amplitude #2 - revista cristã de literatura e artes

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  • 8/20/2019 AMPLITUDE #2 - Revista Cristã de Literatura e Artes

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    Número 02 — Fevereiro 2016

    AMPL  I TUDE

    Poeta emDestaque:

     Júlia Lemos

    E MAIS: Cinema - Fotografia - Música - HQ

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    SUMÁRIORevista Amplitude - Número 02 - Fev 2016 

    Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 03

    Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .04

    Conto: O canto do sabiá preto / Lindolfo Weingärtner . . . . . .05

    Luminares / Joana Cristina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10

    Cinema:º Festival Nacional de Cinema Cristão

    . . . . . . . . . . . . 08

    Conto:A Morte da Encrenqueira

     / Judson Canto . . . . . . . . . . .11

     Jardim dos Clássicos / Eça de Queirós . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12

    Crônica / Max Lucado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17

    Conto: O Poeta do Salmo Exilado / J.T.Parreira . . . . . . . . . . . . . 18Poeta em Destaque / Julia Lemos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

    Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

    Conto:A Troca

     / Joed Venturini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24

    Galeria / Lya Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30

    Conto:A Matilha Fantasma

     / Sammis Reachers . . . . . . . . . . . . 32

    Notas Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37Cinema / 3º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . . . . . . . . . 38

    Conto:O Hóspede

     / Florbela Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

    Luminares / Helena Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40

    Conto:O Menino

     / Myrtes Mathias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41

    Hot Spots: Ramon Llull (Lúlio) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .44

    Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46Especial / Estêvão para tempos de perseguição . . . . . . . . . . . . 47

    Resenhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

    Luminares / Camilo Borges Júnior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .52

    Crônicas / Chris Amag & Rofa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53

     Álbum / William Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .54

    HQs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

    Parlatorium . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56

    CAPA: He Qi, Calling Disciple (Jesus chamando os discípulos) - trecho. He Qi é um ars-ta cristão chinês que tem feito um trabalho assaz singular, e genlmente cedeu suaobra para ilustrar a capa de AMPLITUDE. Conheça mais do trabalho do autor:  

    hp://www.heqiart.com 

    AMPLITUDE é uma revista de cultura

    evangélica, com foco principal em c-

    ção e poesia. Mas nosso leitmov ,

    nosso movo de ser e de exisr, é a

    arte cristã em geral: Transitamos por

    música, cinema, fotograa, artes plás-

    cas e quadrinhos. Publicamos ar-

    gos, estudos literários, crônicas e rese-nhas.

    Nossa intenção diz respeito àquela

    despretensiosa excelência dos humil-

    des. Nosso porto de parda e porto de

    chegada é Cristo. Nosso objevo é

    fomentar a reexão e a expressão,

    AMPLIAR visões, entreter com valores

    cristãos, comunicar a verdade e o belo

    e esmular o engajamento arsco/intelectual entre nossos irmãos. Nosso

    preço é nenhum: a revista circula gra-

    tuitamente, no democráco formato

    pdf. 

    COLABORE: 

    Será uma felicidade ter você como um

    colaborador de AMPLITUDE. Envie-nos

    seu material para avaliação (conto,

    crônica, argo, estudo literário, traba-

    lho em artes pláscas ou fotograa

    arsca, resenha ou críca de lmes,

    livros ccionais ou poécos e (boa,

     per favore) música cristã/evangélica,

    JUNTAMENTE com breve biograa.

    Envie também nocias sobre eventos

    arscos, lançamento de livros e

    quaisquer notas culturais envolvendo

    arte/arstas evangélicos que você

     julgar relevantes.

    E escreva-nos ainda para prosear, in-

    dagar, cricar, elogiar... 

    Nossos e-mails:

    [email protected] 

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    Editor: Sammis Reachers 

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     Ed  i tor  i alÉ com felicidade que apresentamos o segundo número de AMPLITUDE . Durante es-

    tes seis meses de espera ou gestação desta segunda edição, pudemos auferir a boa recepção que anossa primeira edição obteve entre autores e leitores. Isso nos incentiva a avançarmos na jorna-da, cientes da seriedade e importância da iniciativa de reunir em revista, o melhor da produçãoliterária poética e ficcional, além de outras expressões artísticas levadas a cabo por cristãos pro-testantes e de outras filiações.

    Vamos ao panorama da edição: Na seção Hot Spots , a sapiência de um dos maiores nomes damística cristã, Ramon Llull (Raimundo Lúlio). Em Galeria , a obra da pastora, artista plástica,grafiteira, quadrinista e ativista cultural Lya Alves. Na seção Cinema , destacamos a realização daterceira edição do Festival Nacional de Cinema Cristão .

    Esta edição chega inaugurando diversas novas seções. Uma delas é Poeta em Detaque , inician-

    do com a obra da pernambucana Júlia Lemos.Inaugurando a nossa seção Especial , de enfoque temático, temos como mote Estêvão para tem- 

     pos de perseguição , uma mini-antologia reunindo as percepções de seis excelentes poetas acerca denosso protomártir, sobre quem nos é oportuno refletir em tempos de recrudescimento das perse-guições aos cristãos ao redor do globo.

    E as artes visuais ganharam ainda mais destaque: além da já citada seção Galeria , e de HQ  (História em Quadrinhos), inauguramos mais uma seção, Luminares , destacando, em singelas inser-ções, a pintura, ilustração ou desenho de nossos concidadãos de Reino. E a Fotografia chega comforça na seção Álbum , abrindo as portas com a obra de William Rosa.

    Os contos, como diria meu pai, estão de lascar : Iniciamos com Eça de Queiroz, na seção Jar- dim dos Clássicos , apresentando o conto O  Suave Milagre . Seguimos com o humor e a precisão deJudson Canto (A Morte da Encrenqueira ); a dramaticidade soberba de J.T.Parreira (O Poeta do Sal- mo Exilado ); Florbela Ribeiro relatando (em O Hóspede ) sobre o príncipe que tinha por norma sehospedar junto aos pobres; Lindolfo Weingärtner num conto terno e luminoso (O canto do sabiá preto ); Joed Venturini com o impactante & metafísico A Troca ; este vosso humilde escriba, numconto de terror(!?), A Matilha Fantasma ; e concluímos com nossa saudosa e maravilhosa MyrtesMathias, num conto com um toque arrebatador (O Menino ).

    Queridos trinta leitores, agora uma nota triste: havia idealizado a periodicidade da revista pa-

    ra semestral, mas percebo agora que infelizmente não poderei manter tal ritmo. Não que o traba-lho seja tanto (mesmo que seja! Rsrs), embora eu faça aqui tudo sozinho, mas o fato se dá em vir-tude de meu pouco tempo. Retomei estudos universitários, e, junto ao trabalho secular e minhasoutras iniciativas, das quais não posso abrir mão, percebo que o tempo de seis meses não é sufici-ente, ao menos nesse momento de minha vida, para dar conta de uma publicação desta magnitu-de. Portanto, fica em aberto, até palavra em contrário, a periodicidade de AMPLITUDE. Lem-brando: a revista não acabará; apenas terá expandido  seu período de gravidez. E aproveitando oensejo, não deixem de orar por nosso bebê!

    E, como sempre, paz e bem e uma boa leitura!

    Sammis Reachers, editor

    Nota: Tenho buscado, nas seções de contos e poesia, efetuar um rodízio de autores. Assim, temos nesta edição emsua grande maioria autores não publicados na edição anterior. Com isso buscamos dar voz a tantos quanto possí-vel, e apresentar aos leitores sempre um melhor panorama da grande e boa produção de nossos irmãos.

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    OFEREÇO A MINHA MORTE 

     J.T.Parreira 

    Ofereço a minha morte. Levanto 

    O meu sangue no silencio das feridas. 

    As maos abrem-se rasgadas, sao duas 

    Cartas abertas de amor. 

    Um horizonte, o meu lado esquerdo Abre-se para o voo do meu coraçao 

    Abandonado por Deus, ofereço a minha morte 

    Serei retirado da cruz por maos amorosas.

    Prenda 

    Karla Waters 

    Das entranhas A s estranhas 

    Dos meus labios Para os teus 

    No ventre De minh'alma É que a poesia Se concebeu 

    Das cortinas Dos meus veus 

    Da materia uterina Ate os ceus 

    Éis que a palavra surge Vindo de outra alma ruge 

    Se encontra em minha casa É dentro dela cria asa 

    O poema enim nasceu Vindo de gritos e dores 

    Contudo, cheio de esplendores 

    NÔVO ! 

    Helena Branco 

    o som trazia 

    abs(trado)...harpeando luz a lagrimas na vidraça 

    o ANO começa... perpassa... 

    rendilhando suspiros consumindo notas breves d alaude 

    ritmo insondavel batuta esgrimida d promessa comovida 

    por STRAUSS ! 

    danço em pontas e tules a esbelteza no espaço 

    abraçada pela cintura o tempo escreve...avida 

    a rosa perfumada e o AMOR que...murmura 

    A VIDA! 

    Escuro vale 

    Patrícia Costa 

    Éscuro vale este onde o medo 

    quer ser companhia e o descredito busca titubear 

    a fe  

    Das Tuas maos o amparo a certeza 

    e o cuidado de ser 

    refugio e fortaleza que ha de guiar 

    meus olhos meu corpo 

    meus pes 

    quando tudo parecer contrario. 

    COM DEUS 

     Alfredo Pérez Alencart (Espanha) 

    Aberto estou, Deus, ao teu relampago eterno,

    pregado ao chao onde escuto um rouxinol

    que canta quando me estendo sobre a Cruz! Nem ao crepusculo se me quebra a esperança, 

    tributaria duma carne que rangeu t ao longe

    para nos amparar com a sua altssima ternura. 

    Assim, tu, eu, bem aventurados do milagre

    na chave profetica, espelhos duma aliança

    habil em redençoes sob sois escuros! 

    Subita liberdade para voltar ao ponto 

    de partida! Liberdade para desordenar-me entre a luz onde decerto treme a sua Voz! 

    Rasga a noite, Deus, e muda-me de planeta! 

    Tradução: António Salvado 

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    O canto do sabiá preto Lindolfo Weingärtner  

    O asilo ainda fora construdo no tempoem que se pensava que pessoas idosas, parase sentirem bem, antes de tudo precisavam

    de ar fresco e de natureza nao poluda. Somais tarde se havia descoberto que o maiorinimigo de gente velha era a soli-dao.

    Mas tal inimigo, como sesabe, nao poupa nem mes-mo os asilos situados emmeio ao turbilhao doscentros urbanos. Éle

    nao olha classe social,rico ou pobre, gente cul-ta ou inculta. Tambemnao olha homem ou mu-lher, apesar de que muitos(em sua maioria, homens)airmem ser mais facil para asmulheres lidar com a solidao do que pa-ra seus parceiros masculinos.

    Infelizmente nao existe nenhum apare-lho com o qual se pudesse medir o grau desolidao sentido por uma pessoa, a nao serque classiiquemos um coraçao grande eamoroso de aparelho, coisa de que Deusnos queira preservar.

    O asilo que nestas paginas vamos apre-sentar ao leitor estava situado distante dacidade, em meio a montanhas e colinas co-

    bertas de matas, e com vista a verdes vales,pontilhados de campos e lavouras vicejan-tes. Viviam na instituiçao cerca de 120 ido-sos, e nenhum deles carecia de coisa algu-ma que se tem por essencial na vida daspessoas. A associaçao que administrava oasilo nao poupava esforços para que os seusvelhinhos nao sofressem nenhuma carenciae para que tambem pudessem ser recebidosna casa nao poucos que eram incapazes depagar as mensalidades vigentes.

    Como era que os asilados conviviam coma solidao? Bem, essa e uma pergunta a par-te, que por enquanto ternos que deixar sem

    resposta.Ja que nosso asilo era uma instituiçao da

    igreja, vinha sendo dirigido por um pastor,que cuidava de seu rebanho tanto na areafsica como na espiritual. Os velhos queadoeciam, nao precisavam ser deslocadospara o distante hospital, eles eram tratadosna propria casa, na proximidade de seu cu-

    ra d'almas habitual; eles icavam sobos cuidados de um medico, que

    atendia o asilo uma vez porsemana, e quando alguem

    falecia, era sepultado nocemiterio do asilo. O ce-miterio fazia parte dodia-a-dia dos inquilinos,e a maior parte deles ti-nha feito as pazes com o

    campo-santo. Sabiam que,quando eles proprios mor-

    ressem, permaneceriam per-to do lugar onde tinham passa-

    do seus ultimos anos de vida, e essenao deixava de ser um pensamento confor-tante.

    Todas as pessoas, ao chegarem a velhice,aprendem, de certo modo, a viver como vi-zinhos da morte. Alguns conseguem estabe-lecer uma vizinhança pacica, outros naogostam de ser lembrados do termino deseus dias, em especial, quando o im seaproxima a olhos vistos. Ém nosso asilo naoera so a proximidade do cemiterio queconstantemente lembrava os velhinhos da

    morte. Éra a situaçao elementar dos septua-genarios e octogenarios que os lembravadela, pois seguidamente viam alguem sendoarrancado de seu meio, que nao deixava na-da a nao ser um lugar vazio no refeitorio.Raros eram os meses em que ao menos umdos asilados nao viesse a ser carregado pa-ra o campo-santo. É quando acontecia quenum perodo de um ou dois meses nao fale-

    cia ninguem, poderia ter a certeza de que osino da capela dobraria duas ou tres vezesseguidas no mes seguinte. Com batidascompassadas e solenes ele revelaria que

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    tos, mas sim, das promissoes de Deus. É osoutros velhinhos sentiam aquele segredodela, e eles vinham ao seu leito, silenciavamcom ela, ou conversavam com ela sobre avida deles. Irmingard sabia ouvir, calada, eela tambem sabia falar no devido tempo, ehavia muitos que tinham encontrado con-forto e novo animo junto ao leito dela.

    Mesmo Fridolino, que conhecia a Bbliacomo poucos, gostava de sentar junto a ca-ma de Irmingard, falando-lhe das descober-tas que izera nos livros do Novo e do Anti-go Testamento. Irmingard gostava de ouvi-lo, se bem que ela nem sempre comparti-lhava suas opinioes e interpretaçoes. Paraela, a Bblia indicava a direçao em que an-dar, nao a considerava um caminho ladeadode indicaçoes e prescriçoes que mantinhamo cristao na linha. A Éscritura era um cursode fe e de vida, que Deus mandara escrever,nao uma coleçao de dogmas e doutrinas in-falveis. Mas a fundo os dois se entendiammuito bem, e o velho Fridolino, depois deuma de suas conversas com Irmingard,sempre costumava ser um pouco mais tra-

    tavel e mais cordial.O dirigente do asilo bem sabia que Ir-

    mingard era a confessora secreta da casa, enao raras vezes encaminhava para ela ho-mens ou mulheres que tinham problemascom os familiares ou que tinham começadoa retrair-se em si mesmos, acometidos dedepressoes, coisa propria da velhice. Élenao ignorava que em muitos casos a mu-

    lherzinha com aquele corpo mutilado sabiaajudar as pessoas melhor do que ele pro-prio.

    De começo constatamos que o maior ini-migo de gente idosa costuma ser a solidao.Isso tambem era o caso em nosso asilo, enao era so pelo fato de ele estar situado dis-tante da cidade, e rodeado de lavouras ecampos. As fontes amargas da solidao em

    realidade brotam dos abismos do coraçaohumano, e quando neles sobe o lençol dasaguas da tristeza, elas sao capazes de alo-rar a superfcie, revelando um mar de soli-

    dao, mesmo em meio a gente alegre. Éstemar, constantemente alimentado por fontessecretas, e capaz de afogar qualquer alegriacom suas aguas amargas.

    So depois da morte de Irmingard algunsdos velhinhos e do pessoal do asilo se de-ram conta de que na presença dela eles ja-mais se tinham sentido solitarios. Ninguempoderia dizer precisamente por que tinhasido assim. Devia ter sido o segredo dela. Jaque ela tinha Deus por fonte de vida e deesperança, ja que nao vivia de seus propriosrecursos, ela tinha recebido do seu Criadoro dom de poder abrir seu coraçao para ou-tros, e com isto conseguia tambem que osoutros lhe abrissem o proprio coraçao. Ateo im de sua vida ela tivera a capacidade deamar as pessoas e de compartilhar da vidadelas.

    Agora Irmingard tinha falecido, e ela de-veria ser sepultada no cemiterio do asilo, atarde do dia apos a sua morte. Tudo que oshumanos costumam fazer numa ocasiaodestas, tinha sido feito. O corpo murcho emutilado de Irmingard tinha sido lavado,

    seus cabelos ralos foram penteados e ajus-tados, e tinham lhe botado o melhor deseus vestidos. Assim ela estava deitada emseu esquife, seu rostinho estreito emoldura-do por lores multicoloridas, e mesmo osque viviam familiarizados com a morte,sentiam, mais que em outros casos, umagrande tristeza, e algo como uma incredulaestranhes perante o fato de ela nao se en-

    contrar mais em seu meio.Énfermeiras e atendentes tinham enchi-

    do a parte inferior do esquife com crisante-mos brancos, assim que nao caa em vistaque no corpo da falecida, no lugar das per-nas, havia um espaço vazio. No cemiterio ocoveiro tinha preparado para ela uma dassepulturas ja escavadas de antemao, e haviaurna profusao de lores e coroas destinadas

    a enfeitar seu ultimo lugar de repouso. Fi-lhos e netos, mais alguns conhecidos de suacidade, tinham comparecido, e tudo deveriaseguir o ritual costumeiro.

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    Mas Deus tinha resolvido dar um ar fes-tivo ao dia em que iria ser sepultada suaserva Irmingard. Por isso ele havia ordena-do que a hora do sepultamento se formasseurna tempestade sobre o vale, com relam-pagos e estrondos de trovao, acompanha-dos de cortinas de chuva fustigadas pela

    ventania. Assim o feretro, que seguiria dacapela ao cemiterio, chegou a atrasar-se porum bom tempo.

    Éra tradiçao no asilo, o pastor, por ocasi-ao de um sepultamento, fazer a alocuçaofunebre no cemiterio, nao na capela, e osvelhinhos apreciavam a pratica, ja que lhesajudava a suportar o silencio pesado do pa-radouro dos mortos.

    Assim, jovens e velhos se haviam reuni-do na parte superior do cemiterio, enchen-do os estreitos espaços entre os jazigos, osolhares dirigidos para o vale, enquanto opastor se tinha posicionado na parte inferi-or, com o rosto voltado para o distante cer-ro, atras do qual o sol ja ia desaparecendo.

    Quando, apos o hino inicial e a leitura deum trecho da Bblia, o pastor iniciou sua

    alocuçao, repentinamente toda a paisagemparecia mergulhar num brilho irreal. Aindapairava um paredao escuro de nuvens sobreo vale, mas do meio do paredao ia surgindoum esplendor, que lentamente se transfor-mava num magnico arco-ris. Éra um arcofestivo, cujo brilho aumentava a olhos vis-tos, assim que se vinha reletindo mais emais nos rostos dos presentes.

    O pregador estava de costas voltadas pa-ra o vale, portanto nada enxergava do mara-vilhoso esplendor. Verdade, ele via o brilhoreletido nos rostos dos presentes, mas naosabia como explica-lo. Assim ele continuoucomentando a palavra do apostolo Pauloconstante no oitavo captulo da Épstola aosRomanos - que os sofrimentos deste temponao sao para comparar a gloria que nos de-

    vera ser revelada no reino de Deus.Para a comunidade, em sua maioriacomposta de idosos, poderia parecer coisamuito logica o pregador falar sobre os sofri-

    mentos deste tempo. Cada um dos velhi-nhos tinha seu histo rico de sofrimentos quea vida lhe impusera. É muitos viviam de co-raçao machucado, e havia feridas do passa-do que continuavam sangrando secreta-mente. Nao, nao se podia varrer as coisasdodas da vida para debaixo do tapete, ao

    querer falar da glo ria a ser revelada.Assim o pregador falou do sofrimento da

    falecida, descreveu sua vida, lembrou seuserviço e enalteceu sua idelidade. Sim, elativera de provar os sofrimentos desta vida,fora obrigada a esvaziar ate o fundo o ca liceda dor. A vontade inescrutavel de Deus eraessa: justamente as pessoas de fe erammarcadas por contratempos e sofrimentos.

    Éla, cujos pes por tantos anos tinham acio-nado os pedais do harmonio e do orgao desua igreja, para dar gloria a Deus, ela foraobrigada a amputar ambas as pernas. Justa-mente ela, que tanto gostara de lidar comcrianças e jovens alegres, tivera de indar osseus dias enferma, em meio a outras pesso-as enfermas e idosas. Os caminhos de Deuspara com os humanos eram verdadeira-

    mente inescrutaveis.No momento em que o pregador menci-

    onara as pernas amputadas de Irmingard, oarco-ris tinha intensiicado o seu brilho; ecomeçara a espelhar-se nas nuvens, assimque aos poucos se ia formando um arco du-plo, fenomeno como que sobrenatural, quepoucas pessoas tem oportunidade de ver nodecorrer de sua vida.

    Ja que o sol acabara de desaparecer pordetras do cerro, o vale aos poucos mergu-lhara na sombra; mas agora a paisagem to-da começara a resplandecer com um brilhoque nao parecia desta terra.

    O pregador sentia a comoçao dos pre-sentes. Via como os rostos familiares havi-am mudado, assim como se diante deles janao se viesse desdobrando um ritual religi-

    oso, mas como se lhes estivesse ocorrendoalgo de novo e maravilhoso, que os arreba-tava de seu dia-a-dia.

    O pastor, porem, continuava falando dos

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    sofrimentos deste tempo. Éle nao poderiamudar o escopo de sua pregaçao, so porqueos rostos do pessoal pareciam espelhar co-moçao e admiraçao. Éle parecia perturbado,sim, pelo fato de os presentes, pelo que pa-recia, ja terem antecipado a segunda partede seu sermao, antes que ele tivesse falado

    uma palavra sequer da gloria que em nosdevera ser revelada.

    Por alguns momentos, admirado da co-moçao reletida nos rostos dos velhinhos, opregador chegou a silenciar. Foi a que umavoz quebrou o silencio: "Pastor, olhe parasuas costas, olhe para o ceu —  O Sinal daAliança!" Éra Fridolino, que ousara inter-romper o solene ritual, apontando para o

    espetaculo celeste. O pastor, em sua convi-vencia com os velhinhos, se acostumara amuitas esquisitices e atitudes excentricasproprias de gente idosa, assim atendeu opedido de Fridolino olhando na direçao in-dicada.

    É entao tambem ele passou a ver a glo-ria. É se deu conta de que o proprio Deushavia assumido a parte do seu sermao que

    tratava da gloria a ser revelada em nos. As-sim ele limitou-se a dizer: "Sim, Fridolinotem razao. O Sinal da Aliança."

    É assim aconteceu que, na hora do se-pultamento de Irmingard, pastor e comuni-dade quedavam-se em silencio, ao lado dasepultura aberta, abrindo-se ao fulgor queirradiava do arco da aliança de Deus.

    É enquanto paravam, silenciosos, bem

    de manso, do beirado da loresta proxima,começou a trinar um sabia preto. Éle canta-va como que de voz contida, assim como ossabias pretos costumam cantar ao lusco-fusco do dia. Cantou por uns dois minutos, equando enim silenciou, igualmente o arco-ris foi perdendo o seu fulgor.

    Ao im, o pastor voltou a encarar a co-munidade. Falou da esperança dos que

    adormeceram em Cristo Jesus, falou da glo-ria da vida eterna — e tudo correu segundoa ordem costumeira. O esquife foi baixado asepultura: Terra a terra, cinza a cinza e po

    ao po. Semeia-se um corpo corruptvel, res-suscitara um corpo espiritual. Juntos, inal-mente, todos oraram a oraçao do Senhor, edepois foram despedidos com a costumeirabençao.

    A maior parte dos velhos voltara ao asi-lo, logo apos a cerimonia. So ao redor de

    Fridolino se havia formado um grupo quese envolvera numa discussao com ele.

    Fridolino insistia que o arco-ris tinhasido um sinal de Deus; o proprio pastor otinha conirmado. É vinha escrito na Bblia:Deus havia colocado o arco no ceu, apos odiluvio, para que servisse de eterno sinal daaliança estabelecida entre Éle e os huma-nos.

    Mas ele nao admitia que tambem o cantodo sabia era parte desta aliança. Nada seencontrava na Sagrada Éscritura a respeitode aves que tinham a tarefa de dar recadosaos humanos atraves de seu canto. A pombaque carregara no bico a folha de oliveira,nao havia arrulhado nada para Noe, o corvoque havia trazido pao e carne a Élias, namargem do arroio de Querite, nao havia

    grasnado nenhuma mensagem para o pro-feta. Seu serviço fora mudo. Deus nao falavaatraves de passarinhos, e o canto deles naotinha nenhum signiicado para no s.

    Um dos circunstantes alegava que o galo,que, ainal, tambem era ave, por certo tiveraum recado a dar a Pedro, na noite em queeste negara a seu Mestre. Mas Fridolino naose deu por achado. O galo tinha cantado,

    mas era hora de ele cantar de qualquer jei-to, ele nem sabia porque estava cantando eque seu canto poderia ter um signiicadopala Pedro. A gente facilmente se tornavavtima de fantasias, ao querer dar as coisasda natureza uma interpretaçao espiritual.

    Alguns do grupo nao concordavam comele, mas ninguem costumava argumentarcom o velho Fridolino sobre questoes que

    envolviam a Bblia, e assim sua opiniao pre-valeceu.

    Mas por ocasiao da janta, Fridolino semantivera calado, como que contrariado, e

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    quando todos abandonaram o refeito rio, elereteve alguns de seus amigos, com os quaishavia discutido pouco antes no cemiterio, ehumildemente lhes pediu perdao. Éle se ha-via enganado. O sabia fora mensageiro deDeus, sim. Éle havia conferido na Bblia;constava no Salmo 148, com toda clareza:

    Éntre feras, gados e repteis estavam tam-bem os volateis, isto e, os passarinhos -  to-dos sendo convocados para louvarem aDeus. É a o sabia preto nao podia icar defora. É como ele poderia louvar a Deus, anao ser com seu canto?

    É talvez em realidade o canto do sabiatinha uma coisa a ver com o fato de a faleci-da Irmingard ter tocado e cantado para a

    gloria de Deus, enquanto ainda fora capazde faze-lo. É tambem constava no Salmo148 que os velhos junto com os jovens devi-am louvar a Deus, e que isto era uma coisaque Irmingard sempre havia falado, e por-

    tanto era um recado bem pessoal de Deuspara todos eles.

    Éu penso que poderemos concordar como velho Fridolino, aceitando sua interpreta-çao da Éscritura tambem em nossa propriavida. É talvez que nesta interpretaçao se re-vele o mais profundo segredo de Irmingard:

    o louvor a Deus havia secado em seu cora-çao aquela fonte amarga da qual se alimen-ta a solidao humana, fazendo nascer em seulugar a vertente viviicante do amor. Comisso sua propria vida, e a vida de muitas ou-tras pessoas, tinham sido transformadas. 

    Lindolfo Weingärtner nasceu em 1923 em Águas Mornas -  SC. É pastor luterano, pro-

     fessor, escritor e poeta. Possui 27 livros pu-blicados, dentre os quais O Canto do Sabiá eoutros contos cristãos  (Blumenau: Grái-ca e Editora Otto Kuhr, 2003), de onde retira-mos o presente texto. 

    LU

    M

    I

    N

    A

    R

    ES

    “Aslam ”,

    de Joana istina. 

    Conheça maisAQUI. 

    http://joanacristinaarte.wix.com/joana#!ilustrarte/c12e2http://joanacristinaarte.wix.com/joana#!ilustrarte/c12e2http://joanacristinaarte.wix.com/joana#!ilustrarte/c12e2

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     Morte da Encrenqueira

     Judson Canto 

    Sabe a irma encrenqueira, aquela infati-gavel promotora de confusoes na igreja, quepode ser deinida como o friozinho na espi-

    nha do pastor ou a dor de denteda congregaçao? Éssa era Porf-ria, talvez o equivalente a mui-tos tratamentos de canal. 

    —  Mas ela era tao terrvelassim? 

    O diacono Padilha, que re-passava a um novo convertidocurioso a biograia da encren-

    queira, balançou a cabeça conirmando. Éleproprio fora uma das vtimas daquela ln-gua muitas vezes comparada a uma vbora,so que — todos concordavam — mais vene-nosa. Éla havia cismado que fora ele quemlhe dera o apelido de Morte na Panela, e naopoupava o coitado. Se ele se demorava umpouco mais no cumprimento a uma mulher,ela puxava alguem pelo braço e cochichava:

    “Ja vi esse ilme…”. Se ele abraçava um velhoamigo com maior efusao, ela comentava:“Nao sei nao…”. 

    —  Éla costumava encarar a pessoa bemde perto, e entao começava a falar mal dealguem, sempre repetindo: “Nao acha queeu tenho razao?”. É a pessoa que nao con-cordasse! — acrescentou o diacono Padilha,explicando o principal metodo da fofoquei-

    ra. — Depois ela procurava o irmao ou irmade quem havia falado mal e dizia quem in-ventara aquelas coisas fora a outra pessoa.Porque, se voce concordava, e comose tambem tivesse dito, nao e? 

    — Nao posso imaginar nada pior. — Pois imagine. Éla tinha mau ha lito. O diacono Padilha e o novo convertido

    estavam conversando no velorio de Porfria.

    Sim, ela adoecera meses antes. É, depoisuma subita melhora, ate voltara a frequen-tar os cultos, porem morreu passados al-guns dias, de forma tao repentina quantofora a sua recuperaçao. Alguem, com certa

    dose de maldade, comentou que ela haviamorrido de ansiedade por nao conseguircolocar as fofocas e murmuraçoes em dia. 

    A notcia de sua morte se espalhou, egente de toda a cidade, em nu mero suicien-te para encher a arca de Noe, vtimas de su-as intrigas, correu para a igreja, espremen-

    do-se nos bancos e corredoresem silenciosa confraternizaçao.Alguns, desconiados da sorte,beliscavam disfarçadamente ocadaver, para ver se ela nao es-tava ingindo. Depois se belisca-vam para ver se nao estavam so-nhando. 

    *** 

    No cemiterio, o pastor Rodolfo pi-garreou, ajeitou o no da gravata e começou: 

    —  Irmaos, estamos aqui neste culto deaçao de graças — todos ingiram nao perce-ber a gafe — pelo passamento da irma Por-fria… 

    Atras dele, um coral de cochichos com-posto por irmaos ansiosos para enterrar o

    passado instigava: — Anda logo! Anda logo! —  Vamos ler uma passagem da Bblia,

    no Évangelho de Joao, captulo onze… É novamente o coral de cochichos, com

    expressao de pavor: — Le outra! Le outra! Finalmente a sepultaram. Os irmaos

    nem haviam ainda deixado o cemiterio

    quando o ceu enegreceu e um raio fendeu aescuridao de alto a baixo. Ém seguida, umtrovao fez estremecer o lugar. 

    O diacono Padilha olhou para o alto e ex-clamou: 

    — Ih! Éla ja chegou la . 

     Judson Canto é editor, escritor, revisor e tra-

    dutor. Mantem o blog O Balido. Do autor, baixe em formato pdf o contoilustrado  Ate os Confins da Terra. CLIQUÉAQUI. 

    https://judsoncanto.wordpress.com/https://judsoncanto.wordpress.com/https://judsoncanto.wordpress.com/2014/04/18/presentinho-ate-os-confins-da-terra-judson-canto/https://judsoncanto.wordpress.com/2014/04/18/presentinho-ate-os-confins-da-terra-judson-canto/https://judsoncanto.wordpress.com/2014/04/18/presentinho-ate-os-confins-da-terra-judson-canto/https://judsoncanto.wordpress.com/2014/04/18/presentinho-ate-os-confins-da-terra-judson-canto/https://judsoncanto.wordpress.com/2014/04/18/presentinho-ate-os-confins-da-terra-judson-canto/https://judsoncanto.wordpress.com/

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     Jardim dos Clássicos 

    O Suave Milagre 

    Eça de Queirós 

    NÉSSÉ tempo Jesus ainda se nao afastarada Galileia e das doces, luminosas margensdo Lago de Tiberades: -  mas a nova dosseus milagres penetrara ja ate Énganim, ci-dade rica, de muralhas fortes, entre olivais evinhedos, no pas de Issacar. 

    Uma tarde um homem de olhos ardentese deslumbrados passou no fresco vale, eanunciou que um novo profeta, um Rabiformoso, percorria os campos e as aldeiasda Galileia, predizendo a chegada do reinode Deus, curando todos os males humanos.É enquanto descansava sentado a beira daFonte dos Vergeis, contou ainda que esseRabi, na estrada de Magdala, sarara da leprao servo De um decuriao romano so com es-tender sobre ele a sombra das suas maos; eque noutra manha, atravessando numa bar-ca para a terra dos Gerassenios, onde come-çava a colheita do balsamo, ressuscitara ailha de Jairo, homem consideravel e doutoque comentava os Livros na Sinagoga. É co-mo em redor, assombrados, seareiros, pas-tores, e as mulheres trigueiras com a bilhano ombro, lhe perguntassem se esse era, emverdade, o Messias da Judeia e se diante de-le refulgia a espada de fogo, e se o ladea-vam, caminhando como as sombras de duastorres, as sombras de Gogue e de Magogue - o homem, sem mesmo beber daquela aguatao fria de que bebera Josue, apanhou o ca-

    jado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativa-mente por sob o Aqueduto, logo sumido naespessura das amendoeiras em lor. Masuma esperança, deliciosa como o orvalho

    nos meses em que canta a cigarra, refrescouas almas simples: logo, por toda a campinaque verdeja ate A scalon, o arado pareceumais brando de enterrar, mais leve de mo-ver a pedra do lagar; as crianças, colhendoramos de anemonas, espreitavam pelos ca-minhos se alem, da esquina do muro, ou desob o sico moro, nao surgiria uma claridade;e nos bancos de pedra, as portas da cidade,

    os velhos, correndo os dedos pelos ios dasbarbas, ja nao desenrolavam, com tao sapi-ente certeza, os ditames antigos. 

    Ora entao vivia em Énganim um velho,por nome Obede, duma famlia pontiical deSamaria, que sacriicara nas aras do MonteÉbal, senhor de fartos rebanhos e de fartasvinhas - e com o coraçao tao cheio de orgu-lho como o seu celeiro de trigo. Mas um

    vento arido e abrasador, esse vento de de-solaçao que ao mando do Senhor sopra dastorvas terras de Assur, matara as reses maisgordas das suas manadas, e pelas encostasonde as suas vinhas se enroscavam no ol-mo, e se estiravam na latada airosa, so dei-xara, em torno dos olmos e pilares despi-dos, sarmentos, cepas mirradas, e a parraroda de crespa ferrugem. É Obede, agacha-

    do a soleira da sua porta, com a ponta domanto sobre a face, palpava a poeira, la-mentava a velhice, ruminava queixumescontra Deus cruel. 

    Eça de Queirós (1845 - 1900) nasceu em Póvoa de Varzim, no norte de Portugal. Foium dos maiores prosadores de nossa língua, liado ao Realismo português. Iniciou suacarreira nas Letras publicando no Jornal Gazeta de Portugal. Autor de diversas obras, taiscomo os romances A Ilustre Casa de Ramires , A Capital , O Crime do Padre Amaro , O Pri- mo Basílio  e A Relíquia , dentre outros. Suas obras estão traduzidas para mais de vinte idi-omas. O presente conto foi publicado originalmente em 1898, na Revista Moderna.

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    Apenas ouvira falar desse novo Rabi daGalileia, que alimentava as multidoes, ame-drontava os demonios, emendava todas asdesventuras - Obede, homem lido, que via-jara na Fencia, logo pensou que Jesus seriaum desses feiticeiros tao acostumados naPalestina, como Apolonio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simao, o Sutil. Ésses, mesmo nasnoites tenebrosas, conversam com as estre-las, para eles sempre claras e faceis nosseus segredos: com uma vara afugentam desobre as searas os moscardos gerados noslodos do Égito: e agarram entre os dedos assombras das arvores, que conduzem, comotoldos beneicos, para cima das eiras, a horada sesta. Jesus da Galileia, mais novo, commagias mais viçosas decerto, se ele larga-mente o pagasse, sustaria a mortandadedos seus gados, reverdeceria os seus vinhe-dos. Éntao Obede ordenou aos seus servosque partissem, procurassem por toda a Ga-lileia o rabi novo, e com promessa de di-nheiros ou alfaias o trouxessem a Énganim,no pas de Issacar. 

    Os servos apertaram os cinturoes de

    couro - e largaram pela estrada das Carava-nas, que, costeando o Lago, se estende ateDamasco. Uma tarde, avistaram sobre o po-ente, vermelho como uma roma muito ma-dura, as neves inas do monte Hermon. De-pois, na frescura duma manha macia, o lagode Tiberades resplandeceu diante deles,transparente, coberto de silencio, mais azulque o ceu, todo orlado de prados loridos,

    de densos vergeis, de rochas de poriro, ede alvos terraços por entre os pomares, sobo voo das rolas. 

    Um pescador que desamarrava a suabarca duma ponta de relva, assombreada dealoendros, escutou, sorrindo, os servos. ORabi de Nazare? Oh, desde o mes de Ijar, oRabi descera, com os seus discpulos, paraos lados para onde o Jordao leva as aguas. 

    Os servos, correndo, seguiam pelas mar-gens do rio, ate adiante do vau, onde ele seestira num largo remanso, e descansa, e uminstante dorme, imovel e verde, a sombra

    dos tamarindos. Um homem da tribo dosÉssenios, todo vestido de linho branco, apa-nhava lentamente ervas salutares, pela bei-ra da agua, com um cordeirinho branco aocolo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens decoraçao tao limpo, e claro, e candido comoas suas vestes cada manha lavadas em tan-ques puriicados. É sabia ele da passagemdo novo Rabi da Galileia, que como os Ésse-nios ensinava a doçura, e curava as gentes eos gados? O essenio murmurou que o Rabiatravessara o Oasis de Éngaddi, depois seadiantara para alem... 

    - Mas onde, "alem"? - Movendo um ramo de lores roxas que

    colhera, o essenio mostrou as terras dealem Jordao, a plancie de Moabe. Os servosvadearam o rio - e debalde procuraram Je-sus, arquejando pelos rudes trilhos, ate asfragas onde se ergue a cidadela sinistra deMacaur... No Poço de Yakob repousava umalarga caravana, que conduzia para o Égitomirra, especiarias e balsamos de Gileade; eos cameleiros, tirando a agua com os baldes

    de couro, contaram aos servos de Obedeque em Gadara, pela lua nova, um Rabi ma-ravilhoso, maior que Davi ou Isaas, arran-cara sete demonios do peito duma tecedei-ra, e que, a sua voz, um homem degoladopelo salteador Barrabas se erguera da suasepultura e recolhera ao seu horto. Os ser-vos, esperançados, subiram logo açodada-mente pelo caminho dos peregrinos ate Ga-

    dara, de altas torres, e ainda mais longe ateas nascentes da Amalha... Mas Jesus, nessamadrugada seguido por um povo que canta-va e sacudia ramos de mimosa, embarcarano Lago, num batel de pesca, e a vela nave-gara para Magdala. É os servos de Obede,descoroçoados, de novo passaram o Jordaona ponte da Filhas de Jaco. Um dia, ja comas sandalias rotas dos longos caminhos, pi-

    sando ja as terras da Judeia romana, cruza-ram com um fariseu sombrio, que recolhia aÉfraim, montado na sua mula. Com devotareverencia detiveram o homem da Lei. Én-

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    contrara ele por acaso esse profeta novo daGalileia que, como um Deus passeando naterra, semeava milagres? A adunca face dofariseu escureceu enrugada e a sua coleraretumbou como um tambor orgulhoso: 

    -  Oh, escravos pagaos! Oh, blasfemos!Onde ouvistes que existissem profetas oumilagres fora de Jerusalem? So Jeova temforça no seu Templo. De Galileia surgem osnescios e os impostores... 

    É como os servos recuavam ante o seupunho erguido, todo enrodilhado de dsti-cos sagrados -  o furioso Doutor saltou damula, e, com as pedras da estrada, apedre-jou os servos de Obede, uivando: Racca! Ra-cca!   e todos os anátemas rituais. Os servosfugiram para Énganim. É grande foi a des-consolaçao de Obede, porque os seus gadosmorriam, as suas vinhas secavam – e, toda-via, radiantemente, como uma alvorada pordetras de serras, crescia, consoladora echeia de promessas divinas, a fama de Jesusda Galile ia. 

    Por esse tempo, um centuriao romano,Publius Septimus, comandava o forte que

    domina o vale de Cesareia, ate a cidade e aomar. Publius, homem aspero, veterano dacampanha de Tiberio contra Partos, enri-quecera durante a revolta de Samaria compresas e saques, possua minas na Atica, egozava, como favor supremo dos deuses, aamizade de Flaco, legado imperial da Sria.Mas uma dor roa a sua prosperidade muitopoderosa, como um verme roi um fruto

    muito suculento. Sua ilha unica, para elemais amada que vida e bens, deinhava comum mal sutil e lento, estranho mesmo ao sa-ber dos esculapios e magicos que ele man-dara consultar a Sidon e a Tiro. Branca etriste como a lua num cemiterio, sem umqueixume, sorrindo palidamente a seu pai,deinhava, sentada na alta esplanada do for-te, sob um velario, alongando saudosamen-

    te os negros olhos tristes pelo azul do marde Tiro, por onde ela navegara de Italia, nu-ma opulenta galera. Ao seu lado, por vezes,um legionario entre as ameias apontava va-

    garosamente ao alto a lecha, e varava umagrande aguia, voando de asa serena, no ceurutilante. A ilha de Septimus seguia ummomento a ave, torneando ate bater mortasobre as rochas; - depois, com um suspiro,mais triste e mais palida, recomeçava aolhar para o mar. 

    Éntao Septimus, ouvindo contar, a mer-cadores de Corazim, deste Rabi admiravel,tao potente sobre os espritos, que saravaos males tenebrosos da alma, destacou tresdecurias de soldados para que o procuras-sem pela Galileia, e por todas as cidades daDecapolis, ate a costa e ate A scalon. Os sol-dados eniaram os escudos nos sacos de lo-na, espetaram nos elmos ramos de oliveira - e as suas sandalias ferradas apressadamen-te se afastaram, ressoando sobre as lajes debasalto da estrada romana, que desde Cesa-reia ate Lago corta toda a tetrarquia de He-rodes. As suas armas, de noite, brilhavamno topo das colinas, por entre a chama on-deante dos archotes erguidos. De dia inva-diam os casais, rebuscavam a espessura dospomares, esfuracavam com a ponta das lan-

    ças a palha das medas; e as mulheres, as-sustadas, para amansar logo acudiam combolos de mel, igos novos, e malgas cheiasde vinho, que eles bebiam dum trago, senta-dos a sombra dos sicomoros. Assim corre-ram a Baixa Galileia -  e, do Rabi, so encon-travam o sulco luminoso nos coraçoes. Én-fastiados com as inuteis marchas, desconi-ando que os judeus sonegassem o seu feiti-

    ceiro para que Romanos nao aproveitassemdo superior feitiço, derramavam com tu-multo a sua colera, atraves da piedosa terrasubmissa. A entrada das pontes detinhamos peregrinos, gritando o nome do Rabi,rasgando os veus as virgens: e, a hora emque os cantaros se enchem nas cisternas in-vadiam as ruas estreitas dos burgos, pene-travam nas sinagogas e batiam, sacrilega-

    mente com os punhos das espadas nas The-bahs, os Santos Armários de cedro que conti-nham os Livros Sagrados. Nas cercanias deHebron arrastaram os solitarios pelas bar-

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    bas para fora das grutas, para lhes arrancaro nome do deserto ou do palmar em que seocultava o Rabi - e dois mercadores fenciosque vinham de Jope com uma carga de ma-lobatro, e a quem nunca chegara o nome deJesus, pagaram por esse delito cem dramasa cada centuriao. Ja as gentes dos campos,mesmo os bravios pastores de Idumeia, quelevam as reses brancas para o Templo, fugi-am espavoridos para as serranias, apenasluziam, nalguma volta do caminho, as ar-mas do bando violento. É da beira dos eira-dos, as velhas sacudiam como taleigos aponta dos cabelos desgrenhados, e arroja-vam sobre eles as Mas-Sortes, invocando avingança de Élias. Assim tumultuosamenteerraram ate A scalon; nao encontraram Je-sus: e retrocederam ao longo da costa en-terrando as sanda lias nas areias ardentes. 

    Numa madrugada, perto de Cesareia,marchando num vale, avistaram sobre umouteiro um verde-negro bosque de lourei-ros, onde alvejava, recolhidamente, o ino eclaro portico dum templo. Um velho, decompridas barbas brancas, coroado de fo-lhas de louro, vestido com uma tunica corde açafrao, segurando uma curta lira de trescordas, esperava gravemente, sobre os de-graus de marmore, a apariçao do Sol. Debai-xo, agitando um ramo de oliveira, os solda-dos bradaram pelo sacerdote. Conhecia eleum novo profeta que surgira na Galileia, etao destro em milagres que ressuscitava osmortos e mudava a agua em vinho? Serena-mente, alargando os braços, o sereno velhoexclamou por sobre a rociada verdura dovale: 

    - Oh romanos, pois acreditais que em Ga-lileia ou Judeia apareçam profetas consu-mando milagres? Como pode um barbaroalterar a ordem instituda por Zeus?... Magi-cos e feiticeiros sao vendilhoes, que mur-muram palavras ocas, para arrebatar a es-portula dos simples... Sem a permissao dosImortais nem um galho seco pode tombarda arvore, nem seca folha pode ser sacudidana arvore. Nao ha profetas, nao ha mila-

    gres... So Apolo Delico conhece o segredodas coisas! 

    Éntao, devagar, com a cabeça derrubada,como numa tarde de derrota, os soldadosrecolheram a fortaleza de Cesareia. É gran-de foi o desespero de Septimus, porque suailha morria, sem um queixume, olhando omar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, cu-rador dos languidos males, crescia, sempreconsoladora e fresca, como a margem datarde que sopra do Hermon e, atraves doshortos, reanima e levanta os açucenas pen-didas. 

    Ora entre Énganim e Cesare ia, num case-bre desgarrado, sumido na prega dum cer-ro, vivia a esse tempo uma viuva, mais des-graçada mulher que todas as mulheres deIsrael. O seu ilhinho unico, todo aleijado,passara do magro peito a que ela o criarapara os farrapos da enxerga apodrecida, on-de jazera, sete anos passados, mirrando egemendo. Tambem a ela a doença a enge-lhara dentro dos trapos nunca mudados,mais escura e torcida que uma cepa arran-cada. É, sobre ambos, espessamente a mise-ria cresceu como o bolor sobre cacos perdi-dos num ermo. Ate na lampada de barrovermelho secara ha muito o azeite. Dentroda arca pintada nao restava grao ou codea.No Éstio, sem pasto, a cabra morrera. De-pois, no quinteiro, secara a igueira. Taolonge do povoado, nunca esmola de pao oumel entrava o portal. É so ervas apanhadasnas fendas das rochas, cozidas sem sal, nu-triam aquelas criaturas de Deus na terra es-colhida, onde ate as aves maleicas sobravao sustento. 

    Um dia um mendigo entrou no casebre,repartiu do seu farnel com a mae amargura-da, e um momento sentado na pedra da la-reira, coçando as feridas das pernas, contoudessa grande esperança dos tristes, esseRabi que aparecera na Galileia, que de umpao no mesmo cesto fazia sete, e amava to-das as criancinhas, e enxugava todos osprantos, e prometia aos pobres um grande eluminoso Reino, de abundancia maior que a

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    corte  de Salomao. A mulher escutava, comolhos famintos. É esse doce Rabi, esperançados tristes, onde se encontrava? O mendigosuspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o de-sejavam, que se desesperançavam! A suafama andava por sobre toda a Judeia comoo Sol que ate por qualquer velho muro seestende e se goza; mas para enxergar a cla-ridade do seu rosto, so aqueles ditosos queo seu desejo escolhia. Obede, tao rico, man-dara os seus servos por toda a Galileia paraque procurassem Jesus, o chamassem compromessa a Énganim; Septimus, tao sobera-no, destacara os seus soldados ate a costado mar, para que buscassem Jesus, o condu-zissem, por seu mando, a Cesare ia. Érrando,

    esmolando por tantas estradas, ele toparaos servos de Obede, depois os legionariosde Septimus. É todos voltavam como derro-tados, com as sandalias rotas, sem teremdescoberto em que mata ou cidade, em quetoca ou palacio, se escondia Jesus. 

    A tarde caa. O mendigo apanhou o seubordao, desceu pelo duro trilho, entre a ur-ze e a rocha. A mae retomou o seu canto,

    mais vergada, mais abandonada. É entao oilhinho, num murmurio mais debil que oroçar duma asa, pediu a mae que lhe trou-xesse esse Rabi, que amava as criancinhasainda as mais pobres, sarava os males aindaos mais antigos. A mae apertou a cabeça es-guedelhada: 

    - Oh, ilho! É como queres que te deixe, eme meta aos caminhos, a procura do Rabi

    da Galileia? Obede e rico e tem servos, e de-balde buscaram Jesus, por areais e colinas,desde Corazim ate ao pas de Moabe. Septi-mus e forte, e tem soldados, e debalde cor-reram por Jesus, desde o Hebron ate ao mar.Como queres que te deixe? Jesus anda pormuito longe e a nossa dor mora conosco,dentro destas paredes, e dentro delas nosprende. É mesmo que o encontrasse, como

    convenceria eu o Rabi tao desejado, porquem ricos e fortes suspiram, a que desces-se atraves das cidades ate este ermo, parasarar um entrevadinho tao pobre, sobre en-

    xerga tao rota? A criança, com duas lagrimas na face

    magrinha, murmurou: -  Oh, mae, Jesus ama todos os pequeni-

    nos. É eu ainda tao pequeno, e com um maltao pesado, e que tanto queria sarar! 

    É a mae, em soluços: 

    -  Oh, meu ilho, como te posso deixar?Longe sao as estradas da Galileia, e curta apiedade dos homens. Tao rota, tao tropega,tao triste, ate os caes me ladrariam da portados casais. Ninguem atenderia o meu reca-do, e me apontaria a morada do doce Rabi.Oh, ilho! Talvez Jesus morresse... Nem mes-mo os ricos e os fortes o encontram. O ceu otrouxe, o ceu o levou. É com ele para sem-

    pre morreu a esperança dos tristes. De entre os negros trapos, erguendo as

    suas pobres maozinhas que tremiam, a cri-ança murmurou: 

    - Mae, eu queria ver Jesus... É logo, abrindo devagar a porta e sorrin-

    do, Jesus disse a criança: - Aqui estou. 

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    O  jovem aspirante a escritor estava precisan-do de esperança. Muitas pessoas lhe haviam ditopara desistir. “É quase impossvel conseguir que

    seu trabalho seja publicado”, disse-lhe um orien-tador. “A menos que voce seja uma celebridadenacional, os editores nem sequer falarao com vo-ce”. Outro avisou: “Éscrever toma muito tempo.Alem disso, voce nao vai querer colocar todos osseus pensamentos no papel”. 

    No incio ele ouviu. Concordou que escreverera um desperdcio de esforço e voltou sua aten-çao a outros projetos. Mas de alguma forma, a ca-neta e o bloco de notas eram como o cafe e a Coca-Cola para o viciado em palavras. Éle preferia es-

    crever a ler. Éntao escrevia.Quantas noites ele passava naquele sofa, em

    um canto do seu apartamento, misturando suacoleçao de verbos e substantivos? É quantas ho-ras sua mulher lhe fez companhia? Éle fazendoartesanato com as palavras. Éla bordando emponto de cruz. Por im, ele terminou um manus-crito. Cru e cheio de erros, mas terminado. Éla lhe deu o empurrao que faltava. —   Por quevoce nao o envia? Que mal ha nisso?  

    Éntao ele fez isso. Énviou o manuscrito a quin-ze diferentes editores. Énquanto o casal espera-va, ele escrevia. Énquanto ele escrevia, ela borda-va. Nenhum deles tinha muitas expectativas, mas

    ambos esperavam. As respostas começaram achegar. “Sentimos muito, mas nao aceitamos ma-nuscritos nao solicitados”. “Éstamos devolvendo

    o seu trabalho. Felicidades”. “Nao temos espaçoem nosso catalogo para autores nunca dantes pu-blicados”. 

    Ainda tenho essas cartas. Ém uma pasta, emalgum lugar. Éncontra -las levaria algum tempo.No entanto, encontrar o bordado de Denalyn naoleva tempo algum. Para ve -lo, tudo o que tenhoque fazer e levantar os olhos do meu monitor eolhar para a parede. “Éntre todas as artes nasquais os sabios sao proicientes, a maior obra-prima da natureza e escrever bem”. 

    Com isso ela me deu tempo para que a cartanumero quinze chegasse. Um editor tinha ditosim. Aquela carta tambem esta emoldurada. Qualdos dois quadros signiica mais para mim? O pre-sente da minha esposa ou a carta do editor? Opresente, claro. Ao dar-me o presente, Denalyndeu-me esperança. 

    O amor faz isso. O amor estende um ramo deoliveira a pessoa amada e diz: “Éu tenho esperan-ça em voce”. 

    _________________________________________________________ 

    Éxtrado de “Quando a Sua Esperança é Peque-na” (do livro “Um Amor que Vale a Pena”, CPAD,2003). 

    rte de Escrever

    Max Lucado

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    O Poeta do Salmo exilado

     J.T.Parreira

    O rio nao parecia correr no seu leitonatural, circulava pelacidade, por entre as casase dava a impressao deestar ao nvel dasconstruçoes maisrectangulares, relectindoas faces dos edifcios. 

    Gedalias, um anciaode olhar ja acomodado,sentava-se ao lado deQuebar, um canal navega-vel, a jusante do Éufrates,e via subir e descer com ovento, ate arrastarem asfolhas mais altas nasaguas, os juncos que separeciam com saltadoresno momento do mergu-lho. 

    Nas pedras, junto de si, tinhapousada uma tabua de barro com inscri-çoes da historia recente e um papiro enve-lhecido no qual se via que ja inscrevera al-gumas frases em aramaico. O velhinhoolhava-as, e quando o fazia espaçadamenteera com uma tristeza nos cantos da boca,como se alguma coisa tardasse em chegar. 

    É airmava a si proprio: «Éstes versosserao feitos como se esculpisse o sentir datristeza, a lamentaçao certa ha -de chegarperfeita, do meu estado de esprito.» 

    Éra um velho que trajava um longo ves-tido gasto, com motivos sumerios, e abriga-va-se da humidade do ar com uma pele decarneiro surrada, «Apesar das aparencias,sou um cativo muito bem tratado» – pensa-va, varias vezes, com algum reconhecimen-to, e poucas vezes falava de vingança. 

    Fizera parte da primeira deportaçao,

    era um bom artice, a quem reconhecerama sua valia proissional para trabalhar emartes decorativas. Agora, porem, ja nao tra-balhava. 

    Tinha as sandalias cheias de lama, por-que costumava percorrer os montes de ter-ra que bordejavam as aguas do rio. 

    O rosto evidenciava, com rugas, que ha-via percorrido uma es-trada na vida que naofora atapetada de lrios.

    Tinha, no entanto,uma boa igura, e asmaos, quando andava,pareciam imprimircalma a todo o corpo. 

    Vivia num lugar queas autoridades babiloni-cas tinham destinadoaos judeus deportados.Éstes viviam em casasproprias, alguns ate ha-viam enriquecido com oesforço da sua acultura-çao e integraçao, viven-do nao como escravos,mas semi-livres, empontos estrategicos um

    pouco acima das margens do Quebar. A suacasa e a da famlia estava ao lado de umgrande salgueiro, que em ins de tarde semvento dava bastante calma ao olhar, embo-ra nao acrescentasse nenhuma novidade,por isso nos olhos de Gedalias havia, porvezes, uma certa acomodaçao. 

    Mas, na maior parte do tempo em queestava sozinho, os olhos iam buscar ao fun-do do rio sentimentos tristes, e, no entanto,

    davam a impressao de estarem a acompa-nhar o subtil curso das aguas. 

    Como quase sempre podia fazer, estavasentado ao lado do rio, e a luminosidadeque vinha da agua, compartilhava-a no seurosto. Nesses momentos baixava a cabeça eolhava em direcçao do seu manuscrito. 

    Trouxeram-nos, um dia, por volta doanoitecer, das suas terras da Palestina, ao

    velhinho com uma dezena de milhar deoutros judeus, e a partir de entao aquelescanais da Babilonia eram como uma praçaonde juntavam os soluços e as palavras

    Michele Myers 

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    castradas. Lembrava-se perfeitamente do dia, Jeru-

    salem apos um cerco breve capitulou no dia16 de Março de 597, sem resistencia dignade nota. 

    O rio possua recantos aprazveis e ossalgueiros quando se relectiam no retratocriado no espelho das aguas, faziam-no demargem a margem em alguns pontos. 

    Uma parte do seu estado de espritoquereria fazer caber esse sentimentoestetico no que viesse a escrever, a outra,era mais dramatica, prendia-se com oaviltamento natural do seu estado deexilado judeu, prendia-se com a religiao. 

    — Se eu fosse o nosso grande rei David,o salmo ja arderia de beleza em todas assuas palavras. — Disse, um dia, a um moçoque lhe perguntara o destino que daria aomanuscrito.

    — Éu sou apenas um velho que querdeixar um pedaço de historia para la dasnossas runas. Mas talvez seja ja muitotarde. — Arrematou, voltando de novo a suacontemplaçao. 

    —  Venha, meu pai. —  Julgar-se-ia que ailha o teria acordado, quando o veiochamar. —  Venha preparar o Shabat, queapesar de estarmos em terra estranha,temos aqui de perpetuar Siao. 

    A noite caa sobre o Éufrates e o Quebarcomo uma peça unica, compacta, a propriasombra tenue dos salgueiros ja nao se dis-tinguia, mais tarde seria somente o murmu-

    rar das aguas que indicariam, no escuro, ovolume espesso dos rios. 

    Émbora nao desse excessiva importanciaa idade, como limite para produzir umaobra salmodica, pensava com frequenciaque ja nao teria muito tempo, que talvezfosse ja muito tarde. 

    —  Ainda quero sair daqui, regressar aminha terra. — Desejava sempre que a con-

    versa se metia por a, embora la nao tivesseas margens de um rio como aquele onde sepoderia sentar. Sentar-se-ia debaixo do al-pendre de uma casa. É pensava assim sem-

    pre que se animava com uma possvel lon-gevidade. 

    Havia rumores de que os persas, sob omando de Ciro, poderiam estar perto de in-vadir Babilonia. É esses nao eram propria-mente barbaros. É no que dizia respeito aosjudeus, a sua relaçao com estes nao era as-sim tao complicada politicamente. 

    Mas um poema sobre o exlio obcecava-oe estava dentro das suas prioridades de an-ciao. 

    Pensava muito no assunto, e talvez porsaber que o mesmo nao acontecia com ou-tros da sua idade, e, sobretudo, com algunsmuito mais novos, que ja haviam nascidoem terra estranha, muito mais pensava numretrato poetico do exlio, numa forma quesintetizasse a tristeza e o orgulho nacionais. 

    Foi nesse instante que um dos ilhos, omais velho, lhe interrompeu o que estava apensar. Éle falava de um modo paciicado eparecia inquieto, mais no olhar do que navoz. 

    — Pai, queria que me desse uns momen-

    tos da sua atençao. Ésse seu ilho era o predilecto, nao por

    ser o primogenito, mas por ser rigorosocom a sua vida secular, com ortodoxia deprincpios para com a comunidade, cumpri-dor da lei Mosaica e um excelente musico.Tocava lira na perfeiçao. 

    —  Ja decidi, ha muito tempo, que naovou tocar lira para a festividade dos nossos

    opressores. No entanto, insistem. Vou deba-ter-me com problemas. 

    — Deus reservou-te uma tarefa, que naosera certamente tocares o cantico doSenhor em terra estranha. — Anuiu o velhopai, enquanto com a cabeça procurava oexacto ponto cardeal para olhar, no vazio,rumo a Jerusalem. 

    —  Nao sou o unico a pensar destamaneira —  informou o ilho —  Ha muitosjudeus a pensarem o mesmo. 

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    É, no entanto, estavam todos alitos coma situaçao. Éra uma honra que os babiloniosos considerassem muito bons musicos e sedeliciassem a ouvir as liras dedilhadas poruns dedos que so sabiam, agora, contarsalmos de angustia e tristeza, mas semprecom aquele ritmo vivo que um dia izeraMiria executar uma remota dança ou Davidsaltar a frente da Arca. 

    — Talvez. —  Concordou o velho —  Massempre e o cantico do Senhor em terra es-tranha. Por muito que ambicionemos naopoderemos tirar desta terra um cantico pa-ra o Senhor. — Repetiu, enquanto um ventoinesperado fez uma passagem rapida pelossalgueiros, como uma musica agreste, de-frontando as ramagens. É entre as suas pal-pebras, ja muito lacidas, começaram a bri-lhar umas pequenssimas perolas. 

    Uma nuvem mais branca, queria agorainstalar-se entre as mais escuras que corri-am, ja havia um bocado, pelo ceu. Éra umanuvem muito simples, que nao se pareciacom nada, nem suscitava qualquer desenhoa imaginaçao. 

    O velho talvez pudesse agora voltar parao seu stio ao lado do rio, e levar os seus ins-trumentos de escrita onde esperava aindaescrever alguma coisa a favor do mundoque lhe roubaram. A lua era uma quilha deum barco a subir e a descer na luminosida-de de espuma, quase alva, de algumas nu-vens. Nessa noite, cheia do rumor com queas aguas, as vezes, substituem a ventania,

    sentia-se com pensamentos inspirados. —   Junto dos rios da Babilónia nos assen-

    tamos e choramos  —  disse em voz alta, eachou que este começo do poema condiziacom a verdade, porque ja presumia a liçaode quanto mais poetico mais verdadeiro.Poderia ser mais narrativa que poesia, masera a verdade sentida. 

    — Filho — olhou para o primogenito — 

    Nao cres que esta e a melhor posiçao queactualmente nos retrata, como um povo?

    Havia no entanto, que meter dentro doparagrafo, dissera-lhe o ilho, a saudade, a

    religiosidade e tambem um sentido comuni-tario. Fizera bem em referi-lo, porque o ve-lho concluiu os versos com «lembrando-nosde Sião.» 

    Depois veio aquela referencia aos sal-gueiros. Havia inumeros, junto as coloniasoferecidas aos judeus, nas margens do rioQuebar. «Nos salgueiros penduramos nos-sas harpas.» 

    Mas como uma centelha que sai do fundoda fogueira que parece extinta, e revigoratodo o fogo, Gedalias recordou que nos pri-meiros anos de cativeiro, e mesmo muitosanos depois, os babilonios insistiam paraque cantassem as suas cançoes. Éra verda-de, que tinham permissao para celebrar assuas festas, embora so cultivassem uma, aFesta das Lamentaçoes aliada ao novo cos-tume de orarem com os olhos voltados paraJerusalem, mas tocar para aqueles que oslevaram ao exlio, jamais. 

    É, assim, começou a escrever:«Porquanto aqueles que nos levaram cati-vos, nos pediam uma canção; e os que nosdestruíram, que os alegrássemos, dizendo:Cantai-nos um dos cânticos de Sião.» 

    Mas como numa terra impura, o homemse guarda de contaminar o corpo, sem lugarde culto, sem referencias fsicas para situara sua religiao, a nao ser no plano dos costu-mes, dando maior importancia ao Sabado ea Circuncisao, o velho e todos os outros ju-deus que puderam, enim, regressar a Jeru-salem, tinham imenso orgulho em poder

    airmar, como as palavras desse poema, asua recusa: «Mas como entoaremos o canti-co do Senhor em terra estranha? ».  ____________________________________________________ 

    Do livro Como quem ia para longe. Baixe gratuita-

    mente seu exemplar AQUI . 

     J.T.Parreira é poeta, escritor e ensaísta português.

    Autor de seis livros de poesia e diversos e-books.Éscreve desde 1964 na revista Novas de Alegria. 

    Mantem o blog Poeta Salutor. 

    http://poesiaevanglica.blogspot.com.br/2015/07/como-quem-ia-para-longe-contos-de.htmlhttp://poesiaevanglica.blogspot.com.br/2015/07/como-quem-ia-para-longe-contos-de.htmlhttp://poetasalutor.blogspot.com.br/http://poetasalutor.blogspot.com.br/http://poetasalutor.blogspot.com.br/http://poesiaevanglica.blogspot.com.br/2015/07/como-quem-ia-para-longe-contos-de.html

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    RECIFE

     

    MENINO

     

    Ao toque do cada sino remeto à vida do meu Recife - menino. Nos quintais quase todos os frutos: os que do oriente foram trazidos e os que já se encontravam no chão do descobrimento, 

    as cores dos frutos nos quintais das casas celebravam a vida em todas as nuances e eu adormecia sob aquele manto cintilante. 

    De tempos em tempos 

    loriam as mangabeiras, depois era a vez das mangas de amarelo, rosa e verde vestidas, também as goiabeiras, os laranjais e abacateiros. Vivíamos sob a exuberante copa dos jambeiros, e à espera de colher as bananas d’água, da prata e do ouro. 

    Recife era umidamente adornada. Outros frutos como araçás pitombas e cajás enfeitavam 

    as mesas tropicais de Dezembro. 

    Em junho, a chuva caía ina como uma oração. As ruas da cidade icavam limpas exibindo um fulgor quase. As águas escorriam das biqueiras, e era um banho dos luidos celestiais feitos na maior brincadeira. 

    As tardes recebiam o enfeite das lores, bom dia, boa tarde, boa noite, buganvílias, jasmins, margaridas,

     

    dálias e sempre-vivas. Sempre as trazia comigo, pois as amava e as lores gostam de nossos amores. 

    Entre as famílias a morte quando chegava era por natural decorrência e sem violência levava quem ela queria. 

    Um véu de estrelas forrava todo o irmamento. 

    Era augusto este recorte que uma menina via. Na varanda icavam o pai, a mãe, tios e avós 

    a discorrer sobre fatos decorridos ou imaginários. Do tempo dessa casa antiga para mim ninguém partiu deinitivamente. Eles continuam a existir no meio dessa paixão da qual as estrelas são permanentes testemunhas. 

    POR MOR

     

    Foi tanto o vexame, lado a lado com dois vagabundos 

    expulsos fora de portas. Mais que tudo: 

    sendo o pior de todos eles. Chistes, esgares, - porque te 

    apanharam? 

    Desfeito de formas diante de estranhos homens 

    de fala obscura. 

    Um deles me lançou uma praga alucinado de rir uma risada sem dentes, 

    até que se exumou de vez. 

    Lágrimas em óleo quente. Mais que as lanças rasgando-me juntas 

    e descolando carne da carne, era a vergonha absoluta. 

    Entardecia, virava-me 

    o sol as costas. Monções de poeira 

    sopravam para longe toda-paixão pelos homens. 

    Meu ouvido dizia: adormece !Yeshua! Até que as cordas do coração 

    me soltaram e a descer, a descer, 

    vertiginoso preparo para a permanência na 

    região do silêncio sem respostas 

    A noite desceu compacta e 

    Jerusalém mergulhava escura no sangue de um homem sem culpas

    VISIT ÇÃO

     

    Existe um perfume onde Tu estás, fragrância de rosas, alguma nota cítrica: 

    toques leves de malva e cássia. 

    Além do perfume com que te anuncias, 

    uma luz diáfana. Vens assim em suave aragem pela minha sala. 

    em suave aragem pela minha sala. 

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    Julia Lemos é natural de Caruaru, interior do estado dePernambuco, nordeste do Brasil. Radicada no Recife, tem forma-

    ção em Comunicação Social, nas áreas de Publicidade e Propa-

    ganda e Jornalismo, pela Universidade Federal de Pernambuco,

    atuando como Coordenadora de Comunicação Social do Ministé-

    rio da Saúde, bem como repórter e redatora no Jornal do Comér-

    cio e na Televisão Universitária .

    Atriz, estreou no teatro infanl em 1977 com “Pedacinho de Lua” (de Tonico Aguiar).

    Em Olinda, fez parte do grupo de estudos do teatro de Bertold Brecht do Teatro Hermilo

    Borba Filho, atuando em diversas encenações. 

    Co-autora do livro de receitas  A Cozinha Estrangeira na Terra do Caju, com prefácio

    de Gilberto Freyre, 1985; publicou os livros de poesia Carmem Antonio Migliacchio En-louqueceu (Edições Pirata- Fundação Gilberto Freyre), e  A Casa Estrelada, pela Fundação

    de Cultura de Pernambuco, através da CEPE. Parcipou de diversas antologias.

    É pós-graduada em Literatura Brasileira pela Faculdade Frassine do Recife e mestra

    em Estudos Brasileiros pela Universidade de Lisboa. Tem inédito o livro de poesias  A Ex-

    posição dos Sóis e Poemas ao Rei. 

    UM OLH R INEXTINGUÍVEL 

    Deus se amplia, 

    além do meu espaço, 

    meu gueto, meus guias. 

    Ele vai muito além 

    de meus esquadros, 

    usando régua e compasso 

    que desconheço. 

    Na matemática simples do dia, 

    enquanto ainda estou no começo, 

    Ele está lá no futuro 

    realizando promessas, 

    que mais próximas do meu 

    passado já se encontram. 

    Para melhor entende-lo,

     

    serve-me de espelho 

    a ísica quântica. 

    Por isto, minha palavra 

    traz à existência o que não existe, 

    e, como as águas, símbolo do seu Espírito, 

    vou perfurando fendas na Rocha sobre 

    o precipício. 

    Olho para Deus 

    endo-o criar mundos dentro de outros mundos, 

    e a mover-se na velocidade de uma luz 

    que neste momento já extinguiu tantas estrelas. 

    C NDEI

    O olhar soturno que Deus me deu não é para ferir o mundo 

    mas para amá-lo. Amo-o com a candura dos olhares límpidos 

    e subo ao mais alto ediício de onde eu possa ser a candeia 

    que ilumine toda a cidade. 

    LIT NI

    Trago dentro de mim uma oração como uma litania. Pai, não trago palavras fáceis, 

    em vão se amontoam os pedidos, coisas. Não era isto que eu queria 

    mas a ternura. 

    Hoje o céu está como que de chumbo,  vertigem dos joelhos 

    terem subido de repente. 

    Guardo em mim a ânsia da terra que me foi prometida. 

    -Não eram os frutos maiores aqueles 

    trazidos pelos espias? 

    Pai, não vim aqui fazer orações compridas. 

    Sobre estes territórios tão vigiados transitam 

    os meus sonhos jamais olvidados. 

    DI NTE DO TRONO 

    Quando cessarem 

    as esperanças e o quartzo não mais reletir 

    meu rosto prismático, quando todos os venenos 

    para curar ou para ferir acabarem 

    vou-me para diante de ti. 

    Havendo de chegar não lhe farei perguntas. 

    - Pai,

     

    respondi tudo de forma poética. Minha vida 

    foi de boemias frasais, e iz muitos amigos assim. 

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    cobras & lagartos 

    Manuel Adriano Rodrigues 

    ha pessoas que ja cantaram conosco velhos hinarios pentecostais e nos disseram distancia e outros disseram de nos cobras & lagartos sem nunca terem visto o vestgio de um vcio qualquer na nossa boca ja houve quem nos dissesse que temos o habito de ter os olhos abertos e que se foram embora com medo da diferença outros mais proximos que no passado viram o nosso interior 

    temendo a nossa nudez 

    icaram calados e nao nos quiseram abraçar mas tambem ja houve quem nos tenha dito  Amor e isso, e o que importa 

    Múmia 

    Rosa Leme 

    Éu era uma mumia no meio de Outras mumias. 

    Éu entrei descontrolada No grande salao 

    Éu falava gritava, gritava... Éu gritava, mas era em vao. 

    Ninguem me ouvia. Éstava sozinha. 

    As imagens icavam inertes! Varias delas eram de argila. 

    Outras Mumias De louças valiosas... 

    As imagens eram de prata e ouro, De artistas habilidosos. 

    Obra das maos dos homens. Imagens, apenas imagens. Tem olhos, mas nao veem; 

    Tem ouvidos, mas nao ouvem; Tem boca, mas nao falam; Nariz tem, mas nao cheiram; 

    Tem maos, mas nao apalpam; Tem pes, mas nao andam; 

    Éu era uma mumia em forma humana. Éu ja fui uma mumia 

    No meio de uma multidao. Hoje sou apenas uma mulher 

    Que encontrou a salvaçao. 

     

    de ndrade  

     sem fé é impossível agradar a Deus ssim foi escrito pelo autor aos Hebreus  é necessária para crer que Ele existe 

     preciso para quem na oração persiste  galardão daquele, que até o im resiste...  

    za nas provas e nas tentações 

     dos que sofrem grandes provações  mulheres e homens que nos dão lições... 

     que venceram e foram campeões.  dizer de Abraão, nosso pai na fé, 

    m falar de Abel, Enoque e Noé...  

    nas promessas do Jeová Jiré!  xperimentam escárnios, açoites, cadeias e prisões. inda assim com fé dentro dos corações, 

    dos no fogo, no deserto, na cova dos leões 

     

    suas falhas e fraquezas tiraram resistência 

     que enfrentaram com toda a persistência rendo a prática da fé na obediência... 

    ndo apedrejados, serrados, mortos ao io da espada;  desistiram nem abandonaram a sua jornada 

     na esperança sua fé aperfeiçoada!!! 

    DEUS S BE HOR

    William Vicente Borges 

    Deus sabe a hora de dizer SIM e então sentimos a brisa da sua compreensão 

    Deus sabe a hora de dizer NÃO 

    e sentimos a fragrância da sua sabedoria  Deus sabe a hora de dizer BASTA  

    e todas as nossas dores se vão Deus sabe a hora de dizer AGORA  

    e nossos joelhos se dobram em gratidão Deus sabe a hora de dizer CALMA  

    e nossos medos são jogados ao chão Deus sabe a hora de dizer MUDA  

    e nossa alma segue outra direção 

    Deus sabe a hora de dizer NÃO TEMAS  e sentimos o poder de suas mãos 

    Deus sabe a hora de dizer EU TE AMO  e se prestarmos a atenção veremos 

    que o diz a toda hora! 

    Súplica de poeta May Sousa

     

    Deus, 

    Permita-me ser: Legenda tua! 

    Fazer-te conhecido, com tinta e papel. 

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     Joed Venturini  

    Um grupo de garotos passou correndopela frente da porta, enquanto o velho Éuri-

    co a fechava para sair. Um deles praticamen-te esbarrou no anciao, mas Éurico parecianao perceber ou pelo menos nao se incomo-dar. Éra parte de sua maneira de reagir aoambiente. É seu estilo poderia serconsiderado perfeito. Fazia jaquinze anos que vivia naque-la favela e nunca fora assal-tado! Ninguem o molesta-

    va. Vivia so e sossegado eera respeitado. Saa pouco, pois era

    aposentado. Ia metodica-mente a igreja evangelicamais proxima, mas tirandoisso, e as sadas diarias a pa-daria e semanais ao supermer-cado, era ali mesmo, nas estreitasruas da comunidade pobre, que fazia suavida. O velho era conhecido como uma espe-cie de operador de milagres. Distribuacompaixao como o orvalho matinal e sua es-pecialidade, se e que se poderia chamar as-sim, era recuperar jovens desviados. É nasua favela havia muito material de trabalho. 

    O anciao tinha uma estrategia pouco co-mum. Poderia se dizer que ganhava pelaexaustao. Primeiro escolhia, em oraçao, umjovem que estivesse mesmo muito mal. Émgeral eram delinquentes envolvidos com otraico de drogas e membros de gangues dafavela. Éntao iniciava uma maratona de je-jum e oraçao por aquele jovem. Quandosentia que tinha suiciente cobertura deoraçao, “atacava”. De tal forma procurava oseu alvo que as vezes virava sua sombra. Émregra era rejeitado de incio, mas ia ganhan-do terreno ate que o jovem acabava ouvindoo homem. 

    Mesmo com meios tao arcaicos a psico-logia moderna, o anciao tinha resultados

    surpreendentes. Podia citar uma lista res-peitavel de nomes de jovens que tinhamdeixado uma vida que levaria a uma morteprematura e que tinham sido recuperadosao ponto de se casarem, terem emprego eserem ieis membros de igreja, e ate doisque eram pastores. 

    Mas Éurico nao fazia propaganda de seutrabalho. Seria contrario ao seu estilo e per-sonalidade. Alem de mais ele considerava

    seu ministerio como uma simples re-tribuiçao pelo que ele mesmo

    recebera. Fora, em temposidos, um alcoolatra que es-

    tragara a vida e desgraçaraa famlia. Teria morridoassim, se nao fosse o amorpaciente e perseverantede um antigo diacono daigreja onde agora assistia.

    Éssa era sua historia. Éssaera sua vida. 

    Ultimamente, porem, o ho-mem andava um tanto preocupa-

    do e nervoso. O caso que tomara parecia

    nao se resolver como os anteriores. Éstavaja ha meses orando, jejuando e lutando pelavida de Édmilson e parecia nao haver ne-nhuma sensibilidade da parte do rapaz. Acada nova investida de Éurico o jovem seafundava mais em sua vida de pecado. Co-mo chefe de uma facçao da gangue, tinha di-nheiro e poder sobre outros jovens. Nao seimportava com nada a nao ser usar e abusar

    de seu poder sobre os assustados morado-res da favela. Passear de carro e trocar denamorada eram outros de seus passatem-pos e, claro, tudo bem regado a chope e co-cana. 

    Éurico nao era homem de desistir facil.Nao sentira ainda que fosse tempo de dei-xar de lutar pela vida e salvaçao de Édmil-son e por isso mais uma vez apos uma se-

    mana de intensa oraçao, ele se dirigia ate olocal aonde sabia que poderia encontrar orapaz. O jovem nao estava em casa. Fora visto indo

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    para o topo do morro, aonde tinham umacasa que servia como uma especie de prisaopara inimigos capturados ou devedores quenao pagavam suas remessas de droga. Éraali, no terraço, que costumavam executaraqueles que tinham atravessado o caminhodos lderes do pedaço. Éurico estremecera,

    mas nao de medo. Éstava seguro. Temia pe-lo seu alvo. Éra pelo moço que sentia medo. 

    Subiu custosamente o morro, parandovarias vezes. A idade ja nao facilitava. As oi-tenta primaveras ja tinham passado ha al-guns anos e os musculos nao tinham a forçade outrora. Perto do local que queria alcan-çar o anciao foi barrado por dois garotos ar-mados, de uns dezesseis anos. 

    — É a vovo, aonde e que pensa que vai? — Vim ver o Édmilson — Éxplicou Éuri-

    co com toda a naturalidade. —  Manero —  riu o outro garoto - O ve-

    lho, ce num acha que ta velho demais praandar cheirando? 

    Éurico baixou a cabeça cansada e levan-tando-a, itou o rapaz bem nos olhos, de talforma que o fez icar sem jeito. Foi entao

    que o outro notou a Bblia na mao do velhoe reagiu: 

    — Pode passar velho, vai logo! Mais uma vez a superstiçao local se fazia

    sentir. Os traicantes, por regra, nao se meti-am com “crentes” porque diziam que davaazar. As evidencias conirmavam. Éuricoavançou ate a casa. Éra um casarao abando-nado. Por todo o lado cheirava a dejetos hu-

    manos e havia ratos andando em plena luzdo dia. Um despacho de macumba bem naentrada terminava de compor o quadro ma-cabro. 

    O anciao nao hesitou. Subiu as escadasgastas. Nao havia ninguem no 1º andar, nemno 2º. Ao chegar ao terraço ja o velho arfavanovamente. Parou e viu um jovem negro, al-to, de soberbo aspecto, perto de um corpo

    que jazia no chao em meio a uma poça desangue. Ao pressentir a presença do homemo jovem apontou a arma com ar furioso eolhos arregalados onde se evidenciavam si-

    nais da u ltima dose de droga. Éurico levantou a Bblia em sinal de

    identiicaçao. A arma foi baixada e os olhosdo rapaz se encheram de impaciencia eaborrecimento. 

    — Ce num me larga velho? Me deixa, po!To cansado de te aturar! Ve se me esquece! 

    — Boa tarde, Édmilson! — o anciao res-pondeu em tom triste. 

    Um silencio pesado se seguiu. — Nao posso desistir de voce, Édmilson.

    — continuou o anciao — Voce esta no meucoraçao. Quero ver voce salvo e seguro nosbraços de Jesus! 

    O Jovem riu com sarcasmo e balançou acabeça. 

    — Os braços que eu quero sao outros. — gozou ele — Alem do que, se voce que rezaaproveita e ve se ajuda esse aqui que preci-sa mais que eu — riu apontando o cadaver— Éu tenho mais que fazer. 

    Dizendo isso o rapaz passou pelo velhocom desdem e o empurrou com violencia.Éurico perdeu o equilbrio e caiu sentadojunto ao muro que circundava o terraço e o

    jovem se foi. O anciao encolheu-se. Éstaria errado

    desta vez? Seria Édmilson um caso realmen-te perdido? Na verdade o livre arbtrio erade se considerar. Éle nao podia forçar a von-tade de alguem a quem Deus izera livre. Noentanto o peso da alma do jovem o fazia so-frer e as lagrimas brotavam de seu rostocansado. Ali icou com a cabeça apoiada nos

    joelhos chorando e clamando por umaoportunidade de ser verdadeiramente inter-cessor, de icar na brecha por este rapaz. 

    O tempo passou. Éurico nao sabia semuito ou pouco. Quando se deu conta haviaoutra pessoa no terraço e o sol declinava ra-pidamente no horizonte. A presença dessapessoa o fez erguer-se um tanto assustado.Limpou as lagrimas do rosto e o nariz que

    pingava e tentou se recompor. Mas a aproxi-maçao da outra pessoa o deixou deverassurpreso. 

    Sada como que de uma especie de nevoa

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    veio ao seu encontro uma velha de aspectomedonho. Curvada e cheia de reumatismoela parecia nao ter sequer um osso que naofosse deformado. Érgueu o rosto para Éuri-co e o itou com superioridade. O anciao tre-meu sem querer. 

    O rosto da velha era de tal forma enruga-do e cheio de espinhas e pontos negros queso o ixa-lo ja era penoso. O nariz de propor-çoes signiicativas era peludo e torto. A bocairregular de labios secos. Da cabeça quasecareca saam uns poucos ios de cabelo gri-salho em total desalinho. A mulher traziauma roupa toda negra e esfarrapada condi-zente com seu aspecto fsico. Sua presençacausava repulsa e medo, tremor e asco aomesmo tempo.

    Depois do primeiro susto Éurico tentouse recuperar. Pensou que fosse alguem dafamlia do homem morto que permaneciano extremo do terraço e tentou ser gentil:

    —  Boa tarde, senhora. Veio pelo moçoacidentado? —  perguntou apontando o ca-daver.

    —  Acidentado? —  pronunciou a velha

    com sarcasmo.Sua voz era metalica e grave. Um tanto

    inesperado. Causava arrepios na medula eparecia penetrar os ossos. Nao parecia serhumana.

    — Acidentado? — repetiu a velha. —  Bem — titubeou Éurico sem jeito — 

    eu, na verdade, nao sei. Quando chegueiaqui ja estava morto.

    A velha parecia nao estar interessada noque ele dizia. Aproximou-se do anciao e orodeou examinando cada detalhe dele e emespecial a Bblia em sua mao. A sua aproxi-maçao Éurico experimentou um fenomenode todo inusitado. O chao parecia ter se tor-nado frio. Como se a temperatura a volta damulher fosse bem mais baixa que o resto doar. A tal ponto se fez sentir isso que o pobre

    homem quase tremia de frio e segurava oqueixo para que nao batesse. 

    A velha tornou a se afastar dele sem pa-lavras como se tivesse perdido o interesse e

    avançou ate o parapeito da varanda exami-nando as redondezas. Éurico fez enorme es-forço para sair de seu estado quase catato-nico.

    —  Posso ajuda-la de alguma forma? — perguntou com educaçao. 

    A velha o mirou de novo com aqueleolhar gelado e desdenhou:

    —  Nao e voce que quero! — respondeusecamente. 

    — Éntao, quem e? — insistiu o anciao jacom seus pressentimentos. 

    A mulher parecia incomodada com apresença e a insistencia do homem e pare-ceu ataca-lo. Voltando-se com rapidez sur-preendente o questionou:

    — Nao tem medo de mim?Desta vez foi Éurico que icou irme e

    com olhar tranquilo e seguro sorriu e res-pondeu:

    — Deveria ter?—  A grande maioria dos homens tem…

    —  disse a velha com segurança. — Parece ter muita experiencia! — rele-

    tiu Éurico. 

    —  Alguma... —  devolveu a outra comsarcasmo.

    —  É esta procurando... -  sugeriu o an-ciao.

    — Édmilson - declarou a velha de formaseca e voltou a perscrutar a vizinhança. 

    Éurico icou abalado com a revelaçao ese aproximou corajosamente da velha ape-sar de que o frio que ela transmitia ser a ul-

    tima coisa do mundo que queria experimen-tar de novo. De subito, sentiu-se cheio deousadia para lutar pelo jovem que pretendiaver salvo, e pressentia que esta ancia so po-dia trazer mas notcias. Chegou-se com con-vicçao e disparou: 

    — Quem e a senhora? A velha olhou Éurico com um misto de

    admiraçao e desprezo e sorriu. Um sorriso

    que faria gelar o coraçao do mais corajoso.De sua boca disforme se viam uns poucosdentes amarelo-acastanhados e a risadaqual grito de hiena na noite africana parecia

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    vindo de outro mundo. A mulher, olhando ohomem no fundo dos olhos, pronunciou cal-mamente: 

    — Sou a Morte! — Nao pode leva -lo! — foi a reaçao ime-

    diata e quase impensada do anciao. A Morte mostrou surpresa, franzindo o

    sobrolho que logo abriu em novo sorrisodesdenhoso. 

    — Voce vai me impedir? —  Nao posso... — reconheceu Éurico — 

    Mas ele nao esta pronto!—  Isso nao e problema meu. —  deu de

    ombros a velha —  Cumpro minhas obriga-çoes e chegou a hora do rapaz. Se nao sepreparou para me receber e problema dele.

    —  É meu tambem. —  protestou o ho-mem —  Éu assumi a responsabilidade porele.

    — Ninguem pode assumir a responsabi-lidade por outro. — devolveu a Morte — Ca-da um tem que me enfrentar sozinho e a ho-ra de Édmilson e chegada. 

    — Éntao, me leve a mim. — tentou Éuri-co ja desesperado —  Éu posso ir ja, estou

    pronto. Nao tenho medo de voce. Leve-meno lugar dele! 

    Agora o homem parecia pela primeiravez ter conseguido a total atençao de suainterlocutora que o examinava com maiscuidado ainda. A morte aproximou-se nova-mente e o frio glaciar de ainda a pouco vol-tou a gelar Éurico de forma desagradavel equase insuportavel. Tudo nele clamava por

    se ver livre dessa sensaçao, mas icou quie-to, em seu interior lutando pela alma de seuprotegido.

    A morte percebeu a luta do homem e suaforte resoluçao e se afastou lentamente. 

    — Tem a certeza do que me propoe? — questionou tentando veriicar a certeza dohomem.

    — Sim! — airmou Éurico com total con-

    vicçao.—  É porque faz isso? —  quis saber a

    morte.—  Pela salvaçao dele. —  explicou o an-

    ciao - Éle nao esta pronto para ir. Precisa demais tempo. O amor de Deus ha de vencerem sua vida, mas precisa de mais tempo.

    —  É e esse tempo que voce quer com-prar para ele? —  sugeriu a velha rindo. 

    — Se for possvel… — clamou ele.— Possvel e… — disse ela — Nao seria a

    primeira vez. Tem-se feito muitas vezes ecreio que ainda se farao muitas mais.

    —  É ele tera tempo suiciente? —  quissaber o homem ansioso. 

    — Isso nao pode saber. So o Todo Pode-roso sabe essas coisas. Pode ser que sim.Pode ser que nao. Acha que vale a penamesmo assim? Morrer sem ter a certeza?Pode ser em vao… —  tentou a morte ma-treira. 

    — O amor nunca e em vao! - sentenciouÉurico —  Éstou disposto a dar a Édmilsonmais uma oportunidade, nem que seja a ul-tima! 

    A morte balançou a cabeça e chegou-seao im do terraço aonde se via toda a favela.Suspirou com ar cansado e olhou mais umavez c