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1 Número 02 Fevereiro 2016 AMPLITUDE Poeta em Destaque: Júlia Lemos E MAIS: Cinema - Fotografia - Música - HQ

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Número 02 — Fevereiro 2016

AMPLITUDE

Poeta em Destaque: Júlia Lemos

E MAIS: Cinema - Fotografia - Música - HQ

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SUMÁRIO Revista Amplitude - Número 02 - Fev 2016

Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 03

Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .04

Conto: O canto do sabiá preto / Lindolfo Weingärtner . . . . . .05

Luminares / Joana Cristina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10

Cinema: 3º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . . . . . . . . . . 08

Conto: A Morte da Encrenqueira / Judson Canto . . . . . . . . . . .11

Jardim dos Clássicos / Eça de Queirós . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12

Crônica / Max Lucado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17

Conto: O Poeta do Salmo Exilado / J.T.Parreira . . . . . . . . . . . . . 18

Poeta em Destaque / Julia Lemos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Conto: A Troca / Joed Venturini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24

Galeria / Lya Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30

Conto: A Matilha Fantasma / Sammis Reachers . . . . . . . . . . . . 32

Notas Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37

Cinema / 3º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . . . . . . . . . 38

Conto: O Hóspede / Florbela Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Luminares / Helena Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40

Conto: O Menino / Myrtes Mathias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41

Hot Spots: Ramon Llull (Lúlio) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .44

Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

Especial / Estêvão para tempos de perseguição . . . . . . . . . . . . 47

Resenhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

Luminares / Camilo Borges Júnior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .52

Crônicas / Chris Amag & Rofa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53

Álbum / William Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .54

HQs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

Parlatorium . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56

CAPA: He Qi, Calling Disciple (Jesus chamando os discípulos) - trecho. He Qi é um artis-ta cristão chinês que tem feito um trabalho assaz singular, e gentilmente cedeu sua obra para ilustrar a capa de AMPLITUDE. Conheça mais do trabalho do autor:

http://www.heqiart.com

AMPLITUDE é uma revista de cultura

evangélica, com foco principal em fic-

ção e poesia. Mas nosso leitmotiv,

nosso motivo de ser e de existir, é a

arte cristã em geral: Transitamos por

música, cinema, fotografia, artes plás-

ticas e quadrinhos. Publicamos arti-

gos, estudos literários, crônicas e rese-

nhas.

Nossa intenção diz respeito àquela

despretensiosa excelência dos humil-

des. Nosso porto de partida e porto de

chegada é Cristo. Nosso objetivo é

fomentar a reflexão e a expressão,

AMPLIAR visões, entreter com valores

cristãos, comunicar a verdade e o belo

e estimular o engajamento artístico/

intelectual entre nossos irmãos. Nosso

preço é nenhum: a revista circula gra-

tuitamente, no democrático formato

pdf.

COLABORE:

Será uma felicidade ter você como um

colaborador de AMPLITUDE. Envie-nos

seu material para avaliação (conto,

crônica, artigo, estudo literário, traba-

lho em artes plásticas ou fotografia

artística, resenha ou crítica de filmes,

livros ficcionais ou poéticos e (boa,

per favore) música cristã/evangélica,

JUNTAMENTE com breve biografia.

Envie também notícias sobre eventos

artísticos, lançamento de livros e

quaisquer notas culturais envolvendo

arte/artistas evangélicos que você

julgar relevantes.

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Editor: Sammis Reachers

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Editorial É com felicidade que apresentamos o segundo número de AMPLITUDE. Durante es-tes seis meses de espera ou gestação desta segunda edição, pudemos auferir a boa recepção que a nossa primeira edição obteve entre autores e leitores. Isso nos incentiva a avançarmos na jorna-da, cientes da seriedade e importância da iniciativa de reunir em revista, o melhor da produção literária poética e ficcional, além de outras expressões artísticas levadas a cabo por cristãos pro-testantes e de outras filiações.

Vamos ao panorama da edição: Na seção Hot Spots, a sapiência de um dos maiores nomes da mística cristã, Ramon Llull (Raimundo Lúlio). Em Galeria, a obra da pastora, artista plástica, grafiteira, quadrinista e ativista cultural Lya Alves. Na seção Cinema, destacamos a realização da terceira edição do Festival Nacional de Cinema Cristão.

Esta edição chega inaugurando diversas novas seções. Uma delas é Poeta em Detaque, inician-do com a obra da pernambucana Júlia Lemos.

Inaugurando a nossa seção Especial, de enfoque temático, temos como mote Estêvão para tem-pos de perseguição, uma mini-antologia reunindo as percepções de seis excelentes poetas acerca de nosso protomártir, sobre quem nos é oportuno refletir em tempos de recrudescimento das perse-guições aos cristãos ao redor do globo.

E as artes visuais ganharam ainda mais destaque: além da já citada seção Galeria, e de HQ (História em Quadrinhos), inauguramos mais uma seção, Luminares, destacando, em singelas inser-ções, a pintura, ilustração ou desenho de nossos concidadãos de Reino. E a Fotografia chega com força na seção Álbum, abrindo as portas com a obra de William Rosa.

Os contos, como diria meu pai, estão de lascar: Iniciamos com Eça de Queiroz, na seção Jar-dim dos Clássicos, apresentando o conto O Suave Milagre. Seguimos com o humor e a precisão de Judson Canto (A Morte da Encrenqueira); a dramaticidade soberba de J.T.Parreira (O Poeta do Sal-mo Exilado); Florbela Ribeiro relatando (em O Hóspede) sobre o príncipe que tinha por norma se hospedar junto aos pobres; Lindolfo Weingärtner num conto terno e luminoso (O canto do sabiá preto); Joed Venturini com o impactante & metafísico A Troca; este vosso humilde escriba, num conto de terror(!?), A Matilha Fantasma; e concluímos com nossa saudosa e maravilhosa Myrtes Mathias, num conto com um toque arrebatador (O Menino).

Queridos trinta leitores, agora uma nota triste: havia idealizado a periodicidade da revista pa-ra semestral, mas percebo agora que infelizmente não poderei manter tal ritmo. Não que o traba-lho seja tanto (mesmo que seja! Rsrs), embora eu faça aqui tudo sozinho, mas o fato se dá em vir-tude de meu pouco tempo. Retomei estudos universitários, e, junto ao trabalho secular e minhas outras iniciativas, das quais não posso abrir mão, percebo que o tempo de seis meses não é sufici-ente, ao menos nesse momento de minha vida, para dar conta de uma publicação desta magnitu-de. Portanto, fica em aberto, até palavra em contrário, a periodicidade de AMPLITUDE. Lem-brando: a revista não acabará; apenas terá expandido seu período de gravidez. E aproveitando o ensejo, não deixem de orar por nosso bebê!

E, como sempre, paz e bem e uma boa leitura!

Sammis Reachers, editor Nota: Tenho buscado, nas seções de contos e poesia, efetuar um rodízio de autores. Assim, temos nesta edição em sua grande maioria autores não publicados na edição anterior. Com isso buscamos dar voz a tantos quanto possí-vel, e apresentar aos leitores sempre um melhor panorama da grande e boa produção de nossos irmãos.

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OFEREÇO A MINHA MORTE

J.T.Parreira

Ofereço a minha morte. Levanto

O meu sangue no sile ncio das feridas.

As ma os abrem-se rasgadas, sa o duas

Cartas abertas de amor.

Um horizonte, o meu lado esquerdo

Abre-se para o voo do meu coraça o

Abandonado por Deus, ofereço a minha morte

Serei retirado da cruz por ma os amorosas.

Prenda

Karla Waters

Das entranhas A s estranhas

Dos meus la bios Para os teus

No ventre

De minh'alma É que a poesia Se concebeu

Das cortinas

Dos meus ve us Da mate ria uterina

Ate os ce us

Éis que a palavra surge Vindo de outra alma ruge Se encontra em minha casa

É dentro dela cria asa

O poema enfim nasceu Vindo de gritos e dores

Contudo, cheio de esplendores

NÔVO !

Helena Branco

o som trazia

abs(traí do)...harpeando luz a la grimas na vidraça

o ANO começa... perpassa...

rendilhando suspiros consumindo notas breves d alau de

ritmo insonda vel batuta esgrimida d promessa comovida

por STRAUSS !

danço em pontas e tules a esbelteza no espaço

abraçada pela cintura o tempo escreve...a vida

a rosa perfumada

e o AMOR que...murmura

A VIDA!

Escuro vale

Patrícia Costa

Éscuro vale este onde o medo

quer ser companhia e o descre dito busca titubear

a fe

Das Tuas ma os o amparo a certeza e o cuidado

de ser refu gio e fortaleza que ha de guiar meus olhos meu corpo meus pe s

quando tudo parecer contra rio.

COM DEUS

Alfredo Pérez Alencart (Espanha)

Aberto estou, Deus, ao teu rela mpago eterno,

pregado ao cha o onde escuto um rouxinol

que canta quando me estendo sobre a Cruz!

Nem ao crepu sculo se me quebra a esperança,

tributa ria duma carne que rangeu ta o longe

para nos amparar com a sua altí ssima ternura.

Assim, tu, eu, bem aventurados do milagre

na chave profe tica, espelhos duma aliança

ha bil em redenço es sob so is escuros!

Su bita liberdade para voltar ao ponto

de partida! Liberdade para desordenar-me

entre a luz onde decerto treme a sua Voz!

Rasga a noite, Deus, e muda-me de planeta!

Tradução: António Salvado

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O canto do sabiá preto

Lindolfo Weingärtner

O asilo ainda fora construí do no tempo em que se pensava que pessoas idosas, para se sentirem bem, antes de tudo precisavam de ar fresco e de natureza na o poluí da. So mais tarde se havia descoberto que o maior inimigo de gente velha era a soli-da o. Mas tal inimigo, como se sabe, na o poupa nem mes-mo os asilos situados em meio ao turbilha o dos centros urbanos. Éle na o olha classe social, rico ou pobre, gente cul-ta ou inculta. Tambe m na o olha homem ou mu-lher, apesar de que muitos (em sua maioria, homens) afirmem ser mais fa cil para as mulheres lidar com a solida o do que pa-ra seus parceiros masculinos. Infelizmente na o existe nenhum apare-lho com o qual se pudesse medir o grau de solida o sentido por uma pessoa, a na o ser que classifiquemos um coraça o grande e amoroso de aparelho, coisa de que Deus nos queira preservar. O asilo que nestas pa ginas vamos apre-sentar ao leitor estava situado distante da cidade, em meio a montanhas e colinas co-bertas de matas, e com vista a verdes vales, pontilhados de campos e lavouras vicejan-tes. Viviam na instituiça o cerca de 120 ido-sos, e nenhum deles carecia de coisa algu-ma que se tem por essencial na vida das pessoas. A associaça o que administrava o asilo na o poupava esforços para que os seus velhinhos na o sofressem nenhuma care ncia e para que tambe m pudessem ser recebidos na casa na o poucos que eram incapazes de pagar as mensalidades vigentes. Como era que os asilados conviviam com a solida o? Bem, essa e uma pergunta a par-te, que por enquanto ternos que deixar sem

resposta. Ja que nosso asilo era uma instituiça o da igreja, vinha sendo dirigido por um pastor, que cuidava de seu rebanho tanto na a rea fí sica como na espiritual. Os velhos que adoeciam, na o precisavam ser deslocados para o distante hospital, eles eram tratados na pro pria casa, na proximidade de seu cu-

ra d'almas habitual; eles ficavam sob os cuidados de um me dico, que

atendia o asilo uma vez por semana, e quando algue m falecia, era sepultado no cemite rio do asilo. O ce-mite rio fazia parte do dia-a-dia dos inquilinos, e a maior parte deles ti-nha feito as pazes com o campo-santo. Sabiam que,

quando eles pro prios mor-ressem, permaneceriam per-

to do lugar onde tinham passa-do seus u ltimos anos de vida, e esse

na o deixava de ser um pensamento confor-tante. Todas as pessoas, ao chegarem a velhice, aprendem, de certo modo, a viver como vi-zinhos da morte. Alguns conseguem estabe-lecer uma vizinhança pací fica, outros na o gostam de ser lembrados do te rmino de seus dias, em especial, quando o fim se aproxima a olhos vistos. Ém nosso asilo na o era so a proximidade do cemite rio que constantemente lembrava os velhinhos da morte. Éra a situaça o elementar dos septua-gena rios e octogena rios que os lembrava dela, pois seguidamente viam algue m sendo arrancado de seu meio, que na o deixava na-da a na o ser um lugar vazio no refeito rio. Raros eram os meses em que ao menos um dos asilados na o viesse a ser carregado pa-ra o campo-santo. É quando acontecia que num perí odo de um ou dois meses na o fale-cia ningue m, poderia ter a certeza de que o sino da capela dobraria duas ou tre s vezes seguidas no me s seguinte. Com batidas compassadas e solenes ele revelaria que

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mais uma vez algue m tinha ido embora que por muito tempo convivera com a pequena comunidade. Provavelmente cada um dos velhinhos, bem no fundo do coraça o, se per-guntava: Quando chegara o dia em que o si-no vai dobrar para mim? Ontem o sino anunciara a morte da ve-lha Irmingard. Aqui ainda vivia gente com nomes como o dela, nomes arcaicos e sole-nes, sem a marca de modismos modernos. Havia mulheres chamadas de Irmingard, ou de Clotilde, havia homens chamados de Fri-dolino ou Teo filo, naturalmente ale m dos que, conforme uso da terra, se chamavam Maria, Jose , Dulce ou Giacomo, dependendo do lugar onde o destino colocara o seu ber-ço. Na o raras vezes, aqueles que tinham tais nomes antigos eram pessoas bem especiais, que liam livros de conteu do nada corriquei-ro, versadas em assuntos que na o costuma-vam aparecer nas pa ginas das revistas e nos programas de televisa o. Irmingard tinha sido uma pessoa assim. Tivera uma vida nada fa cil. Ém sua comuni-dade de origem, pela maior parte de sua vi-da adulta ela servira como organista, e ela na o so amara a mu sica e os cantos, mas tambe m as pessoas que tocavam e canta-vam, principalmente as crianças, que ela havia reunido ao seu redor para lhes ensi-nar a cantar e a tocar viola o e flauta doce. A na o poucos dos pequenos ela tambe m ensi-nara a viver. Sim, uma pessoa assim tinha sido a velha Irmingard. Aos quarenta anos, ela casara com um viu vo, pai de quatro filhos. Na o tivera filhos pro prios, e quando o seu marido, poucos anos depois do casamento, chegara a fale-cer, ela educara os filhos dele com dedica-ça o e com amor, fato de que os filhos, agora adultos, jamais poderiam esquecer-se, co-mo na o deixavam de assegurar, sempre que a visitavam no asilo. Mas na o esquecer e uma coisa, e retribu-ir amor com amor e outra. Acontecera o que em nossos tempos parece ser a coisa mais natural do mundo: os filhos tinham casado,

tinham ido para outras cidades, todo mun-do na famí lia trabalhava ou estudava, e em seus apartamentos simplesmente na o havia lugar para uma mulher velha e necessitada de cuidados, mesmo uma mulher como Ir-mingard, que com seu coraça o carinhoso era capaz de gerar e de repartir amor, na o so de retribuir o amor de outros. Assim Irmingard afinal chegara ao asilo, depois de se convencer de que por causa de seu diabetes na o poderia mais ficar sozinha em sua pro pria casinha. Tinha sido real-mente a melhor soluça o para ela. Ja um ano antes de sua mudança para o ancionato lhe haviam amputado uma perna, e, anos mais tarde, os me dicos tiveram que cortar-lhe a outra tambe m. Irmingard de começo se revoltara contra esta segunda amputaça o, dissera que prefe-ria antes morrer, do que aceitar ser mutila-da daquele jeito. Tinha passado por uma lu-ta dura antes de finalmente concordar com a operaça o. Ja que na o podia mais sentar na cadeira de rodas, ela tivera de passar os u ltimos anos deitada em seu leito, totalmente de-pendente de outras pessoas. Sendo peque-na e de figura franzina, as atendentes a car-regavam nos braços como se fosse uma cri-ancinha, sempre que a tinham de mover do seu lugar. Ém seus u ltimos anos de vida ela na o deveria ter pesado mais de 35 quilos, um feixe de sofrimento e de mise ria huma-na. Irmingard era uma mulher crente, por isso ela na o acusava a Deus por sua sorte. Mas por vezes ela se admirava das ordenan-ças e dos caminhos do Senhor. Éla conhece-ra tempos de luta, tempos de du vidas fero-zes, em que sua fe parecera um mero pavio fumegante, ameaçado de se extinguir a cada momento. Mas ela na o acreditava em sua fe , ela cria no Deus que faz nascer fe e certeza, em meio a du vidas e desespero. Irmingard tinha um segredo. Éla apren-dera a extrair paz e alegria í ntimas na o da pro pria situaça o e dos pro prios sentimen-

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tos, mas sim, das promisso es de Deus. É os outros velhinhos sentiam aquele segredo dela, e eles vinham ao seu leito, silenciavam com ela, ou conversavam com ela sobre a vida deles. Irmingard sabia ouvir, calada, e ela tambe m sabia falar no devido tempo, e havia muitos que tinham encontrado con-forto e novo a nimo junto ao leito dela. Mesmo Fridolino, que conhecia a Bí blia como poucos, gostava de sentar junto a ca-ma de Irmingard, falando-lhe das descober-tas que fizera nos livros do Novo e do Anti-go Testamento. Irmingard gostava de ouvi-lo, se bem que ela nem sempre comparti-lhava suas opinio es e interpretaço es. Para ela, a Bí blia indicava a direça o em que an-dar, na o a considerava um caminho ladeado de indicaço es e prescriço es que mantinham o crista o na linha. A Éscritura era um curso de fe e de vida, que Deus mandara escrever, na o uma coleça o de dogmas e doutrinas in-falí veis. Mas a fundo os dois se entendiam muito bem, e o velho Fridolino, depois de uma de suas conversas com Irmingard, sempre costumava ser um pouco mais tra-ta vel e mais cordial. O dirigente do asilo bem sabia que Ir-mingard era a confessora secreta da casa, e na o raras vezes encaminhava para ela ho-mens ou mulheres que tinham problemas com os familiares ou que tinham começado a retrair-se em si mesmos, acometidos de depresso es, coisa pro pria da velhice. Éle na o ignorava que em muitos casos a mu-lherzinha com aquele corpo mutilado sabia ajudar a s pessoas melhor do que ele pro -prio. De começo constatamos que o maior ini-migo de gente idosa costuma ser a solida o. Isso tambe m era o caso em nosso asilo, e na o era so pelo fato de ele estar situado dis-tante da cidade, e rodeado de lavouras e campos. As fontes amargas da solida o em realidade brotam dos abismos do coraça o humano, e quando neles sobe o lençol das a guas da tristeza, elas sa o capazes de aflo-rar a superfí cie, revelando um mar de soli-

da o, mesmo em meio a gente alegre. Éste mar, constantemente alimentado por fontes secretas, e capaz de afogar qualquer alegria com suas a guas amargas. So depois da morte de Irmingard alguns dos velhinhos e do pessoal do asilo se de-ram conta de que na presença dela eles ja-mais se tinham sentido solita rios. Ningue m poderia dizer precisamente por que tinha sido assim. Devia ter sido o segredo dela. Ja que ela tinha Deus por fonte de vida e de esperança, ja que na o vivia de seus pro prios recursos, ela tinha recebido do seu Criador o dom de poder abrir seu coraça o para ou-tros, e com isto conseguia tambe m que os outros lhe abrissem o pro prio coraça o. Ate o fim de sua vida ela tivera a capacidade de amar as pessoas e de compartilhar da vida delas. Agora Irmingard tinha falecido, e ela de-veria ser sepultada no cemite rio do asilo, a tarde do dia apo s a sua morte. Tudo que os humanos costumam fazer numa ocasia o destas, tinha sido feito. O corpo murcho e mutilado de Irmingard tinha sido lavado, seus cabelos ralos foram penteados e ajus-tados, e tinham lhe botado o melhor de seus vestidos. Assim ela estava deitada em seu esquife, seu rostinho estreito emoldura-do por flores multicoloridas, e mesmo os que viviam familiarizados com a morte, sentiam, mais que em outros casos, uma grande tristeza, e algo como uma incre dula estranhe s perante o fato de ela na o se en-contrar mais em seu meio. Énfermeiras e atendentes tinham enchi-do a parte inferior do esquife com crisa nte-mos brancos, assim que na o caí a em vista que no corpo da falecida, no lugar das per-nas, havia um espaço vazio. No cemite rio o coveiro tinha preparado para ela uma das sepulturas ja escavadas de antema o, e havia urna profusa o de flores e coroas destinadas a enfeitar seu u ltimo lugar de repouso. Fi-lhos e netos, mais alguns conhecidos de sua cidade, tinham comparecido, e tudo deveria seguir o ritual costumeiro.

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Mas Deus tinha resolvido dar um ar fes-tivo ao dia em que iria ser sepultada sua serva Irmingard. Por isso ele havia ordena-do que a hora do sepultamento se formasse urna tempestade sobre o vale, com rela m-pagos e estrondos de trova o, acompanha-dos de cortinas de chuva fustigadas pela ventania. Assim o fe retro, que seguiria da capela ao cemite rio, chegou a atrasar-se por um bom tempo. Éra tradiça o no asilo, o pastor, por ocasi-a o de um sepultamento, fazer a alocuça o fu nebre no cemite rio, na o na capela, e os velhinhos apreciavam a pra tica, ja que lhes ajudava a suportar o sile ncio pesado do pa-radouro dos mortos. Assim, jovens e velhos se haviam reuni-do na parte superior do cemite rio, enchen-do os estreitos espaços entre os jazigos, os olhares dirigidos para o vale, enquanto o pastor se tinha posicionado na parte inferi-or, com o rosto voltado para o distante cer-ro, atra s do qual o sol ja ia desaparecendo. Quando, apo s o hino inicial e a leitura de um trecho da Bí blia, o pastor iniciou sua alocuça o, repentinamente toda a paisagem parecia mergulhar num brilho irreal. Ainda pairava um pareda o escuro de nuvens sobre o vale, mas do meio do pareda o ia surgindo um esplendor, que lentamente se transfor-mava num magní fico arco-í ris. Éra um arco festivo, cujo brilho aumentava a olhos vis-tos, assim que se vinha refletindo mais e mais nos rostos dos presentes. O pregador estava de costas voltadas pa-ra o vale, portanto nada enxergava do mara-vilhoso esplendor. Verdade, ele via o brilho refletido nos rostos dos presentes, mas na o sabia como explica -lo. Assim ele continuou comentando a palavra do apo stolo Paulo constante no oitavo capí tulo da Épí stola aos Romanos - que os sofrimentos deste tempo na o sa o para comparar a glo ria que nos de-vera ser revelada no reino de Deus. Para a comunidade, em sua maioria composta de idosos, poderia parecer coisa muito lo gica o pregador falar sobre os sofri-

mentos deste tempo. Cada um dos velhi-nhos tinha seu histo rico de sofrimentos que a vida lhe impusera. É muitos viviam de co-raça o machucado, e havia feridas do passa-do que continuavam sangrando secreta-mente. Na o, na o se podia varrer as coisas doí das da vida para debaixo do tapete, ao querer falar da glo ria a ser revelada. Assim o pregador falou do sofrimento da falecida, descreveu sua vida, lembrou seu serviço e enalteceu sua fidelidade. Sim, ela tivera de provar os sofrimentos desta vida, fora obrigada a esvaziar ate o fundo o ca lice da dor. A vontade inescruta vel de Deus era essa: justamente as pessoas de fe eram marcadas por contratempos e sofrimentos. Éla, cujos pe s por tantos anos tinham acio-nado os pedais do harmo nio e do o rga o de sua igreja, para dar glo ria a Deus, ela fora obrigada a amputar ambas as pernas. Justa-mente ela, que tanto gostara de lidar com crianças e jovens alegres, tivera de findar os seus dias enferma, em meio a outras pesso-as enfermas e idosas. Os caminhos de Deus para com os humanos eram verdadeira-mente inescruta veis. No momento em que o pregador menci-onara as pernas amputadas de Irmingard, o arco-í ris tinha intensificado o seu brilho; e começara a espelhar-se nas nuvens, assim que aos poucos se ia formando um arco du-plo, feno meno como que sobrenatural, que poucas pessoas te m oportunidade de ver no decorrer de sua vida. Ja que o sol acabara de desaparecer por detra s do cerro, o vale aos poucos mergu-lhara na sombra; mas agora a paisagem to-da começara a resplandecer com um brilho que na o parecia desta terra. O pregador sentia a comoça o dos pre-sentes. Via como os rostos familiares havi-am mudado, assim como se diante deles ja na o se viesse desdobrando um ritual religi-oso, mas como se lhes estivesse ocorrendo algo de novo e maravilhoso, que os arreba-tava de seu dia-a-dia. O pastor, pore m, continuava falando dos

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sofrimentos deste tempo. Éle na o poderia mudar o escopo de sua pregaça o, so porque os rostos do pessoal pareciam espelhar co-moça o e admiraça o. Éle parecia perturbado, sim, pelo fato de os presentes, pelo que pa-recia, ja terem antecipado a segunda parte de seu serma o, antes que ele tivesse falado uma palavra sequer da glo ria que em no s devera ser revelada. Por alguns momentos, admirado da co-moça o refletida nos rostos dos velhinhos, o pregador chegou a silenciar. Foi aí que uma voz quebrou o sile ncio: "Pastor, olhe para suas costas, olhe para o ce u — O Sinal da Aliança!" Éra Fridolino, que ousara inter-romper o solene ritual, apontando para o espeta culo celeste. O pastor, em sua convi-ve ncia com os velhinhos, se acostumara a muitas esquisitices e atitudes exce ntricas pro prias de gente idosa, assim atendeu o pedido de Fridolino olhando na direça o in-dicada. É enta o tambe m ele passou a ver a glo -ria. É se deu conta de que o pro prio Deus havia assumido a parte do seu serma o que tratava da glo ria a ser revelada em no s. As-sim ele limitou-se a dizer: "Sim, Fridolino tem raza o. O Sinal da Aliança." É assim aconteceu que, na hora do se-pultamento de Irmingard, pastor e comuni-dade quedavam-se em sile ncio, ao lado da sepultura aberta, abrindo-se ao fulgor que irradiava do arco da aliança de Deus. É enquanto paravam, silenciosos, bem de manso, do beirado da floresta pro xima, começou a trinar um sabia preto. Éle canta-va como que de voz contida, assim como os sabia s pretos costumam cantar ao lusco-fusco do dia. Cantou por uns dois minutos, e quando enfim silenciou, igualmente o arco-í ris foi perdendo o seu fulgor. Ao fim, o pastor voltou a encarar a co-munidade. Falou da esperança dos que adormeceram em Cristo Jesus, falou da glo -ria da vida eterna — e tudo correu segundo a ordem costumeira. O esquife foi baixado a sepultura: Terra a terra, cinza a cinza e po

ao po . Semeia-se um corpo corruptí vel, res-suscitara um corpo espiritual. Juntos, final-mente, todos oraram a oraça o do Senhor, e depois foram despedidos com a costumeira be nça o. A maior parte dos velhos voltara ao asi-lo, logo apo s a cerimo nia. So ao redor de Fridolino se havia formado um grupo que se envolvera numa discussa o com ele. Fridolino insistia que o arco-í ris tinha sido um sinal de Deus; o pro prio pastor o tinha confirmado. É vinha escrito na Bí blia: Deus havia colocado o arco no ce u, apo s o dilu vio, para que servisse de eterno sinal da aliança estabelecida entre Éle e os huma-nos. Mas ele na o admitia que tambe m o canto do sabia era parte desta aliança. Nada se encontrava na Sagrada Éscritura a respeito de aves que tinham a tarefa de dar recados aos humanos atrave s de seu canto. A pomba que carregara no bico a folha de oliveira, na o havia arrulhado nada para Noe , o corvo que havia trazido pa o e carne a Élias, na margem do arroio de Querite, na o havia grasnado nenhuma mensagem para o pro-feta. Seu serviço fora mudo. Deus na o falava atrave s de passarinhos, e o canto deles na o tinha nenhum significado para no s. Um dos circunstantes alegava que o galo, que, afinal, tambe m era ave, por certo tivera um recado a dar a Pedro, na noite em que este negara a seu Mestre. Mas Fridolino na o se deu por achado. O galo tinha cantado, mas era hora de ele cantar de qualquer jei-to, ele nem sabia porque estava cantando e que seu canto poderia ter um significado pala Pedro. A gente facilmente se tornava ví tima de fantasias, ao querer dar a s coisas da natureza uma interpretaça o espiritual. Alguns do grupo na o concordavam com ele, mas ningue m costumava argumentar com o velho Fridolino sobre questo es que envolviam a Bí blia, e assim sua opinia o pre-valeceu. Mas por ocasia o da janta, Fridolino se mantivera calado, como que contrariado, e

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quando todos abandonaram o refeito rio, ele reteve alguns de seus amigos, com os quais havia discutido pouco antes no cemite rio, e humildemente lhes pediu perda o. Éle se ha-via enganado. O sabia fora mensageiro de Deus, sim. Éle havia conferido na Bí blia; constava no Salmo 148, com toda clareza: Éntre feras, gados e re pteis estavam tam-be m os vola teis, isto e , os passarinhos - to-dos sendo convocados para louvarem a Deus. É aí o sabia preto na o podia ficar de fora. É como ele poderia louvar a Deus, a na o ser com seu canto? É talvez em realidade o canto do sabia tinha uma coisa a ver com o fato de a faleci-da Irmingard ter tocado e cantado para a glo ria de Deus, enquanto ainda fora capaz de faze -lo. É tambe m constava no Salmo 148 que os velhos junto com os jovens devi-am louvar a Deus, e que isto era uma coisa que Irmingard sempre havia falado, e por-

tanto era um recado bem pessoal de Deus para todos eles. Éu penso que poderemos concordar com o velho Fridolino, aceitando sua interpreta-ça o da Éscritura tambe m em nossa pro pria vida. É talvez que nesta interpretaça o se re-vele o mais profundo segredo de Irmingard: o louvor a Deus havia secado em seu cora-ça o aquela fonte amarga da qual se alimen-ta a solida o humana, fazendo nascer em seu lugar a vertente vivificante do amor. Com isso sua pro pria vida, e a vida de muitas ou-tras pessoas, tinham sido transformadas.

Lindolfo Weingärtner nasceu em 1923 em Águas Mornas - SC. É pastor luterano, pro-fessor, escritor e poeta. Possui 27 livros pu-blicados, dentre os quais O Canto do Sabiá e outros contos cristãos (Blumenau: Gráfi-ca e Editora Otto Kuhr, 2003), de onde retira-mos o presente texto.

L U M I N A R E S

“Aslam”,

de Joana Cristina.

Conheça mais AQUI.

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A Morte da Encrenqueira

Judson Canto Sabe a irma encrenqueira, aquela infati-ga vel promotora de confuso es na igreja, que pode ser definida como o friozinho na espi-nha do pastor ou a dor de dente da congregaça o? Éssa era Porfí -ria, talvez o equivalente a mui-tos tratamentos de canal. — Mas ela era ta o terrí vel assim? O dia cono Padilha, que re-passava a um novo convertido curioso a biografia da encren-queira, balançou a cabeça confirmando. Éle pro prio fora uma das ví timas daquela lí n-gua muitas vezes comparada a uma ví bora, so que — todos concordavam — mais vene-nosa. Éla havia cismado que fora ele quem lhe dera o apelido de Morte na Panela, e na o poupava o coitado. Se ele se demorava um pouco mais no cumprimento a uma mulher, ela puxava algue m pelo braço e cochichava: “Ja vi esse filme…”. Se ele abraçava um velho amigo com maior efusa o, ela comentava: “Na o sei na o…”. — Éla costumava encarar a pessoa bem de perto, e enta o começava a falar mal de algue m, sempre repetindo: “Na o acha que eu tenho raza o?”. É a pessoa que na o con-cordasse! — acrescentou o dia cono Padilha, explicando o principal me todo da fofoquei-ra. — Depois ela procurava o irma o ou irma de quem havia falado mal e dizia quem in-ventara aquelas coisas fora a outra pessoa. Porque, se voce concordava, e como se tambe m tivesse dito, na o e ? — Na o posso imaginar nada pior. — Pois imagine. Éla tinha mau ha lito. O dia cono Padilha e o novo convertido estavam conversando no velo rio de Porfí ria. Sim, ela adoecera meses antes. É, depois uma su bita melhora, ate voltara a frequen-tar os cultos, pore m morreu passados al-guns dias, de forma ta o repentina quanto fora a sua recuperaça o. Algue m, com certa

dose de maldade, comentou que ela havia morrido de ansiedade por na o conseguir colocar as fofocas e murmuraço es em dia. A notí cia de sua morte se espalhou, e gente de toda a cidade, em nu mero suficien-te para encher a arca de Noe , ví timas de su-as intrigas, correu para a igreja, espremen-

do-se nos bancos e corredores em silenciosa confraternizaça o. Alguns, desconfiados da sorte, beliscavam disfarçadamente o cada ver, para ver se ela na o es-tava fingindo. Depois se belisca-vam para ver se na o estavam so-nhando.

***

No cemite rio, o pastor Rodolfo pi-garreou, ajeitou o no da gravata e começou: — Irma os, estamos aqui neste culto de aça o de graças — todos fingiram na o perce-ber a gafe — pelo passamento da irma Por-fí ria… Atra s dele, um coral de cochichos com-posto por irma os ansiosos para enterrar o passado instigava: — Anda logo! Anda logo! — Vamos ler uma passagem da Bí blia, no Évangelho de Joa o, capí tulo onze… É novamente o coral de cochichos, com expressa o de pavor: — Le outra! Le outra! Finalmente a sepultaram. Os irma os nem haviam ainda deixado o cemite rio quando o ce u enegreceu e um raio fendeu a escurida o de alto a baixo. Ém seguida, um trova o fez estremecer o lugar. O dia cono Padilha olhou para o alto e ex-clamou: — Ih! Éla ja chegou la .

Judson Canto é editor, escritor, revisor e tra-dutor. Mante m o blog O Balido. Do autor, baixe em formato pdf o conto ilustrado Ate os Confins da Terra. CLIQUÉ AQUI.

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Jardim dos Clássicos

O Suave Milagre Eça de Queirós NÉSSÉ tempo Jesus ainda se na o afastara da Galile ia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberí ades: - mas a nova dos seus milagres penetrara ja ate Énganim, ci-dade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no paí s de Issacar. Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galile ia, predizendo a chegada do reino de Deus, curando todos os males humanos. É enquanto descansava sentado a beira da Fonte dos Verge is, contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo De um decuria o romano so com es-tender sobre ele a sombra das suas ma os; e que noutra manha , atravessando numa bar-ca para a terra dos Gerasse nios, onde come-çava a colheita do ba lsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considera vel e douto que comentava os Livros na Sinagoga. É co-mo em redor, assombrados, seareiros, pas-tores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias da Jude ia e se diante de-le refulgia a espada de fogo, e se o ladea-vam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gogue e de Magogue - o homem, sem mesmo beber daquela a gua ta o fria de que bebera Josue , apanhou o ca-

jado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativa-mente por sob o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja ate A scalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mo-ver a pedra do lagar; as crianças, colhendo ramos de ane monas, espreitavam pelos ca-minhos se ale m, da esquina do muro, ou de sob o sico moro, na o surgiria uma claridade; e nos bancos de pedra, a s portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, ja na o desenrolavam, com ta o sapi-ente certeza, os ditames antigos. Ora enta o vivia em Énganim um velho, por nome Obede, duma famí lia pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do Monte Ébal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas - e com o coraça o ta o cheio de orgu-lho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento a rido e abrasador, esse vento de de-solaça o que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam no ol-mo, e se estiravam na latada airosa, so dei-xara, em torno dos olmos e pilares despi-dos, sarmentos, cepas mirradas, e a parra roí da de crespa ferrugem. É Obede, agacha-do a soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, la-mentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.

Eça de Queirós (1845 - 1900) nasceu em Póvoa de Varzim, no norte de Portugal. Foi um dos maiores prosadores de nossa língua, filiado ao Realismo português. Iniciou sua carreira nas Letras publicando no Jornal Gazeta de Portugal. Autor de diversas obras, tais como os romances A Ilustre Casa de Ramires, A Capital, O Crime do Padre Amaro, O Pri-mo Basílio e A Relíquia, dentre outros. Suas obras estão traduzidas para mais de vinte idi-omas. O presente conto foi publicado originalmente em 1898, na Revista Moderna.

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Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galile ia, que alimentava as multido es, ame-drontava os demo nios, emendava todas as desventuras - Obede, homem lido, que via-jara na Fení cia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros ta o acostumados na Palestina, como Apolo nio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Sima o, o Sutil. Ésses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estre-las, para eles sempre claras e fa ceis nos seus segredos: com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Égito: e agarram entre os dedos as sombras das arvores, que conduzem, como toldos bene ficos, para cima das eiras, a hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele larga-mente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhe-dos. Énta o Obede ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Ga-lileia o rabi novo, e com promessa de di-nheiros ou alfaias o trouxessem a Énganim, no paí s de Issacar. Os servos apertaram os cinturo es de couro - e largaram pela estrada das Carava-nas, que, costeando o Lago, se estende ate Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o po-ente, vermelho como uma roma muito ma-dura, as neves finas do monte Hermon. De-pois, na frescura duma manha macia, o lago de Tiberí ades resplandeceu diante deles, transparente, coberto de sile ncio, mais azul que o ce u, todo orlado de prados floridos, de densos verge is, de rochas de po rfiro, e de alvos terraços por entre os pomares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazare ? Oh, desde o me s de Ijar, o Rabi descera, com os seus discí pulos, para os lados para onde o Jorda o leva as a guas. Os servos, correndo, seguiam pelas mar-gens do rio, ate adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imo vel e verde, a sombra

dos tamarindos. Um homem da tribo dos Ésse nios, todo vestido de linho branco, apa-nhava lentamente ervas salutares, pela bei-ra da a gua, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coraça o ta o limpo, e claro, e ca ndido como as suas vestes cada manha lavadas em tan-ques purificados. É sabia ele da passagem do novo Rabi da Galile ia, que como os Ésse -nios ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O esse nio murmurou que o Rabi atravessara o Oa sis de Éngaddi, depois se adiantara para ale m... - Mas onde, "ale m"? - Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o esse nio mostrou as terras de ale m Jorda o, a planí cie de Moabe. Os servos vadearam o rio - e debalde procuraram Je-sus, arquejando pelos rudes trilhos, ate a s fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Macaur... No Poço de Yakob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Égito mirra, especiarias e ba lsamos de Gileade; e os cameleiros, tirando a a gua com os baldes de couro, contaram aos servos de Obede que em Gadara, pela lua nova, um Rabi ma-ravilhoso, maior que Davi ou Isaí as, arran-cara sete demo nios do peito duma tecedei-ra, e que, a sua voz, um homem degolado pelo salteador Barraba s se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os ser-vos, esperançados, subiram logo açodada-mente pelo caminho dos peregrinos ate Ga-dara, de altas torres, e ainda mais longe ate a s nascentes da Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada seguido por um povo que canta-va e sacudia ramos de mimosa, embarcara no Lago, num batel de pesca, e a vela nave-gara para Magdala. É os servos de Obede, descoroçoados, de novo passaram o Jorda o na ponte da Filhas de Jaco . Um dia, ja com as sanda lias rotas dos longos caminhos, pi-sando ja as terras da Jude ia romana, cruza-ram com um fariseu sombrio, que recolhia a Éfraim, montado na sua mula. Com devota revere ncia detiveram o homem da Lei. Én-

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contrara ele por acaso esse profeta novo da Galile ia que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do fariseu escureceu enrugada e a sua co lera retumbou como um tambor orgulhoso: - Oh, escravos paga os! Oh, blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusale m? So Jeova tem força no seu Templo. De Galile ia surgem os ne scios e os impostores... É como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dí sti-cos sagrados - o furioso Doutor saltou da mula, e, com as pedras da estrada, apedre-jou os servos de Obede, uivando: Racca! Ra-cca! e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Énganim. É grande foi a des-consolaça o de Obede, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam – e, toda-via, radiantemente, como uma alvorada por detra s de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galile ia. Por esse tempo, um centuria o romano, Publius Septimus, comandava o forte que domina o vale de Cesare ia, ate a cidade e ao mar. Publius, homem a spero, veterano da campanha de Tibe rio contra Partos, enri-quecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuí a minas na A tica, e gozava, como favor supremo dos deuses, a amizade de Flaco, legado imperial da Sí ria. Mas uma dor roí a a sua prosperidade muito poderosa, como um verme ro i um fruto muito suculento. Sua filha u nica, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal sutil e lento, estranho mesmo ao sa-ber dos escula pios e ma gicos que ele man-dara consultar a Sidon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemite rio, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do for-te, sob um vela rio, alongando saudosamen-te os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Ita lia, nu-ma opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legiona rio entre as ameias apontava va-

garosamente ao alto a flecha, e varava uma grande a guia, voando de asa serena, no ce u rutilante. A filha de Septimus seguia um momento a ave, torneando ate bater morta sobre as rochas; - depois, com um suspiro, mais triste e mais pa lida, recomeçava a olhar para o mar. Énta o Septimus, ouvindo contar, a mer-cadores de Corazim, deste Rabi admira vel, ta o potente sobre os espí ritos, que sarava os males tenebrosos da alma, destacou tre s decu rias de soldados para que o procuras-sem pela Galile ia, e por todas as cidades da Deca polis, ate a costa e ate A scalon. Os sol-dados enfiaram os escudos nos sacos de lo-na, espetaram nos elmos ramos de oliveira - e as suas sanda lias ferradas apressadamen-te se afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana, que desde Cesa-re ia ate Lago corta toda a tetrarquia de He-rodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama on-deante dos archotes erguidos. De dia inva-diam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lan-ças a palha das medas; e as mulheres, as-sustadas, para amansar logo acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho, que eles bebiam dum trago, senta-dos a sombra dos sico moros. Assim corre-ram a Baixa Galile ia - e, do Rabi, so encon-travam o sulco luminoso nos coraço es. Én-fastiados com as inu teis marchas, desconfi-ando que os judeus sonegassem o seu feiti-ceiro para que Romanos na o aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tu-multo a sua co lera, atrave s da piedosa terra submissa. A entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os ve us a s virgens: e, a hora em que os ca ntaros se enchem nas cisternas in-vadiam as ruas estreitas dos burgos, pene-travam nas sinagogas e batiam, sacrilega-mente com os punhos das espadas nas The-bahs, os Santos Armários de cedro que conti-nham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hebron arrastaram os solita rios pelas bar-

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bas para fora das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi - e dois mercadores fení cios que vinham de Jope com uma carga de ma-lo batro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dramas a cada centuria o. Ja as gentes dos campos, mesmo os bravios pastores de Idume ia, que levam as reses brancas para o Templo, fugi-am espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as ar-mas do bando violento. É da beira dos eira-dos, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arroja-vam sobre eles as Ma s-Sortes, invocando a vingança de Élias. Assim tumultuosamente erraram ate A scalon; na o encontraram Je-sus: e retrocederam ao longo da costa en-terrando as sanda lias nas areias ardentes. Numa madrugada, perto de Cesare ia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de lourei-ros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro po rtico dum templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de fo-lhas de louro, vestido com uma tu nica cor de açafra o, segurando uma curta lira de tre s cordas, esperava gravemente, sobre os de-graus de ma rmore, a apariça o do Sol. Debai-xo, agitando um ramo de oliveira, os solda-dos bradaram pelo sacerdote. Conhecia ele um novo profeta que surgira na Galile ia, e ta o destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a a gua em vinho? Serena-mente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale: - Oh romanos, pois acreditais que em Ga-lile ia ou Jude ia apareçam profetas consu-mando milagres? Como pode um ba rbaro alterar a ordem instituí da por Zeus?... Ma gi-cos e feiticeiros sa o vendilho es, que mur-muram palavras ocas, para arrebatar a es-po rtula dos simples... Sem a permissa o dos Imortais nem um galho seco pode tombar da a rvore, nem seca folha pode ser sacudida na a rvore. Na o ha profetas, na o ha mila-

gres... So Apolo De lfico conhece o segredo das coisas! Énta o, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram a fortaleza de Cesare ia. É gran-de foi o desespero de Septimus, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, cu-rador dos la nguidos males, crescia, sempre consoladora e fresca, como a margem da tarde que sopra do Hermon e, atrave s dos hortos, reanima e levanta os açucenas pen-didas. Ora entre Énganim e Cesare ia, num case-bre desgarrado, sumido na prega dum cer-ro, vivia a esse tempo uma viu va, mais des-graçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho u nico, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, on-de jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Tambe m a ela a doença a enge-lhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arran-cada. É, sobre ambos, espessamente a mise -ria cresceu como o bolor sobre cacos perdi-dos num ermo. Ate na la mpada de barro vermelho secara ha muito o azeite. Dentro da arca pintada na o restava gra o ou co dea. No Éstio, sem pasto, a cabra morrera. De-pois, no quinteiro, secara a figueira. Ta o longe do povoado, nunca esmola de pa o ou mel entrava o portal. É so ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nu-triam aquelas criaturas de Deus na terra es-colhida, onde ate a s aves male ficas sobrava o sustento. Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a ma e amargura-da, e um momento sentado na pedra da la-reira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galile ia, que de um pa o no mesmo cesto fazia sete, e amava to-das as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abunda ncia maior que a

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corte de Saloma o. A mulher escutava, com olhos famintos. É esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o de-sejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Jude ia como o Sol que ate por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a cla-ridade do seu rosto, so aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obede, ta o rico, man-dara os seus servos por toda a Galile ia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessa a Énganim; Septimus, ta o sobera-no, destacara os seus soldados ate a costa do mar, para que buscassem Jesus, o condu-zissem, por seu mando, a Cesare ia. Érrando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obede, depois os legiona rios de Septimus. É todos voltavam como derro-tados, com as sanda lias rotas, sem terem descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou pala cio, se escondia Jesus. A tarde caí a. O mendigo apanhou o seu borda o, desceu pelo duro trilho, entre a ur-ze e a rocha. A ma e retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. É enta o o filhinho, num murmu rio mais de bil que o roçar duma asa, pediu a ma e que lhe trou-xesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A ma e apertou a cabeça es-guedelhada: - Oh, filho! É como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, a procura do Rabi da Galile ia? Obede e rico e tem servos, e de-balde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Corazim ate ao paí s de Moabe. Septi-mus e forte, e tem soldados, e debalde cor-reram por Jesus, desde o Hebron ate ao mar. Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. É mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi ta o desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que desces-se atrave s das cidades ate este ermo, para sarar um entrevadinho ta o pobre, sobre en-

xerga ta o rota? A criança, com duas la grimas na face magrinha, murmurou: - Oh, ma e, Jesus ama todos os pequeni-nos. É eu ainda ta o pequeno, e com um mal ta o pesado, e que tanto queria sarar! É a ma e, em soluços: - Oh, meu filho, como te posso deixar? Longe sa o as estradas da Galile ia, e curta a piedade dos homens. Ta o rota, ta o tro pega, ta o triste, ate os ca es me ladrariam da porta dos casais. Ningue m atenderia o meu reca-do, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh, filho! Talvez Jesus morresse... Nem mes-mo os ricos e os fortes o encontram. O ce u o trouxe, o ce u o levou. É com ele para sem-pre morreu a esperança dos tristes. De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres ma ozinhas que tremiam, a cri-ança murmurou: - Ma e, eu queria ver Jesus... É logo, abrindo devagar a porta e sorrin-do, Jesus disse a criança: - Aqui estou.

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O jovem aspirante a escritor estava precisan-

do de esperança. Muitas pessoas lhe haviam dito para desistir. “É quase impossí vel conseguir que seu trabalho seja publicado”, disse-lhe um orien-tador. “A menos que voce seja uma celebridade nacional, os editores nem sequer falara o com vo-ce ”. Outro avisou: “Éscrever toma muito tempo. Ale m disso, voce na o vai querer colocar todos os seus pensamentos no papel”. No iní cio ele ouviu. Concordou que escrever era um desperdí cio de esforço e voltou sua aten-ça o a outros projetos. Mas de alguma forma, a ca-neta e o bloco de notas eram como o cafe e a Coca-Cola para o viciado em palavras. Éle preferia es-crever a ler. Énta o escrevia. Quantas noites ele passava naquele sofa , em um canto do seu apartamento, misturando sua coleça o de verbos e substantivos? É quantas ho-ras sua mulher lhe fez companhia? Éle fazendo artesanato com as palavras. Éla bordando em ponto de cruz. Por fim, ele terminou um manus-crito. Cru e cheio de erros, mas terminado. Éla lhe deu o empurra o que faltava. — Por que voce na o o envia? Que mal ha nisso? Énta o ele fez isso. Énviou o manuscrito a quin-ze diferentes editores. Énquanto o casal espera-va, ele escrevia. Énquanto ele escrevia, ela borda-va. Nenhum deles tinha muitas expectativas, mas

ambos esperavam. As respostas começaram a chegar. “Sentimos muito, mas na o aceitamos ma-nuscritos na o solicitados”. “Éstamos devolvendo o seu trabalho. Felicidades”. “Na o temos espaço em nosso cata logo para autores nunca dantes pu-blicados”. Ainda tenho essas cartas. Ém uma pasta, em algum lugar. Éncontra -las levaria algum tempo. No entanto, encontrar o bordado de Denalyn na o leva tempo algum. Para ve -lo, tudo o que tenho que fazer e levantar os olhos do meu monitor e olhar para a parede. “Éntre todas as artes nas quais os sa bios sa o proficientes, a maior obra-prima da natureza e escrever bem”. Com isso ela me deu tempo para que a carta nu mero quinze chegasse. Um editor tinha dito sim. Aquela carta tambe m esta emoldurada. Qual dos dois quadros significa mais para mim? O pre-sente da minha esposa ou a carta do editor? O presente, claro. Ao dar-me o presente, Denalyn deu-me esperança. O amor faz isso. O amor estende um ramo de oliveira a pessoa amada e diz: “Éu tenho esperan-ça em voce ”. _________________________________________________________ Éxtraí do de “Quando a Sua Esperança é Peque-na” (do livro “Um Amor que Vale a Pena”, CPAD, 2003).

Arte de Escrever Max Lucado

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O Poeta do Salmo exilado J.T.Parreira

O rio na o parecia correr no seu leito natural, circulava pela cidade, por entre as casas e dava a impressa o de estar ao ní vel das construço es mais rectangulares, reflectindo as faces dos edifí cios. Gedalias, um ancia o de olhar ja acomodado, sentava-se ao lado de Quebar, um canal navega -vel, a jusante do Éufrates, e via subir e descer com o vento, ate arrastarem as folhas mais altas nas a guas, os juncos que se pareciam com saltadores no momento do mergu-lho. Nas pedras, junto de si, tinha pousada uma ta bua de barro com inscri-ço es da histo ria recente e um papiro enve-lhecido no qual se via que ja inscrevera al-gumas frases em aramaico. O velhinho olhava-as, e quando o fazia espaçadamente era com uma tristeza nos cantos da boca, como se alguma coisa tardasse em chegar. É afirmava a si pro prio: «Éstes versos sera o feitos como se esculpisse o sentir da tristeza, a lamentaça o certa ha -de chegar perfeita, do meu estado de espí rito.» Éra um velho que trajava um longo ves-tido gasto, com motivos sume rios, e abriga-va-se da humidade do ar com uma pele de carneiro surrada, «Apesar das apare ncias, sou um cativo muito bem tratado» – pensa-va, va rias vezes, com algum reconhecimen-to, e poucas vezes falava de vingança. Fizera parte da primeira deportaça o, era um bom artí fice, a quem reconheceram a sua valia profissional para trabalhar em artes decorativas. Agora, pore m, ja na o tra-balhava.

Tinha as sanda lias cheias de lama, por-que costumava percorrer os montes de ter-ra que bordejavam as a guas do rio. O rosto evidenciava, com rugas, que ha-

via percorrido uma es-trada na vida que na o fora atapetada de lí rios. Tinha, no entanto, uma boa figura, e as ma os, quando andava, pareciam imprimir calma a todo o corpo. Vivia num lugar que as autoridades babilo ni-cas tinham destinado aos judeus deportados. Éstes viviam em casas pro prias, alguns ate ha-viam enriquecido com o esforço da sua acultura-ça o e integraça o, viven-do na o como escravos, mas semi-livres, em pontos estrate gicos um

pouco acima das margens do Quebar. A sua casa e a da famí lia estava ao lado de um grande salgueiro, que em fins de tarde sem vento dava bastante calma ao olhar, embo-ra na o acrescentasse nenhuma novidade, por isso nos olhos de Gedalias havia, por vezes, uma certa acomodaça o. Mas, na maior parte do tempo em que estava sozinho, os olhos iam buscar ao fun-do do rio sentimentos tristes, e, no entanto, davam a impressa o de estarem a acompa-nhar o subtil curso das a guas. Como quase sempre podia fazer, estava sentado ao lado do rio, e a luminosidade que vinha da a gua, compartilhava-a no seu rosto. Nesses momentos baixava a cabeça e olhava em direcça o do seu manuscrito. Trouxeram-nos, um dia, por volta do anoitecer, das suas terras da Palestina, ao velhinho com uma dezena de milhar de outros judeus, e a partir de enta o aqueles canais da Babilo nia eram como uma praça onde juntavam os soluços e as palavras

Michele Myers

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castradas. Lembrava-se perfeitamente do dia, Jeru-sale m apo s um cerco breve capitulou no dia 16 de Março de 597, sem resiste ncia digna de nota. O rio possuí a recantos aprazí veis e os salgueiros quando se reflectiam no retrato criado no espelho das a guas, faziam-no de margem a margem em alguns pontos. Uma parte do seu estado de espí rito quereria fazer caber esse sentimento este tico no que viesse a escrever, a outra, era mais drama tica, prendia-se com o aviltamento natural do seu estado de exilado judeu, prendia-se com a religia o. — Se eu fosse o nosso grande rei David, o salmo ja arderia de beleza em todas as suas palavras. — Disse, um dia, a um moço que lhe perguntara o destino que daria ao manuscrito. — Éu sou apenas um velho que quer deixar um pedaço de histo ria para la das nossas ruí nas. Mas talvez seja ja muito tarde. — Arrematou, voltando de novo a sua contemplaça o. — Venha, meu pai. — Julgar-se-ia que a filha o teria acordado, quando o veio chamar. — Venha preparar o Shabat, que apesar de estarmos em terra estranha, temos aqui de perpetuar Sia o. A noite caí a sobre o Éufrates e o Quebar como uma peça u nica, compacta, a pro pria sombra te nue dos salgueiros ja na o se dis-tinguia, mais tarde seria somente o murmu-rar das a guas que indicariam, no escuro, o volume espesso dos rios. Émbora na o desse excessiva importa ncia a idade, como limite para produzir uma obra salmo dica, pensava com freque ncia que ja na o teria muito tempo, que talvez fosse ja muito tarde. — Ainda quero sair daqui, regressar a minha terra. — Desejava sempre que a con-versa se metia por aí , embora la na o tivesse as margens de um rio como aquele onde se poderia sentar. Sentar-se-ia debaixo do al-pendre de uma casa. É pensava assim sem-

pre que se animava com uma possí vel lon-gevidade. Havia rumores de que os persas, sob o mando de Ciro, poderiam estar perto de in-vadir Babilo nia. É esses na o eram propria-mente ba rbaros. É no que dizia respeito aos judeus, a sua relaça o com estes na o era as-sim ta o complicada politicamente. Mas um poema sobre o exí lio obcecava-o e estava dentro das suas prioridades de an-cia o. Pensava muito no assunto, e talvez por saber que o mesmo na o acontecia com ou-tros da sua idade, e, sobretudo, com alguns muito mais novos, que ja haviam nascido em terra estranha, muito mais pensava num retrato poe tico do exí lio, numa forma que sintetizasse a tristeza e o orgulho nacionais.

Foi nesse instante que um dos filhos, o mais velho, lhe interrompeu o que estava a pensar. Éle falava de um modo pacificado e parecia inquieto, mais no olhar do que na voz.

— Pai, queria que me desse uns momen-tos da sua atença o. Ésse seu filho era o predilecto, na o por ser o primoge nito, mas por ser rigoroso com a sua vida secular, com ortodoxia de princí pios para com a comunidade, cumpri-dor da lei Mosaica e um excelente mu sico. Tocava lira na perfeiça o. — Ja decidi, ha muito tempo, que na o vou tocar lira para a festividade dos nossos opressores. No entanto, insistem. Vou deba-ter-me com problemas.

— Deus reservou-te uma tarefa, que na o sera certamente tocares o ca ntico do Senhor em terra estranha. — Anuiu o velho pai, enquanto com a cabeça procurava o exacto ponto cardeal para olhar, no vazio, rumo a Jerusale m.

— Na o sou o u nico a pensar desta maneira — informou o filho — Ha muitos judeus a pensarem o mesmo.

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É, no entanto, estavam todos aflitos com a situaça o. Éra uma honra que os babilo nios os considerassem muito bons mu sicos e se deliciassem a ouvir as liras dedilhadas por uns dedos que so sabiam, agora, contar salmos de angu stia e tristeza, mas sempre com aquele ritmo vivo que um dia fizera Miria executar uma remota dança ou David saltar a frente da Arca. — Talvez. — Concordou o velho — Mas sempre e o ca ntico do Senhor em terra es-tranha. Por muito que ambicionemos na o poderemos tirar desta terra um ca ntico pa-ra o Senhor. — Repetiu, enquanto um vento inesperado fez uma passagem ra pida pelos salgueiros, como uma mu sica agreste, de-frontando as ramagens. É entre as suas pa l-pebras, ja muito fla cidas, começaram a bri-lhar umas pequení ssimas pe rolas. Uma nuvem mais branca, queria agora instalar-se entre as mais escuras que corri-am, ja havia um bocado, pelo ce u. Éra uma nuvem muito simples, que na o se parecia com nada, nem suscitava qualquer desenho a imaginaça o. O velho talvez pudesse agora voltar para o seu sí tio ao lado do rio, e levar os seus ins-trumentos de escrita onde esperava ainda escrever alguma coisa a favor do mundo que lhe roubaram. A lua era uma quilha de um barco a subir e a descer na luminosida-de de espuma, quase alva, de algumas nu-vens. Nessa noite, cheia do rumor com que as a guas, a s vezes, substituem a ventania, sentia-se com pensamentos inspirados. — Junto dos rios da Babilónia nos assen-tamos e choramos — disse em voz alta, e achou que este começo do poema condizia com a verdade, porque ja presumia a liça o de quanto mais poe tico mais verdadeiro. Poderia ser mais narrativa que poesia, mas era a verdade sentida. — Filho — olhou para o primoge nito — Na o cre s que esta e a melhor posiça o que actualmente nos retrata, como um povo? Havia no entanto, que meter dentro do para grafo, dissera-lhe o filho, a saudade, a

religiosidade e tambe m um sentido comuni-ta rio. Fizera bem em referi-lo, porque o ve-lho concluiu os versos com «lembrando-nos de Sião.» Depois veio aquela refere ncia aos sal-gueiros. Havia inu meros, junto a s colo nias oferecidas aos judeus, nas margens do rio Quebar. «Nos salgueiros penduramos nos-sas harpas.» Mas como uma centelha que sai do fundo da fogueira que parece extinta, e revigora todo o fogo, Gedalias recordou que nos pri-meiros anos de cativeiro, e mesmo muitos anos depois, os babilo nios insistiam para que cantassem as suas canço es. Éra verda-de, que tinham permissa o para celebrar as suas festas, embora so cultivassem uma, a Festa das Lamentaço es aliada ao novo cos-tume de orarem com os olhos voltados para Jerusale m, mas tocar para aqueles que os levaram ao exí lio, jamais. É, assim, começou a escrever: «Porquanto aqueles que nos levaram cati-vos, nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos um dos cânticos de Sião.» Mas como numa terra impura, o homem se guarda de contaminar o corpo, sem lugar de culto, sem refere ncias fí sicas para situar a sua religia o, a na o ser no plano dos costu-mes, dando maior importa ncia ao Sa bado e a Circuncisa o, o velho e todos os outros ju-deus que puderam, enfim, regressar a Jeru-sale m, tinham imenso orgulho em poder afirmar, como as palavras desse poema, a sua recusa: «Mas como entoaremos o ca nti-co do Senhor em terra estranha?». ____________________________________________________

Do livro Como quem ia para longe. Baixe gratuita-

mente seu exemplar AQUI.

J.T.Parreira é poeta, escritor e ensaísta português.

Autor de seis livros de poesia e diversos e-books.

Éscreve desde 1964 na revista Novas de Alegria.

Mante m o blog Poeta Salutor.

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RECIFE- MENINO

Ao toque do cada sino remeto à vida do meu Recife - menino. Nos quintais quase todos os frutos: os que do oriente foram trazidos e os que já se encontravam no chão do descobrimento,

as cores dos frutos nos quintais das casas celebravam a vida em todas as nuances e eu adormecia sob aquele manto cintilante.

De tempos em tempos floriam as mangabeiras, depois era a vez das mangas de amarelo, rosa e verde vestidas, também as goiabeiras, os laranjais e abacateiros. Vivíamos sob a exuberante copa dos jambeiros, e à espera de colher as bananas d’água, da prata e do ouro.

Recife era umidamente adornada. Outros frutos como araçás pitombas e cajás enfeitavam as mesas tropicais de Dezembro.

Em junho, a chuva caía fina como uma oração. As ruas da cidade ficavam limpas exibindo um fulgor quase. As águas escorriam das biqueiras, e era um banho dos fluidos celestiais feitos na maior brincadeira.

As tardes recebiam o enfeite das flores, bom dia, boa tarde, boa noite, buganvílias, jasmins, margaridas, dálias e sempre-vivas. Sempre as trazia comigo, pois as amava e as flores gostam de nossos amores.

Entre as famílias a morte quando chegava era por natural decorrência e sem violência levava quem ela queria.

Um véu de estrelas forrava todo o firmamento. Era augusto este recorte que uma menina via. Na varanda ficavam o pai, a mãe, tios e avós a discorrer sobre fatos decorridos ou imaginários. Do tempo dessa casa antiga para mim ninguém partiu definitivamente. Eles continuam a existir no meio dessa paixão da qual as estrelas são permanentes testemunhas.

POR AMOR

Foi tanto o vexame, lado a lado com dois vagabundos

expulsos fora de portas. Mais que tudo:

sendo o pior de todos eles. Chistes, esgares, - porque te

apanharam?

Desfeito de formas diante de estranhos homens

de fala obscura. Um deles me lançou uma praga alucinado

de rir uma risada sem dentes, até que se exumou de vez.

Lágrimas em óleo quente. Mais que as lanças rasgando-me juntas

e descolando carne da carne, era a vergonha absoluta.

Entardecia, virava-me o sol as costas. Monções de poeira

sopravam para longe toda-paixão pelos homens.

Meu ouvido dizia: adormece !Yeshua! Até que as cordas do coração

me soltaram e a descer, a descer,

vertiginoso preparo para a permanência na

região do silêncio sem respostas

A noite desceu compacta e Jerusalém mergulhava escura

no sangue de um homem sem culpas

A VISITAÇÃO

Existe um perfume onde Tu estás, fragrância de rosas, alguma nota cítrica:

toques leves de malva e cássia.

Além do perfume com que te anuncias, uma luz diáfana. Vens assim

em suave aragem pela minha sala. em suave aragem pela minha sala.

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Julia Lemos é natural de Caruaru, interior do estado de

Pernambuco, nordeste do Brasil. Radicada no Recife, tem forma-

ção em Comunicação Social, nas áreas de Publicidade e Propa-

ganda e Jornalismo, pela Universidade Federal de Pernambuco,

atuando como Coordenadora de Comunicação Social do Ministé-

rio da Saúde, bem como repórter e redatora no Jornal do Comér-

cio e na Televisão Universitária .

Atriz, estreou no teatro infantil em 1977 com “Pedacinho de Lua” (de Tonico Aguiar).

Em Olinda, fez parte do grupo de estudos do teatro de Bertold Brecht do Teatro Hermilo

Borba Filho, atuando em diversas encenações.

Co-autora do livro de receitas A Cozinha Estrangeira na Terra do Caju, com prefácio

de Gilberto Freyre, 1985; publicou os livros de poesia Carmem Antonio Migliacchio En-

louqueceu (Edições Pirata- Fundação Gilberto Freyre), e A Casa Estrelada, pela Fundação

de Cultura de Pernambuco, através da CEPE. Participou de diversas antologias.

É pós-graduada em Literatura Brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife e mestra

em Estudos Brasileiros pela Universidade de Lisboa. Tem inédito o livro de poesias A Ex-

posição dos Sóis e Poemas ao Rei.

UM OLHAR INEXTINGUÍVEL

Deus se amplia,

além do meu espaço,

meu gueto, meus guias.

Ele vai muito além

de meus esquadros,

usando régua e compasso

que desconheço.

Na matemática simples do dia,

enquanto ainda estou no começo,

Ele está lá no futuro

realizando promessas,

que mais próximas do meu

passado já se encontram.

Para melhor entende-lo,

serve-me de espelho

a física quântica.

Por isto, minha palavra

traz à existência o que não existe,

e, como as águas, símbolo do seu Espírito,

vou perfurando fendas na Rocha sobre

o precipício.

Olho para Deus

vendo-o criar mundos dentro de outros mundos,

e a mover-se na velocidade de uma luz

que neste momento já extinguiu tantas estrelas.

CANDEIA

O olhar soturno que Deus me deu não é para ferir o mundo

mas para amá-lo. Amo-o com a candura dos olhares límpidos

e subo ao mais alto edifício de onde eu possa ser a candeia

que ilumine toda a cidade.

LITANIA

Trago dentro de mim uma oração como uma litania. Pai, não trago palavras fáceis,

em vão se amontoam os pedidos, coisas. Não era isto que eu queria

mas a ternura.

Hoje o céu está como que de chumbo, vertigem dos joelhos

terem subido de repente.

Guardo em mim a ânsia da terra que me foi prometida.

-Não eram os frutos maiores aqueles

trazidos pelos espias?

Pai, não vim aqui fazer orações compridas.

Sobre estes territórios tão vigiados transitam

os meus sonhos jamais olvidados.

DIANTE DO TRONO

Quando cessarem as esperanças

e o quartzo não mais refletir meu rosto prismático,

quando todos os venenos para curar ou para ferir

acabarem vou-me para diante de ti.

Havendo de chegar

não lhe farei perguntas.

- Pai, respondi tudo de forma

poética. Minha vida foi de boemias frasais,

e fiz muitos amigos assim.

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cobras & lagartos

Manuel Adriano Rodrigues

ha pessoas que ja cantaram conosco velhos hina rios pentecostais e nos disseram dista ncia e outros disseram de no s cobras & lagartos sem nunca terem visto o vestí gio de um ví cio qualquer na nossa boca ja houve quem nos dissesse que temos o ha bito de ter os olhos abertos e que se foram embora com medo da diferença outros mais pro ximos que no passado viram o nosso interior temendo a nossa nudez ficaram calados e na o nos quiseram abraçar mas tambe m ja houve quem nos tenha dito Amor e isso, e o que importa

Múmia

Rosa Leme

Éu era uma mu mia no meio de Outras mu mias.

Éu entrei descontrolada No grande sala o

Éu falava gritava, gritava... Éu gritava, mas era em va o.

Ningue m me ouvia. Éstava sozinha.

As imagens ficavam inertes! Va rias delas eram de argila.

Outras Mu mias De louças valiosas...

As imagens eram de prata e ouro, De artistas habilidosos.

Obra das ma os dos homens.

Imagens, apenas imagens. Te m olhos, mas na o veem;

Te m ouvidos, mas na o ouvem; Te m boca, mas na o falam;

Nariz tem, mas na o cheiram; Te m ma os, mas na o apalpam;

Te m pe s, mas na o andam;

Éu era uma mu mia em forma humana. Éu ja fui uma mu mia

No meio de uma multida o.

Hoje sou apenas uma mulher Que encontrou a salvaça o.

HEBREUS 11.1

Nira de Andrade

(Ora) sem fé é impossível agradar a Deus (a)ssim foi escrito pelo autor aos Hebreus (fé) é necessária para crer que Ele existe (é) preciso para quem na oração persiste (o) galardão daquele, que até o fim resiste... (firme)za nas provas e nas tentações (fundamento) dos que sofrem grandes provações (das) mulheres e homens que nos dão lições... (coisas) que venceram e foram campeões. (que) dizer de Abraão, nosso pai na fé, (se)m falar de Abel, Enoque e Noé... (esperam) nas promessas do Jeová Jiré! (e) xperimentam escárnios, açoites, cadeias e prisões. (a)inda assim com fé dentro dos corações, (prova)dos no fogo, no deserto, na cova dos leões (das) suas falhas e fraquezas tiraram resistência (coisas) que enfrentaram com toda a persistência (que)rendo a prática da fé na obediência... (se)ndo apedrejados, serrados, mortos ao fio da espada; (não) desistiram nem abandonaram a sua jornada (veem) na esperança sua fé aperfeiçoada!!!

DEUS SABE A HORA

William Vicente Borges

Deus sabe a hora de dizer SIM e então sentimos a brisa da sua compreensão

Deus sabe a hora de dizer NÃO e sentimos a fragrância da sua sabedoria

Deus sabe a hora de dizer BASTA e todas as nossas dores se vão

Deus sabe a hora de dizer AGORA e nossos joelhos se dobram em gratidão

Deus sabe a hora de dizer CALMA e nossos medos são jogados ao chão

Deus sabe a hora de dizer MUDA e nossa alma segue outra direção

Deus sabe a hora de dizer NÃO TEMAS e sentimos o poder de suas mãos

Deus sabe a hora de dizer EU TE AMO e se prestarmos a atenção veremos

que o diz a toda hora!

Súplica de poeta May Sousa

Deus,

Permita-me ser:

Legenda tua!

Fazer-te conhecido, com tinta e papel.

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Joed Venturini Um grupo de garotos passou correndo pela frente da porta, enquanto o velho Éuri-co a fechava para sair. Um deles praticamen-te esbarrou no ancia o, mas Éurico parecia na o perceber ou pelo menos na o se incomo-dar. Éra parte de sua maneira de reagir ao ambiente. É seu estilo poderia ser considerado perfeito. Fazia ja quinze anos que vivia naque-la favela e nunca fora assal-tado! Ningue m o molesta-va. Vivia so e sossegado e era respeitado. Saí a pouco, pois era aposentado. Ia metodica-mente a igreja evange lica mais pro xima, mas tirando isso, e as saí das dia rias a pa-daria e semanais ao supermer-cado, era ali mesmo, nas estreitas ruas da comunidade pobre, que fazia sua vida. O velho era conhecido como uma espe -cie de operador de milagres. Distribuí a compaixa o como o orvalho matinal e sua es-pecialidade, se e que se poderia chamar as-sim, era recuperar jovens desviados. É na sua favela havia muito material de trabalho. O ancia o tinha uma estrate gia pouco co-mum. Poderia se dizer que ganhava pela exausta o. Primeiro escolhia, em oraça o, um jovem que estivesse mesmo muito mal. Ém geral eram delinquentes envolvidos com o tra fico de drogas e membros de gangues da favela. Énta o iniciava uma maratona de je-jum e oraça o por aquele jovem. Quando sentia que tinha suficiente cobertura de oraça o, “atacava”. De tal forma procurava o seu alvo que a s vezes virava sua sombra. Ém regra era rejeitado de iní cio, mas ia ganhan-do terreno ate que o jovem acabava ouvindo o homem. Mesmo com meios ta o arcaicos a psico-logia moderna, o ancia o tinha resultados

surpreendentes. Podia citar uma lista res-peita vel de nomes de jovens que tinham deixado uma vida que levaria a uma morte prematura e que tinham sido recuperados ao ponto de se casarem, terem emprego e serem fie is membros de igreja, e ate dois que eram pastores. Mas Éurico na o fazia propaganda de seu trabalho. Seria contra rio ao seu estilo e per-sonalidade. Ale m de mais ele considerava

seu ministe rio como uma simples re-tribuiça o pelo que ele mesmo

recebera. Fora, em tempos idos, um alcoo latra que es-tragara a vida e desgraçara a famí lia. Teria morrido assim, se na o fosse o amor paciente e perseverante de um antigo dia cono da igreja onde agora assistia. Éssa era sua histo ria. Éssa

era sua vida. Ultimamente, pore m, o ho-

mem andava um tanto preocupa-do e nervoso. O caso que tomara parecia

na o se resolver como os anteriores. Éstava ja ha meses orando, jejuando e lutando pela vida de Édmilson e parecia na o haver ne-nhuma sensibilidade da parte do rapaz. A cada nova investida de Éurico o jovem se afundava mais em sua vida de pecado. Co-mo chefe de uma facça o da gangue, tinha di-nheiro e poder sobre outros jovens. Na o se importava com nada a na o ser usar e abusar de seu poder sobre os assustados morado-res da favela. Passear de carro e trocar de namorada eram outros de seus passatem-pos e, claro, tudo bem regado a chope e co-caí na. Éurico na o era homem de desistir fa cil. Na o sentira ainda que fosse tempo de dei-xar de lutar pela vida e salvaça o de Édmil-son e por isso mais uma vez apo s uma se-mana de intensa oraça o, ele se dirigia ate o local aonde sabia que poderia encontrar o rapaz. O jovem na o estava em casa. Fora visto indo

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para o topo do morro, aonde tinham uma casa que servia como uma espe cie de prisa o para inimigos capturados ou devedores que na o pagavam suas remessas de droga. Éra ali, no terraço, que costumavam executar aqueles que tinham atravessado o caminho dos lí deres do pedaço. Éurico estremecera, mas na o de medo. Éstava seguro. Temia pe-lo seu alvo. Éra pelo moço que sentia medo. Subiu custosamente o morro, parando va rias vezes. A idade ja na o facilitava. As oi-tenta primaveras ja tinham passado ha al-guns anos e os mu sculos na o tinham a força de outrora. Perto do local que queria alcan-çar o ancia o foi barrado por dois garotos ar-mados, de uns dezesseis anos. — É aí vovo , aonde e que pensa que vai? — Vim ver o Édmilson — Éxplicou Éuri-co com toda a naturalidade. — Manero — riu o outro garoto - O ve-lho, ce num acha que ta velho demais pra andar cheirando? Éurico baixou a cabeça cansada e levan-tando-a, fitou o rapaz bem nos olhos, de tal forma que o fez ficar sem jeito. Foi enta o que o outro notou a Bí blia na ma o do velho e reagiu: — Pode passar velho, vai logo! Mais uma vez a superstiça o local se fazia sentir. Os traficantes, por regra, na o se meti-am com “crentes” porque diziam que dava azar. As evide ncias confirmavam. Éurico avançou ate a casa. Éra um casara o abando-nado. Por todo o lado cheirava a dejetos hu-manos e havia ratos andando em plena luz do dia. Um despacho de macumba bem na entrada terminava de compor o quadro ma-cabro. O ancia o na o hesitou. Subiu as escadas gastas. Na o havia ningue m no 1º andar, nem no 2º. Ao chegar ao terraço ja o velho arfava novamente. Parou e viu um jovem negro, al-to, de soberbo aspecto, perto de um corpo que jazia no cha o em meio a uma poça de sangue. Ao pressentir a presença do homem o jovem apontou a arma com ar furioso e olhos arregalados onde se evidenciavam si-

nais da u ltima dose de droga. Éurico levantou a Bí blia em sinal de identificaça o. A arma foi baixada e os olhos do rapaz se encheram de impacie ncia e aborrecimento. — Ce num me larga velho? Me deixa, po ! To cansado de te aturar! Ve se me esquece! — Boa tarde, Édmilson! — o ancia o res-pondeu em tom triste. Um sile ncio pesado se seguiu. — Na o posso desistir de voce , Édmilson. — continuou o ancia o — Voce esta no meu coraça o. Quero ver voce salvo e seguro nos braços de Jesus! O Jovem riu com sarcasmo e balançou a cabeça. — Os braços que eu quero sa o outros. — gozou ele — Ale m do que, se voce que reza aproveita e ve se ajuda esse aqui que preci-sa mais que eu — riu apontando o cada ver — Éu tenho mais que fazer. Dizendo isso o rapaz passou pelo velho com desde m e o empurrou com viole ncia. Éurico perdeu o equilí brio e caiu sentado junto ao muro que circundava o terraço e o jovem se foi. O ancia o encolheu-se. Éstaria errado desta vez? Seria Édmilson um caso realmen-te perdido? Na verdade o livre arbí trio era de se considerar. Éle na o podia forçar a von-tade de algue m a quem Deus fizera livre. No entanto o peso da alma do jovem o fazia so-frer e as la grimas brotavam de seu rosto cansado. Ali ficou com a cabeça apoiada nos joelhos chorando e clamando por uma oportunidade de ser verdadeiramente inter-cessor, de ficar na brecha por este rapaz. O tempo passou. Éurico na o sabia se muito ou pouco. Quando se deu conta havia outra pessoa no terraço e o sol declinava ra-pidamente no horizonte. A presença dessa pessoa o fez erguer-se um tanto assustado. Limpou as la grimas do rosto e o nariz que pingava e tentou se recompor. Mas a aproxi-maça o da outra pessoa o deixou deveras surpreso. Saí da como que de uma espe cie de ne voa

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veio ao seu encontro uma velha de aspecto medonho. Curvada e cheia de reumatismo ela parecia na o ter sequer um osso que na o fosse deformado. Érgueu o rosto para Éuri-co e o fitou com superioridade. O ancia o tre-meu sem querer. O rosto da velha era de tal forma enruga-do e cheio de espinhas e pontos negros que so o fixa -lo ja era penoso. O nariz de propor-ço es significativas era peludo e torto. A boca irregular de la bios secos. Da cabeça quase careca saí am uns poucos fios de cabelo gri-salho em total desalinho. A mulher trazia uma roupa toda negra e esfarrapada condi-zente com seu aspecto fí sico. Sua presença causava repulsa e medo, tremor e asco ao mesmo tempo. Depois do primeiro susto Éurico tentou se recuperar. Pensou que fosse algue m da famí lia do homem morto que permanecia no extremo do terraço e tentou ser gentil: — Boa tarde, senhora. Veio pelo moço acidentado? — perguntou apontando o ca-da ver. — Acidentado? — pronunciou a velha com sarcasmo. Sua voz era meta lica e grave. Um tanto inesperado. Causava arrepios na medula e parecia penetrar os ossos. Na o parecia ser humana. — Acidentado? — repetiu a velha. — Bem — titubeou Éurico sem jeito — eu, na verdade, na o sei. Quando cheguei aqui ja estava morto. A velha parecia na o estar interessada no que ele dizia. Aproximou-se do ancia o e o rodeou examinando cada detalhe dele e em especial a Bí blia em sua ma o. A sua aproxi-maça o Éurico experimentou um feno meno de todo inusitado. O cha o parecia ter se tor-nado frio. Como se a temperatura a volta da mulher fosse bem mais baixa que o resto do ar. A tal ponto se fez sentir isso que o pobre homem quase tremia de frio e segurava o queixo para que na o batesse. A velha tornou a se afastar dele sem pa-lavras como se tivesse perdido o interesse e

avançou ate o parapeito da varanda exami-nando as redondezas. Éurico fez enorme es-forço para sair de seu estado quase catato -nico. — Posso ajuda -la de alguma forma? — perguntou com educaça o. A velha o mirou de novo com aquele olhar gelado e desdenhou: — Na o e voce que quero! — respondeu secamente. — Énta o, quem e ? — insistiu o ancia o ja com seus pressentimentos. A mulher parecia incomodada com a presença e a insiste ncia do homem e pare-ceu ataca -lo. Voltando-se com rapidez sur-preendente o questionou: — Na o tem medo de mim? Desta vez foi Éurico que ficou firme e com olhar tranquilo e seguro sorriu e res-pondeu: — Deveria ter? — A grande maioria dos homens tem… — disse a velha com segurança. — Parece ter muita experie ncia! — refle-tiu Éurico. — Alguma... — devolveu a outra com sarcasmo. — É esta procurando... - sugeriu o an-cia o. — Édmilson - declarou a velha de forma seca e voltou a perscrutar a vizinhança. Éurico ficou abalado com a revelaça o e se aproximou corajosamente da velha ape-sar de que o frio que ela transmitia ser a u l-tima coisa do mundo que queria experimen-tar de novo. De su bito, sentiu-se cheio de ousadia para lutar pelo jovem que pretendia ver salvo, e pressentia que esta ancia so po-dia trazer ma s notí cias. Chegou-se com con-vicça o e disparou: — Quem e a senhora? A velha olhou Éurico com um misto de admiraça o e desprezo e sorriu. Um sorriso que faria gelar o coraça o do mais corajoso. De sua boca disforme se viam uns poucos dentes amarelo-acastanhados e a risada qual grito de hiena na noite africana parecia

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vindo de outro mundo. A mulher, olhando o homem no fundo dos olhos, pronunciou cal-mamente: — Sou a Morte! — Na o pode leva -lo! — foi a reaça o ime-diata e quase impensada do ancia o. A Morte mostrou surpresa, franzindo o sobrolho que logo abriu em novo sorriso desdenhoso. — Voce vai me impedir? — Na o posso... — reconheceu Éurico — Mas ele na o esta pronto! — Isso na o e problema meu. — deu de ombros a velha — Cumpro minhas obriga-ço es e chegou a hora do rapaz. Se na o se preparou para me receber e problema dele. — É meu tambe m. — protestou o ho-mem — Éu assumi a responsabilidade por ele. — Ningue m pode assumir a responsabi-lidade por outro. — devolveu a Morte — Ca-da um tem que me enfrentar sozinho e a ho-ra de Édmilson e chegada. — Énta o, me leve a mim. — tentou Éuri-co ja desesperado — Éu posso ir ja , estou pronto. Na o tenho medo de voce . Leve-me no lugar dele! Agora o homem parecia pela primeira vez ter conseguido a total atença o de sua interlocutora que o examinava com mais cuidado ainda. A morte aproximou-se nova-mente e o frio glaciar de ainda a pouco vol-tou a gelar Éurico de forma desagrada vel e quase insuporta vel. Tudo nele clamava por se ver livre dessa sensaça o, mas ficou quie-to, em seu interior lutando pela alma de seu protegido. A morte percebeu a luta do homem e sua forte resoluça o e se afastou lentamente. — Tem a certeza do que me propo e? — questionou tentando verificar a certeza do homem. — Sim! — afirmou Éurico com total con-vicça o. — É porque faz isso? — quis saber a morte. — Pela salvaça o dele. — explicou o an-

cia o - Éle na o esta pronto para ir. Precisa de mais tempo. O amor de Deus ha de vencer em sua vida, mas precisa de mais tempo. — É e esse tempo que voce quer com-prar para ele? — sugeriu a velha rindo. — Se for possí vel… — clamou ele. — Possí vel e … — disse ela — Na o seria a primeira vez. Tem-se feito muitas vezes e creio que ainda se fara o muitas mais. — É ele tera tempo suficiente? — quis saber o homem ansioso. — Isso na o pode saber. So o Todo Pode-roso sabe essas coisas. Pode ser que sim. Pode ser que na o. Acha que vale a pena mesmo assim? Morrer sem ter a certeza? Pode ser em va o… — tentou a morte ma-treira. — O amor nunca e em va o! - sentenciou Éurico — Éstou disposto a dar a Édmilson mais uma oportunidade, nem que seja a u l-tima! A morte balançou a cabeça e chegou-se ao fim do terraço aonde se via toda a favela. Suspirou com ar cansado e olhou mais uma vez com seus pequeninos olhos negros o homem que a observava em suspense. — Tanto trabalho a fazer... Voltarei por voce ... Amanha ! Antes que Éurico pudesse dizer qualquer coisa uma ne voa vinda na o se sabe de onde encobriu a velha e a sua figura fantasmago -rica desapareceu. O homem ficou muito tempo ali em pe sem saber bem o que se passara com ele. Fora sonho? Fora visa o? Fora real? Como sa-ber a verdade? O ancia o sentia-se confuso. Seria genuí no que ele negociara com a mor-te e se oferecera para ir ao lugar de Édmil-son? Isso seria possí vel? Seria aceito? No dia seguinte seria a sua vez? Éstaria real-mente ta o preparado como se julgava? Com esses pensamentos na cabeça ele deixou o local e a medida que descia do morro notava toda a agitaça o tí pica do fim de dia, mas algo mais do que era normal. Fi-nalmente um jovem o informou. A polí cia havia estado no morro durante a tarde. Ti-

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nha havido troca de tiros e Édmilson fora baleado. Éstava no hospital. Éurico estremeceu. Tinha que verificar. Sentia-se cansado. Na verdade exausto, mas na o teria paz sem confirmar o que sucedera. Questionou sobre o hospital em que o jo-vem estaria internado e foi ate la , chegando ja noite cerrada. Procurou o me dico que atendera Édmilson. O clí nico sentou com o ancia o e parecia confuso. — Foi algo muito estranho. — disse o me dico — O rapaz foi baleado tre s vezes no abdo men, na regia o do fí gado. Chegou aqui com hemorragia interna incontrola vel. Na o havia nada que pude ssemos fazer. Nem se o tive ssemos recebido logo apo s os tiros. Mas tinham passado mais de duas horas! Éle es-tava a morte! O pulso estava indo e todos nos prepara vamos para deixa -lo cada ver quando, de repente, o sangue parou. O cara se recuperou bem ali, a nossa frente. Olha, se eu na o tivesse visto, na o acreditaria. Se e que existe essa coisa de milagre, este foi um! Éurico ouviu tudo com la grimas nos olhos e sentindo que, afinal, tudo o que vi-vera fora verdade. Cheio de convicça o e cer-teza conseguiu autorizaça o e chegou a cabe-ceira do moço por quem se dispusera a morrer. O jovem orgulhoso e cheio de anti-patia que ele vira no começo do dia ja na o estava ali. Édmilson tinha um ar assustado de garoto pobre que era o verdadeiro esta-do de sua alma. Olhou Éurico com vergonha e uma pitada de esperança. Tremia ao lhe contar. — Foi uma emboscada. O meu pessoal me traiu. O desgraçado do Mendes queria a minha posiça o. Misera vel! Vai pagar caro! — dizia com o rosto se contorcendo de dor e raiva. — Ainda odiando? — interrompeu Éuri-co — Isso na o te trouxe nada de bom. O moço parou de falar e o olhou triste. Desta vez parecia reconhecer a verdade nas palavras do velho. — Éu vi a morte! — disse enta o tremen-

do — É era horrí vel! — Éu sei. — balançou a cabeça o ancia o — Mas na o precisa ter medo dela agora. Vo-ce vai viver. Mas o quanto e como vai depen-der de onde voce vai colocar o coraça o. Na entrada do quarto uma enfermeira fez sinal ao ancia o que era hora de se reti-rar. Édmilson segurou o braço dele com an-gu stia. Ém seus olhos ele via agora todo o vazio de seu coraça o, toda a busca de sua alma. — O que e que eu faço? — perguntou com voz embargada. Éurico o olhou com carinho. Colocou sua Bí blia na cabeceira. Éra a sua velha Bí blia. Companheira de tantos anos. Ganhara aque-le livro do homem que o levara a Cristo. Éra seu mais precioso tesouro. Mas sentia que agora o rapaz precisava mais dela do que ele. Sorriu de leve e acrescentou: — Comece lendo o livro onde esta mar-cado. Depois, quando sair daqui procure o pastor Joa o da igreja la da favela. Éle sabera te ajudar. Na o desperdice seu tempo, meu filho! A vida e curta! Voce na o sabe o que vem amanha . — Voce vira me visitar? — quis saber o moço. — Na o sei. — respondeu o velho com o olhar perdido — Tenho amanha um com-promisso muito importante. Logo voce sa-bera . Com uma breve oraça o ele se despediu do moço e saiu. Trazia o coraça o em paz. Sentia que aquele jovem estava a caminho da recuperaça o. Seria difí cil o caminho e muito espinhoso. As tentaço es seriam mu l-tiplas e a luta tremenda. Mas ele queria acreditar. Éra tudo que precisava. Fizera a sua parte. Talvez ate demais. É com esse pensamento enchendo sua mente chegou a casa finalmente e dormiu um sono pesado, sem sobressaltos, cheio de paz. No dia seguinte, levantou-se a hora habi-tual. Fez tudo como em qualquer outro dia. Por que seria diferente? Foi o que pensou. O dia inteiro, pore m, esperava sentir aquela

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presença gelada que o envolvera no dia an-terior e que certamente o viria buscar. Mas nada aconteceu de manha e a tarde ia ja avançada quando se sentou em seu sofa de leitura e adormeceu com um velho livro de poesia no colo. Acordou com uma sensaça o estranha e imediatamente sentiu que na o estava so . Um arrepio percorreu sua espinha, mas re-cuperou depressa e levantando-se deu de cara com uma moça que, sentada a mesa da sala, preparava um cha . Éra jovem e extremamente bela. Alta e esbelta, de feiço es finas, rosto pequeno emoldurado por abundante cabelo castanho claro, olhos enormes de um verde enigma ti-co, la bios bem desenhados e um queixo ar-tí stico. Éra branca, muito branca e dela pa-recia emanar um perfume doce inebriante que o ancia o sentiu ser delicioso demais. Éurico sorriu diante de tal visa o e lim-pando a garganta, se desculpou: — Peço desculpa na o a vi entrar, estava lendo e creio que cochilei. — Na o tem problema, eu tenho tempo. — ela respondeu numa voz maviosa e musi-cal. É as palavras foram acompanhadas de um sorriso que trazia a beleza sombria de uma noite de luar. Éurico na o pode evitar um novo arrepio, mas na o sabia como rea-gir. — Ém que posso servi-la? — quis saber, sempre educado. — Temos encontro marcado. - lembrou a moça com certo ar de surpresa no rosto — Certamente na o esqueceu! O ancia o recuou um passo e parou. Ésta-va confuso e admirado. Balançou a cabeça e fixou melhor o olhar. — Tenho encontro marcado com a... — na o foi capaz de dize -lo. — Comigo! — completou a moça. — Na o pode ser! — continuou estra-nhando o velho. — Porque na o? — insistiu ela. — Na o foi voce que vi ontem!

— Ah! — riu ela e se aproximou esten-dendo a xí cara de cha fumegante e cheiroso. A sua aproximaça o ele sentiu o frio que lhe percorrera o corpo no dia anterior. Mas este na o era o mesmo tipo de frio. Na o gela-va. Na o fazia tremer. Éra mais um tipo re-frescante, qual brisa gostosa em tarde aba-fada. A moça fez sinal e ele tornou a sentar-se no sofa . Éla foi postar-se na o muito longe, bem em frente a ele. — Na verdade foi comigo que falou on-tem. — continuou a morte — Mas ontem vo-ce me viu como Édmilson me veria. Ontem eu era a morte aos olhos dele. Hoje estou di-ferente, ou talvez na o. Na verdade na o mu-do. O que muda e a maneira como as pesso-as me veem. Éurico abanou a cabeça. Fazia sentido. Éra mesmo bastante lo gico. Sorriu. Na o po-dia evita -lo. Como temer uma morte com es-ta cara? — Ésta preparado? — Sim! — disse prontamente o homem sem hesitar — É Édmilson? — Tera sua oportunidade. — É sera suficiente? - insistiu ele. — So o Todo Poderoso sabe! — decretou

ela — Tome seu cha . Voce ja fez sua parte.

Novo sorriso encheu o ar de parte a par-te. Éle bebeu o cha e encostou a cabeça na poltrona. Fechou os olhos sentido o perfu-me que enchia o ar. Logo estava dormindo. No outro dia de manha corria a notí cia na favela. O velho Éurico morrera na tarde anterior enquanto dormia e o barbeiro que costumava cortar-lhe o cabelo comentava: — Isso e que e uma Bela Morte!

Baseado em João 15:13:

“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor de seus amigos." Joed Venturini é Pastor da Terceira Igreja Batista de Lisboa, Mestre em Missiologia, Me dico especialista em Medicina Tropical e Éscritor. Leia mais do autor em: http://joedventurini.blogspot.com.br/

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Galeria Lya Alves

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‘Galerio’, enor-

me painel ao ar

livre que fica

entre a estação

Coelho Neto e a

Estação Colé-

gio, na cidade

do Rio de Janei-

ro.

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Lya Alves Nasceu em São

Gonçalo e vive em Niterói -

RJ. Começou a pintar em

1998, e a grafitar em

2008. O eixo temático do

seu trabalho é alienação,

coisificação e fetichismo e

suas obras promovem refle-

xões e críticas ácidas sobre

o consumismo através de

fábulas visuais e antropo-

morfismos.

Além de pastora e artista

plástica, a múltipla Lya é

ainda quadrinista (HQ Guer-

reiros de Deus), grafiteira e

designer de moda, e tam-

bém ativista cultural.

Conheça mais do trabalho

da autora em

lyaalves.blogspot.com.br/

“Anastácia"

Acrílica sobre tela - 60x40 cm - ano 2008

Págiina em P/B da HQ Guerreiros de Deus

Em sentido ho-

rário: Lya grafi-

tando um de

seus temas

prediletos, a

Águia; Grafite;

grafitando uma

rosa; Águia de

Fogo (ilustração

digital).

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Sammis Reachers

Sabia o nome dela das notas de entrega: Norma ou Dona Norma. Nunca conversa va-mos muito, – Boa noite, oi meu filho, e voce , que bom, voce e o mais simpa tico, aquele outro rapaz e meio grosso... – Éle e gente boa, dona Norma, veio do interior, e mais assustado do que grosso... – Éssa foi nossa maior conversa. Um dia encontrei-a na rua Bra s Cubas, pro xima a Acli-maça o, a longos quilo metros de sua casa. Éu estava indo para meu turno na pizzaria, que ia das 15h00 a s 23h30. Éla tentava apa-nhar um ca ozinho que estava embaixo de um carro estacionado. Parei a moto e fiquei observando-a. Éla ja idosa, tinha dificulda-des. Desmontei para ajuda -la. – Ola dona Norma! Quer ajuda aí ? – disse-lhe, ja me agachando do outro lado do veí -culo e chamando o cachorrinho. Consegui apanha -lo, era bem mansinho e magricela. Éla o colocou numa dessas caixas especiais para o transporte de pets. Sempre imaginara que ela era uma pro-tetora de animais, dados os muitos latidos que ouvia, disparados de dentro de seu quintal, mas nunca tive certeza. Perguntei: – Éste tambe m e da senhora? Ésta longe de casa hein! – Na o, meu filho, este esta abandonado. Éu sempre que posso recolho elezinhos e levo pra casa...

* * * Depois daquele dia, passamos a conver-sar mais, e eu sempre perguntava pelos ca es. Éla familiarizou-se ainda mais comigo, passou a relatar das dificuldades no trato dos exatos trinta e dois ca es. Comecei a co-

laborar com a obra dela, uma vez por me s levava um saco de raça o para de alguma maneira somar nas despesas. Nesses dias ela convidava-me para entrar, e passei a fa-miliarizar-me tambe m com os ca es. Éra professora aposentada da USP. Tinha um filho apenas, funciona rio de uma age n-

cia do Banco do Brasil nos ÉUA. É assim nossa amizade foi es-

treitando-se, tanto entre mim e dona Norma, como com os ca es. Havia em sua casa um pa tio coberto que servia de quintal, onde ela fizera

pequenas celas de canil, de um lado e outro. Os animais

mais ferozes, ou que sempre arruma-vam encrenca, permaneciam presos a maior parte do tempo, e eram liberados apenas quando os demais estavam nas celas. Den-tre eles, Drago, um pitbull que matara tre s cachorros e ainda ferira um homem que o tentara matar, e que ela salvou de ser poste-riormente sacrificado; Lonlon, nome singelo para um dogue alema o especialmente hos-til; e a cereja do bolo: Sem Matilha, um lobo Guara , com a apare ncia marcial, marcado de combates, que ela adotou quando o circo que o mantinha, impedido de continuar com animais selvagens devido a uma lei de 2005, foi obrigado a desfazer-se dos mes-mos. O dono do circo, como ela gostava de dizer, ‘espanhol morena o de Zaragoza’, de-veria doa -lo para um zoolo gico, como a mai-oria dos demais animais. Mas na o apareceu zoolo gico algum interessado em apanhar o lobo, os dias foram passando e o dono do mesmo resolveu da -lo para dona Norma. Com o tempo, ja na o me estranhavam, e passei a alimenta -los tambe m.

* * * Fui acordado pelos socos que ameaça-vam derrubar minha porta. Levantei-me desnorteado, sonhava com a namorada que eu na o tinha. Abri a porta.

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– Voce e Gabriel Motta? – Sou eu, que foi, sou trabalhador – disse, entre assustado e intimidado pelo uniforme que vi. – Houve um problema, um homicí dio, ta , e a princí pio voce esta sendo detido para averiguaça o. Um soco velado na cara do crente, logo pela manha . Um soco e depois um tiro como que por dentro: mataram dona Norma. Sile ncio na viatura, apenas relataram que uma vizinha havia dito que eu era a u ni-ca pessoa que costumava visitar a casa. Fo-ram ate a Pizzaria Panosian e conseguiram o meu endereço. Na delegacia o delegado po s-me a par dos acontecimentos. Dona Norma foi encon-trada morta num dos cantos de seu quintal, pro xima ao muro dos fundos. Tre s ca es tam-be m foram mortos. Dona Norma foi espan-cada e esfaqueada; os ca es foram baleados. Um vizinho ouviu os disparos, por volta das quatro da manha , e chamou a polí cia. Dei as explicaço es que me pediram. Na o trabalhara no dia anterior, fui ao culto na igreja que costumava frequentar, saí de la em torno de 22 horas, voltei para casa, fiz um lanche e dormi, talvez pelas 23 horas. Apo s seis horas de perguntas, respostas e esperas, entrecortadas por telefonemas e comparecimento de amigos, vizinhos e tes-temunhas, consegui ser liberado. Perguntei ao delegado se poderia ir ate o local do cri-me, eu poderia ajudar nas investigaço es. Éle a princí pio recusou, mas com insiste ncia consegui a autorizaça o. Éu precisava ir ate la , precisava ver o que acontecera, ajudar no esclarecimento, ajudar os ca es. Éle me mandou junto a dois dos investi-gadores. Ja ao entrarmos, os ca es começa-ram a latir. Dois funciona rios do centro de zoonoses da Prefeitura estiveram la mais cedo, a pedido da polí cia, e alimentaram com raça o os ca es. A maioria estava presa nas celas dos canis, mas alguns mais do ceis permaneceram soltos.

O cena rio era terrí vel. Marcas de sangue ainda parcialmente u midas no cha o. Os poli-ciais disseram que nada fora roubado. Mas por que ? Havia outro fato sinistro. A cela do lobo, o Sem Matilha, apresentava quatro perfura-ço es de bala no porta o. No entanto, embora o formato da cela, bastante estreito e alon-gado, tornasse quase impossí vel que o ani-mal na o fosse atingido, ele estava em perfei-to estado, aparentemente calmo, observan-do tudo com seus olhos escuros. O lobo na o era de latir ou ganir; era um animal quieto e arisco, que na natureza na o vive em bando, e se aproxima de outros lobos apenas para acasalar. Por que teriam disparado contra a cela? Observando dentro da casa, lembrei de que a dona Norma detestava bancos; ela, fi-lha de velhos anarquistas paulistas, oriun-dos da colo nia Cecí lia, na o confiava seja em governos seja em instituiço es financeiras. Éla guardava os recursos que seu filho lhe enviava dentro de casa. Sera que os margi-nais sabiam disso, e queriam o dinheiro? Num momento em que os policiais verifica-vam as trancas da janela da sala da casa, fui ate o quarto tendo em mente a ideia da exis-te ncia de um cofre. Olhei todo o quarto, as coisas reviradas. Nada. Pelas marcas dife-rentes na pintura, notei que dois quadros da parede foram arrancados. Énta o estava cla-ro que eles procuravam por um cofre. A um canto, sobre roupas í ntimas aparentemente tiradas de uma co moda, jazia uma esta tua de um ca o, um pastor alema o de cera mica partido ao meio. Algo enta o estalou em minha mente, e tudo pareceu ganhar simplicidade. Pois imediatamente visualizei a esta tua que fica-va logo junto a entrada, ao lado esquerdo da porta da casa. Uma escultura bastante feia, representando um cachorro de raça indefi-ní vel, feita de cimento, de uns oitenta centí -metros de altura. Na o falei nada, nem cometi a temeridade de ir analisar a esta tua em frente aos polici-

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ais. Éu era um motoboy habituado a s noites efervescentes de Sa o Paulo: conhecia a polí -cia bem demais para dar um mole desses. Saí mos. Mas a ideia de dinheiro ficar ‘perdido’ dentro de uma esta tua, enquanto os ca es eram recolhidos para o Centro de Zoonoses, para serem sacrificados caso na o conseguissem adoça o, na o me deixava ter paz. Éla vivera para que eles vivessem: ago-ra, morta, morreriam todos com ela? Na o, com o dinheiro eu poderia providenciar um lugar para eles, ate conseguir remaneja -los entre outras pessoas ou Ongs que os criari-am sem o risco de serem sacrificados. Mas o tempo era inimigo dos ca es. Éu precisava encontrar o dinheiro antes do dia seguinte, quando eles começariam a remo-ça o dos animais. É havia outra questa o a me preocupar: segundo o delegado, o filho de dona Norma ainda na o fora localizado nos ÉUA. Mas ele possuí a reside ncia e emprego fixos, e a localizaça o era iminente. É, como ela sempre me relatava em tom de lamu ria, ele, criado a maior parte da vida pelo pai, “detestava cachorros.” Um com quem eu na o poderia contar para nada. A noite voltei a casa. Deixei a moto num posto de gasolina onde conhecia os frentis-tas, fui a pe ate a casa, ladeando-a ate a par-te dos fundos, que dava para uma pequena mata. Com ajuda de um tronco, pulei o mu-ro. Os cachorros soltos latiram, mas ao me reconhecerem fizeram festa, e alguns davam aqueles gemidos de tristeza, acredito que ja sentindo a falta de sua ma e. Distribuí a raça o que ainda estava no de-po sito, soltei a maioria dos ca es do ceis que conhecia. O lobo gania estranhamente, e re-solvi solta -lo tambe m. Ém seguida fui a es-ta tua, apalpando-a de todos os lados. Sobre o pedestal de cimento, a esta tua do ca o mo-veu-se ao meu toque; estava solta. Levantei-a enta o, descobrindo sob ela um espaço es-cavado, e acondicionado ali uma caixa do tipo porta-joias, e embrulhos pla sticos por baixo. Na caixa estavam dezenove mil e seis-centos reais, em notas de cem. Nas embala-

gens, documentos, postais, escrituras de terrenos, e pape is escritos em italiano, tal-vez de seus pais. Ja passava de uma da manha . Na o dormi-ra desde a hora em que fora acordado pela polí cia; resolvi deitar a um canto, no quintal mesmo, e dormir um pouco. Os ca es, tristes e agitados, solicitavam-me a todo instante em busca de carinho, eu precisava ficar um pouco com eles. Éscolhi um canto bem escu-ro, para o caso de alguma ma eventualidade, como dormir demais e ser surpreendido pe-la polí cia. Coloquei o despertador para as 4h30, para que eu pudesse pular o muro, e ir a polí cia dizendo que eu ficaria responsa -vel pelos ca es, para o que eu, em secreto, utilizaria o dinheiro. Deus sabia que minha causa era justa, e eu sabia que dona Norma ficaria grata. Havia o risco de tudo aquilo dar errado, eu ser novamente preso, pego com o dinhei-ro, e aí na o teria desculpa ou a libi que me livrasse. Mas ao deitar-me, e ver mais de do-ze ca es achegarem-se e deitarem sobre mim, ao meu lado, aos meus pe s, eu sabia que valia a pena arriscar-me por eles. Éu era tudo que eles tinham.

* * *

Acordei com o som de disparos e gani-dos. Éra inacredita vel o caos, e imediata-mente pensei que se tratava de um pesade-lo. Vi dois homens a alguns metros de mim, pro ximos a porta da casa. Um deles estava armado, e disparava contra o lobo. O lobo estava de costas para mim, e algo em sua face parecia brilhar intensamente, como se ele tivesse uma lanterna no rosto. O homem que empunhava a arma disparou entre cin-co e seis tiros, e o animal na o deu um pio, mesmo sendo balançado pelo impacto dos proje teis. Ém ato contí nuo, alguns ca es fe-charam um cí rculo sobre os homens. Os olhos dos animais brilhavam! Mas o que era aquilo?!? A luz que brilhava no lobo era a mesma incandesce ncia que ardia nos olhos dos ca es, mas em menor tom. Olhei para os

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lados, e vi outros ca es, mas estavam ame-drontados, e na o havia brilho em seus olhos. Énta o, na o sei como, talvez com a cal-ma de achar que estava realmente tendo um simples pesadelo, com todo o nonsense e distopia que um pesadelo pode apresentar, foi que reparei que os homens estavam cer-cados apenas por cadelas, sete ou oito. Énquanto refletia, o lobo uivou, e enta o senti uma pontada, uma cutucada no peito, no coraça o, na o sei. As cadelas saltaram so-bre o homem que tinha a pistola. O outro, apavorado, refugiara-se na casa, fechando imediatamente a porta. O indiví duo armado disparou a esmo. Ao ferir uma das cadelas com o disparo, o ate enta o invulnera vel lobo gritara; outras tre s cadelas saltaram sobre as suas costas, e ao desequilibrar-se e cair sob o ataque, ele dis-parou mais uma vez, atingindo outro ani-mal, fazendo mais uma vez o lobo gritar. Percebi logo que ele estava interligado aos outros animais, e parecia controla-los; seu domí nio sobre eles era mais que um sim-ples controle corporal, era um tipo de liga-ça o empa tica, como se todos compusessem um u nico e carniceiro organismo, um tipo sobrenatural de matilha. Imediatamente o lobo saltou, abarcando mais de tre s metros em seu voo, caindo di-reto sobre o peito do homem, e mordendo-lhe a garganta. As fe meas se afastaram e formaram um cí r-culo em volta do lobo, seus olhos acesos, ca-da um brilhando numa cor. A maioria estava com as lí nguas para fora, como se estives-sem cansadas, ou sedentas. Éu na o podia acreditar naquele horror, estava paralisado no cha o, tentando enten-der que aquilo na o era um sonho, mas pre-cisava, tinha que ser. Énta o ele uivou nova-mente. É foi como um rasgo na escurida o – um rasgo revelando uma dimensa o, um fun-do, uma camada ainda mais escura. As cade-las começaram a chiar baixinho, com aquele som que os ca es fazem quando feridos. Meu corpo estava arrepiado por inteiro;

eu usei a u nica arma que tinha. Num misto de su plica, terror e simples reflexo, eu gri-tei: – Jesus!!! Os ca es deram um chiado agudo, mas o lobo apenas me observava com seus olhos acesos. A visa o era insuporta vel: eu fechei meus olhos e em terror principiei a orar. Co-mecei em sile ncio, mas depois vieram-me a mente em tumulto imagens e lembranças de cultos pentecostais, de demo nios sendo exorcizados, e comecei a orar em voz alta. Abri enta o os olhos, mas sei que nunca de-veria te -lo feito: o lobo abaixara a cabeça e me olhava com uma expressa o de dor quase humana, mas distorcida, doentia, algo que nunca vira nas muitas expresso es que um ca o ou qualquer animal podia assumir. Éle olhava para a casa e olhava para mim, em ra pida e intermitente sucessa o, num tique nervoso demoní aco. Énta o acreditei enten-der. O criminoso preso na casa, ele queria o criminoso. Éle queria que eu parasse a ora-ça o, ele precisava cuidar do outro. É mais uma vez em minha vida, eu falhei como crista o. Éu interrompi meu clamor; num lapso de Queda, eu compreendi e irma-nei-me ao desejo de vingança, ou de sangue, do demo nio. Fiquei de joelhos, observando os olhos faiscantes da besta-fera, que mais uma vez assumiu uma expressa o humana, que me fez enregelar de uma forma que eu na o sa-beria descrever, um tipo de frio absoluto que jamais experimentara, um entorpeci-mento, como se meu corpo tivesse sido en-venenado. Pois o lobo sorrira, humanamente sorri-ra. Ém seguida emitiu um estranho som, al-go como ‘wain, wain’, e deu meia-volta, ar-rancando em fu ria e velocidade sobrenatu-rais em direça o a porta da casa. As dobradi-ças explodiram ao impacto do magro corpo do lobo, e a porta foi abaixo com estrondo. O homem gritou. Da posiça o em que me en-contrava na o era possí vel ver bem o que acontecia, pois eu permanecia preso ao

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cha o, enregelado. Ouvi um barulho de vidro quebrado, como de um copo ou louça. – Sai! Sai!!! – gritou o marginal. Novo baru-lho, e um outro. Éle atirava louças no ani-mal. As cadelas entraram no recinto, de for-ma lenta e ordenada, como se em duas filas indianas, paralelas. Ouvi novamente o som de comando do lobo, ‘wain, wain’. O homem permanecia em sile ncio, talvez tambe m emudecido de estu-pefaça o pelo demoní aco espeta culo. Depois gritou, quando todos os ca es sal-taram sobre seu corpo, de uma u nica vez. Ouvi enta o aquela multida o de rosnares e rugidos, como o som de uma briga entre muitos ca es. O homem gritava um ‘ahhh’ prolongado e pa nico, que parecia nunca ter fim, mas que foi abruptamente interrompi-do, como se algue m de repente lhe tapasse a boca, ou cortasse a garganta. Os rosnados continuaram. Os animais, possessos, rasga-vam carnes, crimes, pecados, como uma chuva de retribuiço es que despencasse sub-repticiamente sobre um pecador, manifesta em dentes caninos incansa veis e olhos mul-ticores, rebrilhando em mesmerizante com-passo. Fiz mença o de levantar-me, ou levantar o que era corpo. Éle tremia. Levantei uma perna com dificuldade, depois a outra, sem equilí brio, como que be bado. So enta o arrependi-me, so enta o sobres-calei os ruí dos do caos e dei ouvidos a voz do Éspí rito Santo que dentro de mim jamais parara de bradar: – Na o!!! – Senhor, tenha miserico rdia de minha alma, de meu frio! – gritei sem palavras. Avancei com reerguida coragem, a cora-gem que a fe confere e tambe m a ira, pois tinha agora a sensaça o de ter sido ludibria-do, enganado pelo jogo sujo do demo nio. A dista ncia de oito ou nove passos, o lobo as-somou a porta. Agora tinha a expressa o im-passí vel. Olhamo-nos nos olhos, e antes de eu retomar a oraça o em alta voz, ele dispa-rou em direça o ao muro, manifestando mais

uma vez sua natureza demoní aca ao saltar sobre uma pequena casamata que abrigava a bomba d’a gua de uma cisterna, e dali, em velocidade felina, ultrapassar, num salto u nico, os restantes dois metros e meio de muro. Imediatamente senti um alí vio, uma sen-saça o de descongelamento, estranha mas prazerosa, de ter sido devolvido ao comum, ao mundo real, ao mundo racionalmente mensura vel e previsí vel. As cadelas estavam ainda no quarto. Én-trei para ver o que houvera com o homem. Umas lambiam despreocupadamente o san-gue do cha o, outras jaziam deitadas. Seus olhos ja na o estavam em fogo, a possessa o cessara. Na o havia corpo, pedaços. Nada ale m de manchas dispersas de sangue no cha o.

* * * Pesquisando em livros sobre mitos en-volvendo o Lobo Guara , de refere ncia em refere ncia cheguei ao livro de Guilhermino Dutra, Fa bulas e Mitos dos Povos Tupi-Guaranis, um livro prefaciado por Darcy Ri-beiro. Nele, sofri mais um golpe do terror ao encontrar, na seça o Fauna e Flora na Mistifi-cação Tupi, a informação acerca de uma len-da dos í ndios Tamoios. Posteriormente comprei exemplar do livro. O relato e o que segue: “Anhanga -Goa’ra , Lobo Fantasma. Do tu-pi agoa’rá, ‘pelo de penugem’, termo utiliza-do para designar o lobo-guara , e Anhanga , espí rito que vaga, fantasma. Tambe m Kabikodepu-Ya’wara, Fera do Arco-í ris. Do tupi Ya’wara, fera, e kabikodepu, ar-co-í ris. Mito coletado pelo indigenista france s Luc Guarirol. Segundo o relato, durante toda a estaça o de Ara yma ou ‘tempo ve-lho’ (equivalente aos nossos outono e inver-no), alguns lobos-guara s se aproximavam das aldeias ou povoaço es, e enfeitiçavam to-das as cadelas e quaisquer fe meas de caní -deos (ca es do mato, guara s e falsas raposas,

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domesticados ou na o) que ali houvesse. Élas fugiam enta o para a mata, e podiam ser vis-tas a noite, vagando atra s do lobo, com olhos coloridos e acesos como estrelas. O lobo na o podia ser morto; ao ser atingido por flechas ou lanças, ele sempre reerguia-se, ainda mais furioso. A matilha vagava pe-la floresta, matando caçadores e pessoas que andassem sozinhas pelas matas.” Um dia fui contar meu testemunho em uma igreja. Antes da metade da histo ria, fui bruscamente interrompido pelo pastor, que fez um gracejo sobre minha sanidade men-tal, levando toda a congregaça o a sorrir. De-cidi nunca mais falar sobre os ocorridos a ningue m. Mas, na o aguentando o peso de

carregar sozinho uma histo ria assim, resolvi escrever esse relato, e divulga -lo em sites e redes sociais. Sinto que e uma forma de con-fessar o meu pecado, uma forma de aquecer-me. Pois ha dias, noites em que ainda sinto aquele frio. Meu testemunho e verdadeiro. ___________________________________________________________

Do livro de contos O Pequeno Livro dos Mortos. O livro (Éd. Letras e Versos, 96 págs.) esta sendo comercializado a R$ 20,00. Para adquirir, escreva para o e-mail: [email protected]

* * *

Sammis Reachers é poeta, escritor e editor.

Notas Culturais Em outubro a escritora Joice Lourenço lançou seu novo romance, O Grito de Sobrevivência. Confira

AQUI. Em novembro, a Editora Ultimato fez o pré-lançamento da ficção Século I - O Resgate, de

Cayo César Santos. Confira AQUI. Ainda em novembro, realizou-se na Primeira Igreja Batista de

Pinheiros, em São Paulo, o Primeiro Encontro de Artistas Visuais Cristãos, uma iniciativa do artista

gráfico Lemuel Massuia. Leia AQUI um panorama do evento. Em dezembro, os autores A.P. Alen-

cart e Luis Cruz-Villalobos organizaram a antologia poética CARNE DEL CIELO (Versos de Navidad),

reunindo poemas sobre o Natal, de lavra de 47 poetas ibero-americanos, incluindo brasileiros e por-

tugueses. A antologia, em espanhol, pode ser baixada AQUI. A Editora Mundo Cristão lançou a

ficção com foco em adolescentes Lily na Passarela, de Nancy Rue. Confira AQUI. O poeta e missi-

onário Gilberto Celeti lançou em dezembro, pela Bunker Editorial, seu livro de poemas O Mistério do

Natal. Confira AQUI. O autor André Filipe Aefe Noronha (Aefe) está publicando em capítulos sua

divertida série missionária/ficcional/folhetinesca Patranha contra o Dragão do Oriente, no site

Wattpad. Confira AQUI. Falando em boas séries, o autor Marvin Cross chegou ao fim da segunda

temporada de sua série ficcional Desapaixonante. Enquanto a nova temporada não se inicia (está pre-

vista para este mês!), você pode acompanhar a série desde o início AQUI. A Rede de drogarias Pa-

checo (RJ) mantém a revista Ponto de Encontro, e nesta, a seção de poesia Final Feliz. Você pode enviar

poemas para lá, através do e-mail: [email protected] A Revista Philos, iniciativa

literária da Camará Cartonera, recebe originais (conto, poesia, crônica, textos experimentais etc.) pa-

ra as edições da revista. Informe-se AQUI.

Concursos Literários: Prêmio SESC de Literatura 2016 para livros de Conto e Romance. Até 12 de Fe-

vereiro. Informações AQUI. Concurso AFEIGRAF (Livros: Infantil, ficção, não-ficção e poesia).

Até 31 de Março. Informações AQUI.

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Terceiro Festival Nacional de Cinema Cristão

Em novembro de 2015, nas dependências do tradicional Cine Odeon, no Rio de Janeiro, aconte-

ceu a terceira ediça o do Festival Nacional de Cinema Crista o. A iniciativa, tornada real pelo me rito de Ve-

ronica Brendler (que entrevistamos na ediça o anterior de AMPLITUDÉ), visa promover o desenvolvi-

mento de nosso cinema, e reconhecer o trabalho daqueles que se tem dedicado ao cinema crista o.

O FNCC recebeu ao todo 90 filmes, 74 filmes inscritos sa o nacionais e 16 filmes sa o estrangeiros.

A Comissa o Julgadora composta por grandes profissionais de cinema, selecionou os tre s melhores filmes

de cada categoria (longas metragens, me dias, curtas, documenta rios, animaça o, humor crista o, se ries e

filmes estrangeiros) que concorreram a premiaça o no dia 25 de novembro.

Foi grande a expectativa dos diretores e suas equipes quanto a premiaça o e que vieram das 5 regio es do

paí s e exterior.

Confira abaixo a lista de ganhadores de 2015:

Melhor Direção de Longa Metragem David A. R. White (Questão de Esco-lha)

Melhor Ator de Longa Metragem Daniel Zacapa (Três Histórias, Um Des-tino)

Melhor Atriz de Longa Metragem Zoe Myers (Três Histórias, Um Desti-no)

Melhor Roteiro de Longa Metragem Questão de Escolha

Melhor Fotografia de Longa Metra-gem Questão de Escolha

Melhor Maquiagem de Longa Metra-

gem Renascer – Acendendo a Chama Outra Vez

Melhor Música de Longa Metragem Questão de Escolha (Ouça AQUI)

Melhor Trilha Musical de Longa Me-tragem Questão de Escolha

Melhor Montagem/Edição de Longa Metragem Questão de Escolha

Melhor Curta Metragem Alegria

Melhor Média-Metragem Perdão - O Filme (Assista AQUI)

Melhor Documentário Quando Posso Ver Meu Rosto Nele (Assista AQUI)

Melhor Série Povos e Línguas (Assista AQUI)

Melhor Animação Midinho, o Pequeno Missionário (Jesus Encoraja Seus Discípulos)

Melhor Humor Ou Vai ou Rocha

Melhor Filme Estrangeiro O Drama do Alzheimer – Uma história de Fé e Esperança

CINEMA

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O HÓSPEDE

Florbela Ribeiro

Aquele ho spede chamou a atença o do povoado. Ningue m conseguiu ficar indiferente a passagem de Jesus por ali. Os milagres e a forma eloquente dos seus discursos abriam as bocas de espanto, o que Éle fazia acontecer e dizia, corria velozmente nos la bios de todo o povo. Mas foi Marta quem teve o privile gio de o hospedar em sua casa. Como boa anfitria que era na o queria descurar nenhum pormenor para a melhor e mais acolhedora recepça o ao Mestre. Apo s a casa devidamente limpa e as coisas no seu lugar, iniciou os preparos da refeiça o. Seleccionou as melhores carnes, as melhores ervas aroma ticas para o tempero, o melhor vinho, e e claro que na o esqueceu a sobremesa. O pormenor da sobremesa era importante. Teria de ser preparada com todo o requinte e muito carinho. Sim, porque para fazer uma boa sobremesa e indispensa vel um toque de carinho e muita ternura. Dir-se-a ate que o doce perde o sabor se na o tiver uma boa pitada de amor. Para isso, Marta contava com a preciosa ajuda de Maria, para a elaboraça o de um almoço ta o requintado. Havia tanto trabalho a fazer ainda, mas… Maria na o se aproximava para a ajudar. Ém vez disso mantinha-se na sala escutando os ensinos de Jesus. A irresponsabilidade da irma arreliava Marta, abeirou-se da porta e acenou-lhe para que esta se aproximasse. Absorta como estava aos pe s das palavras do ho spede especial, Maria nem se apercebeu que a sua

irma a chamava. Marta teve que ir ter com ela e em surdina disse-lhe: – Maria que fazes aqui sentada aos pe s de Jesus, quando ha ainda tanto trabalho para fazer? – Éscuto o Mestre, minha irma , e suas sa bias palavras, que tanto falam ao meu coraça o – respondeu-lhe Maria. – Ora, ora Maria deixa-te de desculpas e

vem ajudar-me. Palavras que falam ao coraça o, pois sim – disse Marta com um ar arreliado – queres esquivar-te ao trabalho na o e verdade? Maria olhou indignada para Marta e com tristeza disse: – Na o sejas injusta para comigo Marta, sabes bem que sempre te ajudo e nunca me nego a nenhum serviço, porque

haveria de o fazer hoje? Se ficasses aqui um pouco a escutar o Mestre

verias como tenho raza o naquilo que digo. As duas irma s tinham diferenças de opinia o sobre o aprender e a aza fama do quotidiano, entre viver de acordo com o que se deve aprender de Jesus e o cumprir meras tarefas dia rias. O que e eterno e o que tem apenas vinte e quatro horas. Isso as distinguia. – Maria, Maria tenho imenso trabalho para fazer, e na o quero atrasar-me na preparaça o do almoço, queres tu que o Mestre fique com ma impressa o nossa, vendo que somos ma s anfitria s? - Disse Marta com alguma tristeza na voz. – Porque diria o Mestre que somos ma s anfitria s minha irma ? Acaso achas que o Mestre esta preocupado com isso? Na o estara Éle mais preocupado com o estado do teu coraça o e da tua alma? – Tentava Maria fazer compreender a Marta. – Mas que tens tu hoje Maria, que ainda na o me disseste nada com sentido? É claro que o Mestre espera que o sirvamos com o melhor… – É a propensa o de Marta para

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entender as coisas do espí rito, começava a ceder. – Disseste bem minha irma . – Interrompeu-a Maria. - Mas acredita que o melhor para o Mestre, na o e o almoço que com tanta aza fama esta s a preparar. No decorrer desta pequena discussa o entre ambas, Jesus ia avaliando aquilo a que cada uma dava prioridade. Finalmente, Marta resolveu pedir auxí lio ao Mestre na certeza de que Éle a ajudaria, a repreender a sua irma . Pois ja estava cansada de argumentar e na o entendia porque raza o na o obtinha nenhum resultado. – Marta, Marta esta s afadiga e ansiosa com muitas coisas. Mas uma so e necessa ria: e Maria escolheu a melhor parte, a qual na o lhe sera tirada. - Respondeu-lhe Jesus, marcando cada palavra com a sua voz mansa, mas firme, como um favo de mel. Marta ficou sem palavras. Para grande surpresa sua, Jesus na o so na o atendeu ao seu pedido, como em vez de repreender a sua irma , repreendeu-a a ela. Silenciosa e pensativa, regressou aos seus

afazeres. Bailavam agora na sua mente muitas perguntas, devido a s palavras do Mestre. – Que queria Éle dizer com “uma so e necessa ria”? – Pensou, pensou e so as coisas terrenas acudiam a sua mente perplexa. Acaso o trabalho na o e necessa rio? Se ambas permanecessem sentadas aos pe s de Jesus quem faria o serviço? Éram as questo es mais naturais que agora bailavam dentro das suas ideias sobre o assunto. Maria, apercebendo-se da agitaça o em que se encontrava a sua irma , dirigiu-se-lhe: – O Mestre na o censurou a tua dedicaça o e o teu zelo ao trabalho. O problema e que tu procuraste ser-lhe u til sem primeiro buscares compreender o que Éle deseja de ti. Minha boa irma se a nossa alma e o nosso coraça o estiverem vazios do amor de Deus e do seu ensino, que proveito tiraremos no s da azafama desta vida? Marta sorriu ao ouvi-la. ___________________________________________________________

Florbela Ribeiro é escritora e poeta portu-guesa. Mantém o blog Doce Aroma.

“Hierarquias” (2011) - Helena Branco (Portugal). Conheça mais AQUI.

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O MENINO Myrtes Mathias Quando me trouxeram, numa urna pe-quena, aquilo que fora Geraldo Filipe, a tristeza foi apenas uma faixa estreita aper-tada entre o espanto e a raiva. Simples-mente eu na o podia crer, na o podia aceitar que aquele corpo sem vida, de rosto escuro e intumescido, fosse o meu rapaz que saí ra tre s dias antes, orgulhoso do seu novo unifor-me azul, das condecoraço es nas mangas e bolsos da gan-dola, as duas fitas amarelas do «primo» nas mangas cur-tas, as duas estrelas no bone tipo jo quei. Para o Aquela era seu melhor Lobinho, para sua Matilha era o Primo, «sempre alegre», mas para mim era o filho u nico que a vida me deixara, minha raza o de viver, meu orgulho, quase meu í dolo. A excursa o fora ao Sí tio do Sossego, on-de o rio do mesmo nome era o ponto alto, maravilhoso. Na hora da “caça livre” era o grande momento de meter o short e mer-gulhar, nadar, brincar. O que o Aquela na o podia explicar era como Geraldo Filipe, o melhor nadador, pudera morrer assim. O choque fora grande demais para que al-gue m pudesse explicar alguma coisa. So a consternaça o geral conseguiu minorar o meu desespero. Éle era querido, mas que significava tudo isso depois que todos se foram e eu voltei para dentro da casa, enorme sem ele, o quarto impecavelmente arrumado, os livros bem organizados na estante, as fla mulas ridí culas agora nas su-as cores vivas, os trofe us alinhados na pe-quena prateleira que ele mesmo fizera na parede. Foi aí que senti raiva. Havia uma multi-da o de inu teis, de verdadeiros pesos para

a sociedade, que poderiam ter morrido em lugar de meu filho. Por que Deus teria que buscar exatamente o meu menino com apenas dez anos? Senti vontade de esmur-rar algue m, de gritar, de morder, de des-truir, de fazer a outros o que a vida me fi-zera. No entanto, nada podia fazer a na o ser ficar ali deitada, impotente e desgraça-da, solita ria e sem raza o de viver. Dias depois, quando resolvi deixar que

algue m me visitasse, que permiti fra-quejar a minha muralha de sile n-cio e o dio, uma amiga, tipo de re-signaça o e amor, aconselhou-me: — Rosa lia, eu entendo a sua dor. Sei que lhe e difí cil re-agir, mas Geraldo na o gostaria de ver a criatura que mais amou assim sofrendo, destruin-do-se. É preciso que voce reaja,

por amor dele mesmo ou, pelo menos, por amor a ma e que ele

amava... Éu quis falar, gritar, mas ela interrom-peu com um gesto firme: — Ha tanta criança sofrendo por aí , pre-cisando de pelo menos uma parcela disso que seu coraça o anseia por dar... Gritei que na o era amor que eu tinha no coraça o, mas o dio, revolta, vontade de fazer outros infelizes tambe m. Magda na o repli-cou. Ouviu-me em sile ncio e despediu-se finalmente: — Orarei por voce , Rosa lia. Depois que ela saiu, comecei a pensar se na o teria raza o. Éu na o seria digna de meu filho se me matasse. Éle fora corajoso e procurara, dia apo s dia, fazer o seu "melhor possí vel". Qual se-ria o meu melhor possí vel naquela situa-ça o? Lembrei-me de um antigo desejo. Éu havia me casado bem tarde e, como sempre acontece com as pessoas so s, eu havia pla-nejado, caso na o me casasse, dedicar-me a s crianças sem recursos, dando-lhes uma fes-ta de Natal todos os anos. Éra uma sublima-

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ça o de minha infa ncia passada num lar paupe rrimo, sem bonecas e sem doces no Natal. No Natal, apenas meu padrasto be-bia um pouco mais, o que na o tornava, de forma alguma, mais alegre a nossa noite santa. Mas quando eu ja estava, enta o, num trabalho que me proporcionaria os recur-sos necessa rios para o que idealizara, co-nheci Filipe, um colega de trabalho e desti-no. Casamo-nos com simplicidade e sem grandes festas. Nossa casa era conforta vel, mas sem exageros de luxo, como no s mes-mos. Um ano depois, nascera Geraldo Fili-pe, e todo o amor que havia dentro de mim, desde a boneca que na o tivera na in-fa ncia, encontrou o seu objeto. Filipe mor-reu dois anos depois. Deixou-me recursos para viver sem preocupaço es, para dedicar-me inteiramente a meu filho. Fora um ho-mem bom em minha, vida, nada mais. Um homem que me dera um filho, uma criatu-rinha capaz de livrar-me de todas as ma s lembranças de minha infa ncia. Agora, agora... eu estava sozinha outra vez. Mais so que antigamente, porque ago-ra ja havia conhecido o prazer de ser que-rida, insubstituí vel. Sera que ainda havia dentro de mim alguma força capaz de rea-gir? Porque em Deus eu na o acreditava mais. É, para provar que poderia existir sem precisar dele, levantei-me e comecei a planejar a festa que daria aquele ano. Seria no Natal, apenas para aproveitar o espí rito da e poca. Telefonei a Diretora de uma casa de cri-anças o rfa s, minha amiga, que eu sabia es-tar em dificuldades. Disse-lhe que desejava fazer o Natal de suas 50 crianças. — Deixe tudo por minha conta, confir-mei. Éla pareceu encantada. É comecei a me movimentar. Uma atividade doentia, anor-mal. Uma fuga, simplesmente. Na tarde do dia 24 de dezembro, as cri-anças chegaram. Éu ja havia mandado rou-pa nova para todas. Éram meninas escuri-nhas, louras, morenas, de cabelos curtí ssi-

mos algumas, outras de tranças. Na o havia meninos. Nem um sequer para simbolizar Geraldo Filipe. Fiquei revoltada, mas fiz o possí vel para representar o meu papel de "senhora boa, digna de ser imitada, digna das be nça os de Deus", do mesmo Deus que havia levado meu filho. Senti vontade de soltar uma gargalhada ou uma blasfe -mia. A falta de fe aumentava meu sofri-mento. As mu sicas de Natal e outras de crianças sucediam-se em "alta fidelidade", as crianças riam, contentes e agradecidas, a Diretora e as auxiliares estavam encanta-das, as vizinhas e amigas elogiavam a bele-za da ornamentaça o e o sabor dos doces. No final da festa, cada menina recebeu uma boneca e um livro ilustrado. Os pre-sentes que eu mais desejara quando meni-na. As dez horas, começaram a sair as cri-anças, a Diretora, as auxiliares, as vizinhas, as amigas. A casa grande ficou maior ainda no seu sile ncio, ornamentada de raminhos verdes e fitas vermelhas. Passeei pela casa toda, olhei as mesas cheias de pratos vazi-os, de forminhas de papel prateado, de pe-dacinhos de bolo. Havia gasto todo o di-nheiro que tinha em reserva. A festa fora maravilhosa, mas na o havia paz nem ale-gria dentro de mim. Éu tentara provar que era capaz de ser feliz sozinha, mas perde-ra. Éxausta e frustrada, deixei-me cair no diva , a luz acesa, assim mesmo vestida, sem saber o que fazer amanha , sem presente e sem futuro, apenas o passado reinando prepotente. Devo ter dormido, porque foi enta o que o vi chegar. Saiu de um canto da sala e pa-rou diante de mim. Éra moreninho, de uma cor dourada, como se fosse sempre a praia; vestia um calça o quadriculado de preto e branco e a camisa de malha ordina ria esta-va toda puí da, deixando ver a pele morena, atrave s de centenas de furos minu sculos. O cabelo preto estava bem penteado para um lado e os olhos eram mais lindos que os do meu filho. Mas eram profundamente tris-

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tes. Éstendeu-me a ma o magra: — Éu na o ganhei presente... Sentei-me de um salto: — Onde voce estava? na o o vi. Na o ha-via nenhum menino na festa. Continuou a olhar-me em sile ncio, a tristeza crescendo nos olhos negros. — Voce na o me viu — afirmou — e eu queria tanto um presente... Começou a chorar. Um choro manso, si-lencioso, que me atravessava a alma. És-tendi-lhe os braços, mas na o consegui toca -lo: — Juro que na o o vi, meu bem! (Por que me chamava voce ? Meus cabelos estavam quase totalmente brancos. No entanto, na o havia arroga ncia no seu modo de falar, de pedir, de exigir quase.) Continuava ali parado, o olhar fixo em meu rosto, depois descendo e parando na altura do coraça o, onde brilhava a medalha que fora de Geraldo Filipe. Éra um coraça o com seu nome gravado. Seu pai lhe havia dado em seu primeiro aniversa rio e, desde enta o, o usara. So deixou de estar com ele depois de morto, quando o retirei e guar-dei-o comigo, como lembrança. O garoti-nho ergueu o dedinho moreno: — Me da isto... Aí achei que era demais. Que me pedis-se tudo, se bem que eu nada mais teria pa-ra dar, que interessasse a uma criança, mas pedir a lembrança de Geraldo Filipe era

demais. Apertei a medalha, puxando-a de tal forma que o corda o me feria o pescoço. — Na o. Isto na o posso. Na o tenho nada para voce . Éle me olhou ainda por algum tempo, o dedinho erguido ainda e, depois, voltando-se para sair, murmurou: — Éra isso que eu queria. Quis segui-lo, mas uma força estranha prendia-me ali sentada: — Por favor, volte. Quem e voce ? Toma... Sem se voltar, ele gritou, descendo a es-cada: — Éu sou o Menino do Natal... Acordei, suando, as ma os crispadas na medalha, as la grimas correndo bene ficas corno urna purificaça o. "Éu sou o Menino do Natal... eu quero o coraça o... voce na o me deu nada..." Éle viera substituir, consolar, cumprir sua missa o. Ajoelhei-me ali mesmo, na sala silencio-sa, mas aonde chegava a melodia da Noite Santa, vinda na o sei de que alto-falante: "Nasceu o Rei da Paz, num berço humilde jaz, nas asas desse amor, conforto a todos traz; direi em alta voz, que Cristo satisfaz: Nasceu o Redentor!..." ________________________________________________________

Do livro Presente Para o Menino (Rio de Ja-neiro: JUÉRP, 1983).

Myrtes Mathias (1933—1996) foi poeta, cronista, escritora e missiona ria batista.

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Na o desejes ser elogia-do por aquilo que tens de fazer por servida o.

Ama a pacie ncia para que a possas sustentar.

Quem frequentemente tenta sua mulher fre-quentemente se arre-pende.

A besta que na o come carne na o faz compa-nhia a besta que come.

Na o ganhes teu amigo com dinheiro nem o percas pela ira.

Faz um so poder do teu poder e do poder de teu amigo.

Se for inimigo por teu ví cio, torna-o amigo com tua virtude.

Quem e inimigo da jus-tiça e inimigo de todas as coisas.

Se na o ha nada que se possa ganhar com a im-prude ncia, na o ha nada que se possa perder com a prude ncia.

Com forças espirituais podes vencer forças espirituais.

Ama a finalidade para a qual foi criado e tera for-te coragem.

Primeiramente cre , depois entende. Na o deixes ocioso o poder que possuis. A verdade na o tem pavor, e a mentira e a falsida-de na o te m coragem.

A teus pe s da santos caminhos e a tuas ma os san-tas obras.

Na oraça o usa todas as forças de tua alma. Todos os demo nios na o tem ta o grande poder quanto uma boa oraça o.

Quem na o e leal, e desleal a si mesmo. Quem doa para ser louvado vende generosidade. Sem a perseverança na o podes atingir a finalida-de para a qual foste criado.

Nada caminha mais ra pido do que a perseveran-ça.

Persevere teu amor no amor de Deus, e o teu po-der no poder de Deus.

A cortesia tem amigos em muitos lugares. Honra mais quem mais honra a Deus. Morre para viver. O pecado e a morte da finalidade para a qual foste criado.

Mata o pavor com o amor e na o o amor com o pavor. Nenhum homem possui tanta necessidade quanto o avaro. Os caminhos da luxu ria veem atrave s da visa o e da audiça o, sua casa e a imaginaça o e seu leito e a vontade. Pela ira a vontade perde a sua liberdade e o enten-dimento a sua delibera-ça o. Um homem e a riqueza de outro homem. Quem e pobre por Deus e rico por graças a Deus.

De O Livro dos Mil Pro-vérbios

* * *

(...) Deu--se num paí s que todos os animais concor-daram em oferecer diari-amente um animal ao lea o para que na o se des-se ao trabalho de caçar.

Com isso ele os deixava em paz. A cada dia os ani-mais tiravam a sorte e o sorteado entregava--se ao lea o, que o devorava. Um dia a sorte recaiu sobre uma lebre que, temerosa de morrer, retardou ate o meio--dia a hora de ir ao lea o. Tomado de fome ex-cessiva, irritou--se muito o lea o com o enorme atraso da lebre e lhe perguntou por que demorara tanto. Desculpando--se, disse a lebre que havia perto dali um lea o que se dizia rei daquele paí s e que tentara apanha --la. Furioso, e cuidando fosse verdade o que ouvia, pediu que ela lhe mostrasse o lea o. Saindo a frente do lea o que a seguia, a lebre chegou a uma grande reserva de a gua que formava uma bacia rodeada de altos muros por todos os la-dos. Aproximando--se da a gua, as sombras da lebre e do lea o surgiram na superfí cie. Disse ela enta o: - - Senhor, eis na a gua o lea o que deseja comer uma lebre! Julgando o lea o que sua sombra fosse outro lea o, pulou dentro d’a gua e atracou--se em comba-te com ele: acabou morrendo na a gua, graças a as-tu cia da lebre.

De O Livro das Bestas

Ramon Llull (Lúlio) Nascido em Palma de Maiorca, na Espa-

nha, em cerca de 1232, o leigo Raimundo

Lúlio foi cognominado de ‘Doctor Inspira-

tus’ pela Igreja Católica, em virtude de

uma experiência mística que alegou ter ex-

perimentado, que o fez lançar-se numa vida

de peregrinações, serviço e busca de sabe-

doria. Foi escritor, poeta, apologeta e mis-

sionário (notadamente entre muçulmanos).

Sua obra, de mais de 250 títulos e abarcan-

do diversos temas, exerceu enorme influên-

cia em toda a Idade Média e apresenta vali-

osas lições e reflexões nos campos da filo-

sofia e teologia, principalmente. Seleciona-

mos trechos de três obras de Llull, publica-

das no Brasil pela Ed. Escala: O Livro dos

Mil Provérbios e O Livro das Bestas (trad. de

Ricardo Costa) e O Livro do Amigo e do

Amado (trad. de Luiz Carlos Bombassaro).

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O amigo disse ao ama-do: “Tu que enches o Sol de esplendor, enche o meu coraça o de amor.” O amado res-pondeu: “Sem a plenitude do amor os teus olhos na o estariam em pranto e tu na o terias vindo a este lugar para ver o teu amante.”

O amigo perguntou ao intelecto e a vontade quem estava mais perto do seu amado; ambos corre-ram, chegando mais depressa ao seu amado o in-telecto do que a vontade.

Perguntaram ao amigo por que o seu amado era glorioso. Éle respondeu: “Porque e glo ria.” Per-guntaram-lhe por que era poderoso. Respondeu: “Porque ele e poder.” “É por que e sa bio?” “Porque e sabedoria.” “É por que e ama vel?” “Porque e amor.”O amigo pediu ao seu amado que lhe pagasse pelo tempo que o servia. O amado contou os pensamentos, os desejos, os choros, os perigos e os trabalhos que sofrera o seu amigo por amor dele, e o amado acrescentou, nesta con-ta, a eterna bem-aventurança; e deu-se a si pro -prio como pagamento ao seu amigo.

O amigo contemplava o lugar onde tinha visto o seu amado e dizia: “Ah, lugar que me representa os bons costumes do meu amado! Dira s ao meu amado que eu suporto, por amor dele, trabalho e desgraça.” Respondeu o lugar: “Quando o teu amado estava em mim, ele sofria por amor de ti trabalho e desgraça maiores do que todos os ou-tros trabalhos e desgraças que o amor pode dar aos seus servidores.”

O amado ausentou-se do seu amigo e o amigo procurava o seu amado com a sua memo ria e o seu intelecto para que o pudesse amar. O amigo encontrou o seu amado e perguntou-lhe onde ti-nha estado. O amado respondeu: “Na ause ncia da tua recordaça o e na ignora ncia da tua intelige n-cia.”

Perguntaram ao amigo a quem ele pertencia. Éle respondeu: “Ao amor.” “De que e s feito?” “De amor.” “Quem te gerou?” “O amor.” “Onde nasces-te?” “No amor.” “Quem te alimentou?” “O amor.” “De que vives?” “De amor.” “Qual e o teu nome?” “Amor.” “De onde vens?” “Do amor.” “Aonde vais?” “Para o amor.” “Onde esta s?” “No amor.” “Tens outra coisa que na o amor?” Respondeu: “Sim, culpas e ofensas contra o meu amado.” “Ha perda o no teu amado?” O amigo disse que no seu amado havia miserico rdia e justiça e por isso eram seu abrigo amor e esperança.

O amigo dizia: “Quem na o teme o meu amado, to-das as coisas lhe parecem amedrontadoras; e quem teme o meu amado, encontra auda cia e co-

ragem em todas as coi-sas.” O amado dizia que o lou-vasse naqueles lugares onde e mais temido o lou-

vor. Pedia ao amigo que o abastasse de amor. Respondia o amado que por amor dele se tinha encarnado e deixado crucificar para morrer. “Diz, amado: onde esta o teu poder?” Respondeu: “No poder do meu amado.” “Com que te esforças con-tra os teus inimigos?” “Com as forças do meu amado.” “Com que te reconfortas?” “Com os te-souros eternos do meu amado.”

O amigo experimentou se podia suportar o amor no seu coraça o sem que se lembrasse do seu ama-do; e o seu coraça o deixou de pensar e os seus olhos de chorar; e o amor aniquilou-se e o amigo ficou embaraçado e perguntou a s pessoas se ti-nham visto o amor.

O amado esta muito acima do amor e o amigo es-ta muito abaixo do amor. É o amor que esta no meio faz descer o amado ate ao amigo e faz subir o amigo ate ao amado. É do descer e subir vive e tem iní cio o amor pelo qual o amigo sofre e o amado e servido.

“Diz, louco: o que e pecado?” “Uma intença o aves-sa e dirigida contra a intença o final e a raza o pela qual o meu amado tem criado todas as coisas.”

Os trabalhos e as tribulaço es que o amigo supor-tava por amor alteraram-no e inclinaram-no para a impacie ncia; e o amado reprovou-o com as suas honras e as suas promessas, dizendo que pouco sabia de amor aquele que se alterava pelas fadi-gas e pela bem-aventurança. O amigo teve contri-ça o e choros e pediu ao seu amado para que na o lhe tirasse os seus amores.

“Louco, diz, que e amor?” Respondeu que o amor e aquilo que torna escravos os livres e liberta os escravos. É a questa o e qual esta mais pro xima do amor: a liberdade ou a escravida o.

O amigo pensou sobre a morte e teve pavor ate que se lembrou da cidade do seu amado, da qual a morte e o amor sa o portas e entradas.

Certo dia o amigo estava orando e sentiu que os seus olhos na o choravam; e para que pudesse chorar, obrigou o seu pensamento a pensar em dinheiro, mulheres, filhos, comida e vanglo ria; e achou no seu intelecto que cada uma dessas coi-sas tinha mais servidores do que o seu amado. É por isso os seus olhos começaram a chorar e sua alma ficou em tristeza e dor.

De O Livro do Amigo e do Amado

Ramon Llull (Lúlio)

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Os que ainda não ouviram

Jairo de Oliveira

É difí cil de acreditar:

Mais de dois mil anos passados,

Ainda existe quem na o ouviu.

Falo de povos na o alcançados.

Milhares ainda intocados pela pregaça o

Jamais viram um profeta do Senhor,

Isolados, esquecidos e desprezados,

Nunca ouviram que Jesus e o Salvador.

Vivem escravos do medo

Perdidos em seus pecados,

Refe ns nas garras das trevas

No espí rito esta o alienados.

Jesus nos mandou pregar o evangelho

O Seu nobre amor contempla a terra inteira

Énvia os Seus discí pulos ao mundo

Ate chegarem a u ltima fronteira.

É a oportunidade dos que na o ouviram?

Sera que tera o uma u nica chance de crer?

Vamos prestar conta da nossa obedie ncia

Ao Deus do ce u um dia teremos que responder.

Éis a imensa seara, vamos em frente!

Ém um amplo esforço de proclamaça o

Ate que o u ltimo ouça a boa notí cia

Assim cumpriremos a nossa missa o.

Naquele grande dia os salvos sera o reunidos

As naço es estara o diante do Cordeiro,

Celebrara o pela vito ria conquistada

Ém um coral com gente do mundo inteiro.

O cântico da minha esperança

Jonathas Braga

Éu quero ver o meu Brasil engrandecido É o nome de Jesus por todos exaltado: Éste imenso Brasil a Cristo convertido

É por Cristo tambe m um dia transformado.

Éu quero ver a luz do Évangelho brilhando Por todos os verge is da terra onde nasci, É muitos coraço es a Cristo se entregando, Num milagre de fe que igual eu nunca vi.

Éu quero ouvir a voz de inu meras criaturas

Que ergam as ma os aos ce us em preces comoventes É confessem que esta o em Cristo salvas, puras, Cheias do amor de Deus, humildes e contentes.

Éu quero acompanhar esse imenso cortejo De salvos por Jesus, buscando Canaa ...

Parece que num sonho iluminado os vejo, Na alvorada feliz de uma bela manha .

Éu quero ouvir a voz de inu meros cantores,

Desde a Amazo nia verde a s fronteiras do Prata, Num coro sem igual, entre risos e flores,

Glorificando a Deus com a mais linda cantata.

Éu lhes quero sentir o gozo transbordante, Que vibra em cada ser e em cada coraça o, É os faz entoar assim a aleluia triunfante Do Cordeiro de Deus na obra da redença o.

Éu quero enta o cantar com eles esse canto

Que traz consigo os sons de estranha sinfonia É sai do coraça o que na o conhece o pranto É da alma que jamais passou sem alegria.

Éu quer que o Brasil inteiro ouça o meu grito É atente para a voz que sai dos meus pulmo es,

Como se fosse o ecoar de um brado ingente e aflito Querendo converter todos os coraço es.

Éu quero que Jesus penetre nesses lares Onde ha fome de pa o e sede de a gua viva É penetre tambe m em todos os lugares Onde a alma na o possui a glo ria rediviva.

Éu quero ver o meu Brasil feliz um dia, Poderoso e feliz sob o olhar de Jesus: Um glorioso Brasil de beleza e poesia,

No divino esplendor do Évangelho da Cruz.

Janela 10X40

Sammis Reachers

Avanço na direça o de quem morre

Avanço

com uma contra-cimitarra de cicios nos la bios

Com a seduça o

que so o amor constro i

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Estêvão Para tempos de perseguição

Em tempos de crescente perseguição contra cristãos – global e também local – é oportuno re-fletir sobre a figura de Estêvão, sobre seu destemor, seu movimento final e última oração, tão pe-quena e tão fundamentalmente cristã, rogando o perdão para seus inimigos. Sua entrega e sua conduta no momento derradeiro foram paradigmáticas, no sentido de que estabeleceram o modelo e padrão para os santos martirizados ao longo de toda a história da igreja. Ao longo desta mesma história, a passagem de Estevão, como não poderia deixar de ser, tem inspirado artistas cristãos a criarem sua arte, de poemas a pinturas, de esculturas a canções. Não se pretende aqui, longe de nós!, adorar a criatura em lugar do Criador. A Bíblia é clara ao asseverar que “não há nenhum justo, nem um sequer” (Rm 3.10). Mas, em tempos duros (no ano de 2015, segundo dados da Missão Portas Abertas, a persegui-ção religiosa só fez aumentar em todo o mundo), ter em mente tal exemplo de entrega é por de-mais válido e oportuno. Com vocês, então, a visão de Estêvão pela pena de seis poetas cristãos, antigos e novos, protes-tantes e católicos.

O martírio de Estevão, o diácono Carlos Nejar

Estevão sabia que ia morrer

naquele dia. Os algozes decidiram. Vestira o diaconato, junto à morte.

Apenas vão ouvi-lo, suportá-lo, antes do sacrifício.

Tinha a face de um anjo

e eram pétreos os rostos dos que o viam. Seus olhos eram pedras. Se jogavam.

Ia morrer. Sabia. Radioso, irresoluto.

Vinham as pedras. Ia ao encontro

da angular, certeira pedra viva.

A Lapidação de Santo Estêvão Murilo Mendes

Contempla, amada, a lapidação do homem: Sabes dizer de onde vêm as pedras? Sentimos, palpamos uma zona hostil

Visitada de pássaros que à noite

Nos bicam em sonho, pois ninguém repousa. Quantas pedras movemos diariamente!

O salmo de louvor seca nos lábios, E, já o inferno aberto à nossa roda,

Dando a mão aos espíritos do ar Nós tecemos o véu da iniquidade.

Ao tempo imediato dedicamos

O fervor que só Deus merecia. Lapidamo-nos um ao outro, impiedosos:

Lapidando Estêvão, a nós próprios lapidamos.

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O MÁRTIR J.T.Parreira

Pedras caem em Estevão

os olhos caem em Estevão, sujam seu último dia

Pedra nenhuma conhece o silêncio

em que transita mas desfaz o sangue de Estevão, o seu riso

e o seu corpo, que entrou no chão,

veem-no morrer com o coração tranquilo.

O Martírio de Santo Estêvão Claudio Sousa Pereira

(I)

(EM SONHO). Poeira crescente, vejo a multidão concentrada, que num movimento executa o homem que fazia prodígios.

Aproximo. E o alarido aumenta. Agora, em braços levantados, aquele em que na única fala

resumiu por completo a história;

da sua face escorre sangue, e dos seus olhos apiedados

se distende do chão para o alto neste que foi o último esforço.

Embora ao meio das pedradas, entre os sujeitos furiosos, sinto o teu espírito intacto

e escuto o que tua voz clama:

“—Senhor Jesus, guarda minh’alma, que sejas piedoso com eles,

Senhor, não os leves em conta, e perdoa-lhes deste pecado.”

(II)

Em meio às pedras viu-se a Glória, e a crença e chama da certeza, quando fitou os céus abertos através da imensa clareza.

Um homem, assim refletido, prostrou-se ao crime cometido:

“—Nós somos o que não queremos, mas fazemos o que nós somos,

e a isto feito, não mais tememos.

Eis aí — a virtude plena — de nossa miséria terrena.”

AS PEDRAS QUE ME ATIRAM Júnior Fernandes

“E apedrejaram a Estêvão que em invocação dizia:

Senhor Jesus, recebe o meu espírito.” – At. 7:59

Todas as pedras que me atiram, não me levarão ao covil da morte. E o espetáculo dantesco da zombaria torna-se em cinzas estilhaçadas, caídas sobre o sangue do meu corpo esmagado neste cenário público, de equívocos e perseguição. Não me levarão ao covil da morte, as pedras que me atiram. Pois as cortinas do céu se desfraldaram e a escada da glória se faz esteio para Eternidade.

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O martírio de Estêvão Gióia Júnior

“Os homens, onde estão, e as pedras?” Nada resta Da turba enfurecida, embriagada e funesta. Uma suave harmonia outrora nunca ouvida Emoldura de paz a Terra Prometida... Tudo é claro e feliz, imaculado e novo: A distância abafou as blasfêmias do povo – “Ah! Senhor – balbuciou – afinal eu diviso A luminosidade azul do Paraíso; Como é bom merecer esta glória divina, Isto é mais, muito mais do que a gente imagina. A palavra é vazia, a cor é frouxa, o som É tênue, certo está que a poucos deste o dom De antever este gozo: aos puros, aos profetas, Aos meninos de colo e também aos poetas, Mas, o bem sem igual que de tudo dimana Em muito sobrepuja a compreensão humana! Obrigado, Senhor, por tudo o que me dás, Por estes dons, por esta luz, por esta paz!”

Outra vez despertou das visões – num momento Com violência maior, voltou o sofrimento. - Nesga de céu azul, medrosa claridade Que ousa às vezes luzir em meio à tempestade – A calma de um minuto ameno antecedia Longas horas de dor nas garras da agonia – O povo estava ali blasfemo, perigoso Como um chacal faminto e como um cão raivoso. O indivíduo é perverso – a multidão é cega, O juiz considera, o povo irado nega, Uma voz é a voz da pessoa, outro é o grito da massa – Um é o homem no lar, outro a fera na praça. A multidão é um novo organismo que pensa Entroniza ou destrona, apedreja ou incensa, Edifica ou destrói – ao que reina, derruba E ordena ao que descera aos abismos que suba, Legisla poderosa ou atira aos incêndios Dos códigos legais os arcaicos compêndios E ululando – faminto o povo soberano Ergue o tiranizado e destroça o tirano,

Mas, também ovaciona os párias e dementes E executa os heróis e pune os inocentes. Nos momentos de fúria a multidão escuta O primeiro que brada e cega e resoluta Faz vítimas e faz heróis – ao povo vence-o O remorso que fala através do silêncio, Mas, consumado o crime, a sentença maldita, A história absolve o herói mas, nunca o ressuscita!

Uma pedra... outra pedra... o corpo esfacelado É uma chaga que sangra – um olho foi vazado Uma pedra cruel, uma pedra mais louca Silencia, de pronto, a palavra na boca – A mão ensaia um gesto e outra pedra em momento De fúria eis que aprisiona o incauto movimento. Não há sol, não há luz, nem do povo o Conselho, Há somente um borrão quente, amargo e vermelho – E o lábio seco e a boca aberta e o corpo exausto E o pulmão a sorver a existência num hausto, Mas o fim é chegado... a hora final dói menos E os algozes cruéis são meninos pequenos Sombras tímidas – sons que a noite sorve aos poucos E as pedras não vêm mais e os gritos estão roucos E se aproxima a paz... a doce paz de luz Da certeza de ter morrido por Jesus E de ter preferido a uma voz transitória A imensa voz de Deus nos paramos da glória – “Para que cante o céu e os poetas descrevam: Chega-te junto a mim, meu bem amado Estêvão, Segura a minha mão – a tua mão está fria! – E será mansa e doce e leve a travessia... Ouve os anjos cantando um cântico de amor E vem também cantar o Gozo do Senhor, Aqui não sentirás as dores das pedradas, Na Casa de teu Pai, vê, há muitas moradas E como é bela a tua! E como é majestosa! Raio de luar, gosto de mel, cheiro de rosa!”

E ante a fúria do povo ululante e assassino O valente cristão dormiu como um menino E foi levado ao céu, pelos anjos de luz Onde habita, feliz, ao lado de Jesus!

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Resenhas LIVRO / A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas

O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz dizia que o homem é tempo, perpétuo movi-

mento. Tal assertiva ocorreu-me ao avançar pelas linhas do livro A Trajetória do Indiví-

duo, de Fábio Ribas. Um livro onde o dito e o silenciado dançam amalgamados, traba-

lham juntos pela construção do Sentido, ou para que o leitor colha o sentido que, num

jogo de chiaroscuro, goteja das metáforas e parábolas. A psico-saga do autor em busca

do Sentido é narrada através de madura poesia e prosa poética larga e prenhe de co-

notações, em voz cujo timbre lembra o Zaratustra nietzschiano, ou o André Gide

de Frutos da Terra; mas, enquanto tais autores empreenderam o afastamento de Deus, equivocando-se em

direção ao abismo, Ribas avança em caminho inverso, em busca de Redenção, escalando através de brumas

e intempéries o cume da transcendência. Um livro singular dentro da literatura poética cristã, que surge pa-

ra enriquecer o bastião de nossas letras. O download do livro é gratuito: Você pode baixa-lo AQUI. - S.R.

LIVRO / O Pequeno Livro dos Mortos - Sammis Reachers

A mente de Sammis Reachers dá azo à sua inusual criatividade para expressar-se em

contos cujo tema norteador é ela, a indesejada das gentes, a Morte. Transitando por

gêneros, tempos e lugares diversos, temos nossa atenção sequestrada para situações,

momentos dramáticos (com certa - e boa - dose de estranhamento, que segundo o au-

tor é item capital para qualquer boa arte), em que, em meio à ação dramática, somos

inoculados por (in)discretas perturbações filosóficas e teológicas, para nossa alegria

mental (sorrisos). Leitura que deixa marcas, e que melhor elogio se faria à uma obra

literária? O livro tem preço de R$ 20,00, já com as despesas de envio incluídas. Para adquirir, escreva para o

autor: [email protected] - A.M.F.

CD / Teu Chamado - Ministério Declararei

O Ministério Declararei nasceu em 2006, após o entendimento de que é possível e ne-

cessário aliar “Adoração e Missões”. A vontade de sair das quatro paredes da Igreja pa-

ra influenciar vidas a amarem ao próximo e terem uma experiência real com Jesus Cris-

to uniu oito corações com um objetivo: abençoar o Nordeste brasileiro. Apesar de ter

sua base sob a cobertura da Igreja Batista Getsemâne (Ceilândia/DF), os componentes

do Declararei são também de outras denominações, o que faz dele um ministério interdenominacional. O

presente trabalho, o EP O Teu Chamado, surgiu especialmente para auxiliar nos esforços da Expedição Missi-

onária Piauí, iniciativa evangelística capitaneada por Eliézer Castro, que realiza duas vezes ao ano expedições

missionárias para pequenas cidades piauienses (todo o valor arrecadado na venda servirá para custear a 13ª

edição da Expedição, a realizar-se em julho, em Campinas do Piauí). A música que dá título ao trabalho, O

Teu Chamado, foi composta durante um momento devocional de uma das Expedições. Junto às cinco outras

canções, formam um conjunto harmônico, de doce sonoridade e letras cujo foco temático é a obra salvífica

de Cristo, e a obra comissionada a cada cristão.

Conheça mais do trabalho da banda no site: www.declararei.com.br . E as músicas do EP já podem ser ouvi-

das no Deezer, Spotify e iTunes. - S.R.

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Resenhas FILME / Quarto de Guerra

Após os filmes de sucesso, Desafiando Gigantes (2006), À

Prova de Fogo (2008) e Corajosos (2011), os irmãos Ken-

drick lançaram o drama cristão “Quarto de Guerra” que fez

sucesso nas bilheterias do cinema, na venda de DVDs, nas

redes sociais da internet e já até recebeu sua versão em

livro.

A obra traz a história de Tony Jordan (T.C. Stallings), um

vendedor de sucesso, e Elizabeth (Priscilla Evans Shirer),

uma corretora de imóveis. Ambos vivem um casamento

conflituoso e, por causa disso, a pequena Danielle Jordan

(Alena Pitts), de 10 anos, sofre pelas constantes brigas e a

falta de atenção dos pais.

O nome original do filme, “War Room”, nos remete à Sala

de Guerra, local utilizado para definir estratégias de defesa

e ataque durante a guerra. A senhora Clara (Karen Abercro-

mbie), viúva de um estrategista de guerra, durante a venda

de sua casa, explica à Elizabeth que primeiro é necessário

entender quem é seu verdadeiro inimigo. Com isso, a corre-

tora segue o exemplo de sua nova irmã em Cristo e acaba influenciando sua filha e seu esposo a batalharem

em oração. Quando Tony desperta de um pesadelo que o confronta, o relógio marca 7:14h, fazendo alusão

ao versículo tema, II Crônicas 7:14.

No decorrer dos 120 minutos de duração do filme, há um tom de humor, uma trama que envolve e as

‘pregações’, ou os momentos de maior proselitismo das mensagens, são desenvolvidas naturalmente através

de diálogos, seja na academia, na praça, no sofá etc., também ensinando que o filho de Deus tem relaciona-

mento com Ele.

Outro ponto que percebi no filme é que ele não é triunfalista, pelo menos não tanto quanto a maioria dos

filmes evangélicos de sucesso. Ofereço aqui alguns exemplos onde percebi isso: O grupo da Danielle não ga-

nha a competição escolar em 1º lugar; O Tony não volta ao emprego após se arrepender e passa a ganhar

bem menos que antes, quando vivia no erro; Tony, mesmo em cima da hora para um compromisso, faz o

bem ao seu ex-patrão, mas não é aparentemente recompensado por isso; Também, a própria senhora Clara

conta que perdeu o marido mesmo depois que passou a orar. Ou seja, o filme deixa-nos a lição que orar não

é fazer exigências para Deus, mas sim, buscar com que a Sua vontade se cumpra em nós, acima de nossa pró-

pria vontade.

Que os espectadores sejam motivados a atender ao clamor de Clara, que é o de buscar ao Senhor e de ser

um ser humano melhor, ainda mais nesse momento de crises tanto moral como econômica, política e social,

onde o casamento é banalizado e o divórcio aumenta em nossa nação. - J.R.*

*João Rodolfo, evangelista, da Igreja Batista Nova Filadelfia em Vila Metral - Blog: http://

ameabiblia.blogspot.com.br/

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Resenhas CD / As Paisagens Conhecidas - Os Arrais

Com este mais recente trabalho, lançado em 2015 e produzido por Leonardo Gon-

çalves, Os Arrais presenteiam seus fãs com um belíssimo EP "As Paisagens Conheci-

das" com cinco faixas. Melodias muito bem trabalhadas com blues e violões exce-

lentes. Suas músicas levam à reflexão e uma adoração mais contemplativa para

aqueles momentos a sós com Deus. A música cristã é referenciada pela Palavra de

Deus, mas para este disco sugiro que você escute com uma Bíblia na mão, porque todas as faixas convi-

dam. E não se esqueça de uma boa caneta e papel.

Na faixa "Outono", uma música de entrega com uma melodia intrigante nos lembra do Salmo 121. Depois

de toda batalha o refúgio é nos braços do Altíssimo e ele é a recompensa maior.

O que vem à memória na faixa "Caneta e Papel" é o Salmo 23. Nas turbulências da vida Deus nos leva para

águas tranquilas e sua vara e cajado nos protegem. Uma letra delicada e sincera que mostra o cuidado de

Deus, que não abandona em tempo algum. Mas também serve para bons amantes que juntos vão para um

novo tempo.

Onde está sua motivação para a sua missão? Na faixa " Fogo", também intrigante e com um blues marcan-

te, impossível não lembrar dos hebreus cativos no Egito. Letra com um ar libertador que impulsiona a con-

tinuar a carreira em direção ao Alvo Eterno.

Numa letra quase apocalíptica, a faixa "Montreal" é introduzida por uma bela narrativa dos Arrais, que

remete ao novo lar, uma nova terra, a Nova Jerusalém. Renova nossas esperanças no novo de Deus. Por-

que nem olhos viram, nem ouvidos ouviram o que Ele tem preparado para nós.

Uma adoração plena e completamente desmedida. Na faixa "O Bilhete e o Trovão" mais uma narrativa an-

tecede esta maravilhosa letra. Ela declara a soberania de Deus e que ele deve sempre ser o Primeiro em

tudo. Uma adoração em Espírito e Verdade sempre valerá mais que mil palavras. - M.S.*

* Marina Stela - Jornalista e poeta, mantém o blog O Cálice e o Perfume .

“Arca”, Camilo Borges Júnior. Conheça mais AQUI.

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Maria Cristina Gama (Chris Amag)

E quando você desiste de procurar, parece que tudo acontece, foi assim quando desisti de engra-

vidar, depois de tentar quase um ano e, só foi desistir, aconteceu! O milagre da vida... Sim, a vida é

feita de pequenos encantos, alguns ainda não têm identidade, nem cheiro, nem o calor da proximi-

dade, mas encantam e tornam os nossos dias mais bonitos, cheios de poesia... Surpresas que che-

gam sem hora marcada, sem avisar... Não me venha falar que é destino, que são coincidências... A

nossa história está escrita, mas o livro tem de ser aberto, lido e apreciado.

E por falar em livro, quero confessar um péssimo hábito que eu tenho: só compro um livro depois

de ler o final da história primeiro, se valer a pena, aí sim, eu leio! Mas, tentar fazer isso com a pró-

pria vida, é pular pedaços importantes que construíram quem somos. Não posso querer saber do fim

sem experimentar cada momento... Pois, se soubéssemos do futuro, deixaríamos de fazer muitas

coisas... Talvez eu não engravidasse e eu não conheceria essa pessoa linda que é o meu filho...

A vida é feita de oportunidades, o tal cavalinho branco não passa duas vezes, lembra? Eu sempre

digo isso... A grama está verde, o caminho está aberto e a água está fresca, vai dar tempo de decidir

sobre ficar ou partir.

E, enquanto tudo ainda são hipóteses, quero viver esse momento delicioso entre o antes e o de-

pois: “a expectativa”, “a espera”; mesmo que depois eu salte, o que sentimos quando temos espe-

rança é o que nos move e nos faz sentir vivos.

Carpe diem!

Rogério Araújo (Rofa)

Quando se aproxima a “Folia de Momo”, o Carnaval, a alegria parece tomar conta das pessoas co-mo se fosse algo que invadisse suas vidas. Mas será que essa é uma alegria duradoura ou apenas passageira, com muitos risos soltos?

Alegrar-se com bebidas, batuques, rebolados, pula-pula... e depois vem a ressaca cobrando o pre-ço da “folia” nos dias do Carnaval - que só pode acabar em cinzas, como na 4ª feira, quando tudo termina.

O homem vive muitas alegrias na vida, mas parece que a maioria delas não acontece de fato e, sim, por algum tempo e muito curto ainda por cima.

DEUS tem um plano muito melhor para cada um e deseja trazer a alegria eterna para o HOMEM! E para ser feliz, não por alguns dias, mas para sempre, e não viver nos prazeres da carne, mas os pra-zeres divinos em sua existência!

Jesus disse “no mundo terei aflições; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (João 16.33). O mestre deseja que levemos uma vida plena de alegria, amor e muita FÉ no Pai que está no céu nos vendo e nos orientando em tudo.

Um forte abraço, irmãos! E boa viagem ou descanso nestes dias!!!

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Inauguramos a seça o A l-

bum com a arte de Willi-

am Rosa. Formado em

Arquitetura e Urbanismo

e po s-graduado em Mar-

keting, William e natural

do Rio de Janeiro - RJ. Ho-

je exerce a fotografia pro-

fissionalmente. Sua obra

transita com agrada vel

desenvoltura entre pesso-

as e paisagens, o homem e

o meio.

Conheça mais do trabalho

de William Rosa em seu

site:

www.wrfotografo.com

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Vestígia HQ - www.vestigiahq.com.br

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Parlatorium “O ato criador é apenas um momento incom-

pleto e abstrato da produção de uma obra; se o escritor existisse sozinho, poderia escrever quan-

to quisesse, e a obra enquanto objeto ja-

mais viria à luz: só lhe restaria abandonar a pena ou cair no desespero. Mas a operação de escre-ver implica a de ler, como seu correlativo dialéti-co, e esses dois atos conexos necessitam de dois

agentes distintos. É o esforço conjugado do

autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito.

Só existe arte por e para outrem.”

Jean-Paul Sartre, O Que É Literatura

“Deveríamos nos lembrar de que Cristo não veio para nos tornar Cris-

tãos ou para salvar nossas almas apenas, mas que Ele veio nos redimir afim de que pudéssemos ser humanos no sentido completo da palavra. Ser novas pessoas significa que podemos começar a agir em nossa completa e livre capacidade hu-

mana em todas as facetas de nossas vidas. Portanto ser um Cristão significa que há humanidade, a liberdade de se trabalhar na criação de Deus e de usar os ta-lentos dados a cada um de nós, para Sua glória e o benefício de nossos próximos. Desta maneira, se possuirmos talentos artísticos, eles devem ser usados. O Se-nhor sabe porque os está dando. Paulo em sua primeira carta aos Coríntios

(12:12-27) fala sobre a comunidade Cristã como sendo o corpo de Cristo. Ca-

da um possui sua função específica dentro dele. E ninguém pode ser deixado de fora. Certamente alguns tocam a música, desenham as semelhanças, fotografam

os movimentos e escrevem as histórias. Estes são os artistas. Eles possuem seu lugar de direito na família de Deus. Novamente, a vida do corpo de Cristo, e

certamente um renovo, um avivamento, é impossível sem esses membros

chamados por Deus para fazer seus trabalhos.” H.R. Rookmaaker, A Arte Não Precisa de Justificativa

“Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a manifes-

tar-se como uma construção aberta e linear. Valéry comparou a prosa com a marcha e a poesia com a dança. Relato ou discurso, história ou demonstração, a prosa é um desfile,

uma verdadeira teoria de ideias ou fatos. A figura geométrica que simboliza a prosa é a

linha: reta, sinuosa, espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diante e com

uma meta precisa. Daí que os arquétipos da prosa sejam o discurso e o relato, a especula-

ção e a história. O poema, pelo contrário, apresenta-se como um círculo ou uma esfera:

algo que se fecha sobre si mesmo, universo autossuficiente e no qual o fim é também um

princípio que volta, se repete e se recria.”

Octavio Paz, Signos em Rotação

E eu sentia que era isto

que cada alma, perdida na multidão, desejava: a pala-vra que lhe dissesse a sua

verdade. Milhões de so-fredores, pedindo um poe-ma. Não, eles não vivem

só de comida. Os poemas fazem o corpo sorrir e lu-tar: alimento revigorante.

Rubem Alves, Gandhi - Ma-gia dos Gestos Poéticos