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Anais do XXXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte Universidade Federal de Uberlândia - Campus Santa Mônica Uberlândia - 2014 Volume 1 TERRITÓRIOS DA HISTÓRIA DA ARTE

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Anais do XXXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte

Universidade Federal de Uberlândia - Campus Santa MônicaUberlândia - 2014

Volume 1

TERRITÓRIOS DA HISTÓRIA DA ARTE

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Imagem principal:

‘Willys de CastroUberlândia, MG, 1926 - São Paulo, SP, 1988 Projeto para pintura, 1957/1958 guache sobre papel quadriculado, 11 x 11 cm Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil.Doação de Hércules Barsotti, 2001.

Crédito Fotográfico: Isabella Matheus.’

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XXXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte

TERRITÓRIOS DA HISTÓRIA DA ARTE

Universidade Federal de Uberlândia - Campus Santa Mônica

Uberlândia - 2014

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Universidade Federal de Uberlândia - UFU

Reitor: Prof. Dr. Elmiro Santos ResendeVice-Reitor: Prof. Dr. Eduardo Nunes Guimarães

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - PROPPPró-Reitor: Prof. Dr. Marcelo Emilio Beletti

Instituto de Artes - IARTEDiretora: Profa. Dra. Renata Bittencourt Meira

Programa de Pós-Graduação em ArtesCoordenador: Prof. Dr. Narciso Larangeira Telles da Silva

Secretária: Raquel Borja Peppe

XXXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte

Comitê CientíficoMarco Antonio Pasqualini de Andrade (UFU/CBHA)

Jens Baumgarten (UNIFESP/CBHA)Letícia Squeff (UNIFESP/CBHA)Maria Elizia Borges (UFG/CBHA)

Paulo Knauss (UFF/CBHA)

Comissão de Organização do XXXIV Colóquio do CBHAClaudia Valladão de Mattos (UNICAMP/CBHA)

Roberto Conduru (UERJ/CBHA)Maria Berbara (UERJ/CBHA)

Mirian Nogueira Seraphim (IFMT/CBHA)Renato Palumbo Doria (UFU/CBHA)

Luciene Lehmkuhl (UFU/CBHA)Marco Antonio Pasqualini de Andrade (UFU/CBHA)

Alexander Gaiotto Miyoshi (UFU)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C72 Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte (34: 2014: Uberlândia-MG)v. 1

Anais do XXXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Territórios da História da Arte, Uberlândia, MG, 26 - 30 de agosto de 2014 / Organização: Marco Antonio Pasqua-lini de Andrade - Uberlândia: Comitê Brasileiro de História da Arte - CBHA, 2015 [2014].

1302 p. 2v: 16 x 23 cm: ilustrado

ISSN: 2236-0719

1. História da Arte. I. Comitê Brasileiro de História da Arte. II. Andrade,Marco Antonio Pasqualini de. III. Anais do XXXIV Colóquio do CBHA.

CDD: 709.81

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A recepção crítica das obras de arte e o entendimento da modernidade no século XIX - Ana Maria Tavares Cavalcanti

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A recepção crítica das obras de arte e o entendimento da modernidade no século XIX

Ana Maria Tavares CavalcantiUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Resumos: Os defensores da arte moderna no Brasil atuantes na primeira metade do século XX acusaram os artistas brasileiros que os precederam de terem passado ao largo da revolução que se operava na arte europeia no final do século XIX. O intuito de verificar se tal acusação é merecida nos motivou a identificar que conceitos de modernidade artística circulavam na segunda metade do século XIX em Paris. Para investigar essa questão, estudamos a recepção crítica de obras expostas nos Salões parisienses, reveladoras das expectativas do público da época. Pretendemos, assim, enfrentar o debate sempre presente quando se trata da apreciação da produção artística do período.

Palavras-chave: Recepção da arte. Modernidade. Crítica de arte. Salões em Paris. Século XIX.

Résummé: Au cours de la première moitié du XXe siècle, les défenseurs de l’art moderne au Brésil ont accusé les artistes brésiliens qui les ont précédé d’avoir passé au large de la révolution qui bouleversait l’art européen à la fin du XIXe siècle. Le but de vérifier la validité de cette accusation nous a motivé à identifier quels concepts de modernité artistique étaient en vogue à Paris dans la seconde moitié du XIXe siècle. Afin de réflechir à cette question, nous avons étudié la reception critique des oeuvres exposées aux Salons parisiens, révélatrices des attentes du public. Nous voulons ainsi répondre au débat, toujours présent, à propos de l’appréciation de la production artistique de la période.

Mots Clés: Reception de l’art. Modernité. Critique d’art. Salons de Paris. XIXe siècle.

O debate sobre a modernidade é um tópico inevitável para os historiadores que se interessam pela arte brasileira dos Oitocentos. Novas abordagens e metodologias tem sido exploradas nas pesquisas recentes sobre o período. No entanto, ainda perdura no senso comum a visão depreciativa propagada pelos defensores da arte moderna que acusaram os artistas precedentes de terem passado ao largo da revolução que se operava na arte europeia do final do século XIX. Os brasileiros teriam se mantido tímidos e convencionais, trabalhando segundo

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uma concepção retrógrada da arte. Diante dessa acusação, algumas alternativas se oferecem aos pesquisadores. Há os que divulgam resultados de estudos aprofundados sobre artistas e obras, sem se preocupar com a exigência de modernidade, percebida como anacrônica. Há também os que procuram defender certos artistas apresentando-os como precursores do modernismo, seja por terem privilegiado a representação de tipos regionais e populares, como Almeida Junior (1850-1899) ou por terem absorvido os procedimentos impressionistas, como Eliseu Visconti (1866-1944). Esta última visão mantém a compreensão da história da arte como uma sucessão evolutiva de movimentos em direção à arte moderna, e continua a acusar os demais artistas nacionais de terem ignorado ou se oposto às vanguardas.

A fim de perceber se tal acusação é merecida, interessa-nos entender a produção dos brasileiros inserida no mundo artístico no qual atuaram. Imersos numa rede de relações sociais, a que informações tinham acesso e a que demandas respondiam? Para investigar essa questão, é útil revisitar a recepção crítica das obras expostas nos Salões parisienses, reveladoras das expectativas do público da época. Nosso intuito é contribuir para uma compreensão ampliada sobre a arte do período. Abandonando o modelo narrativo calcado no ciclo biológico de “nascimento, vida e morte”, percebe-se a simultaneidade de vários “tempos” superpostos como estratos híbridos e complexos vigentes e experimentados pelos artistas.1

É importante notar que a busca de informações sobre a recepção crítica não é tarefa simples. Historiadores têm feito o levantamento de artigos divulgados em periódicos oitocentistas e organizado listas muito úteis aos pesquisadores. Podemos citar o trabalho pioneiro de Maurice Tourneaux (1849-1917), Salons et Expositions d’art à Paris, 1801-1870 : essai bibliographique, publicado em 19192 e os dois volumes organizados por Neil McWilliam que abrangem os períodos do Antigo Regime à Restauração (1699-1827) e da Monarquia de Julho à Segunda República (1831-1851), lançados em 1991.3 Outra fonte importante para o levantamento do que foi publicado sobre os Salões em Paris é a revista Gazette des Beaux-Arts, cujo primeiro número é de 1859.4 Ao término de cada ano, a Gazette divulgava uma lista das publicações anuais. A partir dessa leitura, é possível verificar a grande quantidade, assim como a variedade de formatos e enfoques dessas publicações.

Analisar todas as críticas publicadas no século XIX é um trabalho que ainda demanda tempo para ser concluído. Como bem expôs Dario Gamboni em suas Proposições para o estudo da crítica de arte do século XIX, “este conjunto é evidentemente heterogêneo, composto de toda sorte de textos, de autores e publicações tratando de assuntos diversos, e sua análise

1 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 25.2 TOURNEAUX, Maurice. Salons et Expositions d'art à Paris, 1801-1870 : essai bibliographique. Paris : J. Schemit, 1919. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k108856v/f1.image3 MCWILLIAM, Neil. A Bibliography of Salon Criticism in Paris from the July Monarchy to the Second Republic 1831-1851. Cambridge University Press, 1991.

MCWILLIAM, Neil; SCHUSTER, Vera; WRIGLEY, Richard; MÉKER, Pascale. A Bibliography of Salon Criticism in Paris from the Ancien Régime to the Restoration 1699-1827. Cambridge University Press, 1991.

4 Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb343486585/date.langPT

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necessita de uma tipologia, ou melhor, tipologias”.5 Gamboni propõe classificar a produção crítica do período em três polos: o jornalístico, o literário, e o científico. Baseando-se em estudos anteriores, avança a hipótese de que

[…] durante o século XIX e mais particularmente em sua segunda metade, aquilo que chamamos “a crítica de arte” conhece um processo de profissionalização no curso do qual o polo jornalístico se torna dominante, enquanto o polo científico foi objeto de uma especialização constituindo “a história da arte” – essencialmente consagrada às obras do passado – e o polo literário se vê marginalizado e empurrado em direção à “literatura pura”.6

É importante ter clareza do processo pelo qual passava a produção dos críticos de arte e ter consciência da diversidade de seus autores, dos tipos de publicação e da variedade de leitores e espectadores aos quais se endereçavam os textos. Para mapear a recepção crítica das obras expostas nos Salões, todos os documentos nos interessam: desde o artigo do crítico influente que distribuía “à maneira de um deus, a glória e o desdém, a reputação e o esquecimento, a vida e a morte”,7 como afirmou Philibert Audebrand em 1890, até as caricaturas humorísticas que, sem maiores pretensões, visavam divertir o público leigo. Todos são válidos, pois trazem indícios das concepções em voga sobre a arte e das expectativas com as quais os artistas deviam lidar.

Pouco a pouco vamos fazendo a leitura do material disponível e, desde já, podemos fazer observações consequentes sobre o que temos lido e visto, pois cada fonte consultada e estudada traz informações valiosas.

Uma constatação importante diz respeito aos visitantes dos Salões. Eles não formavam uma massa uniforme, tinham origens sociais, culturais e geográficas muito diversas.8 Tal diversidade foi objeto de comentários na imprensa, sobretudo em publicações de caráter cômico. As caricaturas e textos ficcionais em que o público aparece caracterizado em personagens típicos nos dão informações sobre as reações dos visitantes às obras expostas nos Salões. Um bom exemplo é o livro Bob au Salon de 1889,9 de autoria da Condessa de Martel que assinava sob o pseudônimo de Gyp.10 Escrito como peça teatral em que interagem catorze personagens, visitantes do Salão, o texto é entremeado com caricaturas dos quadros. Dentre os tipos retratados por Gyp, se destacam: “o Sr. Abade”, “uma mocinha animada”, “um dândi”, “uma dama antiquada”, “um homem sério e conhecedor”, “uma jovem da antiga escola”,

5 GAMBONI, Dario. “Propositions pour l'étude de la critique d'art du XIXe siècle”. In: Romantisme, 1991, n°71, p. 10. Doi : 10.3406/roman.1991.5729 (tradução nossa).6 Idem, ibidem.7 AUDEBRAND, Philibert. “Pages d'histoire contemporaine. Les Salonniers depuis cent ans”. In: L'Art, 1890, tome 49, p. 237-238. Apud LEPDOR, Catherine. Lepdor. Ekphrasis 1890. Fonctions et formes de la description dans le commentaire d'art, mémoire de licence, Université de Lausanne, juin 1989, p. 42. Apud GAMBONI, Dario. “Propositions pour l'étude de la critique d'art du XIXe siècle”. In: Romantisme, 1991, n°71, p. 10. (Tradução nossa). Doi : 10.3406/roman.1991.57298 BOUILLO, Eva. “Tous au Salon!”. In: Le Salon de 1827, classique ou romantique? Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009, p. 163-172.9 GYP. Bob au Salon de 1889. Dessins de Bob. Paris: Calmann Lévy, 1889, 136 p.10 Gyp era o pseudônimo da escritora francesa Sibylle Aimée Marie-Antoinette Gabrielle Riquetti de Mirabeau, após o casamento Condessa de Martel (1849-1932).

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“uma jovem moderna”, “um mal humorado”, e o garoto “Bob” citado no título. Bob, além de personagem, era o autor fictício dos desenhos, na verdade de autoria da própria condessa.

Acompanhando o diálogo que esses personagens travam ao percorrer as salas, temos uma amostra das opiniões do público sobre os quadros em exposição. Nota-se que o conceito de modernidade subjacente ao texto de Gyp se refere aos temas escolhidos para as obras. Em princípio, o que era mitológico, histórico, bíblico, era visto como ultrapassado. As paisagens, retratos e cenas contemporâneas, eram apreciados por sua atualidade.

Quando o grupo comenta o quadro O Triunfo de Baco de Carolus-Duran (Figura 1), por exemplo, a “mocinha animada” se queixa: “Oh! Carolus Duran também cai na mitologia!... Que pena!...” Ao que o “homem sério” retruca: “Fique tranquila, seus retratos de crianças vão te consolar... eles são magníficos!...” e o personagem “mal humorado” complementa: “Em vez de ficarem parados diante dessa pintura mitologiquesca, venham ver a bela paisagem de Tanzi?”11

As duas telas comentadas pelos personagens são contrastantes. Léon Tanzi (1846-1913) pintava paisagens com naturalismo, das quais podemos ter uma ideia vendo seu quadro La Mare en forêt, de 1887 (Figura 2).12 Carolus-Duran (1837-1917) que se fizera conhecido

11 GYP. Bob au Salon de 1889. dessins de Bob. Paris: Calmann Lévy, 1889, p. 2. (Tradução nossa).12 Não encontramos imagens dos quadros que Léon Tanzi expôs no Salão de 1889, duas paisagens intituladas Le Mont-Ussy - forêt de Fontainebleau e Le ru des Vaux, à Cernay conforme consta no catálogo. Ver em https://archive.org/stream/explicationdeso00salogoog#page/n352/mode/2up

Figura 1 - Carolus-Duran (1837-1917) – O Triunfo de Baco, 1889 - óleo sobre tela, 360 x 500 cm, coleção particular.

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e admirado por seus retratos, em 1889 enviara ao Salão uma pintura de tema mitológico, o Triunfo de Baco, que foi bastante criticada na imprensa. Duran foi atacado, porém muito comentado. Mesmo Van Gogh, numa carta a seu irmão Theo (escrita em Arles em 3 de maio de 1889), ao falar sobre o Salão, menciona: “diz-se que há um Carolus Duran, Triomphe de Bacchus, ruim”.13

Outro quadro que chamou a atenção do público e dos críticos foi a Madona de Dagnan-Bouveret (1852-1929) (Figura 3). Os personagens de Bob au Salon exclamam ao vê-la:

- Ah! Como é bonito!- Admirável!- Incrível!- É simplesmente a coisa mais bela do Salão! E o «Perdão ?» é também maravilhoso!14

O Perdão, citado por Gyp, era outro quadro exposto por Dagnan-Bouveret em 1889 - As Bretãs no Perdão - que hoje se encontra no Museu Calouste Gulbenkian em Lisboa.15 Voltaremos a ele. Mas antes, devemos comentar o entusiasmo dos visitantes com a Madona, um quadro de tema religioso. Isso parece contradizer o que afirmamos anteriormente, ou seja, que o público rejeitava os temas históricos, mitológicos ou bíblicos como ultrapassados. Como compreender tais opiniões? Ler outra crítica sobre esses dois quadros pode nos ajudar a pensar

13 Carta de Van Gogh a Theo. Arles, 3 de maio de 1889. Disponível em http://www.vangoghletters.org/vg/letters/let768/print.html14 GYP. Bob au Salon de 1889. dessins de Bob. Paris: Calmann Lévy, 1889, p. 18. (Tradução nossa).15 Les Bretonnes au Pardon, 1887, óleo sobre tela, 125 x 141 cm, Museu Calouste Gulbenkian. Imagem disponível em http://museu.gulbenkian.pt/Museu/pt/Colecao/Pintura/Obra?a=126

Figura 2 - Léon Tanzi (1846-1913) – La mare en forêt, 1887, óleo sobre tela, 60 x 100 cm, coleção particular.

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Figura 3 - Dagnan-Bouveret (1852-1929) – Madona, 1889 – gravura a partir de óleo sobre tela, 60 x 100 cm, coleção particular

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sobre a questão. As duas telas mereceram a seguinte observação do inspetor geral das Belas Artes Roger-Ballu (1852-1908) que escreveu no Salon Illustré:

Mas o que [...] legitima as aspirações da escola moderna, o que ao mesmo tempo afirma sua razão de ser e seu triunfo, são a Madone e as Bretonnes au Pardon de Dagnan-Bouveret. [...] Dagnan chega: e aí está uma obra não rejuvenescida, mas jovem.16

Roger-Ballu comenta que não é o tema que traz modernidade a uma obra, já que desde antes da Renascença os artistas pintaram Madonas. Desenvolvendo seu argumento, propõe o desafio de colocar a Madona de Dagnan no Louvre, em Florença ou em Bruges, e diz que ela suportará a comparação com as virgens de Botticelli e as figuras de Van Eyck. Porém, acrescenta, “ela não será parecida a suas irmãs mais velhas [...]. Esta pintura fala de seu tempo e de sua época artística”.17

Com pensamento muito semelhante ao de Roger-Ballu, Georges Lafenestre (1837-1919), então conservador do Museu do Louvre,18 critica Carolus-Duran por não ter apresentado, em seu Triunfo de Baco, já citado, uma bacanal “moderna”. Escreve Lafenestre:

O Sr. Carolus Duran representando, após Ticiano, após Rubens, após tantos outros o Triunfo de Baco, não se permitiu, com esse assunto antigo, a liberdade que seus admiradores estavam dispostos a conceder-lhe. Assim como aceitamos que os Srs. Dagnan, Uhde, Cazin, renovem, como Memling, Véronèse, Rembrandt, os temas históricos e bíblicos pela introdução de ajustes e do sentimento modernos, gostaríamos de ver temas antigos, […], como os mitos helênicos, tratados com a mesma independência que as mentes ingênuas da Idade Média e os espíritos cultos da Renascença usariam.19

Portanto, não eram os temas que determinavam o caráter moderno ou não de uma pintura, mas a forma de apresentá-los devia trazer uma imagem contemporânea, própria do tempo do artista.

A compreensão de que toda arte pertence a seu tempo histórico fazia parte do senso comum no século XIX. Um texto esclarecedor a esse respeito se encontra no número inaugural da Gazette des Beaux-Arts, em 1859. O historiador e crítico de arte Charles Blanc (1813-1882), redator chefe do periódico, declara as intenções da revista. Para responder à questão “qual será o espírito da Gazette des Beaux-Arts?”, começa traçando uma retrospectiva da história da arte francesa.20

Charles Blanc ressalta que a França, por sua posição geográfica, sua história e sua capacidade de assimilação, exerceu e sofreu influências artísticas. No século XVI, diz ele,

16 ROGER-BALLU. Salon de 1889. In Salon Illustré, vol. 2, n. 3. Paris: Ludovic Baschet, juin 1889, p.9. (tradução nossa). Disponível em http://www.archive.org/stream/salonillustr00soci#page/n279/mode/2up17 Idem, ibidem.18 Georges Lafenestre foi conservador do Museu do Louvre de 1886 a 1907. Foi também professor de história da arte na École du Louvre e escreveu uma monografia sobre Ticiano em 1886. Em 1889 tornou-se professor de Estética e História da Arte no Collège de France. 19 LAFENESTRE, Georges. Le Salon de 1899. In: Revue des Deux Mondes, 1889, tome 93, p. 637. (tradução nossa)Disponível em http://fr.wikisource.org/wiki/Livre:Revue_des_Deux_Mondes_-_1889_-_tome_93.djvu20 BLANC, Charles. Introduction. Gazette des Beaux Arts. Paris, 1859, p. 12.

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a pintura francesa vivera das importações italianas, “elegante, amaneirada e florentina”. No século XVII, Nicolas Poussin impusera o gosto pela antiguidade clássica e Luís XIV a pompa. No século XVIII, a arte se tornara “espiritual, engenhosa, divertida, tomada de [...] volúpia, cheia de malícia”. Sua afetação tinha encanto e graça, e ela se tornara “muito mais francesa”. Mas, por ter se afastado dos princípios da arte, abandonando-se às loucuras, perdeu-se no absurdo que provocou “a reforma do grande David”.21 Blanc afirma em seguida que também essa reforma caiu no exagero tornando a arte dura, monótona e artificiosa, o que provocou a reação do romantismo. Produziram-se então, diz ele, excessos não menos ridículos no sentido contrário. “Para acabar com a raça de Agamenon, evocou-se a velha cavalaria e o velho cristianismo. A pintura se fez gótica”, o que também cansou o público. Mas segundo Charles Blanc, “essas reação violentas terminaram” e a crítica que outrora se deixara levar pelas brigas de ateliês agora podia “falar uma linguagem mais calma”. Assim, concluía que o espírito da Gazette des Beaux-Arts respondia a esse novo momento, e em seus escritos “nada de exclusivo encontrará lugar”, pois “a beleza está em toda parte”. Para os amantes da arte, “Fídias e Rembrandt seguram cada qual uma ponta dessa bandeira encantadora que flutua sobre o mundo.”22

Essa posição que assegurava o valor de todas as manifestações artísticas e a inclusão de todas as tendências foi característica do século XIX. Ela reflete um pensamento enciclopédico e universal. Portanto, o entendimento da modernidade nesse momento é muito diferente do sentimento que se imporá no século XX. O que posteriormente passamos a chamar de arte moderna não concebe a inclusão de tudo. O modernismo foi exclusivista e dualista. Dividiu o mundo da arte em dois: de um lado pôs o que devia ser negado, superado; do outro lado o que entendeu ser a liberdade moderna.

E contudo, é impossível ignorar que a originalidade, a liberdade e a verdade foram valores artísticos presentes no século XIX. O enfrentamento entre antigos e modernos se dera de forma evidente nos embates entre românticos e neoclássicos ainda na década de 1820. Como observou Eva Bouillo, a polêmica entre a “nova escola” dos românticos e a escola antiga dos “neoclássicos” motivou o público a comparecer em peso ao Salon de 1827, revivendo o confronto que se dera no Salon de 1824.23 Nota-se a convivência de discursos plurais: por um lado a concepção universalista da arte, o entendimento enciclopédico de que uma nova tendência artística não anula a anterior; por outro, a afirmação de que a arte deve ser “de seu tempo”, informada pelo mundo contemporâneo, operando no confronto entre gerações.

Nosso ponto de partida foi o desejo de responder ao debate sobre a apreciação da produção artística brasileira do século XIX, buscando mapear as ideias sobre a modernidade em circulação no meio artístico que se constituiu em torno dos Salões de arte parisienses. De fato, é impossível estudar a arte nacional desse período desvinculada da arte europeia. Através do estudo das exposições e da leitura das críticas, procuramos entender como se

21 Charles Blanc se refere à reforma neoclássica proposta por Jacques-Louis David (1748-1825)22 Idem, p. 12-13. (Tradução nossa).23 BOUILLO, Eva. Le Salon de 1827, classique ou romantique? Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.

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apresentou o conceito de modernidade artística no correr do século XIX. Aqui apresentamos um pequeno recorte dessa pesquisa. Aprofundando nosso conhecimento sobre a recepção crítica, observamos que o mundo da arte no século XIX era bem mais diversificado do que a leitura modernista propôs.

Referências bibliográficas:

AUDEBRAND, Philibert. “Pages d’histoire contemporaine. Les Salonniers depuis cent ans”. In: L’Art, 1890, tome 49, p. 237-238.BLANC, Charles. Introduction. In: Gazette des Beaux Arts. Paris, 1859, p. 5-15.BOUILLO, Eva. Le Salon de 1827, classique ou romantique? Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.EXPLICATION DES OUVRAGES de peinture, sculpture, architecture, gravure et lithographie des artistes vivants exposés au Palais des Champs-Elysées le 1er mai 1889. Paris: Paul Dupont, 1889. Disponível em https://archive.org/stream/explicationdeso00salogoog#page/n6/mode/2upGAMBONI, Dario. “Propositions pour l’étude de la critique d’art du XIXe siècle”. In: Romantisme, 1991, n°71, p. 10. Doi: 10.3406/roman.1991.5729 GYP. Bob au Salon de 1889. Dessins de Bob. Paris: Calmann Lévy, 1889, 136 p.MCWILLIAM, Neil; SCHUSTER, Vera; WRIGLEY, Richard; MÉKER, Pascale. A Bibliography of Salon Criticism in Paris from the Ancien Régime to the Restoration 1699-1827. Cambridge University Press, 1991.MCWILLIAM, Neil. A Bibliography of Salon Criticism in Paris from the July Monarchy to the Second Republic 1831-1851. Cambridge University Press, 1991. LAFENESTRE, Georges. Le Salon de 1899. In: Revue des Deux Mondes, 1889, tome 93. Disponível em http://fr.wikisource.org/wiki/Livre:Revue_des_Deux_Mondes_-_1889_-_tome_93.djvuROGER-BALLU. Salon de 1889. In Salon Illustré, vol. 2, n. 3. Paris: Ludovic Baschet, jun. 1889. Disponível em http://www.archive.org/stream/salonillustr00soci#page/n279/mode/2upTOURNEAUX, Maurice. Salons et Expositions d’art à Paris, 1801-1870 : essai bibliographique. Paris: J. Schemit, 1919. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k108856v/f1.image