais preenchia o futuro com a

história de acontecimentos anunciados pelos astros.

Em um dos registros de Zacuto, massacres, lutas, doenças, divórcio, mentiras,

miséria e guerras, figuraram sob a influência do eclipse lunar de 1519. O prenúncio se

deteve sobre as terras do Islã:

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[…] Year [5]280, the night of 14 Kislev [Nov. 6/7, 1519], the Moon will

be eclipsed; it indicates massacres in the east; people will fight each other;

diseases for good [people]; divorcing of wives; deceits and lies, and each

man will lie to his fellow; woes in the lands of Islam [lit. Ishmael]; and

wars and woes will continue until the passing of year [5]282 [1521-1522]

when the survivor will be able to say, “on this day I was (re)-born”; and

Israel must repent completely and pray to God that He save them from

woes and wars, for all who call upon God will be rescued. These are the

pangs of the Messiah, and at that time 927 years, 6 months and 2 days will

be completed according to the reconing of the Muslims [lit. Ishmaelithes]

which are lunar years and they are equivalent to 900 solar years”

(ZACUTO apud CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000, p. 173).

Em conclusão, a astronomia de Zacuto, se situada em contornos místicos, seria

analisada apenas em parte, o que apenas permitiria uma compreensão vaga e uma

interpretação anacrônica desse saber. Por outro lado, se colocada em padrões “científicos”

de conhecimento, somente poderia ser investigada de forma parcial e também suscitaria

uma compreensão arbitrária. A análise de sua astronomia concentra-se no exame do lugar

comum onde o “científico” e o “mítico-religioso” se entrelaçam e se completam. É nesse

interstício que se localiza o entendimento de um conhecimento de localização incerta e

movediça, sem fronteiras fixas e distinções nítidas, de modo que não se identifica nele

precisamente onde se inicia o supranatural e termina o “científico”, e vice-versa.

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USOS HISTÓRICOS DA CIÊNCIA: ECLIPSES TOTAIS DO SOL E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Heráclio Duarte Tavares

Mestrando - UFRJ

Bolsista Cnpq

[email protected]

Resumo

Um dos fenômenos naturais que mais chama atenção do homem e o eclipse total do sol. Ao

longo da historia, os eclipses totais solares serviram para a realização de experiências

cientificas. O ponto de inflexão foi em 1919, quando os dados coletados a partir da

observação do eclipse total do sol daquele ano forneceram as primeiras evidencias que

corroboraram um ponto da Teoria da Relatividade. Ao longo do século XX, este fenômeno

continuou a atrair os cientistas. Algumas instituições nos Estados Unidos da América tiveram

um papel proeminente na constituição e envio de expedições cientificas a vários países nos

anos 1930 – 1950, para realizarem diferentes experimentos condicionados pelas

circunstancias que se apresentavam. Neste trabalho, proponho analisar historicamente os

interesses de expedições cientificas para a observação de eclipses totais do sol organizadas

pelo National Bureau of Standards, pela National Geographic Society e pelo U.S. Air Force

Command usando documentos produzidos por estas instituições.

Palavras-chave: Eclipse do sol, Segunda Guerra Mundial, Expedição cientifica.

Eclipses do sol: estudando o fenômeno

Existem muitos trabalhos acadêmicos que possuem eclipses solares como objeto

de estudo. Em alguns casos, os autores verificam a veracidade do acontecimento de eclipses

em tempos remotos através do cruzamento de informações de textos tradicionais com a

dinâmica da mecânica dos corpos celestes. Estas obras tentam identificar o local exato nos

quais foi possível ver estes eclipses e se eles realmente ocorreram no período registrado nos

vestígios históricos. Esta abordagem pode ajudar os astrônomos a entenderem as pequenas

mudanças que ocorrem ao longo dos séculos no movimento da Terra e da lua (MITCHELL,

1935; STEEL, 2011). Há uma outra abordagem acadêmica que tem como foco as crenças de

sociedades antigas que envolvem eclipses do sol. Existem fontes históricas que revelam o

comportamento de sociedades passadas diante da repentina ocultação do sol. Estes estudos

ajudam-nos a compreender a importância dada aos ciclos naturais (ciclos do sol, da lua, de

colheitas etc.) na dinâmica social de agrupamentos humanos ao longo do tempo e também nos

fornecem idéias de como os mesmos agrupamentos entendiam e davam significado ao

fenômeno em questão (BRUNIER & LUMINET, 2000). Por fim, há pesquisadores que

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

Salvador: UFBa / UEFS / UFMG, 2012. ISBN: 978-85-62707-30-8

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examinam experimentos científicos levados a cabo durante a ocorrência de eclipses solares

em busca de um entendimento sobre como se dava o processo de construção de conhecimento

científico em determinadas circunstâncias (ZIRKER, 1995). Recentemente, documentos

relacionados a expedições astronômicas que observaram eclipses solares têm servido como

base para historiadores explorarem relações políticas, militares e outras particularidades

históricas relacionadas à prática científica (PANG, 2002; BARBOZA, 2010).

Um dos mais bem conhecidos experimentos científicos feitos em tempos

modernos foi o teste da Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. Durante o eclipse total do

sol de 1919, visível no Brasil, os astrônomos ingleses Charles Davidson e Andrew Crommelin

fizeram os primeiros registros que mostraram a estrutura curva do Universo nas redondezas de

corpos sólidos. Davidson e Crommelin capturaram luzes emitidas por estrelas que revelaram

um trajeto curvilíneo ao passar nas proximidades do sol eclipsado pela lua. É importante

salientar que Einstein pensou este experimento de acordo com suas necessidades, o que

implica assumir um uso científico do fenômeno natural relacionado a um interesse específico.

Estas observações comprovaram um ponto da Teoria da Relatividade e estabeleceram

definitivamente o uso de eclipses totais do sol a favor da construção do conhecimento

científico.

Todavia, existem muitos experimentos diferentes que podem ser feitos ao invés do

teste realizado em 1919. Nos eclipses seguintes, algumas instituições nos Estados Unidos da

América (EUA) organizaram expedições astronômicas e as enviaram a lugares remotos ao

redor do mundo. Com uma inclinação ao desbravamento do “mundo selvagem” e com a fé na

ciência como solidificadora do seu poder, os EUA se apropriaram da tradição britânica em

observar eclipses do sol, solidificada no último quarto do século XIX, e deram forma a outros

significado e uso da prática de observar eclipses solares, que ficariam claros após a Segunda

Guerra Mundial.

Em 1933, Franklin Delano Roosevelt nomeou o físico Lyman Briggs1 Diretor do

National Bureau of Standards (NBS). Àquela época, o presidente da National Geographic

Society (NGS) era Gilbert Grosvenor, que era um amigo próximo de Briggs. O fato é que

Briggs assumiu o papel de Chefe do Comitê de Pesquisas da NGS naqueles anos e uma série

de projetos de expedições em conjunto entre o NBS e a NGS foi organizada. Balões gigantes

tripulados foram lançados e um crescente interesse na ionosfera terrestre marcou aquele

1 Lyman James Briggs (1874 – 1963) foi um cientista norteamericano com formação interdisciplinar em

Agronomia e Física. Briggs trabalhou por 49 anos em diferentes instituições públicas dos EUA, realizando

pesquisas que eram do interesse de industrias e dos militares. Briggs aposentou-se em 1945, com a indicação

para a então recém criada posição de Diretor Emérito do NBS (MYERS & SENGERS, 1999).

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tempo (WENSTROM, 1935). Foi dada tanta atenção a experimentos ligados à ionosfera

terrestre, que o setor do NBS responsável por seus estudos teve seu orçamento mantido

mesmo diante de um corte de metade da verba destinada à instituição em 1935 (COCHRANE,

1974). Uma intersecção de motivos talvez explique o porque de tanta importância dada ao

estudo da ionosfera terrestre. Em uma perspectiva militar, o uso do rádio vinha sendo

estudado pelo NBS desde a Primeira Guerra Mundial. No fim dos anos 1910, os cientistas

sabiam que os sinais de rádio podiam ser transmitidos e recebidos, mas eles não entendiam

como este fenômeno era possível.2 Ao longo dos anos 1920, houve um crescimento do

número de investigações da capacidade de reflexão de ondas de rádio pela ionosfera terrestre.3

Por volta do fim dos anos 1920, início dos anos 1930, é que a ligação entre a ionosfera e

estudos de eclipses solares começa a ser explorada.4

Apesar de nos anos 1930 terem ocorrido cinco eclipses totais do sol, e a NGS e o

NBS terem mandado expedições para a observação científica de três deles, o interesse maior

ainda era a fotografia da coroa solar,5 normalmente invisível devido ao grande brilho emitido

pelo sol. Sobre estes três eclipses, dois deles são importantes para marcar as relações

históricas propiciadas por este fenômeno natural. A preparação para as observações do eclipse

solar de 1936 começou com dois anos de antecedência. Este eclipse seria largamente visível

na União Soviética, particularmente na Rússia. Astrônomos soviéticos, liderados por

Alexander Mikhailov, fizeram as mensurações dos limites da faixa de totalidade e avaliaram

os locais que seriam mais apropriados para receber as expedições internacionais, levando em

2 DELLINGER, Howard. “Bureau of Standards‟ radio work”. The Federal Employee, 4, pp. 531 – 533. In: RG

167, NC – 76 Entry 75, Box 8, Folder: Dellinger Lectures 1918 – 1924, National Archives and Records

Administration (NARA)/College Park–MD/US. 3 Sidney Chapman publicou um artigo em 1931 no qual são descritos os processos de ionização nas altas

camadas da ionosfera. Este artigo foi tomado como o modelo a ser seguido. Ver: (GILLMOR, 1981, p.106). 4 A ionosfera terrestre é uma camada da atmosfera que começa por volta de 60 quilômetros acima do nível do

mar e possui a seguinte divisão: região D (entre 60 e 90 quilômetros de altura do nível do mar), região E (entre

105 e 160 quilômetros) e região F (acima de 180 quilômetros). Estas regiões não possuem uma delimitação

muito clara, e suas áreas têm diferentes quantidades de elementos químicos, como oxigênio, nitrogênio, e outros,

que formam compostos moleculares. Estes, ao terem contato com a grande quantidade de energia proveniente da

radiação ultravioleta solar, liberam elétrons criando uma zona eletrificada que reflete, de um dado ponto de

emissão a um ponto máximo de alcance, as ondas curtas de rádio (ondas de alta frequência). Durante a noite, há

uma diminuição da incidência da radiação ultravioleta nas áreas da Terra não alcançadas pela luz solar, e três

diferentes processos podem ocorrer envolvendo íons, moléculas neutras e elétrons. São eles: processo de

recombinação, no qual um elétron e um íon positivo se unem para formar um átomo ou molécula neutra;

processo de recombinação dissociativa, onde um elétron e um íon positivo se unem, e formam duas moléculas a

partir da cisão do íon original; e o processo de ligação, onde um elétron livre se une a uma molécula neutra e

forma um íon negativo. Estas novas formações diminuem a capacidade elétrica da ionosfera. Porém, a camada F

continua eletrificada, o que possibilita as transmissões de rádio durante a noite. Os cientistas tinham interesse em

estudar estes processos de recombinação molecular durante o corte abrupto da luz solar na ocorrência de eclipses

totais do sol (ZIRKER, 1995, pp. 138 – 144). 5 A coroa solar é um gás rarefeito que envolve o sol, tem grande temperatura e possui uma densidade menor do

que 109 átomos por cm3. (GUILLERMIER & KOUTCHMY, 1999, p.6)

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conta as condições climáticas, que poderiam danificar os equipamentos de observação. Estas

informações foram publicadas em inglês, o que ajudou as expedições estrangeiras a se

organizarem (GARDNER, 1937, p.184). Uma situação de abertura e troca científica entre os

EUA e a União Soviética seria muito difícil de ocorrer quinze anos depois, ao final da

Segunda Guerra Mundial, devido às discordâncias políticas delineadas pelos seus sistemas de

governo distintos.

No período entre Guerras, existia um receio por parte dos países que levantavam a

bandeira da democracia de que os resultados de experimentos científicos pudessem ser usados

para o melhoramento ou criação de equipamentos de guerra por estados totalitários. Esta

perspectiva mudou completamente a situação de livre circulação de informação científica.6

Jean Jacques Salomon criticou a limitação da circulação destas informações que teve seu

início nos anos 1930 e defendeu o supranacionalismo da ciência, como foi testemunhado no

caso do eclipse russo de 1936. Para Solomon, as fronteiras entre a ciência e politica estavam

no chão. O argumento de Salomon é que a ciência pode ser usada como um meio de ligação

entre as nações. Ele toma a ciência como uma linguagem universal entre os seres humanos,

que pode prover a base do entendimento entre os homens. A tomada de posição de Salomon é

clara. Mas, seu ponto de vista revela um pouco de suas condições de escrita, no final dos anos

1960, início da década de 1970, onde o mundo vivia sob ameaça direta do uso de armas de

destruição em massa. Se a ciência fosse usada como uma forma de compreensão, buscando a

paz entre as nações, muitos problemas poderiam ter sido evitados. Este era o fundo ético do

argumento de Salomon (SALOMON, 1971).

Todavia, o curso da história mostra que esta não foi a escolha de alguns cientistas.

No eclipse total do sol de 1937, a expedição científica norteamericana ocupou a Ilha de

Cantão com a ajuda da Marinha dos EUA, que providenciou o transporte à expedição. Nesta

ocasião, o objetivo principal era fazer experimentos sobre a reflexão de ondas de rádio. Em

uma carta com data de 13 de novembro de 1939 dirigida ao Coronel Johnson, do

Departamento de Comércio dos EUA, Briggs explicou que os experimentos de rádio que

seriam feitos no eclipse total do sol de 1940 (visível no Nordeste brasileiro) estavam

6 Este receio do uso da informação científica a favor da guerra também era compartilhado pelos próprios

governos de estados totalitários, como é possível perceber ao longo do processo de desenvolvimento do míssil

V-2 pelos alemães ao longo da década de 1930, início dos anos 1940. O governo nazista manteve o projeto de

construção do míssil V-2 sob sigilo e receava não apenas o vazamento de informações sobre suas pesquisas, mas,

também, que a revelação do ponto de desenvolvimento em que estava seu projeto pudesse fomentar uma corrida

por desenvolvimento de mísseis por parte de outros países interessados em se armar (NEUFELD, 1995).

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conectados com os estudos que começaram na Ilha de Cantão em 1937. De acordo com

Briggs:

Tendo em vista que estas investigações de rádio são puramente de natureza

científica ou terão um caráter extremamente local, parece ser algo sensato

que, sobre as circunstâncias, seja obtida uma permissão formal através do

Departamento de Estado dos EUA para a organização desta pequena estação

de rádio temporária no Brasil. O trabalho relacionado ao eclipse é uma

extensão do que o Bureau já fez em cooperação com a National geographic

Society na Ilha de Cantão. Você lembrará que após a ocupação pela missão

científica, a Ilha de Cantão foi usada como uma das bases marítimas na rota

do Clipper do Havaí para a Nova Zelândia.7

Briggs chamou atenção para a importância que teve a ocupação da Ilha de Cantão

pela expedição científica para observar o eclipse de 1937. A utilização desta Ilha no meio do

Oceano Pacífico teve em seu início um uso civil. Acredito não ter sido muito difícil para que

este uso despertasse o interesse militar, já que a Ilha de Cantão foi uma posição importante

para os Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Nesta perspectiva, os resultados

científicos produzidos a partir do eclipse de 1937 foram úteis aos interesses civis e militares.

Um outro ponto interessante do documento de Briggs é quando ele faz referência à

autorização para a construção de uma estação de rádio observação no Brasil. A pergunta que

imediatamente ocorre é: quais os interesses do NBS na construção de uma estação de rádio no

Nordeste brasileiro em 1940? Voltarei a este ponto adiante. Nos anos finais da década de

1930, as observações científicas de eclipses totais do sol podem ser entendidas através da

ideia de não separação entre ciência e política que Salomon critica no viés da ética científica.

Àquela época, o estudo das comunicações de rádio, relacionados aos estudos da

ionosfera, recebiam bastante atenção. Em 1935, por diversas vezes, ocorreram interrupções

por longos períodos (por dias às vezes) nas transmissões de rádio, que não tinham suas causas

totalmente conhecidas pelos cientistas do período. Imediatamente, foram levantadas questões

relacionadas à falha nas comunicações via rádio em situações de emergência ou de guerra.

Howard Dellinger, chefe do setor de rádio do NBS naquele período, conduziu investigações

sobre o fenômeno da interrupção das transmissões de rádio e afirmava que ele estava

7 While these radio investigations are purely of scientific nature or will be extremely local in character it seems

wise under the circumstances to obtain formal permission thorough the State Department to set up this little

temporary station in Brazil. The eclipse work is a extension of what the Bureau has already done in cooperation

with the National Geographic Society at Canton Island. You will recall that following its occupancy by the

eclipse party, Canton Island was later taken over as one of the sea bases in the clipper route from Hawaii to New

Zeland. Ver: Memorandum from Lyman Briggs to Colonel Johnson, November 13, 1939. RG 167, NC – 76

Entry 52 - Box 64, Folder: IPO – 878-C 1940 Eclipse. NARA/College Park–MD/US.

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relacionado à emissão de diferentes descargas de energia solar que alteravam as condições

elétricas da ionosfera.8 Nestas circunstâncias de busca pelo entendimento do que ocorria na

ionosfera terrestre, o NBS recebeu muitas requisições, por parte de companhias de rádio, de

concessão de dados sobre a ionosfera coletados durante as observações científicas do eclipse

de 1937.9 O estudo da ionosfera era tão importante no período aqui analisado que um mês

após o ataque japonês a Pearl Harbor todas as publicações do NBS sobre a ionosfera foram

postas em sigilo (COCHRANE, 1974, p.351).

Em um documento com data de 19 de abril de 1946, Briggs faz um balanço dos

principais trabalhos feitos pelo NBS relacionados à Segunda Guerra Mundial. De acordo com

Briggs, no início da Segunda Guerra Mundial, as transmissões de rádio sobre os oceanos eram

quase impossíveis. Ele coloca luz sobre o problema, afirmando que o uso de muitas

freqüências de rádio em horas específicas entre os aviões – voando em diferentes longitudes e

latitudes e, principalmente, sobre os oceanos – com suas bases em solo não tinham grande

qualidade. As investigações conduzidas pelo NBS resolveram o problema. Briggs ainda

afirma que o ataque a Pearl Harbor colaborou para que o Exército dos EUA transformasse o

NBS em uma zona proibida e pusesse cerca de 90% do seu pessoal a serviço dos trabalhos

relacionados à defesa nacional.10

As observações norteamericanas de eclipses totais do sol durante os anos 1930

podem ser entendidas como o início da solidificação desta prática por este país. Nos anos

1940, levando-se em conta a Segunda Guerra, a NGS, o NBS e os militares dos EUA

explicitamente reuniram as práticas da ciência, da guerra e os interesses de estado.

Organizando as expedições astronômicas para trazer luz à escuridão

Em fevereiro de 1939, ocorreu uma reunião do Comitê de Pesquisas da NGS, na

qual foi formalizado um projeto para observar eclipses do sol com regularidade. A intenção da

NGS era assumir a inteira responsabilidade pelas expedições científicas ao invés de organizar

expedições em conjunto, que era o meio que a NGS tinha para conseguir equipamento e para

atrais cientistas. Nesta proposta, a NGS ia financiar a construção de instrumentos para serem

usados permanentemente por suas missões. O Comitê também discutiu a possibilidade de

encaminhar uma proposta ao National Research Council para criar o Joint Eclipse Committee

8 Diversos documentos em: RG 167, NC – 76 Entry 75 Records of H. Dellinger - Box 8, Folder: JHD lectures.

NARA/College Park–MD/US. 9 Ver: RG 167, NC – 76 Entry 75 - Box 7, Folder sem nome. NARA/College Park–MD/US. 10 The war work of the National Bureau of Standards. By L. Briggs. In; RG 167, UD – Entry 2, Box 6, Folder

G1. NARA/College Park–MD/US.

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para coordenar e planejar as missões científicas organizadas por instituições dos EUA

interessadas na observação de eclipses. O Joint Eclipse Committee não teria obrigação

financeira alguma com as expedições e seu único objetivo seria o de coordenação.11

Após a fala de Lyman Briggs, um outro membro do Comitê de Pesquisas da NGS,

Floyd K. Richtmyer, reforçou a proposição de Briggs lembrando que a International

Astronomic Union (IAU) tinha uma comissão permanente de estudos de eclipses e que

comitês nacionais com a mesma preocupação existiam em outros lugares pelo mundo.

Richtmyer chamou atenção para a importância da cooperação internacional na observação de

eclipses. Ele enfatizou a ligação entre a observação de um eclipse e seu subsequente e criticou

o fato de não haver um programa para observar eclipses que cobrisse um período de anos.

Esta reunião ocorreu em Fevereiro de 1939. Em outubro do mesmo ano, Briggs foi designado

pelo presidente Roosevelt para liderar um comitê para a investigação da possibilidade de

liberação de energia a partir da fissão de Urânio, visando a construção de armas nucleares.

Este comitê ainda foi seguido por outros que, ao final, tiveram o Projeto Manhattan, como

representante de um trabalho científico que não separa a pesquisa científica teórica, os

esforços de sua aplicação e o trabalho de administração científica. Foi exatamente uma

preocupação com a administração do trabalho científico que Briggs e Richtmyer estavam

tentando reforçar a importância em 1939 ao proporem um comitê para organizar as

observações de eclipses. Além disso, as observações científicas dos eclipses de 1937 e 1940

possuiam uma continuidade, como afirma Briggs no final do trecho citado da carta dirigida ao

coronel Johnson em novembro de 1939.

Durante a reunião do Comitê de Pesquisas da NGS em 1939, Gilbert Grosvenor

não era favorável à organização de expedições somente com cientistas e equipamentos

vinculados à NGS. Na visão de Grosvenor, os assinantes da NGS gostavam de vê-la

trabalhando em conjunto com outras instituições do governo dos EUA, como o NBS, o

Exército, a Marinha e o Smithsonian Institution. No entendimento de Grosvenor, estas

associações davam aos membros do NGS um sentimento de pertencimento ao trabalho

governamental. Em cada tipo de associação executada por estas instituições havia interesses

específicos envolvidos. O Interesse da NGS era claramente econômico. O argumento de

Grosvenor em favor da associação da NGS com instituições do governo era que seria uma

ótima oportunidade para conseguir novos membros e aumentar o número de assinantes. Uma

outra ideia utilizada por Grosvenor era que a soma investida pela NGS para fazer associações

11 Minutes of a meeting of the Research Committee of the National Geographic Society. Feb 20, 1939. RG 167,

UD – Entry 2, Box 6, Folder A1. NARA/College Park–MD/US.

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com outras instituições era pequena se comparada com o montante que seria gasto para treinar

e pagar cientistas para fazerem o trabalho. Ou seja, era mais barato pagar pelas associações do

que pagar pelo treinamento e salário dos cientistas. Ao final desta reunião, Briggs propôs que

o investimento financeiro oferecido pela NGS deveria ser de $15,000.00 para cobrir todos os

gastos com a organização para a observação do eclipses de 1940. Porém, Grosvenor ofereceu

um total de $20,000.00 para a realização de tal intento.12

Durante os anos 1940, três eclipses totais do sol puderam ser vistos no Brasil:

1940, 1944 e 1947. Devido à Segunda Guerra Mundial, foi praticamente impossível a

organização e envio de qualquer expedição para observar o fenômeno de 1944. Contudo, os

eclipses de 1940 e de 1947 foram cientificamente observados. Como eu mencionei antes, um

dos maiores interesses no eclipse de 1940 era o estudo das condições de reflexão das ondas de

rádio da ionosfera terrestre. Para a observação do eclipse de 1940, a NGS enviaria expedições

científicas ao Brasil e à África. Mas, em maio de 1940, ocorreu uma série de dificuldades para

que fosse conseguido um transporte seguro para a África tanto dos homens como do

equipamento. Os organizadores da expedição estavam receosos com o recrudescimento da

Guerra e tinham dúvidas se seria possível levar a expedição em segurança de volta aos EUA

após as observações do eclipse.13

Além do mais, alguns cientistas norteamericanos que

fizeram parte da organização da expedição consideraram a possibilidade de serem convocados

para comporem as fileiras militares na Segunda Guerra Mundial.14

A Segunda Guerra Mundial e a politização da ciência

Ao longo da Segunda Guerra Mundial, foi observada uma aproximação entre os

EUA e o Brasil com claros interesses geopolíticos. As forças do Eixo tinham tomado parte do

Norte da África e a Royal Air Force estava resistindo para não perder completamente aquele

território. O Norte da África era importante no quadro estratégico militar naquele momento da

Segunda Guerra Mundial porque ele poderia servir como rota para que as forças do Eixo

alcançasse o continente americano através do nordeste brasileiro. Há um estudo realizado pelo

12 Minutes of a meeting of the Research Committee of the National Geographic Society. Feb 20, 1939. RG 167,

UD – Entry 2, Box 6, Folder A1. NARA/College Park–MD/US. 13 Memorandum from Thomas W. Mc Knew to Lyman Briggs. May 13, 1940. In: RG 167 – NC – 76 Entry 52 -

Box 64, Folder A1. NARA/College Park–MD/US. 14 Memorandum from Theodore Dunham to Thomas W. Mc Knew. May 19, 1940. In: RG 167 – NC – 76 Entry

52 - Box 64, Folder A1. NARA/College Park–MD/US.

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War College, com data de 1939, que mostra que os EUA tinham conhecimento de que o

Brasil não era forte o suficiente para proteger aquela região, que era a rota mais rápida para

ligar a África ao continente sul americano (Mc CANN, 1995, p.43). Em apenas oito horas os

aviões da Alemanha poderiam cruzar o Oceano Atlântico e chegar ao território brasileiro. Por

outro lado, os aviões dos EUA poderiam fazer a mesma coisa na direção contrária. Apoiado

nesta visão estratégica, em 1943, o governo dos EUA negociou com o governo brasileiro a

construção da Base militar de Parnamirim no Estado do Rio Grande do Norte oferecendo em

troca equipamentos e treinamento militares.15

Esta base ia fornecer ajuda aos Aliados que

estavam combatendo no norte da África e, na perspectiva que vem sendo construída neste

trabalho, ia criar a necessidade de os institutos de pesquisa dos EUA entendessem as

condições ionosféricas de radio reflexão naquela parte do território brasileiro. Se estas

situações realmente possuem conexões, é possível entender, em caráter hipotético, que a

preocupação de Briggs, explicitada na carta endereçada ao Coronel Johnson em 1939, em

construir uma estação de rádio observação no Nordeste do Brasil na ocorrência do eclipse

total do sol de 1940 foi devido às circunstâncias de guerra que estavam sendo desenhadas.

Ao longo da primeira metade dos anos 1940, enquanto alguns cientistas dos EUA

estavam interessados nos esforços de guerra, o interesse em eclipses solares não desapareceu

em outros países. O eclipse total do sol de julho de 1945 foi importante nestas circunstâncias.

Naquele ano ocorreu um eclipse que foi visível em uma faixa que começou no oeste dos EUA

e terminou na região central da União Soviética, passando pela Finlândia. O astrônomo

finlandês Ilmari Bonsdorff, Diretor do Finnish Geodetic Institute e chefe do Baltic Geodetic

Commission, propôs o uso do método de Thaddeus Banachiewicz para medir dois pontos

distantes no território finlandês.16

O experimento foi realizado, mas, apesar dos dados

coletados terem sido de boa qualidade, Bonsdorff não publicou os resultados. De fato, é

possível tomar este experimento como um ensaio para o próximo eclipse do sol que ia ocorrer

em maio de 1947.

15 Relatório Geral do Chefe da Delegação Brasileira à Joint Brazil-United States Defense Commission

(JBUSDC). General Estevão Leitão Carvalho, 1945. Arquivo Histórico do Exército/Rio de Janeiro-RJ/Brasil. 16 Thaddeus Banachiewicz foi um astrônomo polonês que liderou uma missão científica para observar o eclipse

total do sol de junho de 1927, visível na Finlandia. O principal objetivo desta expedição era determinar com

precisão os tempos do segundo contato (que é o momento em que o disco da lua cobre completamente o disco do

sol) e o do terceiro contato (que é o momento em que o disco do sol começa a aparecer no outro lado do disco da

lua, depois da totalidade do eclipse) do eclipse total do sol, usando uma câmera construída por Banachiewicz.

Esta câmera gravava um filme e associava seus quadros a uma medida de tempo marcada por um relógio. De

acordo com Banachiewicz, se duas câmeras como esta fossem colocadas em dois locais afastados dentro da faixa

de totalidade do eclipse, seria possível medir a distância entre estes locais, com uma margem de erro de cerca de

50 metros. Como a velocidade da sombra da lua projetada na Terra era conhecida, os cientistas precisavam

apenas da medição precisa do intervalo de tempo em que ela (a sombra da lua) leva para passar por dois pontos

para que a distância entre os mesmos seja calculada. (KAKKURI, 2011.; PIEZGA, 1945, p.223).

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A Segunda Guerra Mundial aproximou a prática científica a questões políticas e

militares. Eclipses solares ocorridos naquela época são bons pontos de entrada para perceber

esta relação. Durante as observações do eclipse do sol de 1947, a presença de uma enorme

quantidade de militares de alta patente dos EUA no campo de observação diferenciou-se de

ocasiões anteriores.17

Sobre os experimentos realizados nesta ocasião, em linhas gerais, a

expedição da NGS-NBS fez a mensuração da curvatura da luz estelar nas proximidades do

sol, estudos de emissão de energia pelo sol e estudos ionosféricos. A maioria destes

experimentos foi um sucesso, incluindo o experimento geodésico para medir a distância entre

o Brasil e a África, que foi conduzido por uma expedição conjunta entre a Finlândia e a

Suécia, liderada por Ilmari Bonsdorff. Apesar de não estar tão claro, este experimento pode

ser útil para entender a grande presença militar dos EUA no campo de observação de

Bocaiuva, no Estado de Minas Gerais. Alguns documentos mostram que em abril de 1947,

antes da ocorrência do eclipse de maio do mesmo ano, militares da American Air Force

(AAF) estabeleceram um projeto secreto para sondar o estudo que ia ser feito pela expedição

conjunta da Finlândia e da Suécia.18

Na verdade, a medição de distancias intercontinentais

tinha uma aplicação militar específica aquele tempo.

Em abril de 1946 a AAF iniciou um projeto de desenvolvimento de mísseis

intercontinentais (HALLION, 1981, p.120). Uma das maiores dificuldades no

desenvolvimento da precisão destes artefatos era a falta de dados acurados sobre as distancias

geodésicas, como afirmou Werner von Braun em 1951 (WARNER, 2000, p.392). Os métodos

que existiam para medir grandes distâncias na década de 1940 não eram aplicáveis sobre

oceanos e motivaram a realização de experimentos com outras técnicas que atraíram a atenção

de militares. Em um artigo sobre estas técnicas de mensuração, que objetivavam cobrir uma

necessidade declarada do Departamento de Defesa dos EUA, a historiadora Deborah Warner

abordou os diferentes esforços para o aperfeiçoamento de mísseis guiados durante o imediato

pós-Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria (WARNER, 2000).

Eclipses do sol e mísseis guiados no imediato pós-Segunda Guerra Mundial

17 O general Carl Spaatz, primeiro Chief of Staff of the United States Air Force estava no campo de observação

em Bocaiuva, MG, durante a ocorrência do eclipse total do sol de 20 de maio de 1947. 18 Memorandun from Colonel William M. Garland to the Chief of Engineers. April 01, 1947. In: RG 342, Entry

P26, Box 3696, Folder: 361 - Geodetical Mission - (National Defense) - Solar Eclipse Expedition,

NARA/College Park–MD/US.

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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Para observar o eclipse anular do sol de 1948, os EUA organizaram uma grande

operação que envolveu corporações privadas, militares e instituições do governo. Os

organizadores enviaram uma multiexpedição científica a sete lugares diferentes ao longo da

faixa gerada pelo eclipse, situando-as desde Burma, no sudeste da Ásia, às Ilhas Aleutas, ao

norte do Oceano Pacifico. Briggs foi o responsável pela escolha dos cientistas para a

condução dos estudos em cada uma das sete bases de observação,19

além de ter

supervisionado o ajuste de todo o equipamento científico.20

Cada uma das missões

distribuídas ao longo da faixa do eclipse ia realizar o mesmo experimento realizado por

Bonsdorff em 1947.

A expedição da NGS-NBS tinha um projeto secreto cujo objetivo último era

determinar as distâncias entre os sistemas de triangulação continentais dos EUA, Japão e

Índia, e os ligar, como afirma John O‟Keefe, astrônomo da Geodetic Division of Maps of the

US Army (O‟KEEFE, 1949, p.168). O método de Banachiewicz era importante tendo em vista

que os métodos tradicionais não eram capazes de estabelecer com grande precisão a distância

entre dois locais separados por oceanos. Os métodos tradicionais davam a distância entre dois

pontos continentais com uma acuidade que variava entre 6,1 metros a 9,14 metros de margem

de erro. Já a precisão da distância entre dois pontos intercontinentais variava entre 213 metros

ou mais de margem de erro. A expectativa era que o método Banachiewicz reduzisse a

margem de erro para 61 metros.21

Documentos do Headquarters Air Material Command e do

Commanding General Army Air Forces asseguravam que este estudo era extremamente

importante para o programa de mísseis guiados.22

Desde abril de 1947, os órgãos militares dos

EUA sabiam da possibilidade do uso de eclipses do sol para realizar medições geodésicas. Se,

por um lado, o possível uso dos dados coletados no programa de mísseis guiados foi mantido

em segredo, por outro, o experimento que ia fornecer os referidos dados, não foi mantido em

sigilo. Este experimento foi amplamente divulgado pela imprensa da época.23

Com esta missão, ia ser possível a realização de diferentes investigações

científicas e as instituições dos EUA poderiam alcançar interesses diversos além da questão

19 Os locais nos quais as missões dos EUA ficaram baseadas são: Mergui em Burma, Bangkok na Tailândia,

Wukang na China, Onyo – uma pequena ilha localizada na costa oeste da Coréia do Sul, bem próxima ao limite

com a Coréia do Norte –, Rebun no Japão, Shemya e Adak nas Ilhas Aleutan. 20 Document of Civil Information and Education Sections on April 02, 1948. In: RG 331 - Entry 2, Box 7422,

Folder: Eclipse 48 – 49 [2]. NARA/College Park–MD/US. 21 Memorandum from Harry Kelly to General W. F. Marquat. January 12, 1948. In: RG 331 - Entry 2, Box 7431,

Folder: Eclipse [26]. NARA/College Park–MD/US. 22 Este objetivo é claro em vários documentos. Ver: RG 331 - Entry 2, Box 3202, Box 7430 e Box 7431.

NARA/College Park–MD/US. 23 Diversos periódicos japoneses em: RG 331, Box 7422, Folder: Eclipse (Press Clippings). NARA/College

Park–MD/US.

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diretamente ligada ao aperfeiçoamento de armas. Pelo lado científico, os cientistas japoneses

envolvidos na expedição propuseram vinte e três investigações com a participação de cerca de

cem pessoas. Estudos ionosféricos seriam cuidadosamente conduzidos para a coleta de dados

da região do Pacífico.24

Acredito que o fato das pesquisas ionosféricas terem sido conduzidas

pelo Diretor do Observatório Astronômico de Tókio, Doutor Hagihara, que também escolheu

a equipe que ia trabalhar com ele, pode ter sido mais um esforço dos EUA em interagir com a

prática científica japonesa no pós-Guerra.25

Levando-se em conta a situação geopolítica em

1948, os planejadores da expedição dos EUA também queriam coletar informação sobre as

situações políticas nos países que iam receber missões cientificas para a observação deste

eclipse, que poderiam ser úteis no futuro.26

O resultado científico final que foi alcançado pela missão da NGS-NBS para

observar o eclipse anular de 1948 não foi tão bom. Nem todas as bases tiveram sucesso em

suas observações. Problemas com o equipamento em algumas estações e com o mal tempo em

outras frustraram as esperanças dos expedicionários dos EUA. Todavia, as observações em

Rebun Jima e nas Ilhas Aleutas foram um sucesso. Alem disso, o trabalho de Hagihara e sua

equipe foi publicado e largamente distribuído entre os países Aliados.

Conclusão

A postura de governos de grandes potências diante da prática científica nos anos

1930 e 1940 reforçou a competitividade entre determinados grupos de cientistas. É possível

afirmar também que o caráter de cooperação científica foi posto de lado em favor do

desenvolvimento de artefatos ligados à crescente beligerância que foi testemunhada nos anos

1930 e culminou com a Segunda Guerra Mundial. O segredo científico foi praticado tanto por

grupos de cientistas nos EUA como em países de regimes totalitários. No estudo apresentado,

vimos que algumas investigações científicas realizadas na ocorrência de eclipses solares

podiam produzir resultados que estariam, também, sob sigilo.

24 Combined reports on radio and ionospheric observations during annular solar eclipse – 9 May 1948. Prepared

under the supervision of General Headquarters Supreme Commander for the Allied Powers (SCAP) – Civil

Communications Section Research and Development Division. In: RG 331, Box 7430, Folder: 8. NARA/College

Park–MD/US. 25 Susan Lindee escreveu sobre a difícil interação entre as práticas científicas norteamericana e japonesa em

trabalhos realizados em conjunto para analisar os efeitos das bombas atômicas sobre os japoneses (LINDEE,

1994). 26 Extract of „Recommendations and conclusions‟ of memorandum report subject „Astro-Geodetic work during

the 09 May Solar Eclipse‟. In: RG 342, Entry P26, Box 3696, Folder: 361 - Geodetical Mission - (National

Defense) - Solar Eclipse Expedition. NARA/College Park–MD/US.

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A reunião de diferentes interesses relacionados a observações de eclipses solares

foi uma característica das expedições científicas dos EUA. Nos eclipses do sol da Ilha de

Cantão e das Ilhas Aleutas esta perspectiva foi evidente. As expedições organizadas pelos

EUA podem ser tomadas como uma forma de perceber as mudanças nos usos sociais da

ciência. No século XIX, o Império Britânico usou as observações científicas de eclipses do sol

como um símbolo de poder, de forma a ajudar a manter seus domínios coloniais. Já os EUA

procuraram uma aplicação mais imediata dos dados encontrados a partir de observações de

eclipses solares para aumentar a sua área de influência ou para aperfeiçoar seus equipamentos

bélicos, visando proteger seu território, ou, talvez, conquistar novos.

A coordenação de instituições dos EUA para a observação de eclipses solares

revela um principio organizativo no fazer científico que aproximou algumas instituições

públicas, a iniciativa privada e os militares nos anos 1930 – 1940. Relações desta natureza

foram organizadas em uma perspectiva mais ampla no pós-Guerra e implicaram na

formulação de um documento por Vannevar Bush que traça as diretrizes da política científica

a serem seguidas pelos EUA nos anos seguintes.

Para concluir, a associação de eclipses do sol e o aperfeiçoamento de armas

fortalece uma abordagem que entende que a produção científica dos EUA tem um caráter

pragmático e está estritamente relacionada às suas circunstâncias históricas. A associação

entre material bélico e eclipses solares se revelou enormemente desconhecida por parte de

pesquisadores que se debruçam sobre o estudo de eclipses no passado e na atualidade. Nesta

perspectiva, os usos sociais da ciência podem revelar características específicas de uma

sociedade e sobre suas formas de vida. A prática científica condicionou os rumos de guerras,

bem como as guerras também condicionaram as práticas científicas. Nesta perspectiva, o uso

do conhecimento científico construído pelos EUA a partir de observações de eclipses solares

na década de 1940 tinha como objetivo um poder de destruição mais eficaz.

Infelizmente, ainda não foi possível determinar se os dados coletados para fazer as

medições geodésicas foram utilizados no aperfeiçoamento no programa de mísseis guiados

dos EUA.

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DA CIRURGIA À MEDICINA: A EVOLUÇÃO DO ENSINO DAS ARTES DE CURAR

NA BAHIA OITOCENTISTA

João Batista de Cerqueira

Professor Adjunto da UEFS

Mestre em Ciências Morfológicas – UFRJ

Doutorando em Ensino, Filosofia e História das

Ciências - UEFS e UFBA

[email protected]

Resumo

A Escola de Anatomia e Cirurgia da Bahia, instalada em 1808, transformada em 1815 no

Colégio Médico-Cirúrgico, apresentava como objetivo inicial de ensino formar apenas

cirurgiões. Na época, o curso implantado na colônia brasileira seguia o modelo de ensino

vigente em Portugal, onde cirurgiões e médicos eram indivíduos de formação, conceito social

e práticas profissionais distintas. O objetivo do presente trabalho é analisar como se processou

a evolução e quais os fatores sociais e políticos que contribuíram para as mudanças na escola

da Bahia oitocentista que culminaram, em 1832, com a ampliação dos objetivos pedagógicos,

união do ensino de cirurgia e medicina em um único curso e fundação da Faculdade de

Medicina da Bahia.

Palavras-chave: ensino, cirurgia, medicina

1 – INTRODUÇÃO

A história da Bahia é marcada por acontecimentos sócio-políticos de grande

significado para o seu desenvolvimento. Após o descobrimento do Brasil pelos navegantes

portugueses, a capitania recebeu o primeiro governador geral Tomé de Souza (1503-1579),

Salvador foi escolhida como a primeira capital (ROCHA PITA, 1952, p. 111-113) e o litoral

baiano tornou-se o principal espaço geográfico no povoamento da então colônia ultramarina

lusitana (FREIRE, 1998. p. 15-23).

A economia eminentemente agrária e baseada no trabalho escravo teve na área do

Recôncavo baiano, que compreende uma região de férteis terras no entorno da Baía de Todos

os Santos, propícias para a cultura da Cana-de-açúcar e do tabaco1, um dos polos de

desenvolvimento do primeiro ciclo econômico na colônia brasileira (TAVARES, 2008. p.

194-195). Por outro lado, na direção do litoral norte, em terras nas quais se situam as

1 Sobre o tema consultar André João Antonil: Cultura e Opulência do Brasil. 3 ed, Belo Horizonte:

Editora Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1982

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nascentes e bacias dos rios que correm dos sertões, o português Garcia d’Ávila (1528-1609),

construiu os primeiros currais de gado vacum, iniciando, assim, a exploração da pecuária na

colônia brasileira (CALMON, 1983. p. 23-24).

Em 1808, novamente a Bahia retorna com destaque ao cenário político-colonial ao

receber a naus capitania Príncipe Real e Afonso de Albuquerque, parte da esquadra que

transportou a Corte portuguesa para o Brasil e que fora conduzida e protegida na travessia

oceânica de quase dois meses por navios da Marinha britânica, comandados pelo Almirante

Sidney Smith (1764-1840). Embora tenham chegado dia 28 de janeiro de 1808, somente dois

dias depois, desembarcaram em Salvador o Príncipe Regente D. João (1767-1826), D. Carlota

Joaquina (1775-1830), a Rainha D. Maria I (1734-1816), além de outros membros e vassalos

da Corte Portuguesa (GOMES, p. 72, 107).

Em Salvador, onde a família real permaneceu somente até 26 de fevereiro, dois

eventos marcaram definitivamente a história brasileira: no dia 28 de janeiro de 1808, foi

assinada a Carta Régia que determinava a abertura dos portos brasileiros às Nações amigas

(BARROS, 1918. p. 93-96) e em 18 de fevereiro, é publicada a “Decisão N. 2” na qual o

Príncipe Regente determina que seja criada uma Escola de Cirurgia no Hospital Real da

Cidade da Bahia (BRASIL, 1808, p. 2).

A Escola de Anatomia e Cirurgia da Bahia que, em 1815, passou a ser

denominada de Colégio Médico-Cirúrgico e, em 1832, foi transformada na Faculdade de

Medicina da Bahia, tornou-se um centro importante do ensino das artes de curar (TEIXEIRA,

2001. p. 84), contribuindo decisivamente para minorar as carências da assistência à população

no campo da saúde, bem como, para o desenvolvimento da medicina clínica e dos setores da

medicina social e biológica, dentro do conceito definido por Pinell (2010, p. 182).

Mas, afinal, naquela época, qual a legislação da Assistência Sanitária do Reino de

Portugal vigente no Brasil colônia e quais os tipos de terapeutas que, legalmente, atuavam na

prestação de serviço à saúde da população?

Qual o referencial de ensino que norteou a implantação da pioneira escola baiana

e quais os títulos conferidos aos alunos graduados pela Escola de Anatomia e Cirurgia,

posteriormente Colégio Médico-Cirúrgico e por fim, Faculdade de Medicina da Bahia?

Quais os principais acontecimentos políticos e sociais que contribuíram para as

mudanças do objetivo inicial de ensino e como se processou essa evolução?

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As respostas a esses questionamentos que serão esclarecidas ao longo do texto

constituem o objetivo principal desse estudo historiográfico, que apresenta assim outro olhar

sobre o início e evolução do ensino das artes de curar no Brasil.

2 – A ASSISTÊNCIA SANITÁRIA NO REINO DE PORTUGAL

Desde a Idade Média, Portugal já dispunha de um organismo para fiscalizar o

exercício das artes de curar. A Fisicatura-Mor foi criada em 1260 por Afonso III (1210-1279),

aperfeiçoada em 1392 por D. João I (1347-1433), confirmada em 1440 por D. Afonso V

(1432-1481) e ampliada por D. Manoel, em 1521 (ARAUJO, 1952. p. 40).

Na estrutura do órgão que funcionava em Lisboa existiam os cargos de Físico-

Mor e Cirurgião-Mor, cujas funções eram examinar os candidatos a terapeutas, exigindo dos

mesmos como requisitos a formação em universidade ou em hospital-escola ou simplesmente

à experiência adquirida pelo postulante junto a profissional já licenciado. Se aprovado no

exame, liberava-se para o candidato a carta de licenciamento que autoriza legalmente o

exercício profissional (SALES, 2004, p.28-9).

Segundo Plácido Barbosa e Cássio Barbosa de Resende, apud Ribeiro (1971,

p.71) durante o reinado de D. Manuel (1469-1521), o Regimento da Fisicatura foi

aperfeiçoado ampliando as suas funções conforme explicitado:

“O Cirurgião-mor dos Exércitos, e os cirurgiões, juízes comissários, seus

delegados nas capitanias, superintendiam no que era relativo ao ensino e

exercício da cirurgia aos sangradores, parteiras, dentistas, aos que ocupavam

em aplicar bichas e ventosas, aos que locavam ossos deslocados (algebristas),

aos hospitais, médicos e serviços médico-militares”.

“Ao Físico-mor do Reino e aos seus delegado, nas capitanias, competia tudo o

que se referia ao ensino e exercício de medicina, às questões entre médicos e

clientes, ao exercício de farmácia, a boticários, droguistas, curandeiros, a

cirurgiões que tratassem de moléstias internas, à profilaxia das moléstias

epidêmicas, ao saneamento das cidades”.

No Brasil, ao tempo da colônia, as atribuições da Fisicatura eram desempenhadas

pelos Delegados, continuando de forma similar com a fundação da Junta do Proto-Medicato,

em 17 de junho de 1782 (ARAUJO, 1952, p. 40). Em 23 de novembro de 1808, através de

alvará, o Príncipe Regente ratificou a independência da autoridade do Físico e Cirurgião-mor

em relação a outras representações da Corte e definiu as atribuições e funções dos

representantes do órgão de fiscalização nas províncias e colônias do Reino (BRASIL, 1874. p.

163-164).

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Em 7 de janeiro de 1809, através de Carta Régia foi extinta a Junta do Proto-

Medicato, retornando a Fisicatura permanecendo, entretanto, os cargos de Físico e Cirurgião-

mor com as mesmas atribuições. Já em 1832, a Lei de 3 de outubro, além de determinar uma

drástica redução no quadro oficial de terapeutas legalmente autorizados a exercer as artes de

curar, determinou em seu artigo 14, que a responsabilidade na verificação dos títulos de

médicos, cirurgiões, boticários e parteiras, a partir de então, seria da competência dos lentes

das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia (BRASIL, 1874. p. 89).

Durante o Império, entretanto, outro dispositivo legal conflitava com a Lei de 3 de

outubro de 1832. Apesar do protesto nas academias, a lei que regulamentava a Guarda

Nacional manteve a prerrogativa dos presidentes das províncias de nomear leigos e práticos,

ou seja, pessoas não habilitadas nas Faculdades de Medicina ou com título não reconhecido

por essas instituições, para as funções de “cirurgião-aprovado” da milícia, fato que se manteve

até a promulgação da República (PEREIRA, 1870. p. 1, 2, 3).

3 – OS TERAPEUTAS

Os terapeutas que exerciam atividades no Brasil no início dos oitocentos, de

forma similar a todo Reino de Portugal, podem ser subdivididos em dois grupos ou ramos. No

primeiro, licenciados pelo Físico-Mor para atuarem na manipulação e prescrição de remédios,

estavam os médicos (também chamados físicos), boticários, curadores de morfeia (lepra),

curandeiros e licenciados para curar da medicina prática. Já o segundo grupo, licenciados pelo

Cirurgião-Mor para atuarem em procedimentos invasivos, era formado pelo cirurgião,

cirurgião-barbeiro ou barbeiro-sangrador e parteira (PIMENTA, 1998. p. 349-353).

Os médicos formavam-se em universidades. As preferidas pelos brasileiros foram

as de Montpellier e Coimbra onde, entre os anos de 1615 a 1863, 205 brasileiros estudaram

medicina (SOARES, 2001. p. 412-414). Já os cirurgiões, dependendo do local de formação,

eram subdivididos em dois grupos: os cirurgiões-diplomados, que se formavam frequentando

aulas e praticando a arte em hospitais e os cirurgiões-aprovados e barbeiros de formação

apenas prática, adquirida na ajuda a um cirurgião habilitado e que, profissionalmente, se

limitavam ao emprego de ventosas (sangrias), sarjaduras, extração de dentes e atividades de

menor importância (SALES, 2004. p. 28, 29).

Na Bahia, eram poucos os terapeutas que serviam à população cujo censo

realizado em 1780, registra que em Salvador, incluindo os subúrbios, habitavam um total de

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64.285 pessoas (SILVA, 1931. p. 83) Na medicina, encontram-se registros das atuações dos

doutores Luis Fernandes de Alvarenga, Manoel Luís Álvares de Carvalho e Manoel Joaquim

Henrique Paiva enquanto que na cirurgia, os documentos acusam a presença dos cirurgiões

José Soares de Castro, Manoel José Estrela e Cipriano Barata.

Atuando no Hospital Real Militar da Bahia destacam-se os Cirurgiões-Mor José

Soares de Castro (1772-1849), futuro docente do Curso de Anatomia e Cirurgia e Gonçalo de

Jesus da Silva. Os registros dão conta de uma conferência realizada entre os dois cirurgiões e

o médico Luís Fernandes de Alvarenga, em 21 de fevereiro de 1806, para discutir o caso do

soldado e paciente Luis Manoel (BRITTO, 2002. p. 56).

Na coletividade e com participação destacada na vida social e política da colônia

atuava o plantador de canas no Recôncavo e cirurgião Cipriano José Barata de Almeida

(1762-1838), que gozava de grande popularidade pela assistência aos humildes. Certa feita,

insatisfeito com a realidade social e política da Bahia, em carta, desabafou a um amigo: “Aqui

fico curando uns, e matando outros, sem dinheiro agoniado pelos desordeiros da terra.”

(MOREL, 2001. p. 38).

Quando da prisão de Cipriano Barata por suposta participação no Movimento

Democrático Baiano de 1798, se percebe a influência da cultura francesa na literatura política

e das artes de curar. No Auto do Sequestro, consta que foram apreendidos da Biblioteca do

cirurgião, livros editados na França de conteúdo político, além daqueles que versavam sobre

as artes de curar como o “Princípios de cirurgia por M. Jorge de La Fay, Traité dês maladies

venériennes, Cours complet de Metaphysique sacree et profane e Traité élementaire de

chimie” (MATTOSO, 1969. p. 14, 21-27).

4– AS ARTES DE CURAR ATRAVÉS DOS TEMPOS

Na Antiguidade, as concepções filosóficas e religiosas se refletiam diretamente

nas doutrinas das artes de curar. Dessa forma, na medicina arcaica (Egito e Mesopotâmia), a

doença era interpretada como um fenômeno sobrenatural e as terapias situavam-se no campo

das representações mágico-religiosas (SOUZA MELO, 1989. p. 11-19). Já, na medicina

grega, a interpretação da doença e suas terapias, podem ser caracterizadas por uma abordagem

racional do mundo, própria de uma civilização marcada pelas idéias dos filósofos-médicos

jônicos (MARGOTTA, 1998. p. 22-26).

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Durante cerca de vinte séculos, as doutrinas oriundas da escola Greco-latina

dominaram o campo das artes de curar. Os conceitos e orientações contidos nos volumes da

“Coleção Hipocrática” cuja autoria é atribuída ao médico grego Hipócrates de Cós (460-365

a.C), e os ensinamentos da vasta coleção de escritos do cirurgião romano Cláudio Galeno

(130-200), que permaneceu, por quatro anos, na função de cirurgião dos gladiadores,

marcaram a civilização ocidental (SINGER, 1996. p. 28, 66).

Ao médico Hipócrates, reverenciado como Pai da Medicina, é creditado o

rompimento com o pensamento mitológico anterior e a interpretação da doença e das práticas

médicas em bases racionais. É na obra da Coleção Hipocrática denominada “Sobre a Natureza

do Homem”, que se encontra a doutrina dos quatro humores que formam o corpo vivo:

sangue, fleuma, bile negra e bile amarela, bem como, dos quatro elementos que formam a

matéria não viva: fogo, água, terra e ar (CASTIGLIONI, 1947. p. 189-211).

O cirurgião Cláudio Galeno, começou estudando filosofia em Pérgamo, onde

nasceu. Em seguida, foi para Esmirna, depois Corinto e, finalmente, Alexandria, importante

escola na qual concluiu sua formação nas artes de curar. Foi nessa escola egípcia onde

floresceu um centro de estudos e pesquisa durante o período ptolomaico (BAIARDI, 1996.

p. 69) que os gregos Herófilo da Calcedônia (cerca de 300 a.C), reconhecido pai da Anatomia

e Erasístrato de Quíos (cerca de 290 a.C), realizaram as primeiras dissecações de corpos

humanos. Em Alexandria, Galeno ampliou sua formação em anatomia, base fundamental para

o exercício da atividade cirúrgica (SINGER, 1996. p. 48-72 ).

Iniciou-se a Idade Média, e a formação dos médicos e cirurgiões permanecia

influenciada diretamente pelas obras de Hipócrates e Galeno, preservadas pelos árabes e

copiadas pelos Monges copistas nos Mosteiros cristãos. Entretanto, lentamente, ganhou

impulso o movimento de renascimento urbano, o desenvolvimento das cidades, a formação

das corporações de ofício, a transformação dos clérigos em intelectuais e mediante

autorização da Igreja, foram fundadas as primeiras universidades (LE GOFF, 1973. p. 12-31).

A Europa, até o final da Idade Média, verá funcionando um total de 80 (oitenta) centros

universitários (CASTIGLIONI, 1947. p. 382).

Assim, progressivamente, aconteceu a transferência do saber dos Conventos,

Mosteiros e antigas escolas latinas para as nascentes universidades das novas cidades

medievais. Nas universidades, inicialmente, ensinavam-se apenas as sete artes liberais

contidas no trivium: Aritmética, Gramática e Música e no quadrivium: Astronomia,

Geometria, Retórica e Dialética. Entretanto, nas antigas escolas-catedrais de “Paris, Lião,

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Fulda, Itália etc” desde o ano de 805, por determinação de Imperador Carlo Magno (747-

814), a medicina, sob o nome de física, já havia sido incluída nos programas de ensino

(CASTIGLIONI, 1947. p. 345).

As cidades, reinos e repúblicas da península itálica foram locais onde

aconteceu grande desenvolvimento cultural, comercial e político nesse período da Idade

Média (BERTONHA, 2005. p. 33). Nelas, em decorrência das mudanças econômicas que

determinaram o fim gradual do feudalismo, desmantelando a vida das classes sociais mais

desprotegidas, floresceram as confrarias, as irmandades e as corporações de ofício (RUSSEL-

WOOD, 1981. p. 2-4) como a guilda dos médicos de Florença na qual o poeta, médico e

Dante Alighieri (1265-1321) era filiado (ALIGHIERI, 1998. p. 237).

Foi no alvorecer desse tempo no qual o Cristianismo tornou-se a religião

hegemônica no Ocidente, determinando uma nova ordem social, que se estabeleceu a

repugnância ao esperma e ao sangue, humores do corpo vinculados à sexualidade e à guerra

(LE GOFF, 2010, p. 38, 39). Na nova ordem teológica, a repulsa ao esperma será um dos

fundamentos determinantes para a obrigatoriedade do celibato entre os clérigos (oratores).

Por sua vez, a necessidade da separação dessa ordem de pregadores da paz com a dos

guerreiros (bellatores), vinculados à guerra e ao sangue, foi determinante para a separação da

cirurgia e da medicina (LE GOFF, 2010, p. 38, 39).

Na época, os Clérigos seculares e Monges que aprendiam a medicina nos

Mosteiros, Conventos e Hospitais, foram proibidos de exercer as artes de curar, especialmente

a cirurgia, sucessivamente pelos Concílios de Reims, Tours e Paris (CORREIA, 1999. p.

220). Particularmente no Concilio de Reims, em 1131, foi determinado que os Monges

somente exercessem a medicina no interior dos Mosteiros (LE GOFF, 1973. p. 30) e, por sua

vez, o Concílio de Tours, em 1163, determinou a separação entre a medicina e da cirurgia,

passando essa a ser progressivamente rebaixada ao nível dos ofícios manuais (LE GOFF,

2010, p. 115).

Desde então, segundo Santos Filho (1977. p. 291), a cirurgia passou a ser uma

atividade considerada indigna dos médicos, razão por que era exercida por gente de baixa

condição social, por não passar de simples ofício manual. Já a medicina era considerada uma

prática liberal, que exigia maior estudo e menor grau de trabalho manual (WITTER, 2005. p.

20).

Na Inglaterra, no início do século XIV, a separação entre médicos e cirurgiões

fazia-se desde a formação exigida para cada profissão, à filiação da corporação ou guilda na

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qual cada um deles era obrigado a estar vinculado, bem como pela separação das atribuições

profissionais a que cada grupo estava autorizado a desenvolver (MELO, 2011, p. 53).

Os médicos formavam a elite da elite, usavam beca e sentiam-se superiores aos

cirurgiões. Esses, por sua vez, sofriam a concorrência dos barbeiros, que realizavam

drenagem de abscesso, sangria, extração de dentes e pequenas cirurgias. Em 1540, Henrique

VIII (1491-1547) promulgou uma lei que unia as profissões de barbeiros e cirurgiões,

nascendo assim Companhia de Cirurgiões-barbeiros de Londres e em 1558, objetivando a

formação acadêmica dos médicos, criou o Real Colégio dos Físicos (MELO, 2011, p. 54-55).

Na França, mantendo a tradição medieval nela iniciada, o ensino de cirurgia e

medicina era realizado em cursos e instituições distintas. O contraste era tão grande que em

Paris, o estudante de medicina tinha que jurar que não faria nenhuma cirurgia

(CASTIGLIONI, 1947. p. 474). Entretanto, uma mudança radical estava em curso, como

resultado da Revolução de 1789. Após o fechamento das universidades ao longo da fase de

radicalização comandada por François Robespierre (1758-1794), em 1795, com o golpe de

Estado do Thermidor, começou a fase de reconstrução das instituições quando então foi

abolida a separação e promovida a união no ensino da cirurgia e da medicina em um mesmo

curso (PINELI, 2010. p. 180).

Em Portugal, o ensino de Medicina começou no Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra, em 1130 (PIRES DE LIMA, 1943, p. 18) continuando na Universidade de

Lisboa/Coimbra, fundada em 1290 (FARINA, 1996. p. 8). Nos séculos que se seguiram,

apesar dos avanços dos descobrimentos, o isolamento cultural de Portugal determinado pela

Inquisição, instalada em 1536 e extinta somente em 1821(SOUZA, 1986. p. 381), foi uma das

causas do atraso no desenvolvimento da medicina portuguesa que, até o final do século XVII,

permaneceu submetida à doutrina escolástica, utilizando-se, como recurso didático para a

formação dos médicos leituras e discussões acerca de textos de Hipócrates, Galeno e Avicena

(GREEN, 2011. p. 130-145).

Na segunda metade do século XVIII, entretanto, graças às reformas iniciadas na

metrópole e lideradas por Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), Marquês de

Pombal, as mudanças ultrapassaram os âmbitos administrativos, econômicos e políticos,

alcançando também o universo das ciências, difundindo, em Portugal, a racionalidade

científica iluminista (ABREU, 2007. P. 761).

As reformas na Universidade de Coimbra foram iniciadas em 1772. Em 1786,

passou-se a ministrar aulas de Física, Química, Botânica, Farmacologia e Anatomia no curso

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de medicina (MOREL, 2001. p. 34-36). Formavam-se como Licenciados os alunos que

cursassem quatro anos; Bacharel em Medicina aqueles que cursassem cinco anos e fizessem

defesa de “conclusões magnas”, e Doutores em Medicina aqueles que fizessem defesa de tese

(SALES, 2004. p. 28).

Ainda em Portugal, com relação à cirurgia, a opção inicial para formação do aluno

ou aprendiz era que o mesmo acompanhasse no treinamento um profissional já licenciado

(SANTOS FILHO, 1979, p. 291-294). O ensino oficial de cirurgia somente começou em

1504, no Hospital de Todos os Santos (PIRES DE LIMA, p. 25), atual Hospital São José de

Lisboa, continuando em 1825, com a implantação das Academias Régias de Cirurgia nas

cidades de Porto e Lisboa (BARRETO, 2005. p. 16, 68).

5 – O ENSINO DAS ARTES DE CURAR NO BRASIL

No período colonial, a política do império português, para o Brasil, pode ser

caracterizada pela tentativa de isolamento e monopólio sobre o território e as riquezas da

colônia onde a Corte portuguesa e seus representantes tudo determinava (ARRUDA, 2000. p.

168). No campo do ensino dominado pelos padres da Companhia de Jesus até 1759, o

governo absolutista do Marquês de Pombal, apesar das propostas da “reforma ilustrada”,

impunha censura à circulação de livros e obras, especialmente estrangeiras e, sobretudo de

natureza hostis ao regime absolutista (FALCON, 2000. p. 157).

Entretanto, em 1808, com a transferência da Família Real portuguesa para o Brasil

era necessário dotar a colônia das mínimas condições sanitárias para, assim, propiciar bem-

estar e assistência aos vassalos e demais membros da Corte. Assim, em 18 de fevereiro de

1808, foi instalada a “Escola de Anatomia e Cirurgia da Bahia” com a missão de formar

“cirurgiões” para suprir as carências da colônia (TAVARES-NETO, 2004. p. 9).

No presente estudo, a evolução histórica desse primeiro curso de ensino das artes

de curar no Brasil, será analisada dividindo-se o período a ser estudado em três etapas ou

fases: a primeira, começa com a fundação da Escola de Anatomia e Cirurgia da Bahia; a

segunda, inicia-se com a implantação do Colégio Médico-cirúrgico e, finalmente, a terceira

fase começa com a instalação da Faculdade de Medicina da Bahia.

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5.1 A Escola de Anatomia e Cirurgia da Bahia: 1808-1815

A primeira fase começou com a Decisão Régia N. 2 expedida pelo Ministro do

Reino, D. Fernando José de Portugal (1752-1817), ao Capitão-general da Bahia, D. João

Saldanha da Gama (1773-1809), atendendo aos conselhos e recomendações do

pernambucano, Cirurgião-mor do Reino e Lente da Universidade de Coimbra, Dr. José

Correia Picanço (BRASIL, 1874. p. 2).

O local escolhido para funcionamento da escola foi o Hospital Real Militar da

Bahia, que, em 1754, instalado como uma enfermaria no Convento da Palma dos Frades

Agostinianos Descalço, durante um surto de “bexiga” em Salvador, em 4 de outubro de 1779,

passou, oficialmente, a funcionar no antigo prédio do Colégio dos Jesuítas, situado no Largo

do Terreiro de Jesus, em Salvador (BRITTO, 2002. p.51, 52, 62).

Os dois primeiros e únicos professores da escola já atuavam no Hospital Real

Militar como cirurgiões e foram nomeados como docentes por ato do Dr. José Correia

Picanço (1745-1824/1826). Foram eles: o Cirurgião-mor português José Soares de Castro

(1772-1849), docente da cadeira de “Lições teóricas e práticas de Anatomia e Operações

Cirúrgicas” e o Cirurgião-mor brasileiro, também formado no mesmo colégio, Manuel José

Estrela2 (1760-1840), docente da cadeira de “Cirurgia especulativa e prática” (NAVA, 2003.

p. 50).

As condições iniciais de funcionamento da escola eram precárias e isso se refletiu

inclusive no número de alunos e na quantidade de concluinte do curso. Entre 1812 e 1818,

como alunos da 1ª a 7ª turmas, os registros mostram que se formaram apenas cinco cirurgiões:

Antonio José de Souza e Aguiar, Francisco Gomes Brandão, Francisco Sabino Alves da

Rocha Vieira, José Álvares do Amaral e Manoel José Bahia (TAVARES-NETO, 2008, p. 48).

Na área social, a agitação tomava conta da capitania e em decorrência da

declaração de guerra à França, determinada por D. João através do Decreto de 10 de junho de

1808, franceses em trânsito ou residentes em Salvador foram hostilizados por suspeita de

espionagem. Na época, até jovens brasileiros que retornaram da Europa foram presos

acusados de expandirem ideias subversivas e viajarem em companhia de emissário de

Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França (CARDOSO, 1997. p. 243, 244).

2 Maria Renilda Nery Barreto (2005. p. 42) não confirma a informação de Ribeiro (1971) e Nava (2003)

de que Manoel José Estrela tenha se formado em Lisboa, onde no Hospital São José formavam-se cirurgiões. A

pesquisadora identificou um atestado de matrícula do mesmo como aluno da Universidade de Coimbra.

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Entretanto, apesar da guerra e das questões políticas era evidente a influência da

cultura francesa na vida baiana. Dois exemplos são ilustrativos: a relação de livros políticos e

da área da saúde, editados na França, pertencentes a Biblioteca do político e cirurgião

Cipriano Barata (MATTOSO, 1969. p. 18) e os compêndios também da literatura francesa

adotados pelo Cirurgião-mor e docente Manoel José Estrela na Escola de Anatomia e

Cirurgia: Princípios de cirurgia por M. Jorge de La Fay e Recherches physiologiques sur la

vie et la mort de M Francisco Xavier Bichat (OLIVEIRA, p. 114).

Na área cultural e política, após a instalação da Corte portuguesa no Brasil o clima

era de transformação. Em 13 de maio de 1811, funda-se, em Salvador, a primeira Biblioteca

Pública brasileira e D. João assina a Carta Régia pela qual o Brasil é elevado à condição de

Reino Unido a Portugal e Algarves (CARDOSO, 1997. p. 243).

No mesmo período outro acontecimento de grande importância materializou-se na

Bahia. Em 14 de maio de 1811, começou a circular em Salvador a primeira Gazeta da Bahia

denominada de “Idade d’Ouro do Brazil”, impresso na tipografia do comerciante português

Manoel Antonio da Silva Serva. A Gazeta, cuja última edição circulou em 18 de abril de

1823, através das notícias veiculadas nas suas edições, promoveu o intercâmbio cultural com

os países da Europa, propiciando assim a divulgação das novas ideias políticas, sociais e

científicas (BAHIA, 2011).

É nesse contexto de mudanças que acontece a primeira reforma do ensino da

Escola Baiana, orientada pelo Dr. Manoel Luís Álvares de Carvalho (1751-1825), nascido na

Bahia e formado em medicina pela Universidade de Coimbra, em 1782. Após acompanhar a

Corte portuguesa na viagem para o Brasil, em 1812, foi nomeado Diretor dos Estudos

Médico-Cirúrgicos da Corte e do Estado do Brasil, função na qual elaborou o primeiro Plano

de Reforma de Ensino de Cirurgia, aprovado e colocado em prática por determinação de D.

João VI (RIBEIRO, 1971. p. 134).

5.2 O Colégio Médico-cirúrgico: 1816-1832

A segunda fase se inicia com a Carta Régia de 29 de dezembro de 1815, que

implanta a reforma e transforma a Escola de Anatomia e Cirurgia no “Collegio Medico-

Chirurgica da Bahia” (BRASIL, 1890. p. 30). O período escolar foi ampliado para cinco

anos, o curso foi transferido do Hospital Real Militar para o Hospital São Cristóvão, de

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propriedade da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, aumentou o número de cadeiras ou

disciplinas e foram nomeados novos professores (OLIVEIRA, 1992, p. 47-49).

A escola passou a oferecer as cadeiras de Anatomia, Fisiologia, Química,

Etiologia, Patologia, Terapêutica, Operações, Obstetrícia e Clínica Médica. Mesmo

ampliando as cadeiras e o tempo de estudo, a escola continuou formando apenas “cirurgiões”,

deferindo o título de “cirurgião-aprovado” aos alunos que cursassem por cinco anos e de

“cirurgião-diplomado” para aqueles que repetissem por mais um ano as disciplinas das duas

últimas séries (SANTOS FILHO, 1979, p. 202).

Quanto aos docentes, além dos dois professores que já ensinavam, atuaram na

escola mais 12 (doze) docentes: Antônio Ferreira França, Antônio Policarpo Cabral, Fernando

Cândido da Costa Dormund, Francisco de Paula Araújo e Almeida, Francisco Marcelino

Gesteira, João Baptista dos Anjos, Jônatas Abbott, José Álvares do Amaral, José Avelino

Barbosa, José Lino Coutinho, Manoel da Silveira Rodrigues e Manoel Joaquim Henrique de

Paiva (TEIXEIRA, 2001. p. 268).

Essa fase é repleta de acontecimentos cruciais para a história da Bahia e do Brasil.

Além da costumeira agitação social interna, a Revolução Constitucionalista de 1821 em

Portugal e a eleição dos deputados baianos às Cortes em Lisboa entre os quais o cirurgião

Cipriano Barata e o médico Dr. Lino Coutinho, muito contribuíram para a crise política que

culminou com a Independência do Brasil, consolidada na Bahia somente no dia 2 de julho de

1823 (CARDOSO, 1997. p. 242-246).

O estado brasileiro já nasceu sob forte influência das ideias liberais. Mesmo

mantendo o regime monárquico, na escolha do nome preferiu “Império” a “Reino”, pois assim

aproximava-se da imagem do regime comandado por Napoleão Bonaparte (MOTTA, 2008, p.

31). Segundo Barreto (2005. p. 12), na construção do Estado Nacional Brasileiro era

necessário renegar o passado colonial e aproximar-se de estados nacionais já consolidados

como a Inglaterra e a França.

O interesse de aproximação com a França parece ter sido recíproco. É dessa

forma que se pode interpretar o ofício do cônsul da França na Bahia, Mr. Guinebaud,

endereçado ao Presidente da Província da Bahia, Francisco Vicente Viana (1754-1828). No

oficio, datado de 12 de março de 1824, o cônsul Francês discorre sobre as facilidades que o

governo de S. M. Cristianíssima resolveu oferecer, para transporte de estudantes brasileiros

para a França (BRASIL, 1948. p. 254).

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Proclamada a independência, em 3 de maio de 1823 foi instalada a Assembléia

Constituinte, oportunidade na qual foram discutidas diversas propostas referentes ao ensino

no Império. Após a promulgação da primeira Carta Magna, D. Pedro I posicionou-se frente à

graduação dos alunos do Colégio Médico-cirúrgico, então em pleno funcionamento

(MOACYR, 1936. p. 71). Essa posição oficial veio através da Lei de 9 de setembro de 1826

(BRASIL, 1890. p. 8, 9, 10) que “manda passar cartas de cirurgião, e de cirurgião formado

aos que concluírem os cursos das escolas de cirurgia do Rio de Janeiro e da Bahia. Dita o

texto:

Art. 1º Haverão cartas de cirurgião, ou cirurgião formado, todos

aquelles, que nas escolas de cirurgia do Rio de Janeiro, e Bahia, já têm

concluído com approvação, ou concluírem em diante, o curso de cinco,

ou seis annos, na conformidade dos seus estatutos.

Art. 5º Os que conseguirem a carta de cirurgião poderão livremente

curar de cirurgia em qualquer parte do Império, depois que com ella se

apresentarem à autoridade local.

Assim se posicionou o estado brasileiro frente à questão: ratificou que o aluno

graduado seria titulado como cirurgião, entretanto, já sinalizava com novos tempos para o

restrito ensino das artes de curar no Brasil. Em 1832, último ano de funcionamento do

Colégio Médico-cirúrgico da Bahia, encerou-se a segunda fase do ensino de cirurgia no

Brasil. Até aquele ano formaram-se da 1ª a 17ª turmas, apenas 27 cirurgiões, inclusive com os

cinco graduados, inicialmente pela Escola de Anatomia e Cirurgia (TAVARES-NETO, 2008,

p. 48).

Em 1833, um novo ciclo começa nas escolas do Rio de Janeiro e da Bahia. A

reforma instituída pela Lei de 3 de outubro mudou radicalmente o modelo pedagógico e os

objetivos de ensino. Na mudança foi abandonado o modelo fragmentado de ensino português,

inicialmente adotado pela escola brasileira, e implantado o modelo de ensino unificado

originalmente francês. A partir de então, no Brasil, a cirurgia e a medicina estavam reunidas

em um único curso e, em decorrência, os formados passaram a receber a titulação e o diploma

de doutor em medicina.

5.3 A Faculdade de Medicina: 1833...

Portanto, a terceira fase começa com a Lei de 3 de outubro de 1832 que “Dá nova

organização às actuais Academias Medico-cirurgicas das cidades do Rio de Janeiro, e Bahia

(BRASIL, 1874. P. 87-92). Essa Lei que criou as Faculdades de Medicina foi discutida e

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aprovada pela Câmara e Senado, e sancionada pelos membros da Regência Trina Permanente

e assinada pelo Senador Nicolau Pereira Campos Vergueiro (1778-1859), ministro do Império

(BRITTO, 2003. p. 3, 4).

O Projeto inicial seguia o modelo francês e foi elaborado pela Sociedade de

Medicina do Rio de Janeiro, embrião da Academia Imperial de Medicina (EDLER, 2022. p.

364). Encaminhado à Câmara, com pequenas modificações, principalmente de autoria dos

professores Dr. José Lino Coutinho e Paula de Araújo, foi transformada em Lei. A nova

legislação era de orientação liberal “inspirara-se, nos pormenores da organização no modelo

Frances. Nem disso se fez segredo, tanto que em um de seus artigos se mandava adaptar,

para os casos omissos, os estatutos da Faculdade de Paris (FREIRE, 1968. p. 93).

O novo curso continuou a funcionar no Hospital da Santa Casa, mas ambos, curso

e hospital, foram transferidos para o prédio do Colégio dos Jesuítas, fundado em 1556

(CARDIM, 1933, p.184). Foram ampliados os objetivos de ensino, as disciplinas e o período

de formação que passou para seis anos, mudando-se, também, a designação da escola para

Faculdade de Medicina da Bahia (OLIVEIRA, 1992, p. 90).

Ao tempo em que a lei reuniu cirurgia e medicina em um único curso passando a

titular doutores em medicina, com exigência de defesa de tese para graduação, também

implantou nas mesmas Faculdades o curso de Farmácia, com duração de três anos. As

disciplinas do curso de medicina foram divididas em três blocos: Ciências Acessórias - Física,

Botânica e Zoologia, Química e Mineralogia; Ciências Médicas - Fisiologia, Patologia

Interna, Matéria Médica e Farmácia, Higiene e História da Medicina e Clínica Interna;

Ciências Cirúrgicas - Anatomia Geral e Descritiva, Patologia Externa, Partos, Medicina

Operatória e Aparelhos e Clínica Externa (BRASIL, 1874. P. 87-92)

Nessa fase, mais uma vez, foi ampliado o quadro de professores, entre os quais

continuou figurando o atuante Dr. José Lino Coutinho (1784-1836), formado pela

Universidade de Coimbra, professor, político, Ministro da Justiça, autor do “Plano Geral de

Saúde Pública” e primeiro Diretor da Faculdade de Medicina (OLIVEIRA, 1992, p, 389-90).

6 - CONCLUSÕES

A Escola de Anatomia e Cirurgia implantada em 1808, cujas atividades eram

desenvolvidas no Hospital Real Militar da Bahia, tinha como objetivo pedagógico graduar

cirurgiões e seguia o modelo de ensino português pelo qual a formação do cirurgião poderia

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ser realizada acompanhando as atividades de um cirurgião-mestre ou em um hospital, como o

Hospital São José de Lisboa, referencial para a Escola Baiana.

Na época, ainda vigorava em Portugal e suas colônias uma legislação que

mantinha a tradição medieval pela qual, cirurgiões e médicos, eram terapeutas de formação,

conceito social e práticas profissionais distintas. A medicina era vinculada a atividade

intelectual, à filosofia, e ao raciocínio clínico. Por sua vez, a cirurgia era apenas um ofício

manual, geralmente exercida por indivíduos de classe social subalterna.

Naquele contexto, a diferenciação entre médicos e cirurgiões se estabelecia pelo

local de estudo para formação: medicina em universidade e cirurgia em hospital; pela

quantidade e conteúdos das cadeiras; pelo período do curso; pelos requisitos para graduação:

medicina com “carta magna” ou “tese” e cirurgia sem defesa de trabalho intelectual e pelas

atividades nas artes de curar que os profissionais estavam legalmente autorizados a

desenvolver: médico tratava doenças internas enquanto que cirurgião realizava procedimentos

externos e invasivos.

Portanto, implantada em 1808, tivemos apenas a Escola e o curso de Anatomia e

Cirurgia, formando cirurgiões, titulação essa foi que ratificada após a Independência, através

da Lei de 9 de setembro de 1826. Somente em 1832, com a Lei de 3 de outubro, inspirada no

modelo de ensino originalmente Francês, foi que aconteceu a evolução do ensino da cirurgia à

medicina que começou pela Escola de Anatomia e Cirurgia, para, enfim, chegar a Faculdade

de Medicina da Bahia.

7 - REFERÊNCIAS

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TEORIAS BIOMÉDICAS E RELAÇÕES SOCIAIS

João Pedro Dolinski

FIOCRUZ-COC

Mestrando - Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

Orientador: Jaime Larry Benchimol

[email protected]

Resumo

O trabalho busca analisar as relações entre teorias biomédicas e práticas sociais segundo a

perspectiva dos seguintes autores: Judith Walzer Leavitt, Nancy Tomes e Ilana Löwi.

Problematizo a relação entre ciência e contexto social, procurando identificar até que

ponto as práticas científicas estão coadunadas às dimensões que compõem as sociedades e

como são incorporadas ou representadas por elas. Este trabalho integra uma pesquisa mais

abrangente relacionada ao desenvolvimento da febre amarela na cidade de Paranaguá na

segunda metade do século XIX.

Palavras-chave: Teorias Biomédicas; História das Ciências; Práticas Sociais.

INTRODUÇÃO

Minha proposta neste artigo é elaborar uma análise comparativa entre os

estudos desenvolvidos por Ilana Löwi (2006), Judith Walzer Leavitt (1992) e Nancy

Tomes (1990), no sentido de estabelecer algumas possíveis conjunções entre teorias

biomédicas e relações sociais. Este trabalho surgiu como corolário da pesquisa que estou

desenvolvendo sobre as crises epidêmicas de febre amarela vivenciadas pela população da

cidade de Paranaguá- Paraná durante a segunda metade do século XIX. Partindo da

perspectiva de que a ciência seria uma atividade socialmente situada, que não prescindiria

o tecido social onde estaria imersa é que procuro justificar a importância deste estudo para

o futuro trabalho onde busco resgatar o contexto sanitário e as articulações construídas

entre a sociedade paranaguense oitocentista e a febre amarela enquanto uma entidade

mórbida específica.

Fundamento-me no conceito de doença elaborado por Rosenberg (1997), onde

o mesmo é entendido como consequência de um consenso entre grupos ou comunidades

políticas, intelectuais e/ou sociais, reconhecendo que para além de um âmbito fisiológico,

ela seria uma entidade passível de ser historicizada. A doença não existe até que a

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tenhamos classificada, ou seja, estabelecido um quadro taxionômico. Assim, toda e

qualquer mazela em nossa sociedade apenas torna-se um fenômeno social a partir do

momento que nós a nomeamos (ROSENBERG, 1997). Definir uma doença seria

semelhante a um processo de domesticação que facilitaria ao paciente lidar com os

sintomas que afetam sua vida, aos médicos estabelecer um diagnóstico, bem como uma

terapêutica e aos agentes de saúde, formular estratégias de políticas públicas.

Para Rosenberg as concepções de doenças não são apenas abstrações do

conhecimento e de debates acadêmicos. Elas interagem diretamente com a relação

médico-paciente e formam uma espécie de entidade específica que media a questão social.

Ilana Löwi (2006) afirma que tais entidades seriam formadas mediante uma relação entre

conhecimentos adquiridos (no caso da febre amarela, a definição do agente causal e do

vetor transmissor), a prática de pesquisadores e médicos (exames, diagnósticos, enquetes

epidemiológicas, tratamento de doenças, produção de remédio e vacinas), a ação das

instituições, sejam elas públicas ou privadas, e todo o aparato administrativo que as

envolve. Isso não significa que a doença não exista, ou que seja uma mera construção de

especialistas. Ela é uma experiência vivida pelo ser humano, com uma existência que não

se restringe apenas a um determinado contexto científico (LÖWI, 2006).

As diversas sociedades humanas ao longo de suas existências reagiram à

doença de diversos modos, com inúmeras ferramentas práticas e simbólicas. As

percepções dos sintomas mórbidos e as formas de combatê-los e evitá-los podem ser

historicizados em razão de sua enorme variação no decorrer do tempo. Para Rosenberg a

doença é ao mesmo tempo um acontecimento biológico, linguístico, institucional,

intelectual, político e cultural. Löwi resume esse conceito na noção de fenômeno

biocultural englobando elementos construídos pelo ser humano e elementos que não

dependem de sua vontade. Portanto, segundo os argumentos expostos acima, uma doença

não pode ser dissociada do seu contexto histórico.

Com o desenvolvimento da bacteriologia foi possível a identificação dos

agentes causais das doenças transmissíveis. A partir dela o epidemiologista pôde ordenar o

seu conhecimento e o profissional de saúde pública direcionar suas ações no sentido de

impedir a propagação de microorganismos patogênicos. Para Löwi (2006), o saber

especializado dos virologistas, tornou intrincada a percepção da importância da

intervenção humana na formação do vírus, contudo, isso não quer dizer que não haja tal

mediação. A medida dessa intervenção não significa que o vírus não existe, mas sim que

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ele não pode ser compreendido como uma entidade independente da atividade humana. A

aceitação da participação humana na formação de entidades como os vírus tornou-se

difícil em virtude da complexidade das mediações entre vírus e sociedade. Na concepção

de Löwi, seria pouco provável que os especialistas em saúde pública se recusassem a

admitir que suas ações produzissem ao mesmo tempo conhecimentos científicos e práticas

sociais fundadas sobre a aplicação deste saber. Portanto, segundo os argumentos da

autora, haveria uma co-dependência entre o desenvolvimento de conceitos e de fatos

científicos e o desenvolvimento das práticas sociais.

O texto está dividido em três seções. Na primeira delas eu trato dos desafios

impostos à bacteriologia por uma portadora do bacilo tifóide que teve seus hábitos de vida

alterados em função da doença e das recomendações médicas fundamentadas nos

resultados fornecidos pelo laboratório. A primeira parte é onde analiso o trabalho de

Judith Walzer Leavitt. A segunda seção é dedicada ao estudo de Nancy Tomes sobre a

influência exercida pela ciência dos micróbios no cotidiano da classe média norte-

americana durante as últimas décadas do século XIX. Na terceira e última seção debruço-

me sobre questões ligadas à etiologia, forma de transmissão e prevenção da febre amarela,

apontando para as convergências e divergências entre as três autoras a respeito do papel

exercido pela bacteriologia no combate tanto a essa doença como também ao cólera.

O LABORATÓRIO E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O COTIDIANO

DOS PACIENTES

A inserção do saber sobre o germe na prática dos médicos e dos profissionais

da saúde tem um significado bem preciso: o controle dos micróbios é inseparável do

controle dos humanos que os portam e os transmitem. O exemplo fornecido por Mary

Mallon, portadora saudável do bacilo da febre tifóide, é paradigmático.1 Leavitt (1992) ao

analisar essa questão problematiza os limites impostos pela bacteriologia ao escopo das

atividades de saúde pública. Para a autora, não houve uma redução drástica nesses limites

uma vez que a bacteriologia não descurou o contexto e principalmente os problemas

sociais onde foi aplicada. Nesse sentido, o exemplo de Mary Mallon, inserido na

conjuntura do início do século XX comprovaria a sua tese.

1 A febre tifóide é uma doença infectocontagiosa causada pela bactéria salmonella typhi. É transmitida mediante

ingestão de alimentos e água contaminados, mas pode ser transmitida também por contato direto com algum

portador. O grande problema colocado por essa doença seriam os indivíduos portadores do bacilo que não

adoecem, mas transmitem a doença para outras pessoas.

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Mallon era uma cozinheira que costumava trabalhar em casas de famílias ricas

de Nova York. Em uma dessas casas onde havia trabalhado, algumas crianças adoeceram

e George Soper, engenheiro conhecido por suas detalhadas análises de epidemias de febre

tifóide foi averiguar. O engenheiro levantou a hipótese de que o responsável seria a pessoa

que preparava os alimentos, o que o levou até Mallon. Ela por sua vez, não compreendeu

absolutamente nada, pois não sentia nenhum sintoma da doença. Somente com os

resultados fornecidos pelo laboratório foi possível confirmar que Mallon era portadora do

bacilo (LEAVTT, 1992).

Isso era algo inédito até então para os cientistas. Segundo Leviatt (1992),

indivíduos acometidos pela febre tifóide e que a transmitiam, mas não adoeciam,

tornaram-se importantes focos da orientação bacteriológica empreendida pelos agentes de

saúde pública. Esses portadores sãos seriam o exemplo de como a bacteriologia poderia

ajudar na luta contra a doença. Mas essa nova ciência não ajudou apenas a combater a

febre tifóide, ela também forneceu os elementos necessários para a intervenção na vida

cotidiana, alterando hábitos e costumes de pessoas que carregavam o estigma do bacilo

tifóide.

A primeira medida a ser tomada pelos agentes de saúde de Nova York foi

isolar Mallon em um hospital e impedi-la de viver normalmente. Esse isolamento durou

toda a sua vida. Em virtude de ser a primeira pessoa a ser diagnosticada como uma

portadora saudável, Mallon pagou um alto preço e serviu como experiência para que

autoridades sanitárias pudessem aprender a como lidar com essa nova situação, uma vez

que os números de casos semelhantes ao dela vinham aumentando consideravelmente

(LEAVITT, 1992).

Muitos médicos se opunham ao isolamento. O debate então estava direcionado

para a seguinte questão: Para evitar o isolamento os indivíduos portadores do bacilo

teriam que modificar e ajustar o seu comportamento de acordo com os preceitos da

bacteriologia. Esses indivíduos não poderiam trabalhar em indústrias alimentícias e

manipular qualquer tipo de alimento que pudesse ser servido a outras pessoas. Os

enfermos internados em hospitais, só poderiam ser liberados mediante o exame do

laboratório que fornecia resultados idênticos tanto para os portadores do bacilo que

adoeciam como para aqueles que não adoeciam. Assim, a indicação, sob o ponto de vista

bacteriológico, aos agentes de saúde, era não recomendar as mesmas orientações para

ambos os grupos. Os que adoeciam, poderiam ser isolados em casa ou no hospital. Os

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portadores sãos seriam autorizados a conviver com a sociedade contanto que seguissem

estritamente as regras descritas pelos médicos (LEAVITT, 1992).

Leavitt conclui que os bacteriologistas não podiam mais isolar a doença de seu

contexto social e ambiental onde as descobertas do laboratório precisariam estar mais

afinadas com a sensibilidade das políticas sociais: ―A ciência, quando aplicada nas ruas e

cortiços urbanos, foi infectada pelos valores, limitações e compromissos daquele mundo‖

(LEAVITT, 1992, p.629).

A BACTERIOLOGIA DESCE ÀS RUAS

Ao final do século XIX o modelo sanitário baseava-se sobre os problemas

relacionados com o contágio e a transmissão de doenças. Nessa perspectiva, compreende-

se a grande preocupação dos agentes de saúde da época em controlar a circulação do ar e o

fluxo da água. Nancy Tomes (1990) afirma que o fundamento da ciência sanitária

doméstica nas décadas de 1870 e 1880 pode ser compreendido como uma reconciliação do

papel exercido pela atmosfera com a crescente evidência da transmissão individual do

contágio2. Em sua perspectiva, os movimentos de saúde pública do século XIX, podem ser

interpretados a partir de uma crescente expansão do poder estatal para regular o ambiente

urbano. Com a ascensão da bacteriologia a saúde pública ganharia novos contornos, onde

educação popular e hábitos pessoais de higiene seriam transformados nos novos

imperativos desse movimento. O foco estaria, nesse sentido, direcionado para o que a

autora designa como lado privado da saúde pública, ou seja, o ambiente doméstico.

2 Na primeira metade do século XIX a teoria miasmática era a principal ferramenta para se pensar a origem,

desenvolvimento e forma de transmissão de diversas mazelas, entre elas, a febre amarela. Esses miasmas a

grosso modo seriam eflúvios, vapores que se desprendiam de solos úmidos ricos em matéria pútrida quando da

ação dos raios solares. Esse ar contaminado, em contato com a atmosfera infectaria o organismo humano por

meio das vias respiratórias. Portanto, as medidas para prevenir a manifestação de doenças seriam de caráter

higiênico. O conceito de higiene no século XIX estava relacionado com outro conceito, o neo-hipocratismo, que

tinha uma concepção ambientalista da medicina, cogitando a possibilidade de uma relação íntima existente entre

saúde, doença, ambiente e sociedade. No interior desse modelo a constituição médica visualizava possíveis

relações de causas e efeitos entre certas características do meio ambiente, tanto natural como social, e o

surgimento coletivo de uma determinada mazela. Cenário ecológico e doença estavam intrinsecamente

interligados. Para o neo-hipocratismo as doenças contagiosas eram transmitidas pelo ar, ou seja, a idéia de

contágio direto onde a doença seria propagada independentemente de suas causas originais. Em contrapartida, os

anticontagionistas, que se opunham aos contagionistas e não especificamente à teoria neo-hipocrática,

acreditavam que uma determinada doença não poderia ser adquirida independentemente das condições

ambientas que haviam estimulado a sua manifestação, em outras palavras, a transmissão não seria efetuada

mediante um contágio direto, mas sim indireto. Sob esse paradigma, Sigaud (2009) argumentava que a relação

existente entre clima e doença, poderia explicar as reais causas das endemias e epidemias que se manifestavam

nas diversas regiões do mundo durante o século XIX. (FERREIRA, 2009).

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A teoria dos germes foi incorporada rapidamente na literatura popular em

virtude do embasamento sobre o senso comum, ou seja, medidas como ventilação,

desinfecção, isolamento de doentes e asseio em geral já estariam assimiladas pelo grosso

da população, em especial a classe média, mesmo antes do amplo reconhecimento de tal

teoria (TOMES, 1990). Já na década de 1870 escritores populares passaram a incluir os

germes na lista de perigos domésticos que deveriam ser combatidos mediante os preceitos

da higiene em voga: ―Embora antigos sanitaristas tendessem a desconfiar do que eles

sentiam ser a simplificação da bacteriologia e dos métodos experimentais, geralmente,

suas formulações higiênicas foram facilmente expandidas para incorporar os germes

dentro de um regime de perigos domésticos‖ (TOMES, 1990, p.529).

Tomes debruça-se sobre as medidas que os sanitaristas domésticos norte-

americanos sugeriram para evitar infecções. Tais conjuntos de medidas seriam

representados por fatores como ventilação, desinfecção, encanamento, água purificada e

limpeza em geral. Essas recomendações teriam um amplo efeito, sobretudo, na esfera

comercial, criando um lucrativo mercado de novos utensílios sanitários que passaram a ser

patenteados. Esse novo filão industrial faria uso da ansiedade criada em torno da limpeza,

surgindo assim, no interior desse contexto, companhias especializadas em serviços

sanitários. Ainda na perspectiva de Tomes, não apenas o comércio sofreria a influência

dos novos preceitos das teorias biomédicas. Engenheiros civis também aufeririam

vantagens dos novos interesses voltados para encanamentos, especializando-se como

inspetores e reformadores de drenagens domésticas3.

3 É possível estabelecer uma comparação com o surto de cólera que grassou no Brasil entre os anos de 1893 e

1895. O cólera havia manifestado-se em outubro de 1893 na Hospedaria de Imigrantes da cidade de São Paulo e

o temor que chegasse ao Rio de Janeiro levou as autoridades políticas e sanitárias a instituírem um cordão

sanitário que impossibilitasse a comunicação por terra e água entre as duas cidades. Em 1894 o distrito federal

vivia um dos seus piores surtos de febre amarela, ampliando ainda mais a preocupação com aquela doença que

começava a propagar-se no Estado vizinho. Além dos cordões sanitários, existiam postos militares e lazaretos

para quarentena de viajantes ao longo dos caminhos que interligavam uma região infectada com outras

consideradas livres. As bagagens eram desinfetadas com sublimado corrosivo e as pessoas submetidas a exames

médicos. Nas estações ferroviárias de Belém, Cachoeira e Entre-Rios de Minas haviam sido instalados

desinfectórios. Em São Paulo e Minas estufas de vapor sob pressão foram construídas, pulverizadores, tanto a

vapor como manuais, também tinham sido empregados nas desinfecções de passageiros, bagagens e demais

utensílios. Uma Comissão Sanitária Federal liderada por Azevedo Sodré ficou responsável pela execução de tais

medidas, sendo a cidade de Barra do Piraí o palco das primeiras ações empreendidas pela comissão. As mesmas

preocupações relativas à fluidez do comércio que a prática da quarentena suscitava sob a luz da teoria

miasmática pôde ser verificado durante essa crise epidêmica. No entanto, apesar de oferecer obstáculos à

circulação de determinadas mercadorias, a indústria química estava em uma posição mais confortável se

comparada a outros ramos que sofreram os bloqueios de seus produtos. Com a colocação dos germes em

evidência, esse ramo industrial adquiriu maior importância. Durante a epidemia, médicos utilizaram imensas

quantidades de desinfetantes e produtos químicos. A inserção de tais componentes havia recebido estímulo para

ser consumido nos ambientes domésticos. Panfletos eram distribuídos no intuito de ensinar a população a utilizar

os desinfetantes em suas casas, na limpeza de paredes, latrinas, roupas e demais objetos. O comércio de canos

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Tomes conclui que as campanhas de educação sanitária do início do século XX

preservaram antigas crenças onde ar fresco e luz solar, continuavam a ser consideradas

medidas preventivas de infecções por microorganismos. Apesar dos novos fundamentos

da bacteriologia, as ações de prevenção sanitária passaram a focar os mesmos problemas

que antes estavam relacionados com a teoria miasmática, ou seja, as fontes de infecção

mantiveram-se semelhantes. Os preceitos higiênicos teriam, portanto, acrescentado apenas

os novos elementos dados pelos pressupostos da bacteriologia.

GERMES, MOSQUITOS E CAMPANHAS

O cólera asiático atinge a fronteira da Europa pela primeira vez em 1829. A

partir de então graves epidemias assolam a maioria das grandes cidades européias. Em

1851 é realizada a primeira Conferência Sanitária Internacional em Paris. Essas

conferências, em um primeiro momento, tinham o objetivo de conter a propagação do

cólera. As autoridades procuraram combater o mal com os recursos disponíveis à época,

ou seja, a quarentena imposta aos navios, pessoas e mercadorias provenientes de locais

infectados. Como tal medida constituía um severo entrave aos comerciantes, as

conferências internacionais inseriram no interior de suas discussões a possibilidade de

eliminar a quarentena sem, no entanto, colocar em risco a saúde das populações.

O problema da quarentena é analisado por Ackerknecht (1948), que expõe o

entrelaçamento existente entre teorias científicas e fatores ideológicos. O autor argumenta

que os defensores do anticontagionismo eram, sobretudo, reformadores e economistas

liberais. Para os cientistas, esta última teoria significava acima de tudo rigor científico e,

portanto, toda concepção contagionista seria de ordem pitoresca e mística. No entanto, na

segunda metade do século XIX essa noção é alterada por médicos franceses que

demonstraram as conexões existentes entre anticontagionismo e interesses comercias

(ACKERKNECHT, 1948).

Para a crescente classe comercial e industrial do século XIX os regimes de

quarentena significavam atrasos, perdas de lucro e limitação de crescimento,

para a formação de sistemas generalizados de distribuição de água potável e coleta de esgotos também se

beneficiou com os imperativos que a bacteriologia, de certa forma, impôs na guerra contra os micróbios. Nas

décadas finais do século XIX os congressos, comissões e associações médicas defendiam que para o saneamento

da cidade do Rio de Janeiro, seria necessário efetuar a drenagem do solo sob o qual a cidade estava edificada.

Nesse sentido, o enxugo, canalização e aterramento dos solos úmidos foram medidas tomadas em conjunto pelos

conselhos formados por médicos e engenheiros (BENCHIMOL, 1999).

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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principalmente controle burocrático. Portanto, contágio e quarentena eram sinônimos de

autocracia que a próspera classe burguesa não estava disposta a tolerar,

―Anticontagionistas não foram apenas cientistas, eles foram reformadores, lutando pela

liberdade individual e de comércio contra os grilhões do despotismo‖ (IDEM, p.567).

Tanto o cólera como a febre amarela eram doenças até então consideradas

contagiosas. Foi durante a terceira Conferência Sanitária Internacional realizada no ano de

1866 na cidade de Constantinopla que chegou-se a um consenso sobre a contagiosidade do

cólera. No entanto, não havia um acordo entre os médicos a respeito das medidas a serem

adotadas para conter a sua propagação, uma vez que os resultados obtidos mediante o uso

da quarentena não forneciam provas concretas de sua eficácia. Leavitt (1992) e Tomes

(1990) argumentam que a bacteriologia não reduziu o escopo de ação da saúde pública e

as medidas de prevenção sanitária pautadas nesse novo saber (a teoria microbiana), se

debruçaram sobre os mesmos enfoques anteriormente estabelecidos pela teoria ambiental.

Por sua vez, Löwi afirma que as descobertas da bacteriologia podem não ter al terado as

ações sanitárias de combate ao cólera e à peste, porém, no caso da febre amarela, em um

primeiro momento, pouca luz pôde trazer para a elucidação da questão causal da doença.

Para a autora os esforços aplicados no sentido de erradicar a febre amarela desde o fim do

século XIX estavam voltados para a compreensão etiológica e de transmissão da doença,

ressaltando o fato de que as quarentenas e as campanhas sanitárias até então realizadas

não impediram sua propagação. A eficácia no combate a essa enfermidade efetuou-se

somente quando da descoberta do mosquito vetor: ―A partir do começo do século XX, a

febre amarela foi, portanto, apresentada como a patologia que evidenciou a importância da

ciência médica para a saúde pública‖ (LÖWI, 2006, p. 34).

Com a descoberta do vetor transmissor da febre amarela a ação direciona-se

para o controle e ou erradicação do mosquito. A campanha contra essa doença

desenvolvida por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro em 1904 insere-se no âmbito da

reforma urbana da cidade durante a gestão do prefeito Pereira Passos, onde os pobres

foram expulsos do centro da cidade4. O método utilizado por Cruz consistia na instalação

de unidades estruturadas de empregados dos serviços sanitários municipais (os mata

mosquitos) enquadrados por uma direção hierarquizada e pela adoção do uso de

uniformes. Esses empregados realizaram fumigações a base de gás sulfúrico privilegiando

as zonas classificadas como focos de infecção, sem cogitar a possibilidade de tratar a

4 Para uma análise mais profunda sobre a reforma urbana da cidade do Rio de Janeiro durante a gestão do

prefeito Pereira Passos, ver: Benchimol (1992).

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cidade inteira. Esse método, na perspectiva de Löwi, combinou o isolamento de doentes, a

destruição dos mosquitos adultos, a eliminação das larvas na vizinhança e a vigilância de

todas as pessoas não imunes que pudessem ser encontradas nos locais considerados como

focos de infecção.

Löwi distingue quatro formas de abordagens desenvolvidas no intuito de

impedir a propagação da febre amarela, todas elas estão de alguma forma ligadas com

questões sociais mais amplas. A primeira delas, elaborada por Ronald Ross, ficou

caracterizada pelo caráter cívico (dever nacional); a segunda, proposta pelo General

Gorgas5, visava um desenvolvimento comunitário na forma de uma obrigação imposta ao

cidadão; a terceira foi a abordagem defendida por Oswaldo Cruz, uma dinâmica

internacional, ou seja, as ações sanitárias seriam impostas a partir de uma estrutura

vertical, hierarquizada. A quarta abordagem adotada por médicos coloniais franceses tem

como característica a conciliação entre práticas empreendidas por profissionais e educação

popular. Para os franceses, a eliminação dos mosquitos só poderia ser realizada mediante a

execução de grandes obras públicas. Nesse modelo, a figura do engenheiro seria central e

poderíamos cotejar com os argumentos propostos por Corbin (1987). Corbin analisa o

processo de acentuação da sensibilidade olfativa desenvolvida ao longo dos séculos XVIII

e XIX na Europa. A saúde nesse contexto histórico, não seria uma entidade dependente de

condições sociais, habitat ou raça, mas sim de odores, ou seja, um mau cheiro poderia

significar uma doença. O olfato, portanto, imerge como algo distintivo, sendo as

classificações e organizações odoríficas tidas como processos sociais e culturais

construídas menos por médicos do que por químicos e engenheiros.

O ar ―fixado‖ proveniente de lugares fechados era considerado agente de focos

epidêmicos. As aglomerações humanas eram consideradas nocivas. É justamente esse

amontoamento de corpos que irá organizar, de acordo com Corbin (1987), as

representações sociais no interior das cidades, e a reboque a estratégia dos higienistas para

o saneamento do espaço público, em um primeiro momento de maneira desorganizada em

virtude da carência de normas precisas que só serão dadas com a química de Lavoisier. O

ar fixado gera epidemia e os maus odores denotam doenças, está dado o pressuposto, a

5Major William C. Gorgas, cirurgião do exército que fora enviado para Havana em janeiro de 1899 para exercer

suas funções no hospital Las Ánimas cujos atendimentos eram direcionados para os doentes de febre amarela.

Gorgas já tinha experiência com surtos dessa doença, tendo combatido epidemias no Texas e na Flórida. Gorgas

foi responsável pela reorganização do departamento de febre amarela em Havana, criando um processo

sistemático de registro de casos da enfermidade (ESPINOSA, 2009).

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partir disso, a preocupação estende-se às reformas urbanas e sanitárias, às clivagens

sociais e à fabricação dos bons aromas.

Nas últimas décadas do século XIX a etiologia e a forma de transmissão da

febre amarela ainda eram uma incógnita. Muitos médicos recorriam à teoria do solo,

desenvolvida pelo higienista bávaro Max Von Pettenkofer (1818-1901), para explicar a

origem dos surtos da doença. Segundo Pettenkofer, a manifestação de uma epidemia

dependia de quatro fatores: um germe específico, condições climáticas e ambientais

referentes a um determinado local e a suscetibilidade de cada indivíduo para contrair a

doença, ou seja, questões de ordem idiossincráticas. O germe não agia isoladamente. Para

que pudesse maturar e adquirir capacidade de induzir doenças, era preciso que o solo onde

estivesse armazenado apresentasse umidade adequada e matéria orgânica em

decomposição. Após o seu completo amadurecimento, o germe deslocava-se para a

atmosfera imiscuindo-se a outros eflúvios, penetrando o organismo humano pelas vias

respiratórias. Pettenkofer se intitulava ―localista‖ para diferenciar-se dos contagionistas,

ou seja, em sua concepção as condições locais seriam as responsáveis pelo surgimento de

uma epidemia. A teoria do solo rivalizava com a teoria hídrica a qual Robert Koch estava

alinhado. Em virtude do seu hibridismo, a teoria do solo era a mais difundida pela

comunidade médica na segunda metade do século XIX e não ignorou os novos conceitos

da microbiologia, como também não descartou aqueles relacionados à teoria ambiental,

contudo, seus adeptos se opunham a medidas de quarentena e isolamento (BENCHIMOL,

1999). Mediante essa teoria era possível explicar o caráter sazonal e a especificidade

geográfica da febre amarela (BENCHIMOL, 2004). Clima e solo agiam sobre o germe que

amadurecia e transformava-se em matéria infectante. Além de Pettenkofer, José Francisco

Xavier Sigaud (1796-1856) e João Vicente Torres Homem (1837-1887) partilhavam de

modelos interpretativos semelhantes. Segundo Flávio Edler (2003), a patologia abraçada

por esses autores estava relacionada a fatores climáticos-telúricos, portanto, ao meio

ambiente. Segundo os argumentos de Torres Homem, para o desenvolvimento da febre

amarela seriam necessárias certas condições topográficas, telúricas e meteorológicas

(TORRES HOMEM, apud, FRANCO, 1969).

Telarolli Junior (1996) afirma que inexistia um método epidemiológico,

permanecendo o debate, fundamentado em episódios isolados. Em sua perspectiva as

teorias causais da febre amarela também estavam classificadas em três formas: a primeira

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delas era a transmissão, a segunda o contágio sendo a terceira um modelo misto entre as

duas primeiras formas:

Para os adeptos do contágio, a porta de entrada dos germes no organismo era a

pele, ao passo que para os seguidores da teoria da transmissão ela podia se dar

pelo aparelho digestivo, com a participação ou não do aparelho respiratório. Já

para os que acreditavam na teoria da transmissão hídrica exclusiva, a penetração

dos germes só se dava pelo estômago, através da ingestão de água poluída (TELAROLLI JUNIOR, 1996, pg.107).

Na segunda metade do século XIX, questões de ordem etiológica referentes à

febre amarela estavam entrelaçadas com problemas de ordem social. O problema principal

consistia em saber se a enfermidade era transmitida por contágio ou infecção. Para os

adeptos da causa contagionista a solução estava em combater a doença mediante medidas

de quarentena e isolamento em hospitais. Para os adeptos da causa infeccionista, seria

necessário promover reformas urbanas no intuito de impedir a proliferação de emanações

miasmáticas. A hipótese da doença ter sido introduzida no país pelos negros também foi

considerada, sobretudo, por higienistas como José Pereira Rego (CHALHOUB, 2006)6.

Este era o nexo fundamental, segundo Chalhoub (2006), para a explicação etiológica da

febre amarela no Brasil durante os anos 1849-1850. Este nexo sofreu uma inflexão no

novo surto epidêmico de 1870, quando imigrantes europeus passaram a ser considerados

agentes importadores da doença. Contudo, o consenso estava direcionado para a noção de

que o principal fator responsável pela disseminação provinha da insalubridade das

cidades, configurando-se em imperativo o combate às fontes de ―infecção‖, sobretudo as

habitações irregulares, os famigerados cortiços (CHALHOUB, 2006).

Durante esse mesmo período (segunda metade do século XIX), a concepção de

uma ideologia racial, de noções deterministas e projetos de branqueamento das raças,

começa a exercer influência entre o pensamento médico e as políticas de saúde pública do

Brasil. Segundo Lilian Moritz Schwarcz, a posição da Faculdade de Medicina do Rio de

Janeiro em relação ao tema racial, no período imperial, era a seguinte: ―O simples

convívio das diferentes raças que imigraram para o país, com suas diferentes constituições

físicas, é que seria o maior responsável pelas doenças, a causa de seu surgimento e o

6 Sobre a relação entre epidemia e tráfico negreiro ver: KODAMA, Kaori. Antiescravismo e epidemia: ‗O tráfico

dos negros considerado como a causa da febre amarela‘, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de

Janeiro em 1850. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.16, n.2, abr.-jun. 2009, p.515-522.

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obstáculo à ‗perfectibilidade‘ biológica‖ (SCHWARCZ, 2008, p.191). Portanto,

miscigenação era sinônimo de suscetibilidade. Essa tese, segundo Stepan (1976), ganhava

força pelo fato dos estrangeiros, que não tinham imunidade à febre amarela, serem

facilmente acometidos por ela. Esse argumento, de acordo com a autora, será contestado

somente no início do século XX, quando a descoberta do agente causal da doença,

inaugura um novo período para a ciência médica brasileira, desenvolvida, em parte, pelos

problemas ocasionados com os surtos epidêmicos dessa moléstia.

As características da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX são

descritas por Stepan (1976) como um ambiente onde habitava um enorme contingente

populacional pululando em residências anti-higiênicas, situadas em ruas estreitas, sem

pavimentos e com esgoto a céu aberto. Esses fatores na ótica das autoridades da época

requeriam medidas enérgicas e centralizadoras. Os projetos de saneamento, junto com as

pesquisas epidemiológicas corroboravam uma prática cada vez mais incisiva de

intervenção não só no espaço público, mas, principalmente, na propriedade privada: ―Os

alvos são inúmeros: as igrejas, as escolas, os portos, os cemitérios, os locais públicos, as

casas de moradia. Os hábitos deveriam ser moralizados, orientando-se os costumes

alimentares e higiênicos, controlando-se o desvio e evitando-se a ‗degeneração‘‖

(SCHWARCZ, 2008, p.226).

Numa perspectiva semelhante, Nilson do Rosário Costa7 analisa as políticas de

saúde pública no Brasil entre os anos de 1889 e 1930 em seu trabalho Lutas urbanas e

controle sanitário: origens das políticas de saúde no Brasil. Costa (1986) não busca

apenas fazer um relato da evolução institucional da saúde pública. Ele busca também

analisar os momentos ou conjunturas onde a questão sanitária serviu como motivação para

que classes e grupos sociais agissem enquanto forças sociais. Costa enfatiza que as

políticas públicas tratavam a doença puramente como um fator biológico e descuravam

seus aspectos sociais. Objetivava-se, na visão de Costa, obter das classes subalternas uma

conduta racional.

Ainda na perspectiva desse mesmo autor, mediante as novas descobertas da

bacteriologia, a saúde pública ganhou um grande reforço no combate a enfermidades que

tolhiam o desenvolvimento da produção. As campanhas empreendidas por Emílio Ribas e

Adolfo Lutz em São Paulo e por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro nos primeiros anos do

7 O viés teórico adotado por Nilson do Rosário Costa em relação ao conceito de medicina social está

fundamentado nos trabalhos de George Rosen (1980) e Michel Foucault (1984). Outro autor brasileiro que

analisa as resistências populares na conjuntura da revolta da vacina sob o viés teórico de Michel Foucault é

Nicolau Sevcenko (1993).

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século XX, tinham, na visão de Costa, o intuito de abrir o comércio para o exterior e as

fronteiras para os imigrantes, nesse sentido, era necessário erradicar enfermidades tais

como a febre amarela. Com a comprovação da hipótese de transmissão pelo mosquito

aedes aegypti em Havana no ano de 1900, os médicos norte-americanos passaram a

acreditar que esse seria o único vetor pelo qual a doença seria propagada, fazendo com

que as ações se direcionassem para o extermínio do inseto e não para as medidas mais

gerais de saneamento urbano até então empregadas.

CONCLUSÃO

Conforme os argumentos expostos ao longo deste trabalho, concluo que a

doença não é uma entidade puramente biológica, tanto as patologias como as práticas

médicas sofrem uma influência cultural/social. Neste sentido, o conceito de doença pode

ser compreendido enquanto fenômeno biocultural (LÖWI, 2006), não isolado de um

contexto histórico e social mais amplo, passível, portanto, de ser historicizado.

A partir da análise dos argumentos de Leavitt e Tomes, inferi que o

desenvolvimento da bacteriologia alterou tanto a prática médica como a dos profissionais

de saúde, contudo, tal inflexão não teria um caráter tão radical, a ponto dessa nova ciência

não levar em consideração o contexto social. A teoria microbiana apontou para os mesmos

problemas elencados pelo paradigma anterior, a teoria ambiental. A circulação do ar e o

fluxo da água permaneceram como fontes de intervenção sanitária. Somente os gases

emanados dos esgotos é que deixaram de ser o foco principal da atenção em virtude da

colocação dos germes em evidência. No século XX há uma reconfiguração na saúde

pública, a educação popular e a higiene pessoal, apontados por Tomes, tornam-se os

protagonistas desse novo movimento, fazendo da esfera privada o locus privilegiado das

intervenções sanitárias.

Löwi concorda com Leavitt e Tomes no ponto onde a bacteriologia pode não

ter alterado de forma drástica, antigas ações sanitárias, como por exemplo, aquelas

efetuadas para o controle do cólera e da peste. No entanto, Löwi argumenta que, com

relação à febre amarela a situação foi diferente. As ações empreendidas no sentido de

debelar a febre amarela só teriam eficácia a partir da elucidação de sua etiologia e forma

de transmissão, sendo então engendradas as famosas campanhas de erradicação do

mosquito. Löwi apresenta quatro tipos de abordagens desenvolvidas para impedir o

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avanço da febre amarela: A primeira delas é a abordagem cívica, a segunda é a abordagem

comunitária, a terceira é a que ficou conhecida como um modelo vertical e hierarquizado

que preconizava uma dinâmica internacional, sendo a última, aquela que concilia práticas

empreendidas por engenheiros e educação popular. Essa quarta forma de abordagem foi

elaborada pelos franceses. Ela é o elo que ata o argumento da autora com os de Alain

Corbin, em virtude desse autor apontar as novas classificações e organizações odoríficas,

formadas entre os século XVIII e XIX, enquanto processos sociais e culturais construídos

menos por médicos do que por químicos e engenheiros.

A sociedade não estabelece uma relação com a doença somente para classificá-

la, mas sim para combatê-la, domesticá-la. Diversas são as interpretações historiográficas

a respeito das razões que levaram diferentes grupos sociais, em determinados contextos

históricos, a controlar os surtos epidêmicos de doenças como a febre amarela. Entre esses

motivos, podemos afirmar que a garantia de fluidez ao comércio marítimo, bem como, a

manutenção e renovação de uma força de trabalho, estavam entre os principais interesses.

Portanto, a ciência penetra o cotidiano das pessoas, alterando ou removendo costumes e

crenças, seja mediante resultados de laboratório que determinam a forma como um

portador do bacilo tifóide deve viver, seja pelas recomendações de profissionais da saúde,

cujas influências são perceptíveis nos ambientes domésticos ou mesmo pelos governos

que buscam respaldo em uma forma de saber concreto para justificar suas ações políticas.

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HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE BIOLOGIA: CONCEPÇÕES DESTE TEMA

EM ESTUDANTES DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS

Juliana Silvestre Santos

Fundação Helena Antipoff

Acadêmica de Ciências Biológicas

[email protected]

Raphael Junio de Carvalho Ferraz

Fundação Helena Antipoff

Acadêmico de Ciências Biológicas

[email protected]

Polyana Aparecida Valente Vareto

Professora da Fundação Helena Antipoff

Mestre em História das Ciências e da Saúde

[email protected]

Fernanda de Jesus Costa

Professora da Fundação Helena Antipoff

Mestre em Ensino de Ciências e Matemática

[email protected]

Resumo

A História e a Filosofia da Ciência (HFC) apresentam diversas dimensões e aplicações no

ensino. Nas últimas décadas a pesquisa em Ensino de Ciências vem evidenciando a relevância

do papel desempenhado pela HFC no ensino e aprendizagem de Ciências. O uso do enfoque

histórico e filosófico no ensino pode contribuir para que os alunos consigam desenvolver uma

compreensão mais crítica a respeito da ciência. Neste sentido, foi realizada uma pesquisa com

estudantes, do curso de licenciatura em Ciências Biológicas do Instituto Superior de Educação

Estadual localizada, em Ibirité, MG, para compreender o que estes pensam a respeito deste

tema, e se são capazes de aplicar os conhecimentos relacionados em sala de aula. Verificou-se

que reconhecem a relevância deste tema, mas encontram dificuldades em inserir esta

abordagem dentro da sala de aula. Acreditamos que trabalhar com esta temática no ensino

superior, poderá favorecer o processo de ensino-aprendizagem em Ciências.

Palavras-chave: História e Filosofia da Ciência, Ensino de Ciências, Estudantes de Ciências

Biológicas.

INTRODUÇÃO

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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A História e Filosofia da Ciência (HFC) apresentam diversas dimensões e

aplicações no ensino. Martins (2007) afirma que possui um amplo campo de estudo e diversas

pesquisas que vem construindo, ao longo do tempo, suas bases teóricas e suas especificidades.

Afirma ainda que constitui-se uma área do conhecimento com fortes e profundas implicações

para a didática em Ciências.

Neste sentindo a inclusão da perspectiva histórica no ensino de ciências é

fortemente defendida por diversos pesquisadores da área de ensino de ciências (CARNEIRO e

GASTAL, 2005). Concordamos com estes pesquisadores a respeito da importância de se

incluir HFC no Ensino de Ciências.

A relevância de se trabalhar o conteúdo de história e filosofia da Ciência no

ensino de Biologia vem sendo questionada a algum tempo, e ao longo dos anos, pesquisas na

área de Ciências vem apontando as contribuições que a utilização da História e Filosofia da

Ciência podem trazer relacionadas a melhorias no aprendizado do educando.

No final do século XIX alguns professores ingleses já incluíam temas

relacionados a História e Filosofia da Ciência em suas aulas, pois acreditavam que isso servia

como motivação para os alunos (SEQUEIRA E LEITE , 1988). Neste contexto, pode-se

inferir que a HFC apresentam diversas dimensões e aplicações no ensino. O uso do enfoque

Histórico Filosófico no ensino pode contribuir para que os alunos consigam desenvolver uma

compreensão mais crítica a respeito da Ciência (BASTOS, 1998).

Para aplicar a História e Filosofia da Ciência em sala de aula no ensino de

Ciências é preciso compreender como fazer uso dessa temática daí a importância e a

necessidade de se trabalhar a História e Filosofia da Ciência na formação do professor, para

que haja uma melhor compreensão do processo de ensino aprendizagem e para que sejam

superadas as maiores dificuldades encontradas pelos docentes na inserção dessa temática em

sala de aula.

A respeito da inserção da História e Filosofia da Ciência existem algumas

propostas e também alguns debates a respeito da maneira como a mesma deveria ser aplicada,

seja como disciplina específica, seja como tema transversal. No entanto o que muitos autores

concordam é que essa temática deveria ser aplicada nos cursos superiores de licenciatura

(GARCIA ET AL., 1980; BASSALO, 1992; PEDUZZI, 2001; STAUB DE MELO, 2005).

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De acordo com (PEREIRA, 2009) segundo (MARTINS, 2006) “ há carência de

um número suficiente de professores com a formação adequada para pesquisar e ensinar de

forma correta a História da Ciência”.

A importância de se trabalhar a História e Filosofia da Ciência também parte do

pressuposto de que o educando tende a seguir uma vertente a qual se pensa que a Ciência já é

um produto final, distante do cotidiano de cada um ou ainda, que somente os grandes gênios

podem fazer Ciência.

A inserção da temática História e Filosofia da Ciência pode demonstrar ao aluno

que o conhecimento científico está ligado ao seu cotidiano e a questões, políticas e culturais

que o cercam, a todo o contexto da social em que ele está inserido (CARNEIRO, 2005).

A História e Filosofia da Ciência ao fornecer informação contextualizada dos

conceitos e teorias científicas que prevaleceram em diversos momentos da História, facilita e

enriquece a compreensão conceitual dos alunos (DUARTE, 2004). Tudo isso facilita a

compreensão do educando em relação as teorias aprendidas em sala de aula.

“Podem humanizar as Ciências e aproxima-las dos interesses pessoais,

éticos, culturais e políticos da comunidade; podem tornar as aulas de

ciências mais desafiadoras e reflexivas permitindo, desse modo, o

desenvolvimento do pensamento crítico, isto é, podem contribuir para um

entendimento mais integral da matéria científica... podem melhorar a

formação de professores auxiliando o desenvolvimento de uma

epistemologia da ciência mais rica e mais autêntica, ou seja, de uma maior

compreensão da estrutura das ciências bem como do espaço que ocupam no

sistema intelectual das coisas” (MATTHEWS, 1995).

Para que haja estreitamento na relação aluno x ciências é preciso, que haja

entendimento, compreensão do que procede a definição dos conteúdos de ciências segundo o

currículo e, sobretudo, algumas reflexões a respeito da função do ensino de ciências para a

vida, para a sociedade e para o individuo enquanto cidadão.

Dessa maneira o artigo em questão, tem como objetivo compreender o que os

estudantes do curso superior de licenciatura em Ciências Biológicas pensam a respeito do

tema, e ainda se são capazes de aplicar os conhecimentos relacionados ao mesmo em sala de

aula durante sua prática docente.

Considerando a importância desta temática no processo educacional, se faz

necessário compreender o que os estudantes de Ciências Biológicas pensam e fazem a

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respeito do tema, na tentativa de propor alternativas futuras para facilitar o processo de

ensino-aprendizagem de ciências.

METODOLOGIA

Para que pudéssemos compreender a concepção dos alunos acerca da temática

deste artigo, foi aplicado um questionário contendo seis questões que pretendia verificar se os

alunos além de reconhecerem a importância da história e filosofia das ciências, seriam

capazes de abordarem esta temática dentro das salas de aula.

A primeira questão do questionário referia-se ao interesse dos estudantes em

relação ao tema: história e filosofia de ciências. Complementar a anterior, a segunda questão

pretendia verificar se os alunos cursaram alguma disciplina ou curso envolvendo a temática

história e filosofia das ciências, de forma a justificar o interesse dos alunos acerca da temática.

A terceira questão tinha por objetivo analisar a concepção dos estudantes com

relação à abordagem de elementos da história e filosofia das ciências nos ensino médio. Na

quarta questão, pretendíamos verificar a partir da experiência vivenciada como alunos e

futuros professores, quais seriam as possíveis dificuldades encontradas ao tentar abordar

elementos da história e filosofia da ciência no ensino médio.

Complementar a terceira questão, a quinta questão do questionário pretendia

verificar a partir da possibilidade da incorporação de elementos da história e filosofia das

ciências no ensino médio, em quais conteúdos da disciplina biologia poder-se-ia fazer tal

abordagem.

Fechando o questionário, a questão seis, era específica aos alunos que já haviam

iniciado sua carreira docente por meio de estágios. Esta questão tinha o intuito de analisar se

estes alunos tiveram a iniciativa de abordar elementos da história e filosofia da ciência nas

aulas de biologia.

O questionário foi aplicado a duas turmas de estudantes do curso superior de

licenciatura em Ciências Biológicas, de um Instituto Superior de Educação, situado no

município de Ibirité, Minas Gerais. Esta instituição faz parte da Fundação Helena Antipoff e

tem por objetivo formar professores. A primeira turma em que o questionário foi aplicado era

composta por estudantes do primeiro período do referido curso, enquanto a segunda turma,

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composta por estudantes que cursavam o sétimo período, visto que nesta instituição, a grade

curricular do curso de Ciências Biológicas, possui duração mínima de três anos e meio.

O tempo de aplicação do questionário foi de vinte minutos em cada turma. Após a

aplicação dos questionários, os dados foram analisados e discutidos mediante a literatura.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A primeira questão do questionário tinha o seguinte enunciado: “Você se

interessa pelo tema”? Observou-se que os alunos do primeiro período do curso, apresentam

um interesse maior pelo tema “História e filosofia da ciência” em relação aos alunos do

sétimo período. Em dados percentuais, da turma do primeiro período, 72% (GRÁFICO 1A)

dos alunos se interessam pela temática, enquanto na turma do sétimo período, apenas 10%

(GRÁFICO 1B) demonstra total interesse por essa temática. Nesta turma, a maioria dos

alunos, o que representa 80% dos alunos, demonstra interesse parcial pela temática.

Observou-se também que o índice percentual de alunos que não se interessam pela

temática foi maior na turma do sétimo período do que na turma do primeiro período. Na turma

dos alunos que cursam o último período do curso, este índice atinge 10% enquanto que na

turma dos alunos iniciantes do curso, este índice é de apenas 6%, conforme mostra os gráficos

abaixo.

GRÁFICO 1A GRÁFICO 1B

A partir destes dados, pode-se inferir que o processo de formação de

professores de biologia não tem favorecido o interesse por esta temática, já que no 1º período

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o percentual de interesse pelo tema é bem maior, quando comparada com alunos do 7º

período. Acredita-se que seja necessário a inserção efetiva desta temática no processo de

formação docente, considerando as vantagens que a HFC trás para o processo de ensino-

aprendizagem em ciências.

Dentro deste contexto acreditamos que o papel do professor de Ciências ao

trabalhar com este tema é também relevante, pois pode desenvolver determinadas habilidades

em seus alunos, contribuindo para a sua aprendizagem.

“Um professor de ciência histórica e filosoficamente instruído pode ajudar

os seus alunos a compreenderem exatamente como a ciência apreende e não

apreende o mundo real, subjetivo e vivido. Um professor sem essa instrução

deixa os estudantes com a infeliz escolha entre rejeitar por ser uma fantasia,

ou o seu próprio mundo ou o mundo da ciência” (MATTEWS, 1995).

Assim, o papel do professor neste sentido é de extrema importância, pois a

escolha do que será trabalhado em sala de aula, poderá contribuir para a aprendizagem dos

alunos. A exclusão de HFC do ensino de Ciências pode provocar alguns prejuízos para os

estudantes. Sendo assim, acredita-se que o processo de formação docente deveria favorecer o

interesse por esta temática, na tentativa de aprimorar o ensino de ciências.

A segunda questão que pretendia verificar se os alunos cursaram alguma

disciplina ou curso envolvendo a temática história e filosofia das ciências, de forma a

justificar o interesse dos alunos acerca da temática, tinha o seguinte enunciado: “Já cursou

alguma disciplina (na universidade) ou fez algum outro curso envolvendo História e Filosofia

da Ciência”? Notou-se que na turma do primeiro período, 97% (GRÁFICO 2A) dos alunos

não cursaram ou não fizeram cursos que envolvam a temática “História e filosofia da ciência,

enquanto apenas 3% destes alunos, cursaram disciplinas ou cursos que envolvam a temática

discutida.

Na turma do sétimo período, embora os alunos tenham demonstrado pouco

interesse pela temática, 70% (GRÁFICO 2B) destes cursaram disciplinas ou cursos que

envolvam temas relacionado à história e filosofia da ciência, conforme mostra os gráficos

abaixo.

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GRÁFICO 2A GRÁFICO 2B

A partir desta questão, pode-se inferir que o desinteresse gerado a partir da

formação docente destes estudantes de ciências biológicas não ocorre devido a ausência de

disciplinas específicas, pois a maioria dos alunos que cursavam o último período do curso,

afirmaram o contato com disciplinas específicas. Assim, pode-se inferir que os formadores de

professores se atentam a esta temática, mas os alunos não aumentam seu interesse apesar da

importância deste tema.

Acredita-se que os professores da referida Instituição de Ensino, consideram o

ponto de vista mais prático e aplicado da HFC, nesta situação ela é pensada tanto como

conteúdo das disciplinas científicas, quanto como estratégia didática facilitadora da

compreensão de conceitos, modelos e teorias científicos apresentados aos alunos (MARTINS,

2007).

Porém, apesar deste aspecto, os alunos não estão se interessando por esta

temática, seria interessante pensar em formas alternativas de se trabalhar este conteúdo,

considerando a sua importância.

Com relação à terceira questão, que tinha por enunciado “Você acha importante

que os elementos da História e Filosofia da Ciência estejam presentes no ensino médio”?

Através desta, pretendia-se analisar a concepção dos estudantes com relação à abordagem de

elementos da história e filosofia das ciências nos ensino médio. Verificou-se que na turma do

primeiro período, 94% (GRÁFICO 3A) dos alunos consideram importante que na grade

curricular do ensino médio, elementos da história e filosofia da ciência, estejam presentes.

Já na turma do sétimo período, 60% (GRÁFICO 3B) dos alunos consideram que é

importante conter elementos voltados para esta temática na grade curricular do ensino médio.

Observou-se ainda que nesta turma, 20% dos alunos, consideram que não é importante que no

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ensino médio, estejam presentes elementos da história e filosofia da ciência. Outros 20%

acredita que esta importância deve ser parcial, conforme mostra os gráficos abaixo.

GRÁFICO 3A GRÁFICO 3B

Os dados desta questão demonstram que os futuros professores sabem da

importância desta temática no ensino de Ciências. Estes sabem que o Ensino de Ciências

necessita da incorporação da HFC na medida em que isto aprimore a aprendizagem dos

alunos e demonstre para eles como é construída a ciência, afirmando a importância dos

aspectos culturais e sociais para esta construção. Com a utilização desta ferramenta no Ensino,

Bastos (1988) destaca particularmente a expectativa de que o uso do enfoque histórico possa

contribuir para que os alunos consigam desenvolver uma compreensão mais crítica a respeito

da ciência.

Os futuros professores se preocupam com a inserção desta temática, em

especial nos alunos do 1º período verifica-se um interesse pelo tema e ainda são congruentes

ao afirmar que a HFC é relevante dentro do ensino básico. Mesmo aqueles estudantes que não

se interessam por esta temática destacam a importância que ela apresenta no contexto

educacional.

Na quarta questão, pretendia-se verificar a partir da experiência vivenciada tanto

como alunos quanto futuros professores, quais seriam as possíveis dificuldades encontradas

ao tentar abordar elementos da história e filosofia da ciência no ensino médio. Esta mesma

questão tinha o seguinte enunciado: “Na sua opinião, quais as principais dificuldades para se

trabalhar com a história e filosofia da ciência no ensino médio”? Os resultados do primeiro

e sétimo períodos foram analisados juntamente sendo assim notou-se 51,17% dos alunos do

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primeiro e sétimo período do curso de licenciatura em Ciências biológicas acreditam que a

maior dificuldade para se trabalhar com o conteúdo de História e Filosofia da Ciência no

ensino médio é: a falta de interesse por parte dos alunos, como mostra o gráfico abaixo.

Além deste aspecto, relatam ainda que os alunos consideram este conteúdo difícil

ou irrelevante (4,69%), ressaltam ainda a questão da grade curricular e carga horária, entre

outros. Porém, pode-se inferir que os estudantes destacam aspectos que estão relacionados

com o aluno, sendo necessário cada vez mais, a inserção desta temática para que os alunos

realmente compreendam a importância da HFC no contexto educacional.

GRÁFICO 4

O desinteresse dos alunos por esta temática é o principal aspectos abordado pelos

estudantes de ciências biológicas, porém, ao incorporar estes conteúdos no ensino, pretende-

se demonstrar aos alunos que existe uma relação histórica, cultural e política com a história e

filosofia da ciência, relacionando que o que foi descoberto em determinados períodos foram

importantes dentro deste contexto e carregam aspectos do mesmo. Demonstrando assim, que

em todas as descobertas científicas existem aspectos culturais que não podem ser deixados de

lado. Sendo estes verdadeiros produtos de uma realidade cultural e social. Favorecendo assim,

o interesse destes por esta temática, e ainda pela ciência como um todo.

Ainda neste contexto, os alunos precisam compreender que a HFC desempenha

um papel fundamental na compreensão do papel que a natureza do conhecimento científico

apresenta na sociedade atual e ainda permite desenvolver a ideia de que a aprendizagem das

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ciências necessita ser acompanhada de uma aprendizagem sobre as Ciências (DUARTE,

2004).

Além dos aspectos expostos anteriormente, a História da Ciência permite

demonstrar aos alunos, conforme relatado por Duarte (2004) que as teorias aceitas atualmente

evoluíram em consequência de uma atividade humana, coletiva e que se desenvolvia em

determinados contextos sócio-históricos e culturais.

A História e Filosofia da Ciência ao fornecer informação contextualizada dos

conceitos e teorias científicas que prevaleceram em diversos momentos da história, facilita e

enriquece a compreensão conceitual dos alunos (DUARTE, 2004). Esta contextualização

permite que os alunos compreendam melhor o conteúdo que está sendo trabalhado. Assim,

pode-se inferir que o desinteresse pode ser diminuído quando a HFC é trabalhada

adequadamente.

Complementar a terceira questão, a quinta questão do questionário tinha o

seguinte enunciado: “Dos conteúdos usuais da Biologia do ensino médio, qual (ou quais)

você considera mais fácil trabalhado incorporando elementos da História e filosofia da

ciência”? Notou-se uma divergência significativa nas respostas dos alunos tanto do primeiro

período quanto do sétimo do curso.

Na turma do primeiro período, 37% (GRÀFICO 5A) dos alunos, não

responderam a questão, o que pode ser explicado pelo fato dos mesmos ter poucas disciplinas

específicas, na grade pertinente a este período. Entretanto, 19% desses alunos, consideram

que o conteúdo de genética é o mais fácil de ser trabalhado de modo a incorporar elementos

da história e filosofia da ciência. Outros 16% desses alunos, acreditam que “Evolução” é o

conteúdo que melhor se podem incorporar elementos desta temática. Já 13% dos discentes,

disseram que o conteúdo de citologia seria o ideal para incorporar elementos voltados para a

história e filosofia da ciência. Fisiologia humana, botânica e zoologia, foram conteúdos que

juntos somam 9% das respostas do total de alunos do primeiro período, conforme mostra o

gráfico abaixo.

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GRÁFICO 5A

Na turma do sétimo período, 40% dos alunos consideram o conteúdo de genética

o mais fácil para poder incorporar elementos da história e filosofia da ciência. Outros 30%

(GRÁFICO 5B) dos alunos desta turma, não responderam a questão. Conteúdos como

sexualidade, paleontologia e evolução, somam juntos 30% das respostas dos discentes.

Observou-se que a porcentagem dos alunos que não responderam esta questão, tanto no

primeiro quanto no sétimo período foram próximas. Observou-se ainda convergência nas

respostas dos alunos do primeiro e sétimo período com relação a escolha do conteúdo de

genética como mais fácil de ser trabalhado incorporando elementos da história e filosofia da

ciência., conforme mostra os gráficos abaixo.

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GRÁFICO 5B

A diversidade de respostas apresentadas pelos alunos demonstram as

possibilidades de se trabalhar esta temática em sala de aula. Trabalhar a história e filosofia da

ciência é de grande relevância e pode ser aplicada em qualquer disciplina, como

demonstraram os alunos.

Focando, o ensino de genética, que foi abordado pelos dois períodos, antes de

iniciar o conteúdo propriamente dito, seria interessante realizar um apanhando histórico sobre

Mendel, ou seja, o professor deve realizar um apanhando histórico geral, mas o mesmo deve

ser baseado em um contexto mais amplo, demonstrando que os cientistas são seres humanos

que estão inseridos dentro de uma sociedade e que as descobertas deles não fazem parte deste

contexto.

É importante que o professor realize esta atividade de forma consciente, pois

caso contrário, pode levar os alunos a construírem uma imagem na qual a produção do

conhecimento científico está limitada a eventos esporádicos e fortuitos, que dependem da

genialidade de cientistas isolados (CARNEIRO e GASTAL, 2005).

Neste sentido qualquer conteúdo, não apenas o de genética é possível fazer esta

contextualização histórica. Considerando, o conteúdo de evolução é possível demonstrar

diversos aspectos da história e filosofia da ciência. Pode-se fazer um apanhando histórico,

além disso, é possível mostrar que a ciência é construída por seres humanos, a qual está

sujeita a erros, demonstrando a importância de Lamarck. É possível mostrar que a ciência é

uma ciência em construção, não está pronta e acabada, pois o que Lamarck propôs foi aceito

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por um tempo, depois verificou-se que ele não estava correto, demonstrando que a ciência

está em mudança constante, não podemos dizer que existe uma verdade absoluta.

Mostrar para os alunos que a ciência está em construção é relevante para o

processo de ensino aprendizagem, na maioria das vezes, é demonstrado para os alunos que a

ciência é um conhecimento pronto, acabado e definitivo (CARNEIRO e GASTAL, 2005).

Outro aspecto relevante e que deve ser trabalhado em sala de aula é a

demonstração que a ciência é uma construção histórica, social e cultural. Neste sentido,

Carneiro e Gastal (2005) afirmam que na maioria das vezes os professores e livros didáticos

passam a ideia de que a ciência é hermética e que não sofre influencia dos aspectos

socioculturais de sua época. Esta ausência é um problema no processo de ensino-

aprendizagem.

A última questão do questionário que tinha o intuito de analisar se estes alunos

tiveram a iniciativa de abordar elementos da história e filosofia da ciência nas aulas de

biologia continha o seguinte enunciado: “Você como professor, já tentou trabalhar com

elementos da História e filosofia da ciência em suas aulas de biologia? O que você fez

exatamente? Que tipo de atividade realizou”? Observou-se que nesta questão, houve evasão

nas respostas. Todos os alunos tanto do primeiro quanto do sétimo período não responderam a

questão.

Os alunos do 1º período, não tinham como responder esta questão, pois a grande

maioria ainda não leciona ainda. Já os alunos do 7º período, demonstraram durante toda a

pesquisa um desinteresse por esta temática, o que foi percebido na maioria das questões, o que

justifica a evasão desta questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da analise dos resultados aqui apresentados e com base na revisão da

literatura, verificou-se que apesar de haver algumas divergências entre as opiniões dos alunos

do primeiro período e os alunos do sétimo, os estudantes do curso de Licenciatura em

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Ciências Biológicas reconhecem a relevância deste tema, mas encontram dificuldades em

inserir esta abordagem dentro da sala de aula.

Em especial, os alunos do 7º período demonstram um desinteresse maior em

relação a esta temática, seria interessante compreender como esta temática foi trabalhada

durante a formação, compreender alguns aspectos para evidenciar alguns problemas que

foram identificados neste questionário. Apesar deste desinteresse, reconhecem a importância.

Já os alunos do 1º período, demonstram um interesse significativo nesta temática,

seria interessante avaliar se esta irá diminuir com o processo de formação docente.

Acreditamos que trabalhar com esta temática no ensino superior, poderá favorecer

o processo de ensino-aprendizagem em Ciências, já que aqueles que hoje estão em sala de

aula como alunos no futuro se tornarão professores. Sendo assim, somos favoráveis que os

formadores de professores encontrem formas alternativas e adequadas de se trabalhar esta

temática, favorecendo a formação docente.

Referencias

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Curriculares Nacionais. Brasil: MEC/SEF, 1999.

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CARNEIRO, Maria Helena da Silva e GASTAL, Maria Luiza. História e Filosofia das ciências no

ensino de biologia. Ciência e Educação, v. 11, n. 1, p. 33-39, 2005.

DUARTE, Maria da Conceição. A história da ciência na prática de professores portugueses:

implicações para a formação de professores de ciências. Ciência e Educação, v. 10, n. 3, p. 317-331,

2004.

GARCIA, J. C.V.;OLIVEIRA, J. C.;MOTOYAMA, S. O desenvolvimento da história da ciência no

Brasil. In: FERRI, M. G.; MOTOYAMA, S. (orgs.) História das ciências no Brasil. São Paulo: EPU:

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MATTEWS, M. R. História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação.

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SEQUEIRA, Manuel e LEITE, Laurinda. A história da ciência no ensino – aprendizagem das

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STAUB DE MELO, A. C. Contribuições da epistemologia histórica de Bachelard no estudo da

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A EUGENIA COMO SALVADORA DA NAÇÃO: UMA ANALISE HISTÓRICA

SOBRE O PENSAMENTO DE RENATO KEHL NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DA

REPUBLICA NO BRASIL (1917-1930)

Júlio César Alves Silva

Mestrando em História na Universidade Federal da Paraíba

Pesquisador cadastrado (CNPQ) no Grupo de Pesquisa: Sociedade e Cultura no Nordeste

Oitocentista Atualmente é Tutor em Educação a Distância (Bolsista Capes) vinculado ao

Curso de Pedagogia a Distância da Universidade Federal da Paraíba

[email protected]

Resumo

É bem verdade que cada sociedade é fruto de intensas particularidades históricas,

municiadas, sobretudo pelos homens que percebem nas constantes transformações sociais,

culturais, políticas e/ou econômicas, um/vários meios de (re) escrever a história no seu

tempo. Percebe-se também que os discursos na escrita da história estão à mercê de (re)

leituras, onde as práticas discursivas estão sujeitas a ações de civilidade emanadas por

uma gama de discursos (des) contínuos amontoados sobre uma projeção de

intencionalidades de discurso arquitetadas pelos homens na história. Acerca dessas

intencionalidades de discurso, esse artigo tem como proposta analisar a eugenia para alem

dos discursos que a constituiu como uma “Ciência” no seu tempo; dessa forma propomos

nesse trabalho apresentá-la com uma proposta política para a “salvação” da nação

brasileira nas primeiras décadas da república discorrendo sobre as ideias e/ou escritos do

médico paulista Renato Kehl idealizador do pensamento eugenista.

Palavras-chave: Brasil, Eugenia, História.

1. INTRODUÇÃO

Eis que, o combate à desordem coletiva deve partir de medidas que visem à

saúde física, psíquica e mental dos indivíduos. Assim pretendem – pela

formação da consciência eugênica popular, com o auxilio da escola, da imprensa

e do radio os cultores da eugenia e da higiene mental. Pela difusão cultural em

seus vários aspectos, pelas leis eugênicas, no sentido de restringir a proliferação

de infra-homens, de semi-alienados e de dementes; pela higiene do corpo e do

espírito, - só assim se poderá esperar a cura paulatina do “mal estar universal”.

(KEHL, 1937, p.20).

Quando Georges Vigarello, em sua obra História da Beleza, cita a frase de

Jean-Louis Flandrin aos dizer que “Nossos sentidos só são perceptíveis quando envolto

em palavras” percebemos que os discursos na história não são produzidos aleatoriamente,

Luã Lança
Realce

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nem estão no ápice da objetividade sem uma e/ou mais intencionalidades, muitas vezes

associados a um conjunto de produções e/ou reproduções discursivas no seu tempo

(VIGARELLO, 2006, p.10). Dessa forma percebemos que os discursos produzidos ao

longo da história, sobretudo por certos indivíduos “descobertos” pelo historiador trazem

condigo indícios, deslocamentos, interpretações discursivas de uma época para outra.

A partir dessa reflexão percebemos que a sociedade contemporânea tem

presenciado nos últimos anos uma iminente tentativa de legitimação de certos discursos

que tentam homogeneizar certas apreciações, sentidos e condutas, municiados, sobretudo

por indivíduos e/ou entidades que se alto conclamam locutores (as) da “verdade” por via

de seus porta-vozes municiados por certas instituições, grupos diversos, eixos intelectuais,

partidos políticos dentre outros ajuntamentos sociais. Em suma são vozes potenciais que

muitas vezes trazem a tona ideias já discutidas, mas não acabadas no decorrer da história.

É mais ou menos a ênfase do “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua

volta” quando Michel Foucault fala em sua obra Ordem do Discurso, a ideia do retorno do

dito (FOUCAULT, 2006, p. 26).

De certa forma, a temática geral proposta nesse trabalho não é inédita, pois os

estudos sobre a Eugenia, suas ideias, proposições e questões relacionadas às vozes de

poder e as conjunturas políticas da qual ela se configurou nas ultimas décadas do século

XIX em vários países e, sobretudo o seu debate no Brasil nas primeiras décadas da

republica já foi objeto de incontáveis pesquisas, produzindo inúmeros debates, desde os

sociólogos com suas profícuas reflexões sobre os “retornos” de um discurso eugênico na

contemporaneidade aos historiadores não com menor ênfase, voltados para o estudo

epistemológico no âmbito da história da ciência e/ou da história da medicina no Brasil,

bem como das potencialidades discursivas que envolvem a história da saúde publica, para

com isso articular um possível plano1 arquetípico do qual a Eugenia se configurou

historicamente no Brasil.

Dessa forma pretendemos analisar a Eugenia não somente em suas

especificidades históricas como um pensamento de uma época e objeto de estudo para a

1 Tomamos a expressão “plano” não como algo arquitetado, planejado e/ou proposital junto a consequência da

causa e efeito, mas como um conjunto de métodos, procedimentos, debates e posicionamentos que foram

empreendidos para a aplicabilidade de ideias viáveis seja no viés político-institucional e/ou no viés

“legitimo/verídico” produzido por certos grupos para a sociedade na ordem do seu tempo, assim como foram os

discursos jurídicos e médicos sob o status de verdade/ciência em fins do século XIX e inicio do XX que

fortaleceu seus discursos de “verdade” no seu tempo. Sugere-se para uma melhor compreensão ler a importante

obra O Espetáculo das Raças (1993) de autoria da Antropóloga Lilian Moritz Schwartz, sobretudo o capítulo: As

faculdades de Medicina ou como sanar um país doente (p. 189-239).

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historiografia. Para além dessa ideia, percebemos que as proposições pensadas acerca da

eugenia em fins do século XIX serviram como uma espécie de suporte paralelo2 para

vários intelectuais discutirem os inúmeros projetos voltados para o desenvolvimento da

nação brasileira, e a “limpeza e/ou cura” de seus principais problemas, sobretudo pelos

discursos sócio-biológicos que ganharam vias discursivas em uma espécie de “darwinismo

social” ou “teoria das raças”3. O jurista Oliveira Vianna (1883-1951) foi um destes, que

se apropriou das ideias potenciais acerca da hereditariedade e a questão racial, vindo a

escrever importantes obras sobre o tema como Evolução do Povo Brasileiro de 1923 e

Raça e Assimilação escrita em (1932).

Ao refletirmos a temática da Eugenia, percebemos que a mesma oferece ao

historiador um profícuo espaço de análise, desde os discursos cientificistas produzidos,

fomentados por um arsenal de “verdades” desde o discurso do desenvolvimento

socioeconômico, do discurso higienista ao biológico, que permeou a vida social dos

indivíduos. A partir dessas questões, vislumbramos, por exemplo, como os discursos

eugênicos influenciaram as estruturas da vida social, ora como uma política de Estado de

contenção e controle sobre os indivíduos em sua época, ora como um discurso da

idealização e busca pela perfeição da estética corporal4 como propunha seus principais

propagandistas, sobretudo o médico paulista Renato Kehl “fio-condutor” 5 desse estudo.

Sobre o recorte temporal justificamos em nosso estudo o ano de 1917, pois foi

nesse período que Renato Kehl teve a sua primeira oportunidade para difundir suas ideias

eugenistas. Momento singular em que foi convidado por dois empresários estadunidenses

para ministrar uma palestra sobre a temática na associação Cristã de Moços na cidade de

São Paulo, vindo a publicar posteriormente pelo Jornal do Commercio. Nesse primeiro

momento percebemos que o médico eugenista pressupôs uma eugenia mais positiva,

voltada substancialmente para os discursos de reabilitação da sociedade brasileira por

meio da educação eugênica nas escolas, a intervenção do Estado por meio de políticas

2 Entendemos por suporte paralelo: As ideias eugenistas que se entrelaçaram, por exemplo, as políticas públicas

de saneamento básico, educação e saúde, como um dos pré-requisitos para o desenvolvimento da nação

brasileira. Discussões que geraram, por exemplo, uma legítima e consequente política de controle sobre os

indivíduos, como assinala Pietra Diwan, ao comentar a obra seminal do médico sanitarista Renato Kehl, Lições

de Eugenia, de 1929. (DIWAN, 2011, p.133). 3 SCHWARCZ, 1993, p.58 4 O discurso da Eugenia, como arte e como ciência, prometia eliminar todas as desgraciosidades, curar as

fealdades e alcançar a beleza para regenerar a nação. A morfologia artística, como meio para desenhar os

cânones da representação do corpo, imprimiria na tela ou na pedra esculpida corpos que funcionariam como

hipótese do modelo a ser esculpido no corpo da população. (FLORES, 2007, p.17). 5 Usamos o termo “Fio-condutor” para destacar a importância fundamental do pensamento de Renato Kehl para

a fundamentação e analise do pensamento eugenista no Brasil em nosso estudo.

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publicas na “limpeza” da cor, a contenção de outros males sociais como a demência, a

pobreza e feiura dentre outros problemas, sobre esse ultimo “problema nacional” Renato

Kehl defendeu uma política de melhoramento da estética e do embelezamento dos corpos

dos indivíduos alegando ser esse um padrão necessário para o melhoramento da nação, em

sua obra A Cura da Fealdade de 1923 percebemos a dimensão de sua proposta.

O ultimo recorte temporal que vai ate meados de 1930, o médico eugenista

mudará seu discurso passando a defender uma eugenia mais intensa e/ou positiva, voltado

semelhantemente as políticas norte-americanas, de esterilização de certos indivíduos

“indesejáveis” pela sociedade, como uma forma de conter a proliferação dos chamados

indivíduos “disgênicos”6 discorrendo também em seus escritos que o Estado deveria

aderir a uma política de controle matrimonial dos classificados pela “Ciência” como os

indivíduos “geneticamente” degenerados (DIWAN, 2001, p. 125-127).

Sobre o médico Renato Kelh sabemos que ele nasceu na cidade de Limeira

(SP), em 22 de agosto de 1889, filho de Joaquim Maynert Kehl e Rita de Cássia Ferraz

Kehl. Obteve, em 1909, o título de Farmacêutico pela Escola de Farmácia do estado de

São Paulo e, em 1915, o título de médico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro;

foi um profícuo produtor de discursos no seu tempo. Em nossa analise percebemos que ele

conseguiu, por exemplo, avançar na problemática discussão sobre a miscigenação,

procurando discutir para além da situação racial vista pelo mal do caldeirão multiétnico

(SANTOS, 2005, p.133) colocado por autores clássicos como Oliveira Vianna (1937),

Nina Rodrigues (1933) dentre outros, que consideravam o povo brasileiro como uma

nação hereditariamente degenerada, como propunha a maioria dos pesquisadores da

Faculdade de Medicina da Bahia. Percebemos que ele acrescentou a essas proposições,

não as desprezando-as, a proposição de sanar os males de um povo doente, proposta

semelhante a dos pensadores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (LIMA;

HOCHMAN, 1996, p. 33). Ao avançar nos discursos proferidos pelas Faculdades de

Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, Renato Kehl, evocou em seus escritos uma

ideologia de limpeza dos chamados “indivíduos degenerados” e nesse levante para sanar a

nação, ele esconjurou junto aos bacharéis de direito, uma necessidade preponderante de

atuação da classe médica na limpeza da sociedade e do extermínio desses “infra-homens”

(KEHL, 1937, p.16). É visível essa evocação política da classe médica pela batalha da

regeneração social, sobretudo ao visualizar a seguinte frase: “Chegou a vez do homem cuidar

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geneticamente do homem”, da genética só a classe médica tinha poder sobre esse conhecimento

(KEHL,1937, p.15).

A novidade dessas ideais concentrou-se na intervenção do indivíduo (Médico)

sobre a natureza, como uma forma de salvar a nação brasileira do atraso, evocando o

seletivo e contínuo melhoramento de indivíduos, construindo espaços de exclusão dos

considerados “imperfeitos” pela ótica eugênica, convocando a imprensa e a escola para a

caminhada pela eugenização da sociedade, percepções claramente expostas e defendidas

por Renato Kehl em uma de suas publicações no seu Boletim de Eugenia:

Do mesmo modo, em pedagogia, é indispensável conhecer, não só a

personalidade, como também a individualidade, antes de considerar o paciente,

que se vae educar. Os methodos educativos modernos baseam-se nas indicações

fornecidas pela psychologia. Isto não nos parece sufficiente. Torna-se necessário

também os seus caracteres somáticos e constitucionaes. A individualidade, como

a personalidade, - o modo de sentir, de agir, as tendências, os costumes, a

capacidade intellectual ou physica são reflexos desses caracteres innatos. Eis

porque, a educação esbarra impotente, em muitos casos, não conseguindo

domesticar um indócil, cuja constituição é resultante de um processo hereditário

irreversível. “Quem é bom já nasce feito (KEHL, 1929, p. 2)”.

É imprescindível discutir ainda que as obras de Renato Kelh trazem à tona uma

série de questões permeadas em vários espaços sociais de uma época, e que as mesmas

partem de construções sociopolíticas voltadas para determinados interesses; direcionadas

por uma possível normatização e institucionalização da opinião publica a partir de

construções discursivas. Uma ideia semelhante ao que Michel Foucault discute em sua

obra Os anormais (1974), acerca do anormal ora como um monstro cotidiano e também

como um monstro banalizado pela visão social de sua época. Para tanto, é ainda

imprescindível entender qual (is) os espaços de recepção histórica que Renato Kehl

discutiu suas ideias, desenvolver esse terreno histórico é tarefa necessária e fundamental

de todo o historiador.

2. HISTORIANDO O PERÍODO: DO CIENTIFICISMO A “LIMPEZA”

E CURA PELA EUGENIA (1870 – 1930).

No que se refere à interseção entre a medicina, as leis e a moral, os médicos

brasileiros do final do século XIX ao inicio do XX, teriam de fato conseguido

reformar a sociedade? Teriam efetivamente implantado as medidas preconizadas

ou, ao menos, consolidado as ideias que as fundamentavam?(ANTUNES, 1999,

p.271).

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A epígrafe que inicia esse segundo momento de nosso estudo nos apresenta

alguns aspectos da história institucional e política da classe médica no Brasil, por traz

desse discurso podemos perceber dentre inúmeras questões, a projeção institucional desse

saber como algo “legitimo e irrevogável” para uma nação que almejava o futuro e o

desenvolvimento nas ultimas décadas do século XIX. Acerca dessas projeções de

legitimidade institucional/política e discursiva nos jogos de verdade na história sabemos

que cada sociedade no seu tempo é fruto de ativas particularidades.

Acerca dessas projeções discursivas nos jogos de verdade na história, antes de

articular historicamente as particularidades sobre o pensamento eugenista no Brasil é

fundamental repensá-lo, sobretudo, como ele se constituiu genealogicamente nos

preâmbulos dos discursos médicos na transição das três ultimas décadas do império para a

república. Em O espetáculo das Raças, de autoria da antropóloga Lilian Moritz Schwarz,

referenda três momentos fundamentais para a nossa pesquisa. O primeiro deles, ao

alicerçar a discussão com base num saber que se constituiu a partir das inúmeras

necessidades de representação política interna e externa de um país como o Brasil, e da

legitimação institucional da classe médica a partir de 18297, e que após esse ano ate

meados de 1880 se entregou ao debate da higienização publica dos espaços, provocando

uma consequente mobilização da classe médica para intervir no dia-a-dia das populações

contaminadas pelas moléstias infecto-contagiosas, reflexo daquilo de Sidney Chalhoub

chamou de ideologia da higiene8.

Num segundo momento, em meados de 1890 já percebendo a ascensão

sociopolítica (SCHWARCZ, 1993, p.190) da figura do médico, compreendemos o

profícuo debate acerca da medicina legal, que foi um dos mais envolventes referenciais

discursivos do saber médico, ao tentar elucidar, sobretudo, através da construção do perito

médico, inúmeros estudos “sócio-biologicos” e “estatistico-culturais” acerca da

criminalidade genética dos chamados “indivíduos desviantes” especialmente aqueles de

descendência africana, onde a Faculdade de Medicina da Bahia foi a base de vários

7 A partir de 1829, com a fundação da Sociedade Médica, que a principio foi organizada nos moldes franceses, e

sobretudo após o decreto do projeto de Lei do Governo Imperial em 1832, perceberemos a institucionalização da

prática médica no Brasil e a constituição de saber médico como um conhecimento necessário para conter, após

1850, as recentes epidemias como cólera, febre amarela, varíola, entre outros males que assolavam o Brasil

Imperial e que chamou a atenção das autoridades imperiais para comissionar a classe médica a uma verdadeira

Missão higienista (SCHWARCZ,1993, p.198) 8 Em Cidade Febril (2006), sobretudo a partir da página 29, Sidney Chalhoub faz uma importante constituição

através da metáfora da doença contagiosa no imaginário histórico brasileiro em fins do século XIX, sobretudo,

na projeção necessária de uma ordem publica de manutenção, contenção e repressão do governo central por parte

daqueles indivíduos que ofereciam algum perigo de contágio a sociedade.

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estudos sobre o assunto, tendo o médico Nina Rodrigues um dos seus principais expoentes

(SANTOS, 2005, p. 133).

Contudo, o terceiro ponto descrito por (SCHWARCZ, 1993, p. 215) que tem

como epígrafe: Eugenia, ou “Quando é preciso cuidar das raças” contorna os debates dos

dois principais centros de estudo e pesquisa médica no Brasil até então, a saber, a

Faculdade de Medicina da Bahia, fundada em 1808, na cidade de Salvador, que se

debruçou nas pesquisas voltadas para um indivíduo congenitamente doente devido

especialmente à miscigenação, dentre outras disfunções como podemos observar na obra

Os Africanos no Brasil, de autoria de Nina Rodrigues (2008). Enquanto a Faculdade de

Medicina do Rio de Janeiro fundada no mesmo ano atentou para as pesquisas e

intervenções no âmbito da cura das doenças, a organização dos espaços e a contenção

problemática da higienização e sanitarização, ações necessárias para curar uma nação

doente geneticamente.

É sobre esses três ângulos que percebemos a construção discursiva do

“embrião” eugênico nos debates sobre a saúde publica e a salvação do povo brasileiro

nos primeiros anos da república. A novidade não está mais na percepção individualizada

do doente geneticamente e/ou do degenerado, muito menos na implementação de políticas

de limpeza, nem da reestruturação dos espaços; a novidade está na regeneração dos

indivíduos por meio das ideias eugênicas que chegavam ao Brasil com muita propriedade.

Mas o que propunha a Eugenia? Quais os seus projetos? Qual a sua estirpe9?E como ela

foi pensada no Brasil?

Em fins do século XIX, a Eugenia foi pensada a partir de várias reflexões,

municiada, sobretudo, pela teoria da seletividade natural apontada por Charles Darwin

(1809-1882) em sua obra A origem das Espécies (1859). O evolucionismo das espécies

ganhou status para um segundo debate na segunda metade do século XIX sendo

comumente difundido nos círculos intelectuais da Europa e nas recentes nações como

Estados Unidos, Brasil, dentre outras nações. Estava posto a proposição de um

darwinismo social das “Espécies humanas” segundo (FONSECA, 2000, p.17) o debate

evolucionista era tão intenso que filosofia e a religião naquele momento passavam a ser

entendidas apenas nos termos evolutivos. Tais preceitos ganharam foco com o

antropólogo, meteorologista e matemático Francis Galton (1822-1911), que estudou a

9 Tomamos o conceito de estirpe para não falar de “origens”. Tentaremos falar da “Estirpe” genealógica da

Eugenia como um saber (re) criado, (re) discutido e (re) ditado no plano das subjetivas potencias. Para melhor

compreensão ler (FOUCAULT, 2010, p.15-39).

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seleção natural e desenvolveu os preceitos da seletividade e evolução da espécie humana,

no intuito de melhorar/aperfeiçoar a raça, diante dessas experimentações Galton nomeou-

a de “eugenia” que quer dizer “bem nascido” segundo (BLACK, 2003, p.56).

As pretensões de Francis Galton estavam direcionadas para o desenvolvimento

de uma ciência voltada para a hereditariedade humana, no plano das instrumentalizações

cientificas que propunham identificar pela seletividade dos seres humanos, os melhores

membros da raça, por meio de estatísticas matemáticas, pesquisas biológicas e

experiências genéticas assim como se fazia com outros seres vivos, assim pretendia

Galton em sua tese, encontrar as “melhores características” genéticas e físicas para a

construção de uma melhor raça.

Em linhas gerais a teoria galtoniana tinha como ênfase, criar seletivamente

uma raça desenvolvida e tendenciosamente evolutiva, distante e independente dos

preceitos teocêntricos e subjetivistas da religiosidade cristã. Proposições estas que se

destinavam a disseminar as potencialidades dos indivíduos eugênicos para a formulação

de um mundo perfeito, mundo esse que, pela estética, inteligência e superioridade da raça

eugênica chegaríamos ao status que tanto defendia um dos principais propagandistas das

teorias eugênicas no Brasil, a começar pela valorização do próprio Galton:

Galton, naturalista, antropologista, médico, filósofo, foi uma das mais salientes

figuras dos tempos contemporâneos. Nascido em 1822, faleceu em 1911 com 89

anos de idade, dedicou a sua longa existência aos grandes problemas ligados ao

melhoramento do homem, sobretudo dos condizentes a hereditariedade humana,

e às pesquisas estatísticas sobre as condições físicas e mentais em suas relações

com a herança e o meio vital. Galton, que era primo celebre do naturalista

Charles Darwin (Pertence, portanto, a uma família de Escol), representa aos

demais, um dos tipos eugênicos mais extraordinários pela precocidade

intelectual, pelo equilíbrio físico e mental, pela inteireza de animo, e a alto

senso. A sua obra imperceptível culminou com a fundação do laboratório

eugênico, que tem o seu nome e está ligado à Universidade de Londres, ao qual

legou esplendida fortuna. Ensinando o homem a compreender a responsabilidade

da procriação e a procriar, sabiamente, Galton, realizou aos olhos do mundo, a

maior conquista dos tempos modernos. Os deuses perdem cada dia, os últimos

resquícios da divindade, mas, para substituí-los, surgem, felizmente, homens

como Galton, cuja religião, não consiste em apelos ao céu, mas, aos sentimentos

mais nobres do próprio homem. (KEHL, 1937, p.16 – 17).

Em sua obra Raça Pura: Uma história da eugenia no Brasil e no mundo, a

historiadora Pietra Diwan declara que a eugenia em sua definição galtoniana pressuponha

uma ciência da boa geração, e que seu intuito centrava-se na teoria do incentivo a

eugenição da sociedade, visando, assim na prática, o encorajamento e a reprodução de

indivíduos mais fortes e desejáveis socialmente. Pretendia-se, portanto, implantar uma

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política de incentivo a melhor linhagem dos seres humanos como afirma o próprio Galton:

“ [...] a possibilidade de incrementar a raça da nação depende do poder de incentivar a

produtividade da melhor linhagem. Isto é mais importante do que reprimir a produtividade

dos piores dos piores” (GALTON, 2005, p.182).A partir dessas ideias Francis Galton

fortaleceu ainda mais suas pretensões acerca das melhores linhagens proposta pela política

eugênica, e nesse curso, alguns grupos considerados “resíduos humanos” (DIWAN, 2011,

p. 143) deveriam passar pela “limpeza eugênica” em prol das gerações como pensava

Renato Kehl:

Os eugenistas não pretendem como pode pensar muita gente, perseguir os fracos

e os degenerados com medidas incompatíveis com os nobres sentimentos de

humanidade ou abandona-los impiedosamente. O fim da eugenia é exatamente

guiar “os bons intuitos”, tendo em conta beneficiar as gerações futuras. (KEHL,

1937, p.18).

Nas primeiras décadas da república no Brasil esse caldo de pensamentos

acerca dos projetos de nação e a solução para alguns problemas vitais como a degeneração

do povo veio à tona. Dentre esses ideais, o arquétipo da regeneração do povo brasileiro

foi um dos pontos de intenso debate, sobretudo entre a classe médica. Mas, que poder

tinha essa classe médica para pensar e desenvolver tal projeto? Uma importante reflexão

foi discutida por Michel Foucault em nível geral acerca do pensamento médico e sua

importância para a sociedade moderna entre os séculos XIX e XX, quando ele mencionou

a institucionalização da profissão médica como algo necessário, nacionalizado e

organizado para se entender as tramas históricas dos jogos de verdade (FOUCAULT,

1977). Algo semelhante à ordem clerical de investia sobre as almas os seus discursos

positivadores.

Teremos agora ao nível da saúde e do corpo a instituição do saber médico no

âmbito dos poderes disciplinadores, semelhante, por exemplo, ao que a igreja (instituição)

exerceu sobre as almas há séculos atrás (FOUCAULT, 1987). Percebemos que semelhante

aos magistrados ao longo do século XIX, a classe médica se enveredou dos com o titulo

de “os operários da arte de curar” assim como os eleitos da nação como pontua

SCHWARCZ (1993, p.141) em funções discursivas diferentes, não com menor ênfase e

com um intuito fundamental de ajudar o Brasil a desenvolver-se. Diferente da atividade

médica do século XIX que se concentrava na morte, perante as várias epidemias, o

pensamento médico da República terá como preocupação preponderante, pesquisar,

intervir e sanar os males da nação como assinalou (FOUCAULT, 1977, p.196).

A nação brasileira que se projetava teve na classe médica, uma “elite”

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fundamentada, não mais especificamente no problema afrodescendente ou no índio. Esses

grupos históricos foram incorporados a um corpus social, mas geral do qual foram

sujeitados ao recondicionamento eugênico, proposição defendida, sobretudo pelo

pensamento médico como um viés de melhoramento do povo para o progresso da nação.

SKIDMORE (1976) nos apresenta um breve retrato do debate médico acerca da

necessidade de saneamento dos espaços públicos e a regeneração da nação brasileira.

Não há como estranhar, dizia a proverbial e descantada indolência do brasileiro

em geral, nem a sua incapacidade para trabalhos que demandem vigor e

saúde....Não que ele seja assim por influência do clima e da raça.Ele é

sobretudo, uma vítima indefesa da doença, da ignorância e a deficiência ou do

convívio da alimentação. (apud SKIDMORE, 1976, p.202).

A citação postulada por Thomas Skidmore foi um artigo escrito por Belizário

Penna para Jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro em fins de 1916, para demonstrar a

“cara” do povo brasileiro, e a necessidade da intervenção médica sobretudo no “interior

do país , para sanar uma gente misevavelente pobre, iletrada, subnutrida e roída pela

doença” (SKIDMORES, 1976, p. 199).Dessa forma, nesse segundo capitulo procuraremos

abordar uma genealogia dos discursos eugênicos, sua historicidade, proposições e metas.

Num segundo momento, pretendemos discorrer como os discursos eugênicos chegaram ao

Brasil tomaram “corpo”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio de um panorama teórico discursivo, e no embasamento inicial de

nossas pesquisas tentamos apresentar um pouco de nosso estudo sobre o pensamento

eugênico no Brasil. Vale salientar que nossa pesquisa, ainda em construção, tem como

pressuposto discutir a nas décadas inicias da republica no Brasil sob a construção do

pensamento de Renato Kehl e seus escritos sobre o tema.

Qualquer tentativa de finalizar, fechar ou restringir outra visão e proposições a

esse estudo seria um equivoco de nossa parte. Dessa forma, tentamos ao longo de nossa

explanação apresentar um continuo projeto, que está ainda em estado embrionário e que

será(m) necessário (as) outras pesquisas, leituras e analises para um maior refinamento

conceitual e teórico sobre o tema.

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AGULHAS, BISTURIS E TESOURAS: DESSACRALIZAÇÃO E MEDICALIZAÇAO

DA ARTE DE CURAR O CORPO NA ILHA DE SANTA CATARINA – 1950

Marcelo Sabino Martins

Mestre em História

Professor da Universidade Federal de Rondônia - UNIR

[email protected]

Resumo

Este artigo tem o objetivo de discorrer sobre o processo que levou o discurso médico-

científico a se sobrepor ao discurso “religioso e popular” no tocante, ao que chamaremos aqui,

de “artes de curar”. Para tanto tomamos como lugar a região central da Ilha de Santa Catarina,

no Estado de mesmo nome, tendo como período a década de 1950 e como fonte parte da

bibliografia do médico e historiador Oswaldo Rodrigues Cabral. Da análise da bibliografia do

autor citado, é possível inferir que este processo teve seu ápice, ao menos na região focada, na

década de 1950. Porém, de modo geral, o avanço da medicina científica, percebido por meio

da dessacralização e medicamentação das artes de curar o corpo, possui raízes muito mais

profundas. Partindo-se do pressuposto fleckiano de que nenhuma descoberta científica é, de

fato, algo isolado, novo, mas sim, fruto de intersecções com conhecimentos e práticas

anteriores; tentaremos mostrar as apropriações feitas pelo discurso médico-científico das

práticas “populares e religiosas” de cura. Além de abordar o quanto a bibliografia produzida

por Cabral, em grande medida, desqualificava os curadores que utilizavam ervas e mezinhas

para curar, em detrimento das agulhas, bisturis e tesouras dos médicos oficiais.

Palavras-chave: Ciência, Medicina, Curadores.

Acredita-se que o processo que colimou com a dessacralização e medicalização

das artes de curar o corpo na Ilha-Capital1, embora tenha se acentuado e conquistado espaços

importantes a partir da década de 1950, possua raízes muito mais profundas podendo atingir

até o século XVIII.

Não é intenção deste artigo realizar uma História Geral das práticas de cura no

Brasil. É, no entanto, nossa pretensão discorrer sobre o processo que levou o discurso médico-

científico a se sobrepor ao discurso “religioso e popular” no tocante, ao que chamaremos aqui,

de “artes de curar” o corpo. Tomando-se como lugar a região central da Ilha de Santa

1 Chamaremos aqui de Ilha-Capital a parte central da cidade de Florianópolis, capital do Estado de Santa

Catarina, sul do Brasil. O município de Florianópolis ocupa terras insulares e continentais, a região de nossa

análise está situada na chamada área urbana denominada centro, localizada geograficamente na parte centro-

oeste da ilha.

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Catarina, no Estado de mesmo nome, tendo como período a década de 1950 e como fonte

parte da bibliografia do médico e historiador Oswaldo Rodrigues Cabral.

Não obstante o recorte temporal encontrar-se na segunda metade do século XX, e

o local a parte central de uma pequena ilha localizada ao sul do Brasil, é indispensável uma

breve passagem pelo contexto social brasileiro vivido na virada do século XIX para o XX, a

fim de embasar nossa argumentação de que, muito embora o discurso médico científico tenha

negligenciado as práticas populares de cura, muitas vezes vez uso desse conhecimento

tradicional para se firmar enquanto área de saber.

Tal como proposto por Ludwik Fleck:

Assim, vai se criando gradualmente uma estrutura que, partindo de um sucesso

historicamente único (o conhecimento), se converte, precisamente pela

particularidade das forças do pensamento coletivo, em repetitivo e, portanto, em

conhecimento objetivo e aparentemente real. (tradução livre).2

Pela análise de parte das obras do médico e historiador catarinense, membro

fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, Oswaldo Rodrigues Cabral3, é

possível constatar o quanto ele desqualifica as práticas de cura tradicionais. Aquelas

realizadas por pessoas comuns, do povo, quase sempre de origem africana. Mas, ao mesmo

tempo, pode-se perceber o quanto o novo discurso médico positivista, presente na escrita de

Cabral, apropria-se de elementos deste saber do povo, para se firmar e garantir seu caráter

científico.

Este discurso positivista ganha reforços e, ao que tudo indica, torna-se a principal

bandeira do movimento republicano no Brasil. Com a mudança do sistema de governo

monárquico para o republicano houve um forte investimento para caracterizar a República

como a portadora de progresso e, portanto, a única a colocar o país no mesmo patamar dos

países desenvolvidos e isso significava abolir as práticas “selvagens” de cura4.

2 FLECK, Ludwik. La génesis y El desarrollo de um hecho científico. Madrid: Alianza Editorial, 1986 pg. 192. 3 Foram analisadas, para efeito deste artigo, as seguintes obras de Oswaldo Rodrigues Cabral: Medicina,

Médicos e Charlatães do Passado. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1942. A

medicina Teológica e as Benzeduras: suas raízes na História e sua persistência no folclore. São Paulo:

Departamento de Cultura, 1958, Nossa Senhora do Desterro: 1 Notícia. Florianópolis: Lunardelli, 1979 e Nossa

Senhora do Desterro: 2 Memória. Florianópolis: Lunardelli, 1979. 4 Sobre este assunto ver: CUKIERMAN, Henrique Luiz. Yes nos temos Pasteur: Manguinhos, Oswaldo Cruz e a

história da ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará e FAPERJ, 2007.

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Pode-se inferir da leitura das obras de Osvaldo Rodrigues Cabral discriminação de

práticas antigas de cura, tais como as praticadas por curadores portadores de um saber

tradicional sobre ervas e rezas, quase sempre um saber transmitido oralmente.

A disseminação de idéias contrárias as práticas de cura praticadas por esses

curadores pode ter contribuído para uma mudança no trato das enfermidades do corpo

tornando-a atribuição quase que única e exclusivamente da medicina científica e dos médicos

tais como conhecemos hoje, formados em Universidades e Faculdades no Brasil ou no

exterior.

Todavia o conhecimento, e mais precisamente o “científico”, não se opõe de

forma total ao seu antecessor, o tradicional. Assim como as antigas práticas de cura e a

medicina moderna. Segundo Ludwik Fleck o conhecimento científico necessita das

descobertas anteriores para se sustentar como uma realidade. Firma-se e enraíza-se também

pela repetição5 do tradicional.

Tomando como base o pensamento fleckiano acima exposto, tentaremos discutir

em que medida o discurso médico científico usou do conhecimento tradicional sobre as

práticas de cura para se fixar e se tornar parte de uma realidade, ao menos, na parte central de

Florianópolis na década de 1950.

O cenário

Já nas primeiras décadas do século XX a região central da capital catarinense será

palco de uma forte transformação em seu cenário urbano, fruto de uma “emergência [...] de

práticas e discursos sobre questões relativas às reformas sanitárias e urbanas” que, segundo

uma parcela dos moradores deslumbrados com a República, deveria ocorrer na parte central

da cidade. Segundo Hermetes Reis de Araújo:

Data dessa época a implantação na região central das primeiras redes de água

encanada (1909), iluminação pública através de energia elétrica (1910) e a

construção de rede de esgotos (1913-1917). Algumas áreas da cidade foram

aterradas e drenadas, ruas foram calçadas, ajardinaram-se praças, foram construídos

e reformados edifícios públicos e, em 1919, um ano depois que a Inspetoria de

Higiene passou por uma reestruturação que lhe conferiu a denominação de

Diretoria de Higiene do Estado, proporcionando também uma ampliação no seu

campo de atuação, fundou-se a Sociedade de Medicina de Florianópolis e o

5 Ver FLECK, Ludwik. La génesis y El desarrolo de um hecho científico. Madrid: Alianza Editorial, 1986. pg.

192-193.

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Governo do Estado contratou os serviços da Fundação Rockfeller para o

saneamento do litoral catarinense e da ilha onde situa-se a capital. [...] Ainda em

1919 tiveram inicio as obras da primeira avenida da capital, a Avenida Hercílio Luz

– cuja denominação inicialmente prevista era a de „Avenida do Saneamento‟ – que,

quando concluída, impôs uma significativa mudança na paisagem urbana de

Florianópolis e representou também um momento de inflexão no já corrente

processo de demolição dos ajuntamentos das pequenas „casas de porta e janela‟ – os

„cortiços‟ – existentes na região central, herança ainda intacta da arquitetura

colonial açoriana, na época predominante no casario miúdo da cidade. 6

Esses “melhoramentos” na região central da Ilha-Capital visavam a atender aos

interesses e anseios de uma elite “desterrense” 7

que se aburguesara e que reivindicara que o

centro da cidade fosse civilizado/modernizado a exemplo do que estava ocorrendo, também,

com outras cidades brasileiras como Rio de Janeiro (então Capital Federal) e a cidade de São

Paulo. Mudanças essas carreadas, sobretudo, pela implantação da República dos Estados

Unidos do Brasil.

É possível inferir da leitura das obras analisadas de Osvaldo Rodrigues Cabral que

essa parcela “aburguesada” da região central da Ilha-Capital tencionava uma “civilidade” para

a capital da ex-província. Civilidade que, uma vez aplicada aos aspectos físicos da ilha-

capital, prédios, ruas, saneamento, deveria se estender, também, aos usos e costumes de seus

habitantes.

Civilizar os modos dos “compadres” e das “comadres”, como se chamavam as

pessoas do sítio8, sobretudo os costumes relacionados às práticas religiosas de cura. Um

conhecimento tradicional sobre ervas, rezas e procedimentos menos invasivos em comparação

aqueles realizados pelos médicos oficiais, tais como sangrias e mesmo pequenas incisões e

cortes.

Parece nascer, na metade do século XX, colimando com a implantação do

Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina – CREMESC, em 1958 uma aparente

oposição entre antigos e modernos. Aqueles representados pelos curadores, com suas

tradicionais receitas caseiras a base de ervas, banhos e infusões e esses personalizados pelos

doutores médicos com suas agulhas, bisturis e tesouras.

6 ARAÚJO, Hermetes Reis de. A invenção do litoral: reformas urbanas e reajustamento social em Florianópolis

na Primeira República. Dissertação (Mestrado em História) PUC/SP. São Paulo. 1986. pg. 65. 7 Leva-se em consideração que se trata de uma parcela da população burguesa da Capital Catarinense já em

formação desde quando a cidade ainda se denominava Desterro (em 1892 a cidade muda de nome para

Florianópolis em homenagem a Floriano Peixoto, então Presidente). 8 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro: 2 Memória. Florianópolis: Lunardelli, 1979. pg.

260.

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Além do que, tal como o pensamento de uma elite moradora da região central da

Ilha-Capital percebida nas obras de Oswaldo Rodrigues Cabral, pouco adiantaria uma cidade

limpa, moderna e “civilizada” se seus habitantes continuassem com práticas e atitudes

consideradas antiquadas, bárbaras, atrasadas e incivilizadas. Havia, portanto, a necessidade

de civilizar determinadas condutas, arraigadas, sobremaneira, na parcela mais pobre da

população, como as curas mito-mágicas ligadas, sobretudo a religiosidades de raízes africanas

ou a um catolicismo popular.

Parece tornar-se uma questão central para médicos e sanitaristas de todo o país

erradicar práticas de cura relacionadas a religiosidades ou crenças que tratavam o corpo como

sagrado, que na Ilha-Capital do Estado de Santa Catarina, eram mantidas, principalmente por

habitantes de regiões mais afastadas do centro.

Práticas que continuam a ser difundidas no auge do século XXI, não obstante todo

um esforço em bani-las e até mesmo criminalizá-las tal como se pode constatar pela presença,

no Código Penal Brasileiro de 1940, dos artigos 283 e 284, conforme transcritos a seguir:

Charlatanismo

Art. 283. Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

Curandeirismo

Art. 284. Exercer o curandeirismo:

I - Prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer

substância;

II - Usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;

III - Fazendo diagnósticos:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica

também sujeito à multa.

O conhecimento tradicional sobre doenças e curas passa a ser considerado, por um

discurso médico-cientificista e até mesmo jurídico, como características de uma sociedade

“bárbara e atrasada” típica de uma parcela da população que ainda possuía uma forte ligação

com uma “antiga” visão da cura do corpo fortemente ligada a aspectos religiosos.

Tal argumentação leva em conta, principalmente, a colonização açoriana da Ilha

de Santa Catarina, mas que pode se estender a todo o território nacional e os habitantes destas

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terras antes da chegada dos colonizadores europeus. O conhecimento indígena e,

posteriormente o africano, sobre doenças, é fortemente embasado em aspectos míticos e

religiosos e a cura dependia do domínio sobre forças ocultas da natureza e do sobrenatural, do

escatológico.

O método

Idéias civilizatórias e científicas, vão sendo disseminadas, principalmente, por

meio de livros e revistas, tais como os escritos por Oswaldo Rodrigues Cabral que ganham a

época projeção nacional e a Revista da Associação de Médicos de Santa Catarina, a

ACAMED.

Essas idéias vão paulatinamente proporcionando a dessacralização e

medicalização da arte de curar o corpo na Ilha-Capital, sobretudo no limiar da metade do

século XX. Elas são “dadas a ler” por e para uma elite que se aburguesara e adquirira modos

“modernos”. Esses novos padrões de vida abarcavam desde a moradia até manifestações

religiosas como a procissão do Divino Espírito Santo que ocorria, principalmente em

localidades mais afastadas da área central. O que, mais uma vez, é possível identificar nas

palavras de Oswaldo Rodrigues Cabral:

Acompanhavam a Bandeira do Divino a coroa, o cetro, às vezes a espada, e outros

atributos do Imperador, tudo em prata, sobre uma bandeja do mesmo metal. No

século XIX, até mesmo nos primeiros anos do presente, costumava sair,

acompanhando os Irmãos, a Folia – que ainda hoje apresenta o mesmo aspecto e a

mesma composição em certos distritos da Ilha e no interior do Estado, na zona de

povoamento lusitano. A Folia era uma pequena companhia de músicos e cantores,

sempre pronta a entoar, de casa em casa, ou grupo delas, melodia desafinadíssima,

com vozes ainda piores, acompanhadas pela detestável música arrancada de uma

rabeca, uma viola e um tambor. (grifos nossos)9

Causa estranhamento a utilização de tais adjetivos por parte do pesquisador

Oswaldo Rodrigues Cabral. Entretanto, a conduta do médico e historiador pode estar

embevecida da aura civilizadora e científica propalada pela República.

Essa idéia de progresso e avanço pela Ciência opondo-se ao conhecimento

tradicional é ainda mais intenso em duas de suas obras, a saber: Medicina, Médicos e

Charlatães do Passado. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1942, e

9 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro: 2 Memória. Florianópolis: Lunardelli, 1979. pg.

269.

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A medicina Teológica e as Benzeduras: suas raízes na História e sua persistência no folclore.

São Paulo: Departamento de Cultura, 1958.

Em ambas as obras, patrocinadas pelo Estado Republicano, Cabral assume

imparcialmente o papel de defensor do moderno discurso médico científico em oposição ao

bárbaro, ao atrasado conhecimento tradicional sobre curas e doenças praticado pelos

habitantes do interior da Ilha de Santa Catarina. Contudo ao passo em que parece menosprezar

o conhecimento e as práticas tradicionais, serve-se dele para reafirmar o novo discurso

médico científico.

Tanto na obra de 1942 como na de 1958, Cabral tenta conceituar e distinguir

benzedores, curandeiros e charlatães, os quais, segundo o autor, não poderiam em hipótese

alguma ser confundidos.

Segundo sua classificação o primeiro, os benzedores, teriam se originado com a

prática da “medicina teológica”. Suas rezas e gestos, se bem não faziam, mal não poderiam

trazer, afora os casos em que, retardando a intervenção do médico, acabavam por vitimar os

doentes. Os outros dois seriam mais “perigosos e perniciosos”, nas palavras do próprio autor.

Aplicando sua “medicina” não raro “imunda” mais atrapalhavam do que ajudavam a

população, que não tendo a quem recorrer, haviam de aceitar o auxílio destes.

As benzeduras e simpatias pertencem ao “populário” enquanto os

“medicamentos” ministrados pelos curandeiros e charlatães, de modo geral, pertencem ao

grupo das “cousas proibidas pela moral e pela higiene, constituindo casos de polícia”10

.

É possível identificar na escrita do autor uma tentativa de desqualificar as

atividades desenvolvidas pelo curandeiro, a quem o considera como um criminoso cujo único

intuito é prejudicar a saúde das pessoas.

Curandeiros e charlatães são, em última instância, tratados da mesma forma, por

Cabral, mas são eles diferentes. A própria Lei Penal assim, posteriormente, os considerou. O

charlatão é aquele que anuncia a cura por meio secreto e infalível, já os curandeiros ou os

10 As palavras entre aspas foram extraídas do livro A medicina Teológica e as Benzeduras: suas raízes na

História e sua persistência no folclore. São Paulo: Departamento de Cultura, 1958. A Edição do livro é do

Departamento de Cultura do Estado de São Paulo. O texto que apresenta a obra tem como título “Palavras

inúteis”, mas de inúteis elas nada tem. São úteis e servem a um propósito, não é um discurso neutro.

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praticantes do curandeirismo são aqueles que curam com gestos ou ministrando substâncias e

poções.

No entanto, ambos são importantes personagens da história da medicina, ao

menos na Ilha de Santa Catarina, que foram e são negligenciados em detrimento dos doutores

médicos do passado.

Foram os curandeiros, pois, pessoas que socorreram o povo da vila de Desterro,

conforme escreve o próprio Oswaldo Rodrigues Cabral:

Para os males maiores havia apelo para o curandeiro, branco entendido ou algum

negro velho, cujos sucessos eram contados e proclamados, mas de quem se

calavam, para evitar melindres e agravos, os casos maus. (1958, p. 13)

Os “melindres e agravos” entre tantos outros medos possíveis, de modo a não

alardear os casos em que o enfermo vinha a morrer, pode ser provocado pela possível

vingança do “negro velho”, que geralmente era considerado um “feiticeiro” capaz de

manipular as forças escatológicas e da natureza e lançar sobre seus infames uma maldição, ou

mesmo a morte.

O “branco entendido” a que se refere o autor, pode ser aquele, e geralmente era,

algum prático ou barbeiro a quem, a época da Colônia e Império, cabia

...sangrar, sarjar, aplicar bichas e ventosas, curar feridas e contusões, tratar de

luxações e fraturas. Mas, era vedado aos mesmos administrar medicação e tratar de

males internos, privilégio exclusivo dos doutores e licenciados coimbrões. Exceto

onde não houvesse destes... (CABRAL, 1942, p.12).

As licenças para atuar como cirurgiões, segundo Oswaldo Cabral (1942), não

eram nada difíceis de conseguir, bastava o candidato a tal submeter-se a um simples exame e

apresentar documentos que comprovassem ter ele freqüentado um Hospital pelo período de

quatro anos.

Por certo, haveria alguns que não agissem de boa fé, e que merecessem o título de

Charlatão, conforme classifica Oswaldo Rodrigues Cabral, mas nem todos. Contudo o autor,

historiador e também médico parece, ao que tudo indica, ter motivos para assim os classificar.

O referido autor é um “colaborador destacado” da Revista da Associação de

Médicos de Santa Catarina, a ACAMED, com publicações nas décadas finais da segunda

metade do século XX. A primeira edição da revista da ACAMED foi a obra, na íntegra,

Medicina, Médicos e Charlatães do passado. Portanto, ao que parece, um autor

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comprometido com o processo de medicamentação11

e profissionalização das práticas de cura

na cidade.

Oswaldo Rodrigues Cabral, possivelmente, estava imbuído da idéia de uma

Ciência salvadora e civilizadora, prometida pela República. Práticas de cura que remetiam ao

período Colonial e Imperial, ou que nada ou pouco tivessem de científico, deveriam ser

desqualificadas.

As idéias e os desdobramentos

Na contramão dessa idéia do Governo Republicano pautada na ordem e no

progresso, estavam os praticantes de curas alternativas mito-mágicas e religiosas como os

curandeiros, por exemplo, e suas práticas caseiras de cura.

Idéia desagradável ao governo que não deveria ser alvo de publicações, ou se

feitas, de forma negativa, de modo a torná-los invisíveis ou desacreditados. Práticas bárbaras,

atrasadas, relacionadas à Monarquia.

E o período compreendido entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras

décadas do XX, no Brasil, é propício para a dicotomia entre Monarquia e República. Ele está

inserido num contexto social bastante conturbado. Em última análise, é um tempo de

transformações para a sociedade brasileira até então estabelecida.

Há que se reforçar, também, que o período de transição do século XIX para o XX

são tempos profundamente

(...)marcados pelas impregnações das teorias evolucionistas e deterministas – que

aportaram por aqui – nos trabalhos dos intelectuais que construíam a idéia da Nação

e justificavam o novo regime republicano. Essas contribuições se traduziram na

política e nas teorias do branqueamento da população como recurso de viabilidade

dos projetos para o progresso do país, ao mesmo tempo em que justificavam a

hierarquia social excludente. 12

11 Cf. Houaiss (2001) “ato ou efeito de medicamentar(-se); medicação”. Medicamentar por sua vez pode ser

entendido como o ato de empregar “medicamentos ou de outros processos curativos, de acordo com determinada

indicação ou orientação; tratamento terapêutico; medicamentação”. Contudo utiliza-se o termo para designar o

ato de utilizar remédios industrializados, indicados ou não pelos médicos, com o objetivo de tratar do corpo. 12 OLIVA, Anderson Ribeiro. Sobre a cor da noite: teorias raciais e visões sobre o negro em meio aos debates

científicos da passagem do século XIX para o XX. In Revista Múltipla, Brasília, 8(14): 123, junho – 2003, p. 87.

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O ano de 1888, por exemplo, foi marcado pela oficialização, no Brasil, da

abolição da escravidão. É significativo para dar uma amostra do contexto da época, assim

como o ano de 1889 que marca a Proclamação da República no Brasil, sobretudo levando-se

em consideração que com a abolição são

Rompidas as estruturas institucionais e ideológicas que sustentavam a prerrogativa

senhorial de, em última análise, acorrentar o trabalhador ao processo de produção,

havia a tensão da necessidade de construção de uma outra teia de sujeição do produtor

direto. É neste contexto que se inventa, por exemplo, a idéia de suspeição

generalizada, um dispositivo de atuação do poder público visando amputar as

possibilidades de os produtores diretos não se encontrarem rotineiramente atrelados

ao processo de produção. Os pobres são construídos como o recheio da expressão

“classes perigosas”, e a impossibilidade de delimitar com precisão as fontes das

ameaças à ordem social é o próprio centro da definição de um novo projeto de

ordenamento social. 13

Fatos que marcaram os anos de 1896 e 1912, como levantes populares de peso,

possuem como líderes religiosos ligados às práticas de cura. Quanto aos anos, aquele

corresponde ao início da Revolta de Canudos, na Bahia, esse é o início da Guerra do

Contestado na Província de Santa Catarina. Ambos os movimentos têm em comum o fato de

apresentarem como líderes homens voltados ao misticismo, curandeiros, conselheiros,

espécies de guerreiros místicos. Eram eles: Antônio Conselheiro e José Maria,

respectivamente.

Atentar ao segundo movimento: a Guerra do Contestado. Entre 1912 e 1916,

caboclos catarinenses pegam em armas e se insurgem contra as tropas federais da república

brasileira. O conflito, ocorrido quase concomitante à Primeira Guerra Mundial (1914-1918),

foi praticamente esquecido pela imprensa da época e minimizado pelos livros de História.

Contudo, importa-nos, por ora, o fato de ter sido a crença num curandeiro, que

manteve os revoltosos unidos, conforme sugere a historiadora Ivone Gallo14

, da Universidade

Estadual de Campinas – UNICAMP.

Para controlar quaisquer insurgências que porventura possam ocorrer contra a

República Federativa do Brasil, um enorme aparato repressivo foi criado, com investimentos

em policiamento e em órgãos ligados a segurança pública além de estabelecimentos de penas

aos infratores das regras estabelecidas.

13 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial.São Paulo: Companhia das

Letras, 1996. pg. 20-28 14 Ver GALLO, Ivone. Contestado: O sonho do milênio igualitário. São Paulo: Editora Ática, 1981.

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Essas classes consideradas como perigosas e sempre propensas à transgressão ao

ordenamento (Leis), ora vigente, serão mantidas sob constante vigilância e em estado de

suspeição generalizada a todo tempo. Logo, as manifestações culturais, crenças, práticas de

“magia” e curas, personalizadas na figura dos curandeiros deverão ser também perseguidas e

combatidas.

Machado de Assis, no trecho abaixo, dá testemunho da importância política a qual

dispunham os curandeiros, sobretudo quando cita a grande valia que lhes é, ao menos por

enquanto, ter o governo da multidão. Desnecessário comentar o quão tal condição colocava os

curandeiros, ainda mais, na mira das elites governantes.

Curandeiros, por exemplo. Há agora uma verdadeira perseguição deles. Imprensa,

política, particulares, todos parecem haver jurado a exterminação dessa classe

interessante. O que lhes vale ainda um pouco é não terem perdido o governo da

multidão. Escondem-se; vão por noite negra e vias escuras levar a droga ao

enfermo, e, com ela, a consolação. São pegados, é certo; mas por um curandeiro

aniquilado, escapam quatro e cinco. (MACHADO DE ASSIS, apud CHALHOUB,

1996, p. 164-6)

Somada à capacidade de liderar e agregar multidões em seu entorno, os

curandeiros seriam ainda alvos de críticas ferrenhas por parte de todo um discurso médico-

científico que tentará de toda sorte desqualificar suas drogas e poções em detrimento do

conhecimento médico-científico. Discurso esse recém importado quer seja das grandes

indústrias farmacêuticas do velho mundo ou do forte vizinho do norte.

Os ventos esclarecedores do saber científico colocarão as práticas caseiras de cura

e a medicina popular num patamar de crendice. E, por conseguinte, a classe dos curandeiros

será acusada de charlatanismo e curandeirismo, sendo perseguida e esvaziada do lugar de

destaque que ocupava desde então nas comunidades pelo país afora, num processo quase que

de exclusão nesta nova hierarquia social que se inicia com a República.

Novos “padrões culturais” urbanos, ou “sistemas” ou “complexos de símbolos”15

,

passarão a compor as relações de poder e subjetividades que permeiam as

individualidades/coletividades desta nova sociedade brasileira que se pretende implantar. Eles

foram marcados profundamente, pelas idéias positivistas que surgem nas décadas derradeiras

do século XIX, sobretudo a de 1870, época

15 Ver , Clifford. “A interpretação das Culturas”. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

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entendida como um marco para a história das idéias no Brasil, uma vez que

representa o momento de entrada de todo um novo ideário positivo-evolucionista

em que os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental.

Por fim, o mesmo período compreende um momento de fortalecimento e

amadurecimento de alguns centros de ensino nacionais – como os museus

etnográficos, as faculdades de direito e medicina, e os institutos históricos e

geográficos – que só a partir de então conformarão perfis próprios, estabelecendo

modelos alternativos de análise.16.

Desta forma, o saber médico-científico, defendido pela Instituição Faculdade de

Medicina, com grande base européia entra em choque com a medicina popular praticada pelos

curandeiros. É este discurso médico-científico ocidental que será privilegiado em detrimento

das práticas tidas como “primitivas” de cura arraigadas do seio da população, sobretudo, junto

aos mais pobres.

Enquanto a medicina oficial européia se baseava em procedimentos extremamente

severos de sangramentos e purgação, com o uso de vomitivos e laxantes, práticas de

origem indígina e africana se mesclaram no Brasil numa espécie de medicina

cabocla, chamada por Sérgio Buarque de Holanda de “botica da natureza” e por

Alceu Maynard de “medicina rústica” Ela era praticada por raizeiros, benzedeiras,

garrafeiros e curandeiros em geral.17

Não bastasse ser considerado uma ameaça à ordem pública, um empecilho ao

desenvolvimento da medicina-científica oficial, o curandeiro, em última análise, seria ainda

perseguido por ser a lembrança viva do atraso representado pelas origens africanas e ate

mesmo como forma de negar os costumes e práticas dos próprios colonizadores portugueses.

Também houve uma forte negação das origens africanas pois que diante de toda a

forte herança de suas atitudes e todo os desdobramentos em que tal fato implicaria para a

realização, ao menos no campo das idéias dos intelectuais e produtores do conhecimento da

época, de uma nova e civilizada nação brasileira. Havia a necessidade de se branquear não

somente a pele do povo brasileiro, mas também seus usos e costumes, segundo o apregoado

no período.

16

SCHWARCZ, Lilia Moritz Schwarcz. O Espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e questão racial no

Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 14.

17

CARNEIRO, Enrique Soares. Filtros, mezinhas e triagas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã,

1994. p. 22.

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Em contrapartida, e na tentativa de se achar um representante digno que fosse

autóctone para o Brasileiro, existirá uma forte tendência, sobretudo dos “Homens da Ciência”

em valorizar os nativos do Brasil, os índios, que viviam aqui antes da chegada dos

colonizadores e dos africanos. Eles eram sadios e bonitos e seriam eles eleitos os verdadeiros

representantes da “raça” brasileira. 18

Durante um período relativamente grande, o que na Ilha-Capital, corresponde a

fins do século XIX até meados do XX, período onde são mais raros os anúncios dos médicos

e remédios, os médicos precisaram comprovar e atestar a eficácia de seus novos métodos de

curar o corpo.

Óbvio que o próprio tempo se encarregou de comprovar a eficácia do ponto de

vista biomédico dos métodos e remédios da medicina científica. Contudo, este mesmo tempo,

hoje, no limiar do século XXI, parece nos apontar para uma dívida social para com os

curandeiros, ou melhor, médicos do passado, que por muito tempo preocuparam-se em

transmitir conhecimentos sobre a cura de doenças.

Se a Ciência Médica trouxe a dessacralização e a medicalização das artes de curar

o corpo também a sacralização e o conhecimento tradicional sobre ervas e poções trouxe um

arsenal de conhecimento que serve ainda hoje, de objeto de pesquisa e estudo para a Medicina

que não pode ser negligenciado.

Ludwik Fleck já propôs que nenhum conhecimento é de todo novo, ele contém o

germe de algo há muito gestado, trabalhado. Todavia livros e documentos pareçam apontar

para a direção contrária, ao menos assim parece ter sido com a História da Medicina, na parte

central da Ilha de Santa Catarina, durante a década de 1950.

18 Conforme CUKIERMAN, Henrique Luiz. Yes nos temos Pasteur: Manguinhos, Oswaldo Cruz e a história da

ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará e FAPERJ, 2007.

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O ENSINO DE CIÊNCIAS PARA CRIANÇAS À LUZ DA HISTÓRIA DO MAGISTÉRIO PAULISTA

Mari Inez Tavares

Universidade Federal do Espírito Santo

Mestre em Ensino de Ciências Modalidade Química

[email protected]

Daisy de Brito Rezende

Universidade de São Paulo

Doutora em Química Orgânica

[email protected]

Resumo

O presente trabalho é uma tentativa de elucidar as razões que conduzem professores das séries

iniciais a não lecionarem ciências aos seus alunos, sob a perspectiva da história da formação

dos professores paulistas desde a fundação da Primeira Escola Normal. Para tanto, analisamos

os currículos escolares desde a época da fundação da Primeira Escola Normal Paulista até os

CEFAM, que estiveram em funcionamento até a década de 90. É importante analisar os

currículos escolares e conhecer como os docentes eram formados devido à relação desses

fatores com o ensino de Ciências nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Esses dados

contribuem para uma reflexão sobre as ações a serem desenvolvidas em cursos de formação

inicial e continuada de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental, em ciências,

que possam se mostrar efetivos para a modificação das práticas docentes quanto ao ensino das

ciências da Natureza nos anos escolares iniciais. O entendimento histórico apura e sensibiliza

o olhar do formador de professores para a compreensão de muitos problemas atuais sobre a

prática docente, de ordem epistemológica e cultural. Quem não conhece História, repete os

erros do passado (George Santayana).

Palavras-chave: currículo, ensino de ciências, formação docente

E no princípio era o caos: a formação de professores das séries iniciais em

São Paulo e no Brasil

As iniciativas pertinentes à formação de professores foram implementadas pelos

movimentos da Reforma e Contra-Reforma (séc XVI) e defendidas por Comenius, no século

XVII, ampliando o acesso da população à educação pública; essa institucionalização prospera

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no seio das idéias liberais de secularização e extensão do ensino primário a todos os extratos

sociais, atingindo seu ápice no âmbito da Revolução Francesa (1792). Nessa ocasião, esse

processo se concretiza pela criação de Escolas Normais, destinadas a formar professores

leigos, sob a responsabilidade do Estado. Com a consolidação dos Estados Nacionais (séc

XVII ao XIX) e a implantação dos sistemas públicos de ensino, multiplicaram-se as Escolas

Normais (TANURI, 2000), um enorme acréscimo à primeira escola destinada à formação de

professores, atribuída a São João Batista de La Salle que, em 1684, em Reims, fundou o

“Seminário dos Mestres” (DUARTE, 1986 apud SAVIANI, 2005).

Em 1759, com a expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses pelo Marquês de

Pombal, as escolas, vinculadas aos interesses da Igreja, foram substituídas por unidades

voltadas aos interesses do Estado. No Brasil, as políticas pombalinas objetivavam a

intensificação da produção comercial, daí o interesse em libertar os índios dos padres e torná-

los integrados à economia, como mão de obra escrava ou não. Por outro lado, o ensino

público em nosso país encontrava-se em meio ao caos e não havia, por parte do Império

brasileiro, interesse no ensino das primeiras letras (CUNHA, 1986 apud ZOTTI, 2006). Essa

falta de interesse institucional pelo ensino está associada ao tipo de economia predominante à

época: latifundiária, agroexportadora e escravista, que prescindia de pessoas letradas para

execução do trabalho (ZOTTI, 2006).

Com a crise da produção açucareira (séc XVII), desenvolveram-se outras

atividades no Brasil, como a mineração, colaborando indiretamente para o crescimento de

atividades econômicas complementares: a produção de alimentos, de manufaturas

relacionadas ao setor têxtil e do ferro. A urbanização se intensificou e surgiu uma classe

média composta basicamente de imigrantes portugueses e de indivíduos que se realizaram

economicamente através da mineração, que conduz essas pessoas a novas necessidades de

consumo e de formação (SODRÉ, 1996 apud ZOTTI, 2006).

Apesar dessas novas necessidades, não havia uma proposta de educação popular

na Colônia e o ensino de primeiras letras surge no Brasil apenas em 1772, com o

estabelecimento de algumas aulas de primeiras letras no Rio de Janeiro e nas principais

cidades das capitanias. As aulas régias, autônomas e isoladas, eram ministradas em escolas

carentes de um conjunto de estudos ordenado e hierarquizado, como aquele dos colégios

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jesuítas (ZOTTI, 2006). Essa educação era destinada apenas à formação da elite colonial

masculina.

O preparo dos professores no Brasil só adquire força após a Independência,

quando surgem rumores sobre a organização da instrução popular. A primeira lei geral

brasileira relativa ao Ensino Primário (Lei das Escolas de Primeiras Letras), aprovada em 15

de outubro de 1827, estabelecia que a instrução dar-se-ia segundo o método do ensino mútuo

(lancasteriano) e que os professores deveriam ser treinados nesse método nas capitais das

respectivas Províncias, à custa dos próprios ordenados. Essa lei não se efetivou devido à falta

de professores qualificados, remuneração adequada e fiscalização, dentre diversas outras

causas (MOACYR, 1936 apud SAVIANI, 2005; MARCÍLIO, 2005; ZOTTI, 2006). Pode-se notar

que a incompetência ou o descaso dos governantes quanto à organização de uma educação

laica e popular no Brasil não é recente.

Com a descentralização instituída pelo Ato Adicional à Constituição Imperial de

1823 (aprovada em 1834), o Ensino Elementar foi atribuído às Províncias, que também

deveriam cuidar da formação dos seus professores. A situação do ensino de primeiras letras

agrava-se, pois essas Províncias careciam de recursos para bancarem as despesas da educação,

caracterizando, desde então, a omissão do poder público no que se refere à educação pública

(ZOTTI, 2006; SAVIANI, 2005).

O interesse em se criar uma Escola Normal no Brasil surge quando começam a

faltar professores para atender as necessidades educacionais das elites, uma vez que os

professores de primeiras letras, nessa época, sabiam um pouco mais que seus alunos (TANURI,

2000; PENIN, 2001). Em São Paulo, a Escola, fundada em 1846, apresentava uma estrutura

precária, lembrando mais um mero curso preparatório do que um curso de formação inicial de

professores. O currículo era organizado para ser cumprido em dois anos e apenas um

professor lecionava todas as disciplinas. Durante seus 21 anos de existência, a primeira Escola

Normal formou apenas 40 professores, sendo desativada devido à aposentadoria de seu único

professor, o bacharel em Direito Manoel José Chaves (MARCÍLIO, 2005; TANURI 2000). A

segunda Escola Normal da Província de São Paulo surge sete anos após o fechamento da

primeira escola. Seu corpo docente, composto por dois professores bacharéis, inexperientes

em Didática, veio a encerrar suas atividades em 1878, por ordem do Presidente da Província,

que se justificou com o aperto do orçamento. Em uma tentativa de restauração, o Presidente

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da Província de São Paulo, Laurindo Abelardo de Britto (diplomado pela primeira Escola

Normal e bacharel em Direito) inaugura a terceira Escola Normal, em 1880. Seu currículo era

desenvolvido em três anos e constituía-se de cinco cadeiras (correspondentes às disciplinas

dos dias de hoje; TANURI, 2000; MARCÍLIO, 2005).

As matrizes curriculares da Primeira (1846) e da Segunda Escolas Normais

Paulistas (1874) demonstram a precariedade na formação do professor de primeiras letras

(Quadro 1). A formação dos professores se resumia ao ensino da Língua Nacional e da

Aritmética, que seria posteriormente reproduzido pelo futuro professor aos seus alunos. A

disciplina Cosmografia consistia apenas em uma descrição elementar dos sistemas

astronômicos do Universo. O currículo de 1876 era, praticamente, uma cópia do currículo de

1874, diferenciando-se apenas pela divisão em cadeiras (disciplinas) ministradas pelos

professores.

Primeira Escola Normal

Primária Paulista - 1846a

Segunda Escola Normal

Paulista - 1874b

Segunda Escola Normal

Paulista - 1876c

Lógica

Gramática Geral e da Língua

Nacional

Teoria e Prática de Aritmética

Noções Gerais de Geometria

Prática e suas Aplicações

Caligrafia

Princípios da Doutrina Cristã

Métodos e Processos de Ensino

Língua Nacional e Francesa

Caligrafia

Doutrina Cristã

Aritmética e Sistema Métrico

Metódica e Pedagogia com

Exercícios Práticos

Cosmografia e Geografia

História Sagrada e Universal

1a Cadeira - Língua

Nacional e Aritmética

2a Cadeira - Francês,

Metódica e Pedagogia

3a Cadeira - Cosmografia e

Geografia

4a Cadeira - História

Sagrada e Universal e

Noções Gerais de Lógica

a: Moacyr,1942, p.45;

b: Moacyr, 1942, p. 56;

c: Reis Filho, 1981, p.130.

Quadro 1 – Disciplinas da Escola Normal Paulista 1846 a 1876.

Dada a precariedade da formação dos professores, alguns Presidentes de outras

Províncias e inspetores de Instrução rejeitavam as Escolas Normais como instrumento para

qualificação de pessoal docente devido a seu desprestígio e aconselhavam, por ser mais

econômico, o sistema de inspiração austro-holandês dos “professores adjuntos”. Nesse

modelo, empregavam-se os melhores alunos como auxiliares dos professores já experientes,

preparando-os para lecionar de maneira totalmente prática. A escassez de uma bibliografia

pedagógica brasileira e as poucas traduções de material pedagógico europeu constituíam-se

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em um agravante dessa situação. Ainda nos dias de hoje, valoriza-se muito pouco os

pedagogos brasileiros como Paulo Freire. A base de formação de nosso sistema educacional,

sobretudo o paulista, é uma cópia mal feita dos sistemas educacionais europeus, sem a devida

adequação à realidade brasileira.

Ainda na segunda metade do século XIX, há a disseminação do Positivismo no

Brasil, marcado sobretudo pelos ideais republicanos e pela ascensão de uma burguesia urbana,

que vai ser decisiva na transição Império-República. Essa nova camada social era composta,

em parte, por intelectuais e outros membros da elite brasileira: jornalistas, escritores, tribunos,

professores, militares e religiosos que, influenciados pelas diversas formas de pensamento

oriundas dos grandes centros europeus (França e Inglaterra) e da América do Norte (Estados

Unidos), desejavam colocar o país em sintonia com o moderno espírito científico, pois

acreditavam que a ciência e a cultura haveriam de civilizar o Brasil, através de uma geração

científica. Os “intelectuais” de São Paulo, Antonio Silva Jardim, Cipriano José de Carvalho e

Godofredo José Furtado, modificaram a estrutura da formação do professor primário,

valendo-se mais dos aspectos culturais e pedagógicos do positivismo, concentrando interesses

na mudança de costumes e no preparo mental da sociedade para adequação ao novo tempo da

Ciência (PAIXÃO, 2000; MARCÍLIO, 2005).

Após a Proclamação da República, as províncias foram elevadas à categoria de

Estados federados. Em São Paulo, inicia-se uma ampla reforma da Instrução Pública, baseada

na promulgação do Decreto no 27, de 12 de março de 1890 (TANURI, 2000; SAVIANI, 2005

MARCÍLIO, 2005). Rangel Pestana, ao reformular a Instrução Pública do Estado, declarava:

“Todo o aperfeiçoamento da instrução será impossível se não tivermos bons mestres e estes

só poderão sair de Escolas Normais organizadas em condições de prepará-los” (REIS FILHO,

1995 apud SAVIANI, 2005). Apesar dos apelos por uma educação popular, ainda predominava

a educação acadêmica e aristocrática, reflexo da estrutura da sociedade. Os interesses da elite

latifundiária, atendidos nos primeiros anos da República (política do café-com-leite) e as

atividades econômicas na agricultura não careciam de uma população escolarizada (ZOTTI,

2006).

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São Paulo antecipou-se à Reforma Federal de Benjamin Constant (Decreto no 981,

de 8 de novembro de 18901) por intermédio de Caetano de Campos e Gabriel Prestes, que

lideraram a Reforma Paulista de 1890 (Lei 27, de 12/03/1890, alterada pela Lei 88, de

8/09/1892 e reformulada, em 7/08/1893, pela Lei 169) que previu a criação de quatro Escolas

Normais em todo o Estado, embora, na prática, no início, tenha funcionado apenas a da

Capital. Essa Reforma verticalizou os níveis de escolarização, que se iniciava aos 4 anos de

idade, no jardim-de-infância, e estendia-se até os 18, em escolas de 1o e 2

o graus

(correspondentes, hoje, ao Ensino Básico: conjunto dos Ensinos Fundamental, EF, e Médio,

EM).

A nova Escola Normal, em sua primeira organização, foi concebida por Caetano

de Campos com dois cursos: o preliminar, ou Escola Normal primária, e a Escola Normal

secundária, de quatro anos de estudo, que deveria preparar os profissionais para atuarem na

escola fundamental pública, universal, gratuita, obrigatória e leiga e para ambos os sexos,

idealizada por ele. Pela primeira vez na História brasileira, o magistério foi profissionalizado,

distinguindo-se de outras carreiras, tendo implicado na melhoria do preparo do professor

primário porque a formação passou a ser um critério básico para o ingresso na carreira,

resultando na queda do número de professores leigos (MARCÍLIO,2005).

O programa de estudos, agora reformulado, tinha por base o enriquecimento dos

conteúdos curriculares e a prática de ensino. Caetano de Campos, como diretor da Escola

Normal, foi incumbido de promover a reforma e descreveu as novidades ao governador do

Estado, em 1891, através de um relatório:

Novas cadeiras foram criadas. Às matemáticas juntou-se o estudo da

álgebra e escrituração mercantil; às ciências físico-químicas adicionaram-

se as ciências biológicas; o estudo da língua materna foi ampliado; e a

parte artística profundamente modificada no estudo do desenho, foi

alargada com a cadeira de música (solfejo e canto escolar); a educação

1 Esta Reforma foi a única que contemplou o ensino primário, dividindo-o em categorias: 1º Grau (7 a 13 anos),

2º Grau (13 a 15 anos). Havia uma preocupação metodológica que pode ser confirmada pela leitura do artigo 3º

§2º : “Em todos os cursos será constantemente empregado o methodo intuitivo, servindo o livro de simples

auxiliar, e de accordo com programmas minuciosamente especificados” (BRASIL, 1890, p. 3476). A proposta de

Benjamim Constant, foi criticada até mesmo pelos positivistas porque o modelo pedagógico de Comte não

previa a introdução de estudos científicos para meninos menores de 14 anos. As idéias do reformador eram

consideradas uma ameaça à formação da juventude e aos padrões da sociedade aristocrática rural e, na prática, o

Ensino Primário ficou restrito à escrita, leitura e cálculo. Outras reformas se sucederam na Primeira República

mas esse nível de ensino não foi contemplado. Permaneceu a concepção do ensino elitista do Império que

priorizava os Ensinos Secundário e Superior. (ZOTTI, 2006)

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física foi criada com as aulas de calistenia, ginástica e exercícios militares;

finalmente, a geografia foi separada da cadeira de história, para maior

latitude do ensino; e as ciências sociais contempladas com o acréscimo da

cadeira de economia política e educação cívica, na qual se dão noções de

direito e de administração (Reis Filho, 1995 apud Saviani, 2005).

Pelos relatos, pode-se notar que Caetano de Campos era um homem visionário

não somente pelas reformas que fez, mas, também, por sonhar com um curso normal superior

na capital. Essa idéia tomou forma na Lei no 88, de 1892, prevendo um curso superior anexo à

Escola Normal, que não funcionou (TANURI, 1979 apud EVANGELISTA, 2001). O Quadro 2

mostra as disciplinas que compunham a matriz curricular da Escola Normal de 1890. Física e

Química eram ministradas em um único bloco, a partir do segundo ano de curso, e a disciplina

Biologia estava presente somente no terceiro ano.

Escola Normal de 1890

Primeiro Ano Segundo Ano Terceiro Ano

Português

Aritmética

Geografia e Cosmografia

Exercícios Militares (para o sexo

masculino)

Prendas e Exercícios Escolares

(para o sexo feminino)

Caligrafia e Desenho

Português

Álgebra e Escrituração Mercantil

(para o sexo masculino)

Geometria

Física e Química

Ginástica

Música

Desenho

Economia Doméstica e Prendas

(para o sexo feminino)

História do Brasil

Biologia

Educação Cívica e Economia

Política

Organização das Escolas e

sua Direção

Exercícios Práticos

Quadro 2: Disciplinas componentes da matriz curricular da Escola Normal de 1890.

A partir deste momento, a mocidade das classes privilegiadas passa a ser exposta

a uma cultura escolar mais científica do que literária. Até então, o conhecimento e estudos

científicos eram restritos aos médicos, militares e engenheiros, conforme apontado por

Ribeiro (2006). Metodologicamente, o ensino das Ciências Físicas e História Natural, nas

escolas primárias, era uma reprodução, simplificada, das aulas de Física, Química e Biologia

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da Escola Normal, devido à influência do Positivismo, ou seja, treino e domínio através de

exercícios, sem preocupação com os fundamentos teóricos ou a epistemologia desse

conhecimento. O método intuitivo era considerado um avanço pedagógico nessa época. Seus

defensores postulavam que o ensino deveria ser algo concreto, sem abstrações, pois as coisas

que eram aprendidas sem serem vistas, intuídas, eram consideradas um peso para a criança. É

importante ressaltar que o Decreto no 981, de 8 de novembro de 1890, assinado por Benjamin

Constant, propunha, na grade curricular do Ensino Primário, o ensino das disciplinas Ciências

Físicas e Biológicas, conforme em seu Art. 3o:

[...]Lições de cousas e noções concretas de sciencias physicas e historia

natural;[...]

[...]§ 1º Este ensino será repartido em tres cursos: o elementar (para

alumnos de 7 a 9 annos), o médio (para os de 9 a 11) e o superior (para os

de 11 a 13), sendo gradualmente feito em cada curso o estudo de todas as

materias.

§ 2º Em todos os cursos será constantemente empregado o methodo

intuitivo, servindo o livro de simples auxiliar, e de accordo com

programmas minuciosamente especificados.

§ 3º As noções de agronomia, communs a todas as escolas, serão dadas com

maior desenvolvimento nas escolas suburbanas.

Gabriel Prestes, ao assumir a Escola Normal, em 1894, após o falecimento de

Caetano de Campos, introduziu a metodologia norte-americana, como sugerido por Horácio

Lane, que intermediou a compra, nos Estados Unidos, do material escolar de que carecia a

Escola Normal, além de indicar pessoal para lecionar novas matérias. Foram criadas três

Escolas-Modelo (Escolas-Modelo da Escola Normal da Praça da República, da Luz e Maria

José, a qual existe até os dias de hoje e é localizada no bairro da Bela Vista). Essas escolas

tinham a função de garantir a prática de ensino dos normalistas através de estágios de

observação e do treino de prática de ensino, atividades que dificilmente ocorriam.

O Quadro 3 mostra as disciplinas que compunham a matriz curricular da Escola

Normal de 1894. As disciplinas relacionadas às ciências naturais passam a ser ministradas a

partir do terceiro e quarto anos. É importante ressaltar que, a partir de 1894, as escolas

primárias foram divididas em complementares e preliminares e o mesmo procedimento foi

aplicado à Escola Normal. Os alunos aprovados no segundo ano podiam lecionar nas escolas

preliminares e os aprovados no terceiro ano nas escolas complementares. Desta forma, os

alunos passaram a preferir o curso preliminar por ter menor tempo de conclusão, porém saíam

da escola sem aprender os conteúdos básicos relativos às Ciências Naturais, embora esses

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223

temas também fossem ministrados nas escolas preliminares, conforme expresso no Decreto

144-B, de 30 de dezembro de 1892, Secção II, art. 56.

Como diz o velho ditado popular, "só se pode ensinar aquilo que se sabe". O

ensino das Ciências Naturais acabou ficando em segundo plano nessas escolas preliminares,

que praticamente retornaram ao ensino da língua nacional e da matemática, pois aqueles que

deveriam ter o domínio básico de Ciências Naturais para lecionar às crianças não tinham

contato com esse conhecimento, caso deixassem o curso Normal na segunda série, como de

fato acontecia. Havia o agravante das escolas preliminares mais centrais manterem o currículo

original proposto pelo Decreto 144-B/1892, enquanto, nas escolas mais periféricas, o

currículo reduziu-se somente às disciplinas relativas à língua e matemática, devido à carência

de material e professores. Ainda nos dias de hoje, no âmbito do sistema escolar público do

Estado de São Paulo, é comum que os professores freqüentem cursos de formação continuada,

elaborados sob a égide da Secretaria da Educação, que priorizam apenas a alfabetização e o

ensino da Matemática. Os dirigentes da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo e/ou

os responsáveis pela implementação de suas políticas, esquecem-se de que o ensino de

Ciências, além de contribuir para o desenvolvimento do raciocínio, também favorece o

domínio da linguagem oral e escrita, principalmente no que concerne à capacidade de

argumentação.

Primeiro Ano

Classe Masculina Classe Feminina

Primeira Série Segunda Série Primeira Série Segunda Série

Português

Francês

Aritmética

Geografia

do Brasil

Caligrafia

e Desenho

Escrituração

Mercantil

Português

Francês

Algebra

História do Brasil

Desenho

Escrituração Mercantil

Português

Francês

Aritmética

Geografia

do Brasil

Caligrafia

e Desenho

Escrituração

Mercantil

Trabalhos Manuais

Português

Francês

Algebra

História do Brasil

Desenho

Trabalhos Manuais

Segundo Ano

Masculino Feminino

Primeira Série Segunda Série Primeira Série Segunda Série

Português

Inglês

Geometria

Geografia

Geral

Desenho

Português

Inglês

Latim

Geometria e Trigonometria

Geografia Geral

Música

Português

Inglês

Geometria

Geografia Geral

Economia Doméstica

Música

Português

Inglês

Latim

Geometria e Trigonometria

Geografia Geral

Música

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Música Economia Doméstica

Terceiro Ano

Classe Masculina Classe Feminina

Primeira Série Segunda Série Primeira Série Segunda Série

Português (História

e Língua)

Latim

Mecânica

Astronomia

Elementar

Física

Agrimensura

Ginástica

Exercícios de

Ensino (Escola

Modelo)

Latim

Mecânica

Astronomia Elementar

Física

Química

História Natural

Ginástica e Exercícios

Militares

Exercícios de Ensino

(Escola Modelo)

Português (História da

Língua)

Latim

Mecânica

Astronomia Elementar

Física

Agrimensura

Exercício de Ensino

(escola-modelo)

Latim

Mecânica

Astronomia Elementar

Física

Química

História Natural

Ginástica e Exercícios

Militares

Exercícios de Ensino

(Escola Modelo)

Quarto Ano

Classe Masculina Classe Feminina

Primeira Série Segunda Série Primeira Série Segunda Série

Química

História Natural

Anatomia

História Universal

Pedagogia e

Direção de Escola

Economia Política

Exercício de

Ensino(Escola

Modelo)

Fisiologia e Noções de

Higiene

História Universal

Pedagogia e Direção de

Escolas

História Natural

Economia

Política e Educação Cívica

Exercício de Ensino

(Escola-Modelo)

Química

História Natural

Anatomia

História Universal

Pedagogia e Direção de

Escola

Exercícios de Ensino

(Escola Modelo)

Fisiologia e Noções de

Higiene

História Universal

Pedagogia e Direção de

Escolas

História Natural

Educação Cívica

Exercícios de Ensino

(Escola Modelo)

Quadro 3 - Grade curricular da Escola Normal (1894).

Na década de 1920, Sampaio Dória comanda a segunda grande reforma do ensino

em São Paulo, instituindo a escola primária alfabetizante de dois anos obrigatórios e gratuitos,

além da equiparação das Escolas Normais, extinguindo a Escola Normal primária, através da

Lei no 1750, de 8 de dezembro de 1920, que foi regulamentada pelo Decreto n

o 3.356, de 31

de março de 1921. Essa lei elevou o nível de formação do corpo docente, caracterizando um

retorno aos padrões defendidos por Caetano de Campos (MARCÍLIO, 2005).

Sampaio Dória, inspirado nos moldes da Escola Normal Superior da França, se

esforçou em criar uma Faculdade de Educação, que não foi concretizada. Criou apenas um

Curso de Aperfeiçoamento na Escola Normal da capital, que se tornou, mais tarde, o Instituto

Pedagógico de São Paulo (EVANGELISTA, 2001; PENIN, 2001).

Sampaio Dória defendia que as atividades práticas deveriam preceder a teoria. O

aprendizado se daria através do intenso manuseio de materiais e os exercícios escolares

deveriam de ser significativos para o aluno, por contemplar a realidade onde ele vivesse. A

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grade curricular da escola primária era composta das cadeiras (disciplinas) sumariadas no

Quadro 4.

Primeiro Anno Segundo Anno

Linguagem Oral

Leitura Analytica

Linguagem Escripta

Arithmetica

Geometria

Geographia e História

Sciencias Physicas e Naturaes.

Hygiene

Instrucção Moral e Crítica

Desenho

Musica

Trabalhos Mannuais

Exercícios Gymnasticos

Leitura

Linguagem Oral

Linguagem Escripta

Arithmetica

Geometria

Geographia

História do Brasil

Sciencias Physicas e Naturaes. Hygiene

Instrucção Moral e Civica

Calligraphia

Musica

Trabalhos Manuaes

Exercicios Gymnasticos

Quadro 4: Cadeiras da Escola Primária (1921)

O conteúdo programático da cadeira Sciencias physicas e naturais e higiene

compreendia, na primeira série,

Noções muito simples acerca das propriedades dos corpos:

transparencia, opacidade, brilho, dureza, porosidade, dilatação,

forma, etc.

Noções referente à utilidade das plantas e dos animaes.

Nossas culturas. Noções relativas às culturas da zona em que está a

escola. Utilidade da horticultura, arboricultura. Observações sobre

as plantas mais uteis e communs no municipio.

Criação e tentamento dos animaes uteis. Conhecimento de plantas e

animaes nocivos.

Conselhos concernentes á alimentação e ao asseio do corpo.

e..., na segunda série,

Noções muito simples sobre animaes e vegetaes nocivos. Productos

animaes e vegetaes aproveitados pelo homem. Molestia dos vegetaes

e dos animaes.

Reproducção vegetal Noções praticas de agricultura e arboricultura

Productos vegetaes proprias da zona em que está a escola. Festas

das arvores e das aves.

Os mineraes : e Ferro o cobre, o chumbo e prata o ouro, etc. suas

applicações. Productos mineraes: cal, vidro, louça, tijolos, telhas,

sal de cosinha, carvão de pedra, etc : suas applicações.

Noções sobre hygiene. O asseio, hygiene da alimentação e da

respiração. Insectos transmissores de molestias.Hygiene rural.

Efeitos nocivos do fumo e do alcool. Vaccinação contra a variola e

contra febre typhoide. Sôro anti-ophidico, anti-diphterico e anti-

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tetanico. Molestias contagiosas, lepra, trachoma e raiva; meios de

evitar e tratar.

Noções simples sobre o ar, a agua, sereno, o orvalho, a chuva, a

geada, a saraiva, os ventos, os raios, as marés, o relampago, etc.

Cuidado com os animaes domesticos.

Fica evidente que o Ensino de Ciências, nesta época, tinha um caráter utilitário e

higienista. Esse perfil ainda perdura, nos dias de hoje, em muitos livros didáticos de ciências

destinados às crianças das séries iniciais.

O artigo 198 do mesmo Decreto estipulava que, para cursar a Escola

Complementar, o aluno deveria ter, no mínimo, 11 anos. O tempo do curso era de três anos e

era composto das cadeiras apresentadas no Quadro5.

Primeiro Anno Segundo Anno Terceiro Anno

Lingua Vernácula e Callipsia

Arithmetica e Logicidade

Geographia do Brasil

Musica

Desenho

Trabalhos Manuais

Gramática

Lingua Vernácula e Calipsia

Latin

Francez

Arithmetica, Algebra e

Logicidade

Geographia Geral

Sciencias Physicas e Naturaes

Musica

Desenho

Gymnastica

Lingua Vernacula e Callipsia

Latin

Francez

Algebra, Geometria e

Logicidade

Historia do Brasil e Geral

Musica

Desenho

Gymnastica

Quadro 5: Cadeiras da Escola Complementar (1921).

Também na Escola Complementar era enfatizado que as "- Sciencias physicas e

naturaes: noções de physica e chimica, de anatomia e physiologia humanas, de zoologia,

botanica e minoralogia, apprendidas, sobretudo, pela observação e pela experiencia;

applicação à hygiene e à vida pratica".Esta preocupação com o ensino prático também

perdurava no ensino que era ministrado aos futuros professores da Escola Normal conforme

expresso no Quadro 6:

Primeiro Anno Segundo Anno Terceiro Anno Quarto Anno

Portuguez

Latin

Francez

Mathematica

Geographia e

Cosmographia

Historia do Brasil

Portuguez

Latin

Francez

Mathematica

Geographia do

Brasil

Physica

Portuguez

Latin

Chimica

Anatomia e Physiologia

humana e Biologia

Psychologia

Desenho

Literatura Vernacula

Hygiene

Historia Geral

Pedagogia

Didactica (Regencia de

Classe)

Desenho

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Desenho

Musica

Gymnastica

Desenho

Musica

Gymnastica

Practica Pedagogica

Musica

Gymnastica

Pratica Pedagógica

Musica

Gymnastica

Quadro 6: Cadeiras da Escola Normal (1921).

No ano de 1926, houve uma crise de falta de candidatos ao magistério em São

Paulo, devido ao elevado custo de vida e ao preço do café. Normalistas recém-formados

preferiam empregar-se nos bancos, comércio e indústria, por oferecerem melhores condições

e vantagens financeiras, provocando déficit de professores para regerem as classes livres. O

governo contornou essa situação rebaixando a duração do curso normal para três anos, através

do Decreto-Lei 2.269, de 31/12/1927. A formação de professores por escolas normais,

municipais e particulares, passa a ser rápida e massiva, prejudicando a qualidade da formação

desses profissionais a ponto da iniciativa privada contratar professores despreparados para

formar aqueles que seriam os futuros professores do ensino de base. Apenas a escola Normal

da Praça manteve seu curso em cinco anos (MARCÍLIO, 2005).

Posteriormente, a crise mundial de 1929 desencadeia, no Brasil, a crise cafeeira,

obrigando os cafeicultores latifundiários a dividirem o poder com a classe burguesa

emergente, desencadeando na reorganização dos aparelhos repressivos do Estado e na

ascensão de Vargas ao poder, em 1930, apoiado pelos tenentes e pela classe burguesa. Pela

primeira vez, é criado um Ministério da Educação e Saúde, que foi o ponto principal para

mudanças substanciais na Educação (FREITAG, 1986).

A Revolução de 1930 questionou o modelo agrário-comercial exportador de

economia que mantinha o Brasil, dependente da importação de produtos manufaturados e

submisso aos países desenvolvidos. Enquanto, nas três primeiras décadas do século XX, as

nações industrializadas alcançavam o capitalismo na fase imperialista, as nações subordinadas

passaram por graves crises e eram praticamente dependentes dos países desenvolvidos. No

Brasil, são atacadas duas causas do subdesenvolvimento: a política econômica dirigida para o

setor agrícola e a dependência em relação à economia externa (ZOTTI, 2004 apud ZOTTI,

2006).

O desenvolvimento industrial entrou na sua segunda etapa, exigindo novas formas

de produção e novas necessidades: percebeu-se que o povo necessitava de um mínimo de

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instrução e de qualificação para trabalhar como operários em fábricas ou para exercer

atividades comerciais. A urbanização também exige uma escolaridade mínima dos indivíduos,

pois o estilo de vida da cidade é bem mais complexo do que aquele do campo. Essa política

do nacional-desenvolvimentismo é caracterizada pelo Estado centralizador das decisões da

política econômica, o que irá influenciar a educação também, com o surgimento de diversas

normas, decretos, debates, congressos, fóruns, comissões e propostas de reformas. A educação

escolar é considerada, no novo modelo econômico, uma alavanca para o crescimento da

industrialização/urbanização.

Através do Decreto 4.888, de 12 de fevereiro de 1931, o curso normal foi

reorganizado e voltou a ser de quatro anos. Esse decreto também previa o funcionamento de

um curso pós-normal, para fornecer preparação de técnicos como inspetores, delegados de

ensino, diretores de estabelecimento de ensino e professores do curso normal. Os alunos da

escola Normal recebiam, no quarto ano, aulas de Química, Anatomia e Fisiologia em apenas

um semestre do curso em quatro aulas semanais. A nosso ver, era um curso extremamente

precário, pois não havia tempo hábil para aprendizagem e discussões. O ensino de Ciências

caracterizava-se, ainda, por uma abordagem prática, utilitarista e higienista.

O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, propunha a construção

ampla e abrangente de um sistema nacional de educação em todos os níveis, visando a

reconstrução da sociedade através da escola socializada. Na concepção dos Pioneiros, a escola

seria reconstruída com base na atividade e na produção, pois o trabalho em si mesmo seria o

fundamento da sociedade humana e a escola seria o meio de se restabelecer o espírito da

disciplina, solidariedade e cooperação entre os homens, uma obra social que ultrapassa o

quadro estreito dos interesses de classes (GHIRALDELLI JR., 2003).

Fernando de Azevedo deu atenção especial aos professores, ao estruturar o código

de Educação de 1933. Segundo Azevedo, o candidato ao magistério deveria, em primeiro

lugar, cursar a escola secundária, de cinco anos, para depois ingressar no curso de formação

profissional de dois anos. Essa reforma também contemplou a criação das seguintes escolas e

anexos: a Escola de professores, a Escola secundária, a Escola primária, o jardim-de-infância

e a biblioteca. A escola primária, o jardim-de-infância e as classes maternais anexas foram

colocados sob controle da Prática de Ensino (PIMENTA, 1992; MARCÍLIO, 2005).

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O Código de Educação em seu Capítulo IV, em seus artigos 237 e 238, versava

que:

[...]Art. 237 - O plano de educação primaria abrange: - Leitura, Linguagem

oral e escrita, Aritmética e Geometria, Geografia, Historia do Brasil e

Educação Civica, Ciência Fisicas, trabalhos manuais, desenho, caligrafia,

canto e ginástica

Art. 238 - O ensino terá como base essencial a observação e a experiencia

pessoal do aluno, e dará a este largas oportunidades para o trabalho em

comum, a atividade manual, os jogos educativas e as excursões escolares.

§ único - O uso de manuais escolares, indispensáveis como instrumentos

auxiliares do ensino, deve ceder o passo, sempre que possível, aos

exercícios que desenvolvem o poder de criação, investigação e critica do

aluno.

O ensino ainda se baseia na observação e na experiência do aluno e, pela primeira

vez, enfatiza a importância do uso de jogos educativos e do ensino em espaços não formais.

Pela primeira vez, comenta-se a necessidade de desenvolver a criação, investigação e crítica

do aluno. Neste período, a escola Normal da capital, agora denominada Instituto de Educação

Caetano de Campos, foi influenciada pela metodologia utilizada nos Teacher Colleges

americanos e seus cursos se voltavam à formação inicial, à formação continuada e à pesquisa.

Embora a proposta fosse interessante, mal chegou a ser instituída, pois foi seguida pela

criação, em 1934, da Universidade de São Paulo e sua Faculdade de Filosofia, Ciência e

Letras. Essa Faculdade passou a manter cursos de Licenciatura, para preparar os professores

para o ensino secundário e normal (EVANGELISTA,2001; PENIN, 2001).

Entre 1946 e 1947, são debatidas e criadas as Leis Orgânicas de ensino, nos níveis

secundário e primário (formação geral e profissionalizante), sendo a primeira vez que o

Estado intervém na organização da educação brasileira. Em 2 de janeiro de 1946, surge o

Decreto-Lei 8530, que traçou objetivos mais definidos para as Escolas Normais de todo o país

como: 1. promover a formação do pessoal docente necessário às escolas primárias; 2. habilitar

administradores escolares destinados à gestão das mesmas escolas; e, 3. desenvolver e

propagar os conhecimentos e técnicas relativos à educação da infância (MARCÍLIO, 2005;

ZOTTI, 2006).

Esse decreto não foi respeitado, pois, em 1950, Adhemar de Barros autorizou a

abertura da primeira Escola Normal noturna em Campinas, desencadeando a abertura de uma

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série de escolas semelhantes. Essas escolas improvisavam os professores das diversas

disciplinas com pessoas que não possuíam qualquer experiência ou qualificação para assumir

tais responsabilidades, resultando no rebaixamento acentuado do nível de ensino. Amparado

pela lei, qualquer um podia abrir uma escola normal particular, bastando construir ou alugar

salas de aula sem nenhuma infra-estrutura.

Em 1957, com a instituição da Lei 3739, que versava sobre a reforma estadual

paulista do ensino normal, tentou-se reorganizar a expansão da rede de Escolas Normais,

através da criação de exames vestibulares, da fixação do curso normal em três anos, além do

estabelecimento de um curso de aperfeiçoamento de mais um ano que poderia ser em:

educação pré-primária, ensino primário rural, ensino de deficientes mentais, auditivos ou

cegos, além de um curso de Administradores Escolares, com duração de dois anos

(MARCÍLIO, 2005).

Essa política marcou a década de 1960 em relação à formação de professores, com

a elevação do número de profissionais mal preparados para um mercado de trabalho saturado.

O final desta década culminou, mais uma vez, em uma formação deficiente do professorado:

currículos defasados, número elevado de disciplinas a serem estudadas que não estavam em

consonância com os problemas reais da profissão. A metodologia e a prática de ensino

ficavam em segundo plano e vários cursos Normais eram abertos sem Colégios de Aplicação,

levando à migração dos professorandos para outros estudos de nível superior. O aprendizado

pelos normalistas acerca das Ciências era restrito à Anatomia, Fisiologia, Higiene e Biologia

Educacional. Ficava clara a "biologização" e o viés higienista do ensino de disciplinas relativas

às Ciências da natureza a estes futuros professores.

Após muitos debates, a LDB 4024/61 não modificou o Ensino Normal, mantendo

a duração dos estudos e a divisão dos ciclos de antes, além de deixar a formação do professor

primário sob a tutela do Estado e do Distrito Federal (MARCÍLIO, 2005). Na verdade, o texto

definitivo da LDB, sancionado em 1961, baseava-se em um projeto de lei datado de 1948,

resultando em uma lei tardia e que não contribuiu significativamente para o real

desenvolvimento da Educação. O ensino de Ciências para crianças era ministrado a partir do

segundo ano ginasial e os temas eram relacionados, predominantemente, à Biologia.

A Ditadura Militar quis organizar uma escola operacional, que preparasse para o

trabalho, para o desenvolvimento do País e, principalmente, para a segurança nacional. O

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Decreto 50.133/68 do Estado de São Paulo estabeleceu a duração do Curso Normal em quatro

anos, além de permitir que a 4a série do Curso Normal fosse cursada por quem tivesse o

certificado de conclusão do Colegial, mediante aprovação em exame das disciplinas

pedagógicas. Esse novo rebaixamento da formação dos professores adquiriu repercussão

nacional, pois essa reforma paulista inspirou o que viria a ser a Lei de Diretrizes de Bases de

1971 (SOUZA, 2006; MARCÍLIO, 2005).

A Lei 5692/71 tornou caótica a formação específica do professor das séries

iniciais. A redução das disciplinas pedagógicas e o empobrecimento dos conteúdos

rebaixaram o nível de formação do professor das séries iniciais, gerando um grande

descontentamento a nível nacional. Várias pesquisas, estudos e debates procuraram revitalizar

o ensino normal ou equivalente, sem êxito (PIMENTA,1988; TANURY, 2000). O ensino de

Ciências passa a ser ministrado nas séries iniciais do 1o Grau, porém os professores não

possuíam formação suficiente para fazê-lo, pois a matriz curricular da Habilitação Específica

para o Magistério não fornecia subsídios para tal. A prioridade era formar professores que

fossem alfabetizadores e que possuíssem domínio básico da Matemática, embora os

documentos legais e complementares à LDB 5692/71 traçassem os objetivos de ensino

relativos às Ciências, como expresso no item c, do artigo 3o da Resolução n

o 8 (1/12/71) do

Conselho Federal de Educação (CFE), e no Parecer no 853/71 do CFE (IMESP, 1979), que o

acompanha. Esses instrumentos legais, por exemplo, o definem como visando “ao

desenvolvimento do pensamento lógico e à vivência do método científico e de suas

aplicações”. Esse mesmo parecer, no que se refere à fixação do núcleo comum para os

currículos do ensino de 1o e 2

o graus, estabelece quanto às Atividades, Áreas de Estudo e

Disciplinas que:

No início da escolarização, as Ciências só podem ser tratadas em termos de

atividades, isto é, como vivência de situações e exercícios de manipulação

para explorar a curiosidade, que é a pedra de toque do método científico.

Sempre que oportuno essas experiências já podem ser objeto de uma

incipiente sistematização partida mais do aluno do que do professor,

embora sob a direção estimulante deste último. À medida que se esboçam

certos setores ainda não claramente individualizados e tais sistematizações

se tornam mais freqüentes pelo amadurecimento natural do educando, já

temos a área de estudo (Ciências Exatas e Biológicas, p. ex.);... (IMESP,

1979, p.40).

E, com relação ao dimensionamento da amplitude do núcleo-comum, o caput e o

1o parágrafo do artigo 4

o da Resolução n

o 8 esclarecem que os conteúdos (matérias):

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[...] serão escalonados... da maior para a menor amplitude do campo

abrangido, constituindo atividades, áreas de estudo e disciplinas", sendo

que "nas atividades, a aprendizagem far-se-á principalmente mediante

experiências vividas pelo próprio educando no sentido de que atinja,

gradativamente, a sistematização de conhecimentos”. Ainda, quanto ao

ensino de ciências, o Parecer no 853/71 (CFE; IMESP, 1979) afirma que

esse deve ser tratado, até a quarta série do 1o grau (1o Ciclo do Ensino

Fundamental), como..."Iniciação às Ciências (incluindo Matemática),

tratadas predominantemente como atividades... (IMESP, 1979, p.52).

Em nível Estadual (São Paulo), a Indicação do Conselho Estadual de Educação no

1/72 (IMESP, 1979, p.159), organizou os objetivos educacionais de acordo com a taxonomia

de BENJAMIN BLOOM (1973), sendo que a organização do ensino de Ciências foi

sumariada no sub-item 3.2.3 desse documento, com a seguinte redação:

3.2.3 – Ciências

3.2.3.1 – Objetivos: - O ensino visará ao desenvolvimento lógico e à

vivência do método científico e de suas aplicações (Artigo 3º -item c da

Resolução 8/71 do CFE ).

3.2.3.2 – Conteúdo específico: - A Matemática e as Ciências Físicas e

Biológicas.

3.2.3.3 – Amplitude e extensão: - Nas duas 1as séries tratadas

predominantemente na forma de atividades. As percentagens abrangidas

especificamente pela Matemática deveriam ser mais altas na 3ª e 4ª séries

quando a sistematização do conhecimento começa a apresentar maiores

dificuldades, para em seguida, equilibrar-se em relação às outras áreas que

envolvem o estudo das Ciências Físicas e Biológicas e Ciências Sociais. A

título de exemplificação, sem prejuízo de outras soluções adotadas pelo

estabelecimento, reservar-se-iam os seguintes percentuais: 35% para a 1a e

2a séries, incluindo Matemática e Ciências, 15% para as 3a e 4a séries,

para Ciências e 25% para Matemática; 10% para as demais séries para

Ciências, e em Matemática: 20% para a 5ª, 15% para as 6ª e 7ª e 10% para

a 8a série." (IMESP, 1979, p.169).

Não poderíamos abordar essa discrepância sem, antes, conhecermos um pouco

mais sobre como se deu a formação de professores das séries iniciais nesse período SELMA

GARRIDO PIMENTA (1988), em seus escritos, relata que, da década de 70 até os anos finais da

década de 80 do século XX, a formação de professores para as séries iniciais (incorporada

pela Lei no 5.692/71) se caracterizou como uma habilitação que :

• apresentava-se esvaziada em conteúdo, pois não respondia nem a uma

formação geral adequada nem a uma formação pedagógica consistente;

• era uma habilitação de "2a categoria", para onde se dirigiam os alunos

com menos possibilidade de fazer cursos com mais "status";

• não havia qualquer articulação didática e de conteúdo entre as disciplinas

do Núcleo Comum e as da parte profissionalizante nem entre estas e também

entre a realidade do ensino de 1o Grau e a formação profissional e entre o

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3o grau (Pedagogia) que formava os professores para a Habilitação ao

Magistério;

• a Habilitação ao Magistério, conforme definida na lei, não permitia que

se formasse o professor e menos ainda o especialista (4o ano). A formação

era fragmentada;

• os livros didáticos disponíveis, freqüentemente, transmitiam um

conhecimento não-científico, dissociado da realidade sócio-cultural e

política, bem como favorecem procedimentos de ensino mecanizados e

desfocados das condições reais de aprendizagem dos alunos.

O cenário escolar predominante era o do tecnicismo que tinha tendência

administrativa no taylorismo. Cada uma dessas habilitações (Formação

Especial, isto é, Magistério na Pré-Escola; Ensino de 1a e 2a séries; Ensino

de 3a e 4a séries) apresentava uma relação de disciplinas, cuja adoção pela

escola seria obrigatória, de acordo com a área escolhida.

Assim, todos os professores formados entre 1977 e 1987, portanto, em um período

de 11 anos, foram influenciados pela tendência pedagógica do Tecnicismo, que sobreviveu, na

legislação do ensino, por mais de uma década, graças ao Regime Militar. Como a norma não

proibia que os alunos formados para lecionar na pré-escola também o fizessem nas classes de

primeira a quarta séries, essa super-especialização foi contornada pelas escolas. A imensa

maioria dos cursos de formação de professores adotou a especialização dirigida ao ensino pré-

escolar, o que habilitava seus alunos, após formados, a também atuarem nas quatro primeiras

séries do ensino de 1o

grau. Como, nessa especialização, não se incluía Conteúdo e

Metodologia de Ensino das Ciências, conclui-se que a maioria dos professores das séries

iniciais em exercício hoje não teve qualquer preparo, durante sua formação inicial, para a

abordagem de temas da área de Ciências.

Essa síntese das normas que regiam o curso do Magistério de Segundo Grau deixa

claro que apenas os professores que se especializavam no ensino para terceiras e quartas

séries tinham o curso de Metodologia do Ensino de Ciências em sua grade curricular. Nos

planejamentos das escolas estaduais não constava sequer uma disciplina que se relacionasse

quer ao ensino de Ciências para as séries iniciais, quer ao de outras disciplinas, como História

e Geografia. Apenas Língua Portuguesa e Matemática eram priorizadas nesses cursos de

formação. As demais disciplinas ficavam em segundo plano, fato que explica porque, ainda

nos dias de hoje, professores das séries iniciais priorizam as disciplinas de Língua Portuguesa

e Matemática, em detrimento das demais.

Em 1986, em uma parceria entre a Faculdade de Educação da Universidade de

São Paulo (USP) e a antiga Divisão Regional de Ensino da Capital (DRECAP-3), realizou-se

uma análise acompanhada de reflexão sobre os planos de Habilitação Específica para o

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Magistério (HEM) das escolas jurisdicionadas a essa DRECAP. O equivalente atual das

DRECAPs são as Diretorias Regionais de Ensino, vinculadas à Secretaria de Estado da

Educação. Na época, vários pesquisadores da área (por exemplo, Stela C.B. Piconez, Denice

Bárbara Catani, Elza Nadai, Jair Militão Silva, Manoel Oriosvaldo de Moura, Martha

Carvalho, Myriam Krasilchik, Nídia Nacib Pontuschka, Noemi Carvalho Neves, Olga Molina

e Waldir Cauvilla) participaram da análise dos planos de ensino de vinte e seis escolas que

possuíam HEM. Em relação à análise dos planos de Didática e Estágios Supervisionados

PICONEZ E CATANI (1986) analisaram oitenta planos de ensino (24 de segunda série; 20 de

terceira série; 20 de quarta série e 16 de estágios supervisionados). Quanto à Didática das

Ciências, Matemática e Estudos Sociais, observaram que os conteúdos desses planos não

apresentavam reflexão sobre o que ensinar e para que ensinar. Os professores eram munidos

de habilidades de planejar situações de ensino, independentemente da realidade de seu futuro

local de trabalho (onde muitas vezes só disporiam de lousa, giz e “saliva” sem qualquer

recurso material ou físico na escola para apoio a seu trabalho) e do domínio dos conteúdos

específicos. As analistas também questionaram a competência do próprio professor de

Didática, para tratar desses conteúdos. Segundo as autoras, um indivíduo formado pelo curso

de Pedagogia não teria formação adequada nas diferentes áreas específicas para ensinar

"formas de ensinar" essas disciplinas. Consideravam que, embora essa competência estivesse

estabelecida legalmente, dificilmente uma formação tão variada quanto a que o caso exige,

poderia dar-se de maneira satisfatória na prática, seja em um curso de Pedagogia seja em

quaisquer outros currículos que se queiram implantar, pelo menos caso se contemplem cursos

de Licenciatura de quatro anos. Em Valência (Espanha), os futuros professores das séries

iniciais são formados na “Escola de Maestros”, de nível superior. Lá recebem instrução em

Didática Especial, onde têm aulas com professores especialistas em cada área do

conhecimento. No caso de Ciências da Natureza, por exemplo, têm aulas com um professor

formado em Ciências e que fez especialização em Didática do Ensino de Ciências, o que é

diferente do que ocorre no Brasil, onde se tem um professor generalista que ensina Didática.

KRASILCHIK (1986), ao analisar os planos de Física, Química, Biologia, Programas de Saúde,

Biologia aplicada à Educação, Nutrição e Higiene do Pré-escolar, de 25 escolas da mesma

DRECAP-3, depreendeu que:

as grades curriculares, embora apresentassem diferenças, em geral, têm,no

primeiro ano e no segundo anos, duas aulas semanais de Física e Química.

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após o primeiro ano, Biologia era ministrada sob a forma de Programas de

Saúde, Biologia Aplicada à Educação, Nutrição e Higiene no

Desenvolvimento do Pré- Escolar. Ficava compreensível de que era um

artifício das escolas para atenderem às exigências legais, mas a

programação ficava descontinuada e em alguns casos superposta,

principalmente nos tópicos de tópicos da Reprodução e Nutrição;

nos planos haviam incoerências entre os objetivos propostos a nível geral,

que enfatizam a análise do processo de investigação da ciência, e os

objetivos específicos e os conteúdos, que denotando uma preocupação maior

com a transmissão de informação;

que as evidências de preocupação com a formação do professor eram

praticamente ausentes, pois não foi possível identificar qualquer esforço de

integração, ou coordenação, entre as disciplinas ou evidenciar qualquer

tentativa de coordenação das disciplinas científicas com as outras

disciplinas, notadamente Didática, Prática de Ensino e Comunicação e

Expressão. Embora se fizesse referência à relação ciência e sociedade, as

propostas de aula não refletiam esse enfoque e, ao contrário, repetiam-se os

itens da maioria dos programas de cursos de 2º Grau, além de poucas

menções a visitas, excursões e atividades fora da escola. As metodologias

mais presentes nos planos são aulas expositivas, seminários e laboratório.

Como os programas eram compostos de uma concepção tradicional de

bom nível, aparentemente a principal meta dessas escolas fosse a

preparação, não de professores para as escolas de Ensino Fundamental,

mas sim de vestibulandos supostamente competitivos.

Krasilchik (1986) sugeriu, ainda, que o currículo das disciplinas científicas fosse

modificado segundo algumas condições de contorno, a saber: abrangência, equilíbrio e

continuidade. Esses parâmetros podem ser definidos como:

abrangência: devem-se considerar os conceitos básicos a serem conhecidos

pelos alunos para que possam ter uma visão adequada da ciência,

dos processos usados na pesquisa científica e da relação ciência, tecnologia

e sociedade.

equilíbrio: as várias disciplinas devem ser articuladas de forma a permitir

que os alunos tenham uma visão balanceada da ciência atual.

continuidade: as bases do conhecimento científico devem começar a ser

estabelecidos desde a escola primária, pois o Ensino das Ciências deve ser

um processo contínuo; assim, o professor primário deve estar

adequadamente preparado para dar essa fundamentação à criança, da qual

depende o aprendizado posterior.

Embora essa análise tenha abrangido apenas uma parte das escolas que possuíam

HEM (no caso, somente as escolas pertencentes à DRECAP-3), pode-se ter uma idéia sobre

essas Habilitações. Na verdade, esses cursos não formavam e nem especializavam os futuros

professores.

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Devido à gravidade desta situação, a partir de 1982, a Secretaria da Educação do

Estado de São Paulo realizou uma série de estudos para revitalizar a HEM. Vários encontros

de educadores foram realizados, por iniciativa do governo, com o intuito de debater e procurar

soluções para a questão. O Projeto Ipê, uma dessas iniciativas, vigorou no período de 1984 a

1992, capacitava professores para alfabetização. As propostas curriculares, construídas entre

1986 e 1987, foram distribuídas na rede de ensino a partir de 1988, consolidando assim a

reestruturação curricular do ensino de 1o e 2

o graus iniciada em 1983 (SOUZA, 2006):

As propostas curriculares não atingiam o professor que estava na

ativa na rede porque foram construídas supondo um professor

estudioso e um intelectual. Um professor-leitor que tivesse domínio no

campo pedagógico em sua área de conhecimento (Souza, 2006).

No governo Franco Montoro, ocorre nova reforma da HEM eliminando a

compartimentalização e organizando o curso em um só bloco, para preparar o professor da

pré-escola à 4a série do 1

o grau, além de aumentar a instrumentação pedagógica. Mesmo assim

os resultados não foram dos melhores.

Com o objetivo de diminuir, ou até mesmo sanar, o problema da formação de

professores das séries iniciais, foram criados, no Estado de São Paulo, os CEFAMs – Centros

Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério – pelo Decreto 28.089, de

13/01/1988. A prioridade nos CEFAMs era, conforme o artigo primeiro do citado Decreto,

dar prioridade efetiva à formação dos professores de pré-escola até a 4a série do primeiro grau

e aprimorar a formação dos professores que atuavam na HEM. Os alunos desses centros

estudavam em período integral e recebiam uma bolsa-auxílio durante sua formação. Embora

houvesse uma grande preocupação em relação aos estágios supervisionados, muito pouco se

avançou quanto ao ensino de Ciências. A preocupação central ainda se direcionava à

alfabetização e ao ensino de matemática.

O projeto CEFAM, desde sua criação, passou por várias modificações em sua

grade curricular mas era, em síntese, apenas uma versão melhorada da antiga HEM.

Infelizmente, desse emaranhado de debates, leis, decretos e resoluções, somadas à sucessão de

experiências, ensaios e erros, ainda não se estruturou um sistema adequado para uma boa

formação inicial do professor para o EF-I.

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Nem as HEM, nem os CEFAMs e, tampouco, os cursos de Pedagogia ofereceram

uma formação de excelência para o professor das primeiras séries e da pré-escola do ensino

fundamental (MARCÍLIO, 2005). Essa, talvez, seja uma das explicações básicas para a atual

situação do ensino brasileiro.

A última tentativa empreendida pelo governo federal para resolver esse problema

histórico materializou-se na Lei 9394/96, que cria o curso Normal Superior, com carga horária

de 2800 horas, cujo objetivo é o de substituir a HEM. Em dez anos com a aprovação de novo

instrumento legal, a resolução CNE/CP no1, de 15 de maio de 2006, provocou-se mais uma

reviravolta administrativa dos cursos de Pedagogia: a modalidade Normal Superior passa a ter

carga horária de 3.200 horas. Destas, 2.800 horas devem ser destinadas às aulas teóricas em

sala de aula, enquanto as demais podem ser direcionadas a estágios e atividades de áreas de

interesse específico dos alunos, como Iniciação Científica. A questão aqui não é o fato de se

ampliar a carga horária para melhorar a qualidade de um curso. É preciso vincular a teoria

com a prática, fato que não ocorre conforme relatado por Pimenta (2005). Embora os cursos

de Pedagogia apresentem disciplinas como Metodologia do Ensino de Ciências, Didática do

Ensino de Ciências e Prática de Ensino de Ciências com cargas horárias que variam entre 60 e

140 horas, esses cursos são predominantemente teóricos. Não há momentos em que se discuta

como deve ser o preparo das aulas ou como vincular essas aulas à realidade dos alunos.

Para não concluir ... Reflexões

Através deste levantamento da história da formação de professores e crianças no

Estado de São Paulo, chegamos a algumas reflexões acerca da formação desses profissionais

da Educação e das crianças:

é necessário consolidar a formação inicial dos professores que atenderão à

Educação Infantil e ao Ensino Fundamental. Há uma diversidade de

Faculdades, Centros Educacionais e Universidades com vários níveis de

excelência e de abordagens para essa formação;

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é necessária uma ampla reforma do ensino acerca das questões que envolvem

o ensino de ciências para crianças. Esta reforma deve iniciar-se a partir da

formação inicial dos professores que atendem à faixa etária que compreende a

Educação Infantil e o Ensino Fundamental;

esta reforma precisa contemplar, principalmente, a metodologia utilizada no

ensino de Ciências para crianças. Sob nosso ponto de vista, esta metodologia

deve ser dialógica e envolver aulas práticas nos cursos de Pedagogia, pois

professores que experienciam, durante sua formação inicial, apenas aulas

expositivas e teóricas, tendem a repetir esta prática com as crianças, seus

futuros alunos

os conhecidos problemas relativos à não alfabetização de crianças nas séries

iniciais do Ensino Fundamental não se resolvem suprimindo outras áreas do

conhecimento do currículo (no caso estudado Ciências da Natureza). Projetos

Estaduais que visam à alfabetização e ao letramento pela supressão do ensino

de Ciências para crianças das duas séries iniciais do Ensino Fundamental, não

solucionam esta questão. Na verdade, o ensino está caminhando na

"contramão" da História pela adoção desta prática, como foi visto ao longo

deste artigo. Países desenvolvidos estão investindo cada vez mais no ensino de

ciências para crianças.

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242

A LITERATURA BRASILEIRA E A CULTURA CIENTÍFICA EM SALA DE AULA

Michele Marcelo Silva Bortolai

Universidade de São Paulo

Programa Interunidades em Ensino de Ciências

Mestre em Ensino de Química

[email protected]

Resumo

Este artigo tem por objetivo apresentar o uso da literatura infanto-juvenil, em aulas de

ciências, como recurso facilitador da formação de conceitos científicos. A utilização de livros

literários brasileiros, como recurso pedagógico para o ensino de ciências, é significativo por

valorizar a regionalidade brasileira, em seus aspectos naturais e culturais, através de uma

linguagem simples, que integra várias áreas do conhecimento e o saber popular. Para tanto,

foram usados como fontes de pesquisa dois livros de Monteiro Lobato, O Poço do Visconde e

História das Invenções, escritos em meados de 1930, uma década após o período em que se

situa o movimento de renovação e universalização do ensino público brasileiro. Além de

explorar conceitos relativos ao ensino de ciências em livros infanto-juvenis, Monteiro Lobato

também manteve estreita relação com os idealistas escolanovistas brasileiros, demonstrando

repúdio ao ensino tradicional e argumentando a favor do ensino profissionalizante.

Palavras-chave: literatura infantil, conceitos científicos, universalização do ensino.

"Um país se faz com homens e livros"

(Monteiro Lobato)

Monteiro Lobato e a aprendizagem escolar

Este trabalho tem o intuito de apresentar a literatura infanto-juvenil de Monteiro

Lobato como recurso facilitador da aprendizagem de conceitos científicos nos anos iniciais da

educação escolar, considerando aspectos como cultura e regionalidade para a construção do

conhecimento. Assim, será observado como o autor apresenta conceitos científicos de forma

interdisciplinar, explorando a possibilidade de a aprendizagem acontecer pela relação

existente entre o ensino de Ciências e a literatura infanto-juvenil.

Por volta de 1920, no Brasil, veicularam-se em meio à educação escolar livros

didáticos de conteúdo moral e sentimento nacionalista, visto o aumento da imigração no país.

A essa época Monteiro Lobato já escrevia artigos para jornais e revistas, criticando o sistema

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243

educacional brasileiro, visto a influência norte americana impregnada em nossa nação

(NUNES, 2004; BIGNOTTO, 2000?).

Nesse mesmo período, desencadeou-se a nacionalização da escola primária e dos

cursos profissionalizantes, objetivando o progresso econômico do país, embora o ensino ainda

fosse acessível apenas a uma pequena parcela da população. Daí o início da dedicação de

Monteiro Lobato à literatura popular brasileira. Ele enfatizava que o importante seria

instrumentalizar tecnologicamente nossas crianças, através de desenvolvimento acadêmico

adequado, ao invés de importar mão de obra qualificada do exterior do país (BIGNOTTO,

2000?).

Lobato declarava sua objeção à inacessibilidade das pessoas desfavorecidas

financeiramente à formação acadêmica, então, após a inauguração de sua editora, Lobato

manteve contato com as secretarias de educação propondo a venda de seus livros, resultando

na divulgação de diversos materiais enviados às escolas públicas, para que a população de

baixa renda pudesse ter contato com o conhecimento que a literatura proporciona

(BIGNOTTO, 2000?).

Na década de 1930 o movimento de renovação escolar tomou força, reunindo em

torno do mesmo propósito educadores, políticos e intelectuais, a fim de discutir os problemas

da institucionalização do ensino no Brasil. O movimento escolanovista tinha em vista a

reforma educacional, partindo da nova concepção sobre a infância, com respeito aos

interesses e necessidades das crianças (NUNES, 2004).

Os textos de Monteiro Lobato foram referenciados em vários escritos dos

criadores do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova1. O escritor foi também o

responsável pela aproximação entre Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando Azevedo,

visto que suas publicações aludiam à reforma na política educacional do país (NUNES, 2004).

Em cartas endereçadas ao amigo Anísio Teixeira, com engrandecimentos ao

trabalho realizado por ele, Lobato menciona algumas leituras realizadas sobre suas obras, que

difundiam as idéias do movimento escolanovista. Idéias também elencadas nos livros de

Lobato e pelos outros pioneiros do movimento progressista iniciado no Brasil (BIGNOTTO,

2000?; NUNES, 2004).

1AZEVEDO, Fernando de, et al. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Disponível em:

<http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm>. Acesso em: 30 ago. 2011

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

Salvador: UFBa / UEFS / UFMG, 2012. ISBN: 978-85-62707-30-8

244

Lobato influenciou o movimento de renovação educacional por meio de seus

livros e artigos, em aventuras vivenciadas no Sítio do Pica-Pau Amarelo e textos publicados

em jornais e revistas da mesma época. Ele acreditava que através da literatura seria capaz de

levar novos conhecimentos a toda uma população.

As obras lobatianas revelam a cultura e costumes da população inserindo

conceitos do mundo científico e considerando a criança como ser humano em potencial

desenvolvimento.

Os livros escritos por Monteiro Lobato e utilizados nesta investigação foram O

Poço do Visconde, escrito em 1938 e História das Invenções, escrito em 1935. Neles pode-se

observar que o conhecimento e a curiosidade dos personagens criados pelo escritor

assemelham-se ao encontrado no cotidiano escolar, onde o personagem-professor e o

personagem-aluno interagem através do compartilhamento de idéias e saberes relevantes

para a construção do conhecimento. Assim, a aprendizagem deixa de ser mecânica, pois o

professor considera que o aluno traz consigo um conhecimento de mundo que deve ser

valorizado e utilizado para que se criem condições favoráveis a aprendizagem

(SCHNETZLER, 1992)

As obras de Lobato destinadas à leitura pelo público infantil e juvenil ressaltam

conceitos ensinados em aulas de Ciências e outros componentes do currículo escolar.

Entretanto, sua ênfase revela-se na importância que o autor confere ao conhecimento que as

crianças possuem e na sabedoria com que utilizam essas informações para solucionar

problemas que vão surgindo em seu dia-a-dia. Para Paiva e Oliveira (2009, p. 1203) “a leitura

é fundamental para construção de conhecimentos e para o desenvolvimento intelectual, ético e

estético do ser humano”.

Em seus escritos, Lobato procura manter o diálogo entre os personagens

(NUNES, 2004), independente de sua idade, hierarquia familiar ou destaque na estória.

Contudo, a influência dos personagens mais experientes e com mais conhecimentos para a

formação intelectual dos outros integrantes das estórias é fundamental para que a

aprendizagem seja vivenciada em um espaço diferenciado ao encontrado nas escolas, ainda

hoje (PAIVA & OLIVEIRA, 2009).

No livro O Poço do Visconde, pode-se observar o protagonismo dos personagens.

Eles almejam encontrar petróleo em suas terras, a fim de ajudar o país a desenvolver-se

economicamente. Para isso, sabem que precisam de informações sobre a formação geológica

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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do solo e solicitam ao Visconde de Sabugosa2 que compartilhe seus conhecimentos com

todos (LOBATO, 2010):

− O amigo Visconde já deve estar afiadíssimo em geologia de tanto que lê

esse tratado. Pode, portanto, dar parecer num problema que me preocupa.

Acha que poderemos tirar petróleo aqui no sítio? (p. 13)

− Primeiro – disse o grande sábio – temos de abrir um curso de geologia.

Sem que todos saibam alguma coisa da história da terra, não podemos pensar

em poço. Como já li esta Geologia inteira, proponho-me a ser o professor.

(p. 15)

No início dessa obra observa-se a explanação de vários conceitos que seriam

tratados isoladamente entre as disciplinas curriculares. Entretanto, a interdisciplinaridade3

presente no texto é salientada nos momentos de diálogos entre os personagens. Desse modo,

os leitores são levados a criar conexões com a realidade que vivenciam (NUNES, 2004;

PAIVA & OLIVEIRA, 2009).

No livro, o professor inicia os estudos do grupo explicando sobre o resfriamento

da Terra e continua sua fala esclarecendo termos como erosão, vulcões, rochas ígneas,

sedimentares e metamórficas, e o que leva à transformação desses materiais:

− E por que motivo a Terra foi se esfriando? – perguntou Narizinho. (p. 17)

− Porque a tendência do calor é espalhar-se. Tudo o que é quente esfria

porque o calor se espalha – sai do corpo quente e espalha-se pelo espaço. [...]

De modo que o calor da bola de minerais derretidos que chamamos Terra foi

se irradiando – e até hoje está se irradiando. (p. 17)

− [...] pela superfície inteira da Terra vemos sinais de vulcões extintos – as

rochas derretidas que saíram deles, as rochas ígneas, ou eruptivas, como se

diz em geologia. Temos, ainda, os gêiseres, que são repuxos de água quente.

Se a água sai quente, de alguma parte recebe o calor. (p. 17)

− Ígneo significa neste caso “produzido pelo fogo”. Essa bola de pedra dura

regirava no espaço, envolvida por uma camada de ar e uma imensa nuvem

de vapores. Esses vapores, compostos de hidrogênio e oxigênio, formavam

uma combinação de nome água [...]. (p. 18)

− [...] Ainda hoje a água sofre a ação do calor do Sol e evapora-se, para cair

de novo sob a forma de chuva [...]. (p. 19)

2 Visconde de Sabugosa é o personagem criado por Monteiro Lobato para descrever a figura do sábio

representante da ciência (PEREIRA, 2006) 3 “[...] interdisciplinaridade é definida amplamente como uma interação existente entre duas ou mais disciplinas.

Essa interação [...] pode ir da simples comunicação das idéias até a integração mútua dos conceitos [...].”

(FAZENDA, 2009, p. 104)

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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− [...] A erosão ataca todas as pedras de um modo contínuo, e as vai

rachando, lascando, esfarelando, até reduzi-las a pó finíssimo. [...] Para

atacar uma grande massa de rocha, o calor primeiro a aquece. Vem depois a

água, sob forma de chuva, e a resfria bruscamente. Como o calor dilata os

corpos e o frio os contrai, começou na crosta da Terra um terrível

rachamento de pedras. (p. 20)

Nesses trechos, diversos elementos são abordados no mesmo contexto. A presença

de conceitos que seriam trabalhados em disciplinas como Ciências, Geografia ou História,

passaram a ser tratados em torno do mesmo objetivo, a formação geológica do solo para

verificação da possibilidade de ocorrência de petróleo. Nesse processo, as crianças do Sítio

do Pica Pau Amarelo são levadas a refletirem sobre suas ações, socializando suas idéias e

favorecendo o desenvolvimento intelectual.

As crianças das estórias de Lobato têm liberdade para agirem como julgarem mais

adequado, pois as aventuras que vivenciam as levam a experimentar o novo e a tomar atitudes

autonomamente, para resolverem as dificuldades que surgem conforme as estórias vão

acontecendo. É oportuno mencionar a valorização que Lobato dá ao saber científico,

destacando a importância do experimentar para relacionar novas informações a um saber

construído historicamente.

Além de explicar sobre a formação do solo ao longo do tempo, o Visconde de

Sabugosa também fala sobre os componentes formadores do petróleo, seus derivados e suas

propriedades químicas:

− […] a matéria orgânica acumulada nos sedimentos gera o petróleo […] é

preciso que nessa matéria orgânica haja hidrocarbonetos. (p. 31)

− Hidrocarboneto é o nome que os químicos dão às combinações de

hidrogênio e carbono […]. Os átomos de um se ligam aos átomos de outro

[…] e conforme é essa proporção surgem os hidrocarbonetos chamados

metano, butano, propano, acetileno, benzina, etc. […] todos eles voláteis. (p.

31)

Figura 1. Personagem Narizinho4, durante a explanação do Visconde, refletindo sobre as ligações

químicas existentes entre os átomos de hidrogênio e carbono para a formação das moléculas dos

hidrocarbonetos.

4 Personagem criada por Monteiro Lobato para representar a neta de Dona Benta (PEREIRA, 2006)

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Fonte: LOBATO, 2010, p. 31

Nunes (2004), Schnetzler (1992) e Vygotsky (1991) corroboram as idéias

encontradas nos textos de Monteiro Lobato, quando mencionam em seus estudos a

importância do fazer prático e da atuação da criança como sujeito da própria aprendizagem.

O saber constituído culturalmente também pode ser observado no livro História

das Invenções (LOBATO, 1960). Nele observam-se segmentos que relacionam a

aprendizagem de conceitos científicos entre disciplinas como Ciências e Matemática:

− Pois bem, isto que os astrônomos fizeram para os astros, outros homens de

ciência fizeram para o contrário dos astros, isto é, para as moléculas e

átomos, que são coisinhas infinitamente pequenas. Chegaram a medir

átomos que têm o tamanhinho de uma trilionésima parte de milímetro. (p.

212)

− […] Com a mesma matéria-prima com que se faz o papel, chamada

celulose, os químicos criaram o raiom ou seda artificial. Liquefazem a

celulose e deixam-na escorrer em fiozinhos, que secam, ficando com o

mesmo brilho e a mesma flexibilidade da seda natural. (p. 231)

− O vidro é uma substância amorfa, isto é, sem forma definida, que resulta

do derretimento da areia misturada com potassa ou soda e um pouco de cal.

Tem a propriedade, enquanto está muito quente, de ser moldável, isto é, de

tomar a forma que a gente lhe quer dar. (p. 267)

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As colocações feitas pelos personagens criados por Lobato facilitam a introdução

de conceitos científicos em sala de aula. Quando Dona Benta5 inicia sua fala explicando

conceitos tratados, inicialmente, somente no ambiente escolar, permeando o conhecimento já

estabelecido e o trazendo para fora da escola, possibilita que a aprendizagem também

aconteça para aqueles que estão distantes do aprendizado institucionalizado, mas que têm

acesso a livros e outras formas de enriquecimento cultural.

O discurso de Dona Benta sobre o tamanho dos átomos e moléculas ou mesmo

sobre a maleabilidade dos materiais auxilia o trabalho do professor dos anos iniciais da

educação básica que, ao utilizar-se da leitura de livros literários apropriados ao público

infanto-juvenil, traz para a sala de aula o conhecimento científico encontrado em livros

didáticos.

Na leitura dos escritos de Lobato nota-se a transposição do saber científico,

realizado por um personagem considerado sábio e capaz de transformar o texto de um livro

didático em uma busca pelo conhecimento.

“[...] Rutherford e seus colaboradores mostraram que o átomo consiste em

um minúsculo núcleo, que contém toda a carga positiva e quase toda a massa

do átomo, rodeado pelos elétrons [...]” (RUSSEL, 2004, p. 257).

Quando o professor realiza momentos de leitura com seus alunos, periodicamente,

eles se habituam a reflexão por meio da movimentação entre as idéias propostas nos textos.

Assim, o estudo de obras literárias a fim de relacioná-las com as Ciências demonstra seu

verdadeiro papel, que é o de tornar a criança um ser reflexivo, através de um estudo não

fragmentado e transformador das questões levantadas pela sociedade (LINSINGEN, 2008).

Assumindo-se a concepção de Vigotski (2005) sobre a formação do pensamento e

a utilização da linguagem para sua verbalização, pode-se dizer que nessa idade as crianças

estão na fase do pensamento chamada de pensamento por complexos, em que já procuram

dar significado aos objetos e relacioná-los entre si de forma concreta, distanciando-se das

relações que criavam ao acaso entre os elementos para mantê-los unidos em um mesmo

grupo.

Além do conhecimento científico, as aventuras lobatinas inserem no mundo

infanto-juvenil características comportamentais que as crianças desenvolvem quando estão em

5 Personagem criada por Monteiro Lobato para representar a figura da avó, “[...] detentora do conhecimento”

(PEREIRA, 2006).

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contato com outras da mesma idade. Exemplos dessas características são: a curiosidade,

sociabilidade, a busca pelo novo, respeito pela opinião alheia, liderança, criatividade,

comunicabilidade, confiança.

Essas características levam as crianças ao pensamento crítico sobre o mundo que

está a sua volta, pois as estórias criadas por Monteiro Lobato trazem uma abordagem reflexiva

que fomentam no leitor e nos personagens o “[...] pensar, questionar, argumentar, opinar,

ouvir outras opiniões e reformular seu pensamento” (PAIVA & OLIVEIRA, 2009, p. 1208),

facilitando a importação de novos conceitos através de metodologias diferenciadas.

O trabalho de Lobato apresenta caminhos diversificados que o professor pode

empregar em suas aulas para torná-las mais atrativas e dinâmicas para os alunos. Assim, sua

ação favorece a transformação do aluno como sujeito da aprendizagem escolar.

Considerações finais

A análise realizada pela leitura dos livros de Monteiro Lobato permite vislumbrar

a possível articulação da literatura infanto-juvenil com o currículo referente ao ensino de

Ciências. Esses materiais contribuem para a aprendizagem de conceitos científicos, além de

fornecerem subsídios para os professores introduzirem esses conteúdos de forma lúdica,

ampliando o gosto das crianças pela leitura.

A literatura infanto-juvenil leva os educandos ao desenvolvimento intelectual, por

meio da aprendizagem de conceitos das várias áreas do conhecimento, conduzindo os alunos

ao pensamento reflexivo pelo relacionamento da leitura com a realidade a que pertencem.

Por fim, nota-se nos textos de Lobato a presença da criança como centro do

processo de aprendizagem e o professor como mediador do ensino pautado no diálogo e na

troca de conhecimentos e valores.

Referências

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N. M.; LIMA, H.; VIVACQUA, A.; VENANCIO FILHO, F.; MARANHÃO, P.; MEIRELLES, C.;

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EVOLUÇÃO METODOLÓGICA E CONCEITUAL NO ESTUDO DA

CERÂMICA ARQUEOLÓGICA NO BRASIL

Rodrigo Lessa Costa

Docente do Colegiado de Arqueologia UNIVASF

Doutorando Museu Nacional – UFRJ

[email protected]

Leandro Surya

Docente do Colegiado de Arqueologia e Preservação Patrimonial UNIVASF

Doutor Universidade do Porto

[email protected]

Resumo

Este texto tem por objetivo delinear numa perspectiva da história das ciências os métodos e

conceitos utilizados no estudo da cerâmica arqueológica no Brasil. Em geral a cerâmica é a

principal via de acesso para o passado pré-histórico, sobretudo, pela sua resistência aos

inúmeros processos pós-deposicionais, naturais ou antrópicos. Os objetos cerâmicos foram

utilizados pelos grupos pré-históricos nas mais diversas ocasiões, tais quais, transporte e

armazenagem de água e alimentos; cozimento e até mesmo em rituais funerários. Estes

refletem características simbólicas inerentes ao grupo, ou, mesmo ao individuo que os

confeccionou e utilizou. No Brasil o estudo sistemático desse artefato se deu apenas na década

de 1950, com a chegada dos pesquisadores do SmithsonianInstitute que treinaram os

arqueólogos brasileiros no método Ford. Desde então ocorreram diversos avanços conceituais,

metodológicos e, mesmo referentes ao papel representado pela cerâmica nas reconstituições

sociais da pré-história, os quais pretendo expor e analisar.

Palavras-chave: cerâmica pré-histórica, história da Arqueologia brasileira, teoria e métodos

arqueológicos.

Introdução

Desde o século XIX a cerâmica tem sido a principal via de acesso para o passado

pré-histórico. Utilizados pelos grupos pré-históricos nas mais diversas ocasiões, tais quais,

transporte e armazenagem de água e alimentos; cozimento e até mesmo em rituais funerários,

os utensílios cerâmicos, refletem características simbólicas inerentes ao grupo, ou, mesmo ao

individuo que os confeccionou e utilizou (Orton, et.al, 1993).

No Brasil o estudo sistemático desse artefato se deu apenas na década de 1950,

com a chegada de pesquisadores norte-americanos, do SmithsonianInstitute que treinaram os

arqueólogos brasileiros no método Ford.Desde então ocorreram diversos avanços conceituais,

metodológicos e, mesmo referentes ao papel representado pela cerâmica nas reconstituições

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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sociais da pré-história. Podemos observar ao longo de uma breve revisão bibliográfica, que a

cerâmica nos últimos anos vem perdendo espaço nas (re)construções pré-históricas, sendo

substituídas por abordagens integrativas (contextuais) e arqueométricas. Essa substituição que

deveria representar um forte avanço metodológico para a disciplina, na verdade ignora uma

série de respostas que a cerâmica é capaz de dar, tratando-a como um elemento secundário

nas (re)construções.

Pronapa

Na década de 1960 foi desenvolvido, sob a coordenação dos arqueólogos norte-

americanos Clifford Evans e Betty Meggers,o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas

(PRONAPA), que seria a primeira tentativa de sistematizar metodologicamente a arqueologia

brasileira, até então desenvolvida apenas por arqueólogos amadores (BROCHADO et.al,

1969). Estavam envolvidos nesse programa pesquisadores de quase todas as regiões do Brasil.

Acreditando que os sítios do hemisfério sul eram relativamente recentes, os diretores

orientaram o programa para o estudo dos “sítios cerâmicos”, ocupados a partir de 4 mil anos,

com uma metodologia baseada sobretudo no método de seriação elaborado inicialmente por

James A. Ford (1962) e que ficou popularizado no Brasil como método Ford. De acordo com

esse método vários atributos dos fragmentos cerâmicos eram correlacionados para que se

obtivesse um gráfico de distribuição de popularidade de determinadas características dos

utensílios (Evans e Meggers, 1970). Como grande parte da cerâmica é encontrada apenas sob

a forma de fragmentos e para compreender o uso dos utensílios era necessário fazer analogias

que levassem em conta sua forma, o PRONAPA implementou uma técnica de reconstituição

hipotética, que se baseava em alguns princípios geométricos simples para descobrir o

diâmetro da boca e a forma aproximada dos utensílios.

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Figura 1- Gráfico confeccionado a partir do método de Seriação elaborado por Ford in: Evans e Meggers, 1970.

Período Pós-Pronapa

Desde o término do PRONAPA até meados da década de 1990 poucas inovações

metodológicas relacionadas ao estudo da cerâmica arqueológica surgiram ou popularizaram-

se no Brasil, e os poucos trabalhos sobre o tema basearam-se, sobretudo nos métodos e

técnicas proferidos por Meggers, Evans e seus colaboradores. Alves (1991) e Luna e

Nascimento (1994) orientadas, sobretudo pela abordagem “contextual” sugerida por Pessis

(1992) desenvolveram uma metodologia denominada “Perfil Técnico” que teoricamente

relacionaria todas as variáveis arqueológicas conhecidas.Entretanto, na ânsia de atingir todas

as variáveis essa metodologia tem sido superficial, sobretudo no tocante a cerâmica, pois que

privilegia objetos inteiros – que quase não existem nos sítios arqueológicos – ignorando uma

série de informações que os fragmentos poderiam fornecer (Costa, 2010). Chamo essa

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abordagem e quaisquer outras similares que tentem coadunar diversas variáveis arqueológicas

de abordagens integrativas. Acredito que o que estas abordagens propõe é bastante

construtivo e aceitável, mas na prática as mesmas não têm conseguido ir além de descrições

superficiais (Oliveira, 2000). Alguns pesquisadores de outras áreas (por exemplo, Munita,

2003) têm contribuído com análises arqueométricas de conjuntos cerâmicos, tampouco esses

trabalhos em sua maioria possuem alguma discussão arqueologicamente aprofundada, na

medida em que apresentam em geral apenas dados técnicos.

Análise Bibliográfica

Uma análise preliminar bibliográfica encontra-se em fase de elaboração. A

príncipio, através da observação da “Revista Clio: Série arqueológica”, principal periódico da

arqueologia do Nordeste brasileiro, constatei que a partir do ano de 1989 até a edição mais

recente de 2009, apenas 11 artigos discutiam de alguma forma o elemento cerâmico. A grande

maioria destes artigos (5) discutia abordagens integrativas (Perfil Técnico) e aplicações de

técnicas arqueométricas(3). Havia ainda dois artigos que discutiam de alguma forma como

abordar a cerâmica em contextos etnoarqueológicos, um artigo sobre limpeza e conservação,

um artigo meramente descritivo sem discussões teóricas ou sociais e apenas um texto com

discussões teóricas, que na verdade era um resumo expandido publicado numa edição especial

da revista, onde foram publicados os anais de um importante simpósio de Pré-história

(Meggers, 2000). Falta ainda analisar periódicos de outras regiões e períodos para se observar

quão e como tem sido observada essa variável arqueológica em distintos períodos e regiões.

Considerações Preliminares

Acredito que a cerâmica tão rica nos sítios arqueológicos e tão explorada desde os

primórdios da arqueologia brasileiratem sido sistematicamente ignorada nas três ultimas

décadas, não desconsiderando a importância de trabalhos como Alves (1991) e Oliveira

(2000) amplamente citados pelos poucos que ainda tem algum interesse em discutir o tema,

entretanto como foi colocado anteriormente os mesmos possuem sérios problemas. Propus

que a cerâmica arqueológica fosse discutida em dois níveis fragmento e objeto (ou utensílio) e

que fossem consideradas inicialmente e profundamente as relações internas – correspondentes

a própria variável cerâmica - e apenas num segundo momento as relações externas, ou seja, a

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maneira como a cerâmica se relacionaria a um contexto mais amplo em que outras variáveis

estão inseridas (Costa, 2010). Por último gostaria de salientar a importância de que os

estudantes se apropriem de todos os métodos e técnicas utilizados na análise cerâmica, o que

ao meu ver, é dificultado pela escassez de manuais atualizados sobre este tema em português.

Referências

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______________, v.1, n.22, UFPE, 2008.

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CONHECIMENTO E FÉ A PARTIR DOS TEXTOS DE TOMÁS DE AQUINO

Ms.Sônia Brzozowski

Mestranda no Programa de Ensino,

História e Filosofia das Ciências e Matemática

UFABC – Universidade Federal do ABC – Bolsista CAPES

[email protected]

Drª. Márcia Helena Alvim

Orientadora

Resumo

Neste ensaio buscaremos discutir as definições empregadas ao termo „conhecimento‟ a

partir de textos tomistas, relacionando com definições apresentadas por outros teór icos. O

estudo é desenvolvido a partir de dois textos de Tomás de Aquino, primeiro o Capítulo

LVI - Livro I da obra Suma Contra os Gentios - “Em Deus não há conhecimento habitual”

– e em segundo “Do dom do Conhecimento” - Questão IX do Tratado Sobre a Fé,

Esperança e Caridade – da obra Suma Teológica, nos quais se apresentam argumentações

sobre o conhecimento divino e o conhecimento comum que segundo Tomás de Aquino

não pertence a Deus, e sobre a possibilidade de este conhecimento estar sobre as coisas

divinas.

Palavras-chave: Conhecimento, Tomás de Aquino, Fé.

Tomás de Aquino, um frei dominicano conhecido pelas suas obras nas quais

procurou estabelecer uma relação de harmonia entre a fé e a razão, sobre o conhecimento,

Tomás de Aquino acreditava que o intelecto divino nunca se encontraria em potência e

sim em ato, conforme descrito no trecho abaixo:

quem possui conhecimento habitual não conhece todas as coisas

simultaneamete, porque conhece algumas coisas em ato e outras em hábito.

Mas Deus sabe todas as coisas de uma só vez, como já temos provado.

(AQUINO, 1973)

Sendo importante lembrar que para Aquino o termo potência é utilizado para

referir-se a capacidade de perfeição enquanto ato seria a perfeição já realizada. Iniciemos

então com a distinção proposta por Aquino aos tipos de conhecimento, primeiro a de que

existem as pessoas que possuem o hábito, espécie de qualidade auto-adquirida e estão de

algum modo em potência, mesmo que de diferente maneira em relação a qual estavam

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antes da intelecção, e em segundo de maneira oposta o de Deus, para o qual não há

conhecimento habitual e sim em ato- perfeição.

No texto „Em Deus não há conhecimento habitual‟ Aquino apresenta seis

argumentos de que o que conhecimento de Deus não é habitual, o primeiro deles apresenta

a ideia de que quem possui este conhecimento não conhece todas as coisas

simultaneamente, pois conforme já mencionado anteriormente algumas estão em ato e

outras em hábito, que para Tomás de Aquino quer dizer certa habilitação da mente para

receber caracteres compreensíveis, o que não é o caso de Deus que é ato puro.

Mas quais elementos podem ser apresentados para justificar o fato de Deus ser

ato puro? De acordo com um trecho extraído da Suma Teológica Aquino diz o seguinte:

Tudo que existe na natureza tem que ser movido por alguma coisa. Da

mesma forma, esta outra coisa, na medida em que está em movimento,

deve também ser movida por algo a mais. Mas essa cadeia de eventos não

pode retroceder para sempre, porque se o fizesse não poderia haver um

primeiro motor e, portanto nenhum outro. Pois os segundos motores não

podem se mover a não ser que sejam movidos por um primeiro motor, da

mesma forma que uma vareta não move nada a não ser que seja movida

por uma mão. Dessa forma devemos chegar a um motor primeiro que não

seja movido por nada. E compreendemos que este é Deus.

(AQUINO, 1996)

Portanto se Deus é o primeiro motor do universo então ele é também ato puro

que não se encontra limitado por nenhuma potência, pois é ele justamente que possibilita a

existência de vida e desenvolvimento no mundo de modo que todas as criações partem

dele.No segundo argumento Aquino aponta que quem possui um conhecimento auto

adquirido e que em dada circunstância dedica atenção maior a este saber, de alguma forma

esta então em potência, mas já de maneira diferente da que se encontrava antes de

conhecer, portanto, tudo que está em potência está em condição de se desenvolver, de se

transformar, sendo assim este é mais um argumento de que o conhecimento divino não

pode ser habitual, pois nunca se encontra em potência.

Enfim todos os argumentos buscam demonstrar um único princípio, o de que o

conhecimento de Deus não é habitual, de maneira que não se pode atribuir a ele qualquer

qualidade ou defeito, pois o conhecimento dos princípios que nos são conhecidos

naturalmente nos é dado por Deus, uma vez que Deus é o autor da nossa natureza, por

conseguinte, tais princípios naturais estão incluídos também na sabedoria divina, portanto

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tudo aquilo que contradiz tais princípios contradiz a sabedoria divina, e isso não pode

acontecer em Deus. O conhecimento habitual não pode ser colocado acima do

conhecimento divino.

O segundo texto estudado apresenta algumas objeções a respeito do

conhecimento divino e da possibilidade de existir um conhecimento habitual que esteja

sobre ele, o qual é refutado por Aquino, que se dedicou ao estudo do conhecimento e se

este é ou não um dom dado por Deus, ressaltando para o fato de o conhecimento estar

entre os sete dons, embora reconheça que existam filósofos que afirmem que não o é, para

os quais o conhecimento implica num efeito natural da razão, uma demonstração é um

silogismo o qual produz conhecimento, de modo que este não é um dom.

Não podemos esquecer o que foi apresentado anteriormente em que Tomás

reconhece que o conhecimento dos „homens‟(racional) é fruto de uma obra de Deus,

portanto, o conhecimento natural pode ser adquirido pelo homem, mas é Deus quem lhe

forneceu as condições para tal conquista, pois é o primeiro motor do universo.

Para Averróis, um dos primeiros a comentar e divulgar os princípios

aristotélicos o conhecimento não é a ciência da ideia geral, mas a ciência dos seres

particulares de um modo geral, próprio do entendimento quando este abstrai a natureza

única e comum que reside de maneira concreta nas coisas materiais. Assim, pois, a

natureza do universal é diferente da natureza das coisas concretas pelo fato de ser

universal por essência. Não é objeto direto do conhecimento, mas o que torna possível o

conhecimento das coisas. Por isso é algo que existe em potência na própria natureza das

coisas, pois, se não fosse assim, a percepção intelectual dos entes particulares, enquanto

possuem notas universais, seria falsa.

Tomás de Aquino brilhantemente distinguiu as formas como o conhecimento

pode se apresentar, e evidenciou a hierarquia existente elas, se é que assim podemos

chamar, pois enfatizou a soberania do conhecimento de Deus sobre as formas de

conhecimento habituais, também apontou para a existência de uma relação harmoniosa

entre o conhecimento habitual e o conhecimento divino.

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EUGENIA DE RENATO KEHL: BIOPERSPECTIVAS E RESTRIÇÕES IMIGRATÓRIAS

Tamara Prior

Mestranda em História Social pela USP

Bolsista CAPES

[email protected]

Resumo

Criado por Francis Galton em 1883, o termo eugenia teve a missão de nomear uma ciência

que visaria o melhoramento do patrimônio biológico da humanidade. Para tanto, deveria

oferecer teorias e métodos, rumo à perfectibilidade física e mental. Renato Kehl (1889-1974),

médico e farmacêutico paulista, foi um dos principais expoentes da eugenia brasileira,

tomando para si, com afinco, a tarefa de publicista e articulador das sociedades eugênicas que

aqui se formaram nas primeiras décadas do século XX. Algumas idéias retiradas de suas obras

em prol da eugenia - publicadas majoritariamente entre 1917 e 1940- são tratadas no presente

trabalho. Dentre as funções da campanha eugênica brasileira estava o debate acerca da

esterilização dos indesejados, bem como das polêmicas restrições imigratórias. Kehl,

eugenista de convicções radicais, posicionava-se contra a entrada de asiáticos, árabes, negros

e, sobretudo, de deficientes físicos ou mentais.

Palavras-chave: eugenia, Renato Kehl, restrições imigratórias

Introdução

A missão de melhorar o patrimônio biológico da humanidade – e, assim,

alcançar uma dada perfectibilidade genética- foi apropriada com afinco pelos movimentos

eugenistas no Brasil e no mundo, sobretudo durante a primeira metade do século XX. As

primeiras décadas contam com uma profusão de estudos eugenistas, bem como com a

articulação de sociedades que objetivavam, principalmente, estabelecer elos entre os estudos

das recém-descobertas leis de hereditariedade e as políticas públicas. Conduziria-se o porvir

da humanidade: por um lado, evitava-se a perpetuação de caracteres hereditários considerados

defeituosos, por outro, fomentava-se a reprodução daqueles considerados aptos.

A origem do movimento eugenia remete à iniciativa do médico, matemático,

estatístico e metereologista Francis Galton, primo do conhecido naturalista Charles Darwin.

Galton, que nutria especial interesse por estudos sobre as aptidões e sensações humanas –

desde a capacidade de levantamento de peso aos testes de inteligência psicométricos-

publicou, no ano de 1883 a obra Inquiries into human faculty and its development, quando

apresentou o termo eugenia pela primeira vez. A obra discorre sobre determinadas faculdades

Luã Lança
Realce

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mentais e características físicas humanas, sobretudo aquelas que, segundo ele, eram

configuradas por caracteres hereditários. As teorias vinham dos evolucionismos então em

voga, sendo os métodos e teorias complementares oriundos da estatística, disciplina esta para

a qual Galton realizou contribuições até hoje consideradas importantes, como aquelas feitas

para o conceito de correlação e de regressão em direção à média. É preciso, portanto, atentar

para o fato de que a eugenia foi um esforço científico que se edificou sobre bases

consideráveis, embora certos juízos a priori – basicamente, a superioridade intelectual e física

de alguns humanos determinada pela hereditariedade - acabasse por produzir correlações

duvidosas1 entre o então utilizado conceito de raça e as habilidades físicas e intelectuais

estudadas nos laboratórios e transformadas em estatísticas. Não há a pretensão de

desqualificar, diante da perspectiva da história das ciências, a validade da biometria ou da

técnica de retratos compostos, por exemplo - ambas utilizadas por Galton - enquanto método

científico próprio de sua época. Pretende-se, ao invés, ao estudar a história da eugenia no

Brasil, apontar para os problemas decorrentes da transposição dos resultados laboratoriais

para uma forma de ciência que pretendia interferir no porvir da humanidade e, para isso,

precisava de certezas que sabidamente as teorias próprias das ciências biológicas não podiam

fornecer. Sabia-se, à época, como atentou o médico e antropólogo Roquette-Pinto na

inauguração 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, que as ciências biológicas, ao lidarem com o

corpo humano e este se tratar de um sistema aberto, sujeito a influências sociais, estava sujeita

aos métodos descritivos e ponderações que impediam o estabelecimento de relações causais

generalizantes. Mas, ao mesmo tempo, segundo a ata registrada pela professora Celina

Padilha, afirmou:

“Durante muito tempo, disse, supoz-se que o meio dominava

os organismos, portanto a medicina e a hygiene resolveriam o

problema da saúde; mas a sciencia demonstrou haver alguma

cousa que independe da hygiene: é a semente, a herança, que

depende da eugenia. É preciso, acrescenta, tratar-se da

semente...” (ACTAS, 1929, pág. 11-12)

Esta questão, que acompanha o desenvolvimento epistemológico das ciências

biológicas, não as desqualifica, apenas as orienta na busca por suas ponderações.

1 - A crítica aos resultados dos estudos eugênicos embasam-se na obra A falsa medida do homem, de Sthepen Jay

Gould e em críticas dos próprios opositores da época, como Alphonse Candolle, argüidor da obra de Galton, ou

do próprio Charles Darwin, que enxergavam problemas metodológicos importantes na transposição de certas

teorias evolucionistas para a espécie humana, bem como apontavam elementos problemáticos nas correlações.

Há, em casos mais graves, acusações de manipulação de dados e fraudes, apontados por Gould na obra

supracitada.

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Michel Foucault, ao apontar para as ciências biomédicas como ansiosas por

normas que não necessariamente lhes diziam respeito, baseia-se nesta problematização

oriunda da relação entre ciência e sociedade. Daí a pertinência de suas teorias para o estudo da

história da eugenia, sendo seus conceitos amplamente utilizados pelos pesquisadores atuais.

Em seu A Ordem do Discurso - proferido quando da aula inaugural no Collège de France em

dezembro de 1970- elabora com maestria as interdições que os discursos diversos sofrem,

bem como as que os mesmos – ao se pretenderem como verdades autoritárias - corroboram.

Todo discurso apresentaria em seu cerne uma estrutura de poder. O fenômeno discursivo

apresenta-se ao mesmo tempo como vítima e instrumento dos mecanismos de exclusão

diversos. Dentre as interdições sofridas pelos discursos, estaria em posição primordial a

vontade de verdade, termo usado para designar aqueles elementos dos discursos que tem

como essência e enunciado (conscientemente ou não) a transmissão de uma verdade última e

legítima, baseada em argumentos previamente caros a sociedade na qual foi produzido. Os

discursos científicos, sobretudo a partir do século XIX, seriam grandes arautos dessa vontade

de verdade que, com apoio institucional, tornaram-se ao mesmo tempo instrumentos e

operadores. Nas palavras de Foucault: “... as grandes mutações científicas podem talvez ser

lidas, às vezes, como conseqüências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a

aparição de novas formas na vontade de verdade” (FOUCAULT, 1996)

O filósofo Bruno Latour, criador do conceito de tradução de interesses científicos

em políticos, torna-se tão pertinente quanto para o objeto em questão, justamente por oferecer

perspectivas múltiplas que permitem a abordagem interrelacional entre ciência e sociedade,

não as isolando uma da outra. Em suas palavras, a institucionalização das ciências vem

acompanhada da “tradução dos termos políticos em termos científicos e vice-versa” 2. O

mesmo autor ainda fornece interessantes perspectivas: “eis cinco horizontes que permitem

bastante bem enquadrar o trabalho do historiador: os intrumentos, os colegas, os aliados, o

público e, por fim, aquilo a que eu chamaria as ligações ou os elos...”. (LATOUR, 1996)

A eugenia, sendo ciência ou pseudociência, dependendo do posicionamento

adotado, procurou esquivar-se desta discussão epistemológica - quando esta apareceu em

questionamentos sobre a validade de seu âmbito de atuação- em prol de sua existência. As leis

da hereditariedade eram tomadas por fixas, porém, a realidade assim não necessariamente as

seguia, o que gerava dúvidas das quais se alimentavam seus principais opositores. É certo que

2 - LATOUR, Bruno. Joliot: a história e a física misturadas. in Elementos para uma História das Ciências.

SERRES, Michel (Ed). Lisboa: Terramar, 1996. Pág. 136.

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Galton preocupava-se com uma forma de fazer ciência que buscava, ao seu modo, algo a

favor da humanidade e, para tanto, fazia uso de idéias próprias de sua época. É certo, também,

que foi uma forma de fazer ciência que, ao partir de juízos sintéticos categorizantes – juízos

de superioridade muito específicos, próprios daquela época, como de outras e mesmo da

atual- acabou por fomentar a intolerância e reforçar estigmas negativos, quando não os criou.

Diminuir a ciência a ponto de apresentá-la como mero mecanismo de intolerância é uma falta

tão grave quanto omitir-se sobre as ocasiões nas quais ela o foi. Aponta-se a criação, ou

reforço, de estigmas negativos, de preconceitos e, por fim, da intolerância – enquanto fazer

malevolente- não com o objetivo de denunciar indivíduos, mas de denunciar a permanente

necessidade de reflexão acerca do fazer científico e de suas práticas.

Origem: a eugenia como síntese

Dando sequência aos estudos e publicações sobre as leis da hereditariedade a

partir de métodos biométricos, caracteriológicos e estatísticos, Francis Galton publicou, em

1883, a supracitada obra Inquiries into Human Faculty and its development. Previamente, seu

Hereditary Genius, publicado em 1869, e o Hereditary Improvement, publicado em 1873, já

havia alcançado certo sucesso e lançado as raízes do ideal eugênico, ambos inspirados pela

idéia de evolução por seleção natural, contidas na obra do famoso primo Charles Darwin. Para

Raquel Pelaéz, no entanto, a obra de Darwin que mais o influenciou seria The Variation of

Animals and Plants under domestication, publicada em 1868. (PELAÉZ,1985)

Galton, porém, diferentemente do que seu primo Darwin, sugere no quarto

capítulo d´ A Origem das Espécies - onde expõe sua afinidade com a teoria de Lamarck, que,

de maneira sintética, propunha influência do meio ambiente nos mecanismos da

hereditariedade- não concordava com essa possibilidade, tomando a hereditariedade como

regulada por leis fixas e imutáveis. O dilema nature versus nurture3 acompanhou a eugenia e

seus opositores desde sua origem.

Em seu Inquiries into Human Faculty and its development, ao discorrer sobre as

bodily qualities4, Galton apresenta o termo eugenia:

“That is, with questions bearing on what is termed in Greek,

eugenes namely, good in stock, hereditarily endowed with noble

qualities. This, and the allied words, eugeneia, etc.,are equally

3 - em tradução livre, nature versus nurture significa natureza versus criação. Criação, neste caso, no sentido da

influência do meio de existência. 4 - qualidades corporais (tradução livre)

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applicable to men, brutes, and plants. We greatly want a brief

word to express the science of improving stock, which is by no

means confined to questions of judicious mating, but which,

especially in the case of man, takes cognisance of all influences

that tend in however remote a degree to give to the more

suitable races or strains of blood a better chance of prevailing

speedily over the less suitable than they otherwise would have

had. The word eugenics would sufficiently express the idea; it is

at least a neater word and a more generalised one than

viriculture which I once ventured to use.”5 (GALTON, 1883,

pág. 17)

A origem do termo remete, portanto, à palavra grega eugenes, que deveria

significar “hereditariamente agraciado com nobres qualidades”. Aplicável aos homens,

animais e plantas, o termo viria nomear a ciência do melhoramento da espécie,

especificamente, do estudo dos meios para que as melhores raças e estirpes prevalecessem em

detrimento das menos adequadas. Na origem do movimento, encontra-se sua essência.

Criado o termo, os frutos da idéia que o mesmo sintetizou não tardaram a

aparecer. Assim, as primeiras instituições eugênicas começaram a ser criadas, sobretudo a

partir do início do século XX. As iniciativas primeiras partiram de Galton e de seus principais

interlocutores, sendo eles Julian Huxley, Walter Frank Weldon, Montagu Crackanthorpe, Karl

Pearson e Charles B. Davenport, entre outros.

Como marcos iniciais do processo de institucionalização da eugenia, tem-se a

instalação, realizada por Galton, de um laboratório de biometria na Exposição Internacional

de 1884, realizada em Londres. Neste laboratório, o público poderia ter suas medidas tiradas e

analisadas segundo os padrões estatísticos aos quais Galton havia chegado. Houve, ainda, a

publicação da revista Biometrika, em 1901, sendo uma iniciativa de Galton, Pearson e

Weldon e um importante meio de divulgação da eugenia, pois seus editores eram adeptos da

idéia e, portanto, constituía um local de aceitação plena de suas publicações, muitas vezes

polêmicas.

5 - “Ou seja, com questões que tratam do que é chamado em grego de eugenes, características boas e nobres

presentes numa amostra e hereditariamente transmitidas. Essa palavra, e suas associações, são igualmente

aplicáveis a homens, animais e plantas. Nós muito queremos uma breve palavra para expressar a ciência que

trata da melhoria das amostras de população, que de forma alguma está confinada a questões de cruzamento

criterioso, mas que, especialmente no caso do homem, reconhece todas as influencias presentes por menor que

sejam a fim de rapidamente conceder às raças ou tipos sanguineos mais adequados melhor chance de

sobrevivência do que aos menos adequados. A palavra eugenia expressa suficientemente a ideia; é pelo menos

uma palavra melhor e mais ampla do que viricultura, que eu me aventurei a usar uma vez.” (tradução de Júlio

Mairena)

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Nos primeiros anos do século XX, Galton proferiu diversas conferências na

Inglaterra, aumentando sua gama de interlocutores e simpatizantes da causa eugenista, como

foi o caso do biólogo norteamericano Charles Davenport, que criou, nos Estados Unidos, uma

primeira sociedade eugenista logo em 1903, após ter presenciado uma conferência de Galton.

Tratava-se da Associação Americana de Reprodução, tendo o conferencista Galton como

membro honorário. No ano de 1906 o Laboratório de Biometria da Universidade de Londres

transforma-se no Laboratório Galton para a Eugenia Nacional. Em 1908 o mesmo organiza a

reunião inaugural da Eugenics Education Society, sob presidência de seu sobrinho Leonard

Darwin. Esta sociedade promoveu o 1º Congresso Internacional de Eugenia em 1912, com

700 delegados oriundos de países diversos. A partir daí, instituiu-se um comitê permanente de

eugenia, com representantes da Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, Itália e

Noruega.

Observa-se, então, uma profusão de sociedades eugenistas por países da Europa e

Estados Unidos. A 1º Guerra Mundial e suas mazelas em muito contribuíram para fortalecer

as convicções dos adeptos acerca da necessidade do estabelecimento pleno desta forma de

ciência que se configurava. A polêmica nature versus nurture, diante de eventos funestos

como a guerra, acabou por ser superada pelos eugenistas, quando fortemente passaram a crer

que certos comportamentos humanos eram frutos de caracteres fixos e não de escolhas

político- sociais. Evitar certos caracteres seria, para além do cuidado com os aspectos sociais,

portanto, a grande solução.

Sobre os métodos de definição destes caracteres desejados versus os indesejados

Stephen Jay Gould chama a atenção para uma publicação de Francis Galton em 1909:

“Sempre que tenho a oportunidade de classificar as pessoas

que encontro em três classes distintas „boa, regular e ruim‟,

utilizo uma agulha montada como se fosse uma pua, com que

perfuro, sem ser visto, um pedaço de papel cortado toscamente

em forma de cruz alongada. No extremo superior, marco os

valores „bons‟, nos braços os valores „regulares‟, e na

extremidade inferior os valores ruins. As perfurações são

bastante distanciadas para permitir uma leitura fácil no

momento desejado. Escrevo em cada papel o nome do sujeito, o

lugar e a data. Com este método, registrei minhas observações

sobre a beleza, classificando as moças que encontrei como

atraentes, indiferentes ou repelentes. É claro que esta foi uma

avaliação puramente individual mas, a julgar pela coincidência

dos diferentes intentos realizados com a mesma população,

posso afirmar que os resultados são consistentes. Assim,

comprovei que Londres ocupa a posição mais elevada na

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escala da beleza, e Aberdeen a mais baixa.” (Francis Galton,

1909, citado por Stephen Jay Gould)

Assim, a dimensão da eugenia se evidencia: para além da questão da doença e da

saúde, das raças e da religião, também passavam pelos conceitos de beleza e fealdade,

constituindo um mosaico de resultados categorizantes.

Recepção brasileira: campanha eugenista em prol da nacionalidade

O Brasil, quando dos primeiros passos do movimento internacional da campanha

eugenista, vivia suas primeiras décadas republicanas e, portanto, via-se como país em

formação. O contexto de formação da república criou o anseio pela formação da

nacionalidade brasileira e, diante disto, o movimento eugênico aqui adquiriu especial

importância. O campo de discussões nacionalistas da primeira metade do século XX no Brasil

é multiparadigmático: entre a exaltação ou condenação da mestiçagem, a interferência ou não

do Estado em prol do “branqueamento” da população e as propostas inúmeras acerca dos

rumos a serem tomados, havia o consenso de que era preciso intervir para a regeneração do

povo brasileiro, que estaria, em linhas gerais, moralmente e fisicamente degenerado. Esta

intervenção poderia dar-se por orientações eugenistas, evitando a existência dos degenerados,

ou sanitarista/higienista, cuidando para a melhora dos meios de existência e dos tratamentos

cabíveis, ou mesmo pela união das duas vertentes. A eugenia, portanto, esteve fortemente

vinculado ao nacionalismo que, sendo um conceito amplo, assim é definido pelo filósofo e

sociólogo Anthony Smith:

“A ideologia do nacionalismo foi definida de muitas formas,

mas a maior parte das definições sobrepõem-se e revelam

temas comuns. O tema principal, é claro, é a insistência

avassaladora na nação. O nacionalismo é uma ideologia que

coloca a nação no centro das suas preocupações e procura

promover o seu bem-estar. Mas isso é bastante vago.

Precisamos de ir mais longe e isolar os principais objectivos

sob cuja orientação o nacionalismo procura promover o bem-

estar da nação. Estes objectivos genéricos são três: a

autonomia nacional, a unidade nacional e a identidade

nacional; para os nacionalistas, a nação não pode sobreviver

sem um nível suficiente de todos eles.” (SMITH, 2001)

Caberia aos eugenistas, sanitaristas e higienistas – e entre essas áreas de atuação

havia muitos nexos- portanto, contribuir para a construção da identidade nacional. Diante

desta questão, havia a possibilidade de intervir para a criação de uma dada estirpe. Se a

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pluralidade fenotípica do brasileiro permitia possibilidades diversas, é certo que a influência

maior era exercida por aqueles que tinham como ideal eugênico o biótipo europeu germânico

– bem como tinham como ideal seus “valores disciplinares e morais”, pois a eugenia, para

além das questões físicas, preocupava-se também com as faculdades mentais e a moralidade.

Orientada por este juízo constituiu-se a ala principal do movimento eugenista no Brasil.

A recepção da eugenia no Brasil deu-se em contexto propício para o

desenvolvimento científico institucional. E se as produções não se resumiam às questões

evolucionistas então em voga, é certo que elas ocuparam um papel importante. Assim, os

pressupostos para o desenvolvimento de uma ciência ligada a estes temas, sobretudo ao

evolucionismo darwinista, estavam arraigados.

Dos empreendimentos científicos de D. João VI - que no Brasil criou importantes

centros de pesquisas e disseminação de estudos como institutos, museus e faculdades de

Direito e Medicina- aos estudos aqui realizados por viajantes, havia, desde o século XIX,

influências das teorias racistas e degeneracionistas como condutoras da visão sobre a

composição racial do brasileiro. Tornou-se, assim, a eugenia, pano de fundo das discussões

sobre os rumos do país e, sobretudo, da formação de sua nacionalidade. Esta nacionalidade,

por sua vez, era vista pelos cientistas, políticos e viajantes como sendo de uma promiscuidade

racial alarmante.

Souza Lima (1842-1921) 6 é considerado o precursor na tentativa de implantar

medidas eugênicas no Brasil, por sua conferência proferida na Academia Nacional de

Medicina, em 1897, intitulada Exame Pré-nupcial. Na ocasião, propôs uma legislação que

instituísse o exame pré-nupcial obrigatório e o impedimento do casamento entre portadores de

sífilis e tuberculose. Posteriormente, conferências e publicações acadêmicas com o tema

começam a aparecer: em 1912, Horácio de Carvalho publica artigo no Estado de São Paulo,

apresentando noções sobre o desenvolvimento da campanha na Inglaterra; em 1913 o médico

Alfredo Ferreira de Magalhães, docente da Faculdade de Medicina da Bahia e diretor do

Instituto de Proteção e Assistência à Infância, proferiu a conferência Pró-Eugenismo, em

Salvador; em 1914, sob orientação do professor Miguel Couto, o médico Alexandre Tepedino

apresenta a tese Eugenía à Academia de Medicina do Rio de Janeiro e, no mesmo ano, o 6- Agostinho José de Souza Lima foi médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1863.

Ocupou a posição de patrono da cadeira número 3 da Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro.

Ministrou cursos de medicina legal e toxicologia na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e na Faculdade de

Direito. Destaca-se, ainda, entre seus cargos, o de diretor da instituição de Higiene e Assistência Pública

Municipal, em 1894, no mesmo estado.

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filólogo João Ribeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, consolidou o termo eugenia,

como julgou ser a melhor tradução para o português. Outros artigos, como os de autoria de

Erasmo Braga, ou o opúsculo “Melhoremos na nossa raça” publicado em 1916 pelo eugenista

inglês então residente no Brasil Charles W. Arminstrong fizeram parte desta fase inicial.

(SOUZA, 2006)

O grande publicista da eugenia no Brasil foi o farmacêutico e médico Renato

Ferraz Kehl. Nascido em Limeira no ano de 1889 e falecido no ano de 1974, Kehl teve uma

vida muito ativa intelectualmente e operou uma profusão de atividades eugenistas em forma

de estudos, obras de divulgação (livros e artigos), criação de sociedades, institutos e

organização de congressos. Promoveu, ainda, interrelações entre seus interlocutores, inclusive

estimulando entre eles as trocas epistolares. Casou-se com Eunice Penna, filha do médico

sanitarista Belisário Penna.7 À época em que Renato Kehl inicia sua campanha eugenista,

importantes trabalhos sobre o tema já haviam sido publicados, como ressaltado acima. Seus

esforços, no entanto, o colocam na posição de expoente do movimento no Brasil. Parte

considerável da história deste movimento que hoje é reconstruída por pesquisadores de todo o

país se embasa nas informações contidas em seus escritos diversos, das obras aos arquivos

pessoais.

No ano de 1917, Renato Kehl proferiu uma conferência na Associação Cristã de

Moços de São Paulo intitulada Eugenia. Publicada no Jornal do Commercio e, posteriormente

nos Annaes de Eugenia, o conteúdo da conferência atraiu a atenção de muitos e despertou no

próprio o propósito de criar um projeto eugênico efetivo para o país. O primeiro passo seria a

criação de uma associação, formada por profissionais diversos que deveriam reunir-se para

discutir questões nacionais a partir do viés biossocial. No dia 15 de janeiro de 1918, a Sesp

(Sociedade Eugênica de São Paulo) é inaugurada, com apoio de Arnaldo Vieira de Carvalho,

como presidente, Olegário de Moura como vice-presidente, Renato Kehl como secretário

geral, Arthur Neiva, Franco da Rocha e Rubião Meira como conselheiros consultivos e

Belisário Penna, Amâncio de Carvalho e Agostinho de Souza Lima como presidentes

honorários. A Sesp angariou inicialmente 140 sócios oriundos de setores diversos,

interessados na implantação das soluções eugênicas no país. Sua extinção se deu em 1920,

7 - Belisário Augusto de Oliveira Penna (1869- 1939) médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia,

participou por expedições ao interior do país, atuou no combate à febre amarela e malária, fez parte do

movimento tenentista, foi ministro da Educação e Saúde do governo de Getúlio, em 1930, por três meses. Em

1932 ingressou na Ação Integralista Brasileira, sendo membro do órgão superior da entidade.

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após a morte de Arnaldo Vieira e a transferência de Kehl para o Rio de Janeiro8, onde onze

anos mais tarde fundou a Comissão Central Brasileira de Eugenia9. Em janeiro de 1929, o

Boletim de Eugenia passa a ser editado, sob “direção e propriedade” de Kehl.10

Neste mesmo

ano é organizado o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Entre o ano de criação de Sesp e a

nova profusão de atividades, sobretudo a partir de 1929, a historiadora Pietra Diwan lança o

questionamento:

“Teria tido alguma influência na paralisação das atividades da

Sesp a mudança de Renato Kehl para o Rio de Janeiro nesse

mesmo ano, por conta de seu casamento com Eunice Penna,

filha de Belisário Penna? Ou será que a elite paulista não tinha

um real interesse no tema, sendo a Sociedade somente um

pretexto para reuniões periódicas para o debate de um tema

„na moda‟, a eugenia? Talvez mereça ênfase o fato de Renato

Kehl ser o incentivador e estimulador do debate sobre a

eugenia, o que despertava o interesse de muitos membros da

elite paulista, mas não o suficiente para fazê-los „tomar as

rédeas‟ nos rumos da Sesp. Isso porque alguns dos membros da

Sociedade, após mais de uma década, migraram para a

Comissão Central Brasileira de Eugenia, sediada no Rio de

Janeiro e dirigida por Kehl.” (DIWAN, 2007)

Sobre a extinção da Sesp, Kehl denunciava a falta de entusiasmo que a paralisara.

Mas se a crítica era indiretamente direcionada ao legislativo - que não acompanhava o ritmo

de decretos propostos pela Sesp, talvez pelo incômodo que a forte polêmica causaria - é certo

que foi aclamada pela imprensa, da qual recebeu comentários elogiosos. Comentários estes,

aliás, frequentemente recebidos Renato Kehl, cujas menções encontradas em jornais das

décadas de 20, 30 e 40 são abundantes. Sobre os objetivos da Sesp, estes estavam sintetizados

em seu estatuto:

“estudar as leis da hereditariedade; a regulamentação do

meretrício, dos casamentos e da imigração; as técnicas de

esterilização; o exame pré-nupcial; a divulgação da eugenia e

o estudo e aplicação das questões relativas à influência do

meio, do estado econômico, da legislação, dos costumes, do

valor das gerações sucessivas e sobre aptidões físicas,

intelectuais e morais.” (Annaes de Eugenia, 1919)

8 - As discussões eugenistas no Rio de Janeiro estavam especialmente concentradas na psiquiatria. Em 1922 é

fundada a Liga Brasileira de Higiene Mental, reunindo profissionais de setores diversos, aos moldes da Sesp e de

outras sociedades que se formavam pelo mundo. 9 - Em publicação no 27º Boletim de Eugenia, Kehl esclarece que a CCBE objetivava a colaboração com projetos

governamentais de caráter eugênico, bem como sua divulgação. 10 - A publicação, inicialmente, seria propaganda de um futuro Instituto Brasileiro de Eugenia, sendo este um

projeto de Kehl que não logrou. A partir de junho de 1929, passa a ser uma separada da revista Medicamenta,

como freqüência mensal. Em 1932, passa a ser editada em Piracicaba, com apóio de professores da Escola

Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em freqüência trimestral, como órgão da Comissão Central Brasileira

de Eugenia.

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Pelo estatuto da Sesp constata-se que havia, portanto, certos embates e

complementaridades entre a eugenia e o sanistarismo e higienismo no Brasil. Vale ressaltar

que no mesmo ano de criação da Sociedade, em 1918, houve a fundação da Liga Pró-

Saneamento do Brasil (LPSB), com participação de Belisário Penna, Monteiro Lobato, Vital

Brasil, Arthur Neiva, Carlos Chagas, entre outros sócios, estando dentre eles o próprio Kehl.

A eugenia de base lamarckista acabava por abrir pressupostos práticos e filosóficos para a

crença no sanitarismo e no higienismo, enquanto a eugenia de base mendelista11

, ou seja, que

não pressupunha a condição primeira da eutenia (enquanto melhoramento dos meios de

existência) acreditava que, sem seus esforços, o sanitarismo e higienismo de nada

adiantariam. O próprio sogro de Kehl, Belisário Penna, denunciara - em relatórios sobre as

expedições aos interiores do país- o descompasso entre o valor físico dos trabalhadores

brasileiros e as condições insalubres nas quais viviam. (MOTA, 2003) Apesar de integrar o

movimento eugenista, Penna demonstra, portanto, a convicção de que o meio de existência

poderia influenciar as habilidades humanas.

Se a sífilis, a turberculose a o alcoolismo eram tidos como principais alvos a

serem combatidos, a estratégia consistia em duas frentes: combatia-se o doente, pelo

higienismo e saneamento e, por outro lado, cuidava-se para evitar a existência destes doentes,

pela eugenia. Há, nas próprias publicações de Kehl, elementos que demonstram essa dupla

convicção, prevalecendo, com o passar dos anos, o pressuposto mendelista. Desenvolveu-se

essa nova e peculiar forma de ciência neste ambiente de debates complexos e, inserido neles,

Renato Kehl colocava-se como principal argüidor e divulgador. É preciso ressaltar, portanto,

que a campanha eugenista constituiu-se por uma rede de pessoas, que exerciam tipos de

influências diversas, de modo que os objetivos eram compartilhados e disseminados, não

sendo exclusivos de poucos idealistas.

Sua trajetória intelectual demonstra a multiplicidade de suas convicções, tendendo

à radicalização de suas propostas que, ao adotar as leis de hereditariedade de Mendel e

Weissman, romperam com as bases lamarckistas e não mais pressupunham a influência do

meio no desenvolvimento das habilidades humanas. Este rompimento é nítido, sobretudo, a

partir do início das viagens profissionais à Alemanha, em 1928, e da publicação, em 1929, do

livro Lições de Eugenia. Nas palavras do historiador Vanderlei Sebastião de Souza:

11 - As matrizes científicas da eugenia se modificaram com o contexto e o período, usando como base ora os

trabalhos de Mendel, ora os de Lamarck ou de August Weissman. O debate foi intenso e complexo. No entanto,

atenta-se para o fato de que os cientistas que forneceram as teorias não estiveram necessariamente ligados ao

movimento.

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“A opção por um modelo de eugenia mais „suave‟, ao

„estilo latino‟, conforme a expressão empregada por

Nancy Stepan, perderia espaço no pensamento deste

autor, sobretudo a partir de 1928. Se até este período ele

compartilhava dos pressupostos sanitaristas e de um

ponto de vista otimista sobre o futuro do Brasil, passava a

ver com ressalvas as promessas reformadoras propostas

pela medicina social. Seu distanciamento em relação ao

pensamento médico-sanistarista – que associava

diretamente a eugenia às reformas sociais e ambientais-

sua crescente simpatia pelos conceitos mais „duros‟ e

extremados da „eugenia negativa‟, mudariam inclusive a

própria rede de relações que seria estabelecida por

Renato Kehl a partir daquele período. O diálogo

intelectual e científico que seduzia o eugenista brasileiro

parecia deslocar-se no sentido da periferia ao centro,

atraído pela ascensão das idéias eugênicas nos Estados

Unidos e na Europa, especialmente dos pressupostos

originários da „higiene racial‟ alemã.” (SOUZA, 2006)

Ao assumir este teor mais radical, os seus projetos de restrições imigratórias

ganham especial importância. Fruto de seu posicionamento contrário à presença de certos

tipos estrangeiros e, sobretudo, da miscigenação – cujos supostos malefícios Kehl passa a

divulgar com afinco- visavam leis que regulamentassem a imigração e a tornasse mais

seletiva, sobretudo em detrimento de negros, japoneses e doentes físicos e mentais. Se antes a

miscigenação era vista por ele como uma possibilidade de “branqueamento” gradual da

população, passa, então, a ser vista com grande pessimismo. A publicação Lições de Eugenia,

em 1929, bem como alguns textos do Boletim de Eugenia, em anos próximos, demonstram o

reforço da necessidade de se estabelecer, com urgência, as características físicas e mentais do

elemento nacional, em detrimento das variações indesejadas.

A 11º lição de eugenia da obra supracitada se dedica a discussão dos meios

eugênicos a serem utilizados para que os projetos obtivessem sucesso. São essenciais para a

compreensão de suas matrizes de pensamento estas teorias e métodos específicos que levaram

– ou que corroboraram juízos anteriores- às conclusões específicas acerca das características

dos elementos desejados versus os indesejados. De maneira sintética, a função máxima desta

forma de eugenia seria assim subdivida:

“A) Favorecer a procreação sã, isto é, fomentar a

paternidade digna. B) Contrariar, ou melhor, evitar por

todos os meios possíveis a procreação dos defeituosos. C)

Premunir a espécie dos males e venenos degeneradores.”

(KEHL, 1929)

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Para tanto, os métodos utilizados pertenceriam a duas vertentes: a eugenia

positiva, enquanto apelo e profusão de propaganda educativa; e a eugenia negativa - na qual

as restrições imigratórias se inserem - que diziam respeito às medidas restritivas, sobretudo as

leis impeditivas de matrimônio, imigração e, por fim, a esterilização compulsória. A fim de

estabelecer os alvos destas leis, a eugenia deveria fazer uso da estatística e do estudo do

histórico familiar dos indivíduos. E se opiniões contrárias baseavam-se no peso destas

medidas, bem como no fato de ferirem as liberdades individuais, Kehl afirma que este seria

um preço menor a se pagar em prol da melhora do patrimônio biológico da humanidade, o que

seria mais compensatório do que conviver com a existência de “monstros”.

Os meios a serem adotados são sistematizados em parágrafo altamente

elucidativo:

“ 1)- Registro do pedigree das famílias; 2)- Segregação dos

deficientes criminaes; 3)- Esterilização dos anormaes e

criminosos; 4)- Neo-malthusianismo com os processos

artificiais para evitar a concepção nos casos especiaes de

doença e miséria (controle do nascimento); 5)-

Regulamentação eugênica do casamento e exame medico pré-

nupcial obrigatório; 6)- Educação eugênica obrigatória nas

escolas secundarias e superiores; 7)- Propaganda popular de

conceitos e preceitos eugênicos; 8)- Lucta contra os factores

dysgenizantes por iniciativa privada e pelas organizações

officiaes; 9)- Tests mentaes das crianças entre 8 e 14 annos;

10)- Regulamentação da immigração sobre a base da

superioridade media dos habitantes do paiz, estabelecida por

tests mentaes; 11)- Estabelecimento de cuidados pre-nataes das

gestantes e pensões para as mulheres pobres; 12)-

Regulamentação da immigração sobre a base da superioridade

media dos habitantes do paiz, estabelecidada por tests mentaes;

13)- Estabelecimento dos defeitos hereditarios dysgeneticos que

impedem o matrimonio e os que podem servir de base á

pleiteação do divórcio.” (KEHL, 1929)

Diante da dimensão extensa do projeto, a questão da imigração sintetiza algumas

particularidades da eugenia proposta por Kehl: para além da questão étnica, a seleção de

imigrantes deveria se pautar pela escolha dos tipos considerados superiores, mesmo dentre

aqueles previamente aceitos. Os aceitos seriam, por apresentarem “afinidades culturais”, os

alemães e italianos. Na 12º lição de eugenia, dedicada a “política eugênica”, a questão

imigratória é apresentada de maneira mais elaborada. Kehl a inicia com um apelo aos

“proselytos da eugenia que occupam cargos legislativos”, para que impulsionem as propostas.

O apelo, portanto, é para que sejam aprovados os decretos-lei que há muito tentavam aprovar

na íntegra. Pouco depois, em 1932, Kehl participou de uma comissão para pensar a imigração,

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ligada ao Ministério do Trabalho, sobretudo por suas relações de amizade com Oliveira

Vianna. Nos pressupostos expostos nesta lição, os pilares de sua ação são elucidados. 12

O argumento inicial é tácito: em todas as sociedades há, dentre a massa de

anônimos, poucos indivíduos que se sobressaem e apresentam capacidade física e intelectual

acima da média. Apesar de poucos, são os responsáveis pela “vitalidade nacional”. Kehl cita

Oliveira Vianna, que teria reproduzido os dados de uma “certa revista” norteamericana onde

estaria demonstrado que, dentre os homens eminentes registrados entre 1835 e 1875 nos

estados dos EUA, a hereditariedade étnica era um fator dominante. Os estados mais notáveis

seriam aqueles que receberam elementos mais nobres, sobretudo britânicos e germânicos. Os

estados degenerados, como o Novo México, assim o era por ter recebido elementos

hispânicos. A estatística era clara: a cada 60.000 habitantes, Massachussets apresentava 98

homens notáveis, Connecticut apresentava 78, Vermont 70, New Hampshire 60, Maine 54 e o

Novo Mexico apresentava apenas 2. Os números apresentados, no entanto, não se referiam à

existência de indivíduos verdadeiramente eugênicos (que seriam os tipos superiores

eugênicos, apontados como raríssimos), mas aos médios eugênicos, o que tornava o problema

ainda mais grave. Kehl atenta para o fato de que Galton só consideraria verdadeiramente

notável o homem que desse repetidas provas de suas habilidades e não apenas demonstrasse

sucessos eventuais. Estava lançada, portanto, a evidência científica que corroboraria a

importância das restrições imigratórias e de miscigenação. E o caso brasileiro – onde os

estados que receberam imigrantes alemães e italianos eram nitidamente mais prósperos que os

outros que os receberam em pequena quantidade- constituía mais uma prova irrefutável do

peso do valor étnico na hereditariedade. Os testes mentais, muito estimados pelos eugenistas,

deveriam ser aplicados não em todos, mas para selecionar os mais dotados dentre os

indivíduos das nacionalidades previamente selecionadas.

Diante destas evidências, concluía Kehl que a nacionalidade brasileira, por sua

diversidade, encontrava-se em um “estado de cólicas”. Ao discorrer sobre o processo de

desassimilação dos negros e índios, o qual julgava ser latente, faz a famosa afirmação de que

12 - Optou-se, no presente trabalho, pela discussão acerca das propostas de Renato Kehl, não abarcando suas

influências e distanciamentos para com os decretos-leis restritivos, pela vastidão do tema. Desde a Constituição

de 1891 trata-se da questão da regulamentação da imigração, sendo o decreto 1566, de 1893, o primeiro a vetar

“mendigos” e doentes. Na década de 20 este decreto é reforçado, com a inclusão do veto para prostitutas. Em

1930 decreta-se o veto de estrangeiros, a não ser quando solicitados, em nome da proteção do trabalhador

nacional (Lei dos Dois Terços). Com a Constituição de 1934, a resoluções tornam-se mais severas, a fim de

evitar quistos étnicos. Cria-se, em 1938, o Departamento Nacional de Imigração. Para além das questões

jurídicas, sabemos que o poder atribuído a determinados cargos públicos possibilitava os vetos individuais, como

hoje mostram as justificativas dos arquivos do Itamaraty, ainda em processo de abertura.

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a nacionalidade embranqueceria “á custa de muito sabão de côco aryano”. Menos mal, em sua

opinião, se comparado ao caso norteamericano, onde a segregação e, portanto, a coexistência

de raças acarretaria em um problema ainda maior. De qualquer maneira, a entrada de

indivíduos “negros e selvícolas” não deveria ser incentivada. Demonstra, ainda, especial

preocupação para com a imigração japonesa, dedicando-lhe um item do capítulo. Por serem

inassimiláveis e, mesmo assim, emigrarem em quantidade considerável, acabariam por formar

um quisto racial indesejado, comprometendo a nacionalidade. Há textos diversos, publicados

no Boletim de Eugenia, que tratam da questão da imigração e dispensam atenção especial aos

japoneses. O “perigo amarelo” constituía, assim, problema de primeira ordem.

Deveria ser evitado, da mesma maneira, o cruzamento entre indivíduos de etnias

diferentes, pois o mestiço, afirmava: “representa um typo intermediário no qual se installam a

desharmonia e o desequilíbrio orgânicos...”. Hibridismo, fraqueza e fealdade eram

considerados os principais males da mestiçagem. Esta, por sua vez, só seria aceitável se

ocorresse entre indivíduos de raças semelhantes, como no exemplo sempre utilizado dos

alemães e italianos.

As eventuais marcas passionais de seu discurso procuram ser minimizadas com

contrapontos. Principalmente após as propostas que sabidamente poderiam soar intolerantes.

Para tanto, Kehl afirma que com suas observações não pretende hierarquizar as raças,

tampouco desqualificar alguma, sendo que mantêm todas em nível igual de respeito. No

entanto:

“A influencia dissolvente, cacogenizante, de certas imigrações,

deve ser tida, pois, em alta conta pelos nossos homens de

governo. Além da necessidade de selecionar os immigrantes

sob o ponto de vista psychico e mental, devem elles ser

seleccionados, também, sob o ponto de vista nupcial. Digam o

que quiserem, devemos ter a coragem para affirmar que há

algumas raças que, absolutamente, não nos convêm. Como foi

dito anteriormente ao tratarmos dos „bens dotados e a

immigração‟, não somos partidários da prohibição da entrada

de immigrantes pretos ou amarellos no paiz. Não vamos a

tanto. Somos, sim, de opinião que não devemos, absolutamente,

facilitar, fomentar e estimular certas immigrações, - tolerando,

apenas, a entra espontânea dos que aqui vierem para

collaborar comnosco no progresso do paiz.” (KEHL, 1929)

Conclusão

Contextualizar Renato Kehl e a rede intelectual formada pelos eugenistas do

Brasil e do mundo, bem como suas formas de fazer ciência, seus métodos descritivos, as

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divergências acerca das leis de hereditariedade, as estatísticas e afins é imprescindível para

compreender os eventos eugenistas e sua dimensão. Mas faz-se necessário, também, apontar

para a possibilidade de uma certa “promiscuidade discursiva” praticada pelos eugenistas

(NALLI, 2000), sobretudo pela existência de certos juízos a priori que promoveram deduções

em nome de algo que não necessariamente dizia respeito àquele campo do conhecimento,

mesmo que houvesse necessidade de estabelecer nexos e correlações para que a eugenia assim

se edificasse.

A trajetória intelectual de Kehl, não obstante variações e reafirmações de certos

posicionamentos, tem como lastro identitário sua visão bioperspectivista da história. Este

olhar para o passado e para o futuro norteado pelos aspectos biológicos da humanidade tinha

como pilares alguns conhecimentos provenientes das ciências biológicas que, se não poderiam

ser exatos ou absolutos, os eugenistas tentaram assim fazê-los. Na transposição das

constatações obtidas pelos estudos direcionados em laboratórios para as práticas sociais, é

certo que a eugenia se embasou e corroborou mecanismos de intolerância diversos, sobretudo

com a afirmação e criação de estigmas negativos. O determinismo da condição biológica

inferior aprofundou a níveis perigosos o rebaixamento de certas identidades sociais, como

experiências posteriores demonstraram. Fazendo uso de práticas discursivas e termos

específicos, como “resíduos humanos” e “estragados”, algumas identidades, sobretudo de

portadores de doenças e determinados imigrantes, eram vestidas de atributos biológicos que as

desqualificavam. Em contrapartida, buscava-se o estabelecimento de um novo padrão de

normalidade, balizado por um dado ideal do que seria o “homem bom”.

A construção de um dado nacionalismo pela inclusão de uns e exclusão de outros

grupos apresenta-se de forma perene, constituindo característica de tempos diversos. O uso

sistemático das ciências biológicas - em conjunto com a estatística- para tal construção é uma

especificidade marcante das formas de eugenia da primeira metade do século XX. Mesmo não

sendo o debate homogêneo e havendo significativos movimentos de resistência, é certo que

seus pressupostos criaram raízes e nortearam ações.

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ALEXANDER HUMBOLDT E SUAS CONCEPÇÕES

Vinicius Santos da Silva

Especialização em Filosofia Contemporânea (UEFS)

[email protected]

Eduardo Chagas Oliveira

Professor Adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Nilton de Almeida Araújo

Professor de História do Brasil da Universidade Federal do Vale do São

Francisco (UNIVASF)

Resumo

Alexander Humboldt filósofo-naturalista alemão de finais do século XVIII e meados do

século XIX, deixou um legado histórico, filosófico e científico para os estudos da natureza. O

presente trabalho histórico-filosófico, em desenvolvimento, propõe fazer uma análise, a partir

do viés das revoluções científicas Thomas Kuhn e da lógica da argumentação de Chaim

Perelman, da organização do discurso textual de Humboldt para o desenvolvimento de seus

estudos sobre a natureza. O objeto de estudo desta pesquisa é a obra Quadros da Natureza

volume I e II de Humboldt. Metodologicamente pretende-se fazer a leitura da obra e extrair

fragmentos que evidenciem e revelem a concepção de natureza de Humboldt e ressaltem o

discurso e a lógica científica deste pesquisador naturalista. Espera-se perceber as inovações,

contribuições e os avanços da obra humboldtiana para os estudos sobre a natureza e

desconstruir o ideal de gênese-evolução-crescimento da ciência.

Palavras-chave: Humboldt, Natureza, Quadros da Natureza

Friedrich Heinrich Alexander Humboldt nasceu em Berlim em 14 de setembro de

1769 foi um filósofo-naturalista que contribuiu para o desenvolvimento dos estudos da

natureza em meados do século XIX. Humboldt construiu sua pesquisa e conhecimento em

relação à natureza, a partir da elaboração de uma metodologia de trabalho pautada em suas

experiências expedicionárias em outras regiões naturais conciliadas com uma forma própria

de observar as especificidades dos ambientes naturais visitados.

Considerado como o precursor das bases das ciências geográficas, geológicas,

climatológicas e oceanográficas, as realizações e as pesquisas de Humboldt estão

contemporaneamente presentes em comunidades científicas. Portanto, pode-se ressaltar que os

estudos e experiências a respeito do meio natural de Humboldt servem de base teórica para as

pesquisas e estudos das comunidades científicas relacionadas com a temática da natureza.

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As realizações científicas são relatadas em manuais e estes representam trabalhos

científicos que expõem teorias e aplicações a partir de observações e experiências (KUHN,

2007, p. 29). A partir desta constatação o objeto de pesquisa e investigação deste trabalho, em

desenvolvimento, será a análise do texto da obra Quadros da Natureza de Humboldt.

O propósito deste trabalho de investigação histórico-filosófica é de analisar nos

volumes I e II da obra Quadros da Natureza a organização do discurso textual de Humboldt

para o desenvolvimento de seus estudos e sua concepção sobre a natureza. A proposta é

evidenciar como Humboldt estruturou seu discurso textual a fim de ser aceito

contemporaneamente por algumas comunidades específicas (geografia, biologia,

oceanografia, climatologia, etc.).

Metodologicamente este trabalho está organizado a partir da leitura do texto da

obra Quadros da Natureza onde se buscará extrair fragmentos textuais que evidencie e

revelem a concepção de natureza de Humboldt. Espera-se com este trabalho perceber as

inovações, contribuições e os avanços do trabalho de Humboldt para com os estudos sobre a

natureza. A ideia é ressaltar o contexto histórico, filosófico e científico da organização do

trabalho humboldtiano, a fim de desconstruir o ideal de gênese-evolução-crescimento da

ciência. O intuito por fim é contribuindo para a pesquisa sobre a natureza para com a

historiografia da História das Ciências assim como para com a Filosofia das Ciências.

Teoricamente este trabalho partir do viés de concepção de revoluções científicas

(KUHN, 2007) e da lógica da argumentação (PERELMAN, 2005). A concepção de Chaim

Perelman (2005), a respeito da argumentação auxiliará esta pesquisa a compreender como

Humboldt contextualizou argumentativamente a sua obra a respeito do conhecimento da

filosofia natural em finais do século XVIII início do século XIX.

Partindo da teoria da argumentação de perelmaniana esta investigação histórico-

filosófica tentará apresentar o pluralismo de elementos utilizados por Humboldt (observação,

exploração do meio natural, correlação dos elementos da natureza, etc.) a fim evidenciar e

construir seu discurso e sustentar a sua argumentação a respeito de sua concepção sobre a

natureza. A relevância de compreender a argumentação de Humboldt perpassa pela ideia de

analisar o discurso naturalista deste pesquisador do meio natural e perceber como a sua

filosofia da natureza em meados do século XIX passou a ser aceita.

A partir da identificação da estrutura metodológica de trabalho desenvolvido por

Humboldt compreender e perceber como a sua forma de pesquisar a natureza pode ser

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identificada enquanto uma revolução científica. Essa etapa busca constatar os pontos de

inovação e rompimentos, a partir do viés de concepção de revolução científica proposto por

Thomas Kuhn (2007), considerando este processo de construção do conhecimento histórico-

filosófico importante para compreender o contexto científico subjacente à construção da

concepção de natureza proposta por Alexander Humboldt.

A obra Quadros da Natureza é uma coletânea de sete livros dividida em dois

volumes, onde Humboldt organiza seu discurso sobre a natureza apresentando as paisagens

ambientais, os aspectos naturais, à zoologia, a fisiologia das plantas e evidencia o seu caráter

humanista (CARVALHO, 1957). Em Quadros da Natureza, Humboldt revela a sua

preocupação em desenvolver a tarefa de observar e transmitir a descrição da natureza traçando

uma visão panorâmica e organizada de seus elementos (OLIVEIRA, 2008). Nesta obra

Humboldt deixa transparecer as suas percepções, conceitos, diretrizes, métodos de pesquisas,

enfim, abordagens defendidas por este pesquisador e que passaram a ser aceitas por diversas

áreas do conhecimento.

Na obra Quadros da Natureza, preliminarmente, pode-se perceber que Humboldt

entende a natureza como dinâmica, relacional e harmônica. Para Humboldt a relação existente

entre os agentes do meio natural como: ar, climatologia, floresta, indivíduo, água, economia,

solo, enfim, eram constantes e representam um contexto complexo, dinâmico e relacional.

Esta constatação para Humboldt deve ser salientada pelo observador do meio natural que

deveria interpretar a natureza percebendo que esta está sempre se relacionando com processos

de expansão e contração de forças consideradas invisíveis (PRATT, 1999).

Alexander Von Humboldt reinventou a América do Sul antes de tudo

enquanto natureza, não uma natureza que senta e espera ser reconhecida e

possuída, mas uma natureza em movimento, impulsionada por forças vitais

em grande parte invisíveis para o olho humano. Uma natureza que apequena

os homens determina o seu ser, excita suas paixões, desafia seus poderes de

percepção (PRATT, 1999, p. 212).

A metodologia de trabalho desenvolvida por Humboldt estava estruturada na

argumentação do discurso sobre a natureza, pautada na construção de um texto literário com

viés na perspectiva da poesia-romântica. A fim de desenvolver este discurso sobre a natureza

Humboldt utiliza-se de elementos pertencentes à literatura, principalmente romântica, utiliza-

se da ciência, da participação do observador no ambiente natural, da utilização da

subjetividade e objetividade na investigação do meio natural, das experiências nas excussões

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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nas diversas realidades naturais dos ambientes visitados e da delimitação do campo visual

como um quadro, apresentado por Humboldt como um quadro da natureza.

Ricotta aborda que para Humboldt a ciência dependia da imaginação para haver

uma comunicação plena, ou seja, as imagens proporcionariam esta imaginação posteriormente

comunicativa como apresentada em suas obras (RICOTTA, 2002, p. 19-20).

Tanto no Quadros da Natureza como no Cosmos, o “tratamento” muitíssimo

imagético dedicado à linguagem propõe uma nova dimensão interpretativa

dos fenômenos naturais ou da Natureza propriamente dita. “Aqui, a

Natureza, em sua totalidade, é “tudo o que é perceptível” como “plenitude da

vida” e, como tal, deve ser conhecida e reunida segundo o “trânsito” entre

aquilo „que a alma apreende do mundo e aquilo que ela devolve das suas

profundezas” (HUMBOLDT, A., Cosmos, 1997, p.48 et. seq., Apud,

RICOTA, 2002, p. 17).

A relação estabelecida entre ciência e literatura presente na obra humboldtiana,

formam um par e dividem um repertório conceitual comum. Este repertório envolve valores

como, “natureza”, “sentimento da natureza”, “mundo”, “fenômeno”, “íntima comunhão”,

“unidade”, “totalidade”, “infinito”, “pensamento”, etc. (RICOTTA, 2002, p. 14). Humboldt

em Quadros da Natureza deixa transparecer que a participação do observador no meio natural

é fundamental, pois esta participação é o que dá o sentido e a vivacidade, caracterizando o

ambiente visualizado, articulando os elementos físicos e concretos com os agentes subjetivos

ou abstratos pertencentes a natureza. Esta visualização do ambiente natural está delineada e

delimitada no campo visual de análise considerado por Humboldt como Quadro da Natureza.

A natureza para Humboldt é como um quadro natural, a paisagem é tomada numa

perspectiva estética. O sujeito atribui o papel criativo na sua captação e representação, de

modo que o conjunto de formas não seja meramente fisionômico, mas revele a dimensão

subjetiva de sua produção e representação (SILVEIRA, VITTE, p. 164).

A participação do observador no ambiente natural já era presente em Lineu,

entretanto numa perspectiva descritiva mecanicista. A pesquisa lineana via a natureza como

verdadeiras engrenagens das invenções humanas e que trabalhavam para a manutenção de

uma natureza vista como uma máquina feita à semelhança (BAUAB, 1999). Humboldt

aparecer como revelador de uma filosofia da natureza em contraposição entre as perspectivas

materialistas e idealistas e o problema da dualidade entre homem e natureza.

Humboldt estabeleceu um campo de objetos (água, árvore, solo, altitude,

temperatura, etc.) formado pela natureza, estes objetos formavam os parâmetros de uma

perspectiva científica que mistura o movimento de racionalização do mundo ao movimento de

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penetração íntima no segredo reconhecível no ciclo vital da natureza (RICOTTA, 2002, p.12).

Portanto, a capacidade da valorização do ambiente delimitado em um quadro visual está na

percepção do observador em tentar combinar nesta visualização a especificidade científica

com a estética da natureza.

Esta investigação histórico-filosófica é relevante por propor discutir e

compreender na obra Quadros da Natureza de Alexander Humboldt a sua concepção de meio

natural, as inovações e rompimentos científicos propostos por este pesquisador em relação aos

estudos sobre a natureza em finais do século XVIII início do século XIX.

O pensamento de Alexander Humboldt e suas contribuições para o estudo da

natureza devem ser investigados a partir do viés de conhecer e compreender os estudos sobre

a natureza em finais do século XVIII início do século XIX. A reflexão por meio do

conhecimento do método descritivo e mecanicista, do organicismo e da empiria auxiliará na

compreensão e na organização dos argumentos discursivos e metodológicos elaborados por

Alexander Humboldt.

Kuhn aborda que os pesquisadores analisam indícios de determinados assuntos já

estudados (KUHN, 2007, p. 32). Partindo desta perspectiva, pode-se considerar que Humboldt

possivelmente, utilizou de conhecimentos prévios para construir sua teoria sobre a natureza.

Desta forma, a investigação da obra Quadros da Natureza, e a análise sobre o grau de

apropriação dos intelectuais utilizados por Humboldt, representam nesta pesquisa a tentativa

de compreender as inovações e rompimentos da concepção de meio natural apresentados por

este pesquisador.

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AS QUESTÕES AMBIENTAIS NAS TESES DOS EABIANOS

1880-1904

Vinicius Santos da Silva

Especialização em Filosofia Contemporânea (UEFS)

[email protected]

Nilton de Almeida Araújo

Professor da UNIVASF

Resumo

Este trabalho, ainda em fase de desenvolvimento, investiga e verifica as questões ambientais

recorrentes nas teses dos Engenheiros Agrônomos (eabianos) formados na Escola Agrícola da

Bahia (EAB), no período de 1880-1904. A proposta consiste em apresentar à historiografia

das ciências as concepções ambientais relacionadas às ciências agronômicas defendidas

argumentativamente nas teses dos eabianos. Esta investigação histórica estrutura-se

metodologicamente a partir da delimitação do espaço temporal de estudo compreendido no

período de 1880-1904, na seleção de teses por título do período delimitado para estudo e na

extração de fragmentos, das teses até então selecionadas, que abordem as concepções

ambientais destes estudantes apresentando a relação com os conhecimentos científicos.

Palavras-chave: Escola Agrícola da Bahia, Eabianos, Concepções Ambientais

Há trinta anos era difícil falar em história das ciências no Brasil imperial.

Estudiosos desta área, como Azevedo (1955) e Schwartzman (2001), argumentavam que só

passou existir ciências no Brasil a partir do período republicano, antes ou era insignificante ou

era atividade clandestina. Dantes (2001), evidencia que a ideia de Azevedo (1955) em

apresentar a ciência relacionada às grandes descobertas ou invenções obstruiu a percepção da

ocorrência de ciências no Brasil “Azevedo se apoia na tradição da história das ciências

voltada para a formulação de grandes teorias e que as regiões periféricas eram receptáculos

passivos da ciência produzida nos grandes centros em especial, os europeus” (DANTES,

2001, p. 17).

Com o desenvolvimento das pesquisas em história das ciências articuladas a

outras áreas do conhecimento como sociologia, antropologia e a história tout court, começa a

haver a inserção nos estudos e análises históricas os acontecimentos cotidianos. Historiadora

(e)s, em especial das ciências, vem desenvolvendo pesquisas a fim de desconstruir esta

concepção de ciências tradicionalista, pautada principalmente em balizes européias.

Este trabalho, em desenvolvimento, se insere nesta construção e realização de

história convergente em ressaltar em suas análises e pesquisas as atividades de agentes

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históricos, Engenheiros Agrônomos (eabianos), pertencentes a uma instituição que produziu

ciência em finais do Brasil império início da república, Escola Agrícola da Bahia (EAB). A

partir desta perspectiva dos estudos da história das ciências no Brasil, busca-se por meio desta

pesquisa apresentar temas ainda pouco explorados e trabalhados na historiografia das

ciências, como as práticas técnico-científicas para o desenvolvimento do conhecimento da

engenharia agronômica. Portanto, o presente texto pretende contribuir para as pesquisas em

História das Ciências, por meio de uma investigação ainda em fase inicial, apresentando as

concepções sobre as questões ambientais recorrentes nas teses dos Engenheiros Agrônomos

(eabianos), formados na Escola Agrícola da Bahia (EAB).

A EAB implantada pelo Imperial Instituto Baiano de Agricultura (IIBA) foi a

primeira instituição de ensino superior voltada para a formação de Engenheiros Agrônomos

no Brasil. Esta instituição foi criada em meio a crise da lavoura canavieira, especialmente na

região do recôncavo baiano, tendo como objetivo tentar reverter esta situação complexa por

meio dos conhecimentos técnico-científicos que seriam desenvolvidos nesta Unidade de

Ensino (ARAUJO 2006, p. 10).

Esta Instituição foi instalada no Engenho Beneditino de São Bento das Lages na

Vila de São Francisco do Conde no recôncavo da Bahia. Justifica-se a escolha desta

localidade devido aos terrenos extensos e variados na região, pelo mosteiro já possuir

edifícios que poderiam ser utilizados e pelo fato da área do engenho de São Bento das Lages

se localizar em uma região adjacente a Santo Amaro e São Francisco do Conde, os principais

produtores de cana-de-açúcar do recôncavo neste período (ARAUJO, 2006, p. 36).

O pioneirismo desta instituição está vinculado ao ensino superior voltado para a

formação e diplomação de engenheiros agrônomos (eabianos) no Brasil, na sua organização

institucional, na produção e difusão do conhecimento agronômico, além da formação de um

novo campo científico e de uma nova comunidade científica, na Bahia e no Brasil (Araujo,

2010). Baiardi coloca que a EAB foi o centro de pesquisa agronômica, que possibilitou o

desenvolvimento de estudos de outras culturas, que contribuiu para a dinamização agrícola do

recôncavo da Bahia e de outras regiões (BAIARDI, 2001, p.14-15).

IIBA produziu um acervo de conhecimentos técnico-científicos, o qual

contribuiu para a expansão e consolidação no Recôncavo Baiano e

adjacências das lavouras da cana-de-açúcar, fumo, café e algodão,

tipicamente geradoras de commodities, e de mandioca, outros tubérculos e

raízes, fruteiras, legumes diversos, bem como de atividades de produção

animal, voltadas, majoritariamente, para o mercado interno (BAIARDI,

2001, p.12).

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Quatro anos de estudos era o ciclo acadêmico da EAB e no final deste período os

eabianos tinham que dissertar seus conhecimentos em textos de conclusão de curso

denominados teses. As teses eram pré-requisito sine qua non para a obtenção do grau de

Engenheiro Agrônomo. Araujo, (2010, p. 154) aborda que as teses eram empreendimentos

dos eabianos que proporcionavam aos leitores o testemunho da situação agrícola que a Bahia

passava naquele momento histórico.

As primeiras teses foram defendidas em meados de 1880, nestes textos de autoria

individual, se constituíam o momento e o cenário em que os eabianos apresentavam

argumentativamente, os seus conhecimentos teóricos, técnicos e científicos desenvolvidos na

Instituição. Portanto, as teses se caracterizam como um ambiente de discussão e difusão de

pesquisas científicas em que os eabianos concentraram esforços a fim de apresentarem suas

análises para as temáticas que eram consideradas naquele momento histórico (finais do século

XIX início do século XX, no recôncavo da Bahia), como importantes para o desenvolvimento

agrícola.

Esta investigação histórica está estruturada metodologicamente a partir da

delimitação do espaço temporal de estudo compreendido no período de 1880-1904, onde a

EAB esteve em pleno desenvolvimento de suas atividades acadêmicas no mosteiro de São

Bento das Lages-Ba. Em seguida, realizou-se a seleção de teses por título que apresentassem

explicitamente a abordagem de natureza a fim de analisar se o título proposto pelo eabiano se

relacionava com que o mesmo estava dissertando a respeito das questões ambientais. Por fim

fragmentos que abordassem as concepções ambientais destes estudantes estão sendo extraídos

das teses selecionadas.

Nas teses estão sendo verificadas e analisadas as apresentações e disposições dos

conhecimentos e concepções teóricas, técnicas e científicas dos eabianos. Estes textos

científicos representam a materialização das propostas e justificativas dos eabianos a fim da

promoção das questões ambientais, das questões sobre ciência, das questões sobre filosofia da

natureza, propostas para o desenvolvimento dos transportes, propulsão para a dinamização da

engenharia agrícola com a introdução de máquinas, equipamentos e instrumentos, concepções

de raça, trabalho, química, física e biologia para a o desenvolvimento do conhecimento

agrícola.

A leitura das teses dos eabianos, preliminarmente, possibilita perceber a

recorrência do discurso sobre as questões ambientais com perspectivas direcionadas com a

promoção da conservação do meio ambiente relacionada às questões econômicas. A floresta,

o ar, a água, as chuvas, os ventos, as florestas, os rios, o solo, as culturas agrícolas,

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temperatura, adubos, enfim, são apresentados nos textos das teses como estando em constante

relação. Esta estrutura analítica dos eabianos a respeito da natureza caracteriza por fim, uma

discussão filosófica da natureza direcionada para um ideal de preocupação com o meio natural

correlacionando ambiente, ciência e economia. Pode-se considerar, ainda que inicialmente,

que os eabianos são os sujeitos históricos que trouxeram para a discussão acadêmica a

temática das questões ambientais no Brasil em finais do século XIX início do século XX.

Dantes (1996) retrata que há, portanto, uma construção da concepção de ciência

como prática de produção de conhecimentos e da aplicação de resultados que se estabelecem

a partir da relação de participação do indivíduo, suas tradições científicas, suas características

locais e relações sociais. Esta institucionalização das ciências segue a tendência por valorizar

a compreensão do processo de formação de um conjunto articulado de valores particulares

que normatizam e regulam o comportamento de seus praticantes (FIGUEIRÔA, 1997, p. 24).

Esta nova lógica de estudo da história, em especial das ciências, possibilita

identificar a produção científica dos eabianos e compreender de que forma esta comunidade

científica construiu suas práticas, valores e métodos a partir de objetivos, posições e

interesses. Esta abordagem da concepção da natureza das ciências proporciona

conseqüentemente investigar a produção científica dos eabianos saindo da tradição

estruturada na linearidade, gênese-evolução-crescimento da ciência. As teses dos eabianos

constituem fontes históricas que apresentam comentários e conhecimentos, sobre propostas e

inovações científicas sobre a agronomia relacionadas às questões ambientais.

Desta forma, a análise e os estudos das teses possibilitarão verificar e

compreender os elementos integrantes da construção científica e apresentar à historiografia

das ciências as inerências do processo de construção do conhecimento científico na área da

agronomia propostas pelos eabianos em finais do século XIX e início do século XX. Martins

(2006) ressalta que a ciência não brota pronta, na cabeça dos “Grandes Gênios”, estes

documentos evidenciam as apropriações teóricas e científicas, além dos avanços,

rompimentos e inovações elaborados pelos eabianos para o desenvolvimento das atividades

agrícolas.

As teses são as fontes que proporcionam perceber a valorização da ciência como

alternativa para a re-organização da produção agrícola. A racionalização da produção no

campo, mediada pela autoridade intelectual do agrônomo, se constitui na tentativa de

relacionar ciência, natureza e desenvolvimento econômico ligado ao meio natural. Analisando

alguns fragmentos pode-se percebe os posicionamentos e diretrizes tomados pelos eabianos a

respeito da relação natureza e ciência.

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O eabiano Albuquerque ressalta que “o ensino agrícola é inadiável para o

desenvolvimento do país, devendo os governantes adotá-lo com urgência”

(ALBUQUERQUE, 1890). Segundo o eabiano Araujo “o desenvolvimento dos

conhecimentos agrícolas deveria ser o ponto de convergência das vistas dos altos poderes e

daqueles que desejamos bem estar e prosperidade de tão feraz e espedaçado solo” (ARAUJO,

1900). O conhecimento técnico-científico a respeito da agricultura era defendido nas teses,

considerado como um assunto importante e de mais alto valor para o Brasil na perspectiva dos

eabianos.

A agricultura e a civilização são as telas em que se pinta o adiantamento de

todo e qualquer povo, são o pincel que traça a ilimitada marcha dos

progressos da humanidade inteira sabemos que as nações se classificam de

acordo com o maior ou o menor grão de civilização; mas, como o grão de

civilização de um povo está na ordem direta do adiantamento da agricultura,

não podemos de modo algum, compreender um destes fatores do progresso

sem o outro (ARAUJO, 1900).

A promoção do desenvolvimento das questões ambientais deveria ser realizada

pelo agrônomo da EAB, este seria o mediador do conhecimento agrícola e que tentaria

estabelecer a relação entre a conservação do meio natural e o desenvolvimento da produção

agrícola. Esta concepção é presente nas teses analisadas onde os agrônomos justificavam o

porquê da importância do ensino e do desenvolvimento do conhecimento das atividades

agrícolas.

As questões ambientais deveriam ser assunto prioritário nas administrações

governamentais segundo as concepções dos eabianos. “O Estado deveria estabelecer leis que

punissem severamente os proprietários de áreas que tivessem em seu interior zonas florestais

e estivessem realizando derrubadas” (RIBEIRO, 1890). Continua o eabiano Ribeiro

ressaltando que “devido às diversas e múltiplas utilidades das zonas florestais era necessário

que se destruíssem os preconceitos que os proprietários das florestas mantinham com relação

a ela, garantindo nesta conformidade a conveniência pública” (RIBEIRO, 1890).

O eabiano, Araujo Junior aborda em sua tese “que é, pois, exclusivamente ao

Estado, como representante do conjunto dos interesses sociais que deve ser reservada a posse

dos mássicos florestais a que convém conservar” (ARAUJO JUNIOR, 1892). Ribeiro ressalta

que “conservação das florestas era uma medida salutar e governamental onde os governos

deveriam desenvolver leis e penas severas contra os devastadores e derrubadores florestais”

(RIBEIRO, 1890). A conservação das matas na perspectiva de Ribeiro era uma necessidade

inadiável, devendo os governos direcionar suas atenções para esta questão. Este mesmo

agrônomo faz ressalva sobre a questão dos cortes florestais, abordando “que as florestas

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tenham cortes anuais constantes, de maneira que possam renovar-se periodicamente; que

tenham um método florestal na sua exploração, a fim de que a sua conservação seja um fato”

(RIBEIRO, 1890).

O eabiano, Joaquim Navarro coloca que o interesse de conservação das matas, “só

passar a haver quando é observável o valor comercial que as florestas poderiam oferecer”

(ANDRADE, 1897). Nesta perspectiva é recorrente nas teses que além do bem estar social a

manutenção das regiões florestais deveriam está relacionada com a questão econômica e com

as regras instituídas pela ciência, além da necessidade do auxilio de leis produzidas pelo

Estado.

O eabiano, Ribeiro aborda o ideal de conservação com a necessidade de promover

uma exploração dos recursos naturais.

Não se pense, porém, que somos partidários das florestas inúteis, não;

queremos a conservação daquelas que se prestam a fornecer uma riqueza em

posição aonde á agricultura não se pode adaptar; queremos a conservação

daquela que concorrem para salubridade pública; queremos a conservação

daquelas que, não ferindo as dimensões do adiantamento e do progresso,

concorrem ao contrario, para a fundação do edifício da felicidade dos povos,

da propriedade humana (RIBEIRO, 1890).

O eabiano, Constancio da Cunha abordando sobre a importância das florestas

retrata “que elas não servem somente de adorno à terra, elas purificam o ar que respiramos,

vertendo em espessas ondas um gás eminentemente vital e ao mesmo tempo neutralizam os

princípios perniciosos” (CUNHA, 1891). Entretanto, Constancio da Cunha coloca que “as

árvores podem ser conservadas como monumentos de uma idade passada; mas a cultura

florestal deve somente mirar na utilidade que dela pode advir e deve contribuir para aumentar

as riquezas sociais” (CUNHA, 1891).

A destruição das florestas produziria problemas relacionados à diminuição do

volume das águas dos rios, não haveria a purificação atmosférica e como salienta o eabiano

Araujo Junior esta conservação está relacionada com o desenvolvimento da agricultura, pois,

“as florestas estabelecem com a agricultura uma relação climatológica e de fornecedora de

materiais orgânicos necessários para o desenvolvimento das lavouras” (ARAUJO JUNIOR,

1892).

Em relação à natureza os textos das teses apresentam como sendo as florestas a

base de sustentação do ambiente natural, é a partir dela que os outros acontecimentos naturais

tendem a acontecer. O eabiano, Cunha ressalta que “as mattas aumentam a proporção das

águas meteóricas que caem sobre o solo e fornecem assim a alimentação das fontes e dos

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depósitos de águas subterrâneas” (CUNHA, 1891). O ideal de conservação proposto nas teses

esta relacionada com as necessidades econômicas e sociais.

O eabiano, Cunha estabelece que “a relação mantida entre as florestas e as

variações climáticas estão intimamente interligadas e que esta relação mantida em

conformidade promove o bom desenvolvimento das culturas agrícolas e o bem estar social”

(CUNHA, 1891). Pois, Constancio percebeu que “a manutenção das florestas contribui para a

purificação do ar, como também promovem a condensação dos vapores atmosféricos”

(CUNHA, 1891).

O eabiano, Ribeiro ressalta que as florestas consideradas inúteis não deveriam ter

preservação as que deveriam ser preservadas eram aquelas que dispusessem riquezas

econômicas e atendesse as necessidades humanas.

Queremos a conservação daquelas (Florestas), que se prestam a fornecer

uma riqueza em posição aonde á agricultura não se pode adaptar; queremos a

conservação daquela que concorrem para a salubridade pública; queremos a

conservação daquelas que, não ferindo as dimensões do adiantamento e do

progresso do edifício da felicidade dos povos, da propriedade humana

(RIBEIRO, 1890).

As teses analisadas até o momento revelam as reflexões dos eabianos formados no

período 1880-1904. Estas apresentam o discurso, o repertório conceitual socializado,

internalizado e partilhado pelos agrônomos formados pela EAB (ARAUJO, 2010, p. 155).

Estes textos denunciam a necessidade de participação por parte dos governos enquanto

responsáveis legais em elaborar normas a fim de promover a conservação ambiental, também

apresentam as técnicas a fim de proporcionar a conservação ambiental e relacionar esta

conservação com o desenvolvimento da produção agrícola.

Neste momento complexo para a economia agrícola os eabianos apresentavam

argumentos sobre a valorização do ensino agrícola no Brasil, concepções sobre química e

física agrícola, abordagens filosóficas, conhecimentos de engenharia agrícola, concepções

sobre as questões ambientais, enfim temas e abordagens que definiam em prol da valorização

da importância do ensino agrícola para o desenvolvimento do país.

Fontes

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ar, 1891;

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COSTA RIBEIRO E A GÊNESE DA FMC NO BRASIL

Wanderley Vitorino da Silva Filho

Universidade do Estado da Bahia

Mestre em Ensino, Filosofia e História das Ciências – UFBA/UEFS

[email protected]

Aurino Ribeiro Filho

Instituto de Física – PPGEFHC UFBA/UEFS

[email protected]

Resumo

O objetivo deste trabalho é discutir as contribuições de Joaquim da Costa Ribeiro no

estabelecimento da Física da Matéria Condensada (FMC) no Brasil. Este ramo da física teve

início com os trabalhos do físico alemão Bernhard Gross, a partir de 1934, com a sua pesquisa

sobre dielétricos. Em 1943, Costa Ribeiro iniciou a sua cooperação com Gross e trabalhando

com eletretos descobriu um novo fenômeno físico - o efeito Termodielétrico. Essas pesquisas

foram as precursoras da FMC na universidade brasileira. Muitos outros físicos brasileiros, a

exemplo de Sérgio Mascarenhas e Yvonne Mascarenhas tiveram a iniciação científica

orientada por Costa Ribeiro.

Palavras-chave: Costa Ribeiro, Efeito Termodielétrico, Física da Matéria Condensada.

Introdução

A Física do Estado Sólido (FES) pode ser entendida como a área da Física que

investiga as propriedades e os fenômenos que ocorrem em materiais sólidos. Com o progresso

das técnicas experimentais e teóricas de investigação, essa área se estendeu a materiais mais

complexos a exemplo de vidro, polímeros orgânicos e fluidos, passando a ser conhecida como

Física da Matéria Condensada (FMC).

No Brasil, as primeiras pesquisas sistemáticas na FMC ocorreram no início da

década de trinta do século vinte. Foi nesse período, que no ano de 1933 desembarcou na

antiga capital brasileira, localizada àquela época no estado do Rio de Janeiro, o físico alemão

Bernhard Gross. Em vista da forte recessão econômica pela qual passava a Alemanha do pós

Primeira Guerra Mundial, Gross resolveu tentar oportunidades no Brasil. No ano seguinte, à

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sua chegada, foi contratado como chefe da recém criada seção de física do Instituto Nacional

de Tecnologia (INT), instituição voltada para pesquisas de combustíveis (vegetais e fósseis) e

materiais de utilização industrial no país. O INT tem suas origens na Estação Experimental de

Combustíveis e Minérios, cuja criação remete aos primeiros anos da década de 1920. Naquele

mesmo ano da contratação de Gross, o INT recebeu a incumbência da empresa telefônica

LIGHT de determinar os valores das resistências elétricas dos dielétricos (isolantes) dos cabos

telefônicos utilizados por ela. Estes dielétricos eram de fabricação nacional e conhecer o valor

de sua resistência elétrica era primordial para que se pudesse ter um bom isolamento e assim

permitir uma boa comunicação. Gross, o responsável por tal tarefa, não somente calculou a

resistência elétrica solicitada como começou a se interessar por alguns comportamentos

físicos que esses dielétricos apresentavam e que, até então, não havia explicações e por isso

eram chamados de anomalias. A partir daquele ano e por toda sua vida profissional Gross

passou a pesquisar sistematicamente as propriedades físicas dos dielétricos, sendo ele o

precursor da FMC no Brasil.

Dois anos após a sua chegada à capital brasileira, o citado físico germânico foi

convidado para organizar um dos primeiros cursos de física criados no país, sendo o primeiro

implementado na Universidade de São Paulo (USP) em 1934 e o segundo na Universidade do

Distrito Federal (UDF), instituição criada por Anísio Teixeira em 1935. Anísio Teixeira

reuniu importantes nomes para compor o quadro docente da UDF, entre eles estavam Gilberto

Freire, Heitor Villa-Lobos, Cândido Portinari, Lúcio Costa, Cecília Meirelles, Sérgio Buarque

de Holanda, Lélio Gama e outros. Para Reitor ele convidou Afrânio Peixoto. A grade

curricular do curso de física, organizada por Gross para a UDF, correspondia àquela da

Universidade de Sttutgart, na qual se graduou e cujos primeiros objetos de suas pesquisas

foram os raios cósmicos. Aquele era o grande período da física alemã. Ele havia sido aluno de

Planck e Schroedinger, dois dos principais formuladores da mecânica quântica. Gross tornou-

se o professor responsável pelo curso de física da UDF e tinha como professor assistente o

engenheiro, que se tornaria um físico conhecido no Brasil, Plinio Sussekind Rocha, que era

seu auxiliar no INT e com quem Gross iniciou suas pesquisas na FMC. Após um ano de

existência da UDF, foi contratado para ocupar a Cadeira de Física Geral e Experimental

naquela universidade o engenheiro de formação, mas que se tornou um dos mais importantes

físicos brasileiros, Joaquim da Costa Ribeiro.

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Costa Ribeiro: Da docência às pesquisas.

Três anos após a criação da UDF ocorreu o Estado Novo. Nesse período político

da Era Vargas alguns artigos da constituição, de 1934, foram alterados, um desses se referia

ao número 172 que com a alteração, se tornou o artigo 159 o qual proibia a acumulação de

cargos públicos por funcionários públicos, incluindo professores, o que era permitido

anteriormente. Assim como muitos professores da UDF, Gross e Sussekind pediram suas

demissões e optaram pelos cargos que ocupavam, conjuntamente, com a docência naquela

universidade, no caso de Gross o INT, e no caso de Sussekind o magistério secundário da

Prefeitura do então Distrito Federal. Sussekind também pediu demissão do INT. Com a saída

de Gross, Costa Ribeiro se tornou o responsável pelo citado curso na UDF, sendo ele o

precursor das pesquisas em física na referida universidade, tendo como objeto inicial a

radioatividade. Tais pesquisas se iniciaram em dezembro de 1937 e objetivava medir a

radioatividade de minerais brasileiros. Para tais pesquisas, Costa Ribeiro não contava com um

laboratório completo, precisando muitas vezes recorrer a outras instalações existentes na

capital brasileira para realizar suas pesquisas, mas tal fato não comprometia a boa qualidade

do seu trabalho. Dois anos após o Estado Novo, a UDF foi incorporada à recém criada

Universidade do Brasil (UB).

Os cursos que compunham a UB datam de 1937, quando esta universidade foi

criada. A UB para existir de fato passou a incorporar instituições de ensino superior que já

existiam no Distrito Federal. A primeira instituição de ensino incorporada foi a Universidade

do Rio de Janeiro que agregava os cursos de engenharia, medicina e direito. Em 1939, através

de um decreto presidencial, os cursos da UDF foram incorporados a UB, e os cursos que

compunham a Escola de Ciências da UDF foram incorporados a recém criada Faculdade

Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi-UB), Instituição criada em função dos

cursos da citada Escola de Ciências. Nesse mesmo ano em que a UDF foi incorporada a UB,

Costa Ribeiro foi comissionado professor catedrático de Física Geral e Experimental, Cadeira

que já ocupava na agora extinta UDF.

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

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Em 1943 Costa Ribeiro passou a se interessar também por outro objeto, agora na

FMC. Juntou-se a Gross nas pesquisas sobre dielétricos. O físico alemão estava interessado

em explicar, naquele momento, o mecanismo de formação dos eletretos (dielétricos

permanentemente eletrizados), que eram produzidos a partir da fusão e solidificação da cera

de carnaúba, ao se aplicar um campo elétrico intenso. Enquanto Gross fazia suas pesquisas no

INT, Costa Ribeiro as realizava na FNFi-UB. Ainda em 1943 Costa Ribeiro descobriu que era

possível obter eletretos sem a aplicação do campo elétrico durante a mudança de estado físico,

no caso, solidificação. Os eletretos obtidos por Costa Ribeiro eram tão intensos quanto os

obtidos ao se aplicar o campo elétrico. Procurando explicar como se formavam esses eletretos,

Costa Ribeiro descobriu em 1944 que ao fundir o dielétrico utilizado, cera da carnaúba,

ocorria uma separação interna das cargas elétricas e como consequência era detectado o

surgimento de uma tensão (voltagem), que possibilitava calcular a corrente elétrica produzida

e as cargas elétricas envolvidas no processo. Observou igual comportamento com a

solidificação do mesmo dielétrico. Estava descoberto por Costa Ribeiro um novo fenômeno

físico que ele denominou de Efeito Termodielétrico e que ficou conhecido no Brasil como

Efeito Costa Ribeiro (ECR). Tal descoberta foi o tema de sua tese para concurso de cátedra da

qual ele já ocupava interinamente desde 1936, e que em 1946 se efetivou. Ao realizar as

pesquisas sobre dielétricos, Costa Ribeiro não possuía ainda as melhores condições,

precisando construir muitos dos equipamentos que ele utilizou para realizar as pesquisas que o

levaram à descoberta do ECR. Costa Ribeiro se notabilizava assim como um físico

experimental, e uma de suas características era a habilidade de produzir equipamentos a fim

de lidar com os novos fenômenos observados. Em outubro, de 1947, Costa Ribeiro

comunicou em sessão da Academia Brasileira de Ciências a observação do ECR na

solidificação e fusão da água. As pesquisas realizadas por Costa Ribeiro sobre dielétricos na

FNFi-UB foram precursoras na área de FMC na universidade brasileira, tendo um caráter

formador e acadêmico.

Em continuidade às suas pesquisas, Costa Ribeiro reuniu no final da década de

1940 e início da década seguinte um grupo de alunos e professores assistentes, de sua cátedra,

nomeados por ele (que haviam sido seus alunos), para realizarem as pesquisas sobre o ECR e

dielétricos. O ECR possuía muitas particularidades a serem explicadas e assim pesquisadas.

Entre aqueles professores estavam os físicos Armando Dias Tavares e Sérgio Mascarenhas.

Costa Ribeiro começou a afastar-se das pesquisas a partir de 1951, quando foi criado o então

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Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e ele passou a ser um dos responsáveis pelo referido

órgão, participando inclusive de sua criação. Posteriormente, participou da criação e

administração da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). A partir de 1953 Costa

Ribeiro estava muito envolvido na administração científica brasileira e também na criação e

administração da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), entidade criada após a

Segunda Guerra Mundial para fiscalizar a utilização da energia atômica para fins pacíficos,

precisando ausentar-se do país várias vezes ao ano. A partir de 1958 passou a ocupar o cargo

de diretor científico daquela Agência, precisando ausentar-se do país para residir em Viena,

sede da AIEA. Retornou ao Brasil no final de 1959 vindo a falecer em julho do ano seguinte.

Enquanto Costa Ribeiro se envolvia cada vez mais na administração científica,

Armando Tavares e Sérgio Mascarenhas realizavam pesquisas sobre os inúmeros aspectos do

ECR na FNFi-UB. Porém, na primeira metade da década de 1950, Sérgio Mascarenhas e

Yvonne Mascarenhas, também ex-aluna de Costa Ribeiro e que pesquisava sobre dielétricos,

foram convidados para assumirem as cátedras de física da Escola de Engenharia da USP de

São Carlos. As pesquisas sobre o ECR passaram a ser realizadas também naquela Escola.

Com isso, Armando Tavares era o responsável por tais pesquisas no Rio de Janeiro e Sérgio

Mascarenhas o responsável pelas referidas pesquisas em São Carlos-SP. O fato é que

Armando Tavares não conseguia atrair físicos para a FMC, na FNFi-UB, na década de 1960.

Na USP, Sérgio Mascarenhas começava a criar um pequeno grupo para pesquisar na referida

área, já na segunda metade da década de 1950. As pesquisas realizadas por Armando Tavares

não tiveram continuidade, e o grupo que ele havia criado, o NEPEC, se extinguiu. Enquanto

isso Sérgio e Yvonne Mascarenhas conseguiam atrair pesquisadores para a FMC, levando

inclusive alguns deles da FNFi-UB para São Carlos. Esses dois pesquisadores são os

responsáveis pela criação do Instituto de Física e Química da USP de São Carlos, um dos

mais importantes nas pesquisas em FMC. A criação do Instituto teve como objetivo inicial as

pesquisas sobre dielétricos, eletretos e o ECR.

No início da década de 1970, Gross se estabeleceu em São Carlos:

Pela 1ª vez fui a São Carlos em 1956, para assistir à defesa de tese de Sérgio

Mascarenhas. Voltei em 1960, por acasião de um simpósio sobre dielétricos.

Finalmente em 1972, iniciei no Instituto de Física e Química de São Carlos

as atividades didáticas e científicas das quais ressultou uma série de

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trabalhos sobre a condução elétrica em dielétricos e os efeitos que tem sobre

ela a incidência de radiações ionizantes (FERREIRA, 1991).

Atualmente, há o Grupo de Polímeros Bernhard Gross no Instituto de Física e

Química de São Carlos.

O ECR na Universidade da Bahia

O ECR foi também objeto de interesse do primeiro grupo de pesquisa em física na

antiga Universidade da Bahia (UBA), atual UFBA.

Os primeiros movimentos a fim de instalar um curso de física na Bahia surgiram

com a criação da antiga Faculdade de Filosofia da Bahia (FFB) em 1941. Cinco anos depois o

seu primeiro reitor, Edgard Santos, reuniu as Escolas existentes em Salvador, entre elas a

própria FFB, Medicina, Politécnica, e outras para fundar a Universidade da Bahia (UBA). Já

com a denominação de universidade, o primeiro vestibular para o curso de física foi realizado

em 1952, sendo o primeiro candidato inscrito o engenheiro agrônomo Álvaro da Silva Ramos,

tornando-se também o primeiro graduado em licenciatura e bacharelado em física. Álvaro

Ramos tornou-se pouco tempo depois professor de física da então Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras (FFCL) da UBA (denominação substitutiva da FFB), que sediava o curso de

física. A primeira iniciativa de se implantar pesquisas em física na UBA se deu no início dos

anos de 1960, quando o curso de física já fazia parte do recém criado Instituto de Matemática

e Física (IMF) da UBA. A criação do IMF se deu devido à iniciativa da jovem matemática

baiana Arlete Cerqueira Lima no intuito de melhorar a qualidade do ensino de Matemática na

então FFCL. À frente da criação do IMF estavam a professora de matemática Martha Maria

de Souza Dantas e o físico Ramiro de Porto Alegre Muniz, este assumindo a chefia do

departamento de física do IMF (RIBEIRO FILHO; MATOS NETO, 2010).

Entre os anos de 1961 e 1963, um grupo de jovens físicos, professores da citada

instituição, composto por Luiz Felipe Serpa, Bela Serpa, Benedito Pêpe e Álvaro Ramos

realizaram pesquisas tendo como objeto o ECR. O líder do grupo, Felipe Serpa, havia se

graduado na FNFi-UB, e foi aluno de Armando Tavares. Antes de se estabelecer na UBA,

Felipe Serpa havia passado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). Durante aquele

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período, o grupo da Bahia se dedicava intensamente às pesquisas teóricas e experimentais do

ECR. Como não possuíam laboratórios para as suas pesquisas, a parte experimental era

realizada na Escola Politécnica da UBA. Apesar da dedicação intensa à pesquisa, ao citado

grupo faltavam as condições materiais para desenvolver tal pesquisa. Por infeliz coincidencia,

naquele mesmo período, a UBA enfrentava uma crise política. Após 16 anos Edgard Santos

não foi reconduzido à reitoria em vista de movimentos internos que levaram Jânio Quadros a

optar por Albérico Fraga, último da lista tríplice para a escolha do reitor da UBA. A falta de

verba era latente durante a administração do novo reitor. Infelizmente, o mencionado grupo

que trabalhava com ECR chegou ao fim, principalmente, com a ida de Felipe e Bela Serpa

para a Universidade Federal do Ceará, onde existia um grupo de pesquisa em FMC, grupo

apoiado por Sérgio e Yvonne Mascarenhas (RIBEIRO FILHO; MATOS NETO, 2010;

SILVA FILHO, 2011).

A partir de 1965 o físico e engenheiro civil José Walter Bautista Vidal seria

indicado para chefiar o departamento de física do IMF. Com a percepção de que o estado da

Bahia detinha um grande patrimônio geológico e geofísico, Bautista Vidal, em conjunto com

outros jovens físicos, muitos oriundos de outros centros, graças ao seu empenho,

influenciaram os dirigentes da universidade a fim de que ela firmasse um convênio com a

Petrobrás e, com isso, o IMF se responsabilizaria em lecionar as disciplinas de Física e de

Matemática, do primeiro curso básico de geofísica para engenheiros e técnicos da Petrobrás.

Tal iniciativa foi a gênese do atual centro de pesquisas em Geofísica e Geologia da UFBA.

Em 1968, com a reforma universitária o IMF foi separado em dois institutos independentes, o

Instituto de Física (IFUFBA) e o Instituto de Matemática (IMUFBA). A partir da criação do

IFUFBA, o que se observa é a expansão do grupo de Geofísica Nuclear. Graças aos recursos

advindos de diferentes agências de fomento, foi construído o Laboratório de Fracas

Radioatividades (atual Laboratório de Física Nuclear Aplicada). Muitos daqueles que se

graduavam em física na UBA/UFBA, tinham como única opção de pesquisa a geofísica

nuclear (RIBEIRO FILHO, 1985, 1996, 2007).

Apesar do sucesso do Programa de Pós-Graduação em Geofísica, era crescente o

interesse de físicos do IFUFBA por tópicos ligados à física teórica e à física Experimental.

Muitos deles afastaram-se para outros centros de pesquisa.

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Em 1974 foi criado no IFUFBA o Programa de Pós Graduação em Física do

Estado Sólido, com o apoio daqueles baianos que foram se titular fora do IFUFBA,

juntamente com pesquisadores de outros centros de pesquisa – UNICAMP, CBPF e UnB,

que se encontravam no IFUFBA, sob a liderança do então Diretor Humberto Siqueiros

Rodrigues Tanure (RIBEIRO FILHO; MATOS NETO, 2010).

Em 1979 o Programa de Pós-Graduação em Física do Estado Sólido passou a se

chamar Programa de Pós-Graduação em Física, e a Física do Estado Sólido ou FMC passou a

ser uma das opções de pesquisa (RIBEIRO FILHO, 1985).

Referências

FERREIRA, Guilherme F. Leal. Conferência Comemorativa dos 85 anos do Prof. Bernhard

Gross. 1. ed. São Carlos: Tipografia do Centro Acadêmico Armando Salles de Oliveira, 1991.

PEIERLS, R. E. Quantum theory of solids. Oxford: Clarendon, 1955. 229 p.

REZENDE, Sérgio Machado. A Aventura da Física da Matéria Condensada. Ciência Hoje, v. 37, n.

218, ago. 2005.

RIBEIRO FILHO, Aurino. Memória do IFUFBA 1963-1984. Salvador, 1985. 169 p.

RIBEIRO FILHO, Aurino. A História do Desenvolvimento do Ensino e da Pesquisa em Física na

Bahia: Notas Introdutórias. Caderno de Física – UEFS, Feira de Santana, v.01, p.09-24, 1ºsem. 1996.

RIBEIRO FILHO, Aurino; VASCONCELOS, Dionicarlos Soares de; FREIRE JR, Olival. A

Contribuição Francesa ao Ensino e à Pesquisa em Geofísica no Estado da Bahia. Revista Brasileira de

Ensino de Física, vol. 25, no. 2, Junho, 2003.

RIBEIRO FILHO, Aurino; VASCONCELOS, Dionicarlos. S. Einstein e a Física da Matéria

Condensada: Origem e Influência. In: 10° SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA

E DA TECNOLOGIA, 2005, Belo Horizonte, MG. Textos Completos Apresentados em Simpósios

Temáticos. Publicação em versão CD.

RIBEIRO FILHO, Aurino. A pesquisa de aerossóis no estado da Bahia (Brasil): notas históricas

sobre um projeto interrompido. Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 122-133, jul | dez

2007.

RIBEIRO FILHO, Aurino; MATOS NETO, Arthur. Instituto de Física: notas históricas. TOUTAIN,

Lídia Maria Batista Brandão; SILVA, Rubens Ribeiro Gonçalves da. (org.) Universidade Federal da

Bahia: do século XIX ao século XXI. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 349-366.

Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do II Encontro Nacional de Pesquisadores em História das ciências – ENAPEHC 2011.

Salvador: UFBa / UEFS / UFMG, 2012. ISBN: 978-85-62707-30-8

304

SILVA FILHO, Wanderley Vitorino da. Costa Ribeiro: Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento da

Física no Brasil,no período de 1929 a 1960. 2011. 313 f. Dissertação (Mestrado em Ensino, Filosofia

e História das Ciências) - Instituto de Física, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

305

Anais do II Encontro Nacional de

Pesquisadores em História das Ciências UFBA – UEFS – UFMG / nov - dez 2011

Organização:

Fábio Freitas (UFBA)

Frederik Moreira dos Santos (UFBA/UEFS)

Gustavo Rodrigues Rocha (UEFS)

Nilton de Almeida Araújo (Univasf)

Thiago Hartz (UFBA/UEFS)

Francismary Alves da Silva (UFMG)

Gabriel da Costa Ávila (UFMG)

Paloma Porto Silva (UFMG)

Realização:

UFBA UEFS

Apoio:

Programa de Pós-Graduação em Ensino,

Filosofia e História das Ciências – UFBA/UEFS

Programa de Pós-Graduação em História da UFMG

Sociedade Brasileira de História da Ciência - SBHC