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ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas
necessárias
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz1
Priscila da Silva2
Eliane dos Santos Ferreira3
RESUMO
Nos últimos tempos, especialmente durante as últimas décadas,
reflexões sobre os espaços de controle social vêm qualificando o
debate econômico e político, redesenhando as regras de ocupação do
espaço construído e tensionando as fronteiras de classe. Partindo da
compreensão da participação referida a elementos essenciais dos
processos democráticos, pretende-se discuti-la a partir de suas
contradições nos espaços de controle social. A complexidade das
relações sociais na atualidade impõe novos ângulos sobre os quais se
instala o debate, demandando maior participação dos movimentos
sociais, na perspectiva da defesa dos direitos, principalmente do
direito à cidade.
Palavras-Chaves: participação, controle social democracia, direito à
cidade
RESUMEN
En los últimos tiempos, especialmente durante las últimas décadas,
reflexiones sobre el controle social vienen cualificando el debate
económico y político, resideñando las reglas de ocupación del espacio
construido y tensionando las fronteras de clase sociales. Partiendo de
la comprensión que la participación se refiere a elementos esenciales
de los processos democráticos, se pretende aquí discutirla a partir de
sus contradicciones. Osea, la complejidad de las relaciones sociales
en la actualidad impone nuevos ángulos sobre los cuales se instala el
debate demandando mayor participación de los movimentos sociales,
tanto por medio de acciones directas como por la representación
política, con vistas a la defensa de los derechos.
Palabras-claves: participación, controle social, democracia, derecho a
la ciudad.
1 Doutora. Universidade Federal de São Paulo. E-mail: tgdiniz@uol.com.br
2 Estudante. Universidade Federal de São Paulo.
3 Estudante. Universidade Federal de São Paulo.
1. INTRODUÇÃO
O projeto neoliberal, subsídio econômico, político e ideológico de um padrão de
acumulação capitalista que desloca as responsabilidades do Estado para a sociedade,
tem seus efeitos perversos identificados nas diferentes expressões da questão social
no contexto brasileiro. No cumprimento dessa tarefa, o capital intensifica a
desconstrução do aparato técnico e administrativo do Estado, o qual se distancia do
interesse público e coletivo e, sob pressão de uma lógica mercantil concebida por
interesses individuais, desenvolve ações públicas legitimadas pelo capital, alicerçando
políticas de auto regulação pelo mercado.
A população é levada a esperar nada mais do Estado, a viabilizar-se por si
mesma no mercado ou na dinâmica societária. A sociedade civil torna-se espaço tanto
de colaboração e de ação solidário-voluntária, no qual a questão social transforma-se
em questão de dever moral, quanto de explicitação das contradições que configuram
um campo de tensões estabelecido entre a presença cada vez mais profunda das
desigualdades sociais e as diferentes formas de enfrentamento que, historicamente,
vêm sendo construídas por segmentos significativos da sociedade brasileira.
Por outro lado, os traços que desenham o perfil da sociedade brasileira ainda
são definidos, historicamente, por uma estrutura fundiária que privilegia a
concentração de terra, de renda e de riqueza. Em um processo de urbanização
intensiva, as cidades são transformadas em paraíso da especulação financeira e
imobiliária, por meio da financeirização da produção da cidade e da moradia e cujos
padrões de urbanização e desenvolvimento estão relacionados com as diferentes
formas da desigualdade – social, econômica, política e ambiental - com o desemprego,
baixos salários, aumento da pobreza, analfabetismo, crianças e famílias vivendo nas
ruas, doentes sem tratamento, moradias precárias e falta de terra para os
trabalhadores.
Tendo esses elementos como pressupostos, a aproximação aos conselhos de
direitos e políticas sociais, particularmente os conselhos municipais de habitação,
permitiu uma maior compreensão da dinâmica do poder político que perpassa as
relações estabelecidas entre diferentes sujeitos políticos, poder que é atravessado
pelas velhas heranças político-econômicas, característica de nossa formação sócio
histórica, tais como o paternalismo, o favor e o clientelismo que se manifestam nesses
espaços políticos.
A observação sistemática do conselho municipal de habitação do município de
Santos, além do levantamento de dados dos conselhos de política social de habitação
da região metropolitana da Baixada Santista como objeto de pesquisa e extensão,
durante dois anos, tornou possível identificar o exercício da política para além de suas
normativas, desafiando a elaboração de análises explicativas sobre a realidade social
dos sujeitos participantes desses espaços de controle social e as respostas
construídas no cotidiano da atuação nos mesmos.
As reflexões aqui desenhadas remetem a uma crítica ao senso comum que se
tornou o debate da participação e que só poderá ser superado, se houver vontade
política de aprofundar suas contradições.
Conforme Antunes (1999), o envolvimento manipulatório das classes trabalhadoras
é levado ao limite, o consentimento e a adesão dos trabalhadores tornam-se objetivo
para viabilizar um projeto que é desenhado e concebido segundo os fundamentos
exclusivos do capital. Os interesses e contradições da sociedade de classes são
aguçados no cerceamento do direito da manifestação, no estímulo à criminalização
dos movimentos sociais, na mercantilização das cidades e nos despejos violentos,
submetidos ao ideário do capitalismo que tem no Estado as garantias da taxa média
de lucro e das possibilidades da acumulação do capital. Neste contexto, a participação
e o controle social assumem um perfil formal, de predomínio dos privilégios que
naturalizam as desigualdades econômicas e sociais.
2. A DINÂMICA SOCIETÁRIA E OS ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL
Para refletir sobre a ação dos sujeitos políticos inseridos nos canais de
participação, tais como os conselhos de direitos e políticas, o que nos remete à
conceitos como cidadania, democracia e participação social, é preciso, ainda que
brevemente, situar sua inserção na sociedade brasileira a partir do marco da
Constituição Federal de 1988 e cuja emergência tem raízes nas lutas e mobilização
social travadas no interior da ordem societária capitalista. E na relação Estado e
sociedade, o desafio que se apresenta é o de superar a pouca experiência histórica,
pois tais conceitos nunca foram usufruídos em plenitude ao longo da trajetória
republicana brasileira, como lembra Behring e Boschetti, “...num país em que a
democracia sempre foi mais exceção que regra” (2011, p.178).
Para adensar o debate, Coutinho (apud Alves, 2016, p. 38) afirma que
democracia, cidadania e participação são conceitos que se referem ao mesmo
fenômeno. São as condições sociais e institucionais que possibilitam “ao conjunto dos
cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em consequência, no
controle da vida social”. Acrescenta Alves (2016, p. 40) referenciando-se em Coutinho
(1997) e em Wood (2007) que a democracia é “construção e conquista da classe
trabalhadora, que foi sendo reconfigurada pela classe dominante na manutenção do
seu poder hegemônico sob o sistema capitalista”.
Portanto, como um exercício democrático facultado à sociedade, os conselhos
são instrumentos de caráter interinstitucional para a participação e controle social das
políticas públicas, inscritos na Constituição Federal e implementados a partir de
legislações subsequentes no âmbito estadual e municipal, de constituição paritária
entre representantes do Governo e da Sociedade Civil, preconizando sua natureza,
seja deliberativa, seja consultiva. No âmbito municipal são instituídos por leis
municipais e são precedentes para o recebimento de recursos advindos do Estado
para as áreas sociais as quais se destinam (STEIN, 2000. p. 89-92).
São mecanismos importantes na descentralização político-administrativo, o que
configura uma estratégia em potencial de democratização das relações de poder, fruto
da reivindicação da organização e mobilização social dos trabalhadores e da
sociedade civil.
Segundo Raichelis (2006), são fundados nos princípios democráticos de
ampliação da cidadania, como canais para a participação social, e possibilitam uma
nova cultura política, pautando novas relações de poder e de gerência da coisa pública
em uma sociedade fundada historicamente na desigualdade social, de raízes
escravocratas, patrimonialistas, autoritárias e clientelistas e de relações intermediadas
pelo favor.
Na referência de Gohn, “...o tema participação é uma lente que possibilita um
olhar ampliado para a História” (2011, p.16). Ou seja, as reflexões sobre o tema da
participação nos impõem considerá-lo nas suas contradições mais do que nas suas
antinomias, ou seja, não se trata de discutir as perdas que se opõem às conquistas de
espaços participativos, mas sim, de adensar um debate que conduz as reflexões a
partir das lutas sociais que envolvem a sociedade como um todo, e que depende, para
a sua compreensão e explicação, da pauta de reivindicações que direciona as ações
desta mesma sociedade.
Na particularidade dos conselhos municipais de habitação, são canais
institucionalizados de participação e controle social da política de habitação do
município. Pretende-se assim que cumpram o papel de canal de representação dessa
população munícipe na política de habitacional da cidade, por meio de diferentes
sujeitos sociais, na figura pública de conselheiros - representantes de diversos setores
do poder público, sociedade civil e movimentos por moradia - que compõem esse
espaço de consulta, deliberação e fiscalização da gestão habitacional. Ponderando
que a luta por moradia não se encerra no conselho, Cymbalista e Moreira afirmam-no
como mesa de negociação entre diversos setores da sociedade – e não como substituto da organização e luta popular –, é um espaço a partir do qual se identificam interesses diversos, as posições e tensões envolvendo cada setor da sociedade, e as diferenças internas nos vários setores (2002. p.9).
E, principalmente, o conselho de habitação apresenta especificidades
intrínsecas à área de sua política, que diferem das demais políticas, pois não se trata
da oferta de serviços ou acesso a benefícios; como frisam Cymbalista e Moreira, "a
política de habitação envolve a oferta de um produto, físico e palpável, cujo valor
unitário é sempre muito significativo em relação ao patrimônio das pessoas: a
moradia" (2002, p.11). Essa política também não se efetiva de maneira isolada, pelo
contrário, impõe-se uma articulação com outras demandas de consolidação de uma
estrutura urbana como urbanização, saneamento, mobilidade e transporte público.
De que direito falamos quando tratamos de nossas cidades?
Desde o início do século XX, nos países capitalistas avançados – e a partir dos
anos 1930 no Brasil – foi se formando um consenso de que a habitação é uma
questão de Estado, que precisa intervir para criar as condições de enfrentá-la e para
que possa ser garantida como um direito.
A moradia é, certamente, o bem de necessidade básica e essencial mais caro
que uma família precisa, necessariamente, ter acesso para sobreviver nas cidades.
Ademais, seu custo está fortemente relacionado com o valor de terra, a partir de um
mercado especulativo baseado na escassez. Em decorrência do alto custo, a única
forma de acesso à moradia por uma família de baixa ou renda média é por intermédio
do aluguel ou do financiamento de longo prazo, alternativas que buscam relacionar a
capacidade de pagamento ao custo da moradia. O financiamento de longo prazo para
a população de baixa renda exige fundos estáveis e permanentes, garantidos pelo
poder público. Parcela significativa da população não apresenta condições de pagar
qualquer parcela mensal de financiamento. Razão pela qual a intervenção do Estado
no mercado habitacional passou a ter um papel cada vez mais importante, estando
presente no processo de regulação, financiamento, promoção e produção da moradia.
A intervenção do Estado na questão habitacional brasileira teve início nos anos
1930. Mas nunca conseguiu garantir o direito à moradia, realizando sempre
atendimentos parciais e fragmentados, sem uma perspectiva de continuidade na
atenção, com programas que privilegiavam parcela da demanda, deixando a maioria
sujeita a buscar em um mercado especulativo, soluções frequentemente
caracterizadas pela precariedade ou informalidade. A trajetória da política urbana no
Brasil tem características de focalização no seu atendimento a diferentes segmentos e
suas demandas de legalização e legitimação da inserção nas cidades, a exemplo dos
programas habitacionais como os desenvolvidos no período do Banco Nacional de
Habitação, na década de 1960 até meados dos anos 1980, com recursos significativos
para o financiamento da produção de moradias que, localizadas na periferia, eram
construídas por empreiteiras, sem participação da população nos projetos e na
construção. Não logrou viabilizar formas de atender a maior parte da população, que
integrava o expressivo processo de urbanização do período (CFESS, 2016).
O mesmo pode-se dizer do programa Habitar Brasil BID, da década de 1990,
que objetivava a implantação de projetos integrados para elevar os padrões de
habitabilidade e de qualidade de vida de grupos com renda mensal até 3 salários
mínimos, que residiam em áreas precárias de regiões metropolitanas, em
aglomerações urbanas e nas capitais (CFESS, 2016). E mais presentemente, o
programa Minha Casa Minha Vida, que implantado em 2009, alimenta o processo de
financeirização do capital e interfere na dinâmica imobiliária, afirmando o lugar dos
pobres nas cidades ao inseri-los em conjuntos habitacionais que tem reforçado
processos de segregação pelos locais distantes dos centros urbanizados onde são
erguidos em grandes conjuntos habitacionais (AMORE; SHIMBO; RUFINO, 2015).
Por sua vez, uma parcela significativa da população urbana “resolve” o
problema habitacional por meio de processos informais: adquire lotes mal urbanizados
no mercado de terra especulativo ou ocupa áreas em assentamentos precários,
autoconstruindo suas moradias com materiais adquiridos a juros exorbitantes, sem
contar com nenhum apoio do poder público.
São formas de constituição das cidades nos cenários urbanos brasileiros, onde
as políticas sociais não falam mais de direitos, mas de necessidades, de beneficiários
e usuários, atendidos em programas de urbanização pontuais que não modificam a
situação de segregação. Assim, parafraseando Harvey (2012), quando se refere à
suburbanização ocorrida nos USA, ao afirmar que a mesma “alterou o panorama
político ... que mudou o foco de ação da comunidade para a defesa da propriedade e
das identidades individualizadas...” (2012, p. 77), podemos relacionar aos processos
em curso no Brasil, os quais alimentam tempos em que “vivemos num mundo onde os
direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras
noções de direito. ” (HARVEY, 2012, p. 73). São processos que acarretam
transformações no estilo de vida da classe trabalhadora, no acesso pela oferta de
crédito e o endividamento voltados para a compra de produtos domésticos, de TVs de
alta resolução, ao lado de demandas por segurança individual que justifica a repressão
policial. São transformações alimentadas pelas relações mercantis, em um mundo
urbano onde a qualidade da vida está condicionada por um intenso individualismo que
determina “as formas espaciais de nossas cidades, que consistem progressivamente
em fragmentos fortificados, comunidades fechadas e espaços públicos privatizados
mantidos sob constante vigilância” (Harvey, 2012, p. 81).
Esses cenários de exclusão e violência alimentados pelos interesses de grupos
empresariais, “sócios privilegiados do governo”, segundo Fleury (2012), são
amparados legalmente, sempre que necessário a esses interesses, nas ações de
despejo que são vistos como irreversíveis, na desqualificação das comunidades
pobres que são criminalizadas se tentam resistir a ações desse tipo, desinformadas e
acusadas de ilegalidade da ocupação do solo, na construção irregular das moradias e
na falta de titulação dos imóveis.
Em síntese, está em curso um processo de desconstrução de conquistas
históricas de diferentes segmentos sociais, ao flexibilizar a legislação existente – o
Plano Nacional de Habitação e o Estatuto da Cidade não têm logrado resultados
significativos - ao esvaziar as instâncias de controle social e, mais uma vez na história
da política urbana brasileira, ao expandir a malha urbana por meio de processos de
periferização e segregação, pela monofuncionalidade e guetificação dos grandes
conjuntos habitacionais construídos nas fronteiras urbanas das cidades, à revelia dos
interesses da classe trabalhadora, esvaziando a luta pelo direito à cidade.
A Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS) e a luta pela moradia digna
A região vivenciou um processo intenso de desenvolvimento desde meados do
século XIX, com a internacionalização do porto motivada pela expansão da economia
paulista e por um urbanismo que buscava responder às alianças estabelecidas entre
poder público e setores do capital, representados por grupos privilegiados pelas
intervenções urbanas. Sua urbanização foi impulsionada nas décadas de 1940 e 1950,
quando os municípios centrais - Santos, São Vicente, Cubatão e Guarujá – obtiveram
rápido crescimento urbano e populacional e, com a construção do polo petroquímico
em Cubatão e a inauguração da Rodovia Anchieta, muitos trabalhadores ocupados na
construção da rodovia foram morar em condições precárias em áreas localizadas nas
encostas da Serra do Mar.
No decorrer da década de 1950, essa expansão começa a se direcionar para
Praia Grande e na década seguinte para Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe. A partir da
década de 1990, a expansão urbana se deu a taxas muito menores. Porém, em 2000,
a ocupação nas áreas mais vulneráveis foi maior, sendo mais intensa nos municípios
de Bertioga (que se emancipou de Santos em 1991), Itanhaém e Peruíbe, dando corpo
a um processo de precarização que se estendeu na ocupação dos morros, nas
moradias em palafitas e nos cortiços das regiões centrais das cidades. As diversas
mudanças político-administrativas contribuíram para consolidar o crescimento urbano,
alterando o perfil socioeconômico e redefinindo o cenário da Baixada Santista. Diante
de todo o avanço urbano imposto pela ordem societária do capital, surgiram demandas
maiores do que as possibilidades concretas de efetivação na área da habitação,
exigindo uma articulação dos sujeitos envolvidos, o que reforçou a importância de
apreender os desafios e contradições que se fazem presentes na dinâmica dos
conselhos municipais de habitação, espaços de debates e articulação das políticas.
Tendo como espaço da pesquisa o conselho municipal de habitação de Santos,
a observação sistemática e as anotações no diário de campo dos pesquisadores
apontam situações de interferência das representações do poder público na dinâmica
das reuniões e o acatamento das deliberações por parte das representações da
sociedade civil e dos movimentos sociais sem maiores questionamentos. E, quando os
há, observa-se um tensionamento que se traduz na ausência de relações
democráticas na condução do processo, com representantes do poder público e dos
movimentos sociais também contribuindo em não viabilizar o espaço de controle social
(pressionam para que a leitura de atas anteriores não se faça necessário, qualquer
solicitação de esclarecimento é questionada, os documentos do poder público –
projetos e orçamentos – são apresentados sem garantir espaços para dúvidas, e o
tempo restrito é a justificativa). Toma-se como exemplo do debate havido sobre quem
tem o direito a voz e voto, no qual o poder público colocou-se com a imposição de
regular esse processo, impedindo a participação de participantes que não sejam
conselheiros e questionando a presença nas reuniões. Outro exemplo está na figura
de um vereador que fazia parte da reunião e defendeu que os movimentos sociais que
já foram contemplados com moradias devem ser extintos, propondo o congelamento
de novos segmentos por moradia, com poucos questionamentos sobre a proposta. Ou
ainda, o que ocorreu com o resultado da Conferência municipal, que a presidência do
conselho quis alterar os encaminhamentos havidos, sendo questionada até mesmo
por representantes do poder público presentes na reunião.
Raichelis (2015) afirma que exercer a deliberação nas questões substantivas
tem sido uma das principais frustações nas expectativas políticas dos conselhos para
que possam decidir sobre a justa distribuição dos recursos públicos, ampliando os
direitos dos grupos subalternos. Porém, a noção construída sobre a função
deliberativa não pode ser compreendida como uma suposta autonomia político
institucional.
Essa confusão nubla o reconhecimento da especificidade do tipo de luta política que pode ser travada via conselhos. Eles são estratégias de luta por dentro do Estado, visando sua democratização, e não sobre ou paralelamente a essa instituição. Reconhecer esta especificidade é fundamental para superar as avaliações marcadas por frustações decorrentes de expectativas que os conselhos não podem cumprir, o que gera imobilismo político. (RAICHELIS, 2015, p 82).
A mesma autora aponta uma tendência que identifica a existência de uma
profunda crise da política que impede os grupos subalternos de estarem presentes nos
espaços públicos como sujeitos legítimos, sendo que a partir do desmanche
neoliberal, esses espaços foram totalmente capturados pelo Estado. A burocratização,
o pragmatismo, a lógica gestacionária, a privatização, impedem que os conflitos se
manifestem e o dissenso se estabeleça. Por esta razão, muitos defendem o abandono
desses espaços pelos movimentos sociais e forças combativas para espaços
societários mais amplos. Outra tendência reconhece a crescente hegemonização
destes espaços pelo conservadorismo e, mesmo com os desafios e limites existentes,
propõem o tensionamento para ir adiante no movimento democratizador, considerando
a correlação de forças na sociedade.
Essa perspectiva problematiza as tensões entre Estado/sociedade civil, e a
importância da ocupação desses espaços pelos movimentos sociais e segmentos
organizados, como uma estratégia política. Fica claro que existem limites para o
exercício do controle social, e neste sentido, envolve a capacidade da classe
subalterna para interferir na gestão pública, visando a construção de sua hegemonia.
Para tal, Bravo e Menezes (2013, p. 324) colocam a questão da superação dos limites,
ao afirmar que
[...] a superação dos limites para a efetivação do controle social das classes subalternas está para além da atuação dos segmentos sociais no espaço institucional dos Conselhos, requer a articulação das forças políticas que representam os interesses das classes subalternas em torno de um projeto
para a sociedade.
Ou seja, é necessário construir o controle social das classes subalternas tendo
no horizonte o enfrentamento dos determinantes econômicos, políticos e sociais em
busca das transformações da sociedade, de maneira a consolidar uma nova
hegemonia e uma outra sociabilidade.
A ameaça à democracia e à liberdade não vem da falta de institucionalização
das formas de organização, nem tampouco da ausência de mecanismos de disputas e
de conquistas dos direitos. Ao contrário, a participação social é fomentada na
realidade brasileira, espaços de controle social da sociedade sobre o Estado são
valorizados a partir da Constituição Federal de 1988 e estratégias políticas são
adotadas para definir prioridades, fiscalizar as ações, monitorar a aplicação dos
recursos e avaliar as condições de implementação das políticas sociais.
São outros os obstáculos à democracia social. Decorrem da despolitização
provocada pela fragmentação das lutas, do encolhimento do espaço público o qual,
pragmaticamente, cede lugar a respostas aos interesses de pequenos grupos
centrados em questões parciais e cotidianas, obstaculizadores da organização de
lutas mais amplas.
É também obstáculo à democracia, o participativismo, ou melhor, as práticas
participativas que, apoiadas no ativismo das demandas fragmentadas e no
imediatismo das respostas, se reproduzem na defesa de interesses singulares. Nessa
direção, nos desafia a reflexão de Maricato (2007, p. 1),
É evidente que esses movimentos estão ocupados com problemas importantes como gênero, raça, meio ambiente, saneamento, habitação etc, mas, aparentemente, estão ocupados em buscar melhores condições de vida, compondo um cenário dividido e fragmentado, tomando a parte pelo todo, contidos nos limites de um horizonte restrito, sem tratar do presente ou do futuro do capitalismo.
3. Algumas reflexões para a continuidade do debate.
Quando se afirma que a possibilidade de intervir no rumo da história deve fazer
parte da ação cotidiana dos movimentos sociais, não se trata de ignorar a importância
dos espaços político-institucionais, nem de desconsiderar a diversidade das lutas, mas
de capitalizar as forças sociais numa perspectiva de classe, enfrentando o desafio de
construção de outro mundo marcado por outra sociabilidade. Ao contrário do que
pensam muitos intelectuais que vêem nesse movimento um desprezível reformismo,
as conquistas de reivindicações concretas imediatas são alimento essencial para
qualquer movimento reivindicatório de massas. Mas é preciso analisar o que é o
Estado em sua complexidade, especialmente numa sociedade como a nossa,
patrimonialista e desigual (Maricato, 2007, p. 1). E mais, deve-se relacionar a análise
às estratégias históricas e políticas adotadas pelas diferentes classes sociais, como
determinações objetivas no desenvolvimento desse processo.
Sob esses pressupostos se retoma o debate da democracia, considerando a
articulação necessária entre as esferas econômica e política, identificando-as como
um conjunto de relações sociais definidas a partir de suas determinações concretas.
Os fundamentos teóricos e analíticos dessa afirmativa evidenciam a importância da
organização popular, como uma prática concreta na construção de outra sociabilidade.
Conforme Lopes (2012, p., 227),
um dos maiores e mais importantes desafios para os setores organizados e conscientes da dimensão e complexidade das condições objetivas da sociedade capitalista na atualidade é a criação e sustentação dos
mecanismos de resistência e luta, em âmbito nacional (em todas as esferas da vida social) e também mundial, em movimentos explosivos e grandes, mas também pequenos e fortes; para os intelectuais, a resistência na sustentação da análise histórico crítica par atualizar a teoria, colocando-a em ação na militância articulada com os movimentos de organização e luta dos trabalhadores que sustentam e constroem, também no cotidiano, a alternativa emancipadora.
Mesmo porque, resgatando Marx, só é possível entender as instituições
políticas tendo em vista seus vínculos com as relações sociais e não partindo de
considerações gerais e abstratas. Os desafios colocados pelas formas de
enfrentamento da questão social no contexto urbano estão dados na dinâmica
contraditória das relações sociais, na relação capital-trabalho, em suas múltiplas
dimensões econômicas, políticas, sociais, culturais, religiosas, a partir de
reconfigurações políticas que buscam superar formas de dominação e de práticas
conservado
Neste sentido, o controle social envolve a capacidade que as classes
subalternas têm para interferir na gestão pública, visando a construção de sua
hegemonia. E isso acontece somente com a devida análise da correlação de forças
que vai avaliar para que classe o controle social pende. Esse controle sobre a gestão
dos recursos públicos, é um desafio importante na realidade brasileira, visando a
resistência na redução do alcance das políticas sociais, a sua privatização e
mercantilização, norteado por um projeto societário das classes subalternas e pela
busca da construção de uma cultura contra – hegemônica.
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