o saber, a exclusÃo escolar e pesquisa

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o SABER, A EXCLUSÃO ESCOLAR E PESQUISAEM EDUCAÇÃOlEntrevista com o professor Bernard Charlot2

Fátima Vosconcelos''Sylvie Delacours Lins3Revisão e tradução: Nelson Barros da Costc '

Itinerário de um pesquisodor. ~ BCH-UFC iED: Professor Bernard Charlot, os leitores bra-

sileiros o conhecem desde "A Mistificação Pedagógi-ca" . O senhor poderia traçar o percurso de suas idéiasdessa obra até suas pesoulsas atuais?

BC: A Mistificação Pedagógica estudava a QUes-tão dos discursos ideológicos Que ocultam a realidadedos processos educativos, notadamente os laços en-tre a educação e a divisão social do trabalho. Foi oponto de partida de um trabalho de tipo filosófico, jáQ.Ueeu sou filósofo de formação e não sociólogo.

Depois comecei a trabalhar em sociologia,primeiro a ligação entre sociologia do trabalho e so-ciologia da educação, poroue tinha abordado a Ques-tão da divisão social do trabalho nas situaçõespedagógicas.

Eu tinha tentado mostrar Q.Uea divisão socialdo trabalho era ocultada por grandes discursos pe-dagógicos. Queria saber como estava a divisão dotrabalho em nossa sociedade. Trabalhei comMadeleine Figeat, socióloga, e escrevemos juntos doislivros: um mais sociológico, Que tem por título"Lécole aux encheres" ('/\ escola em leilão"). e umbem volumoso, intitulado "Histoire de Ia formationdes ouvriers" ("História da formação dos operários").

Depois de uma reflexão filosófica sobre a edu-cação e sobre a divisão social do trabalho, submeti

I Entevista realizada em 13/08/200 I.2 Professor do Departamento de Ciências da Educação da Universi-dade de Paris VIII, onde coordena o grupo de pesoutsa ESCOL (Ed -cação, Socialização e Coletividades Locais).3 Professoras do Programa de Pós-Graduação em Educação BrasiIci-ra da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.4 Professor do Departamento de Letras Vernáculas da UniversidadeFederal do Ceará.

este último a uma reflexão sociológica e histórica.Quando terminei a "Histoire de Ia formation desouvriers" , descobri Que havia muitas contradiçõespara além de meu discurso marxista (um pouco fe-chado) da época. Havia contradições nos sindicatosoperários desde o princípio sobre essas ouestões etambém contradições entre os empresários. Na Fran-ça, atualmente, não existe somente uma forma depatronato, mas várias. É por isso Que tive vontade deolhar melhor como isso funcionava na realidade so-cial. levando em consideração tais contradições.

Depois, trabalhei só, poroue Madeleine Rgeatnão seguiu meu itinerário. Escrevi "Lécole en mutation"('/\ escola em mutação"), em 1987, para tentar enten-der as transformações Que ocorriam na escola daouelemomento. Acho Quenisso eu estavaadiantado. Poroueno final dos anos 90 vamos reencontrar as QuestõesQue eu levantava desde dos anos 80: o neoliberalismoQ.Uecomeçava a aparecer e as transformações funda-mentais da sociedade. A sociedade não é apenasneollberal, Elaé neoliberal, mas mesmo uma sociedadede esquerda, mesmo o PT no poder no Brasil, tendoganho esse poder do povo, tem Que resolver certosproblemas Quesão da sociedade moderna. Atualmenteeles aparecem como se fossem ligados unicamente aoneollberalismo e à globalização, mas QualQ.Uersocieda-de moderna encontra problemas de complexidade, o-blemas Quedemandam a iniciativa das pessoas. H sediz: "é o neollbcralísrnoe o individualísmo". masestamosnuma sociedade tão complexa Q.Ue,paraver essesproblemas, temos Que adas pessoasno trabalho e, partkuarmente,Esseapelo à iniciativa pode a ' se apresentarforma de gestão auto-regdemocrática dentro da escolasão neoliberaJdo ísoamentoconsideração o pesofinal dos anos 80.

Para! e. pesouíset bastante a ouestão doensi o da erná íca. Por uma razão relativamentesimp es. Po e pensava e ainda penso Que Quandore etirnos politicamente sobre a escola, não pode-mos esquecer Que se trata de um lugar onde se ensi-nam conteúdos.

e

também uma er-• sem levar em

estruturas. Constato isso no

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E por Que a matemática, fora o fato Que minhadissertação de mestrado com Canguílhern! era sobrea Questão da epistemologia das ciências? Por QUeamatemática? Poroue aparentemente, a matemática é adisciplina menos política, mais afastada dos conteú-dos políticos. Se tomamos, por exemplo, o caso dahistória, da economia, da língua materna, vemos bemclaramente como podem ser políticas. Mas por Queascrianças dos meios populares têm também mais difi-culdades em matemática? É uma Questão Que me inte-ressava. Aliás, meu trabalho sobre essa Questão é aorigem de minha reflexão sobre a relação com o saber.

Tudo isso converge: a transformação das rela-ções com o saber na sociedade moderna, mas tam-bém o estudo sobre a matemática, evidenciam o Queparece ser uma Questão-chave: o relacionamento, doponto de vista escolar, entre a relação Que temoscom os conteúdos escolares, de um lado, e a relaçãocom o mundo. Tudo isso vai convergir e está na ori-gem das pesoulsas sobre a relação com o saber.

Em 1987, ingresso na Universidade Paris 8 ecrio uma eouípe Que tem duas linhas de pesoulsa:uma linha, Que é bem conhecida no Brasil, é da rela-ção com o saber. A outra, bem conhecida na França,é a Questão da territorialização das políticaseducativas. Por Quê? Poroue essa chegada de umanova forma de sociedade tem aspectos ligados aoQue acontece na sala de aula, mas também aspetospolíticos mais gerais relacionados a umadescentralízaçâo da educação, Que foi um fenômenoessencial na França, já Que éramos um dos paísesnos ouaís a educação estava mais centralizada.

Continuo então trabalhando com as Questõesde políticas educativas através da territorialização detais políticas e, ao mesmo tempo, nas Zonas de Edu-cação Prlorítárías." pesoulso a relação com o saber.Tento estudar ao mesmo tempo o miero e o macro.

S Georges Canguilhem (1904-1995): filósofo e epistemólogo fran-cês. sua obra principal é O normal e o patológico, 1966. Foi um dosmestres de Michel Foucault., Zonas de Educação Prioritárias (ZEP): escolas e colégios (geral-

si uados nas periferias das grandes cidades francesas) em cuios·i:::lQSIOIdID constatadas importantes dificuldades escolares. As ZEPbaJefici;Cl se redução do número de alunos por sala, de flnanci-

paradidáticos, artísticos, ete. e seus professoresba:WIO rl.ll3llC:Ciro especial. Para isso, cada ZEP deve

o:2Xt4:r 0:= 1P:~to pcQ.~ico específico.

o saber e a escola

ED: Como é Que a relação com o saber e asdiferentes figuras do aprender estão relacionadas coma escola? Há muitos trabalhos na França acerca doaluno, sua história, sua procedência, mas não seráagora o momento de estudar a contribuição da esco-la na construção da relação com o saber?

BC: Não se pode falar da escola sem falar dosprofessores. Estudar a relação com o saber dos alunosnão é suficiente. É preciso estudar também a relaçãocom o saber dos professores e isso é terrivelmentedifícil, ainda mais na França. Eu falo às vezes, brincan-do, Que um professor, na França - talvez em outroslugares também, é uma pessoa Que, oualouer Quesejaa pergunta Que você faz, sempre começa responden-do: "não é minha culpa". Os professores assumemposições defensivas. É por isso Que é muito difícil tra-balhar a relação com o saber dos professores.

Isto foi feito na Grécía. por PascalíaYannakakis,e em São Paulo, por Beatriz Lomonaco. em teses Queorientei. Os professores do ensino básico de São Pau-lo pareciam muito com os professores franceses. SeráQUe existem universais nas relações dos professorescom os saberes ligados à escola, Quer dizer, maneirasde pensar QUeseriam criadas pela própria situação deensino? Não é impossível. Nesse sentido, podemospensar no conceito de contrato didático. Qual é a par-te dos universais? Qual é a parte das especflctdadeslocais? Não temos respostas a essas perguntas.

Constatamos também Que as crianças de mei-os populares, no Que diz respeito a suas relaçõescom o saber, se diferenciam menos dos filhos da classemédia aos seis ou sete anos do Que aos Quinze.

Quer dizer Que existe uma diferença de relaçãocom o saber ligada à origem social, ao Queacontece nafamília. Essa diferença é menos importante QUando ascrianças ingressam na escola do Que Quando elas têmQuinze anos. Vemos Quea escola aprofunda a diferençaentre essasrelações com o saber, em vez de reduzi-Ias.Ora, uma escola democrática deve também pensar noproblema da construção da relação com o saber. Se aescola não enfrenta a Questão da relação com o saberdas crianças e se existe um acordo QUaseimediato entrea relação com o saber das classesdominantes e a rela-ção com o saber necessária para obter sucesso nos es-

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tudos. a escola vai transformar as desigualdades sociaisem desigualdades escolares. É nesse sentido Queas te-ses de Bourdieu se verificam.

A escola vai supor Q!Jeos alunos têm poucosdotes. Que eles apresentam algumas carênciassocioculturais. e não vai entender Que existe um pro-

blema de relação com o saber. problema Que deveriaser trabalhado pela própria escola.

Uma escola democrática é também uma escolaQue constrói relações com a escola e. evidentemente.com os saberes escolares. Se ela não os constrói. elanão permite o sucesso de todos os alunos.

A violência e a escola

ED : Na opinião do senhor. a violência esco-lar no Brasil é radicalmente diferente da violência Que

encontramos nas escolas das periferias das grandescidades francesas?

BC : Depende do Q!Jese entende por violência.ED: Na França. temos o hábito de distin-

guir falta de civilidade (responder de maneira brus-ca ao professor). transgressão (não respeitar as

regras) e verdadeira violência. Essas distinções nãoaparecem aouí.

BC : Não me sinto realmente capaz de res-

ponder. primeiro poroue não conheço suficientementea realidade escolar brasileira. e segundo poroue apalavra violência é tão geral Quevai depender do sen-

tido Q!Jevamos lhe atribuirTenho o sentimento (é um sentimento. não

é um saber) Que na França. na Inglaterra. na Ale-manha e provavelmente também no Brasil o deba-te sobre a violência. a verdadeira violência (osalunos Que batem nos professores). as formas bru-tas de violência (assalto. estupro) Que são reais

escondem um problema Que encontramos um pou-co em toda parte.

Não existem mais. ou não funcionam mais es-

sas regras implícitas (Que podemos nomear contratopedagógico ou didático) em relação às ouals todomundo estava de acordo e Q!Jedelimitavam a situa-

ção escolar. Mesmo ouando existia uma transgres-são. Testanlêre escreveu um belo artigo sobre bagunça

tradicional e bagunça anômica. Quando os alunos

bagunçam. eles transgridem regras Que conhecem ereconhecem. Eles sabem Q!Jeestão bagunçando.

Existem agora formas de incompreensão ab-solutamente extraordinárias: alguns alunos pergun-tam por Que não são pagos. enquanto Que osprofessores recebem. Outros perguntam Que direitotêm os professores de avalíá-los.

Quer dizer. começamos a ouvir. na França.Questões Que remetem a uma incompreensão totaldo Que é a escola. das regras fundamentais desseespaço. É assim Que essas regras são permanente-mente transgredidas e atropeladas.

Os professores vivem isso com um sofrimentoenorme. Na verdade. relativamente poucos profes-sores são agredidos fisicamente pelos alunos. Supo-nho Q!Jedeve ser a mesma coisa na França e no Brasil.

Em compensação. há um número muito gran-de de professores (em certos lugares. maioria) Q!Jese encontram numa situação tal Que não podem maiscumprir o Que eles consideram ser o seu papel. Nãoexiste mais a adesão mínima dos alunos à situaçãoescolar Que permitiria o trabalho do professor. Quan-do é necessário dez ou Quinze minutos para come-

çar a trabalhar. Quando um aluno senta. não tira ocasaco ou não abre sua mochila. esperando o tempopassar. na França como no Brasil. isso é muito agres-sivo para o professor.

É uma forma de recusa a reconhecer a situa-ção escolar e o professor é atingido em sua identida-de profissional. Ele não pode mais trabaJhar.e acredito

Que isso esteja se generalizando no mundo in eiro.Está provavelmente relacionado com <:\0 ções domundo moderno. Essas evoluções o as da so-ciedade se refle em nas relações esco res em dife-ren es países. São relações de i o eensão dasregras de base. de recusa da e íníção de base do

Que é uma si ação esco r. É m i o mais freoüenteQ!Jeo estu ro o as pa cadas.

ED: Q an o fala os de violência na escola.aoui. pensamos so re udo na incursão de ganguesdentro da escola. de como a territorialização dasgangues invade a escola. e também na violência en-tre crianças.

BC: Isso tem Que ser verificado. As primeirasvítimas da violência na escola não são os adultos.São os alunos.

Quanto às gangues. não sei. porque a situ-ação é bem diferente no Brasil e na França. NaFrança. a população tem o sentimento Que exis-tem cada vez mais "intrusões externas" na esco-la. mas estudamos isso mais de perto. Narealidade. as pessoas Que entram na escola e Quetêm comportamentos violentos são muito menosos integrantes de gangues do Que os membrosda família do aluno Que vêm acertar as contascom o professor. Estatisticamente. as ganguessão muito menos perigosas para os professoresdo Que as mães das crianças das primeiras séries;sei Que pode parecer engraçado. mas é verdade.Na França. os professores são agredidos maisfreoüenternente pelas mães das crianças de seisa doze anos do Que pelas gangues do bairro. Serianecessário estudar essa Questão no Brasil. Quemagride os professores brasileiros?

ED: Não é o resultado de uma pesouísa cien-tífica. mas temos a impressão Que. às vezes. as crian-ças não estudam poroue têm medo da violência. dasgangues. da violência entre alunos.

BC: Teria Que estudar isso. poroue, na ver-dade. nós não sabemos. Temos a impressão. acha-mos Que... Eis um bom tema de mestrado. porexemplo. Uma verdadeira Questão da Qual nós nãotemos resposta.

Eu gostaria Que a pesouísa no Brasil. mas tam-bém na França, pudesse contribuir para achar as res-postas a essas Questões, para QUe possamos passardos sentimentos. das intuições aos verdadeiros sa-beres. Que possamos dizer: "estudamos a QUestão eé isso Que acontece, em determinado lugar, em de-terminado momento". E Que isso seja realizado emvários lugares, para Que construamos um saber QUepossibilite a ação.

Não podemos ficar somente nos sentimentos.sobretudo Quando se trata de uma Questão como ada violência, Quando sabemos Que a angústia da vio-lência pode criar representações Que aumentam osentimento de violência.

erlflcamos isso nos subúrbios populares fran-eses. Quando você vai numa atâ. Quer dizer. num

itacional de prédios situado em bairros

o 'ocê pergunta aos moradores:esse bairro?", geralmente eles res-

pondem: "aoui nem tanto. mas você deveria ver nooutro bairro. é muito violento!".

Vamos no outro bairro e à mesma pergunta osentrevistados respondem: "Não, aoul está tudo bem.É no outro bairro Que há muita violência."

O sentimento de Que existe violência é umelemento importante na construção dessa violência.Não há somente o sentimento de violência. existemtambém as violências reais. Mas numa Questão naQual as interpretações e os sentimentos são tão im-portantes, é necessário verificar. não se satisfazer commeras impressões. inclusive com as impressões dosmoradores. Tem Que perguntar: "você já foi agredi-do? Você conhece alguém Que já foi agredido?". Fa-zer perguntas precisas para analisar as situações.

A pesquisa em Educação

ED: Quais são as perspectivas para a pesouí-

sa em Educação?

BC: Só uma observação. É uma Questão fran-

cesa. é uma Questão brasileira, é uma Questão inter-

nacional: a pesouísa em Educação não tem sido

suficientemente cumulativa. Alguns estudantes fazem

dissertações e teses, na França como no Brasil. so-

bre temas já estudados. lá temos conhecimentos acu-

mulados. mas eles fazem pesquisas sem ter lido as

outras teses.

Eu acho Que, se Queremos avançar, temos Que

definir a "linha de frente" da pesoulsa. Precisamos

perguntar: "o Que já sabemos?". Para não refazer o

QUejá foi feito.

Depois, é preciso saber sobre ouals assuntos

nos interrogamos. Quais são as dúvidas. as interpre-tações? Como é o cenário da pesouísa no país?

No Brasil, o Que já sabemos, o Que foi estabe-

lecido, e sobre o Que não vale a pena mais pescuisar?

Que tipo de pesouísa temos Que privilegiar agora?

Ainda não fizemos esse trabalho na França.nem no Brasil. nem a nível internacional. Por isso.

freoüenternente. fazemos as mesmas pescuísas. As

instituições de financiamento financiam um pouco ao

acaso. cegamente. Financiam pesouísas sobre assun-

tos bem conhecidos e não financiam outras pesouí-

sas QUeseriam importantes para avançar.

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Se Queremos avançar, se Queremos racionali-zar um pouco, devemos refletir coletivamente sobreo QUe podemos chamar a "linha de frente" da pes-ouísa. Minha pergunta aos brasileiros como aos fran-ceses é "como está constituída a 'linha de frente' dapesouísa atualmente no país? O Que vocês já sabemsobre a educação no Brasil e Que não é mais neces-sário pesouísar? O QUeé prioritário? Não só do pon-to de vista dos políticos, mas do ponto de vista dospesouísadores? O Que é prioritário para Que a pes-ouísa em Educação avance e, conseoüenternente.

ouals são os temas de pesouísas Que devemos incen-tivar entre os jovens Que produzem dissertações eteses?". Isso me parece importante.

Bibliografia em português

CHARLOT. B., Da relação com o saber: elementos parauma teoria. Porto Alegre: Ed Artes Médicas, 2000.

CHARLOT. B. (org.), Os jovens e o saber: perspecti-vas mundiais. Porto Alegre: Ed Artes Médicas, 200 I .

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