espaÇos de controle social e o direito À cidade ... · espaÇos de controle social e o direito À...

15
ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz 1 Priscila da Silva 2 Eliane dos Santos Ferreira 3 RESUMO Nos últimos tempos, especialmente durante as últimas décadas, reflexões sobre os espaços de controle social vêm qualificando o debate econômico e político, redesenhando as regras de ocupação do espaço construído e tensionando as fronteiras de classe. Partindo da compreensão da participação referida a elementos essenciais dos processos democráticos, pretende-se discuti-la a partir de suas contradições nos espaços de controle social. A complexidade das relações sociais na atualidade impõe novos ângulos sobre os quais se instala o debate, demandando maior participação dos movimentos sociais, na perspectiva da defesa dos direitos, principalmente do direito à cidade. Palavras-Chaves: participação, controle social democracia, direito à cidade RESUMEN En los últimos tiempos, especialmente durante las últimas décadas, reflexiones sobre el controle social vienen cualificando el debate económico y político, resideñando las reglas de ocupación del espacio construido y tensionando las fronteras de clase sociales. Partiendo de la comprensión que la participación se refiere a elementos esenciales de los processos democráticos, se pretende aquí discutirla a partir de sus contradicciones. Osea, la complejidad de las relaciones sociales en la actualidad impone nuevos ángulos sobre los cuales se instala el debate demandando mayor participación de los movimentos sociales, tanto por medio de acciones directas como por la representación política, con vistas a la defensa de los derechos. Palabras-claves: participación, controle social, democracia, derecho a la ciudad. 1 Doutora. Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected] 2 Estudante. Universidade Federal de São Paulo. 3 Estudante. Universidade Federal de São Paulo.

Upload: trinhcong

Post on 12-Feb-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas

necessárias

Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz1

Priscila da Silva2

Eliane dos Santos Ferreira3

RESUMO

Nos últimos tempos, especialmente durante as últimas décadas,

reflexões sobre os espaços de controle social vêm qualificando o

debate econômico e político, redesenhando as regras de ocupação do

espaço construído e tensionando as fronteiras de classe. Partindo da

compreensão da participação referida a elementos essenciais dos

processos democráticos, pretende-se discuti-la a partir de suas

contradições nos espaços de controle social. A complexidade das

relações sociais na atualidade impõe novos ângulos sobre os quais se

instala o debate, demandando maior participação dos movimentos

sociais, na perspectiva da defesa dos direitos, principalmente do

direito à cidade.

Palavras-Chaves: participação, controle social democracia, direito à

cidade

RESUMEN

En los últimos tiempos, especialmente durante las últimas décadas,

reflexiones sobre el controle social vienen cualificando el debate

económico y político, resideñando las reglas de ocupación del espacio

construido y tensionando las fronteras de clase sociales. Partiendo de

la comprensión que la participación se refiere a elementos esenciales

de los processos democráticos, se pretende aquí discutirla a partir de

sus contradicciones. Osea, la complejidad de las relaciones sociales

en la actualidad impone nuevos ángulos sobre los cuales se instala el

debate demandando mayor participación de los movimentos sociales,

tanto por medio de acciones directas como por la representación

política, con vistas a la defensa de los derechos.

Palabras-claves: participación, controle social, democracia, derecho a

la ciudad.

1 Doutora. Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected]

2 Estudante. Universidade Federal de São Paulo.

3 Estudante. Universidade Federal de São Paulo.

Page 2: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

1. INTRODUÇÃO

O projeto neoliberal, subsídio econômico, político e ideológico de um padrão de

acumulação capitalista que desloca as responsabilidades do Estado para a sociedade,

tem seus efeitos perversos identificados nas diferentes expressões da questão social

no contexto brasileiro. No cumprimento dessa tarefa, o capital intensifica a

desconstrução do aparato técnico e administrativo do Estado, o qual se distancia do

interesse público e coletivo e, sob pressão de uma lógica mercantil concebida por

interesses individuais, desenvolve ações públicas legitimadas pelo capital, alicerçando

políticas de auto regulação pelo mercado.

A população é levada a esperar nada mais do Estado, a viabilizar-se por si

mesma no mercado ou na dinâmica societária. A sociedade civil torna-se espaço tanto

de colaboração e de ação solidário-voluntária, no qual a questão social transforma-se

em questão de dever moral, quanto de explicitação das contradições que configuram

um campo de tensões estabelecido entre a presença cada vez mais profunda das

desigualdades sociais e as diferentes formas de enfrentamento que, historicamente,

vêm sendo construídas por segmentos significativos da sociedade brasileira.

Por outro lado, os traços que desenham o perfil da sociedade brasileira ainda

são definidos, historicamente, por uma estrutura fundiária que privilegia a

concentração de terra, de renda e de riqueza. Em um processo de urbanização

intensiva, as cidades são transformadas em paraíso da especulação financeira e

imobiliária, por meio da financeirização da produção da cidade e da moradia e cujos

padrões de urbanização e desenvolvimento estão relacionados com as diferentes

formas da desigualdade – social, econômica, política e ambiental - com o desemprego,

baixos salários, aumento da pobreza, analfabetismo, crianças e famílias vivendo nas

ruas, doentes sem tratamento, moradias precárias e falta de terra para os

trabalhadores.

Page 3: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

Tendo esses elementos como pressupostos, a aproximação aos conselhos de

direitos e políticas sociais, particularmente os conselhos municipais de habitação,

permitiu uma maior compreensão da dinâmica do poder político que perpassa as

relações estabelecidas entre diferentes sujeitos políticos, poder que é atravessado

pelas velhas heranças político-econômicas, característica de nossa formação sócio

histórica, tais como o paternalismo, o favor e o clientelismo que se manifestam nesses

espaços políticos.

A observação sistemática do conselho municipal de habitação do município de

Santos, além do levantamento de dados dos conselhos de política social de habitação

da região metropolitana da Baixada Santista como objeto de pesquisa e extensão,

durante dois anos, tornou possível identificar o exercício da política para além de suas

normativas, desafiando a elaboração de análises explicativas sobre a realidade social

dos sujeitos participantes desses espaços de controle social e as respostas

construídas no cotidiano da atuação nos mesmos.

As reflexões aqui desenhadas remetem a uma crítica ao senso comum que se

tornou o debate da participação e que só poderá ser superado, se houver vontade

política de aprofundar suas contradições.

Conforme Antunes (1999), o envolvimento manipulatório das classes trabalhadoras

é levado ao limite, o consentimento e a adesão dos trabalhadores tornam-se objetivo

para viabilizar um projeto que é desenhado e concebido segundo os fundamentos

exclusivos do capital. Os interesses e contradições da sociedade de classes são

aguçados no cerceamento do direito da manifestação, no estímulo à criminalização

dos movimentos sociais, na mercantilização das cidades e nos despejos violentos,

submetidos ao ideário do capitalismo que tem no Estado as garantias da taxa média

de lucro e das possibilidades da acumulação do capital. Neste contexto, a participação

e o controle social assumem um perfil formal, de predomínio dos privilégios que

naturalizam as desigualdades econômicas e sociais.

2. A DINÂMICA SOCIETÁRIA E OS ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL

Page 4: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

Para refletir sobre a ação dos sujeitos políticos inseridos nos canais de

participação, tais como os conselhos de direitos e políticas, o que nos remete à

conceitos como cidadania, democracia e participação social, é preciso, ainda que

brevemente, situar sua inserção na sociedade brasileira a partir do marco da

Constituição Federal de 1988 e cuja emergência tem raízes nas lutas e mobilização

social travadas no interior da ordem societária capitalista. E na relação Estado e

sociedade, o desafio que se apresenta é o de superar a pouca experiência histórica,

pois tais conceitos nunca foram usufruídos em plenitude ao longo da trajetória

republicana brasileira, como lembra Behring e Boschetti, “...num país em que a

democracia sempre foi mais exceção que regra” (2011, p.178).

Para adensar o debate, Coutinho (apud Alves, 2016, p. 38) afirma que

democracia, cidadania e participação são conceitos que se referem ao mesmo

fenômeno. São as condições sociais e institucionais que possibilitam “ao conjunto dos

cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em consequência, no

controle da vida social”. Acrescenta Alves (2016, p. 40) referenciando-se em Coutinho

(1997) e em Wood (2007) que a democracia é “construção e conquista da classe

trabalhadora, que foi sendo reconfigurada pela classe dominante na manutenção do

seu poder hegemônico sob o sistema capitalista”.

Portanto, como um exercício democrático facultado à sociedade, os conselhos

são instrumentos de caráter interinstitucional para a participação e controle social das

políticas públicas, inscritos na Constituição Federal e implementados a partir de

legislações subsequentes no âmbito estadual e municipal, de constituição paritária

entre representantes do Governo e da Sociedade Civil, preconizando sua natureza,

seja deliberativa, seja consultiva. No âmbito municipal são instituídos por leis

municipais e são precedentes para o recebimento de recursos advindos do Estado

para as áreas sociais as quais se destinam (STEIN, 2000. p. 89-92).

São mecanismos importantes na descentralização político-administrativo, o que

configura uma estratégia em potencial de democratização das relações de poder, fruto

da reivindicação da organização e mobilização social dos trabalhadores e da

sociedade civil.

Page 5: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

Segundo Raichelis (2006), são fundados nos princípios democráticos de

ampliação da cidadania, como canais para a participação social, e possibilitam uma

nova cultura política, pautando novas relações de poder e de gerência da coisa pública

em uma sociedade fundada historicamente na desigualdade social, de raízes

escravocratas, patrimonialistas, autoritárias e clientelistas e de relações intermediadas

pelo favor.

Na referência de Gohn, “...o tema participação é uma lente que possibilita um

olhar ampliado para a História” (2011, p.16). Ou seja, as reflexões sobre o tema da

participação nos impõem considerá-lo nas suas contradições mais do que nas suas

antinomias, ou seja, não se trata de discutir as perdas que se opõem às conquistas de

espaços participativos, mas sim, de adensar um debate que conduz as reflexões a

partir das lutas sociais que envolvem a sociedade como um todo, e que depende, para

a sua compreensão e explicação, da pauta de reivindicações que direciona as ações

desta mesma sociedade.

Na particularidade dos conselhos municipais de habitação, são canais

institucionalizados de participação e controle social da política de habitação do

município. Pretende-se assim que cumpram o papel de canal de representação dessa

população munícipe na política de habitacional da cidade, por meio de diferentes

sujeitos sociais, na figura pública de conselheiros - representantes de diversos setores

do poder público, sociedade civil e movimentos por moradia - que compõem esse

espaço de consulta, deliberação e fiscalização da gestão habitacional. Ponderando

que a luta por moradia não se encerra no conselho, Cymbalista e Moreira afirmam-no

como mesa de negociação entre diversos setores da sociedade – e não como substituto da organização e luta popular –, é um espaço a partir do qual se identificam interesses diversos, as posições e tensões envolvendo cada setor da sociedade, e as diferenças internas nos vários setores (2002. p.9).

E, principalmente, o conselho de habitação apresenta especificidades

intrínsecas à área de sua política, que diferem das demais políticas, pois não se trata

da oferta de serviços ou acesso a benefícios; como frisam Cymbalista e Moreira, "a

política de habitação envolve a oferta de um produto, físico e palpável, cujo valor

unitário é sempre muito significativo em relação ao patrimônio das pessoas: a

Page 6: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

moradia" (2002, p.11). Essa política também não se efetiva de maneira isolada, pelo

contrário, impõe-se uma articulação com outras demandas de consolidação de uma

estrutura urbana como urbanização, saneamento, mobilidade e transporte público.

De que direito falamos quando tratamos de nossas cidades?

Desde o início do século XX, nos países capitalistas avançados – e a partir dos

anos 1930 no Brasil – foi se formando um consenso de que a habitação é uma

questão de Estado, que precisa intervir para criar as condições de enfrentá-la e para

que possa ser garantida como um direito.

A moradia é, certamente, o bem de necessidade básica e essencial mais caro

que uma família precisa, necessariamente, ter acesso para sobreviver nas cidades.

Ademais, seu custo está fortemente relacionado com o valor de terra, a partir de um

mercado especulativo baseado na escassez. Em decorrência do alto custo, a única

forma de acesso à moradia por uma família de baixa ou renda média é por intermédio

do aluguel ou do financiamento de longo prazo, alternativas que buscam relacionar a

capacidade de pagamento ao custo da moradia. O financiamento de longo prazo para

a população de baixa renda exige fundos estáveis e permanentes, garantidos pelo

poder público. Parcela significativa da população não apresenta condições de pagar

qualquer parcela mensal de financiamento. Razão pela qual a intervenção do Estado

no mercado habitacional passou a ter um papel cada vez mais importante, estando

presente no processo de regulação, financiamento, promoção e produção da moradia.

A intervenção do Estado na questão habitacional brasileira teve início nos anos

1930. Mas nunca conseguiu garantir o direito à moradia, realizando sempre

atendimentos parciais e fragmentados, sem uma perspectiva de continuidade na

atenção, com programas que privilegiavam parcela da demanda, deixando a maioria

sujeita a buscar em um mercado especulativo, soluções frequentemente

caracterizadas pela precariedade ou informalidade. A trajetória da política urbana no

Brasil tem características de focalização no seu atendimento a diferentes segmentos e

suas demandas de legalização e legitimação da inserção nas cidades, a exemplo dos

programas habitacionais como os desenvolvidos no período do Banco Nacional de

Page 7: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

Habitação, na década de 1960 até meados dos anos 1980, com recursos significativos

para o financiamento da produção de moradias que, localizadas na periferia, eram

construídas por empreiteiras, sem participação da população nos projetos e na

construção. Não logrou viabilizar formas de atender a maior parte da população, que

integrava o expressivo processo de urbanização do período (CFESS, 2016).

O mesmo pode-se dizer do programa Habitar Brasil BID, da década de 1990,

que objetivava a implantação de projetos integrados para elevar os padrões de

habitabilidade e de qualidade de vida de grupos com renda mensal até 3 salários

mínimos, que residiam em áreas precárias de regiões metropolitanas, em

aglomerações urbanas e nas capitais (CFESS, 2016). E mais presentemente, o

programa Minha Casa Minha Vida, que implantado em 2009, alimenta o processo de

financeirização do capital e interfere na dinâmica imobiliária, afirmando o lugar dos

pobres nas cidades ao inseri-los em conjuntos habitacionais que tem reforçado

processos de segregação pelos locais distantes dos centros urbanizados onde são

erguidos em grandes conjuntos habitacionais (AMORE; SHIMBO; RUFINO, 2015).

Por sua vez, uma parcela significativa da população urbana “resolve” o

problema habitacional por meio de processos informais: adquire lotes mal urbanizados

no mercado de terra especulativo ou ocupa áreas em assentamentos precários,

autoconstruindo suas moradias com materiais adquiridos a juros exorbitantes, sem

contar com nenhum apoio do poder público.

São formas de constituição das cidades nos cenários urbanos brasileiros, onde

as políticas sociais não falam mais de direitos, mas de necessidades, de beneficiários

e usuários, atendidos em programas de urbanização pontuais que não modificam a

situação de segregação. Assim, parafraseando Harvey (2012), quando se refere à

suburbanização ocorrida nos USA, ao afirmar que a mesma “alterou o panorama

político ... que mudou o foco de ação da comunidade para a defesa da propriedade e

das identidades individualizadas...” (2012, p. 77), podemos relacionar aos processos

em curso no Brasil, os quais alimentam tempos em que “vivemos num mundo onde os

direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras

noções de direito. ” (HARVEY, 2012, p. 73). São processos que acarretam

transformações no estilo de vida da classe trabalhadora, no acesso pela oferta de

Page 8: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

crédito e o endividamento voltados para a compra de produtos domésticos, de TVs de

alta resolução, ao lado de demandas por segurança individual que justifica a repressão

policial. São transformações alimentadas pelas relações mercantis, em um mundo

urbano onde a qualidade da vida está condicionada por um intenso individualismo que

determina “as formas espaciais de nossas cidades, que consistem progressivamente

em fragmentos fortificados, comunidades fechadas e espaços públicos privatizados

mantidos sob constante vigilância” (Harvey, 2012, p. 81).

Esses cenários de exclusão e violência alimentados pelos interesses de grupos

empresariais, “sócios privilegiados do governo”, segundo Fleury (2012), são

amparados legalmente, sempre que necessário a esses interesses, nas ações de

despejo que são vistos como irreversíveis, na desqualificação das comunidades

pobres que são criminalizadas se tentam resistir a ações desse tipo, desinformadas e

acusadas de ilegalidade da ocupação do solo, na construção irregular das moradias e

na falta de titulação dos imóveis.

Em síntese, está em curso um processo de desconstrução de conquistas

históricas de diferentes segmentos sociais, ao flexibilizar a legislação existente – o

Plano Nacional de Habitação e o Estatuto da Cidade não têm logrado resultados

significativos - ao esvaziar as instâncias de controle social e, mais uma vez na história

da política urbana brasileira, ao expandir a malha urbana por meio de processos de

periferização e segregação, pela monofuncionalidade e guetificação dos grandes

conjuntos habitacionais construídos nas fronteiras urbanas das cidades, à revelia dos

interesses da classe trabalhadora, esvaziando a luta pelo direito à cidade.

A Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS) e a luta pela moradia digna

A região vivenciou um processo intenso de desenvolvimento desde meados do

século XIX, com a internacionalização do porto motivada pela expansão da economia

paulista e por um urbanismo que buscava responder às alianças estabelecidas entre

poder público e setores do capital, representados por grupos privilegiados pelas

intervenções urbanas. Sua urbanização foi impulsionada nas décadas de 1940 e 1950,

quando os municípios centrais - Santos, São Vicente, Cubatão e Guarujá – obtiveram

Page 9: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

rápido crescimento urbano e populacional e, com a construção do polo petroquímico

em Cubatão e a inauguração da Rodovia Anchieta, muitos trabalhadores ocupados na

construção da rodovia foram morar em condições precárias em áreas localizadas nas

encostas da Serra do Mar.

No decorrer da década de 1950, essa expansão começa a se direcionar para

Praia Grande e na década seguinte para Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe. A partir da

década de 1990, a expansão urbana se deu a taxas muito menores. Porém, em 2000,

a ocupação nas áreas mais vulneráveis foi maior, sendo mais intensa nos municípios

de Bertioga (que se emancipou de Santos em 1991), Itanhaém e Peruíbe, dando corpo

a um processo de precarização que se estendeu na ocupação dos morros, nas

moradias em palafitas e nos cortiços das regiões centrais das cidades. As diversas

mudanças político-administrativas contribuíram para consolidar o crescimento urbano,

alterando o perfil socioeconômico e redefinindo o cenário da Baixada Santista. Diante

de todo o avanço urbano imposto pela ordem societária do capital, surgiram demandas

maiores do que as possibilidades concretas de efetivação na área da habitação,

exigindo uma articulação dos sujeitos envolvidos, o que reforçou a importância de

apreender os desafios e contradições que se fazem presentes na dinâmica dos

conselhos municipais de habitação, espaços de debates e articulação das políticas.

Tendo como espaço da pesquisa o conselho municipal de habitação de Santos,

a observação sistemática e as anotações no diário de campo dos pesquisadores

apontam situações de interferência das representações do poder público na dinâmica

das reuniões e o acatamento das deliberações por parte das representações da

sociedade civil e dos movimentos sociais sem maiores questionamentos. E, quando os

há, observa-se um tensionamento que se traduz na ausência de relações

democráticas na condução do processo, com representantes do poder público e dos

movimentos sociais também contribuindo em não viabilizar o espaço de controle social

(pressionam para que a leitura de atas anteriores não se faça necessário, qualquer

solicitação de esclarecimento é questionada, os documentos do poder público –

projetos e orçamentos – são apresentados sem garantir espaços para dúvidas, e o

tempo restrito é a justificativa). Toma-se como exemplo do debate havido sobre quem

tem o direito a voz e voto, no qual o poder público colocou-se com a imposição de

Page 10: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

regular esse processo, impedindo a participação de participantes que não sejam

conselheiros e questionando a presença nas reuniões. Outro exemplo está na figura

de um vereador que fazia parte da reunião e defendeu que os movimentos sociais que

já foram contemplados com moradias devem ser extintos, propondo o congelamento

de novos segmentos por moradia, com poucos questionamentos sobre a proposta. Ou

ainda, o que ocorreu com o resultado da Conferência municipal, que a presidência do

conselho quis alterar os encaminhamentos havidos, sendo questionada até mesmo

por representantes do poder público presentes na reunião.

Raichelis (2015) afirma que exercer a deliberação nas questões substantivas

tem sido uma das principais frustações nas expectativas políticas dos conselhos para

que possam decidir sobre a justa distribuição dos recursos públicos, ampliando os

direitos dos grupos subalternos. Porém, a noção construída sobre a função

deliberativa não pode ser compreendida como uma suposta autonomia político

institucional.

Essa confusão nubla o reconhecimento da especificidade do tipo de luta política que pode ser travada via conselhos. Eles são estratégias de luta por dentro do Estado, visando sua democratização, e não sobre ou paralelamente a essa instituição. Reconhecer esta especificidade é fundamental para superar as avaliações marcadas por frustações decorrentes de expectativas que os conselhos não podem cumprir, o que gera imobilismo político. (RAICHELIS, 2015, p 82).

A mesma autora aponta uma tendência que identifica a existência de uma

profunda crise da política que impede os grupos subalternos de estarem presentes nos

espaços públicos como sujeitos legítimos, sendo que a partir do desmanche

neoliberal, esses espaços foram totalmente capturados pelo Estado. A burocratização,

o pragmatismo, a lógica gestacionária, a privatização, impedem que os conflitos se

manifestem e o dissenso se estabeleça. Por esta razão, muitos defendem o abandono

desses espaços pelos movimentos sociais e forças combativas para espaços

societários mais amplos. Outra tendência reconhece a crescente hegemonização

destes espaços pelo conservadorismo e, mesmo com os desafios e limites existentes,

propõem o tensionamento para ir adiante no movimento democratizador, considerando

a correlação de forças na sociedade.

Page 11: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

Essa perspectiva problematiza as tensões entre Estado/sociedade civil, e a

importância da ocupação desses espaços pelos movimentos sociais e segmentos

organizados, como uma estratégia política. Fica claro que existem limites para o

exercício do controle social, e neste sentido, envolve a capacidade da classe

subalterna para interferir na gestão pública, visando a construção de sua hegemonia.

Para tal, Bravo e Menezes (2013, p. 324) colocam a questão da superação dos limites,

ao afirmar que

[...] a superação dos limites para a efetivação do controle social das classes subalternas está para além da atuação dos segmentos sociais no espaço institucional dos Conselhos, requer a articulação das forças políticas que representam os interesses das classes subalternas em torno de um projeto

para a sociedade.

Ou seja, é necessário construir o controle social das classes subalternas tendo

no horizonte o enfrentamento dos determinantes econômicos, políticos e sociais em

busca das transformações da sociedade, de maneira a consolidar uma nova

hegemonia e uma outra sociabilidade.

A ameaça à democracia e à liberdade não vem da falta de institucionalização

das formas de organização, nem tampouco da ausência de mecanismos de disputas e

de conquistas dos direitos. Ao contrário, a participação social é fomentada na

realidade brasileira, espaços de controle social da sociedade sobre o Estado são

valorizados a partir da Constituição Federal de 1988 e estratégias políticas são

adotadas para definir prioridades, fiscalizar as ações, monitorar a aplicação dos

recursos e avaliar as condições de implementação das políticas sociais.

São outros os obstáculos à democracia social. Decorrem da despolitização

provocada pela fragmentação das lutas, do encolhimento do espaço público o qual,

pragmaticamente, cede lugar a respostas aos interesses de pequenos grupos

centrados em questões parciais e cotidianas, obstaculizadores da organização de

lutas mais amplas.

É também obstáculo à democracia, o participativismo, ou melhor, as práticas

participativas que, apoiadas no ativismo das demandas fragmentadas e no

Page 12: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

imediatismo das respostas, se reproduzem na defesa de interesses singulares. Nessa

direção, nos desafia a reflexão de Maricato (2007, p. 1),

É evidente que esses movimentos estão ocupados com problemas importantes como gênero, raça, meio ambiente, saneamento, habitação etc, mas, aparentemente, estão ocupados em buscar melhores condições de vida, compondo um cenário dividido e fragmentado, tomando a parte pelo todo, contidos nos limites de um horizonte restrito, sem tratar do presente ou do futuro do capitalismo.

3. Algumas reflexões para a continuidade do debate.

Quando se afirma que a possibilidade de intervir no rumo da história deve fazer

parte da ação cotidiana dos movimentos sociais, não se trata de ignorar a importância

dos espaços político-institucionais, nem de desconsiderar a diversidade das lutas, mas

de capitalizar as forças sociais numa perspectiva de classe, enfrentando o desafio de

construção de outro mundo marcado por outra sociabilidade. Ao contrário do que

pensam muitos intelectuais que vêem nesse movimento um desprezível reformismo,

as conquistas de reivindicações concretas imediatas são alimento essencial para

qualquer movimento reivindicatório de massas. Mas é preciso analisar o que é o

Estado em sua complexidade, especialmente numa sociedade como a nossa,

patrimonialista e desigual (Maricato, 2007, p. 1). E mais, deve-se relacionar a análise

às estratégias históricas e políticas adotadas pelas diferentes classes sociais, como

determinações objetivas no desenvolvimento desse processo.

Sob esses pressupostos se retoma o debate da democracia, considerando a

articulação necessária entre as esferas econômica e política, identificando-as como

um conjunto de relações sociais definidas a partir de suas determinações concretas.

Os fundamentos teóricos e analíticos dessa afirmativa evidenciam a importância da

organização popular, como uma prática concreta na construção de outra sociabilidade.

Conforme Lopes (2012, p., 227),

um dos maiores e mais importantes desafios para os setores organizados e conscientes da dimensão e complexidade das condições objetivas da sociedade capitalista na atualidade é a criação e sustentação dos

Page 13: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

mecanismos de resistência e luta, em âmbito nacional (em todas as esferas da vida social) e também mundial, em movimentos explosivos e grandes, mas também pequenos e fortes; para os intelectuais, a resistência na sustentação da análise histórico crítica par atualizar a teoria, colocando-a em ação na militância articulada com os movimentos de organização e luta dos trabalhadores que sustentam e constroem, também no cotidiano, a alternativa emancipadora.

Mesmo porque, resgatando Marx, só é possível entender as instituições

políticas tendo em vista seus vínculos com as relações sociais e não partindo de

considerações gerais e abstratas. Os desafios colocados pelas formas de

enfrentamento da questão social no contexto urbano estão dados na dinâmica

contraditória das relações sociais, na relação capital-trabalho, em suas múltiplas

dimensões econômicas, políticas, sociais, culturais, religiosas, a partir de

reconfigurações políticas que buscam superar formas de dominação e de práticas

conservado

Neste sentido, o controle social envolve a capacidade que as classes

subalternas têm para interferir na gestão pública, visando a construção de sua

hegemonia. E isso acontece somente com a devida análise da correlação de forças

que vai avaliar para que classe o controle social pende. Esse controle sobre a gestão

dos recursos públicos, é um desafio importante na realidade brasileira, visando a

resistência na redução do alcance das políticas sociais, a sua privatização e

mercantilização, norteado por um projeto societário das classes subalternas e pela

busca da construção de uma cultura contra – hegemônica.

Referências

ALVES, Maria da Conceição. Participação, democracia e direitos de cidadania:

aproximação conceitual ao debate contemporâneo in NEVES, Ângela Vieira.

Democracia e participação social: desafios contemporâneos. Campinas: Papel

Social, 2016

AMORE, Caio S.; SHIMBO, Lúcia Z.; RUFINO, Maria Beatriz (org.) Minha Casa... e a

cidade? Avaliação do programa MCMV em 6 estados brasileiros. Rio de Janeiro:

Observatório das Metrópoles; Letra Capital, 2015.

Page 14: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e

a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e

história. 9ª Ed. São Paulo Cortez, 2011 - (Biblioteca Básica de Serviço Social; v2).

BRAVO, Maria Inês Souza; MENEZES, Juliana Souza Bravo de. (Org.) Serviço

Social, movimentos sociais e conselhos: desafios atuais. 2ª. edição. São Paulo:

Editora Cortez, 2013.

CFESS. Atuação de assistentes sociais na política urbana. Subsídios para reflexão.

Brasília, DF: CFESS, 2016

CYMBALISTA, Renato; MOREIRA, Tomás. O conselho municipal de habitação em

São Paulo. 2 ed. São Paulo: Polis/PUC-SP, set. 2002. (Observatório dos Direitos do

Cidadão: acompanhamento e análise das políticas públicas da cidade de São Paulo).

FLEURY, S. Do welfare ao warfare state. Le Monde Diplomatique Brasil, Fevereiro

2012

GOHN, Maria da Glória. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. 4. Ed.

São Paulo: Cortez, 2011 (Coleção questões da nossa época; v.32)

HARVEY, D. O direito à cidade in Lutas Sociais. São Paulo: Neils (Núcleo de Estudos

de Ideologias e Lutas Sociais, 2012.

LOPES, J.B. Resistências de classes e o PT na construção de alternativas no Brasil in

COUTINHO, J.A.; LOPES, J.A. (org.) Crise do capital, lutas sociais e políticas

públicas. São Paulo: Editor Xamã, 2012.

MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis, Rio de Janeiro:

Vozes, 2007.

RAICHELIS, Raquel. Esfera Pública e Conselhos de Assistência Social caminhos

da construção democrática. 7ª. ed. São Paulo: Cortez, 2015.

RAICHELIS, Raquel. Articulação entre os conselhos de políticas públicas uma pauta a

ser enfrentada pela sociedade civil. Revista Serviço Social & Sociedade, nº85 – ano

XIX – março, 2006.

STEIN, Rosa Helena. Implementação das Políticas Sociais e descentralização político-

-administrativa in Capacitação em Serviço Social e Política Social. Programa de

Page 15: ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE ... · ESPAÇOS DE CONTROLE SOCIAL E O DIREITO À CIDADE: estratégias políticas necessárias Tânia Maria Ramos de Godoi ... na

Capacitação Continuada para Assistentes Sociais. Módulo 3/CFESS/ ABEPSS / CEAD

/NEDUnB. Ano: 2000