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SOBRE PROJETO E CIDADE ESPAÇOS PÚBLICOS E TERRITÓRIO URBANO TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO | MARCELA ALONSO FERREIRA PROF. ORIENTADOR ALEXANDRE DELIJAICOV | FAU USP | JUN2013

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Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo Marcela Ferreira Alexandre Delijaicov (orientação) junho 2013 FAU USP

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Minha formação na FAU USP – e este trabalho não poderia ter sido diferente – contou com a colaboração de muitas pes-soas a quem faço sinceros agradecimentos por participarem comigo dessa construção coletiva. Agradeço assim:

Ao prof. Alexandre Delijaicov, pela orientação deste trabalho e de todo o percurso na FAU USP e por assim ter trazido a componente humana à nossa formação acadêmica;

À profa. Lizete Rubano, pela dedicação com que acompanhou e participou deste trabalho, e pelo entusiasmo com que nos incentiva a questionar o mundo;

À profa. Mônica Junqueira, pela participação na banca e pelas prazerosas conversas na FAU e fora dela;

À profa. Vera Pallamin, pela conversa ao final do primeiro se-mestre, que incitou uma mudança de rumos neste trabalho;

Ao arquiteto Héctor Vigliecca, pela “aulas lecionadas” no am-biente profissional;

Aos meus queridos amigos, por tudo que vivemos juntos nos últimos anos e também pelo que fizeram por este trabalho;

À Giselle Mendonça, Luisa Fecchio, Mariana Strassacapa, Na-tália Tanaka e Stela Da Dalt, amigas e pessoas essenciais na minha formação e, como não poderia deixar de ser, também contribuíram muito para este trabalho. Pelo auxílio na reta final, agradeço duplamente à Giselle Mendonça, pela meticu-losa revisão do texto, à Mariana Strassacapa, por contribuir na edição e à Natália Tanaka pela ajuda com as maquetes;

Ao Bhakta Krpa e Pedro Kok pela dedicação nas visualizações 3D e fotos dos modelos, respectivamente;

Ao Lucas Giannini, pela contribuição na revisão do texto;

Ao Alexandre Gaiser, Max Heringer, Marinho Velloso e Luis Fernando Tavares pelas sugestões, críticas e por acompanha-rem este trabalho;

Ao grupo do Gibraltar, pelo apoio constante;

Ao Plínio Damin, pela foto da capa;

A todos que de uma forma ou de outra participaram da elabo-ração deste trabalho;

Aos meus pais e à Marina, pela paciência (que não foi pouca), pela motivação e pelo apoio incondicional;

E ao João, em especial, pela crítica, pelo cuidado e pelo carinho.

agradecimentos

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considerações iniciais

09

anexos

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3. ensaios

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infiltração na rua tabatinguera

desdobramento da praça do carmo

2. aproximações

31

leitura urbana

conceito

cartografias

duas chaves, quatro ações

1. substrato

13

observação

impasse

proposta

4. hipóteses

157

espaços públicos como possibilidade projetual

projeto como operação

arquitetura como relação

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“A educação do arquiteto é, sobretudo, a educação do olhar. Cons-truir o olhar sensível e generoso é sempre a tarefa primordial. (...) O projeto (expressão) é a resposta do olhar comovido (impres-são)” (Sant’anna apud. Guatelli, 2008: 6)

O trabalho que aqui apresento não deixa de ser um produto indireto do período de seis anos e meio em que desenvol-vi meus estudos na FAU USP. Ao longo desse trajeto foram sedimentados conhecimentos e levantadas questões que, de uma maneira ou de outra, incitam esse trabalho. Entendo o Trabalho Final de Graduação (TFG) não exatamente como o encerramento consequente de um percurso ou como uma síntese de uma produção iniciada com a graduação – ao con-trário, acredito que nesse momento cabe propor uma ques-tão, elaborada a partir de um olhar crítico sobre a realidade que enfrentaremos como arquitetos e urbanistas e também sobre nossa formação. É sob essa perspectiva que procurei desenvolver esse TFG, num contexto de problematização de nossa produção intelectual e profissional como arquitetos e urbanistas, considerando as questões contemporâneas colo-cadas à nossa disciplina.

A liberdade metodológica e temática proporcionada pelo TFG, potencializada pela formação múltipla da FAU USP, permite que o aluno, para além da elaboração de uma pro-posta, possa ele mesmo construir um determinado problema. Nesse sentido, o tema desenvolvido e a abordagem utilizada aparecem como elementos centrais dos trabalhos, e refletem justamente o posicionamento do aluno frente à realidade. Os trabalhos se concluem normalmente com uma proposta que, acredito, não deve ser fechada, mas entendida como uma pos-sibilidade, uma hipótese ao problema levantado e a um ques-tionamento que perpassa o momento do TFG.

O título do presente trabalho, “Sobre projeto e cidade: espaços públicos e território urbano”, apresenta sucintamente os te-mas da investigação aqui conduzida. “Sobre projeto e cidade” aponta os questionamentos que me motivam a refletir sobre o papel da arquitetura hoje no contexto das cidades brasilei-ras, em especial na metrópole de São Paulo – e é, ao mesmo tempo, tanto a base da reflexão inicial do trabalho quanto o âmbito da investigação projetual. Já “espaços públicos e ter-ritório urbano” apresentam a discussão central do trabalho e antecipam a abordagem que conduz os ensaios de projeto

considerações iniciais

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desenvolvidos, que tratam justamente da articulação desses dois elementos dentro do recorte territorial estudado.

Este trabalho estrutura-se a partir de quatro capítulos, deno-minados “Substrato”1, “Aproximações”2, “Ensaios”3 e “Hipó-teses”4.

Em “Substrato” é apresentada a reflexão introdutória do tra-balho, conforme apontado acima. Partindo de observações a respeito da graduação em Arquitetura e Urbanismo na FAU USP e de apontamentos sobre a produção arquitetônica atual, são levantados questionamentos pertinentes à disciplina no contexto contemporâneo. Em “Aproximações” se inicia a abordagem5 da área de estudo na qual se desenvolve poste-riormente o exercício projetual. Nesse momento é analisado o recorte territorial de estudo a partir de um certo olhar, que incita o desenvolvimento dos projetos. Em “Ensaios” por sua vez, são apresentados os ensaios projetuais elaborados para a área de estudo. Por fim, em “Hipóteses” é elaborada uma reflexão a partir dos ensaios elaborados, buscando levantar questões para se pensar “projeto e cidade”.

É importante ressaltar que a estrutura final do trabalho con-siste ela própria numa construção. O desenvolvimento desse TFG no período de dois semestres seguiu uma trajetória mui-to mais sinuosa que a forma como ele é aqui apresentado. Isso porque a questão central não foi colocada de antemão, ao contrário, ela estaria subjacente – e foi assim sendo construí-da no decorrer do trabalho.

O trabalho partiu de uma ênfase na atividade projetual, do interesse pelo tema dos espaços públicos, da leitura de tex-tos críticos à produção arquitetônica recente e se iniciou com a investigação da área de estudo – todas essas frentes, um tanto desarticuladas, caminhando paralelamente. Feitas as aproximações à área de projeto e proposição de situações de intervenção (até então não desenvolvidas), senti a necessida-de de apresentar brevemente algumas observações e questões mais gerais, anteriores ao projeto e ao estudo da área, que de uma forma ou de outra estimulavam tais abordagens. Dessa preocupação surgiu a parte inicial do trabalho, “Substrato”, que não tem a ambição de analisar em profundidade teorias, paradigmas e metodologias das disciplinas da arquitetura e urbanismo, mas apresentar de maneira sucinta as questões que motivam esse trabalho. Assim, busquei introduzir logo

1. Substrato: “estrato que jaz por baixo, dando suporte a (algo); (1) o que serve de base a um fenômeno; (4) o que legitima ou autoriza alguma coisa; conjunto de conhecimentos, fatos, dados, de que se dispõe para opinar, acusar; base, funda-mento; ‹ o s. de uma tese ›; (6) aquilo que causa (algo); razão, motivo, origem” (Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).

2. Aproximação: “ato ou efeito de aproximar(-se)”. Aproximar: “(2) (bit.) [prep.: de] possibilitar o acesso a; permitir (contato, proximidade) entre; (3) (t.d. e pron.) [prep.: de] estabelecer ou restabe-lecer relações com” (Idem).

3. Ensaio: “(3) ação ou efeito de testar (algo) ou de agir, sem que se tenha certeza do resultado final; primeira tentativa, experiência” (Idem).

4. Hipótese: “(2) conjunto de condições que se toma como ponto de partida para desenvolver o raciocínio” (Moderno Dicionário Michaelis).

5. Abordagem: “(4) visão de um assunto; ponto de vista sobre uma questão; maneira ou método de enfocar ou interpretar algo” (Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).

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no início o que estaria nas entrelinhas do exercício projetual. Da mesma forma, no capítulo final do trabalho as “Hipóte-ses” procuram dar uma outra dimensão aos ensaios proje-tuais, não entendidos como um fim em si mesmo ou uma prática resultante de uma reflexão teórica inicial. Ao contrá-rio, num meio termo entre teoria e prática, o projeto é aqui usado como material de reflexão, um estudo que permite sus-citar questões para um debate mais amplo. Assim, o trabalho é concluído – contraditoriamente – em “Hipóteses”, isto é, questões colocadas à nossa atividade no âmbito da arquitetu-ra e urbanismo.

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1. substrato

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observaçÃo Durante a graduação na FAU USP, muitas vezes se fez no-tar uma polarização entre dois campos da arquitetura e do urbanismo que muito me instigavam, simultaneamente: o planejamento urbano e o projeto arquitetônico. Tendo cur-sado as sequências de Projeto de Edificações e Planejamento Urbano e Regional do Departamento de Projeto da FAU USP com muito interesse, me parecia existir um certo distancia-mento dessas duas áreas, e de seus respectivos instrumentos de transformação do espaço urbano – o que é especialmen-te danoso considerando a necessidade de enfrentamento de uma complexa situação urbana como a de São Paulo. As duas áreas apresentavam abordagens que me pareciam um tanto estanques, e que não permitiam muitos cruzamentos entre as duas esferas (bem como entre suas escalas de atuação).

Mesmo ao olhar menos atento, o espaço urbano de São Paulo apresenta-se como um território fragmentado, de estrutura pouco legível, produto de inúmeras superposições de planos, projetos, destruições e construções “espontâneas”. Seu tecido urbano é interrompido por inúmeras barreiras, sua lógica de reprodução é a da exclusão... em suma, consiste em um terri-tório de sérios conflitos sócio-espaciais.

Diante dessa complexa realidade, se por um lado o projeto de arquitetura (da maneira como o concebemos) parece não ge-rar transformações urbanas para além dos limites do lote, por outro, a atividade de planejamento urbano parece não poder garantir, a partir de seus próprios instrumentos, articulações espaciais e qualidade ambiental urbana.

Comumente, a arquitetura é colocada (e também se coloca) como um objeto, um dos elementos da paisagem urbana, que dialoga ou não com o contexto no qual se insere, que se sobre-põe ou não a ele – é entendida como um momento de exceção, diante de uma realidade construída “não-arquitetônica”. São poucas as experiências, seja em trabalhos acadêmicos ou na prática, em que a arquitetura se coloca além do objeto, como um estruturador da paisagem e dos espaço urbanos – quando arquitetura e urbanismo se confundem, positivamente.

Por outro lado, nas práticas de planejamento, que buscam transformar a cidade sobretudo por meio da regulação e da formulação de intervenções do Estado na cidade, a compo-nente espacial (física) não é normalmente um fator determi-nante. Em meio a uma abordagem mais global das dinâmicas

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territoriais, o espaço urbano é retratado de maneira mais abs-trata, para que se possa trabalhar a partir de sua totalidade.

Pouco discutido durante a graduação na FAU USP, o desenho urbano talvez aparecesse como alternativa a essa dicotomia, propondo através da atividade de projeto (transformação física) intervir na forma e qualidade espacial urbanas em certos trechos de cidade, identificados a partir de uma aná-lise em uma escala mais ampla como áreas com potencial transformador ou de transformação. Entretanto, essa prática tem sido questionada por diversos críticos em diferentes contextos. Aponta-se que o desenho urbano passou a ser um instrumento de especulação pelo mercado e que não teria assim correspondido às expectativas, também por ter uma abordagem anacrônica, que não daria conta de questões con-temporâneas.6

Por outro lado, o distanciamento presente na graduação entre teoria e prática também aparece como uma inquietação que motiva este trabalho. Com frequência, atividade projetual é entendida como uma prática, na qual se mobilizam diversos conhecimentos adquiridos – da história da arquitetura, das técnicas construtivas etc. –, produzida a partir de uma certa demanda, seja ela criada ou não, visando a elaboração de um produto final (projeto). Em alguns momentos durante a gra-duação, defendeu-se a ideia do projeto como uma forma de produção de conhecimento, e é a partir desse viés que se de-senvolve o presente trabalho. Entende-se que a elaboração de um projeto pode ser ferramenta de uma investigação espacial e que sua conformação reflete uma leitura e, principalmente, constitui uma afirmação. A partir de uma proposição particu-lar, pode ser possível reconsiderar questões que perpetuam em outras instâncias e projetos e trazer assim uma reflexão mais ampla.

O presente trabalho incorpora então essas inquietações sur-gidas durante a formação na FAU USP e procura entender a prática de projeto de uma maneira menos estanque. A partir de uma abordagem mais reflexiva, acredito que exista a possibilidade de produção de conhecimento sobre a própria disciplina. Assim, busquei colocar este trabalho num campo menos definido – entre o particular e o universal, entre a arquitetura e o urbanismo, e entre a teoria e a prática.

6. No trabalho acadêmico coordenado por Pier Vittorio Aureli no Berlage Institute “Brussels: a manifesto towards the capital of Europe”, recoloca-se o potencial da arquitetura na transformação do território urbano; como esta é colocada numa escala mais ampla – como “fato urbano” –, questiona-se o campo disciplinar que seria “responsável” por essa escala, o desenho urbano. Segundo o arquiteto e crítico italiano, “O desenho urbano [urban design] é o campo dentro de nossa disciplina que atualmente apresenta o maior nível de crise, e ao mesmo tempo, de potencial não realizado. Oficialmente estabelecido em 1956 na Universidade de Harvard, como uma reação ao planejamento tecnocrático e a expansão da mancha urbanizada [urban sprawl], o termo ‘desenho urbano’ foi cunhado por Jose Lluis Sert e marcou a formação de um novo campo disciplinar engajado no processo de definição da forma e da qualidade espacial da cidade. (...) A despeito do seu início mais radical, hoje a prática do desenho urbano está em grande parte restrita a abordagens comerciais ou anacrônicas. Invariavelmente se basearam nas prescritivas linhas da agenda conservadora do Congresso para o Novo Urbanismo: práticas tradicionalistas que fracassam progressivamente ao abordar a condi-ção contemporânea do território urbano” (Aureli, 2007: 1950, tradução livre)

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impasse Definição do impasse: a arquitetura e o urbanismo se distan-ciam da realidade na atuação

A observação de que no universo acadêmico não temos cons-truído um debate e uma produção consistentes, que abordem de maneira múltipla a realidade urbana das cidades brasilei-ras, é, ao que parece, uma expressão do impasse que vive a disciplina da arquitetura e do urbanismo num âmbito mais amplo. Não só na academia a arquitetura e o urbanismo se distanciam do enfrentamento da situação urbana contempo-rânea: são também nas suas práticas “pouco influentes nas transformações das condições urbanas das cidades brasilei-ras” (Rubano, 2012) e na construção dos territórios urbanos.

Produto de interações de diferentes sujeitos com interesses diversos e com frequência em conflito, as cidades brasileiras se reproduzem – haja vista o afastamento que assumimos do seu desenvolvimento – sob a tutela do mercado e da especu-lação imobiliária num processo constante de urbanização e reurbanização não organizado, planejado ou regulamentado propriamente. Diante dessa mutação incessante, a arquitetu-ra e o urbanismo não têm tido a devida importância política na organização territorial, nem relevância prática visto que grande parte da cidade se constrói de forma ilegal e desestru-turada e uma parte menor se constrói de forma legal7, porém sem o amparo de um projeto de cidade.

Conforme apontam Abílio Guerra e Luis Espallargas Gime-nez, “infelizmente, o que podemos constatar hoje é que qua-se sempre, tanto na academia como na realidade, as oportu-nidades vislumbradas pouco foram além da possibilidade de corrigir problemas, antecipar novos desenhos que substituís-sem estruturas claramente obsoletas ou indagar sobre o desti-no de importantes áreas que por qualquer motivo estivessem disponíveis” (Guerra; Gimenez, 2000). Nota-se assim a au-sência de proposições que sugiram a transformação urbana e, certamente, a falta de amparo teórico na formulação dessas proposições.

Histórico do impasse no Brasil – Ermínia Maricato

Alguns críticos apontam a relação entre a história da arquite-tura moderna brasileira e o seu distanciamento atual da rea-lidade social das cidades brasileiras, situação que corrobora esse impasse. Ermínia Maricato, em depoimento à revista

7. Em depoimento à revista PÓS, Ermínio Mari-cato coloca que “segundo a Cibrasec, entre 1991 e 1995, nós tivemos 4,4 milhões de domicílios construídos no Brasil. Desses, mais ou menos 700.000 (de forma muito aproximada) foram produzidos pelo mercado privado. Isso é o número aproximado dos domicílios que tiveram a planta aprovada. É preciso que nos perguntemos: e os demais? Os 3/4 restantes? Estes foram pro-duzidos sem financiamento, sem conhecimento técnico e fora da lei.” (Maricato, 2000: 67)

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PÓS, aponta o que teria sido a agenda da arquitetura brasi-leira até o golpe militar de 1964 e o esvaziamento que teria ocorrido após esse período:

“A arquitetura brasileira foi uma das áreas do pensamento e da criação que mais avançou nesse período [“gloriosos anos 60”]. Otília Arantes usa uma ideia interessante para lembrar que essa arquitetura, aparentemente, alcançou a maturidade antes do país, ou seja, ela se mostrou (aparen-temente) desenvolvida sem que o país deixasse a condição de subdesenvolvido. Então ela, de fato, constituiu um cor-po de ideias, de princípios. Ela ganhou reconhecimento in-ternacional e legitimidade. Acontece que toda essa propos-ta foi esvaziada, a partir de 64. Essa arquitetura era uma proposta da elite brasileira progressista, mas como todas as demais propostas de reformas sociais da década de 60 (algumas sustentadas por organizações populares, como era o caso da Reforma Agrária), caminhou para um beco sem saída, que foi o golpe de 64. Otília Arantes lembra que, após os anos 60, a arquitetura brasileira ‘ficou sem assunto’. Ela foi esvaziada de conteúdo social e ficou res-trita aos cânones formais. Ela teve seu momento glorioso. Teve importância histórica considerável, mas a partir da ditadura ela ficou oca ao se desligar do projeto social. Hoje estamos carregando uma proposta fetichizada, coisificada. Uma proposta que carece de atualização, de uma corres-pondência com a sociedade brasileira atual e de correspon-dência com o país que se urbanizou, definitivamente. Nós temos uma escala de problemas urbanos que a arquitetura brasileira nunca enfrentou” (Maricato, 2000: 67).

Ermínia critica o distanciamento da arquitetura da realidade social do país, apontando as novas demandas que essa nova situação urbana colocou, pouco absorvidas pela arquitetura. Se existiu então um projeto – no sentido mais amplo da pala-vra – para a arquitetura e urbanização nas cidades brasileiras, este não logrou sucesso nos anos posteriores. Segundo Ermí-nia, “quando a arquitetura brasileira ficou conhecida e se de-finiu como um paradigma de alcance internacional nos anos 50 e 60, principalmente, com o ápice em Brasília, o país era outro em relação ao estágio de urbanização. Metade da popu-lação ainda estava no campo. O ambiente construído mudou profundamente. A festejada arquitetura brasileira modernis-ta não chegou a influir no que seria o futuro das nossas cida-des.” (Maricato, 2000: 67)

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A transformação massiva que ocorreu no espaço construído se deu a despeito de uma mobilização da classe dos arquitetos. A expansão urbana desenfreada – segundo dados do IBGE, cerca de 80% da população brasileira vive hoje em áreas de-nominadas “urbanas” –, a proliferação das áreas periféricas a partir da autoconstrução e a precariedade da infraestrutura somam-se ao esvaziamento dos centros históricos (processo que observou uma reversão da última década, ainda que não total), ao abandono do patrimônio construído e à criação de “ilhas de excelência” na cidade, compondo por fim um con-junto de cidades “selvagens, anárquicas e caóticas, do pon-to de vista da qualidade do ambiente construído” (Maricato, 2000: 67). E aí reside o desafio colocado hoje à arquitetura.

Nota-se atualmente um crescimento de projetos que abordam essas novas demandas, surgidas com tamanha transformação no ambiente urbano – urbanização de favelas, provisão de ha-bitação social, transformação no sistema de mobilidade, den-tre outros. Entretanto, ao que parece, mais do que incorporar novas demandas – ou seja mais do que “corrigir problemas” colocados a partir da escala do planejamento urbano – caberia uma revisão no modelo arquitetônico corrente, colocando-o como instrumento também de leitura e investigação do es-paço urbano a fim de criar ele próprio outras demandas e, principalmente, novas abordagens.

Ação projetual recolocada pela condição urbana – Rem Koolhaas e Ignasi de Solà-Morales A reflexão sobre o modelo e o papel do projeto de arquitetura atualmente foi colocada, internacionalmente, por alguns ar-quitetos que apontaram a necessidade de reformular a ação projetual diante das condições urbanas contemporâneas. Dentre esses arquitetos, destacam-se o holandês Rem Koo-lhaas e o catalão Ignasi de Solà-Morales.

No prólogo do livro Territórios, de Solà-Morales, Saskia Sassen identifica como uma questão central do livro a ideia de que “o significado e o papel das arquiteturas centradas em velhas tradições de permanência se desestabilizam irrevogavelmen-te nas cidades marcadas pelas redes digitais, pela aceleração, pelas infraestruturas massivas de interconexões, pela indife-rença” (Sassen apud. Solà-Morales, 2002: 7, tradução livre). Assim, para Solà-Morales, “os processos urbanos atuais são suficientemente distintos para pararmos de negar sua especi-

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ficidade, já que implicam técnicas e processos que existem e constituem práticas que devem ser descritas como fragmen-tárias, vazias de reflexão e de compromisso crítico, mediante as quais se organiza a vida nas atuais cidades metropolitanas” (Sassen apud. Solà-Morales, 2002: 10, tradução livre). É dian-te dessa observação que Solà-Morales problematiza a disci-plina arquitetônica como prática e como teoria, enfatizando o lugar crucial das cidades para a arquitetura e optando por especificar a condição urbana atual, visto que esta teria altera-do completamente as bases da disciplina.

No livro Mutations, do qual participou Rem Koolhaas com o estúdio de Harvard que o arquiteto coordenou (denominado “Project on the city”), é conduzida uma investigação de di-versas questões ligadas à condição urbana, “escolhidas para refletir sobre certas situações pertinentes, incomuns ou des-conhecidas das mutações urbanas que ocorrem nesse mo-mento no mundo.” A proposta partiu de uma tentativa de reconhecer o papel intelectual do arquiteto na compreensão e interpretação do fenômeno urbano, respondendo a “uma condição generalizada na prática arquitetônica, em que o ar-quiteto é solicitado para intervir, mas nunca avaliar ou com-preender uma dada situação.” Dessa forma, os arquitetos têm seus interesses determinados pela dinâmica desses projetos e relações com os clientes, sem que possam eles mesmos con-duzir uma investigação sobre os fenômenos de construção e mutação das cidades. Conforme concluem, “assim, os arqui-tetos trabalham, por definição, com segundas intenções, a ca-pacidade de análise independente, pesquisa ou investigação simplesmente não é parte de seu repertório.”8

De fato, também no Brasil a forma de produção da arquitetu-ra na sua relação com o mercado tem sido um dos fatores que contribuem para esse afastamento por parte dos arquitetos tanto das demandas contemporâneas como da investigação do papel da arquitetura diante da condição urbana contem-porânea. Conforme aponta Ermínia Maricato, “há problemas clamando pelo trabalho do arquiteto, mas não constituem mercado. (...) só vão constituir mercado a partir de uma mu-dança das políticas públicas, das políticas de financiamento” (Maricato, 2000: 67). Trata-se talvez de uma questão bilateral, qual seja do reconhecimento do trabalho do arquiteto como uma atividade analítica e propositiva por parte dos setores pú-blico e privado e também de uma construção ainda em pro-cesso do que seria o papel da disciplina nas cidades hoje.

8. No resumo da publicação, disponibilizado no site da instituição, o estúdio de Harvard é assim descrito: “The Harvard Design School Project on the City began as a response to a pervasive condition of architectural practice, in which the architect is asked to intervene in, but never to appreciate or understand, a given situation. An architect’s interests are ultimately determined by a series of random encounters with projects and clients that do not allow an independent investi-gation of issues or conditions outside their field of vision. Thus architects operate, be definition, with ulterior motives; the capacity for independent analysis, research or investigation is simply not within their repertoire. It is becoming increasin-gly important for architects to operate on a level independent of architecture, in order to unders-tand, at the most basic level, the phenomena affecting the development of architecture and the city. The Project on the City is an investigation of a series of issues related to the urban condition. These issues have been chosen to reflect certain pertinent, unusual, or unknown conditions of the urban mutations taking place at this moment in the world. The project has no connection with design: it is a pure research project, conducted by thesis students who explore a specific subject each year.” (Disponível em: www.gsd.harvard.edu/#/projects/mutations-1.html)

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Paradigmas de projeto urbano contemporâneo – Regina Meyer

No âmbito do urbanismo, pode-se dizer que essa revisão tem início na segunda metade do século XX com a mudança do paradigma de projeto urbanístico moderno – o “projeto to-tal” –, ao que se convencionou reconhecer como o paradigma contemporâneo – das “peças urbanas” (Meyer, 2006: 38). Se-gundo Regina Meyer, foi diante das transformações urbanas que fizeram das cidades, “manchas urbanas”, que a noção de “projeto total”, isto é, de que todo o espaço urbano era objeto de projeto, perdeu sentido. Dada a impossibilidade de ope-rar nessa lógica de ordenação completa, surgem as propostas para certas parcelas do espaço urbano, identificadas como territórios com potencial de transformação. Assim, conforme aponta Meyer, a possibilidade do projeto urbanístico diante dessa nova situação urbana necessitou de uma revisão e fun-damentalmente um ajuste de escala9.

Considerando essa metodologia já armada, e que “a supera-ção desse modelo [do “projeto total”] é hoje um consenso e ponto de partida para uma revisão teórica e prática da arqui-tetura e do urbanismo”, a urbanista defende que o grande desafio hoje colocado ao urbanismo residiria na identificação dos territórios de intervenção. Se essa seria a “pergunta-cha-ve para o urbanismo contemporâneo”, sua resposta envolve também uma compreensão profunda do espaço urbano e uma metodologia derivada.

Uma crítica: o paradigma contemporâneo em questão – Otília Arantes

Ainda que a superação do paradigma do urbanismo moderno seja entendida como um consenso, o modelo contemporâneo é visto com muitas ressalvas por alguns críticos, particular-mente depois de algumas experiências nesse sentido. Uma contribuição substancial nesse campo foi feita pela filósofa Otília Arantes. Os ensaios dos livros Urbanismo em fim de li-nha e A Cidade do pensamento único apresentam importante aporte crítico ao modelo arquitetônico e urbanístico recente. Apesar de a filósofa não colocar alternativas a esse modelo, pode-se considerar que um modelo está em construção e que essa crítica pode fazer parte de sua formulação.

9. Nota-se com isso que, a partir da redução da abrangência do projeto urbanístico, este se aproxi-ma às prováveis escalas da arquitetura, colocando cada vez mais essas duas esferas em relação direta – em contraposição ao projeto moderno, onde a arquitetura (edifício) consistia na parte do todo (cidade).

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No ensaio “Urbanismo em fim de linha”, Otília Arantes ana-lisa o paradigma de projeto urbano contemporâneo, surgido com a crise do modernismo. Do “colapso da ideia de plani-ficação global da cidade”, passou-se a um modelo de inter-venção urbana pontual, “por vezes intencionalmente modes-ta, buscando uma requalificação que respeite o contexto, sua morfologia ou tipologia arquitetônica, e preserve os valores locais” (Arantes, 2001: 21). Assim, para além de uma mudan-ça de escala, teriam também sido alterados os valores nessa nova perspectiva – de uma visão distanciada e racional da ci-dade, passou-se a considerá-la a partir do particular, buscando através do projeto a transformação de determinados fragmen-tos urbanos.

Otília Arantes cita a experiência de Paris como uma requa-lificação empreendida nesse modelo, que no caso da capital francesa baseava-se em duas frentes: “criar, de um lado, espa-ços prestigiosos, lugares de vida pública, como diziam seus promotores, no mais das vezes espaços culturais e, de outro, evitar a modernização predatória, respeitando a tipologia bá-sica parisiense e com ela (alegava-se...) a própria população” (Arantes, 2001: 126). O projeto de criação de uma unidade e coerência na paisagem urbana acabou por produzir um con-gelamento da cidade, impedindo que a população de baixa renda e imigrantes tivessem acesso às propriedades de áreas centrais.

A partir de alguns dos resultados produzidos por essas ex-periências, revelou-se a associação possível da arquitetura e do urbanismo com o mercado na produção de cidades – “o Capital em pessoa é hoje o grande produtor dos novos espa-ços urbanos, por ele inteiramente ‘requalificados’” (Arantes, 2001: 128). Daí a crítica de Otília Arantes, que lê nas con-sequências dessas experiências a “verdade oculta” daquele programa de transformações: “a mal disfarçada manutenção do status quo (...), a rigor uma forma de administrar contradi-ções, de escamotear conflitos, esconder a miséria” (Arantes, 2001: 125). A autora aí identifica o impasse em que se coloca a arquitetura produzida dentro da lógica capitalista, que é as-sim redimida de qualquer ideologia e conclui: “Neste rumo, vai se confirmando uma tendência que não é de hoje e que se exprime na regulação do projeto arquitetônico pela forma-pu-blicidade da mercadoria, aliás destino inevitável de uma arte de massa como a Arquitetura.” E como resultado, “as nossas cidades são apenas a fachada mais visível da atual mundiali-

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zação desintegradora do capitalismo (...) a assim chamada, e estetizada, cidade fragmentária (...) é o resultado de uma nova ‘ordem’ mundial.” (Arantes, 2001: 129).

Repensando o impasse

Diante dessas incursões, evidencia-se o impasse enfrentado pela disciplina da arquitetura e urbanismo hoje. Encontrar uma possibilidade de atuação concreta e pertinente é uma ta-refa que pede um outro posicionamento teórico e metodológi-co. Conforme aponta Lizete Rubano, os “esquemas consagra-dos” e o discurso desgastado parecem nos colocar totalmente distantes da realidade, num total “descompasso teórico em que nos encontramos em relação às condições contemporâ-neas, às dinâmicas que se fazem presentes no cotidiano das cidades” (Rubano, 2012).

Para Regina Meyer, “o amadurecimento metodológico de uma disciplina só pode ser medido pela sua capacidade de instituir seu próprio sistema de investigação, de configurar as suas questões e de propor recortes temporais específicos” (Meyer, 2006: 39). Nesse sentido, o que seria o papel da ar-quitetura e do urbanismo no contexto das metrópoles con-temporâneas e seu método de investigação e intervenção são certamente questões em processo de formulação, haja vista as dificuldades de análise e compreensão do objeto de estudo, a cidade contemporânea. Sendo um processo em construção, uma abertura maior a experimentações investigativas e pro-positivas pode ser muito pertinente, especialmente no am-biente acadêmico.

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proposta Frente às questões levantadas anteriormente, cabe discutir como os trabalhos acadêmicos poderiam se inserir de forma ativa no debate, problematizando essas questões e propondo caminhos e abordagens. Acredita-se que existam múltiplas frentes possíveis, e que sejam elas complementares, de aná-lise e proposição. A exemplo disso, o aprofundamento das análises sócio-espaciais da condição urbana no caso das cida-des brasileiras poderia aprofundar a bibliografia existente e levantar novas questões e possibilidades de atuação por parte dos arquitetos. Ou então, caberia analisar criticamente proje-tos arquitetônicos relevantes, em especial aqueles promovi-dos pelo setor público, realizados nos últimos anos sob dois focos: a análise do projeto propriamente dito – suas matrizes, partido, inserção urbana, premissas e realização – e também as formas de contratação e viabilização desses projetos, ou seja, como são criadas e conduzidas essas demandas.

Entretanto, este trabalho pretende contribuir para tal discus-são de uma maneira específica. Não cabe aqui a pretensão de se construir um discurso sobre como poderia ser a produção arquitetônica contemporânea, tampouco a de analisar em profundidade uma produção vasta e diversa. Considerando a especificidade do TFG – a liberdade metodológica e temática, restringidas pelo tempo reduzido –, buscou-se aqui uma pos-sibilidade não comumente contemplada em outros trabalhos acadêmicos. Dessa forma, propõe-se, diante das questões le-vantadas, desenvolver projetos – entendendo-os como forma de investigação sobre uma dada situação – e utilizá-los como material de reflexão, isto é, a partir deles levantar questões que possam ter alguma pertinência à atividade de projeto hoje, na situação urbana de São Paulo.

Nesse contexto, explicitar a escolha de uma área de estudo e a abordagem conduzida, que culmina no ensaio projetual, é uma etapa decisiva para os ensaios. Esse momento anterior a uma proposição, aqui condensado em “Aproximações” traz à tona especificidades locais, a escala de inserção do projeto e antecipa questões a serem privilegiadas nos ensaios.

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2. aproximações

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conceito Milton Santos, geógrafo brasileiro, buscou conceituar em di-ferentes momentos de sua pesquisa o que seria o objeto de estudo da Geografia. No correr dessa investigação epistemo-lógica, o geógrafo apresenta uma primeira hipótese em 1978, na qual considera a possibilidade de se entender o espaço geográfico como “um conjunto de fixos e fluxos”. Conforme explica, “os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou reno-vados que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que também se modificam.” (Santos, 2009: 38).

O autor ainda aponta a possibilidade de considerar como o objeto da geografia o conjunto formado pela configuração territorial e pelas relações sociais. Nessa associação, a confi-guração territorial seria a porção material do espaço, seja ela natural ou um produto histórico, enquanto as relações sociais poderiam ser entendidas como a porção viva desse espaço.

Em A Natureza do Espaço, cuja primeira edição data de 1996, Milton Santos retoma o tema do objeto da geografia, o espaço, e propõe uma nova acepção: “o conjunto indissociável de sis-temas de objetos e sistemas de ação que formam o espaço”. Em linhas gerais, bastante próximo dos conceitos anteriores, os sistemas de objetos seriam os objetos naturais e os téc-nicos (cada vez mais numerosos), enquanto os sistemas de ações trazem a parcela humana, responsável pelos processos e modificações do meio. Essa dupla de conceitos seria assim o encontro dos objetos de estudo da Geografia Física e Humana.

Desde as primeiras aproximações já é possível observar que, para Milton Santos, é o conjunto desses dois elementos – sejam eles fixos e fluxos, configuração territorial e relações sociais ou sistemas de objetos e sistemas de ações – que inte-ressa à Geografia, ou seja, a interação entre eles que se coloca como fundamental. Segundo o geógrafo, “considerar o espa-ço como esse conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, assim como estamos propondo, permite, a um só tempo, trabalhar o resultado conjunto dessa interação, como processo e como resultado” (Santos, 2009: 40).

À medida que o conceito de objeto geográfico vai se desdo-brando na pesquisa do geógrafo, a leitura dos conceitos como

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conjunto (não como ideias isoladas) se fortalece e, ao mesmo tempo, o conceito se distancia de definições rígidas, tornan-do-se mais abstrato. Se os fixos e fluxos “conjuntamente apa-recem como um objeto possível para a geografia”, o espaço, composto por sistemas de objetos e sistemas de ações, cons-titui um “conjunto indissociável”, passando então para a ideia de “território usado”, onde o objeto geográfico não é mais um conjugado de duas categorias, mas a fusão num só conceito.

Esta seria provavelmente a mais radical das proposições, a de que o objeto de estudo dos geógrafos seria o “território usado” e que a partir dele que poderíamos compreender o mundo atual: “o território são formas, mas o território usado são ob-jetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado” (Santos, 2005: 255).

Segundo Maria Adélia Aparecida de Souza, “para Milton San-tos o território usado se constitui em uma categoria essencial para a elaboração sobre o futuro. O uso do território se dá pela dinâmica dos lugares. O lugar é proposto por ele como sendo o espaço do acontecer solidário”, ou então, o espaço da socie-dade civil, espaço das horizontalidades1, da ordem local e não global. O território usado seria então o espaço de resistência e de articulação para um “novo tempo”, que, segundo Sou-za, “se caracteriza pelo processo de resistência dos lugares às perversidades impostas a ele pelo mundo” (Souza, 2005: 253).

Assim, uma importante contribuição de Milton Santos foi propor o espaço geográfico como objeto de estudo social, aproximando a Geografia das outras Ciências Humanas. Se-gundo ele, “é o uso do território, e não o território em si mes-mo, que faz dele objeto da análise social” (Santos, 2005: 253).

A abordagem do recorte territorial estudado neste trabalho – por meio das “Aproximações” e também dos “Ensaios” – mui-to se utilizou do conceito de “território usado”. A pertinência desse conceito para este estudo reside no entendimento do projeto a partir de seu potencial transformador do espaço urba-no, o que pressupõe que seja concebido territorialmente – ou seja, articulando as dimensões físicas e humanas do espaço. Sob esse viés – do espaço urbano como território –, foi então abordado o objeto de estudo e desenvolvidas as intervenções, enfatizando a relação da conformação física, ocupação e apro-priação do espaço, entendendo-as como parte dessas duas di-mensões de um território urbano.

1. Para Milton Santos, “as horizontalidades entre a cidade e o contiguidade, daqueles lugares vizi-nhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais”. (Santos, 2005: 256)

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praça docarmo

sesc carmo

viaduto 25 de março

av. rangel pestana

igreja da boa morte

estaçÃo pedro iido metrô

rua tabatinguera

quartel piratininga

av. doestado

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secretaria da fazenda

parque d. pedro ii

páteo docolégio

rua 25 de março

praça clóvis bevilácqua

praça da sé

catedral da sé

igreja o. 3a. do carmo

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leitura urbana Área de estudo

O exercício de projeto se inicia com a escolha da área de estu-do, que nesse caso compreendeu a região do Carmo, à sudes-te do Centro histórico, tendo como limites a Rua Anita Gari-baldi, as avenidas Rangel Pestana e do Estado, e a Rua Oscar Cintra Gordinho (que delimita o limite inferior da encosta sul da colina histórica). Embora poucos conheçam a região como “Carmo” – os logradouros são registrados ora como do bairro da Sé, ora como Liberdade –, acredita-se que essa designação seja bem vinda no trabalho por conferir identidade própria a essa área intermediária entre Sé, Glicério, Brás e Mooca, que apresenta-se de alguma maneira “isolada” de cada uma dessas áreas, além de recuperar sua denominação histórica, definida quando batizou-se a várzea do rio Tamanduateí de “várzea do Carmo”.

Alguns fatores influenciaram a opção por essa área; dentre eles, destaca-se o foco na região central da metrópole de São Paulo, pressupondo-se a possibilidade de potencializar a di-mensão pública aí presente. A partir disso, surge o segun-do fator que contribuiu para escolha do recorte: os espaços públicos – e seu uso – no ambiente urbano. Logo no início do trabalho, foi realizado um breve estudo sobre os espaços públicos consolidados do Centro de São Paulo, numa tenta-tiva de compreender a espacialidade e as dinâmicas desses espaços, e talvez, identificar possibilidades de intervenção; se naquele momento, um tanto preliminar, os espaços públicos do Centro apareceram como um objeto possível de investiga-ção, no desenvolvimento subsequente do trabalho essas áreas consolidadas constituíram-se então como uma forma de apro-ximação de áreas específicas do Centro e das questões ali pre-sentes. Este foi o caso do recorte territorial estudado, o bair-ro do Carmo, designado a partir das duas questões centrais apontadas: a importância histórica do vértice “leste” do triân-gulo histórico, balizado pela Igreja e Convento do Carmo, e a importância secundária que representa hoje a Praça Clóvis Bevilácqua diante de outros espaços públicos do Centro. Essa praça e a adjacente Praça do Carmo serviram então como uma “porta de entrada” para o desenvolvimento do trabalho.

O interesse na área se consolidou a partir de visitas e da obser-vação das dinâmicas do bairro, onde – diferente da maior par-te da Sé – há um grande contingente habitacional ocupando a maior parte dos edifícios com uso misto. Esse cenário ganha

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uma dimensão ainda maior na descida a caminho da Baixada do Glicério, chegando a inverter a predominância do uso, ali majoritariamente residencial. As visitas traziam a impressão de que uma população considerável reside nessas “bordas” do Centro, mas que a “cidade se realiza” no Centro histórico – local de empregos e atividades culturais, que contrasta niti-damente com a aparente degradação do ambiente urbano no Glicério. Essa degradação não significa, todavia, que não exis-tam manifestações de vida urbana no bairro – pelo contrário, os escassos espaços públicos ali presentes não dão conta de abrigar, em certos horários, todas atividades presentes2.

Dessa forma, a área do Carmo foi pensada a partir de sua du-pla condição: de um lado, como parte de um centro metropo-litano, imbricada entre situações urbanas e bairros diversos; e, de outro lado, a partir de sua característica específica de ter um uso residencial bem mais intenso que outras áreas desse centro.

2. Nas visitas realizadas à área, notou-se a grande movimentação presente nas ruas e em especial na pequena praça Ministro Costa Manso, a única área livre em meio ao casario e aos grandes edifícios da Baixada do Glicério. Ainda mais cheia durante a semana, na praça encontram-se crianças e jovens empinando pipa, pais que passeiam com seus filhos pequenos e também muitos adultos, que se reunem ao entardecer nos dois bares junto à praça.

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Aspectos históricos

Um dos principais fatores que contribuíram para determinar a área de estudo, conforme apontado, foi a importância his-tórica do lugar como um dos vértices do triângulo histórico, determinado por três edificações de ordens religiosas – São Bento, Carmo e São Francisco – e também como limite da área urbana. O bairro do Carmo se inseria como uma “porta de entrada” ao núcleo urbano, por onde chegavam os cami-nhos do Brás – através da Ladeira do Carmo e do Aterrado do Brás, conectado à Rua do Brás (Av. Rangel Pestana) – e da Mooca – através da Rua Tabatinguera, que se articulava à Rua da Mooca na outra margem do rio Tamanduateí.

Se “a situação geográfica da cidade de São Paulo teve um pa-pel estratégico, contribuindo para a penetração nas regiões no interior do continente durante o período de colonização portuguesa” (Anelli, 2011: 4), estruturando assim os cami-nhos e percursos externos, ela também representou, numa escala menor e interna, um papel igualmente estratégico. A geografia contribuiu para determinar a ocupação do território de forma diferenciada, criando pontos de referência e orienta-ção. Isso ocorreu à semelhança das cidades portuguesas, nas quais uma leitura espacial do território orientou o desenvol-vimento urbano, que, imbricado com a paisagem, foi estrutu-rado a partir das próprias condições geomorfológicas do sítio escolhido. Conforme aponta Manuel Teixeira, as “hierarquias do território estavam embebidas na estrutura urbana”, tor-nando assim as cidades portuguesas “naturalmente hierar-quizadas” (Teixeira, 2012: 43).

Essa hierarquia possibilita a orientação no território e o orde-namento da ocupação, dividida, nesse modelo, em dois nú-cleos principais: as chamadas “cidade alta” e “cidade baixa”. Mais que uma referência ao relevo, esses dois núcleos pos-suem uma forma urbana distinta e abrigam funções urbanas diferenciadas. Enquanto a primeira é estruturada a partir dos edifícios notáveis e dos eixos principais e simbólicos, a segun-da costuma margear a costa ou frente ribeirinha numa trama regular que cresce paralelamente à linha d’água. Da mesma forma, na “cidade alta” normalmente concentram-se os pode-res político, militar e religioso, além das instituições de maior importância, enquanto na “cidade baixa” desenvolvem-se as atividades comerciais e portuárias.

Lavadeira à margem do Rio Tamanduateí, 1910.Vê-se os fundos das casas voltadas à Rua Tabatin-guera e ao fundo, a Igreja da Boa Morte.Fotografia de Vincenzo Pastore.In: Meyer; Grostein, 2010.

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Considerando a área de estudo deste trabalho, vale ressaltar dois pontos a partir das observações sobre as cidades portu-guesas: primeiramente, a organização do núcleo urbano ini-cial de São Paulo em cidade alta e cidade baixa; e, em segundo lugar, a importância dos caminhos na estruturação da cidade.

No caso de São Paulo, a fundação da vila e o desenvolvimento embrionário da cidade, à maneira das cidades portuguesas, se deram a partir da condição geográfica, localizando a “ci-dade alta” – o núcleo urbano propriamente dito – na colina protegida e plana, entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, e a “cidade baixa” – o porto e o mercado – na várzea do Ta-manduateí, cujas inundações frequentes não atingiam a co-lina devido à diferença de nível abrupta entre as duas cotas (725m e 745m).

A cidade formal acontecia nas ruas planas da “acrópole”3 e nas ruas em declive que davam nos principais caminhos rumo ao interior e litoral. As áreas de relevo acidentado e a várzea eram via de regra evitadas, seja pelas inundações frequen-tes ou por serem cenário da informalidade. A “cidade baixa” junto à colina tinha “terrenos paludosos e miasmáticos, em frente ao antigo Mercado da Rua Vinte e Cinco de Março”, e o morro do Carmo, “medonho por suas altas e ruinosas mu-ralhas de pedra”, depois das obras do prefeito João Teodoro teria sido dotado de “beleza e segurança” (Toledo, 2004: 80).

Caminho da Mooca, 1862.Fotografia de Militão Augusto de Azevedo.In: Azevedo, 2012.

3. Benedito Lima de Toledo utiliza a imagem da acrópole para descrever o sítio urbano primordial de São Paulo, “o ‘platô’ do Triângulo”, partindo da descrição que Morgado de Mateus faz da colina histórica, em carta de 1766 ao Marquês de Pom-bal, onde afirma que a cidade se localizava “em sítio num elevado que a descobre em toda roda”. (TOLEDO, 2004: 12)

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Dentre as ruas em aclive, encontravam-se a Ladeira do Car-mo e a Ladeira da Tabatinguera, que conduziam os caminhos para o Rio de Janeiro e o litoral paulistano, respectivamente. Ambas as ladeiras tinham origem num vértice comum do triângulo histórico, o morro do Carmo, pontuado pelas edi-ficações religiosas das Carmelitas: Igreja e Convento do Car-mo e Igreja da Ordem Terceira do Monte Carmo (resta hoje somente a última, visto que as duas primeiras cederam lugar ao alargamento da Ladeira do Carmo e ao edifício sede da Secretaria da Fazenda, o Palácio Clóvis Ribeiro). A Ladeira do Carmo – hoje o início da Avenida Rangel Pestana – situava-se exatamente à frente das igrejas e do convento. Já a Ladeira da Tabatinguera tinha início na atual Praça João Mendes, então o largo da Casa de Câmara e Cadeira.

Conforme apontado por Benedito Lima de Toledo, a entrada na cidade se dava pelas “pontes de dentro”, que, como por-tais, mediavam a chegada dos tropeiros e feirantes pelos ca-minhos para “dentro” da cidade (Toledo, 2004: 40). Na cota mais baixa das ladeiras do Carmo e da Tabatinguera situa-vam-se então duas das “pontes de dentro”: a ponte do Carmo, que tinha continuidade com o caminho do Brás e do Rio de Janeiro, e a ponte da Tabatinguera, que conectava a ladeira à Rua da Mooca, rumo ao litoral.

Aterro do Brás, 1880.Fotografia de Militão Augusto de Azevedo.In: Azevedo, 2012.

Aspectos históricos:1. Rua Tabatinguera, 1862.2. Várzea do Carmo, 1862.3. Ladeira do Carmo, 1887.Fotografias de Militão Augusto de Azevedo.In: Azevedo, 2012.4. Ponte da Tabatinguera, 1925.Autor desconhecido.In: Canton, 2007.5. Ponte do Carmo, 1860.Fotografia de Militão Augusto de Azevedo.In: Toledo, 2004. 6. Rua do Carmo, 1862.7. Convento e Igreja do Carmo, 1862. Fotografias de Militão Augusto de Azevedo.In: Azevedo, 2012.Transformações urbanas:8. Construção das contenções e Esplanada do Carmo, 1930. Autor desconhecido.In: blogcelianeri.files.wordpress.com/2012/02/blog131.jpg9. Largo do Carmo (Praça Clóvis Bevilácqua), 1950.Fotografia de Gabriel Zellaui.In: Maia, 2010.

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Transformações urbanas

Ao longo do século XX, o morro do Carmo sofreu sucessivas transformações, sendo aqui apontadas como as de maior re-percussão a implantação do Plano de Avenidas e seu Períme-tro de Irradiação na área central e a construção do metrô, com as obras da estação Sé e da Linha 3-Vermelha do Metrô. As-sim como os aspectos históricos discutidos acima, não cabe aqui descrever todas as características do projeto e das trans-formações do Plano de Avenidas ou da construção do metrô, mas ressaltar de forma sucinta como esses grandes projetos urbanos interferiram no espaço e nas dinâmicas urbanas da área de estudo.

O Plano de Avenidas, proposto por Prestes Maia e Ulhôa Cin-tra na década de 1930, previa uma estrutura radioconcêntrica para o sistema viário de São Paulo. O projeto incluía um anel viário em torno do Centro, a partir do qual saíam as avenidas radiais. Esse anel, denominado “Perímetro de irradiação”, foi elaborado em três versões diferentes até sua implementação.

Vista da Ladeira do Carmo, 1939.Ao centro, a Esplanada e Ladeira do Carmo,após alargamento da via e demolição da Igreja e Convento do Carmo.Autor desconhecido.In: Maia, 2010.

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Em uma breve comparação entre a segunda e a terceira ver-sões do Perímetro, pode-se notar que a articulação Leste-Oes-te é enfraquecida. Na segunda versão, nota-se o desenho de um arco duplo na porção Sul do Perímetro (sendo o mais ex-terno o de maior porte), que se distribui a leste do canal do Tamanduateí a partir da Rua Tabatinguera, Rua da Mooca e Avenida Rangel Pestana. Nota-se assim, a proposta de três vias radiais sentido Leste que têm uma continuidade no Perí-metro: as duas vias mencionadas e a Rua do Gasômetro, que seria conectada à Avenida São João através de um túnel sob a colina.

Na versão final, o projeto não mais apresenta o arco duplo no trecho sul, e sim uma fusão dos dois: até a Praça da Sé é mantido o arco mais externo e a partir dela o arco mais inter-no, que nesse trecho corresponde à Avenida Rangel Pestana. A ligação entre os dois trechos é feita através da Praça João Mendes e Rua Anita Garibaldi, sendo aberta também a Pra-ça Clóvis Bevilácqua, com o intuito de aliviar o tráfego nesse sentido. A Avenida Rangel Pestana cruzaria o Parque D. Pe-

Vista do Centro, 1940.À esquerda, a rua Tabatinguera, o Fórum João Mendes e as obras da Catedral. À direita, a Av. Rangel Pestana e a igreja do Carmo.Autor desconhecido.In: smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografi-co/1940.php

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dro II e o canal do Tamanduateí, chegando à outra margem num encontro entre as avenidas do Estado e a porção Leste da Avenida Rangel Pestana. Nota-se nessa versão a fragmen-tação do percurso da Rua Tabatinguera até a Rua da Mooca, agora indiretamente conectadas através da Avenida Rangel Pestana. No plano ainda era previsto o túnel conectando a Rua do Gasômetro à Avenida São João, que não foi todavia executado, restando assim somente a Avenida Rangel Pesta-na como conexão contínua sentido Leste.

A segunda grande transformação da área foi a implantação do metrô na Praça da Sé, quando foi demolido o quarteirão que separava esta praça da Praça Clóvis Bevilácqua. As duas praças foram unidas através de um novo desenho, de acordo com o projeto da estação. Nota-se nessa transformação uma profunda descaracterização do espaço público, que adquiriu uma escala desmesurada em relação ao seu desenho, tenden-do assim a dispersar os usuários.

Verifica-se hoje que o porte da infraestrutura viária do Perí-metro de Irradiação, com um fluxo intenso de veículos, com-põe uma barreira urbana que, somada à descaracterização da Praça da Sé e Praça Clóvis, distancia as margens direita e es-querda da avenida: o tecido urbano é abruptamente interrom-pido, dividindo Sé e Carmo. Esse é um dos casos – talvez um dos primeiros e ainda pequeno perto do que seria posterior-

Perímetro de Irradiação, Plano de Avenidas, 1930.2a. e 3a. versões propostas.In: Toledo, 1996.

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Viaduto 25 de Março, Av. Rangel Pestana, Parque D. Pedro II., 1970Fotografia de Ivo Justino.Acervo Iconográfico / Casa da Imagem de São Paulo

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mente feito – em que a implantação de grandes infraestrutu-ras viárias sobre um território urbano consolidado promove a fragmentação do tecido urbano, criando “ilhas” apartadas. A leitura que se tem desse território é que há uma (nova) di-visão entre o “dentro” e o “fora” do centro – se outrora o que determinava esse limite eram os rios e as pontes, agora são as grandes avenidas perimetrais, que por sua vez não estabele-cem uma mediação e sim distanciam os dois lados.

Situação atual

A partir das visitas realizadas, algumas observações podem ser feitas a respeito da situação atual do Carmo e de seu en-torno. Quanto à ocupação, nota-se um mosaico de edificações históricas, algumas em bom estado de conservação (outras nem tanto), e também uma série de construções mais recen-tes, com gabaritos variados, deixando de criar assim qualquer ideia de um conjunto histórico.

Vista do Parque D. Pedro II, 2011.Fotografia de Nelson Kon.In: Secretaria Municipal de Deselvolvimento Urbano, São Paulo Urbanismo et al, 2012.

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Os usos existentes também são muito diversos. Nota-se com frequência edificações de uso misto (residencial e comercial), sendo o comércio normalmente especializado: Rua do Car-mo, Rua Tabatinguera e Rua Silveira Martins com fragrâncias e perfumes e Rua Conde de Sarzedas com artigos religiosos. Chama atenção também a presença de inúmeros sindicatos na área. A densidade habitacional na região aparenta ser re-lativamente alta. Além disso, observa-se também um grande número de estacionamentos, principalmente nas Ruas do Carmo e Tabatinguera, em terrenos de grande declividade.

Na descida da encosta, na Rua Oscar Cintra Gordinho e ruas vizinhas da Baixada do Glicério, o cenário muda, com a pre-sença de altos edifícios residenciais, alguns poucos com ativi-dade comercial no térreo. Aqui o comércio já não é especiali-zado, e atende principalmente aos moradores da região. Em contraste com essas grandes edificações, localizadas junto ao pé da encosta, existem muitas quadras que mantém as carac-terísticas da primeira ocupação da área, com o casario e vilas operárias, hoje em estado de grande degradação.

Setor Sé: Densidade demográfica preliminar (hab/km2)

50 - 47506550 - 1815019550 - 4415055000 - 582700721200 - 1021250

Fonte: IBGE, Sinopse por setores, CENSO 2010.

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Toda essa região só veio a ser urbanizada no início do século XX, pois até então fazia parte da área inundável do rio Taman-duateí, cuja retificação foi iniciada em 1894. O loteamento e a ocupação se deram então de maneira diferenciada daquela da colina, uma vez que “desde 1867 já havia sido estabele-cida uma função industrial ao longo do eixo ferroviário ins-talado nas várzeas e com ela a ocupação da Baixada do Gli-cério” (Canton, 2007: 20), em que predominavam as vilas operárias. Com a verticalização nas décadas de 1950 e 1960 da “zona de contato com o centro” criou-se uma situação de grande contraste na paisagem a partir dessas duas configura-ções do uso residencial. Nota-se também o elevado índice de encortiçamento, tanto das vilas quanto dos apartamentos. A carência de espaços públicos abertos e a forte presença das vias elevadas de tráfego expresso contribuíram para a degra-dação do ambiente urbano no bairro, que apresenta também elevado índice de criminalidade.

É importante ressaltar que a área central de São Paulo tem sido objeto de diversos planos e projetos urbanísticos, den-tre eles a Operação Urbana Centro e o mais recente Projeto Urbanístico para o Parque D. Pedro II, além de ser objeto do Plano Regional Estratégico que engloba a área da Subprefei-tura Sé. Não serão aqui discutidos especificamente cada um desses planos, mas apenas colocada uma observação feita a partir da leitura destes – a de que a despeito das várias pro-

Diagramas apontando obstáculos Leste-Oeste e Norte-Sul no sistema viário que envolve o Parque D. Pedro II e capa da publicação do Parque D. Pedro II: plano e projetos mostrando no primeiro plano o complexo viário da Av. Radial Leste-Oeste.In: Secretaria Municipal de Deselvolvimento Urbano, São Paulo Urbanismo et al, 2012.

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postas realizadas para a região, o perímetro do Carmo e Gli-cério normalmente não são “pauta” dos projetos públicos, a despeito de seu potencial e necessidades.

O exemplo mais marcante se fez notar na leitura do plano urbanístico para o Parque D. Pedro II, elaborado entre 2009 e 2011. A infraestrutura viária, reconhecidamente o principal entrave para a requalificação do parque e seu entorno, é ana-lisada na etapa de diagnóstico do plano e são apontados como “obstáculos” os três trechos de viadutos: Viaduto Diário Popu-lar, Viadutos 25 de Março e Antônio Nakashima e o conjunto que integra a Av. Radial Leste-Oeste: Viadutos do Glicério, 31 de Março e Gov. Roberto Abreu Sodré. Entretanto, somente constam proposições para os dois primeiros trechos, fican-do aquele que é notadamente o mais complexo e impactante, fora do escopo do projeto. Soma-se a isso o fato de o projeto do parque centrar-se na porção ao Norte da Av. Rangel Pesta-na, transferindo apenas o terminal de ônibus municipal para a porção Sul, integrando-o ao metrô D. Pedro II e expresso Tiradentes numa grande estação intermodal, e concentrando assim maior fluxo viário na Av. Rangel Pestana.

Situação atualFotos atuais da área de estudo.Fonte: Google Street ViewLocalização das fotografias das páginas 44-45, 54Em preto, a fotos históricas e em cinza, as atuais

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cartografias Uma aproximação mais objetiva ao recorte estudado nesse trabalho se deu a partir de uma análise baseada em cartogra-fias que compreendessem aspectos históricos, da geomorfo-logia e morfologia urbana e ainda da vida urbana do bairro. Essa abordagem busca identificar dinâmicas urbanas da área e a relação destas com o suporte físico existente. Procura-se assim uma compreensão do recorte espacial a partir do cru-zamento de aspectos materiais, históricos e sociais, com o in-tuito de chegar a uma interpretação de maior complexidade e relevância à abordagem projetual.

A opção pela elaboração e leitura dessas cartografias – que pretendia ir além das frequentes análises de uso do solo nor-malmente associadas ao suporte cartográfico –, revelou-se um importante motivador para a atividade projetual, princi-palmente por trazer uma compreensão mais global do recorte estudado.

As cartografias organizam-se assim em três conjuntos temá-ticos: “Histórico”, “Transições” e “Acontecimentos”.

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Planta da Cidade de São Paulo. Companhia Cantareira e Esgotos, 1881Mapa Topográfico do Município de São Paulo. Sara Brasil, 1930Município de São Paulo. Vasp, 1954Sistema Cartográfico Metropolitano da Grande São Paulo, GEGRAN, 1970

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As cartografias que investigam aspectos históricos consistem num conjunto de cinco mapas de diferentes períodos (1881, 1930, 1954, 1971 e 2012) com informações comuns – siste-ma viário, hidrografia, topografia (exceto a planta de 1881) e planta cadastral. A partir dessas bases comuns foi possível sobrepor e comparar esses diferentes documentos, que re-presentam a configuração urbana em momentos históricos determinados e, em seu conjunto, as transformações desta ao longo do tempo.

O interesse em analisar a evolução urbana no decorrer do tempo reside na possibilidade de identificar permanências de outros períodos e no entendimento da configuração urbana atual a partir da metáfora do “território como palimpsesto” (Corboz, 1983). O escritor André Corboz expõe que o terri-tório é composto por mais do que diferentes camadas his-tóricas, uma acumulação de marcas, traços e mutações con-densados, e que intervenções contemporâneas não devem ignorar essa dimensão.

Bem como Corboz, Milton Santos faz referência às marcas no espaço, utilizando-se da figura das “rugosidades”, ou seja do que “fica do passado como forma, espaço construído, pai-sagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares” (Santos, 2009: 140). Tal como entendi-do pelo geógrafo, as rugosidades trazem ao espaço o regis-tro do tempo: “ele [o espaço] testemunha um momento de um modo de produção pela memória do espaço construído, das coisas fixadas na paisagem criada. Assim o espaço é uma forma, uma forma durável, que não se desfaz paralelamente à mudança de processos; ao contrário, alguns processos se adaptam às formas preexistentes enquanto que outros criam novas formas para se inserir dentro delas” (Santos, 1980: 138).

Assim, partindo dessas considerações, foram realizadas lei-turas das cartografias históricas, tendo em vista identificar “rugosidades”, permanências e supressões que informam a configuração territorial atual e que influenciam potenciais intervenções.

histÓrico

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planta da cidade de são paulo.companhia cantareira e esgostos, 1881

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mapa topográfico do município de são paulo. sara brasil, 1930

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município de são paulo.vasp, 1954

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sistema cartográfico metropolitano da grande são paulo. gegran, 1970

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mapa digital da cidade. pmsp, 2012

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O grupo de cartografias “Transições” é composto por duas pe-ças em mesma escala (1:5000), sendo uma delas na realidade uma maquete do relevo da área de estudo – uma “cartografia tridimensional” – e a outra uma planta de “cheios/vazios”, isto é, áreas edificadas e áreas livres, não-edificadas. Esse con-junto de cartografias tem como objetivo evidenciar as peculia-ridades da geomorfologia e morfologia urbana da área.

A utilização de mapas de “figura/fundo” ou “público/privado” como instrumento de análise remete à reflexão trazida pelos arquitetos Colin Rowe e Fred Koetter na década de 1960, ela-borada por eles a partir da planta de Roma de 1748 desenvol-vida por Gianbattista Nolli. Segundo Kate Nesbitt, “Os dese-nhos de Nolli ressaltam o papel dos espaços público e privado na determinação do caráter da cidade. A principal descoberta do grupo de pesquisadores de Cornell [Rowe e Koetter] foi que a arquitetura moderna havia invertido a proporção entre espaço ‘livre’ e espaço construído, produzindo resultados de-sastrosos no nível da rua.” (Nesbitt, 2008: 293)

Considerando a colocação de Kate Nesbitt, é possível identi-ficar na planta de “cheios/vazios” do Carmo as quadras em que há o predomínio do padrão de ocupação do século XIX e início do XX, assim como os trechos em que intervenções foram realizadas, criando “lacunas” – que correspondem em grande parte às grandes obras viárias que interceptam o teci-do urbano do Centro de São Paulo.

O interesse da análise “Transições” revelou-se na comparação das duas peças produzidas, e no que seria a interação que se dá entre geomorfologia e formas de ocupação do solo. Para essa leitura, foi fundamental analisar cada um dos elementos separadamente com mesmo peso, e assim entender os pon-tos de contato entre si. Considerando a observação feita an-teriormente sobre a forma de ocupação do território urbano tipicamente portuguesa – em que a geografia está imbricada na estrutura e paisagem urbanas – nota-se que, em um dado momento do desenvolvimento urbano de São Paulo, essas duas camadas do território estiveram intimamente relaciona-das, e que, no entanto, com o crescimento da cidade, passam a coexistir de maneira quase autônoma, gerando espaços re-siduais e incongruências no tecido urbano.

transições

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A aproximação mais difícil de se fazer de maneira objetiva se refere à vida urbana do bairro. Como horizonte, a partir dessa análise, procurou-se reconhecer os locais legitimados pela população (residente ou não) como espaços públicos e de interesse. A cartografia elaborada consiste em uma cata-logação das atividades do SESC Carmo por seis meses – que se estendem para além do edifício da instituição –, plotadas na planta de mesma escala das análises anteriores (1:5000).

É evidente que esses eventos e os locais onde se dão não sintetizam o que seria a vida urbana do bairro. Entretan-to, conhecendo a atuação do SESC em São Paulo, nota-se a preocupação da instituição com a inclusão social, oferecendo atividades culturais e esportivas acessíveis à população. A si-tuação particular do SESC Carmo, um edifício de dimensões reduzidas se comparado a outras unidades, serve de estímulo à realização de atividades em outros espaços – praças e edifí-cios públicos –, de maneira a ocupar esses locais e estimular a população residente ou não a participar dessas atividades.

O mapeamento dessas atividades (em amarelo) revela os lo-cais que a instituição reconhece como espaços de uso público, seja para atividades físicas, culturais ou de lazer. Nota-se que esses espaços em geral se encontram em situações onde há uma população residente a quem se destinam as atividades – como é o caso da Praça Ministro Costa Manso –, ou em locais mais centrais, de maior acessibilidade, onde as ativi-dades recebem a população de diferentes regiões – como nos concertos nas igrejas do Centro ou na Praça Antônio Prado.

Essa cartografia revelou a concentração das atividades em 4 principais áreas: no Carmo e Baixada do Glicério, no Centro histórico, na Liberdade e na Mooca, em ordem de ocorrência. De forma inesperada, notou-se que, apesar da proximidade com a Praça da Sé, atividades que requerem um espaço am-plo (como dança ou atividades esportivas) são realizadas nas Praças da Liberdade e Ministro Costa Manso. A última con-centra a maior parte dos acontecimentos, com destaque para aqueles voltados ao público infantil, dada a grande quanti-dade crianças residentes na Baixada do Glicério. Outro fator surpreendente revelado pelo mapa é a existência de ativida-des do outro lado do Tamanduateí, na Mooca, sugerindo que, apesar das sucessivas barreiras urbanas existentes entre os bairros do Carmo, Glicério, Mooca e Brás, pode ainda haver algum vínculo entre eles.

acontecimentos

Registros das atividades promovidas pelo SESC Carmo nas Praças Ministro Costa Manso (1,2,3), do Carmo (4,5) e da Libertade (6,7).Fonte:1,2,3: http://nhemaria.blogspot.com.br/4: http://sympa.com.br/ 5: http://poupatemposp.blogspot.com.br/6,7: http://indiovert.blogspot.com.br/

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Praça Min. Costa Manso

EMEF Duque de CaxiasPraça Dr. Mário Margarido

Praça da Liberdade

SESC Carmo

E.E. Antônio Firmino de Proença

Capela dos Aflitos

Paróquia São Francisco de Assis

Igreja Santo Antônio

Praça Antônio Prado

Igreja N. S. da Boa Morte

Praça do Carmo

Casa da Solidariedade

Tenda ParqueD. Pedro II

Igreja Sta. Cruz das Almas dos Enforcados

Clube Escola Novo Glicério / Tia Eva

Secretaria da FazendaPoupatempo Sé

Comando do Corpo de Bombeiros

Catedral da Sé

Praça da Sé

Páteo do Colégio

Term. Pq. D. Pedro II

Metrô D. Pedro II

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Praça João Mendes

Term. Bandeira

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Praça Min. Costa Manso

EMEF Duque de CaxiasPraça Dr. Mário Margarido

Praça da Liberdade

SESC Carmo

E.E. Antônio Firmino de Proença

Capela dos Aflitos

Paróquia São Francisco de Assis

Igreja Santo Antônio

Praça Antônio Prado

Igreja N. S. da Boa Morte

Praça do Carmo

Casa da Solidariedade

Tenda ParqueD. Pedro II

Igreja Sta. Cruz das Almas dos Enforcados

Clube Escola Novo Glicério / Tia Eva

Secretaria da FazendaPoupatempo Sé

Comando do Corpo de Bombeiros

Catedral da Sé

Praça da Sé

Páteo do Colégio

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Metrô D. Pedro II

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Praça João Mendes

Term. Bandeira

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duas chaves,quatro ações

A aproximação da área de estudo através das leituras feitas an-teriormente trouxeram à tona as transformações pelas quais passou o Carmo e alguns aspectos da condição atual dessa área, em muito determinada por essas mudanças. Dentre as características dessa situação atual destaca-se a paisagem ur-bana heterogênea, definida pela sobreposição e mistura de elementos de diferentes tempos históricos – decorrente de demolições circunstanciais ou grandes intervenções, como a construção de edifícios destacados (a Secretaria da Fazenda, por exemplo) ou de obras de infraestrutura (a abertura da Pra-ça Clóvis Bevilácqua ou o nivelamento das ladeiras). A ocu-pação do território em diferentes momentos do tempo his-tórico somada à situação geomorfológica particular da colina histórica (e, em especial, do vértice do Carmo) contribuíram para uma ocupação bastante desigual em termos de tempos, formas e usos.

Outro fator característico da condição atual da área de estu-do é a presença de grandes infraestruturas cuja implantação gera espaços residuais – sejam eles os baixos dos viadutos ou as “áreas verdes” nos canteiros e alças de vias expressas – e desqualifica o ambiente urbano, criando espaços e percursos inóspitos ou inapropriados aos pedestres. Situações com es-sas características são encontradas na ladeira da Avenida Ran-gel Pestana e na Avenida do Estado, às margens do canal do Tamanduateí; o próprio Parque D. Pedro II é exemplar, pois sintetiza a condição de barreira urbana associada às infraes-truturas de grande escala, desarticuladoras da escala local.

Dessa forma, a partir das leituras e observações feitas a res-peito da área de estudo e de seu potencial enquanto área cen-tral, são propostas aqui quatro intervenções no sentido de articular esse território, partindo de sua condição e vínculos atuais. Valoriza-se também o elevado contingente habitacio-nal – que tem ainda possibilidade de adensamento em certas situações e que constitui um grupo diversificado de morado-res – associado ao uso misto como condições desejáveis à ur-banidade. Ao invés de fortalecer essa característica através da proposição de projetos habitacionais, este exercício projetual optou pela criação de suportes que amparassem essa condi-ção e proporcionassem um espaço urbano inclusivo.

Além disso, ainda que as ações propostas não se estendam ao Parque Dom Pedro II – afinal, trata-se de uma questão em si de grande complexidade –, imagina-se como panorama futu-

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ro a possibilidade da consolidação da área como parque cen-tral de São Paulo, dotado de equipamentos metropolitanos.

Nesse sentido, as propostas aqui apresentadas buscam, atra-vés da intervenção no território, conferir coesão ao tecido ur-bano e à ocupação existente. A seguir, são apresentadas qua-tro ações possíveis, compreendidas a partir de duas chaves operativas: (1) “Infraestrutura e tecido urbano”, como frente para colocar a questão das barreiras; e (2) “Geografia e mor-fologia urbana”, como caminho para estudar os espaços resi-duais.

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A primeira chave traz como enfrentamento a questão das barreiras urbanas construídas, ou seja, da desarticulação produzida na escala local por infraestruturas que servem a uma escala metropolitana. No caso da área de estudo, trata-se principalmente do sistema viário que configura o Centro como nó de distribuição metropolitano e, na escala local, traz o esgarçamento do tecido urbano e a conformação de “ilhas”.Apesar de existirem alguns raros exemplos de conciliação en-tre essas duas escalas4, o impacto negativo da infraestrutura na escala local é recorrente em diversas situações na metrópo-le de São Paulo, em particular os grandes eixos de transporte (viário ou sobre trilhos). Conforme aponta o arquiteto Fer-nando de Mello Franco, “os sistemas de transporte operaram como estruturadores na grande escala e desestruturadores na esfera local de São Paulo” (Franco, 2005: 250), podendo-se citar como exemplos as avenidas marginais do Pinheiros e Tietê, as linhas em superfície do metrô e trem, a via expressa “Elevado Costa e Silva”, dentre outros.

Diante do papel crucial que desempenham essas infraes-truturas na metrópole de São Paulo e da necessidade de sua expansão – particularmente do sistema de transporte sobre trilhos –, coloca-se como questão aos arquitetos e urbanistas o desafio de tornar viável a articulação dessas escalas: “o au-mento da capacidade desse conjunto de vias de comunicação tende, paradoxalmente, a acentuar seu caráter desestrutura-dor da escala local dos lugares por onde passa. A tarefa do urbanismo será a redução, ou mesmo a superação, da carac-terística de sutura dos sistemas estruturais de transporte” (Franco, 2005: 255). Coloca-se assim, a necessidade de pensar as infraestruturas a partir de duas frentes (ou duas escalas), metropolitana e local, o que implica projetar infraestruturas e reconsiderar as existentes a partir de sua dupla condição de sistema e de objeto5.

Dentro dessa chave, no caso do recorte territorial estudado o principal desafio é o de reconsiderar as infraestruturas exis-tentes e, particularmente, o sistema viário que configura o Centro como um grande nó de distribuição. Nesse entron-camento viário, trata-se especificamente da Avenida Rangel Pestana que consiste no principal eixo de comunicação Les-te-Oeste da rótula conformada pelo Perímetro de Irradiação (que é complementada pela contra-rótula da Avenida Radial Leste-Oeste).

chave 1infraestrutura e tecido urbano:barreiras

4. Fernando de Mello Franco cita alguns exem-plos, destacando que “A implantação exemplar da Estação da Luz em São Paulo, o projeto viário do Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro e a Avenida Nove de Julho em Buenos Aires demonstram que há formas possíveis de conciliação entre os sistemas viários de grande porte e a urbanidade desejada para o seu percurso” (Franco, 2005: 250).

5. “O traçado de sistemas infraestruturais provoca repercussões na organização das dinâmicas me-tropolitanas e por isso merece cuidadosa atenção. No entanto, as infraestruturas possuem também outra dimensão – a do objeto.Os objetos infraestruturais – ruas, avenidas, pon-tes; torres de alta tensão, postes de luz; galerias subterrâneas; estações de metrô – têm sua exis-tência justificada por um sistema. A articulação entre esses objetos permite que a função básica da infraestrutura, de suporte, seja cumprida. (...) No entanto, vale lembrar que o objeto, afinal, deve ser implantado em um dado local e sua interfe-rência nesse espaço também deve ser pensada. É sobretudo por meio do objeto infraestrutural que se dá a mediação do sistema com o homem, com o público ou usuário. Entendidos a partir dessa perspectiva – como a interface física de um sistema –, os objetos infraestruturais têm sua im-portância ainda mais atrelada à dimensão urbana. O projeto de infraestrutura urbana pressupõe, portanto, uma proposição em diversas escalas — do sistema ao objeto.” (Mendonça, 2012: 18)

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As intervenções propostas dentro desta chave podem ainda ser entendidas como uma articulação externa, uma tentativa de mediação entre o Carmo e bairros vizinhos, notadamente cindidos pelas barreiras urbanas em questão. As ações pro-postas se colocam, então, no sentido de mitigar o impacto dessas barreiras e mediar essa relação entre as diferentes áreas através dos segmentos de contato.

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ação 1transição sé-carmo

Nesta proposta, o objeto a ser enfrentado é a “borda” que se-para o Carmo da Sé, isto é, o segmento do Perímetro de Irra-diação composto pela Rua Anita Garibaldi e Avenida Rangel Pestana e a própria Praça da Sé. Esse trecho viário funciona hoje como um gargalo para a conexão Leste-Oeste, sendo seu fluxo e dimensões incompatíveis com a escala do Centro his-tórico. Adjacente a ele, a Praça da Sé – cujo limite atualmente inclui a Praça Clóvis Bevilácqua – consiste num espaço públi-co de grandes dimensões que, no entanto, não comporta um uso público da mesma escala. Seu desenho elaborado – talvez excessivamente – conforma vários nichos e restringe percur-sos variados, além de não criar uma relação solidária com as ruas adjacentes (em particular, com a própria Rua Anita Ga-ribaldi).

Nesse sentido, entende-se que uma ação projetual nessa si-tuação deva almejar a coesão do tecido urbano, rompido pelo eixo viário e pela própria praça. Sugere-se aqui como alterna-tiva uma intervenção no desenho da praça que reconsidere a possibilidade de congregação de grande público, de percursos diversos e relacionados aos principais eixos do entorno e da dissolução das barreiras nos pontos de contato com as vias e espaços adjacentes. Quanto à Avenida Rangel Pestana, ima-gina-se um cenário em que seja possível a redução do fluxo viário a partir da expansão do sistema de transporte público e também da alternativa de distribuição do fluxo numa trama melhor articulada. Seria então possível a diminuição do leito carroçável e o redesenho das calçadas e paisagismo, elemen-tos primários de um projeto, constituindo assim um possível eixo de conexão com o Parque Dom Pedro II.

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ação 2transposição do tamanduateí

Trata-se do restabelecimento da conexão entre o Carmo e a Mooca através da ligação da Rua Tabatinguera à Rua da Moo-ca – recuperando a travessia original –, entendendo a apro-ximação dessas duas margens do rio como a conexão Les-te-Oeste em escala local. Existe hoje nesse trecho o grande entroncamento viário da Avenida do Estado com a Avenida Radial Leste-Oeste. Esta é a principal conexão em escala me-tropolitana dos vetores Leste e Oeste de São Paulo. Entretan-to, dentre as várias ligações feitas por alças independentes, a simples transposição direta do canal do Tamanduateí, conec-tando as margens adjacentes nesse trecho bastante estreito, não se efetiva.

Para essa intervenção, imagina-se um cenário onde todas as transposições do Tamanduateí pudessem ser feitas em nível, sendo a Avenida do Estado dotada de um caráter mais urba-no, abandonando suas características de via expressa e confi-gurando-se como bulevar.

Contando com uma diminuição de fluxo viário e com a ca-pilarização desse fluxo por meio de diversos pequenos ajus-tes nas vias de menor porte, seria possível então considerar a retirada das alças da Radial Leste-Oeste. Com isso, ficariam separados os fluxos local e expresso (metropolitano), possi-bilitando assim a conexão entre as Ruas Tabatinguera e da Mooca em nível, entendida como um eixo de fluxo local sobre o canal do Tamanduateí.

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A segunda chave proposta, definida sobretudo a partir das cartografias “Transições”, tem como tema a intersecção entre a geografia e a morfologia urbana na área de estudo. A obser-vação de que a geografia peculiar do sítio urbano de São Paulo foi um fator que determinou as formas de ocupação deste território se contrapõe à forma como a paisagem urbana atual se apresenta, fruto de inúmeras e rápidas transformações, em meio às quais a relação entre geografia e ocupação parece ter perdido o sentido.

Se a incorporação das características geográficas na estru-tura urbana lhe provia de uma hierarquia e legibilidade, a ocupação desordenada de um sítio complexo cria situações de incongruência e desencontro. Considerando geografia e morfologia urbana como duas camadas, nota-se na sua so-breposição uma série de espaços residuais, produzidos pela construção da segunda camada à revelia da primeira. Para uma cidade que se expandiu “saltando de colina em colina” (Ab’Sáber, 2007: 22), mas também “incorporando baixos ter-raços”, a ocupação de maneira criteriosa das diferentes situa-ções geográficas poderia – ou deveria – ter sido fundamental. Entretanto, dada a velocidade com a qual a expansão urbana ocorreu, os interesses que a motivaram e o fato de não ter sido devidamente amparada por planos de ocupação, isto não ocorreu em São Paulo e, desses fatores, resulta em parte sua atual paisagem urbana. Diante da perspectiva de intervenção no território urbano a partir de sua condição atual, isto é, de uma cidade existente, dotada de sobreposições e rugosidades, coloca-se aqui como hipótese a identificação nesses espaços residuais de possibi-lidades projetuais a partir dos quais seria possível estabelecer conexões estruturais no tecido urbano – e, através dos espa-ços públicos, também no tecido social. Essa hipótese pode se estender às mais diferentes situações urbanas nas quais se possa identificar pontos de intersecção como possíveis espa-ços de transição: desde os centros consolidados e os “vazios” produzidos por suas transformações, até as situações de en-costa e de fundo de vale em “áreas urbanas críticas” (Vigliec-ca, 2012).

Esses espaços também são entendidos aqui a partir do con-ceito de terrain vague, apresentado por Solà-Morales para de-signar “espaços subutilizados com mais significado passado que presente, partes do interior de uma cidade que todavia

chave 2geografia e morfologia urbana:espaços residuais

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se encontram fora das lógicas organizacionais e utilitárias”, que poderiam constituir “áreas que adquirem um outro sig-nificado (talvez na contramão do senso comum) no mundo urbano pós-industrial” (Sassen apud. Solà-Morales, 2002: 8, tradução livre). Embora ao falar em terrain vague Solà-Morales se refira principalmente aos vazios urbanos de grande escala – das áreas urbanas de função obsoleta –, a ideia de um espa-ço residual de um processo de urbanização e com potencial de instaurar uma outra experiência urbana permanece como uma proposta pertinente a este estudo.

No recorte territorial estudado, onde a situação geográfica de colina e encosta é marcante, notam-se trechos consideráveis de desnível acentuado, que criam uma separação clara entre as cotas da colina e da várzea. Dentre as duas situações apon-tadas como potenciais intervenções, uma delas configura um ponto de desnível abrupto e a outra uma faixa em declive, correspondente à encosta Sudeste da colina. Essa condição particular do relevo contribui à situação de isolamento das diferentes cotas, que se caracterizam por situações urbanas diversas – conforme apontado anteriormente, a cota da colina correspondendo à cidade “propriamente dita”, lugar dos edi-fícios, espaços públicos representativos e empregos, e a cota da várzea como o lugar onde as pessoas moram em condi-ções precárias, ou então como o “lugar-nenhum” dos fluxos de transporte.

Dessa forma, a chave “Geografia e morfologia urbana: espa-ços residuais”, em contraposição à anterior, apresenta pro-postas de articulação internas, isto é, utiliza-se de brechas internas ao tecido urbano para estabelecer relações possíveis num território fragmentado. As propostas colocam então a possibilidade de novas conexões numa outra camada do teci-do urbano, valendo-se dos espaços públicos como articulação sócio-espacial.

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ação 3infiltração na rua tabatinguera

A ação de infiltração na Rua Tabatinguera busca reconsiderar a encosta junto a essa rua, hoje enclausurada entre as diversas construções enfileiradas ao longo dos 540 metros dessa rua na cota superior e os grandes edifícios residenciais ao longo da Rua Oscar Cintra Gordinho, na cota inferior. A diferença de nível entre as duas ruas chega a 22 metros, sem qualquer ponto de conexão. Enquanto na cota superior as edificações são bastante diversas em termos de uso – habitacional, co-mercial, misto e estacionamentos, com predominância do último –, na cota inferior há um complexo de edifícios resi-denciais de alta densidade, construídos no mesmo momento (1958), quando a área aterrada foi definitivamente ocupada. A ocupação na Rua Tabatinguera, apesar de a grande maioria de suas edificações ter sido substituída, preserva sua disposi-ção original, isto é, com os fundos dos lotes voltados para a encosta, ao pé da qual corria o curso natural do Rio Taman-duateí. As edificações da cota baixa também têm seus fundos voltados para a encosta. Assim, a proposta de intervenção consiste em criar infiltra-ções, isto é, abrir passagens na cota superior que a conectem à cota inferior, criando assim, pontos de conexão entre essas situações distintas. Esses eixos de conexão são imaginados enquanto espaços públicos, que poderiam abrigar equipa-mentos e atividades diversas e que também dariam acesso ao eixo longitudinal, imaginado como espaço de lazer de uso coletivo.

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ação 4desdobramento dapraça do carmo

Por fim, a proposta de desdobramento da Praça do Carmo su-gere a apropriação da área onde atualmente encontra-se o es-tacionamento da Secretaria da Fazenda – e que, conforme ob-servado nas cartografias históricas, nunca fora antes ocupada – com a intenção de desdobrar a Praça do Carmo existente até a cota da várzea, na Rua Frederico Alvarenga (continuação da Rua 25 de Março). Se a alta declividade do relevo não permi-tira a ocupação dessa área até a década de 1970, a oportuna construção da saída do túnel do metrô por esse trecho de des-nível abrupto reafirmou definitivamente essa condição – ou pelo menos, a impossibilidade de uma ocupação convencio-nal desse sítio. Nessa área, delimitada em uma das faces pelo edifício da Secretaria da Fazenda, há algumas edificações de três pavimentos na Rua das Carmelitas, junto a um edifício residencial de 12 pavimentos e outro edifício de mesmo porte na Rua Frederico Alvarenga. Sobre o estacionamento, junto à Rua Alcides Bezerra, foi construída uma creche para os filhos de funcionários da Secretaria.

A proposta aqui apresentada pretende consolidar o mirante existente na Praça do Carmo (hoje um beco, com um muro que impede a vista e ocupado também por um pequeno es-tacionamento) e estender o espaço público à cota da várzea, construindo uma praça de equipamentos e configurando as-sim um conjunto de espaços públicos num ponto excepcional de contato da “cidade alta” com a “cidade baixa”.

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3. ensaios

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Das quatro propostas apresentadas para o Carmo na seção anterior, duas delas serão desenvolvidas neste trabalho. Ain-da que se considere a importância das propostas enquanto conjunto, não caberia no escopo deste trabalho o desenvol-vimento com mesmo critério de todas elas. Optou-se, então, pelo enfrentamento mais aprofundado dos desafios coloca-dos pelas ações da segunda chave, “Geografia e morfologia urbana: espaços residuais”. A escolha baseou-se sobretudo na observação de que, embora ambos elementos – geografia e morfologia urbana – tenham aparecido em diferentes mo-mentos como temas de trabalhos e estudos desenvolvidos na graduação da FAU USP, normalmente são abordados separa-damente e associados a uma “particularidade local”, e não in-vestigados como uma condição possivelmente sistêmica. Se-gue, portanto, a apresentação das propostas de infiltração na Rua Tabatinguera e desdobramento da Praça do Carmo a partir de observações sobre sua situação atual e indicações de ações projetuais possíveis – e estratégicas.

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rua conde de sarzedas

rua carolnia augusta

rua tabatinguera

rua

das

carm

elit

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rua helena zerrener

rua joÃo d

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rua glicério

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rua oscar cintra gordinho

praça min. costa manso

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infiltraçÃo na rua tabatinguera

Situação

A proposta de infiltração na Rua Tabatinguera despertou in-teresse inicial pela situação geográfica de encosta e pela dife-rença entre a ocupação e a atividade urbana na cota superior e inferior. Conforme apontado anteriormente, nota-se uma condição de isolamento entre essas duas áreas, que já histori-camente apresentavam formas diferentes de ocupação e uso.A encosta, ao pé da qual passava o curso natural do Rio Ta-manduateí, fica hoje comprimida no interior da quadra de-limitada pelas Ruas Tabatinguera na cota superior e Oscar Cintra Gordinho e Carolina Augusta na cota inferior. Dessa forma, os fundos dos lotes ao longo dessas ruas (nas duas cotas) dão para esse grande declive.

Enquanto na cota superior verifica-se uma sucessão de edifi-cações de usos diversos (ainda que predominem os estacio-namentos), na cota mais baixa há uma sequência de edifícios residenciais construídos num mesmo momento, que confor-mam um grande “paredão”, escondendo a encosta posterior. Nesse nível, em frente ao “paredão” localiza-se a pequena praça Ministro Costa Manso, um alargamento da esquina das Ruas Oscar Cintra Gordinho e Helena Zerrener. Aí se con-centram cotidianamente inúmeras atividades e encontros dos moradores da região – sejam eles crianças, adultos ou idosos.

situação

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Fotos do local1. Vista da Rua Tabatinguera e atrás, dos edifícios situados na cota inferior.2. Único terreno não-edificado na cota inferior3. Rua Oscar Cintra Gordinho4, 5, 6. Rua Tabatinguera: áreas de intervenção7. Fundo de lote de estacionamento (da foto 5)8. Único terreno não-edificado na cota inferior9. Praça Ministro Costa Manso

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Ações projetuais

A intervenção proposta concentrou-se na área de maior decli-vidade, no trecho entre as Ruas Tabatinguera e Oscar Cintra Gordinho. Buscando identificar possíveis características sis-têmicas dessa situação urbana, imaginando o que poderia ser uma situação “corriqueira” de transposição de cotas, colocou-se como desafio conceber estratégias projetuais que instru-mentassem intervenções em áreas de encosta em contextos urbanos consolidados.

A proposta de intervenção nessa situação foi imaginada como uma infiltração1, isto é, se há hoje uma condição de barreira entre as duas cotas, propõe-se a conexão desses dois níveis através de pequenas aberturas em meio às edificações exis-tentes. Assim, se a encosta constitui uma faixa intransponí-vel, a infiltração é determinada através de linhas de penetração entre as duas cotas, dispostas transversalmente a essa faixa e determinadas a partir do contexto existente, encontrando bre-chas e situações favoráveis a essa transposição.

Considerando a peculiar situação dos edifícios nas duas cotas, os interstícios encontrados são um tanto distintos. No nível su-perior, são propostas três aberturas, correspondentes a lotes onde hoje encontram-se estacionamentos. Essas três abertu-ras têm continuidade até a cota inferior, chegando à outra rua. Imaginou-se a possibilidade de espraiamento dessa infiltra-ção ao pé da encosta, ao longo do vazio no interior da quadra, que corresponde aos fundos de lote dos edifícios residenciais nessa cota, incorporando também os térreos desses edifícios.

Os três eixos de conexão propostos são entendidos como infraestrutura pública, garantindo a transposição de nível. É também sugerido um eixo longitudinal, no “miolo” da qua-dra, que poderia configurar-se como uma área de lazer cole-tiva.

As infiltrações transversais, além de articularem as duas co-tas por meio de elevadores e escadas e alcançarem as ruas da cota inferior diretamente ou através de galerias, são dotadas de equipamentos públicos de pequeno porte ou serviços que possibilitam a apropriação desses lugares também como pon-tos de referência e sociabilidade, mais do que somente pas-sagens. Os equipamentos e serviços propostos são de escala local, isto é, servem primariamente aos moradores da região.

1. Infiltração: “(1) ação de fluido que se insinua ou penetra nos interstícios de corpos sólidos” (Gran-de Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa)

implantação

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situação

infiltrações

programa1. casa de cultura2. centro comunitário3. biblioteca4. creche5. restaurante-escola6. telecentro

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Propõe-se que cada eixo transversal seja amparado por uma dupla de programas: casa de cultura e centro comunitário, biblioteca e creche, restaurante-escola e telecentro. Em geral, essas duplas de programas se dividem entre a transposição vertical (ao longo das escadarias) e o ponto de chegada, no térreo dos edifícios junto às galerias e passagens.

Quanto ao eixo longitudinal sugerido, e pontuado pelos eixos transversais, imagina-se a possibilidade de ocupação dos ou-tros térreos com comércio, como já acontece em alguns deles. Esse comércio local poderia ter duas frentes: para a rua e para o quintal coletivo. Este, por sua vez – se flexibilizados os limi-tes dos lotes –, poderia constituir-se como uma ampla área de lazer para os moradores da região, contribuindo à conforma-ção de uma esfera pública.

Dessa forma, pode-se entender que a intervenção também se divide entre o que estrutura essa nova condição imaginada – isto é, o espaço, equipamentos e infraestrutura públicos – e o que ampara essa situação – espaço coletivo, comércio. Essa distinção também implica um reconhecimento dos limites da intervenção, seja em relação ao projeto arquitetônico em si, seja em relação a quem compete a responsabilidade sobre es-ses espaços. Dessa forma, há uma distinção entre o que deve ser projetado – aquilo que é entendido como área pública, cuja execução e manutenção competem ao poder público – e o que aparece como sugestão de uso e apropriação – a área privada, que poderia ser transformada a partir de uma articu-lação com a população.

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rua oscar cintra gordinho

rua jo

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e car

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planta inferior

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rua oscar cintra gordinho

rua helena zerrener

rua glic

ério

1. casa de cultura2. centro comunitário3. galeria e acesso ao edifício

4. biblioteca5. creche6. galeria e comércio

7. comércio sugerido8. restaurante-escola9. Área externa (restaurante)

10. telecentro11. passagem aberta12. biblioteca infantil

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rua oscar cintra gordinho

rua tabatinguera

ru

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carm

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rua proposta

rua jo

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e car

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planta superior

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rua oscar cintra gordinho

rua helena zerrener

rua glic

ério

rua tabatinguera

ru

a d

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arm

elit

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rua tabatinguera livraria existente

casa de cultura

corte transversal

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rua oscar cintra gordinhocentro comunitÁrio

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rua oscar cintra gordinhopraça ministro costa manso creche - 1o. pav - 5o. pav

biblioteca infantil - 6o. pav

corte transversal

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rua tabatinguera

biblioteca

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rua oscar cintra gordinho telecentro

corte transversal

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restaurante-escola

rua tabatinguera

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rua frederico alvarenga

rua dom pedro ii

av. do estado

rua do carmo

rua

taba

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rua dr. bitencourt rodrigues

rua 25 de março

rua alcides bezerra

rua das carmelitas

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desdobramento da praça do carmo

Situação

A intervenção denominada desdobramento da Praça do Carmo tem como área o terreno do estacionamento da Secretaria da Fazenda, nos “fundos” do Palácio Clóvis Ribeiro, entenden-do-o como uma possível continuidade, em cota inferior, das Praças Clóvis Bevilácqua e do Carmo. Este recinto situa-se à beira do Parque Dom Pedro II, vizinho ao arranque da ponte que conecta as margens Leste e Oeste do Tamanduateí, pela Avenida Rangel Pestana. Ao contrário da situação da encosta da Rua Tabatinguera, entendida como sistêmica, trata-se ago-ra de uma situação muito particular e complexa e, por isso, a tarefa de descrevê-la e entendê-la é mais árdua que a anterior e, consequentemente, extensa.

Com relação à situação geográfica, à semelhança da encosta da Rua Tabatinguera, essa área também corresponde a um desnível ao pé do qual corria o curso natural do Tamandua-teí. Essa frente ribeirinha, antiga Rua do Mercado e Rua do Hospício (hoje Ruas 25 de Março e Frederico Alvarenga), foi aterrada no momento da retificação do Tamanduateí.

O relevo nesse quadrilátero configura-se como uma queda abrupta, hoje ainda mais acentuada, que não recebeu ne-nhum tipo de ocupação no miolo, somente nas bordas deli-mitadas pelas Ruas das Carmelitas, Joaquim dos Santos An-drade e Alcides Bezerra. Na última, encontra-se hoje a creche que atende aos servidores da Secretaria da Fazenda (Uniepre Secretaria da Fazenda), construída sobre o estacionamento; nas demais ruas, encontram-se dois edifícios residenciais de mais de dez pavimentos com comércio – bares e restaurantes – no térreo, bem como outras três edificações de três pavi-mentos estritamente residenciais.

No projeto para a construção do metrô na década de 1970, houve uma mudança de planos em relação à implantação da Linha 3-Vermelha que alterou sua configuração de via subter-rânea (passando por baixo do canal do Tamanduateí em sen-tido Leste) à via elevada (até a estação Brás). A saída encontra-da então para o túnel entre as estações Sé (subterrânea) e D. Pedro II (elevada) foi justamente a definição desse desnível abrupto, logo atrás do Palácio Clóvis Ribeiro. As obras, reali-zadas em vala aberta, desviaram da Igreja da Ordem Terceira do Carmo e exigiram a demolição das edificações onde foi en-tão aberta a Praça do Carmo e construídas as contenções que

rua dr. bitencourt rodrigues

rua 25 de março

1. praça do carmo2. praça clóvis bevilácqua3. praça da sé4. igreja da ordem terceira do carmo5. secretaria da fazenda 6. sesc carmo7. creche uniepre secretaria da fazenda8. igreja da boa morte9. casa da solidariedade10. ama-sé11. quartel piratininga

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situação

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hoje delimitam a área do estacionamento. Conforme aponta-do anteriormente, se antes o relevo não permitira a ocupação desse espaço, a construção da “boca” do túnel do metrô, cujos trilhos então cruzam a área elevados, efetivou a impossibili-dade de ocupação convencional nessa área.

Além da creche e da Igreja da Ordem Terceira do Carmo mencionadas acima, alguns outros programas existentes na área têm importância particular para o projeto. Dentre eles, destaca-se o Poupatempo, serviço público de obtenção de do-cumentos e atestados – a unidade da Sé, vizinha à área de intervenção, situa-se no Palácio Clóvis Ribeiro e é acessada pela Praça do Carmo (na cota superior à entrada da Avenida Rangel Pestana). Diariamente são atendidas cerca de 11 mil pessoas2 pela unidade, a mais movimentada da cidade.

Outra referência importante para o projeto foi o próprio SESC Carmo, que serviu de base para analisar os acontecimentos do bairro. Diferente de outros SESCs, esta unidade conta com um espaço bastante exíguo. As atividades promovidas tam-bém não são, em geral, de grande público, como no caso das unidades dotadas de amplos anfiteatros e espaços expositivos. Ainda assim, o SESC Carmo é uma entidade relevante na re-gião por promover atividades culturais destinadas a todas as faixas etárias, para moradores da área ou não.

Situada em terreno vizinho à área de projeto, a Casa da So-lidariedade ocupa o edifício histórico do antigo Ginásio do Estado e desenvolve, através do Fundo de Solidariedade do Estado, projetos sociais para crianças, adolescentes e também adultos. A Casa atende crianças e adolescentes em situação de risco social e promove atividades extracurriculares e culturais no contraturno da escola. Também existe num dos espaços da Casa a “escola de moda”, que oferece cursos de criação e costura e auxílio financeiro, com o intuito de “oferecer a seus participantes condições para inserção ou reinserção no mercado formal de trabalho ou a montagem de pequenos ne-gócios que possam oferecer renda.”3

Além da Casa da Solidariedade, outra referência de entidade de articulação social é o Clube Escola Novo Glicério – situado próximo à área de intervenção, em área que poderia integrar o Parque D. Pedro II. O Clube é produto da iniciativa de mora-dores do Glicério, que fundaram a escola auto-gestionada que oferece atividades esportivas às crianças e jovens da região.

2. Fonte: PINHO, Márcio. “Usuário de Poupatem-po no centro de São Paulo convive com goteira e lixo”. Folha de S.Paulo, Cotidiano. 13 de maio de 2010. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1305201023.htm3. Descrição oficial da Casa da Solidariedade, disponível em: www.fundosocial.sp.gov.br/portal.php/programas-projetos-casa-solidariedade

Fotos do local1. Vista do “mirante atual”2.Estacionamento da Secretaria da Fazenda3. Vista da Rua Alcides Bezerra4. Vista da área de intervenção a partir do metrô D. Pedro II5. Praça do Carmo (“mirante atual”)6. Vista da área de intervenção e Rua Frederico Alvarenga a partir da Casa da Solidariedade7. Vista da área de intervenção a partir do Pou-patempo

Fotos do localVista da área de intervenção a partir do Palácio Clóvis Ribeiro

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Ações projetuais

A proposta de desdobramento da Praça do Carmo apresentada em sequência partiu de algumas das condicionantes descritas acima e teve como objetivo projetar o que seria essa situação excepcional de encontro de cotas (em contraposição à infiltra-ção na Rua Tabatinguera, que buscava um solução sistêmica). Isto é, a partir de sua condição peculiar, busca-se imaginar essa situação como um dos trechos de contato da cidade alta e cidade baixa – à maneira da Ladeira da Memória, do que poderia ser a área do Páteo do Colégio, dentre outros.

A proposta foi então concebida a partir do cruzamento da escala metropolitana colocada pela localização e presença de grandes equipamentos e infraestruturas – Poupatempo, me-trô, Parque D. Pedro II, equipamentos culturais metropolita-nos etc. – e da escala local, onde se inserem os moradores da região, o cotidiano de quem vivencia esse lugar, as atividades do SESC e os programas de assistência social. O espaço públi-co proposto para essa área, acomodando as diferentes cotas, foi imaginado então a partir desse cruzamento, considerando a possibilidade de apropriações de diversas naturezas.

O desdobramento da Praça do Carmo configura-se, assim, como uma grande praça, distribuída em três níveis princi-pais concebidos como terraços, voltados para o sol nascente: o mirante, na cota da cidade alta (749 m), ao final da Praça do Carmo; a rua-praça, na cota intermediária, de transição (742 m), que permite a passagem sobre o túnel do metrô; e a praça de equipamentos, na cota da Rua Frederico Alvarenga ou a cota da cidade baixa (729 m), que permite por sua vez a passagem sob o viaduto elevado do metrô.

Propõe-se assim a consolidação na cota mais alta da praça do mirante, com uma intervenção mínima que envolveria a re-tirada dos muros que impedem a vista e do estacionamento que impede o acesso à área. O mirante se “desdobra” na des-cida por uma escadaria-arquibancada, chegando à cota inter-mediária. Nesta, por sua vez, propõe-se um eixo transversal, como uma rua-praça que em uma ponta articula as duas es-quinas locais e na outra, atravessa o Palácio Clóvis Ribeiro por meio de uma galeria no térreo do edifício. No “miolo”, seg-mentado entre as duas cotas que permitem a transposição do metrô (742m, 729m), propõe-se dois “edifícios”, de programa educacional e cultural – a creche, reimplantada, e uma escola

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implantação

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desdobramento1. mirante2. rua-praça3. praça de equipamentos

conexões

programa1. creche (uniepre)2. escola de circo

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1

2

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de circo –, voltados para a praça na cota inferior, configurando assim esse espaço como uma praça de equipamentos. Ao longo do túnel do metrô e junto à escola de circo, é proposta uma galeria de conexão vertical, que meio de elevadores e escadas, articula a cota da praça de equipamentos à da rua-praça e do mirante, além de permitir o acesso ao estacionamento.

O espaço público poderia abrigar inúmeras atividades – des-de as atividades promovidas pelo SESC ou outras instituições, até as iniciativas mais espontâneas e cotidianas, incluindo a nova demanda colocada pela escola de circo proposta, inseri-da no espaço “intermediário” entre as duas cotas mais baixas. No outro “edifício” desse espaço, é proposta a inserção da cre-che. Prevê-se assim a remoção da creche atual, abrindo a vista para a Rua Alcides Bezerra.

A proposta da escola de circo foi concebida ao mesmo tem-po como um programa social e cultural e como catalisador do espaço público. O programa foi assim um tanto inspirado pelas outras atividades voltadas às crianças e adolescentes da região, em particular o Clube Escola Novo Glicério, cuja re-percussão é bastante positiva. Ao mesmo tempo, também foi imaginado como ativador dessa grande praça, uma vez que suas atividades poderiam se apropriar de maneira criativa das diferentes condições espaciais – da rua-praça, da praça infe-rior, do baixo do viaduto do metrô... Dessa forma, a proposta da escola de circo também é entendida a partir de um cruza-mento de escalas, envolvendo as crianças e adolescentes da região que se apresentam e interagem com a “plateia” dos fluxos e atividades metropolitanas que acontecem cotidiana-mente ali.

À exceção da creche, reimplantada na mesma área, e do anexo da Secretaria na Rua Frederico Alvarenga, os outros edifícios foram mantidos na quadra, imaginando-se, para o caso das construções de uso misto, que se efetive uma interação com a praça através dos pavimentos térreos, que abrigam bares e restaurantes atualmente. Considerando-se que hoje suas fa-chadas voltam-se somente à rua, a abertura da praça na cota mais baixa permitiria que suas fachadas “dobrassem” a esqui-na, com abertura também para esse espaço interno da praça.

Quanto ao estacionamento da Secretaria da Fazenda, que hoje ocupa todo o chão da área de intervenção, propõe-se a criação de um estacionamento em dois níveis subterrâneos, atenden-

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praça do carmoressalta-se o conjunto das três praças, nas cotas da colina, intermediária e da várzea.

praça da repúblicanota-se a proximidade das escalas da “rua-praça” proposta e do trecho entre as ruas do arouche e 7 de abril da praça da república. o local além de espaço de circulação e estar, abriga feiras semanais.

pÁteo do colégioem semelhante situação geográfica, o páteo do colégio também se aproxima em escala da proposta de desdobramento da praça do carmo.

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do à demanda atual. O acesso ao estacionamento principal se dá hoje através de uma “rua interna” com acesso pela Avenida Rangel Pestana, entre o Palácio Clóvis Ribeiro e a Igreja do Carmo. Propõe-se assim o prolongamento dessa rua interna até a Rua Frederico Alvarenga, sem a necessidade de restrição de acesso e ao longo da qual poderiam ser abertos serviços relacionados à Secretaria da Fazenda nos níveis inferiores do Palácio, que abrem para essa rua. O acesso ao estacionamen-to proposto se daria por esse percurso, no trecho próximo à Frederico Alvarenga.

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planta primeiro subsolo: 726.5m

1

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1. galeria de circulação vertical2. acesso ao estacionamento3. controle de acesso

creche:4. secretaria5. brinquedoteca

6. refeitório7. salas8. solário

escola de circo:9. administração10. oficinas

11. salão principal12. salas multiuso

1

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planta praça de equipamentos: 729.5m

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rua frederico alvarenga

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planta primeiro pavimento: 734m

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rua das carmelitas

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rua frederico alvarenga

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planta segundo pavimento: 737.5m

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rua das carmelitas

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rua frederico alvarenga

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ter

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planta mirante: 749m

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praça de equipamentos

rua-praça 742.0739

735734

rua alcides bezerra

rua do carmo

rua das carmelitas

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mirante

praça de equipamentos

749.0

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rua frederico alvarenga

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corte transversal

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corte longitudinal

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elevação leste

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4. hipóteses

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159

O percurso deste trabalho passou por inquietações iniciais que, de uma maneira ou de outra, influenciaram a aborda-gem do recorte territorial estudado. A partir das aproxima-ções desse recorte, foram reconhecidas certas problemáticas e potencialidades que passaram a constituir o substrato do ensaio projetual, incitando suas premissas e diretrizes. A elaboração desses ensaios apresenta, por sua vez, estratégias espaciais possíveis. Para além delas, coloca também questões e possibilidades para discussão.

Conforme apontado inicialmente, o Trabalho Final de Gra-duação (TFG) foi aqui entendido como a formulação de uma questão, motivada por uma problematização de nossa forma-ção e da realidade a ser enfrentada profissionalmente. Nesse sentido, considera-se o exercício projetual acadêmico, espe-cialmente o do TFG, um trabalho propositivo que não tem o fim em si mesmo – isto é, para além de um projeto arquite-tônico, trata-se da construção de bases para uma discussão. Dessa forma, pretende-se nessas “Hipóteses” colocar – como fechamento ao trabalho e, também, como abertura – alguns desdobramentos possíveis desses projetos. Não se trata, as-sim, de uma conclusão sobre esses ensaios mas de questões levantadas a partir deles. Ainda que de maneira incipiente, busca-se apontar o que os ensaios trazem como reflexão para as disciplinas da arquitetura e do urbanismo.

Page 160: Sobre projeto e cidade: espaços públicos e território urbano

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A temática dos projetos centrou-se nos espaços públicos e no território urbano, trazendo como possibilidade a leitura do es-paço urbano a partir do conceito de território usado. A aborda-gem conduzida foi desenvolvida a partir desse viés; os proje-tos se propuseram, assim, a criar articulações territoriais. Isso implica considerar o cruzamento entre os aspectos físicos e sociais no território – a interação entre pessoas, a interação entre coisas e também a interação entre pessoas e coisas.

Para essa abordagem, entendeu-se como questão central a relação entre ocupação, apropriação e território urbano. O en-frentamento da realidade da cidade atual coloca a necessidade de se intervir sobre um contexto existente e uma paisagem construída, daí a pertinência da análise de sua ocupação – em termos de uso mas também enquanto forma – e da apropria-ção do espaço, ou seja, como as pessoas usam, constroem, criam vínculos e modificam o espaço urbano.

Nesse sentido, uma hipótese aventada a partir desses ensaios é a de que seria possível transformar o território através do projeto de espaços públicos, partindo do contexto existente. Isto é, de que seria possível transformar – seja criar, poten-cializar ou alterar – relações sem a necessidade de adição de novos elementos físicos, e sim através do desenho do vazio, entendido como mediador dessas relações.

Essa hipótese pode também ser entendida como uma defesa ao “projeto do solo”, uma das quatro metáforas do projeto da cidade e do território contemporâneos denominadas pelo ar-quiteto e urbanista Bernardo Secchi:

“a quarta metáfora é a do conceito de projeto do solo, apresentando a ideia de que em uma cidade e em um território – como aqueles contemporâneos, cada vez mais caracterizados pela dispersão das edificações, dos sujeitos, das linguagens, das técnicas, dos papéis e das funções, ou seja, em uma cidade e em um território caracterizados por uma dilatação, cada vez mais evidente, de todas as gran-dezas – fosse possível construir uma estrutura espacial reconhecível não tanto pelo desenho do edifício individual como pelo desenho do solo e seu vigor. A ideia de que so-mente o desenho do solo, em todas as suas especificações, declinações e dimensões, pudesse regular as ‘distâncias corretas’ entre os objetos, os sujeitos e suas interações” (Secchi, 2009: 86-87).

espaços públicos como possibilidade projetual

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A articulação que os ensaios se propõem a estabelecer tam-bém pode ser entendida como a estrutura espacial à qual se refere Secchi. Entende-se que a possibilidade de construção dessa estrutura num contexto urbano existente, complexo e fragmentado, se daria potencialmente por um vazio estrutu-rador, que não necessariamente adiciona novos elementos à paisagem urbana, ao contrário, recoloca o papel dos existentes.

Entende-se que recolocar o contexto existente é uma possibili-dade na medida em que o desenho do espaço público modifi-que a inserção dos elementos da paisagem construída, a par-tir da criação de hierarquias e referências no espaço urbano, e assim, na maneira como é percebido. Dessa forma, entende-se o potencial transformador dos espaços públicos enquanto aqueles que conferem legibilidade à paisagem construída.

Ao mesmo tempo, o “projeto do solo” num contexto existente coloca a necessidade de identificar possibilidades de inserção, o que certamente não pressupõe a transformação radical do contexto existente. Nos ensaios apresentados, a inserção des-ses espaços imbricados numa paisagem construída foi encon-trada a partir das áreas residuais – o que é “resíduo” passa a ser dotado, assim, de grande potencial transformador.

Esse mesmo vazio estruturador também é entendido em si como a área potencialmente preenchida por atividades im-previstas, aquela que “dá condições de uma atuação criativa no espaço”. Dessa forma, propõe-se o projeto de espaços pú-blicos como aquele que entende a intervenção física, a ma-téria, “não como construtora de formas, mas como agencia-dora de condições a serem ativadas por uma ação no espaço” (Guatelli, 2012: 18). O espaço público é então concebido como aquele que abre espaço e dá suporte à apropriação pública.

Dessa forma, coloca-se aqui como hipótese os espaços pú-blicos como uma possibilidade projetual no território urbano contemporâneo. Entende-se seu potencial de transformação urbana a partir de duas condições: uma que lhe é “interna” e outra que lhe é “externa”. A primeira seria sua condição de suporte à apropriação pública e a segunda, sua inserção na paisagem urbana, recolocando o contexto no qual se insere. Dessa forma, acredita-se no potencial dos espaços públicos como estruturadores e também como intermediários4. Isto é, além de constituir uma estrutura espacial legível, que ressig-nifica a cidade existente, tem também o papel de mediação e suporte entre espaço físico e social.

4. A ideia de “intermediário” provém aqui do conceito de “in-between” de Aldo Van Eyck: “Quando A. Van Eyck propôs, no último CIAM (CIAM-XI, Ortelo, 1959), a noção de ‘in-between’, buscava uma reflexão, no âmbito das dissidências do grupo funcionalista, no sentido de superar as polaridades e dicotomias, o protagonismo e a autonomia do objeto arquitetônico e dar conta dos espaços de transição entre arquitetura e urbanis-mo”. (Sales, 2008: 26)

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projeto como operaçÃo

Além da hipótese temática – que enxerga no projeto dos es-paços públicos a possibilidade de se efetivar uma intervenção estrutural e articuladora no território urbano –, foram tam-bém imaginadas duas leituras possíveis para o projeto arqui-tetônico na condição urbana contemporânea: a ideia do proje-to como operação e da arquitetura como relação.

A possibilidade de se pensar o projeto arquitetônico como operação5 considera a intervenção física a partir de sua inser-ção como elemento ativo no território urbano. Uma operação seria então uma ação projetual (ou conjunto de ações) objeti-vando produzir ou provocar uma transformação num deter-minado contexto. Nesse sentido, entende-se que essa opera-ção arquitetônica é um primeiro movimento, um raciocínio colocado antes mesmo de sua configuração espacial final, isto é, que esta seria antes uma estratégia espacial que um engen-dramento da forma arquitetônica. Nesse sentido, essa hipó-tese muito se aproxima das “quatro operações”, amparadas pelas “quatro imagens”, apresentadas pelo arquiteto Ângelo Bucci em sua tese de doutoramento:

“A hipótese que apresento é de que as imagens poéticas são capazes de sustentar certas travessias. Para isso, proponho a seguir quatro imagens. (...) Podem ser entendidas como ‘quatro atuações imaginárias’, cujo propósito é amparar a proposição de projetos de arquitetura, como operações no ambiente urbano” (Bucci, 2005: 114).

O arquiteto também apresenta essas “operações”, ou “atua-ções imaginárias”, como um raciocínio anterior ao projeto ar-quitetônico, uma ideia que ampara a proposição do mesmo, tendo como objetivo “sustentar um sentido propriamente humano para a atividade da arquitetura” (Bucci, 2005: 114).

A hipótese de compreender o projeto como operação aqui apresentada é todavia entendida por outro viés, qual seja a possibilidade de, a partir desse raciocínio “anterior” ao pro-jeto, intervir no território urbano. Considera-se a operação arquitetônica como uma concepção sistêmica, que, enquanto ação, poderia, portanto, ser reconsiderada em diferentes si-tuações urbanas. Com isso, pode-se entender que essas opera-ções podem atuar numa escala territorial, compondo um pa-norama mais amplo de transformação – para citar novamente as metáforas de Bernardo Secchi, “qualquer projeto só podia construir novas situações através da sucessão de pequenas

5. Operar: “(3) provocar uma reação; produzir, surtir (um efeito)” (Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa)

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alterações de papel e do sentido de partes de cidade, cujas dimensões, de qualquer forma, eram bem reduzidas em re-lação às dimensões então assumidas pelo fenômeno urbano” (Secchi, 2009: 85).

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arquitetura como relaçÃo

Complementarmente à ideia do projeto arquitetônico como operação, deduziu-se dos ensaios projetuais – ou, mais espe-cificamente, de sua configuração espacial – a possibilidade de pensar a arquitetura como relação. Se nessas propostas foi possível entender o projeto como operação, esta se configurou a partir dos elementos do contexto existente; ou seja, supõe-se que a partir de um determinado desenho (que se reflete em uma ação espacial) seria possível modificar a relação entre os elementos preexistentes. No caso dos ensaios apresentados, as operações entendidas como infiltrar e desdobrar acontece-riam na medida em que induziriam modificações nas rela-ções entre o suporte físico, elementos construídos e dinâmi-cas de uso e apropriação nas situações onde se inserem.

A partir disso coloca-se a terceira hipótese, de pensar a arqui-tetura no contexto urbano contemporâneo como relação. Isto é, mais do que um objeto, a arquitetura deve produzir e trans-formar o contexto no qual se insere. Entendida então como intervenção física excepcional num determinado contexto, a arquitetura poderia assim intervir na leitura do ambiente ur-bano para além de seus limites físicos.

Nesse sentido, sugere-se o paralelismo com a metáfora da ponte, feita por Heidegger na conferência “Construir, habitar, pensar”:

“O lugar não está simplesmente dado antes da ponte. Sem dúvida, antes da ponte existir, existem ao longo do rio mui-tas posições que podem ser ocupadas por alguma coisa. Dentre essas muitas posições, uma pode se tornar um lu-gar e, isso, através da ponte. A ponte não se situa num lugar. É da própria ponte que surge um lugar” (Heidegger, 2006: 133).

Pode-se partir dessa metáfora para entender que a interven-ção arquitetônica no espaço – a ponte –, para além de cum-prir sua função primeira – no caso, de estabelecer a conexão entre as duas margens –, deve produzir uma transformação que transborda a si própria – com a ponte, cria-se um lugar nas margens.

É nesse sentido que se propõe aqui a compreensão da arqui-tetura como relação, ou então, como ponte. Isto é, propor que a arquitetura, dentro de seus limites físicos, seja concebida a partir de sua inserção no contexto e de sua capacidade de

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transformá-lo, objetivando a criação de uma nova condição a partir da relação estabelecida com a situação existente. Enten-de-se, dessa forma, que não são os limites físicos que deter-minam a extensão do projeto arquitetônico.

Nesse sentido, uma observação importante a ser feita é a de que transformar além dos limites de uma intervenção física não implica necessariamente a expansão dos limites oficiais dessa intervenção. Aproveitando ainda mais uma vez a metá-fora da ponte, entende-se que a criação do lugar por ela nas margens do rio não exige necessariamente um desenho des-sas margens. Isto é, acredita-se que seria possível em certos casos, a partir da identificação de uma determinada situação com potencial, ater-se ao projeto da ponte em si, e que a mate-rialização desta induziria transformações nas suas margens.

Ainda que as hipóteses aqui apresentadas sejam apenas al-gumas ideias levantadas a partir da elaboração dos ensaios projetuais, considera-se essa breve reflexão como abertura de caminhos possíveis para se repensar a produção arquitetôni-ca hoje, recolocando seu papel de transformação do espaço urbano.

Nota-se que no contexto urbano contemporâneo nem toda intervenção espacial pode ser entendida como arquitetônica, ao contrário, esta consiste numa intervenção excepcional em meio à cidade construída. Acredita-se, no entanto, que não é essa condição excepcional que deva fazer dela um objeto de reverência e destaque na paisagem urbana. Ao contrário, diante do afastamento que a arquitetura tem apresentado das transformações urbanas, coloca-se então a possibilidade de se imaginar como a intervenção arquitetônica poderia ter então um papel de transformação do espaço urbano contemporâ-neo – e, portanto, não ser somente um entre inúmeros ele-mentos que compõem uma paisagem urbana, mas sim um elemento capaz de produzir uma nova condição, para além do objeto limitado.

Assim, foi apresentada a ideia dos espaços públicos como uma possibilidade projetual, imaginando-os como potenciais transformadores do espaço urbano a partir das possibilidades de abrigar articulações sociais e apropriações imprevistas e de atuarem como estruturadores da paisagem urbana.

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Além disso, foi aventada a hipótese de concepção do projeto como operação arquitetônica, revelando o potencial transfor-mador em grande escala que a arquitetura poderia assumir se pensada como elaboração de intervenções sistêmicas. Isto é, se o raciocínio espacial engendrado pode ser recolocado em tantas outras circunstâncias, o projeto ganha então uma di-mensão muito maior de intervenção.

Por sua vez, a hipótese da arquitetura entendida como relação aparece como uma alternativa para se pensar sua inserção no território urbano que envolve necessariamente o contexto existente. A concepção da arquitetura como relação num de-terminado contexto coloca assim a possibilidade de estender a proposição arquitetônica para além dos limites do próprio projeto.

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anexos

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jardim e miradouro do torellisboa, portugal

o jardim do torel, localizado no bairro de são josé em lisboa situa-se em encosta voltada à avenida da liberdade. o jardim é composto por alguns largos e palacetes construídos no século xix. sua situação geográfica se asseme-lha à área de intervenção na praça do carmo, que também utilizou-se dos terraços em níveis para se adequar à encosta.

fontes:1. bing maps2. fotografia de paulo guerrain: www.flickr.com/photos/53125972@n00/57634408843. fotografia de miza monteiroin: www.flickr.com/photos/57878485@n02/8458721401/sizes/o/in/photostream4. fotografia de suzana irles in: meninaemoca.com/sugestao.php?id=4

referÊncias projetuais e conceituais

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escadas urbanas e miradouroslisboa, portugal

nos exemplos abaixo, notam-se algumas das muitas situações na cidade de lisboa em que nota-se articulações de níveis e diferenças de cotas e também dos miradouros, que tiram proveito da situação geográfica particular.

1. mirador da graça, aires mateusfotografia de flávio bragaia2. mirador da graça. 3. escadinhas de são tomé.4. escadinhas de são crispim.google street view

escadarias

os exemplos ao lado apresentam escadarias em diferentes escalas e espaços urbanos sendo usadas como área de estar. 1. city hall. londres, inglaterra. foster&partnersin: www.guardian.co.uk/uk/picture/2011/apr/08/london-weather-sunshine2. piazza di spagna. roma, itália.3. galeria entre deux. maastricht, holandaarquivo pessoal

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ocupações em miolos de quadrarestauração do chiado, lisboaÁlvaro siza vieira1. bairro do chiado após incêndio em 1988in: home.fa.utl.pt/~camarinhas/iaee02_visitas.htm2, 3, 4: interiores das quadras restauradas. fotografias de flavio bragaia

plaYgrounds zeedijk e dijkstraatamsterdã, holandaaldo van eyckin: www.architekturfuerkinder.ch/

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projetos de praças e espaços públicossergels torg. estocolmo, suécia

fontes: www.flickr.com/photos/amnesikawww.flickr.com/photos/tc4711www.clickpix.eu

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projetos de praças e espaços públicosmiYashita park. tÓquio, japãoatelier bow-wow

largo do mercado. florianÓpolis, scvigliecca&associados

schouwburgplein. roterdã, holandawest 8

fontes: www.bow-wow.jpwww.vigliecca.com.brwww.flickr.com/photos/st_ludwig/5365781523/

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apropriação de espaços residuais

follY for a flYoverlondres, inglaterraassemble studioin: assemblestudio.co.uk/

festival baixo centrosão paulo, spfotografia de Ângela león

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estudos iniciais

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