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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito
HERMENÊUTICA TRIBUTÁRIA, TIPICIDADE E DIREITOS
FUNDAMENTAIS: uma análise paradigmática do sistema tributário rumo
ao Estado Democrático de Direito.
Felipe Faria de Oliveira
Belo Horizonte
2008
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Felipe Faria de Oliveira
HERMENÊUTICA TRIBUTÁRIA, TIPICIDADE E DIREITOS
FUNDAMENTAIS: uma análise paradigmática do sistema tributário rumo
ao Estado Democrático de Direito.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Álvaro Ricardo de Souza Cruz
Belo Horizonte
2008
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Felipe Faria de Oliveira
Hermenêutica tributária, tipicidade e direitos fundamentais: uma análise
paradigmática do sistema tributário rumo ao Estado Democrático de Direito.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Belo Horizonte, 2008.
____________________________________________________
Álvaro Ricardo de Souza Cruz (orientador)
____________________________________________________
Marciano Seabra de Godoi
___________________________________________________
Élcio Fonseca Reis
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Agradecimentos
A Deus, pela vida que colocou em minha frente, e pela sabedoria de me conceder cada graça no momento apropriado, mesmo em contrário à minha ansiedade. À minha família, pai, mãe e Tuca, razão primeira de meu sorriso. Suas doações diárias me fizeram quem sou hoje. Sempre me espelho em vocês para tentar ser uma pessoa melhor. À Dan, pelo carinho e companheirismo, sempre essenciais. Conseguimos andar de mãos dadas em mais esta (porém não última) jornada. Aos amigos, em especial, Rangel que, mesmo no atribulado mundo corporativo, conseguiu tempo pra ler parcela dos originais deste trabalho. Ao Álvaro, orientador e amigo, por me apresentar uma nova forma de ver e pensar o Direito. Que sua boa “mania” pela excelência acadêmica me contagie neste e em futuros trabalhos.
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“Ridículo, patético, mas inelutável, as palavras são de
fato um mistério, um dia eu escrevo um livro louco, só
quero escrever um livro louco em que as palavras
possam detonar, explodir em todos os tipos de
significado, provocar todo tipo de reação. Eu queria
libertar todas as palavras...”
João Ubaldo Ribeiro (A Casa dos budas ditosos)
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RESUMO
Muito embora seja possível situar as diversas disciplinas do Direito em um paradigma pós-positivista, constata-se a manutenção dos pressupostos da filosofia da consciência em todo o sistema tributário, bem como sua doutrina e jurisprudência. Presos à concepção cartesiana de uma metodologia neutra capaz de garantir a certeza de um resultado previamente determinado pela lógica subsuntiva relegada ao intérprete, os tributaristas percebem na estrutura tipológica e sua linguagem descritiva e exauriente da realidade a resposta para os anseios de estabilização de expectativas consubstanciada na segurança jurídica tributária. Ignoram, portanto, a superação do esgotamento do conteúdo jurídico em textos escritos e formalizados em um procedimento legislativo pontuado no tempo e espaço. Percorrer a evolução da construção do pensamento jurídico significa comprovar como as bases hermenêuticas dos mais influentes tributaristas remontam não apenas o racionalismo da modernidade cartesiana e kantiana, mas mesmo às construções de Platão e Aristóteles. Colocada referida postura hermenêutica à prova, são dois os pontos em que sucumbe e resta demonstrada sua insustentabilidade no seio jurisdicional. Em atenção à construção da matéria fiscal aos ditames da supremacia constitucional, as particularidades e propósitos tributários surgidos em cada geração de direitos fundamentais restam inatingíveis caso se tenha a legalidade descritiva como fonte de emanação jurídica. Noutra argumentação, a própria validade de seus pressupostos hermenêuticos perde qualquer credibilidade frente os giros lingüístico e hermenêutico proporcionados por Wittgenstein e Gadamer. Diante da impossibilidade da adoção de uma metodologia ilusória e temerária tal qual o formalismo positivista, a construção de um Estado Democrático de Direito, ao qual deve se conformar o sistema tributário, requer uma reviravolta nas bases de validade e legitimidade jurídica. A abertura procedimental habermasiana reposiciona a racionalidade comunicativa em busca de um entendimento entre os próprios afetados pelas normas jurídicas, bem como revisita a legitimidade das normas em atenção aos conteúdos jurídicos a serem aplicados em cada caso concreto. Com isso, também os direitos fundamentais e os instrumentos fiscais pedem revisão, implicando uma nova forma de construção do Direito Tributário.
Palavras-chave: Hermenêutica discursiva – Direito Tributário – direitos fundamentais – procedimentalismo – Estado Democrático de Direito – tipicidade tributária – crítica.
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ABSTRACT
Even though it is possible to situate the various law disciplines in a pos-positivism paradigm, we verify the maintenance of the conscious philosophy basis in fiscal system, and also in judicial decisions and authors. Stuck to the Cartesian view and a neutral methodology able to assure the certain of pre-determinated results connected to a subsuntive logic relegated to the interpret, the fiscal law professionals believe in the typological structure and its exhaustive and descriptive language as an answer to their will of expectative stabilization verified in the juridical security. They ignore that the law content restricted in written texts formalized in a time-space situated legislative process is already surpassed. The quest for the law structure evolution means to prove that the most important fiscal authors remain with their basis not only in the cartesian and kantian modern thought, but also in Platen and Aristotle. Once tested this hermeneutic posture, there are two points in which it falls and is fulfilled the demonstration of its impossible permanence in the jurisdictional environment. Putting the fiscal matters in attention to the constitutional supremacy, the particularities and purposes emerged in which fundamental rights generation remain inaccessible to the law if restricted to the descriptive legality. In another argumentation, the validity of its hermeneutic basis loose its credibility once faced the linguistic and hermeneutic turns developed by Wittgenstein and Gadamer. Considering the legalist positivism as an illusionist and reckless methodology impossibility, the formation of a Democratic State of Law in which the legal system must be adapted, demands a law validity and legitimacy basis turn. The habermasian procedimental openness replace the communicative rationality in search for an understanding between the affected by the rules, such as review the law legitimacy focusing the law contents to be applied in the particular cases. Consequently, the fundamental rights and fiscal instruments demand revision, which implicates a new kind of view of the fiscal law. Key words: Discursive hermeneutic – Fiscal Law – fundamental rights – procedimentalism – Demopcratic State of Law – fiscal typology – critics.
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LISTA DE SIGLAS
ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade
Agr – agravo (recurso)
CIDE – contribuição de intervenção no domínio econômico
CF – Constituição Federal
CPMF – contribuição provisória sobre movimentação financeira
CTN – Código Tributário Nacional
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMS – imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de
serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação
IE – imposto sobre exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados
II – imposto sobre importação de produtos estrangeiros
IOF – imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores
mobiliários
IPI – imposto sobre produtos industrializados
IPTU – imposto sobre propriedade predial e territorial urbana
IPVA – imposto sobre propriedade de veículos automotores
ITBI – imposto sobre transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens
imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de
garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição
ITCD – imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos
ITR – imposto sobre propriedade territorial rural
OCDE – Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
RE – recurso extraordinário
RESP – recurso especial
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SUMÁRIO
I – INTRODUÇÃO ................................................................................................................12
II – HERMENÊUTICA JURÍDICA: UM CAMINHAR PELA EVOLUÇ ÃO DA
CONSTRUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO À ATUALIDADE
TRIBUTÁRIA ........................................................................................................................15
2.1 – Primórdios da hermenêutica jurídica .........................................................................16
2.2 – O período antigo e os filósofos gregos..........................................................................17
2.3 – O direito natural teológico............................................................................................23
2.4 – O homem na era das certezas........................................................................................30
2.5 Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico.....................................................................39
2.5.1 – O Direito e sua legitimidade positivada.......................................................................43
2.5.2 - Do neopositivismo vienense ao normativismo de Hans Kelsen..................................47
2.6 – O Direito como questão de fato.....................................................................................55
2.7 – O Direito Tributário atual e a hermenêutica clássica-positivista..............................56
2.7.1 – A doutrina e jurisprudência brasileiras......................................................................57
III – O DIREITO TRIBUTÁRIO SOB A ÓTICA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS ..................................................................................................................72
3.1 – Introdução.......................................................................................................................72
3.2 – O Direito Tributário sob o crivo da Constituição.......................................................72
3.3 – As “gerações” de direitos e algumas ressalvas............................................................81
IV – O DIREITO TRIBUTÁRIO E A DIMENSÃO LIBERAL ........................................87
4.1 – Breves antecedentes aos direitos liberais.....................................................................87
4.2 – Os direitos individuais e a tributação...........................................................................95
4.2.1 – Dos antecedentes tributários ao Estado fiscal ............................................................95
4.2.2 – A igualdade formal.......................................................................................................99
4.2.3 – A legalidade formal e a garantia da segurança/previsibilidade jurídica.................104
4.2.3.1 – Legalidade e tipicidade tributária........................................................................110
4.2.3.2 – Legalidade e a irretroatividade e anterioridade tributárias ..............................116
4.2.3.3 – Legalidade, propriedade e elisão fiscal................................................................118
4.3 – A interpretação descritiva e a primeira geração de direitos....................................124
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V – OS DIREITOS DE SEGUNDA DIMENSÃO E A TRIBUTAÇÃO ..........................133
5.1 – O Estado e os direitos sociais......................................................................................133
5.2 – A tributação em consonância com os direitos sociais...............................................147
5.2.1 – Igualdade substancial e justiça tributária.................................................................148
5.2.1.1 – O princípio da capacidade contributiva...............................................................149
5.2.1.1.1 – Capacidade contributiva absoluta e relativa..........................................................158
5.2.1.1.2 – A capacidade contributiva e seus subprincípios...................................................161
5.2.2 – Concretização da igualdade fiscal.............................................................................162
5.2.2.1 – Progressividade e proporcionalidade tributárias................................................162
5.2.2.2 – Tributos direitos e indiretos..................................................................................165
5.2.2.3 – Nível arrecadatório................................................................................................169
5.2.3 – A intervenção do Estado no domínio econômico como concretização dos direitos
sociais......................................................................................................................................173
5.2.3.1 – A extrafiscalidade...................................................................................................174
5.2.3.1.1 – Limites da extrafiscalidade e seu conflito com a capacidade
contributiva.............................................................................................................................180
5.2.4 – Reflexos hermenêuticos: a interpretação econômica e a inflação normativa pelo
Executivo................................................................................................................................183
5.3 – Os direitos de segunda geração e a ineficácia da interpretação descritivo-
formalista...............................................................................................................................189
5.3.1 – A elisão fiscal e a capacidade contributiva...............................................................192
5.3.2 – A elisão fiscal e a extrafiscalidade............................................................................197
5.3.3 – A “discricionariedade” positivista...........................................................................200
VI – O SURGIMENTO DOS DIREITOS DIFUSOS E O DIREITO
TRIBUTÁRIO .......................................................................................................................205
6.1 – Tributação e o meio ambiente: uma realidade constitucional.................................213
6.1.1 – Os princípios ambientais-tributários.........................................................................218
6.1.1.1 – Princípio da prevenção..........................................................................................219
6.1.1.2 – Princípio do poluidor-pagador.............................................................................220
6.2 – Concretização dos direitos difusos ambientais via tributação.................................224
6.2.1 – A extrafiscalidade.......................................................................................................224
6.2.2 – Arrecadação................................................................................................................226
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6.3 – A terceira dimensão de direitos e a interpretação positivista-descritiva dos
textos.......................................................................................................................................230
6.4 – Direitos de outras dimensões?.....................................................................................233
VII – A INTERPRETAÇÃO TRIBUTÁRIA FRENTE A HERMENÊUT ICA
CONTEMPORÂNEA: A DESCONSTRUÇÃO E A IMPOSSIBILIDADE DOS
PRESSUPOSTOS INTERPRETATIVOS-POSITIVISTAS............................................236
7.1 – A reviravolta lingüístico-pragmática de Wittgenstein..............................................238
7.2 – A interpretação como processo construtivo e a impossibilidade da neutralidade
científica: a fusão de horizontes interpretativa..................................................................248
7.3 – A nova hermenêutica e a interpretação econômica..................................................263
VIII – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E UM PROCEDI MENTALISMO
SUGERIDO...........................................................................................................................268
8.1 – Falácias procedimentalistas?......................................................................................281
8.2 – Os direitos fundamentais e o sistema tributário.......................................................290
IX – CONCLUSÃO ...............................................................................................................302
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................304
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CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO
Ao iniciarmos o estudo do Direito há alguns anos, ainda na graduação, duas
disciplinas, em pouco tempo, chamaram atenção: Direito Penal e Direito Tributário. A forma
de pensar em ambas as matérias destoava do restante, sua maneira objetiva, quase
matemática, em busca de um estudo de adequação/subsunção dos fatos à norma nos fez
vislumbrar um Direito simples e descomplicado – talvez mesmo pelo interesse, sempre
presente, pelas ciências exatas. À época, mal poderíamos imaginar a complexa rede de
conteúdos hermenêuticos subjacentes à tentativa de objetificar o Direito, tampouco as
conseqüências nocivas e desvirtuadoras dos próprios fundamentos jurídicos que tal postura
hermenêutica vinha acarretar.
Muitos autores (ADORNO et. al, 1996) trilham suas pesquisas em busca de uma
resposta à manutenção desta forma (não)interpretativa de desenvolver o Direito. Seria uma
ação planejada e consciente das classes dominantes a fim de perpetuar o status quo? Ou um
mero prolongamento de uma tradição histórico-cultural cujas bases racionalistas não se
desgarraram de nosso núcleo jurídico? Os motivos, se sociais, econômicos, políticos, etc., não
interessam por agora. Acreditamos ser o tema aqui trabalhado já espinhoso o bastante para
enveredar em outro “mar de polêmicas”.
Fato é que, doutrina e jurisprudência, majoritariamente, persistem em sustentar uma
visão positivista-descritiva do Direito Tributário, e com espeques no princípio da tipicidade,
reafirmam o entendimento de que apenas o conteúdo previsto expressa e textualmente nas
normas legais pode ser compreendido como inserido no mundo jurídico. Algo não muito
diferente do que sugere Shakespeare, na conhecida história do mercador de Veneza que deve
retirar pedaço de carne de seu devedor, sem, porém, derramar uma gota de sangue, pois tal
conseqüência era imprevista no acordo firmado. É situação que, muito embora todos
percebam como absurda, nossos juristas não acordam para o fato de se calcar na mesma idéia
tipificante que embasa suas visões do sistema tributário.
Diante do conhecimento, já consolidado, de que outras áreas jurídicas – p.e. Direito
Constitucional – já amadureceram e se libertaram do ranço positivista que ainda assola o
âmbito fiscal, pairou sobre nossa mente a indagação: será que, no que tange o Direito
Tributário, excepcionalmente, seria pertinente a sobrevida concedida à interpretação
positivista exauriente das normas legais? Seriam as especificidades de suas disciplina
justificativa bastante para tal anacronismo?
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Eis a razão para colocar sua hermenêutica à prova. Mas a conclusão final da indagação
supra apenas poderia ser lograda pela verificação de dois questionamentos: 1)
pragmaticamente, em um exame da realidade, a postura hermenêutica vigente é suficiente e
eficiente na efetivação de seus objetivos tributários?; 2) a visão interpretativa antedita possui
sustentabilidade hermenêutica, possui embasamento que garanta às suas premissas
subsistência?
Com vistas a este escopo, será iniciado um caminhar pela evolução da epistemologia
em conjunto com o pensamento jurídico, no intuito de apresentar ao leitor do que se trata,
efetivamente, a corrente positivista, quais suas causas, premissas, e mais importante, se suas
idéias podem ser identificadas, ainda hoje, no seio da doutrina e jurisprudência. Ver-se-á
como as bases hermenêuticas dos mais influentes tributaristas remontam, não apenas o
racionalismo da modernidade cartesiana e kantiana, mas mesmo às construções de Platão e
Aristóteles (Cap. II).
Lançadas as luzes sobre o objeto a ser investigado, criar-se-á uma estrutura necessária
para responder ao primeiro questionamento. Nessa trilha, necessário, esclarecer quais podem
ser considerados os objetivos precípuos do Direito Tributário a serem alcançados pela
hermenêutica descritiva. Convencidos da supremacia constitucional, e de seu papel de “locus
hermenêutico”, serão desenvolvidas, para o leitor, as razões pelas quais todos os ramos
jurídicos devem se conformar à garantia e efetivação dos direitos fundamentais. Nessa toada,
o Direito Tributário, para se perceber inserido no ordenamento jurídico, deve subsumir suas
técnicas, instrumentos e características aos propósitos constitucionais, sob pena de perda de
sua própria validade. A partir deste ponto, a evolução dos paradigmas constitucionais e suas
“gerações” de direitos fundamentais será decisiva. O delineamento apartado dos direitos e
garantias que preponderaram em cada distinto momento constitucional é capaz de facilitar a
identificação das nuances tributárias nos diversos paradigmas.
No entanto, destaca-se, desde já: a indivisibilidade dos direitos fundamentais,
entendida como a interação necessária e simbiótica entre os distintos direitos reconhecidos
nas mais diversas etapas da evolução constitucional, impede que seja argumentada uma real
segmentação em “gerações” dos mesmos. Ver-se-á, de forma clara, que a escolha por sua
utilização tem motivos meramente didáticos!(Cap. III)
Por meio deste acompanhamento será realizada uma radiografia do sistema fiscal ante
os direitos liberais (Estado mínimo, fiscalidade, segurança jurídica, tipicidade, previsibilidade
tributária e defesa da propriedade), sociais (intervenção estatal, supremacia do interesse
público, isonomia, capacidade contributiva, progressividade, extrafiscalidade) e difusos – em
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especial, os direitos ambientais (princípio poluidor pagador, princípio da prevenção,
extrafiscalidade, arrecadação). Juntamente a isso, duas outras verificações poderão ser
esclarecidas: a identificação do quanto a corrente interpretativa positivista-descritiva remete
suas raízes ao liberalismo protecionista; e por derradeiro, se a hermenêutica clássica consegue
efetivar os reflexos tributários dos direitos fundamentais de cada geração constitucional (Cap.
IV a VI).
Já com foco ao segundo questionamento a ser investigado, proceder-se-á o confronto
entre as bases científicas que encampam a visão hermenêutica preponderante no meio fiscal, e
as evoluções filosóficas e hermenêuticas já consolidadas (Cap. VII). Tentar-se-á desestruturar
a crença em um engessamento dos conteúdos normativos e em um intérprete atemporal capaz
de captar de forma neutra o Direito já presente nas normas elaboradas com exatidão pelo
Poder Legislativo. Com a conclusão pela falibilidade das premissas colocadas à prova, ver-se-
á que a crítica à adoção de uma tipicidade tributária de fontes positivistas não deve ser
encarada como um debate sobre uma “melhor teoria interpretativa”, mas sim um debate pela
própria impossibilidade de suas idéias!
Por fim, na tentativa de fuga de uma postura de mera censura, partir-se-á ao
delineamento de nossa visão acerca do atual Estado Democrático de Direito, bem como da
prática hermenêutica tributária que deve acompanhá-lo. O desenvolvimento de um
procedimentalismo habermasiano é capaz de possibilitar um salto do Direito Tributário rumo
à contemporânea relação democrática e dialógica que deve encampar o sistema jurídico. (cap.
VIII).
Desde já, porém, deve-se deixar claro ao leitor.
Não se ignora o quão problemáticas podem se mostrar as conclusões deste trabalho. A
persistência de parcela dos tributaristas em estudar sua disciplina cegos ao entorno
hermenêutico e constitucional é assustadora! Daí a certeza de futuras críticas. De todo modo,
em conjunto com nosso marco teórico, temos a esperança de ser lançado o debate, sempre
enriquecedor.
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CAPÍTULO 2 – HERMENÊUTICA JURÍDICA: UM CAMINHAR PEL A EVOLUÇÃO
DA CONSTRUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO À ATUALIDA DE
TRIBUTÁRIA.
Ao contrário da doutrina constitucional, parece-nos que a doutrina tributária
permanece, em regra, avessa a quaisquer incursões de cunho filosófico-hermenêutico. Essa
situação hermética da seara tributária, representadora da própria concepção codificante e
(pseudo)autônoma do Direito Tributário, acaba por gerar uma forte resistência por parte dos
leitores para quaisquer obras que venham a discorrer de forma mais extensa sobre temas que
não ligados à dogmática e jurisprudência imediatamente aplicada aos processos judiciais e
administrativos relativos à área fiscal.
Ocorre, porém, que como todo o Direito, o Direito Tributário não se sustenta sem um
embasamento filosófico. A própria origem dos pressupostos nos quais hoje tenta se pautar a
doutrina (segurança jurídica, limitação de arbítrio estatal, proteção de uma propriedade
supostamente sacralizada, etc.) acaba por encontrar suas bases em argumentos de teoria do
Estado, de filosofia jurídica, e ainda de teorias hermenêuticas que se ligam aos dois elementos
anteriores.
Nesses termos, não se pode hoje pensar em um estudo academicamente sustentável
sem considerar, ainda que indiretamente, concepções da filosofia que encampam a forma de
construir e compreender o Direito. Essa é a esfera hermenêutica a qual tentar-se-á dar espaço
em nosso debate envolvendo o Direito Tributário.
Tentaremos, porém, não pecar pelo excesso de verticalização filosófica. Juntamente
com Kaufmann, entendemos que “à pergunta, já várias vezes colocada, sobre qual das
filosofias do direito será pior, a dos ‘puros filósofos’, ou a dos ‘puros juristas’, dever-se-á
responder que são igualmente más” (KAUFMANN, 2002, p. 25).
Diante disso, remete-se, desde já, o leitor a uma busca pelo aprofundamento das bases
hermenêutico-filosóficas nas obras mencionadas ao longo do presente trabalho, poupando
corpo textual deste para o desenvolvimento mais fluido das idéias sem, porém, deixar nosso
leitor carente da apresentação ao conteúdo necessário para a compreensão da crítica que nos
motiva.
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2.1. Primórdios da hermenêutica jurídica
Desde as primeiras e mais rudimentares formas de composição social, a presença de
uma estrutura normativa e coativa pode ser constatada como instrumento de organização
estrutural das comunidades. É o momento do “complexo indiviso de convicções” a que se
refere Habermas(2003 p. 42), em que a composição do Direito se misturava de forma
inseparável com a religião, superstição e normas morais.
Ao analisar a evolução do Direito junto à sociedade, Niklas Luhmann (1983, p. 182 e
ss.) realiza uma divisão dos períodos referentes às etapas de formação do embasamento de
legitimidade do ordenamento jurídico, identificando um “direito arcaico”, seguido pelo
“direito antigo” e culminando no “direito moderno”.
Durante o período arcaico, quando vigorou o modelo tribal de sociedade, o aparato
jurídico e social se mostrava entranhado às relações de parentesco. Ainda em seu aspecto mais
rudimentar, o Direito era caracterizado pela idéia de instintos básicos e força física, fazendo
valer a conhecida concepção retributiva da Lei de Talião.
Fundamentações mágicas e transcendentais serviram de base para a construção de uma
noção de Direito que existia predominantemente nos contos, mitos e hábitos dos grupos. No
entanto, ainda não se pode falar efetivamente em uma relação de origem divinatória dos
ordenamentos, como se este, em si, fosse uma construção já acabada enviada pelos deuses tal
qual proposto pelo Direito Natural que se seguiria. Nesta primeira etapa, “forças sobrenaturais
protegem o direito [...] mas não geram nem modificam o direito” (LUHMANN, 1983, p. 188).
A presença do ocultismo e a ausência de explicações para os acontecimentos
contribuíram para que, no período arcaico, a relação do homem com os eventos naturais fosse
de mera contemplação. Essa relação de observância adicionou, segundo Kaufmann, à
formação do necessário aparato para o surgimento Direito Natural que despontaria. Afinal,
“se havia leis na natureza física, não as deveria também na natureza metafísica?”
(KAUFMANN, 2004, p. 32).
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2.2. O período antigo e os filósofos gregos
Uma vez ultrapassado o período arcaico, as sociedades, em razão de uma
complexidade cada vez maior, passaram a exigir um Direito coerente e eficaz. Para isso, não
mais as tradições orais, os mitos e sagas eram capazes de lograr a estruturação social que se
pretendia com os sistemas jurídicos. Nesse aspecto, o desenvolvimento da escrita – que se
iniciara no período anterior (CRUZ, 2004, p. 32) – se mostrou um elemento essencial para
garantir a segurança e satisfazer os anseios de organização das polis gregas, simulacros dos
posteriores Estados Nacionais1.
Com o surgimento da filosofia na Ásia e na Grécia, a razão, o questionamento e a
busca por fundamentações e legitimidade anunciaram a predominância da razão em
detrimento da posição passivista antes vigente.
Em que pese a gama de pensadores que durante o período contribuíram para a
formação do conhecimento humano – ainda que por vezes ausente uma interação direta entre
os mesmos (COMPARATO, 2001, p. 12 e ss.) – Platão e Aristóteles se destacam entre esses
por terem demarcado os rumos da filosofia, servindo de base para a construção das teorias
epistemológicas séculos à frente.
Discípulo de Sócrates, Platão foi o principal meio de acesso aos ensinamentos de seu
mestre. Fundador da Academia de Atenas, Platão concebeu sua teoria calcado em uma
dualidade metafísica que serviria de base para as teorias jusnaturalistas teológicas
posteriores2.
Para Antiseri e Reale (2003, p. 137), Platão foi o verdadeiro fundador da realidade
metafísica, supra-sensível e transcendental, situada além da possibilidade cognoscitiva
sensorial do homem. A dualidade radical que o caracteriza percorre todo seu pensamento,
1 Não obstante possamos fazer uma comparação entre a Cidade-estado grega com os posteriores Estados Nacionais que surgiriam muitos séculos a frente é de se destacar que a relação entre a polis/cidadão é bastante distinta das teorias contratualistas ou mesmo liberais que surgiriam na modernidade. Conforme leciona Cruz, “a pólis precedia ao indivíduo, que não era auto-suficiente, pois precisava da vida social e política para realizar-se como homem. Viver em grupo não era visto como escolha, mas sim com condição humana” (CRUZ, 2004, p. 33). Assim, “nas idéias de Platão e Aristóteles não pertence o indivíduo a si mesmo, senão ao Estado” (BONAVIDES, 1993 p. 151.). Nesse sentido, o homem apenas existia se inserido na polis, ele era um ser propriamente social. Por isso, mesmo, as penas de ostracismo e banimento eram tidas como severas durante o período grego, pois retiravam o indivíduo de seu habitat natural. 2 Jaeger, ciente da importância que Platão teve na estruturação das teorias naturalistas de base teológica assevera que Platão “ se destaca de todos os seus predecessores, em importância religiosa. Só projetada neste fundo se pode avaliar a sua teoria central sobre a idéias do Bem. Platão é o teólogo do mundo clássico” (JAEGER, 2001, p. 873).
18
repercutindo tanto no plano supra-físico antedito quanto na separação alma/corpo que o
filósofo acabou por identificar.
Até então, todos os predecessores de Platão – ditos “naturalistas” – buscaram
explicação dos acontecimentos amparados em causas de caráter físico, tais como o vento, o ar,
o fogo, a terra. Afinal, esses eram elementos que, em virtude dos sentidos, o homem tinha
pleno acesso, e, por conseguinte, certeza de existência. Gomes (2004, p. 36 e ss.) nos traz
exemplos claros. Dentre os filósofos pré-socráticos, Tales tinha a água como o princípio
básico de todas as coisas. Já em Anaxímenes, é o ar infinito e indeterminado que permite a
geração de todos os demais elementos da realidade, etc.
Ocorre que Platão passou a questionar a existência de causas superiores, acima dessas
“pseudo-causas” a que temos contato fisicamente. Buscava o filósofo uma realidade
transcendente que fosse a base fundamentadora de todas as formas, objetos e acontecimentos
percebidos pelos homens.
Nesta busca, Platão identificou duas instâncias distintas de realidade.
No nosso plano do conhecimento sensorial, estaria o mundo sensível, ao qual temos
acesso graças à capacidade de sentir, ver e tocar, constituída, assim, de caráter físico-
mecânico. Nessa esfera “inferior”, tudo é efêmero, esvai-se, as pessoas envelhecem e morrem,
os objetos podem ser feitos de forma imperfeita, bem como podem se quebrar. Por isso
mesmo, esse seria o mundo do “não-ser” (KELSEN, 1997, p. 81 e ss.).
Mas, essa mera realidade sensível não seria, de fato, o local onde se buscar o
fundamento e a legitimidade dos acontecimentos e existência dos objetos.
Transcendendo o mundo sensível, Platão tomou a existência de um mundo das Idéias
– ou inteligível –, local onde se encontram as molduras, as fôrmas perfeitas que servem de
base para a construção da realidade empírica. Essas Idéias eram caracterizadas pela sua
abstração e imutabilidade, o que lhes garantia a capacidade de servirem de matriz para o
surgimento das imperfeitas e efêmeras cópias que habitam o mundo empírico – pois só o que
é eterno pode legitimar o mutável.
Para atingir o conhecimento das Idéias, no qual estaria presente o princípio supremo
do Bem (JAEGER, 2001 p. 876), deveria o homem realizar a “segunda navegação platônica”,
ou seja, apenas através da razão, do intelecto, é o filósofo capaz de ter contato com a
perfeição do mundo inteligível. Referida travessia, que é posta diante dos filósofos, é
representada ludicamente pelo conhecido “mito da caverna”3.
3Tentando retratar o papel dos filósofos no alcance das Idéias, Platão imaginou uma situação em que os moradores de uma caverna lá vivessem desde sua infância, acorrentados, e sendo-lhes permitido olhar
19
O reconhecimento de um plano autônomo e metafísico por parte de Platão serve para
um objetivo claro: “podemos concluir que, com a teoria das Idéias, Platão pretendeu sustentar
o seguinte: o sensível só se explica mediante o recurso ao supra-sensível, o relativo com o
absoluto, o móvel com o imóvel, o corruptível com o eterno” (REALE; ANTISERI, 2003,
p.141).
Percebe-se, assim, que Platão buscou argumentar que o mundo sensível é dependente
e fundamentado pelo mundo das Idéias. Tentando trazer a argumentação à nossa realidade,
qual a razão de alguém ver sobre si a incidência de uma cobrança tributária de IPTU (imposto
sobre propriedade predial e territorial urbana)? A resposta imediata, captada pela faculdade
sensorial impulsionará a responder a existência de propriedade imóvel urbana. Entretanto,
essa é apenas a aparente causa física, que no entender do filósofo, remete, necessariamente, a
uma causa Ideal transcendental. Nessa esteira, a verdadeira fundamentação dessa exação
fiscal seria, para Platão, um valor metafísico que legitima a realidade imperfeita a que temos
contato (ser proprietário de bem imóvel).
Dessa forma, Platão transpunha para a esfera normativa a mesma concepção dualista
ideal/real. Comungando das mesmas características das Idéias, ele identificava a existência de
leis imutáveis, eternas e perfeitas4 que norteavam o projeto de vida e deveriam ser obedecidas
no plano fático em que se encontravam os homens.
Algo não muito diferente é realizado pela atual doutrina tributária. Concebe a mesma a
descrição legislativa como uma perfeita situação fática ou jurídica – mundo das Idéias – que
deve ser reproduzida no mundo empírico para que reste configurada a possibilidade de
cobrança tributária. O que nossos autores não percebem, porém, é que para chegar a essa
construção metafísica do espectro normativo, eles mantêm a concepção platônica de que as
palavras e os termos lingüísticos utilizados na tipificação são meras representações dos
unicamente para frente. Nesta caverna, devido sua profundidade, apenas por uma extensa galeria consegue chegar a luz. Essa fonte luminosa, em contato com os habitantes da caverna faz sombras que se refletem nas paredes, que em razão do “aprisionamento” das pessoas, é a única visão das mesmas. Imagine, porém que um dos habitantes dessa caverna consiga se libertar de suas correntes e chega à luz exterior. Primeiramente, ele terá dificuldades de enxergar devido a excessiva claridade que cega seus olhos, posteriormente, após se acostumar, ele irá se maravilhar com as cores e formas que compõem o mundo exterior. Ao retornar à caverna para libertar seus pares, ele tenta compartilhar de sua experiência libertadora, afirmando que todas as visões as quais os habitantes da caverna são submetidos são unicamente sombras, reflexos imperfeitos de objetos reais. Entretanto, a população, por conhecer apenas a realidade das sombras não acreditará no indivíduo e acabaria matando-o. No entender de alguns autores, esta é uma clara referência à repercussão que os pensamentos de Sócrates causaram na comunidade grega. Sócrates foi condenado a ingerir cicuta, veneno que culminou em sua morte (Cf. JAEGER, 2001 p. 883 e ss.) 4 “Platão afirmava que obedecer às leis é obedecer aos deuses. Por ser divina, a lei era imutável. Nunca se revogava uma lei, que subsistia sempre, por maior que fosse o antagonismo entre ela e a lei nova” (POLETI apud CRUZ,204 p. 34)
20
objetos, daí se poder pretender uma lei escrita que consegue refletir a perfeição ideal da
realidade observada (STRECK, 2003, p.114).
Percebe-se assim que, no que tange à análise da linguagem em si, para Platão, ela é
caracterizada pela sua mera função instrumental-representativa da realidade. Inaugurando um
posicionamento denotativo da linguagem, o filósofo entendia que a compreensão e
conhecimento da realidade poderia se dar de forma autônoma à utilização lingüística5. Esta
última teria a função de apresentar a realidade alcançada, e apenas teria conteúdo por estar
ligada a um objeto empírico representado por um conjunto de sons relacionados
(OLIVEIRA,1996, p. 20 e ss). São bases lançadas e que apenas no século XX sofrerão uma
efetiva revisão.
Pupilo dos ensinamentos de Platão, Aristóteles negou alguns pensamentos de seu
mestre (p.e., o dualismo radical platônico), o que não o torna menos influente no
desenvolvimento da filosofia ocidental.
Não obstante ser possível caracterizar Platão como o fundador da metafísica, base
precípua da teoria do Direito natural, foi com Aristóteles que este atingiu seu ápice
(KAUFMANN, 2002b, p. 68 e ss.). É ele quem finalmente dissocia de maneira substancial
um ordenamento jurídico natural6, e um ordenamento jurídico positivo na seara humana,
5 “Aqui está a tese fundamental de Platão e de toda a filosofia do Ocidente: ele pretende, com essa discussão das diferentes teorias vigentes de seu tempo, mostrar que na linguagem não se atinge a verdadeira realidade (aletheia ton onton) e que o real só é conhecido verdadeiramente em si (aneu ton onomaton) sem palavras, isto é, sem a mediação lingüística. A linguagem é reduzida a puro instrumento, e o conhecimento do real se faz independentemente dela [...] a linguagem não é, pois, constitutiva da experiência humana do real, mas é um instrumento posterior, tendo uma função designativa: designar com sons o intelectualmente percebido sem ela (OLIVEIRA, 1996, p. 22) 6 Não obstante possa ser afirmado, juntamente com os autores mencionados supra, ser Aristóteles o primeiro filósofo a trabalhar com maior delineamento a secção entre direito natural e positivo, não se pode negar que mesmo antes já se tinha um debate acerca dos mesmos. Alexandre Tavessoni relembra o episódio de Antígona que retrata bem a presença desses conceitos: “Polínices e Etéocles, irmãos de Antígona, duelaram até a morte. O rei Creonte mandou enterrar Etéocles com todas as honras, mas proibiu que Polínices fosse enterrado. Estabeleceu que aqueles que violassem sua ordem seriam condenados à morte por lapidação. Mandou anunciar a sua decisão a todos, colocando homens de guarda junto ao cadáver, para evitar que alguém o roubasse e enterrasse. Antígona, atendendo ao último pedido do irmão, que morreu em seus braços, jogou uma fina camada de areia sobre o corpo, suficiente, porém para que os deuses dos Ínferos considerassem que fora enterrado. Diante da notícia, Creonte, enfurecido, ordenou que os guardas continuassem vigiando o corpo, afim de descobrir quem havia violado sua ordem. Quando descoberta, Antígona foi levada ao rei, que, após reconhecer sua sobrinha, afirma: ‘ – Sua Tola! – exclamou ele -, confessará ou desmentirá este feito? - Eu confesso – disse ela, erguendo a cabeça. - E você sabia que infringia uma lei? - Sim, sabia – disse Antígona, firma e serena. – Mas esta não é uma lei que foi dada pelos deuses imortais. Eu conheço outras leis, que não foram criadas ontem ou hoje, mas que têm um valor perene, e que ninguém sabe de onde vieram. Nenhum mortal pode infringi-las sem tornar-se vítima do ódio dos deuses de minha própria mãe. Se esta forma de agir parece-lhe tola, tolo é quem me acusa de tolice’ O ethos atinge, portanto, em Antígona, o status de lei natural de origem divina, que vincula o direito positivo, conferindo-lhe validade.” (GOMES, 2004, p.43-44)
21
distinção que irá prevalecer por mais de quinze séculos, e que também pode ser interpretada
em conjunto com a dualidade de Platão.
Aristóteles faz uso de dois critérios para identificar as duas espécies de Direito:
a)o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia (o filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer parte), enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto; b) o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas a alguns ou más a outros ou más para alguns. Prescreve pois ações cuja bondade é objetiva [...]O direito positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas uma vez reguladas pela lei, importa [...] que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei (BOBBIO, 1995, p. 17)
Dessa forma, Aristóteles constata um ordenamento jurídico que, por ser natural, é
decorrente da própria estrutura de mundo existente. São leis universais e anteriores ao homem
que estabelecem o que é bom ou mau, justo ou injusto de forma objetiva, e por isso,
incontestável. Por isso mesmo, o direito natural é o mesmo em todos os lugares, a todo o
tempo. Sua legitimidade tem espeques em valores metafísicos de justiça, o que remete
Aristóteles à transcendentalidade de seu antecessor7.
Noutra senda restaria o Direito positivo, que apenas estabelecia o certo ou errado,
justo ou injusto após a definição realizada pelo homem através da lei escrita. Em suas
palavras:
A justiça política é em parte natural e em parte legal. A parte natural é aquela que tem a mesma força em todos os lugares e não existe por pensarem os homens deste ou daquele modo. A legal é o que de início pode ser determinado indiferentemente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecido. (ARISTÓTELES, 2003, p.117)
Para Comparato, a ligação do direito natural com o direito positivado e escrito é
fundamental, resultando em sua utilização em prol de uma limitação do Estado já em Atenas
na Grécia Antiga:
essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados pelo simples fato de sua humanidade nasce vinculada a uma instituição
7 “Em Aristóteles encontramos, também, pela primeira vez, uma definição do direito natural e do direito positivo: ‘o direito da pólis divide-se no natural e no legal (positivo). Natural é aquele que tem a mesma validade por toda a parte, independentemente de parecer bom aos homens ou não; legal é aquele cujo conteúdo é, à partida, indiferente, mas que, uma vez estabelecido por lei, tem o seu conteúdo definido’” (KAUFMANN, 2002b p. 68).
22
social de capital importância: a lei escrita como regra geral e uniforme, aplicada igualmente a todos (COMPARATO, 2001, p. 12)
É com base nessa idéia que surge o jus gentium (direito das gentes). Ligado à
aplicação de um Direito Internacional (REZEK, 2006, p. 03 e ss), o direito positivo da época
reconhecia o direito das gentes com base na legitimidade do direito natural. Ora, acreditada a
existência de valores e leis universais, no mínimo essas normas deveriam ser aplicadas aos
estrangeiros, afinal, sua incidência alcançava todos os povos!
A perspectiva universalista e objetiva de justiça que encampa o direito natural coaduna
com a ontologia aristotélica que marca as idéias do filósofo. Sua preocupação ontológica, a
observância do “ser enquanto ser” é perceptível até mesmo em uma das definições que
Aristóteles elabora acerca da metafísica, sendo para ele a ciência responsável pela análise da
totalidade do ser enquanto objeto8.
Resta delineada a “filosofia do objeto” ou “filosofia do ser”, forma de pensamento que
foca sua atenção nas coisas em si, no objeto como potência e que tem em sua essência a
definição de sua finalidade e utilização. Para conhecer a realidade, deveria o homem se ater a
descobrir o que as coisas querem “transmitir” para o intérprete, já que as mesmas já detêm um
propósito que independe da pragmática do sujeito9. O objeto se esgota em si mesmo, pois
detentor prévio de conteúdo e finalidade.
Na mesma senda, seu entendimento acerca da utilização da linguagem. “Aristóteles
acreditava que as palavras só possuíam um sentido definido porque as coisas possuíam uma
essência” (STRECK, 2003, p. 118). Ou seja, por representarem objetos, que por sua vez
detinham em si um uma materialidade exauriente em sua própria existência, as palavras e
expressões contemplavam um conteúdo material já definido ontologicamente: os significados
dos signos e expressões já estavam delimitados previamente ao uso pelo sujeito.
É a idéia que ainda hoje encampa alguns teóricos defensores de uma descrição da
realidade capaz de expressar todas as nuances, e conter todo o significado anterior ao
intérprete (algo próximo ao brocardo in claris cessat interpretatio). Reside tal argumanetçaão
8 “São nada menos do que quatro as definições que Aristóteles deu da metafísica: a) a metafísica ‘indaga as causas e os princípios primeiros ou supremos’; b) a metafísica ‘indaga o ser enquanto ser’; c) a metafísica ‘indaga a substância’; d) a metafísica ‘indaga Deus e a substância supra-sensível” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 179). 9 Em um exemplo simples, podemos imaginar que um objeto qualquer, uma mesa, por exemplo, já detém uma finalidade própria que antecede o sujeito que a iria utilizar. Assim, se sua finalidade é servir de apoio para que alguém escreva algo sobre tal mesa, este objeto já tem seus propósitos de utilização pré-determinados. Assim, como explicar que essa mesma mesa pode servir como escada, se alguém subir sobre ela para trocar uma lâmpada, ou mesmo como arma, caso alguém resolva atirar essa mesma mesa sobre outra pessoa? Esses exemplos simples mostram uma falha na teoria aristotélica: o propósito e finalidade de um objeto não se esgotam no objeto em si, mas dependem da forma como o mesmo será utilizado pelo sujeito.
23
na lógica do pensamento tipificante de que em um texto legal já se tem compreendido todo o
conteúdo da realidade que se quer tributar – a lei como objeto e com conteúdo pré-
determinado antes mesmo de ser interpretada.
Entretanto, à frente de seu tempo, Aristóteles percebia a necessidade de realizar a
contextualização das normas para sua incidência concreta. Para o autor,
assim como a régua de chumbo só concretiza a sua virtude prática de ajustar as molduras lésbicas ao se adaptar à forma de pedra, é através do adaptar-se ao caso, mediante o decreto corretivo, que a lei universal e por isso regra indeterminada atualiza concretamente a sua normatividade. Na concretude do caso é que se realiza e se determina a normatividade da lei (GALUPPO, 2002, p. 33)
Ainda na Antiguidade, Aristóteles – mesmo acreditando em uma ontologia dos objetos
e termos – já compreendia a impossibilidade de uma previsão abstrata capaz de fornecer
previamente todas as respostas a todos os casos. A contextualização dos textos legais é a
única forma de possibilitar a aplicação de uma norma a um determinado caso. Mais tarde
perceber-se-á o quão importante se faz a observância da pragmática no que tange à construção
dos conteúdos normativos, identificando que apenas com a análise da praxis há identificação
do verdadeiro conteúdo de uma norma jurídica.
Mas não apenas. Caso nosso leitor não tenha se convencido, com os exemplos
trabalhados, a presença das visões platônica e aristotélica na hermenêutica jurídica atual, será
possível, já na próxima seção, atrelar a evolução filosófica ora vista com as formas e técnicas
interpretativas que marcaram (e ainda marcam) a construção do Direito.
2.3 O direto natural teológico
As bases da metafísica proporcionadas pelos pensadores gregos impulsionaram a
criação de um pensamento que aglutinou a concepção de um plano natural – prévio ao
Homem e detentor de regras universais imutáveis no tempo-espaço – com a religiosidade que
marcou a Idade Média.
Dentre as várias escolas filosóficas pós-Aristóteles (peripatéticos, os cínicos, os
epicuristas, para citar alguns) o estoicismo foi a ponte de ligação entre o pensamento
desenvolvido na Antiguidade para a teoria do direito natural teológico, mais especificamente,
o direito natural cristão (KAUFMANN, 2002b, p. 70).
24
Os estóicos não se prenderam apenas aos pensamentos supra-físicos platônicos, mas
sem dúvida conservaram suas características, que ao final, se mostraram determinantes para o
delineamento de um dualismo naturalístico-teológico.
Quando dos estudos realizados pela escola estóica, os questionamentos acerca da
filosofia ultrapassaram os limites geográficos das Cidades-Estado gregas. Com isso, ocorreu o
encontro dessas reflexões com o império romano, tal como Cícero, que mantinha a idéia de
existência de uma lei natural intrínseca e reguladora homem desde o seu nascimento (lex
indita10).
Conhecedores da escrita, os romanos faziam seu uso como uma forma de tornar mais
segura e justa a aplicação do Direito, em detrimento da mera utilização de costumes que,
paulatinamente, foi cedendo espaço para as normas positivadas. Em decorrência disto, a
compilação sistematizada de regras positivadas realizada pelos romanos e corporificada no
Corpus Juris Civiles representou um embrião da codificação que mais tarde invadiria os
ordenamentos jurídicos ocidentais na modernidade.
Com a derrocada do império romano, os povos bárbaros invadiram a região antes
ocupada pela complexa estrutura jurídica, política e social decorrentes da dominação romana.
Os conhecimentos dos predecessores eram infinitamente à frente da realidade esperada pelos
bárbaros, incapazes de realizar a imposição de seu aparato ideológico, jurídico e técnico.
Dessa forma,
... parcela significativa da cultura dos dominados foi assimilada pelos conquistadores. O latim permaneceu como língua escrita. Carente do corpo técnico capaz de desempenhar funções tão especializadas, Clóvis, rei dos francos optou por sua conversão ao catolicismo na Catedral de Reims. Seus objetivos políticos eram claros: facilitar a dominação, ganhando o melhor corpo de burocratas para colaborar na administração de seu império: o clero católico. (CRUZ, 2004p. 39)
Após a incorporação de uma fusão entre o direito canônico e o direito tribal, o
primeiro foi gradativamente garantindo sua superioridade e importância. Isso se deu não
apenas pela carência de suporte teórico do Direito vulgar – que não lograva o necessário êxito
na resolução dos conflitos – mas também em razão da postura assumida pelo catolicismo de
expansão de seus domínios consubstanciada na criação de universidades e mosteiros ao longo
10 “Tal como Sócrates, os estóicos, sobretudo Cícero, defendiam a idéia de que a lei natural seria inata ao homem como lex indita [...] Foi por meio do estoicismo que se iniciou o contacto entre as filosofias grega e romana. Já foi mencionado acima, que a fórmula do suum cuique, que contém a idéia fundamental da justiça, foi cunhada por Cícero. Sob a influência de Cícero, surgiu depois também, em Roma, o ius gentium, que não tem o significado actual de direito das gentes, era antes direito natural e, com tal, válido para qualquer homem, fosse ele cidadão ou estrangeiro, livre ou escravo” (KAUFMANN, 2002b, p. 73-74).
25
da Europa. Ciente disso, Vaz afirma que “a partir de Justino no século II e dos Alexandrinos
Clemente e Orígenes no século III, tem lugar um esforço constante para se integrar
organicamente a filosofia no discurso religioso” (VAZ,1997, p. 296).
Nessa toada, a dogmática da Igreja Católica, que já havia tomado contato com a
doutrina filosófica da Antiguidade, passou a exercer influência ímpar nos ordenamentos
jurídicos.
A partir de então, esses mesmos ordenamentos jurídicos passariam a buscar a
fundamentação das normas positivadas em leis eternas e imutáveis situadas em um plano de
existência metafísico, tal qual defendido por Platão. Ocorre que, com a presença cristã na
construção dogmática e científica, a força legitimadora dessas leis seria justamente a vontade
divina.
As mesmas características de imutabilidade e universalidade presentes no Direito
natural de Platão e Aristóteles persistiram. Também aqui restava presente uma cisão entre
dois planos: um plano superior e retor de regras norteadoras da própria existência humana
onde, previamente, já se estabelecera quais ações eram naturalmente boas ou más, justas ou
não; e uma esfera inferior e secundária, um ordenamento positivado que precisava do trabalho
humano terreno para sua construção.
Entretanto, a partir deste momento, torna-se possível a identificação de uma origem
“personificada” desse Direito natural e suas regras inatas aos homens.
Com a ascensão da Igreja Católica ao poder político, no decorrer da Idade Média, o racionalismo, referência característica do período clássico, foi abandonado em troca da crença em um Deus cristão, legislador todo-poderoso na formulação das leis da natureza. Essas leis divinas seriam deterministas e universais, já que a vontade de Deus não se modificaria no decorrer da história e sempre alcançaria todos os lugares do globo (BARBOSA, 2006, p. 202).
Nessa trilha, Santo Agostinho, o fundador da patrística, foi o primeiro a reunir
conscientemente a filosofia grega da Antiguidade com os ensinamentos do evangelho cristão,
abrindo os campos para o desenvolvimento do direito natural teológico.11 Por isso mesmo,
fora chamado de “o primeiro filósofo existencialista cristão” (KAUFMANN, 2002b, p. 75).
11 É interessante notar que a concepção de aceitação de um direito natural proveniente da mera existência do homem é uma característica da filosofia ocidental, e que não percorreu todo o globo. Nesse sentido, “a noção das leis da natureza é uma noção ocidental. Na China, no Japão, jamais existiram leis da natureza. Os jesuítas foram recebidos com ironia quando falavam das leis da natureza porque, na concepção oriental, a natureza é, por definição, espontaneidade e harmonia, e, nessas condições, falar de leis da natureza parece o cúmulo do antropomorfismo” (PRIGOGINE, 2003, p. 52).
26
Agostinho, cuja contribuição se deu entre os séculos IV e V, teve sua formação
fortemente marcada pelas obras de Platão, razão pela qual sua própria teoria apresenta as
marcas que permitem identificar a proveniência grega de suas idéias. Tal qual o filósofo da
Antiguidade, Agostinho percebeu a secção entre corpo humano e alma, entre mundo terreno e
transcendental. Enfim, também para ele, o dualismo seria o traço marcante e caracterizador do
pensamento.
Dessa forma, assim como Platão assumira a existência de um plano superior
consubstanciado no Mundo das Idéias acessível por meio da razão, o neoplatônico Agostinho
percebeu “idéias” superiores. Entretanto, para o segundo, referidas “idéias” significavam a
verdadeira vontade divina.
Daí a não dinamicidade do plano supra-físico: assim como Deus é imutável e perfeito,
sua vontade também seria inalterável, correspondendo a regras e valores universais que
deveriam ser seguidos por todos os homens em qualquer tempo e qualquer lugar.
Destarte, Agostinho incrementa a metafísica platônica com a religiosidade cristã. Se
Platão realizara a “segunda navegação” que deveria ser alvo do filósofo em sua busca das
Idéias pela racionalidade, Agostinho, usando os mesmos termos, inaugura a “terceira
navegação” (REALE; ANTISERI: 2003b p. 91).
A mera desenvoltura intelectual proposta por Platão não era capaz, em sua concepção,
de atingir a Verdade do plano superior – que para Agostinho era o próprio sinônimo de Deus.
Apenas munido da razão (filosofia) em conjunto com a fé poderia o homem atingir a
plenitude. É interessante notar que, para ele, não há uma relação excludente entre as esferas
da racionalidade e da fé, mas sim complementaridade entre as mesmas, daí a noção de uma
filosofia cristã.
A fé não substitui nem elimina a inteligência; antes pelo contrário, como já acenamos, a fé estimula e promove a inteligência. A fé é um ‘cogitare cum assensione’, um modo de pensar assentido; por isso, sem pensamento não haveria fé. E analogamente, por seu turno, a inteligência não elimina a fé, mas a fortalece e, de certo modo, a clarifica. Em suma: fé e razão são complementares (REALE; ANTISERI, 2003b, p. 88)
As idéias agostinianas já esboçam uma relação entre a vontade divina – fonte de toda a
realidade – e o direito positivo. Este último, situado no plano terreno, deve se adequar à sua
matriz transcendental divina. Entretanto, por estar ligada também aos homens premiados com
o livre arbítrio, a lei positiva é mutável no tempo, sendo também chamada por ele de “lei
temporal” (GOMES, 2004, p.73).
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Não obstante a fusão entre filosofia e fé possibilitadora de uma maior força da
dogmática cristã seja marcada pela patrística agostiniana, é Santo Tomás de Aquino quem
pode ser apontado como a expressão da vontade eclesiástica em dominar a construção de
conhecimento na Idade Média.
Tomás de Aquino, que firmou em Aristóteles sua ligação com a filosofia da
Antiguidade, desenvolveu uma metafísica do ser, significando, para ele, a potencialidade
presente na essência dos entes. Nessa toada, o homem é capaz de perceber a finalidade que os
objetos naturalmente se prestam, sua ordem finalística, cujo ápice reside na vontade divina12.
Entretanto, para caracterização do pensamento hermenêutico tomista, é sua
compreensão acerca dos diversos planos legais que mais nos interessa.
Aquino distinguiu quatro espécies de leis estruturadas hierarquicamente: lei eterna, lei
natural e a lei humana. Acima delas, a lei divina.
A lei eterna, de origem divinatória, compõe a ordem universal que rege todas as
coisas. Graças à sua origem transcendental, a vontade divina é incorruptível e universal. “Os
universais são perpétuos e incorruptíveis, mas o verdadeiro é maximamente universal, pois é
convertível com o ente; portanto a verdade é perpétua e incorruptível [...] ‘porque a justiça é
eterna e imortal’, mas a verdade faz parte da justiça” (TOMAS DE AQUINO, 1999, p.
197;195).
Todos os seres irracionais seguem naturalmente os ditames da lei eterna, porém, ao
homem apenas há tal obediência por força de seu próprio arbítrio, liberdade essa que Aquino
não apenas reconhece, como argumenta ser fundamentadora da lei humana.
Não obstante seja a lei eterna a fonte divina que tudo ordena, apenas Deus e os bem-
aventurados têm acesso direto à mesma. A todos os demais apenas indiretamente, através da
expressão da lei eterna na lei natural é possível conhecer o conteúdo natural regente. Essa lei
natural é responsável por apresentar à racionalidade humana a essência de bondade ou
maldade, justiça ou injustiça, e seu núcleo pode ser expresso na idéia de que “deve-se fazer o
bem e evitar o mal”.
Caracterizando – e criticando – toda a doutrina naturalista, Kelsen faz sucinta
exposição:
12 “Portanto, a verdade está primeira e propriamente no intelecto divino; própria, mas secundariamente no intelecto humano; nas coisas, todavia, imprópria e secundariamente [...] supondo que o intelecto humano não existisse nem pudesse existir, as coisas permaneceriam em sua essência; entretanto, a verdade que delas se diz em comparação com o intelecto divino acompanha-as inseparavelmente, posto que estas só podem existir pelo intelecto divino que as produz no ser.”(TOMAS DE AQUINO, 1999, p.181).
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Acima do Direito positivo, imperfeito, criado pelo homem, existe um Direito natural, perfeito (porque absolutamente justo), estabelecido por uma autoridade divina. Consequentemente, o Direito positivo é justificado e válido apenas na medida em que corresponda ao Direito natural (KELSEN, 1997, p.142)
Dessa forma, em que pese o intelecto humano ter acesso direto à lei natural como
intermediária da lei eterna, ao homem é dado escolher seguir ou não o caminho da bondade e
da justiça. Afinal, há pessoas que são propensas a se entregarem aos vícios e distanciarem da
ordem estabelecida pelo plano divino. Por isso mesmo, se faz necessária uma terceira ordem
legal: a lei humana, que faz uso de coerções e persuasão com escopo de evitar o mal que pode
ser cometido.
A lei escrita pelos homens – lei positivada – para ser efetivamente válida, deveria se
coadunar com os preceitos determinados pela lei natural, e consequentemente, pela lei eterna:
À questão de saber se é válida uma lei humana, que se desvia da lei natural, S. Tomás responde com uma referência a Santo Agostinho: ‘Uma lei injusta não é nenhuma lei’, e acrescenta: uma tal lei que se desvia da lei natural é ‘uma destruição da lei’, uma legis corruptio.(KAUFMANN, 2002b, p. 77)
Por conseguinte, Santo Tomás concebeu uma hierarquização de normas em que uma
inferior buscava legitimidade de validade em uma norma superior, cujo valor hierárquico
correspondia à gradativa abstração da mesma.
Ocorre, porém, que a lei eterna, fonte maior da ordem natural e legal que deve reger os
comportamentos humanos e que garante a validade e legitimidade de todas as normas e
condutas tinha apenas um intérprete. De forma conveniente para a Igreja, Aquino entendia
que não era possível ao homem atingir o conteúdo da lei suprema. Necessário um
intermediário que pudesse certificar-se da correta interpretação da revelação. Para ele, “se o
intelecto pudesse oferecer a visão beatífica de Deus, a vontade humana não poderia deixar de
querê-la. Mas aqui em baixo, isso não é possível”(REALE, ANTISERI, 1990 p. 566) E esse
intermediário não poderia ser outro que não a própria Igreja Católica.
Nessa toada, Aquino13 traz à Igreja a fonte de decisão acerca da legitimidade do direito
positivado. Apenas ela, com acesso à vontade divina, seria capaz de afirmar se uma lei
13 Além da teoria de fundamentação teológica e monopolista da Igreja, a escolástica medieval representa outra vertente de contribuição à hermenêutica, já apresentando crença a uma linguagem unívoca extremamente utilizada pelos modernos em sua busca incessante pela matematização do Direito: “Tem-se por objectivo a linguagem inequívoca, exacta. Neste sentido, já a escolástica medieval procurara compreender a linguagem como espelho (speculum) da realidade e, com o auxílio de uma ‘gramática especulativa’, pôr a descoberto os princípios universais e imutáveis, segundo os quais a palavra, enquanto sinal, seria mediadora entre as coisas e o entendimento e, como tal, veículo de conhecimento verdadeiro” (HAFT, 2002, p. 311).
29
humana estava ou não de acordo com a vontade de Deus. E a mesma religiosidade autoritativa
restava presente na construção do conhecimento da época:
a pesquisa científica medieval passava também ao monopólio da Igreja Católica. Dessa maneira, os métodos retóricos da física/biologia do estagirita foram, então, abonados por Aquino e pelo Papado como verdades absolutas na percepção humana da lei eterna promovida pela Igreja. Logo, qualquer crítica à física aristoteliana incluindo a visão geocêntrica do Universo se tornaria uma afronta ao poder temporal da Igreja (CRUZ, 2004, p.48)
É interessante notar que, quando do período do desenvolvimento das idéias aludidas,
não se tinha uma estruturação tripartida dos poderes, tal qual conhecida atualmente. Nessa
trilha, as decisões provenientes da atividade judicante se mostravam como a mais imponente
fonte jurídica a ser respeitada. Ocorre, porém, que a interpretação acerca de tal fonte deveria
representar, invariavelmente, a vontade eclesiástica.
Não é difícil proceder a relação entre o argumento de autoridade tomista – força da
vontade superior divina relatada pela Igreja – com a prática ainda comum de nossos juristas
de conceberem como Direito, apenas a “verdade revelada” pelas súmulas expedidas pelos
tribunais, únicos detentores da sabedoria jurídica a ser meramente copiada, tal qual a Igreja de
outrora. Assim, afirmam de forma categórica, encerrando a possibilidade argumentativa e
interpretativa, com autoridade: “está na súmula!”. Mal percebem a fragilidade cognoscitiva a
que se entregam ao abrirem mão da capacidade de pensarem o Direito fora dos moldes quase
transcendentais que lhes são apresentados.
Pois bem, detentora do crivo de validade absoluto, a Igreja passou a ser a controladora
das ciências, pensamentos e normas produzidas na baixa Idade Média.
O surgimento dos Estados modernos, culminando no fim do descentralizado sistema
feudal propiciou uma manutenção do poder eclesiástico. A centralização do poder
monárquico precisou compor uma relação simbiótica com a Igreja, que fundamentava o poder
da coroa com suas teorias divinatórias e contava com excelente corpo de burocratas, e em
troca, mantinha sua influência em acordo com o Estado. Entretanto, o fluxo excessivo de
dominação buscado pela cúpula eclesiástica culminou no refluxo de sua própria negação.
30
2.4 O homem na era das certezas
Nos termos esboçados supra, a patrística agostiniana seguida da escolástica de Aquino
incorporaram à concepção da Antiguidade de conhecimento da realidade pela racionalidade –
segunda navegação –, a completude de fé e razão na busca da vontade divina.
Com o advento do Estado moderno e a centralização dos poderes monárquicos, foi
aberto o caminho para o desenvolvimento do humanismo, antropocentrismo e individualismo
que iriam auxiliar na alteração da forma de acesso do homem à realidade empírica.
Passou o homem a observar a regularidade dos fenômenos naturais na busca de uma
coerência de regras e princípios ordenadores da repetibilidade dos eventos do mundo em uma
noção de causa/efeito infalível. Para isso, parou de buscar toda a legitimidade em um
fundamento divino metafísico em benefício de uma ordem lógica, de leis naturais
responsáveis por regular com precisão absoluta os eventos observados na realidade.
Leciona Boaventura Souza Santos que
um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro. Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, num mundo estático e eterno a flutuar em um espaço vazio [...] Esta idéia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que vai transformar na grande hipótese universal da época moderna: o mecanicismo (SOUZA SANTOS, 2001, p. 17).
A concepção newtoniana de um “mundo-máquina” mencionado pelo autor ibérico
ilustra bem o paradigma de conhecimento que começa a se formar a partir do século XVI. O
homem começa a querer se agarrar na “era das certezas”, em uma busca frenética pela
invariabilidade das causas e conseqüências dos eventos, em um superdimensionamento da
segurança consubstanciada em resultados matematicamente previsíveis. Tudo isso embasado
na crença de que a razão humana individual, despida de qualquer interferência externa –
inclusive religiosa – seria capaz de perceber essas leis universais.
Nesse sentido, fazendo referência ao pensamento científico que passa a se formar no
período, Rangel Garcia Barbosa faz menção ao “mito da verdade una, absoluta e verificável
como pressuposto de toda e qualquer teoria que, daí por diante, aspirasse ser reconhecida
como ‘científica’” (BARBOSA, 2006, p. 205).
E, de fato, assim ocorreu. Apenas aquelas áreas do conhecimento capazes de fornecer
um rigor aritmético em seus resultados e previsões poderiam se intitular como “ciência”.
31
As áreas sociais, com suas variações e imprevisibilidades devido ao seu próprio objeto
investigativo, se viram relegadas a uma posição inferior. Por isso mesmo, passaram a buscar
leis com as mesmas características das ciências exatas. Prossegue Barbosa, delineando o que
poderia ser considerada uma lei cientificamente válida – concepção que, posteriormente,
adentraria também no seio das ciências sociais, mais especificamente, do Direito:
Tendo em vista esses três elementos (legalidade, determinismo e reversibilidade), poderia rascunhar que uma lei científica, nas concepções clássicas seria aquela capaz de prever acontecimentos futuros, reconhecer acontecimentos passados e dominar todas as variáveis de comportamento e posição do seu objeto (BARBOSA, 2006, p. 206) (acréscimos nossos).
Reparem como o delineamento das certezas aritméticas aqui trabalhadas se encaixa
perfeitamente na construção doutrinária referente à legalidade e tipicidade tributárias. É a
mesma idéia de uma legislação que possa determinar, a priori , quais serão os resultados das
atividades interpretativas no futuro, juntamente com a garantia de repetibilidade e identidade
de resultados/interpretações nas mais diversas experiências ocorridas. Desde já se pode acenar
como nossos autores ainda se amarram à tradição da modernidade.
Os detalhes que marcaram a consolidação dessa forma de pensamento, porém, ainda
não foram apresentados ao leitor.
Cruz (2004, p. 56 e ss.) aponta quatro principais fatores para a alteração do modelo de
conhecimento na modernidade: a Reforma Protestante, a consolidação do capitalismo, a
Revolução Científica e o Racionalismo Filosófico.
Confrontadora do poder papal, a Reforma protestante abalou a supremacia católica na
Europa, principalmente na figura de Martinho Lutero, símbolo da contestação religiosa.
Lutero acreditava na igualdade formal e aritmética entre os homens, o que o coloca
também ligado à isonomia das Revoluções burguesas. Diante disso, Lutero criticava
vivamente o monopólio interpretativo da Bíblia que a Igreja adotou com base na doutrina de
Tomás de Aquino. Para ele, todos os homens seriam capazes de ler e compreender os
ensinamentos divinos, não necessitando de intermediários para dizer quais as leis divinas e
eternas.
Com esse pensamento, Lutero exaltou o antropocentrismo, colocando o homem não
como um figurante distante do conhecimento, mas sim como ator que busca, por si próprio e
com sua racionalidade, o acesso à verdade.
O foco dado ao indivíduo prosseguiu com a extinção do regime feudal de estrutura
estamental e a ascensão capitalista, que propiciava ao homem posição social não em razão de
32
nascimento, mas sim pelo valor que o trabalho lhe garantia14. Com isso, cada indivíduo
passou a ser capaz de escolher seu modo de vida, dando ao homem aquilo que antes não
detinha: controle de seu destino.
Seguindo a linha de contestação da dominação eclesiástica, a Revolução Científica se
mostrou determinante na alteração da forma de conhecimento da realidade empírica. A Igreja
Católica, fincada na suposição de única intérprete das leis eternas, e fortemente calcada nas
bases aristotélicas, monopolizava/controlava toda a produção do conhecimento (CRUZ, 2004,
p. 58 e ss.). Apenas aquelas teorias e obras validadas pela vontade papal detinham o privilégio
de serem tidas por aceitáveis, escapando da excomungação e da censura do Index
inquisitorial.
A derrocada da infalibilidade da Igreja se inicia com Copérnico, responsável pela
demonstração da falácia da teoria geocêntrica antes prevalecente. Ao colocar o Sol no centro
do universo, Copérnico produziu uma reviravolta na forma de pensar o mundo. Galileu
Galilei, por sua vez, apresentou à sociedade a compreensão de um universo calcado em leis
matemáticas compondo um sistema lógico a ser descoberto e compreendido pelo homem e
ausente do crivo religioso (BARROSO, 2003, p. 23).
Entretanto, a alteração de bases epistemológicas em detrimento da submissão da
ciência à vontade da Igreja não se deu pacificamente. Galileu Galilei foi obrigado a
reconsiderar e “desmentir” suas teses para continuar vivo, porém enclausurado em prisão
domiciliar.
Giordano Bruno não teve sorte tão branda. Árduo defensor das idéias copernicanas,
Bruno foi preso, torturado, e relutante em se retratar tal qual feito por Galileu, foi finalmente
condenado à morte pelas heresias prolatadas contra a Igreja15. Seu destino fora efetivamente
determinante para o surgimento do pensamento cartesiano que se seguiria.
14 “Tal individualismo consolidou-se no campo econômico com o esgarçamento das relações feudais. O homem não se posicionava mais na sociedade em razão de seu nascimento, seu status não provinha mais de suas origens de classe ou estamento. Ao contrário, o aquecimento do comércio, originariamente pelo fim das epidemias e das invasões bárbaras pelas Cruzadas e depois pelo descobrimento das Américas, bem como as contínuas e sangrentas revoltas camponesas e a centralização excessiva do poder político na figura do rei, foram paulatinamente desfazendo as relações medievais entre senhor e servo. O indivíduo passou a posicionar-se socialmente em razão do trabalho e, mais radicalmente, do valor que esse trabalho lhe proporcionava [...] O pluralismo econômico ajudou a fazer desaparecer a concepção de um projeto único da comunidade católica da Cidade de Deus agostiniana” (CRUZ, 2004, p. 57-58). 15 “Em 1591, a convite de um nobre veneziano, voltou imprudentemente à Itália. Um ano depois, foi denunciado ao Santo Ofício, preso, transferido para Roma e encarcerado. Nos sete anos seguintes, apesar da mais extrema e prolongada tortura, discutiu tenazmente com a Inquisição. À exigência dos Inquisidores de que se retratasse, recusou-se obstinada e repetidamente. Por fim, em 1600, foi oficialmente condenado por heresia e sentenciado à morte. A 17 de fevereiro daquele ano foi para a estaca. Levaram-no amordaçado, a fim de que sua continuada rebeldia não se revelasse embaraçosa para os carrascos ou perturbadora para os espectadores reunidos” (BAIGENT; LEIGH, apud CRUZ, 2004p. 59).
33
Ainda que a contragosto do poder cristão, a matematicidade, a certeza e
previsibilidade já haviam sido incorporadas nas ciências naturais tais como a química e a
física. Nessa trilha, as ciências sociais, carentes desses elementos, perdiam seu status de
cientificidade, passando por uma grave crise se identidade e validade. Isso porque, a princípio,
as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais têm um longo caminho a percorrer no sentido de se compatibilizar com os critérios de cientificidade das ciências naturais [...] as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados, [...] os fenômenos sociais são de natureza subjectiva e como tal não se deixam captar pela objectividade do comportamento; as ciências sociais não são objectivas porque o cientista social não pode libertar-se, no acto da observação, dos valores que informam a sua prática geral e, portanto, também a sua prática de cientista (SOUZA SANTOS, 2001, p.10 a 21).
Modificando esse cenário, Descartes seria o responsável por garantir às ciências
humanas a racionalidade e a certeza, antes exclusivas das ciências descritivas da natureza.
A princípio, Descartes havia escrito uma obra com tema relacionado ao estudo físico
da luz. Contudo, assustado com o destino lançado a Giordano Bruno e Galileu, René
Descartes postergou o lançamento de seu trabalho, publicando anteriormente a obra “Discurso
do método” em uma tentativa de justificar “futuras” opiniões contrárias às bases científicas
validadas pela Igreja e testar as opiniões resultantes16 17.
Assumindo sua predileção pelas ciências matemáticas em razão da certeza delas
resultante, Descartes parte para a busca de uma metodologia que fosse universal para a
elaboração de qualquer pensamento científico – onde podemos também situar o Direito.
Ele buscava um método de absoluta racionalidade que fosse capaz de garantir a
verdade do objeto pesquisado. Se assim o era na matemática, também o deveria nas demais
ciências: “pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar
exatamente todas as circunstâncias do que se procura contém tudo o que dá certeza às regras
de aritmética [...] por meio dele, tinha a certeza de usar em tudo minha razão” (DESCARTES,
1996, p.25-26).
16 “Em O mundo ou tratado da luz, Descartes desenvolvera, a propósito do problema particular da luz, as idéias diretrizes de sua física. A obra influenciaria definitivamente a antiga cosmologia de inspiração aristotélica, ainda ensinadas nas escolas e fundaria , finalmente, o mecanicismo dos modernos. Mas a doutrina era vinculada às concepções heliocêntricas que, desde Copérnico, despertavam um interesse cada vez maior. Ora, o Santo Ofício acabava de condenar Galileu, que delas se utilizava. Assustado, Descartes renunciou à publicação de seu livro.” (DESCARTES, 1996, prefácio p. XVII) 17 O receio de Descartes fica claro ao longo de sua obra. Não obstante queira o autor afirmar a neutralidade do conhecimento, e a ausência de espaço para a religiosidade na construção do pensamento científico, Descartes vacila a todo o momento, fazendo questão de sempre mencionar sua ligação com a fé cristã.
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Para assim demonstrar a previsibilidade e a segurança racional presente nas ciências
naturais, Descartes chegou à conclusão da necessidade da exaltação da racionalidade e da
neutralidade do conhecimento científico. Ao contrário das teorias teológicas anteriores que
reuniam fé e razão, Descartes fez questão de se utilizar unicamente da racionalidade humana
para perseguir a construção científica e religiosa18.
Para ele, qualquer influência externa à razão, seja a fé, os sentidos, os preconceitos
anteriores, as crenças ou qualquer outro elemento deveria ser distanciado do pesquisador.
Apenas assim o cientista conseguiria identificar as universais regras de causa/efeito
responsáveis realizar a descrição do mundo empírico. Foi uma reviravolta que alterou
profundamente o método de acesso ao conhecimento!
Assim, porque os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos levam a imaginar [...] pois enfim, quer estejamos acordados, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidencia de nossa razão. Há que se notar que digo de nossa razão, e não de nossa imaginação, nem de nossos sentidos. Assim, embora vejamos o sol muito claramente, nem por isso devemos julgar que ele seja apenas no tamanho que o vemos (DESCARTES, 1996, p. 37-45)
Esta é a concepção que iria invadir a produção científica na modernidade. Algo
próximo à idéia tão difundida de que, ao analisar uma lide, o julgador deve abstrair de todas
suas opiniões prévias, de todos seus preconceitos e crenças sob pena de “viciar” o resultado
almejado.
Esta postura ganhou, no cenário jurídico, a fórmula de subsunção da previsão
legislativa aos fatos concretos percebidos pelo observador jurídico isolado de qualquer
elemento subjetivo que viesse a macular a certeza interpretativa. É entendimento que bem
coadunou com a visão liberal de contenção absoluta das vontades estatais que, quando do
Absolutismo real, adentravam de forma excessiva na esfera dos direitos individuais, de
liberdade (Direito Penal) e patrimônio (Direito Tributário). Afinal, estavam a buscar
elementos que garantissem, com a certeza que Decartes prometia, o enlaçamento dos arbítrios
de outrora. Nessa trilha, caso pudesse o intérprete “intrometer” no resultado interpretativo,
restaria desvirtuada a rigidez das leis científicas que apenas a razão conseguiria alcançar.
18 Apesar de reconhecer a modificação da filosofia iniciada por Descartes, Henrique Lima Vaz entende que não há uma verdadeira ruptura com o paradigma antigo-medieval: “À medida que avançamos no conhecimento dos grandes sistemas, das correntes profundas, das matrizes conceptuais determinantes do pensamento antigo-medieval vemos, não sem surpresa que a pretensa ruptura dos modernos operou-se em domínios bem mais restritos do que inicialmente se pretendera. Uma extraordinária reiteração de temas, problemas e categorias atravessa toda a história da filosofia ocidental e lhe confere uma unidade e continuidade sem dúvida dinâmicas e polimorfas, mas incontestáveis...” (VAZ, 1997, p. 288).
35
Ingenuidade pensar, porém, que tal postura se restringiu ao período liberal ou à
formulação de Descartes durante o século XVI. Desde já, adiantando um debate que se verá
ao final do capítulo, observe como referida concepção avança até os dias de hoje não sendo
muito distinta a construção teórica de Alberto Xavier:
A exigência de ‘reserva absoluta’ transforma a lei tributária em’ lex stricta’ (princípio da estrita legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer valoração pessoal (XAVIER, 2001, p. 18) (grifos nossos)
Nesse sentido, a perspectiva de um Direito unicamente ligado à razão é tributária a
Descartes, que expandiu para a área das ciências sociais a busca pela certeza imaculada pela
fé e pelos sentidos.
Se ao francês é atribuída a separação do amálgama normativo antes existente,
retirando-lhe a religião, Kant (2003) continuou o trabalho cartesiano, separando o direito da
moral19, e realizando ainda uma mudança paradigmática sobre a forma de pensar.
O prussiano Immanuel Kant20 se deparou com uma realidade epistemológica dividida
entre racionalistas e empiristas. Segundo os primeiros – dentre os quais apontamos Descartes
e Spinoza – a racionalidade intelectual do homem era instrumento suficiente e necessário para
se conhecer a realidade. Para eles, todo o conhecimento humano estava lotado na razão, sendo
dispensados os dados fornecidos pelos sentidos tal qual mencionado supra. Noutro lado, os
empiristas – p.e. Hume – afirmavam que apenas através da experiência, apenas por meio do
sentir humano é possível reunir subsídios para conhecer o mundo.
Kant refutou o absolutismo das duas correntes. Em seu entendimento, o homem
necessita tanto dos dados fornecidos pelos sentidos, quanto do intelecto para a formação do
conhecimento humano (GOMES, 2004, p.95 e ss.).
19 “A distinção entre legalidade (conformidade ao dever) e moralidade (conformidade ao dever pelo dever) fornece um dos elementos para a distinção entre direito e moral [...] Uma primeira característica do direito é, portanto, a de prescindir da intenção do sujeito operante – que, ao contrário, é essencial à moralidade de uma ação. Prescindindo da intenção, do motivo de quem age, o direito admite também que o motivo da ação possa ser um impulso sensível: o medo da punição. Outra característica das leis jurídicas é que seu conteúdo (aquilo que elas prescrevem) nem sempre pode ser justificado pela razão, embora a razão apresente como dever a obediência às leis jurídicas. Quando aquilo que é imposto por uma lei externa (jurídica) pode ser conhecido como dever até apenas com a razão (como acontece, por exemplo, com as leis que proíbem o homicídio ou o furto), a lei é denominada natural; já as leis que ‘sem uma real legislação externa de modo algum obrigam, e que, em conseqüência, sem essa legislação não seriam leis, denominam-se ‘leis positivas’” (ROVIGHI,1999, p. 586-587). 20 Cronologicamente, Kant está bem à frente de autores que apenas mais à frente serão mencionados, p.e., Grócio e seu jusnaturalismo. Não obstante, preferimos posicionar a menção à teoria kantiana junto às demais tentativas de isolamento do Direito dos demais elementos antes a ele aglutinados – religião e moral.
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Em sua concepção, pelos sentidos é captada não a realidade ontológica-em-si tal qual
pregado pelos empiristas, mas sim a realidade tal qual é mostrada. Gaarder (1995, p. 347-348)
faz alegoria didática e ilustrativa ao afirmar o seguinte exemplo: ao se colocar um óculos de
lentes vermelhas, a impressão dada pela visão será de que todos os objetos detêm coloração
avermelhada. Entretanto, isso não é verdade, os objetos não são todos vermelhos na realidade,
apenas essa é a forma que eles se apresentam em razão dos óculos utilizados. Da mesma
forma a impressão acerca dos dados dos sentidos. Não se apreende a realidade tal qual é, mas
sim tal qual se mostra para o sujeito.
Daí a necessidade de conjugação com a razão. Caso se tenha um substrato decorrente
da experiência sensitiva, passa-se a depender agora da razão para “processar” esses dados. Por
isso, Kant fala na existência de “formas” ou “intuições puras” consubstanciadas nas noções de
tempo e espaço que são responsáveis por amoldar os dados derivados da experiência na
formação do conhecimento (REALE; ANTISERI, 2005, p. 357 e ss).
Ora, é de perceber que com essa teoria, Kant reformula a filosofia até então vigente.
Conforme mencionado anteriormente, desde a Antiguidade é viável identificar uma “filosofia
do objeto”, na qual cabia ao homem tentar conhecer qual a essência que o objeto tinha em si.
Dessa forma, o sujeito “girava em torno” do objeto.
Kant inverte a ordem desses elementos. Não é o homem que deve conhecer as “leis do
objeto”, e sim as impressões do objeto que devem se amoldar à racionalidade humana! A
partir de então, é o objeto que deve girar em torno da razão humana21. Assim sendo, da
mesma forma que Copérnico inverteu os papéis entre o Sol e a Terra, Kant realizou sua
“revolução copernicana” ao estabelecer a primazia dos objetos à capacidade cognoscitiva
racional do sujeito, impulsionando, assim, a chamada “filosofia da consciência”, algo já
preconizado por Romagnosi22.
Cruz também percebe que
21 “Até então, tentara-se explicar o conhecimento supondo que o sujeito devia girar em torno do objeto. Mas, como desse modo muitas coisas permaneciam inexplicadas, Kant inverteu os papéis, supondo que o objeto é que deveria girar em torno do sujeito. Copérnico havia feito uma revolução análoga: dado que, mantendo a terra firme no centro do universo e fazendo os planetas girarem em torno dela, muitos fenômenos permaneciam inexplicados, ele pensou em mover a terra e fazê-la girar em torno do sol. Deixando de lado a metáfora, Kant considera que não é o sujeito que, conhecendo,descobre as leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, quando é conhecido que se adapta às leis do sujeito que o recebe cognoscitivamente [...] Com sua ‘revolução’, portanto, Kant supôs que não é a nossa intuição sensível que se regula pela natureza dos objetos mas que são os objetos que se regulam pela natureza de nossa faculdade intuitiva” (REALE; ANTISERI, 2005, p.358). 22“ Depois de afirmar que o Eu pensante deve estudar a si mesmo do mesmo modo que estuda a órbita dos planetas e a vegetação das plantas, Romagnosi apresenta como dado de fato aquilo que em geral era admitido a partir de Descartes e Locke, ou seja, que o eu vê os fenômenos externos somente refletidos em si mesmo, ‘em nós e jamais fora de nós’” (ROVIGHI, 2004, p.19).
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desde Kant, sabe-se que o conhecimento não pode ser reduzido a uma relação objeto/objeto [...] em outras palavras, o exame da ‘coisa-em-si’ seria uma falácia, posto que o que nos alcança sempre é a ‘coisa-para-mim’[...] o segundo paradigma da filosofia transcendental caracteriza-se pelo exame das condições subjetivas do pensar e do conhecer. Ao invés da objetividade do ente, passa-se agora ao exame das condições de possibilidade do conhecimento (CRUZ, 2007, p. 77)
É de se notar ainda que tudo isso se dá, para Kant, em um indivíduo isolado. É o
sujeito solipsista, contando com seus sentidos e sua razão cognoscitiva individual que faz as
bases de seu acesso ao mundo e ao conhecimento. Acompanhando a exacerbação da
autonomia individual que caracterizou o pensamento jurídico burguês do século XVIII,
também o filósofo concebia um homem dotado de auto-suficiência cognoscitiva23.
Segundo Kant, a razão é capaz de conduzir a vontade, e justamente em razão da
universalidade de existência de capacidade intelectiva que se pode detectar, nesses casos, lei e
princípios morais universais. E para detectar essas “leis morais”, Kant desenvolve a
concepção de imperativos categóricos24, “ordens” norteadoras dos comportamentos humanos:
O imperativo categórico, que como tal se limita a afirmar o que é a obrigação, pode ser assim formulado: age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal. Tens, portanto, que primeiramente considerar tuas ações em termos dos princípios subjetivos delas; porém, só podes saber se esses princípios têm também validade objetiva da seguinte maneira: quando tua razão os submete à prova, que consiste em conceber a ti mesmo como também produtor de lei universal através deles, e ela qualifica esta produção como lei universal [...]qualquer máxima que não seja assim qualificada é contrária à moral (KANT, 2003 p.68)
O autor chegou mesmo a formular três regras para se reconhecer, racionalmente,
quando se está diante de um imperativo categórico:
sendo assim, o imperativo categórico só pode ser um, e sua fórmula mais apropriada é a seguinte: ‘age de modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal’...diz a segunda:’age de modo a considerar a humanidade, seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro, sempre como objetivo e nunca como simples meio’...a terceira formulação da Fundamentação diz: ‘age de modo que a vontade, com sua
23 “Sob as premissas da filosofia da consciência, é possível aproximar a razão e a vontade no conceito da autonomia – porém essa capacidade da autodeterminação é atribuída a um sujeito [...]ao eu da ‘crítica da razão prática” (HABERMAS, 2003, p. 137). 24 “...há dois tipos de imperativos: o hipotético, que subordina a ordem de ação a executar à obtenção de um objetivo (faça isso se você quer obter aquilo; por exemplo: economize quando jovem se quer ter uma velhice tranqüila), e o categórico, que ordena a ação em si mesma, absolutamente (não mentir, não para ter a estima dos homens ou por qualquer outra finalidade, mas porque a mentira é condenável em si). A norma moral deve ser um imperativo categórico, porque do contrário, não teria mais valor em si mesma, mas dependeria da tendência a este ou àquele objetivo” (ROVIGHI, 1999, p. 578).
38
máxima, possa ser considerada como universalmente legisladora em relação a si mesma’” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 381)25
Nessa toada, reconhecendo a imperatividade dessas ordens morais, Kant acaba por
entender uma subordinação do Direito frente à moral. O caráter deontológico do sistema
jurídico, o dever-ser característico do Direito já nasce vinculado aos preceitos reconhecidos
nas leis morais identificadas pela consciência. A legalidade da ação humana passa a buscar
fundamento na legalidade, que por sua vez é conformada pela moralidade passada pelo crivo
da universalidade dos imperativos kantianos (KANT, 2003, p. 64 e ss.).
Reparem, porém, como a visão kantiana se adeqüa à perspectiva jurídica burguesa que
concomitantemente ganhava força. Assim como procedente a relação entre o solipsismo do
filósofo com a autonomia privada desenvolvida no cerne dos ordenamentos jurídicos da época
– mais tarde culminando na idéia de validade das práticas elisivas tributárias – é possível a
ligação entre os imperativos categóricos de Kant e o formalismo jurídico e isonomia formal
que se despontou com o liberalismo pós- Revolução burguesa. Percebam como a exposição
do pensamento em análise recai em uma argumentação por uma igualdade tipicamente liberal
e universalista, atingindo a todas as pessoas da mesma forma , indiferente às particularidades
individuais:
Esse comando ou imperativo é categórico porque ordena incondicionalmente; e ordena incondicionalmente porque exprime uma universalidade absoluta; para exprimir uma universalidade absoluta tem de ser formal, independente de todo conteúdo, de todos os motivos e fins particulares, pessoais, sociais ou culturais considerados como valores (SALGADO, 1995, p. 212-213).
Todo esse aparato filosófico, a exacerbação da racionalidade humana e a separação do
Direito ao “amálgama normativo” que antes o aglutinava junto à moral e religião, é
responsável pelo salto realizado pelo homem no que tange à fundamentação do ordenamento
jurídico. Nesse sentido, é possível agora compreender como se deu a superação do direito
natural teológico já aludido páginas atrás, bem como a transição do jusnaturalismo
racionalista para o positivismo jurídico que ainda hoje pode ser apontado em nossa doutrina e
jurisprudência. É o que veremos no item subseqüente!.
25 Em exemplificação didática, Galuppo demonstra a lógica do pensamento kantiano: “a representação de uma máxima segundo a qual seja permitido o furto ao pode ser convertida em uma lei e deve ser, portanto, repelida uma vez que tal máxima implicaria uma autocontradição de princípios: se me fosse permitido furtar, quer dizer que tal conduta seria permitida a qualquer um; se o furto fosse permitido a qualquer um, eu não poderia gozar o ‘benefícios’ de meu furto,vez que outra pessoa poderia, furtando-me, impedir que eu ficasse com o bem. Assim, uma autorização para furtar se contradiria e não poderia, por isso mesmo, ser universalizada” (GALUPPO, 2002, p. 84).
39
2.5 Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico
A exacerbação do racionalismo humano proveniente das contribuições de autores tais
quais Descartes e Spinoza, juntamente com o repúdio pela submissão do conhecimento à
vontade da Igreja realizaram uma modificação na concepção do Direito natural teológico,
culminando em sua passagem para o jusnaturalismo.
Tendo Grócio como seu principal expoente, o jusnaturalismo mantém o dualismo neo-
platônico de duas ordens jurídicas distintas: um direito natural prévio, perfeito e imutável e
um ordenamento positivo elaborado pelos homens e subordinado ao primeiro. Entretanto, se
por um lado o direito natural divinatório era alcançado pela revelação da fé, o jusnaturalimo
laicizou a fundamentação jurídica e apontou a razão como meio de acesso ao plano jurídico
supra-humano (CAMARGO, 2003, p.62).
O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme a própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência, disto vetado ou comandado por Deus, enquanto autor da natureza [...] o atos relativamente aos quais existe um tal ditame da justa razão são obrigatórios ou ilícitos por si mesmos (GRÓCIO, apud BOBBIO, 1995, p.20-21)
Não obstante, o jusnaturalismo encontrou seu algoz rapidamente (muito embora, ver-
se-á a seguir que alguns autores tributários sejam ainda marcados pelas suas premissas). Suas
bases filosóficas já marcadas pelo antropocentrismo racionalista e o contexto cientificista de
objetividade e neutralidade plantado por Descartes, culminaram em sua efêmera transição a
um modelo positivista de Direito ligado às características do individualismo liberal
concomitante – conforme se verá, assim como o liberalismo apresenta um homem auto-
referencial, hermético, autônomo e individualista, o positivismo pode ser delineado como um
sistema jurídico de auto-fundamentação, fechado e à parte dos fatos e influências externas ao
texto legal.
Em realidade, a concepção de legitimidade com espeques em uma ordem imutável
apenas existia para fundamentar o Direito positivado consubstanciado na constitucionalização
e codificação jurídicas que ocorriam. Em razão desse quadro, o foco de atenção foi-se
transplantando paulatinamente ao resultado final – lei escrita – em busca de legitimação do
ordenamento jurídico estatal. Isso porque foi desenvolvida a noção de que a única finalidade
de um plano metafísico de Direito natural seria a fundamentação do Direito positivo. Ora, se
40
este era o núcleo de importância do Direito, é no Direito positivo que se deveria buscar a
justificação normativa26 (KELSEN, 1997, p.145 e ss.)
Para Ferreira Filho (1999, p. 20 e ss.), a única limitação para o gozo dos direitos
naturais era a faculdade de outro indivíduo de iguais direitos fazê-lo. E não havia outro
instrumento que não a lei para regulamentar e corporificar essa regulação. Daí a transição para
o direito positivo27.
Fato é que se mostra tênue a linha que separa o jusnaturalismo laicizado de Grócio e a
fundamentação positivista do Direito. Tanto o é que todos os projetos de codificação
decorrentes das revoluções burguesas, grandes símbolos do direito positivo, foram inspirados
na proteção de direitos naturais da humanidade. Codificação essa que possibilitou a
instrumentalização objetivada e cartesiana da atuação interpretativa dos fatos às normas28.
Juntamente a todos esses elementos, também os teóricos contratualistas
fundamentadores do Estado nacional e sua estruturação impulsionaram a sedimentação de um
sistema jurídico estatizado e auto-poiético.
Thomas Hobbes, não obstante seja um defensor do absolutismo precedente ao
positivismo jurídico pode ser visto como um precursor das idéias daquela corrente. Para ele, o
Estado deve ser a personificação do Direito vigente, pois apenas assim conseguir-se-ia limitar
a maléfica liberdade humana representada na expressão hobbesiana de que “o homem é o lobo
do homem”.
Dessa forma, “Hobbes lançou as bases do pensamento liberal positivista, propondo
uma separação ontológica entre Estado e sociedade, bem como um respeito absoluto à lei, e
essa, somente poderia ser assim considerada se fosse monopólio normativo do Estado”
(CRUZ, 2004, p.67). Calcado na visão supra, esse teórico do absolutismo acabou por adiantar
alguns dos fundamentos do positivismo liberal-burguês: o monopólio estatal na criação do
Direito e o formalismo.
26 “Hobbes sustenta que o Direito positivo nunca pode ser contrário à razão, isto é, contrário à lei da natureza [...] Hobbes afirma que os advogados concordam que o Direito não pode ser contrário à razão. Mas ele pergunta ‘de quem é a razão que será recebida como Direito’. E sua resposta é: [...] a razão do Estado, da nação, que segundo Hobbes, determina o conteúdo do Direito, e esse Direito é simultaneamente o Direito positivo e o Direito natural” (KELSEN, 1997, p. 145). 27 Nesse sentido, de se verificar o art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos demais membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos[...]Estes limites não podem ser estabelecidos senão pela lei” 28 “Siéyès, para aduzir um argumento a favor de tal instituição, sustenta que, no dia em que a codificação vigesse, o procedimento judiciário consistiria somente de um juízo de fato (isto é, assegurar que fossem verificados os fatos previstos pela lei), visto que o direito se tornaria tão claro que a quaestio juris (a saber, a determinação da norma jurídica a ser aplicada no caso em exame) não apresentaria qualquer dificuldade, já que todas as questões de direito que o juízo tradicionalmente comportava (e que exigiam a intervenção de técnicos do direito) eram exclusivamente fruto da multiplicidade e da complicação irracional das leis” (BOBBIO, 1995, p.67)
41
Entretanto, se para Hobbes o Estado deve ser o único ente facultado a produzir o
Direito, sua intenção era concentrar poderes nas mãos do soberano. Ocorre que os abusos
decorrentes do absolutismo monárquico fizeram eclodir as revoluções burguesas que
implicaram justamente em uma negação da excessiva interferência estatal na esfera jurídica e
social da população.
Convém lembrar que se está falando de um momento em que as potencialidades
individuais estão em seu ápice, com um racionalismo auto-poiético e uma autonomia
individual servindo de guias para os comportamentos. Se assim o era, como sustentar um ente
externo ao homem ditando quais os caminhos seguir, interferindo em sua esfera individual de
direitos? Afinal, esse mesmo homem tinha em sua auto-suficiência a razão última para o
reconhecimento de sua racionalidade e seu direitos individuais subjetivos.
Mas como então limitar a ingerência estatal cerceadora da absoluta suficiência
individual? Apenas através da segurança e certeza legais! Eis a razão para que em áreas em
que o Estado ainda é visto como inimigo do cidadão, tais como o Direito Penal (liberdade) e
Tributário (propriedade) ainda se mantenha a crença em leis necessárias à limitação da
atuação estatal29.
Contemporâneo à Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688) que consolidou a
prevalência do parlamento naquele país, Locke sustentava que apenas através da divisão de
poderes entre Executivo e Legislativo é possível a estruturação de um regime democrático
moderno e conseqüente proteção dos direitos individuais. Entretanto, foi Montesquieu quem
definiu a teoria de tripartição de poderes que inspirou o constitucionalismo ocidental.
Por sua vez, identificando o Estado como um corpo segmentado por partes
independentes e harmônicas, o Barão de Montesquieu defendia uma prevalência do Poder
Legislativo como detentor da competência legislativa, única capaz de elaborar leis abstratas e
genéricas atribuídas à razão humana. Diante disso, a fundamentação de legitimidade da norma
restava calcada na observância dos ritos de elaboração a que estavam adstritos os membros do
legislativo. Não importava o conteúdo da norma, mas sim se proveniente ou não do Poder
Legislativo.
29 Mais uma vez é fácil a percepção da manutenção de premissas seculares em nossos doutrinadores, basta a observação dos seguintes títulos: “O contribuinte brasileiro: vítima do Fisco” (ISIDORO,1999); “Os limites da legalidade tributária no estado democrático de direito: fisco X contribuinte na arena jurídica: ataque e defesa” (NOGUEIRA, Alberto 1999). Nesses casos, justamente a percepção de um Estado autoritário, capaz de digladiar face o contribuinte no intuito de cerceá-lo de suas garantais fundamentais naturais é a responsável pela crença em uma legislação capaz de preservar a propriedade individual.
42
Se até aqui, o conceito de lei era uno, reunindo características formais e materiais, agora distingue-se entre o conteúdo da lei – lei em sentido material - ,por um lado - , e o comando da lei, por outro. O aspecto fulcral desta distinção reside no facto de a validade de uma lei apenas depender da observação do procedimento legislativo formal [...] Para o positivismo, qualquer lei é, em princípio, válida, desde que a sua emissão tenha respeitado a forma para ela prevista. Lembramo-nos imediatamente de Kant. Só a forma é fornecida a priori, não o conteúdo. (KAUFMANN, 2002b, p.115-117)
Com bases hermenêuticas cartesianas, buscava-se a aplicação da lei da forma mais
pura possível. Para se garantir a certeza jurídica e a previsibilidade jurisdicional, cabia ao juiz
realizar a simples subsunção dos fatos às normas, com a mais absoluta neutralidade. “A
metáfora da justiça pela mulher vendada ilustra bem o quadro, pois a justiça deveria ser
cega/neutra, ou seja, sem vontade própria” (CRUZ, 2004, p. 73).
Resta configurada, assim, a cisão absoluta entre fato e norma. Ambos não se
confundem, caso contrário, estaria maculada a pureza e certeza que Descartes prometeu às
ciências. Todos os homens seriam capazes de apreender o conteúdo normativo do
ordenamento de forma abstrata, pois todos munidos da racionalidade.
Além do mais, o texto era percebido como capaz de descrever a realidade fática que se
concretizaria no “mundo real”. Dessa forma, bastaria realizar a subsunção, o encaixe da
descrição exata presente no texto legal com os dados de fato ocorridos para se alcançar o
objetivo de aplicação do Direito sem as arbitrariedades antes perpetradas pelo Estado.
Quem seguir a concepção – ingênua – segundo a qual o juiz deduziria a sua decisão jurídica da lei, ‘subsumiria’ o caso na norma codificada, atribui à codificação a função de fonte única de toda a decisão jurídica. A actividade jurisprudencial será ‘correcta’ se transportar o conteúdo da norma codificada para o caso a decidir, sem lhe acrescentar ou retirar nada [...] a vinculação do juiz à lei é imperativa. O ideal de segurança jurídica parece atingido: a norma geral vincula a decisão de vários casos no sentido de estabelecer a jurisprudência regular e uniforme. As decisões jurídicas particulares podem ser, cada uma delas, previstas de antemão, pois decorrem da norma jurídica antecipadamente formulada. (HASSEMER, 2002, p.282).
Conclui-se pelo fetichismo da lei, a crença de que apenas uma aplicação carente de
qualquer influência contextual (fatos) ou pessoal (subjetividade do intérprete) seria capaz de
possibilitar a previsibilidade e a segurança que as ciências deveriam denotar30. É nesse sentido
30 Não se pode mencionar o positivismo jurídico sem referenciar o positivismo filosófico de Augusto Comte, base para a construção desse sistema hermético e auto-referencial do Direito. Para ele, o termo positivo deve excluir tudo aquilo que não pode ser explicado pela experiência. Nesse sentido, a certeza positivista seria a “eliminação das dúvidas, dos problemas insolúveis da antiga metafísica: não existem problemas que não possam ser resolvidos com os resultados da ciência.” (ROVIGHI, 2004, p. 120). Dessa forma, Comte enuncia sua lei das três fases que bem pode representar a evolução da filosofia e do conhecimento até aquele momento:
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que Wolkmer entende que a segurança e a certeza jurídicas são “princípios-fim do Direito
Moderno” (WOLKMER, 2005, p. 31).
Conclui Larenz, assim, que
o que, abstraindo da lógica e da matemática, é susceptível de conhecimento científico são, na concepção positivista, os ‘factos’ sensíveis, juntamente com as ‘leis’ que neles se manifestam e se comprovam na experimentação. Nesta postura revela-se como paradigmático o modelo das ciências ‘exactas’ da natureza. (LARENZ, 1997, p.46-47).
Repare a semelhança junto à postura científica propalada por Descartes: a busca em
uma comprovação das leis humanas tais quais as leis da natureza - observação do sujeito
externo ao evento; a ausência de interferência do observador já implica outra conseqüência
imediata - neutralidade do intérprete, que, dispensando sua subjetividade, deve meramente
contemplar com sua racionalidade o sistema jurídico que apresenta, por si só, conclusões
prontas a serem apontadas pelo julgador.
2.5.1 O direito e sua legitimidade positivada
Diante desse paradigma objetivo-racionalista, os juristas se viram situados em uma
estrutura científico-cartesiana de se fazer o Direito. Deveriam os mesmos elaborar sistemas
metodológicos que possibilitassem o êxito pretendido pela racionalidade solipsista que
marcou a epistemologia da modernidade.
A codificação, revelando-se uma vitória da razão e consubstanciada em um corpo
normativo a combater ambigüidades e obscurecimentos, possibilitou o surgimento da
Escola da Exegese, no princípio do século XIX na França (CAMARGO, 2003, p. 66 e ss).
Essa corrente compreendia o Direito como um sistema hermético coerente e completo
de normas. Todas as respostas para o sistema jurídico se encontravam dentro do próprio
ordenamento, razão pela qual enalteciam o direito codificado, compilação de normas que se
-fase teológica ou fantástica: interpretação dos eventos e fenômenos de forma a responsabilizar agentes sobrenaturais; - fase metafísica: mesma lógica da anterior, havendo apenas a substituição dos agentes sobrenaturais por abstrações ( p.e. Deus); -fase positiva: há negação ao conhecimento absoluto. Apenas os dados perceptíveis pela razão e observação de leis invariáveis podem ser tidos como relevantes (Cf: ROVIGHI, 2004, p126-127)
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pretendia auto-suficiente em seu objetivo regulatório. Por isso mesmo, apenas o exame da
dogmática positivada demonstrava importância.
Uma vez ser o Direito tão auto-completivo, nada mais cabia ao juiz a não ser realizar a
fria subsunção normativa silogística. Assim como Aristóteles havia demonstrado como se
chegar a conclusões pelo silogismo lógico (premissa maior: todo homem é mortal; premissa
menor: João é homem; conclusão: João é mortal), a Escola da Exegese propunha a simples
realização deste silogismo objetivo na aplicação jurisdicional. Dessa forma, seria uma
premissa maior: “todo proprietário de bem imóvel urbano deve pagar tributo”; premissa
menor: “João é proprietário de bem imóvel urbano”; conclusão: “João deve pagar tributo”.
Parece bem simples, não? Afinal, se contamos com um texto representador de fatos
empíricos, e buscamos a neutralidade e certeza das ciências exatas, nada mais lógico do que
limitar a atuação do intérprete – mero contemplador do método matemático – para que este
avalie a compatibilidade do fato à norma.
Em razão deste método exegético-dedutivo, a grande preocupação dos juristas se
concentrava na análise de regras de pontuação gramaticais, de questões sintáticas ou
semânticas dos textos utilizados pelo ordenamento.
Uma primeira resposta à concepção formalista dogmática da Exegese foi elaborada
por Carl V. Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito. Para Savigny, não se poderia
afirmar que a única fonte de análise do Direito se reduz ao texto legal, independentemente de
seu conteúdo.
Diferentemente do que pregava a corrente exegética, Savigny não acreditava que a
razão humana fosse a-histórica e imutável, independente das influências de seu passado
histórico para sua formação (BOBBIO, 1995, p.48 e ss.). Para ele, o volkgeist, o espírito do
povo, sua cultura e tradições, eram essenciais para que se perceba qual o efetivo conteúdo das
normas jurídicas direcionadas àquela comunidade respectiva. Dessa forma, cada nação
apresentaria uma identidade própria determinante para a construção de seu ordenamento31.
Para ele, a interpretação significava reconstruir a vontade da lei. Para isso, Savigny
elaborou quatro cânones interpretativos: a interpretação gramatical, que opera no âmbito da
31 Bobbio (1995, p. 51 e ss.) aponta cinco pontos caracterizadores do historicismo: 1) individualidade e variedade do homem: não existe direito único e idêntico em qualquer tempo e espaço tal qual pregado pelo Direito natural. O sistema jurídico é fruto de seu desenvolvimento histórico; 2) irracionalidade das forças históricas: o direito não é imediatamente derivado da justiça percebida pela razão. O justo e o injusto são expressados pelo jurídico e se encontram nas origens dos povos; 3) pessimismo antropológico: receio das inovações e tendência a manter sobrevida de ordenamentos antigos; 4) amor pelo passado; 5) sentido da tradição: valorização da tradição jurídica consubstanciada no costume.
45
palavra; a interpretação lógica, ligada à estrutura, à relação lógica entre as partes; a
interpretação histórica, em atenção aos elementos históricos de quando da elaboração da
norma jurídica; e por derradeiro, a interpretação sistemática, que busca uma coerência em
respeito ao contexto interno do ordenamento.
Interessante notar que em sua acepção, não há que se falar em qualquer hierarquia
entre esses métodos interpretativos. Todos deveriam ser utilizados com o escopo de se atingir
a vontade histórica do legislador representadora do “espírito do povo” (KAUFMANN, 2002b,
p.166-167).
Em que pese uma aparente evolução da hermenêutica formalista da Exegese, também
a escola savignyana, ainda referencial para a doutrina tributária, apresenta vícios e
pressupostos cartesianos e formalistas.
Tanto o é que o autor rechaça a possibilidade de interpretações extensivas ou
restritivas, pois que ampliando ou diminuindo o alcance da norma, se estaria a fugir da razão
da própria norma. Ou seja, ao juiz não é dado contribuir para o conteúdo do ordenamento,
pois assim, iria o mesmo ingerir na atividade do legislador (LARENZ,1997, p. 11e ss.).
Não consegue Savigny fugir da referência e prisão à atividade legislativa. Ele apenas
incorpora uma visão histórica a essa característica, pedindo ao intérprete que se coloque no
lugar do legislador para apreender a correta interpretação.
A metodologia hermenêutica construída por Savigny observou rigorosamente os objetivos do racionalismo cartesiano na busca de uma correção e certeza compatíveis com a matemática. Seu método incorporou raciocínio de aplicação dedutiva por meio do pressuposto que o texto da norma subsumiria o fato. (CRUZ, 2004, p. 77)
Assim como é falaciosa a pretensão da exegese em sua busca por uma univocidade de
entendimento acerca da norma jurídica em combinação com uma neutralidade interpretativa
livre de eventuais pré-compreensões precedentes, é também insuficiente a proposta do autor
em comento. Nem um nem outro compreendem que o próprio sentido do texto normativo está
ligado também à historicidade do intérprete. “Não sendo esta (a norma) totalmente
determinável nem pelo texto nem pelo contexto histórico ou sistemático, a responsabilidade
pelo sentido formado no processo interpretativo recai sobre o intérprete.” (ELLSCHEID,
2002, p.213-214) (acréscimos nossos).
Além do mais, a postura de busca por regras reguladoras da própria interpretação
acaba por cair no fetiche normativo característico do positivismo legalista. É o mesmo
objetivo de Descartes: instituir um método prévio garantidor de uma conclusão correta.
46
Ocorre que dessa forma, já se encontra viciada a própria conclusão, que se vê determinada
pelo método anterior à pesquisa. Além do mais, os próprios métodos interpretativos devem
ser objeto de interpretação! É um ciclo infinito que não cessa o papel interpretativo-
construtivo.
Discípulo de Savigny, Puchta seguiu no desenvolvimento de teorias formalistas-
positivistas, criando a chamada “jurisprudência dos conceitos” ou “genealogia dos conceitos”
(LARENZ, 1997, p.21 ss.).
Segundo Puchta, o Direito é constituído por expressões ou termos jurídicos que podem
ser situados hierarquicamente. Uma vez realizado esse escalonamento subordinativo, um
instituto/conceito jurídico servirá de fundamentação para um conceito/instituto jurídico
inferior, e assim sucessivamente.
O estudo universalizado e fechado de um instituto, como se divorciado de seu entorno
teórico reflete-se ainda hoje nas obras fiscais que se restringem à análise de um único e
isolado ponto do Direito Tributário, como se possível fosse proceder à averiguação “do
lançamento tributário”, ou “da imunidade tributária” para posterior encaixe em sua ordem
hierárquica jurídica.
Seguindo esta trilha, este autor acreditava ser capaz de proporcionar conceitos claros e
unívocos, garantindo, assim, uma interpretação segura e exata das normas. Dessa forma,
buscava-se uma exacerbação do silogismo lógico-dedutivo já apresentado em toda a
construção do ordenamento, até se chegar à certeza do conteúdo de um texto normativo. Não
é difícil imaginar uma pirâmide conceitual onde a esfera inferior busca sua fundamentação na
superior, uma alegoria que adianta a teoria kelseniana.
A ideia de PUCHTA é a seguinte: cada conceito superior autoriza certas afirmações (por ex., o conceito de direito subjectivo é de que se trata de um ‘poder sobre um objecto’); por conseguinte, se um conceito inferior se subsumir ao superior, valerão para ele ‘forçosamente’ todas as afirmações que se fizerem sobre o conceito superior (para o crédito, como uma espécie de direito subjectivo, significa, por ex., que ele é um ‘poder sobre um objecto que esteja sujeito à vontade do credor e que se poderá então vislumbrar, ou na pessoa do devedor, ou no comportamento devido por este último’) (LARENZ, 1997, p. 25)
A persecução da certeza interpretativa e a adoção de uma metodologia formalista-
cartesiana deixam clara a postura racional-objetiva que a genealogia dos conceitos fez
persistir.
A evolução hermenêutica ocorrida ao longo do século XIX e princípio do século XX
fez eclodirem pensadores outros cujas idéias não poderão ser esboçadas. Windsheid, seguindo
47
ditames de Savigny perseguiu a vontade do legislador. Von Ihering, com sua “Jurisprudência
de Interesses” esboçou suas idéias dentro do positivismo sociológico fugindo do objetivismo
de Puchta (CRUZ, 2004, p. 104 e ss.) e assim por diante. Entretanto, daremos um salto em
nossa visita à evolução hermenêutica para apresentar uma corrente que representou um
resgate dos pressupostos cartesianos, porém direcionando-os à linguagem, e
consequentemente, à interpretação de textos.
2.5.2 Do neopositivismo vienense ao normativismo de Hans Kelsen
A moldura de racionalidade cartesiana debatida até então ganhou considerável
impulso no entre-guerras. Em Viena, um grupo de amigos intelectuais no início dos anos de
1920 costumava se reunir em um café da cidade para debater temas filosóficos e científicos32.
Mais tarde, com o ganho de substância dos debates e a redação de um “manifesto” que logrou
delinear uma corrente de pensamento própria, surgiu o Wiener Kreis (Círculo de Viena),
também chamado de neopositivismo ou positivismo lógico.
A própria formação de seus integrantes – grande parte ligada à lógica ou matemática –
já denota certas características do pensamento vienense do início do século passado. Ainda
gravado pelas influências do racionalismo, o neopositivismo se consagrou como uma corrente
extremamente anti-metafísica, com pressupostos científicos de verificação (seguimento da
idéia de “causa-efeito” de Descartes), além de uma intensa preocupação com o estudo da
linguagem e da ciência em si. Todos esses elementos restavam submetidos à perseguição de
um conhecimento tão exato quanto o lógico-matemático presente em suas bases científicas.
Para Sofia Rovighi, essa doutrina “é caracterizada não apenas por elementos positivos [...]
mas também por uma radical aversão à metafísica, unida à valorização das ciências
experiementais e da lógica formal” (ROVIGHI, 2004, p.473).
Outro ponto marcante desse novo modelo de pensamento é a busca por atrelar a
função da linguagem ao desenvolvimento da filosofia.
32 “Assim, em 1922, Sclick foi chamado a Viena. Entretanto, como conta Herbert Feigl, antes ainda da guerra de 14/18, ‘um grupo de jovens doutores em filosofia, que haviam estudado sobretudo física, matemática ou ciências sociais – dentre os quais se destacavam Philipp Ferank, Hans Hahn, Richard von Mises e Otto Neurath -,encontravam-se toda sexta-feira à noite, em um café da velha Viena, para discutir especialmente questões de filosofia da ciência. Naqueles dias, era principalmente o positivismo de Ernst Mach que inspirava esse pequeno grupo de estudiosos.”(REALE; ANTISERI, 1991, p.992)
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Para os integrantes do neopositivismo, todos os grandes problemas da filosofia não
estavam na filosofia em si, mas sim na sua forma de expressão. Toda discordância filosófica,
toda incompreensão da realidade não passam por uma incompreensão ou desconhecimento da
filosofia “stricto sensu”, mas sim por uma carência lingüística. Por isso mesmo a própria
filosofia deveria se ocupar da linguagem.
Em passagem sobre Rudolf Carnap, membro do pensamento vienense, Manfredo
Araújo afirma que
sua convicção era de que a maioria dos problemas filosóficos autênticos era controvérsia a respeito do quadro lingüístico adequado a uma pesquisa científica ou descritiva sobre fatos dos quais tais pesquisas tratam, as confusões existentes na filosofia provêm do fato de os filósofos não terem clareza a respeito dessa realidade, isto é, que as perguntas filosóficas são, nesse sentido, perguntas puramente lingüísticas [...] Isso significa, então, que todos os problemas filosóficos são, na realidade, problemas de sintaxe lógica (OLIVEIRA, 1996, p. 81;82) (grifos nossos)
Segundo esses pressupostos, entendia-se que, para se ter a pretensão de um
conhecimento efetivamente verificável, antes era necessária uma linguagem capaz de realizar
esse tipo de análise. Em razão disso, ao dissertarem acerca das teorias do neopositivismo,
Reale e Antiseri inserem dois elementos:
que o trabalho que resta ao filósofo sério é o da análise da semântica (relação entre linguagem e realidade à qual a linguagem se refere) e da sintática (relações dos sinais de uma linguagem entre si) do discurso significante, isto é, do discurso científico; [...] por isso, a filosofia não é doutrina, mas sim atividade:atividade clarificadora da linguagem.(REALE; ANTISERI, 1991, p.994)
Seguindo esse pensamento, Frege33 – ele mesmo um estudioso da matemática, física e
química (OLIVEIRA, 1996, p.57 e ss.) – tentou aproximar a lógica e a linguagem. Em sua
concepção, os próprios princípios e estruturas que encampam a aritmética deveriam também
embasar uma linguagem capaz de proporcionar uma ciência verdadeira. Com isso se teria uma
linguagem exata em que cada expressão, cada palavra, cada signo teria um sentido próprio
correspondente.
Dessa forma, bastaria realizar uma análise dos símbolos presentes em uma frase ou
proposição para que todos os intérpretes conseguissem extrair o mesmo significado. A um
jurista, por exemplo, seria dada a tarefa de realizar o estudo de pontuações e expressões
33 É muito importante deixar claro o fato de que Frege, em realidade, não chega a compor efetivamente o Círculo de Viena, mas sim o antecede, pertencendo à chamada filosofia analítica. Não obstante, suas idéias de matematização da linguagem estão em consonância e embasaram os estudos que ora se faz menção.
49
gramaticais presentes em textos normativos, fonte absoluta de todo o Direito. Afinal, se cada
expressão ou palavra utilizada teria um conteúdo correspondente, não havia que se falar em
ambigüidades interpretativas. Foi o mesmo embasamento que se tentou reproduzir no CTN
(art. 111) inserindo a busca por uma literalidade interpretativa capaz de representar uma
identidade de resultados hermenêuticos.
O exemplo que Delacampagne traz do pensamento de Boole (algumas décadas
anterior a Frege), expressa bem a idéia que se tentou firmar:
Suponhamos que as variáveis x e y representem classes de objetos quaisquer. A contribuição específica de Boole consiste em notar com 1 a classe cheia ( o universo do discurso), com 0 a classe vazia e com o símbolo v [...] a palavra ‘alguns’. Graças a essa notação, um julgamento da forma: ‘todos os homens são mortais’, se torna: ‘todos os y são alguns x’, ou seja: y = vx. Da equação correspondente, y – vx = 0, é fácil tirar, por uma série de operações algébricas elementares, outras fórmulas, como, por exemplo: y(1 – x) = 0 ( ‘os homens não-mortais não existem’ (DELACAMPAGNE, 1997 , p.21)
Caso se realize a transposição dessa perspectiva para o mundo do Direito, com uma
linguagem logicamente exata tal qual pensava Frege, o dogma subsuntivo restaria
extremamente simples e ausente de erros ou dúvidas! Bastaria o intérprete analisar o conteúdo
determinado por um tipo tributário – já que as palavras corresponderiam a um sentido já
determinado – e observar se os fatos ocorridos se encaixam no “modelo normativo” com
exata perfeição. Ou seja, é o próprio pensamento da tipicidade estrita tributária!
Por óbvio, a linguagem ordinariamente utilizada não apresenta essa exatidão
pretendida pelos neopositivistas. E Frege também não ignora esse dado. Tanto o é que o
mesmo se viu envolto em uma tentativa de criação de uma linguagem artificial34 que lograsse
êxito em seu propósito de certeza e univocidade:
Nessa tentativa, Frege achou a linguagem natural incapaz de exprimir as estruturas lógicas com a precisão necessária. Por isso ele tentou construir uma linguagem
34 Não apenas Frege, mas também outros autores ligados à exatidão lingüística, muitos deles neopositivistas, dentre os quais se destaca Rudolf Carnap, já aqui mencionado, perseguiram o objetivo de uma matematização da linguagem humana. Carnap, por sua vez, defendia o pensamento de que os vícios metafísicos que eventualmente surgiam na ciência e filosofia eram decorrentes de uma carência presente na utilização da linguagem natural, direcionando-o também para o estudo de uma linguagem artificial. Carnap, encarna bem os pressupostos e objetivos do Círculo de Viena, conjugando a certeza da linguagem com a negação de traços metafísicos na filosofia. Conforme leciona Manfredo Araújo de Oliveira: “As reflexões de Carnap sobre a linguagem se situam em seu programa antimetafísico, isto é, como ele mesmo dizia da ‘superação da metafísica por meio da análise lógica da linguagem’. Para ele, as especulações metafísicas se originam da falta de convenções que determinam o uso das linguagens naturais”. (OLIVEIRA, 1996, p. 76-77). Além disso, Carnap passou a desenvolver uma linguagem que poderia ser entendida por si mesma, ou seja, uma linguagem universal que todos a que a ela tivessem acesso poderiam se utilizar com a possibilidade de uma comunicação sem dubiedades.
50
artificial na qual, com poucos símbolos, fosse possível exprimir com exatidão todas as formas lingüísticas (OLIVEIRA, 1996, p. 59)
Importa destacar um dado interessante. Ainda que seja latente o repúdio que os
integrantes do neopositivismo manifestavam em relação a qualquer elemento metafísico junto
às ciências, a postura descritiva da linguagem presente em suas obras parece trair seus
próprios ideais.
A concepção de ser possível destacar em um signo qualquer – p.e. “livro” – uma
descrição unívoca de um elemento da realidade é uma ilusão que parece lembrar a dualidade
Idéia/mundo sensível de Platão. Eis o lado metafísico velado do pensamento ontológico
positivista.
Mas não pára aí. Será identificado mais adiante que a teoria da tipicidade tributária da
forma como é tratada pela doutrina atual vem a se calcar justamente nessa visão platônica de
representação de um mundo ideal a ser atingido pelo jurista. Assim, tão metafísica quanto as
idéias esboçadas na Grécia Antiga!
Mais à frente ter-se-á oportunidade de desenvolvimento, em melhores termos, das
idéias ora jogadas. Mas de forma breve, veja quão insatisfatória se mostra a proposta: diante
da linguagem indúbia do Círculo de Viena, é determinante o dispositivo constitucional que
prevê imunidade tributária aos livros e papéis para sua impressão (art. 150, VI “d” da CF/88).
A princípio, poder-se-ia afirmar que os signos utilizados detêm em si uma representação
determinada e única da realidade: aos livros não é possível a exação de impostos.
Entretanto, como saber se catálogos ou álbuns de figurinhas podem ser tidos como
inseridos no benefício fiscal mencionado? E quanto aos livros eletrônicos? Estariam os
mesmos representados na descrição constitucional? Mas, tradicionalmente “livro” é entendido
como “conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou brochado”
(LAROUSSE CULTURAL, 1992, p. 694). Como um CD-ROM pode se inserir nessa
proposta? Observe a impossibilidade de se cercar todas as hipóteses relativas à realidade que
o Direito vem a se relacionar.
Em que pese a importância de pensadores como Frege e Carnap, é Wittgenstein tido
como o mais importante filósofo do início do século XX35. Em sua obra “Tratactus” (2002),
35 A alta relevância que é dada ao pensamento de Wittgenstein é muito mais tributária não a este momento de sua contribuição filosófica ora comentada, mas sim pela sua obra póstuma “Investigações Filosóficas” que mais à frente faremos menção e que originou o chamado “giro-linguistico”.
51
Wittgenstein mantém a percepção dos demais neopositivistas de uma linguagem meramente
instrumental, uma forma de designação de sentidos e conteúdos já determinados36.
Imaginando uma identidade estrutural entre os elementos componentes da realidade e
aqueles que compõem o raciocínio humano, ele pensava que o homem utilizava a linguagem
como uma forma de representação, de descrição da realidade correspondente. Isso porque da
mesma forma em que os objetos se relacionam entre si, a mesma estrutura relacional é
realizada entre as expressões lingüísticas, e da mesma forma no intelecto. Nessa trilha, a
estrutura de relações, que é o foco de atenção de Wittgenstein, não se altera.
Do mesmo modo que um mapa geográfico ‘representa’ uma paisagem sensível, a conexão dos elementos no interior da proposição ‘representa’ a conexão dos objetos do mundo. Mais ainda, essas duas conexões são idênticas. Elas são o mesmo que a ‘forma de representação’ comum ao mundo e à imagem que nossa linguagem nos dá deste (DELACAMPAGNE, 1997, p.21)
Mas, para isso, é preciso supor que cada palavra tenha um significado ontológico
respectivo, seu conteúdo próprio indicador de um dado, fato, coisa ou situação na realidade
empírica – ainda que consideremos a palavra presente em seu contexto tal qual Wittgenstein.
Em que pese a exposição de posicionamentos mais radicais como os de Frege e
Carnap em suas tentativas de criação de linguagens artificiais logicamente exatas, é fácil o
leitor rechaçar essas tentativas como sendo improváveis, ou mesmo impraticáveis.
Entretanto, o que se quer realmente destacar com essa evolução é a presença desses
mesmos pressupostos cartesianos de matematização da linguagem e certeza interpretativa em
teorias que ainda hoje dão suporte para ideais subsuntivos presentes em nossa doutrina e
jurisprudência.
Em termos simplificados, a ‘filosofia da consciência’ supunha que o ser ciente era capaz de idealizar mentalmente qualquer objeto (maçã) ou conceito (Teorema de Pitágoras), permitindo-lhe ter uma perspectiva de suas características e elementos. Nesse contexto, a linguagem seria mero mecanismo de padronização/intermediação do sujeito com o objeto de sua análise [...] era um mero elo de ligação entre a consciência humana e o fenômeno pesquisado.(CRUZ, 2004, p. 143)
36 Ainda que seja possível identificar um caráter de ontologização no pensamento de Wittgenstein nessa primeira fase, é necessário destacar que já em sua obra inicial, o autor já percebia que apenas se pode afirmar que um termo ou expressão possui conteúdo se presente dentro de uma proposição. Ou seja, Wittgenstein já tinha ciência da importância que o contexto tem para se saber o conteúdo de uma expressão gramatical. Nesse sentido, “para o Wittgenstein do Tratactus, o sentido de uma frase é fruto da associação das significações de seus elementos. O que há de novo aqui é que o elemento só tem significação enquanto elemento, isto é, enquanto membro de uma frase, e não mais independente dela como era antes [...] no isolamento, os predicados são destituídos de qualquer significação.” (OLIVEIRA, 1996, p.97). Isso demonstra que desde já, Wittgenstein já apresentava uma noção relacional dos objetos. Apenas em uma interação termo-termo, ou objeto-objeto, os mesmos podem ser pensados com alguma relevância.
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A mesma linha de pensamento descritivo da realidade, fazendo uso da linguagem
apenas com fins de representação de um conteúdo previamente determinado, e por isso de
univocidade interpretativa é presente ainda hoje nas teorias de tipicidade e legalidade. Sobre
isso ver-se-á mais adiante.
Mas, antes de adentrar nesse ponto, mister identificar a relação existente entre o
neopositivismo vienense e o pensamento jurídico de um dos autores mais influentes no
Direito.
Bebendo nas fontes do racionalismo solipsista de Kant, bem como da pureza do
conhecimento científico iniciada por Galileu e Descartes, Hans Kelsen é tido como um
continuador das idéias desenvolvidas no Círculo de Viena (KAUFMANN, 2002b, p.178 e ss).
Não obstante, a teoria kelseniana apresenta saltos que marcam certa independência em relação
aos seus antecessores vienenses.
Extremamente contrário a qualquer traço metafísico na elaboração do conhecimento
científico, Kelsen acreditava que toda ciência deveria ser construída e estudada preservando a
pureza de sua área de conhecimento – daí a denominação de sua obra “Teoria pura do direito”
(1998). Dessa forma, o Direito não apenas poderia, mas sim deveria se ater à descrição do
ordenamento jurídico, deixando questões subjetivas, fáticas ou sociais para as ciências
próprias tais quais Sociologia e Política, desligado de qualquer elemento concreto ou factual
de observação.
É essa linha de raciocínio que irá levar Kelsen a desligar o Direito de seu conteúdo
proferido, e mesmo defender a hipótese de um controle concentrado de constitucionalidade37
em que há debate acerca da constitucionalidade da norma sem qualquer possibilidade de
exame de questões fáticas pelo STF38.
Assim como Puchta havia determinado uma genealogia dos conceitos, Kelsen, em um
intenso exercício silogístico, percebia o Direito estruturado como uma pirâmide hierárquica.
Nela, a norma hieraquicamente superior serviria de fundamentação para a norma inferior, que
37 Sobre a democraticidade do controle concentrado e difuso de constitucionalidade, e mesmo sobre a possibilidade hermenêutica de se realizar essa aparente cisão, imprescindível a leitura das obras “Jurisdição constitucional democrática” (CRUZ, Álvaro Ricardo); “Hermenêutica constitucional e(m) crise” (STRECK, Lênio Luiz) e “Hermenêutica constitucional e(m) debate” (CRUZ, Álvaro Ricardo). 38 Nesse sentido, apregoa a súmula 279 do STF: “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. Em que pese se tratar de súmula aplicada ao controle difuso de constitucionalidade, este é exemplo cabal de como o se tenta manter a realização de um controle “objetivo” do conteúdo do Direito, como se fosse possível conceber qualquer materialidade jurídica sem a apreciação das nuances fáticas, sendo que, em realidade, sem essas últimas, não há qualquer Direito. Mais uma demonstração de tentativa (ilusória) de cisão entre fato e norma...
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apenas teria legitimidade se apresentasse adequação com a primeira. E assim sucessivamente
até chegar às decisões judiciais, tidas por Kelsen, como uma norma de aplicação individual.
A ordem jurídica de um Estado é, assim, um sistema hierárquico de normas legais. Em forma bastante simplificada, apresenta o seguinte retrato: o nível mais baixo é composto de normas individuais criadas pelos órgãos aplicadores do Direito, especialmente os tribunais. Essas normas individuais são dependentes dos estatutos, que são as normas gerais criadas pelo legislador, e das regras do Direito consuetudinário, que formam o nível superior seguinte da ordem jurídica. Esses estatutos e regras de Direito consuetudinário, por sua vez, dependem da constituição, que forma o nível mais elevado da ordem jurídica como sistema de normas positivas (KELSEN, 1997, p. 215-216)
A título exemplificativo, a Constituição Federal39 serviria de parâmetro e fundamento
para uma lei que prevê obrigação tributária àqueles proprietários de bem imóvel urbano.
Noutro lado, essa mesma lei ordinária serviria de fonte de legitimidade para que o juiz, ao
proferir sua decisão, “criasse” lei entre as partes e determinasse o pagamento do tributo
devido.
Conforme constata Chamon Junior,
Tal fundamentação só é possível segundo a teoria desenvolvida, se lançarmos mão de um raciocínio silogístico [...] toda a questão se desenvolve no sentido de a norma superior – premissa maior – ser o fundamento da norma inferior – conclusão – ainda que intermediado por um fato da ordem do ser – premissa menor (CHAMON JUNIOR ,2005, p. 23).
A ponta final do processo hermenêutico, seria uma derivação da regra da causalidade
apontada por Descartes. Se nas ciências naturais é seguida a regra: se A, é B (p.e., se há ação,
há reação igual e em sentido contrário), nas ciências sociais, poderia ser identificada a regra
da imputação: se A, deve ser B (Se João tem bem imóvel urbano, deve pagar tributo).
Com isso, Kelsen focou o critério de aferição de validade da norma em suas questões
formais, ou seja, na obediência ao sistema de legitimação em que uma norma jurídica é fonte
fundamentadora de outra inferior – daí o caráter dinâmico de sua teoria (KELSEN, 1998,
p.215 e ss.). Deixa de lado, porém, questões centrais do conteúdo do sistema jurídico a ser
analisado40.
39 Acima da Constituição, Kelsen previu a existência de uma “norma hipotética fundamental” que serviria de fundamento para a primeira. Referida norma não seria escrita, mas sim algo fruto da racionalidade humana que deveria trazer a legitimidade à Constituição escrita e positivada. (Cf. KELSEN, 1997, p. 216) 40 Esse raciocínio fundamentou severas críticas ao normativismo kelseniano, ligando-o ao regime nazista alemão. Pensava-se que Kelsen defendia a idéia de que, se há fundamentação formal de uma lei nazista em uma constituição de superior hierarquia, essa mesma lei seria válida e deveria ser cumprida. Não obstante a Corte Alemã, de fato, tenha usado essa técnica hermenêutica para a legitimação dos atos do Fürer, hoje já se percebe
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Calcado na ilusória separação entre fato e norma – ironicamente próximo à postura
metafísica de Platão de cisão entre mundo sensível e inteligível que Kelsen tanto rejeitava –
ele acreditava que ao juiz é dada a tarefa de análise jurídica pura. Entretanto, Kelsen foi além
da postura neopositivista de univocidade interpretativa.
Para ele, toda norma possuía mais de uma possibilidade de interpretação, algo como
uma moldura na qual possível a inserção de vários quadros. Caso o conteúdo interpretativo
fosse compatível com a moldura, seria o mesmo aceitável.
... a indeterminação do ato jurídico pode também ser a conseqüência não intencional da própria constituição da norma [...]aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou seqüência de palavras em que a norma de exprime [...] O direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro em moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Se por interpretação se entende a fixação por via cognitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem (KELSEN, 1998, p. 389-390).
Não obstante se possa afirmar a superação de uma pretensão de unicidade absoluta de
conteúdo interpretativo, Kelsen não se esquiva de alguns problemas.
Em primeiro lugar, é mantida a racionalidade solipsista kantiana, ou seja, o juiz,
isoladamente, decide qual o conteúdo a ser atribuído à norma legal. Não há uma construção
intersubjetivamente compartilhada, não há a presença efetiva das partes/sociedade na
construção da substância normativa. Kelsen persiste, assim, na percepção de identidade entre
Direito e Estado. Apenas quando emanado por este último de forma direta, detém o Direito
validade (KELSEN,1998, p. 316 e ss.).
Outro ponto a ser anotado é a insistência em elaborar uma visão de pureza tanto
ideológica quanto científica da ciência jurídica, tal qual a tradição racionalista que o precedeu.
Ao crer em uma separação estanque entre fatos e normas – mais uma vez ressaltamos: ligada
à visão do controle concentrado de constitucionalidade – Kelsen suponha ser possível
interpretar uma norma jurídica independentemente de qualquer realidade fática.
que, em realidade, a teoria pura de Kelsen foi instrumentalizada de maneira deturpada. (Cf. KAUFMANN, 2002b, p. 179 e ss.)
55
2.6 O Direito como questão de fato
Não se realizou tal digressão filosófica apenas por mero deleite. As bases do
pensamento jurídico atual devem ser compreendidas em atenção a toda a fundamentação
filosófica ora trabalhada.
Caso se observe os preceitos de um racionalismo solipsista e de neutralidade científica
– e ver-se-á que vários autores o fazem – cair-se-á na pretensão de uma atividade
interpretativa com características que, de imediato, fazem lembrar alguns preceitos da
doutrina tributária:
Um primeiro ponto é que a atividade interpretativa é realizada com base em uma
linguagem descritiva da realidade. Dessa forma, apenas aqueles fatos cuja norma tenha
definido textualmente de forma expressa, sem deixar margens para ambigüidades ou dúvidas
interpretativas, podem ser tidos por ensejadores de obrigação fiscal. Com isso, é mantida a
concepção de que a linguagem já denota em si, uma correspondência com a realidade, a
mesma pretensão de que com um texto escrito é possível ter, ontologizada, uma situação
descrita pela legislação.
É delineada, assim, a busca por uma certeza matematizada da atividade hermenêutica,
e consequentemente, das obrigações tributárias. Tal qual os pensadores modernos, é almejada
uma exatidão de resultados interpretativos, sem o qual não é dado o caráter científico ao
Direito Tributário. Obviamente que, para isso, o intérprete deveria se abster de qualquer
subjetividade, qualquer influência externa capaz de macular o sentido presente na norma.
Ora, se é buscada a exatidão das expectativas jurídicas, juntamente com uma
linguagem pretensamente capaz de denotar de forma absolutamente clara os dados presentes
no mundo real, deve-se reconhecer legitimidade jurídica unicamente às legislações
provenientes de um órgão estatal próprio! É o dogma da legalidade absoluta e da “prevalência
legislativa”.
Seguindo essa linha, uma vez aceita a legalidade estrita tem-se por certo o fato de que
apenas o Estado é legítimo para estipular o conteúdo do Direito que cabe à população
passivamente obedecer. Na mesma trilha, exaurindo o conteúdo jurídico em uma norma
unívoca, é resumida a atividade judicial à adequação subsuntiva dos fatos à norma. É o
mesmo raciocínio silogístico de Aristóteles e que o Círculo de Viena retomou com maior
requinte.
56
Nesse sentido, pode-se entender que quanto ao conteúdo jurídico não há que se
debater qualquer controvérsia, pois não haveria controvérsia! O Direito se resumiria em uma
mera pesquisa factual. Ao esboçar essa mesma postura hermenêutica, Dworkin leciona que
o direito nada mais é que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislaturas, as câmaras municipais e os tribunais decidiram no passado, se alguma corporação desse tipo decidiu que os trabalhadores podem ser indenizados por danos ocasionados por colegas de trabalho, será isso, então, o direito. Se a decisão for contrária, então este será o direito. Portanto, as questões relativas ao direito sempre podem ser respondidas mediante o exame dos arquivos que guardam os registros das decisões institucionais [...] e portanto, não pode haver controvérsia entre eles quando ao direito assegurar ou não a indenização por danos ocasionados por companheiro de trabalho (DWORKIN, 2003, p. 10)
Esse mesmo pensamento o autor define como sendo “o direito como simples questão
de fato”(DWORKIN, 2003, p. 11-41). Isso porque ao jurista/intérprete, é dado unicamente
verificar questões factuais: realmente existe a norma em comento? Ela ainda se encontra
válida em nosso ordenamento? Caberia perguntar: os fatos ocorridos se adeqüam à
delimitação exaustiva da norma jurídica? O conteúdo prévio determinado pelo texto legal
incidirá neste fato específico? Todas questões fáticas! Momento algum se argumenta em torno
da construção do conteúdo normativo, ou mesmo sua melhor conformidade com os
dispositivos constitucionais, já que as convenções precedentes já esgotaram todo o debate
possível acerca da substancialidade jurídica.
Lamentável é que tal concepção é mantida no Direito Tributário brasileiro ainda no
século XXI!
2.7 O Direito Tributário atual e a hermenêutica clássica-positivista.
A caracterização da hermenêutica clássica e sua evolução se dariam absolutamente
inócuas se não a relacionássemos com a doutrina e jurisprudência atual. Por isso mesmo,
muito embora se considere as transformações sofridas pela doutrina tributária ao longo dos
séculos (SOUZA, 1975, p. 76 e ss.) acreditamos que o Direito Tributário parece ter se
esquecido de acompanhar os debates hermenêuticos ocorridos após a década de 1930.
Neste tópico tentar-se-á demonstrar como ambas – doutrina e jurisprudência – estão
gravemente marcadas pelas bases filosóficas da hermenêutica clássica moderna – e alguns
casos mesmo a filosofia pré-moderna! – seja de forma explícita, seja camuflada em seus
57
argumentos tributários. Mas, afigura-se claro que o tema não poderá ser esgotado no próximo
tópico. A apresentação das raízes hermenêuticas clássicas será retomada também no capítulo
que se seguirá, quando da apresentação, com maior cuidado, dos princípios da legalidade e
tipicidade.
2.7.1 A doutrina e jurisprudência brasileiras.
Em que pese o posicionamento expresso dos autores brasileiros no que tange à
necessidade da atuação interpretativa do operador do Direito, poucos serão os que
argumentarão em defesa do papel mecânico do jurista tal qual no século XVIII. Por óbvio, a
postura escancarada em defesa de um órgão judicial que seja la bouche de la loi é tido por
anacrônico por todos aqueles que defendem a evolução do sistema jurídico, e os diversos
autores que formam o centro do debate tributário não ignoram esse dado. Observe como suas
obras rechaçam claramente a tacanha (e ilusória!) retração do Direito à prisão aos termos e
expressões legislativos:
Nesse sentido, Hugo de Brito Machado (2005, p. 117) afirma que a redução ao sentido
gramatical dos termos normativos é insuficiente para os objetivos do sistema jurídico-
tributário. Também Fanucchi, ao tratar da literalidade como único instrumento interpretativo,
tal qual imaginado pela teoria clássica, afirma que “com tal preceito, desapareceria a
necessidade de interpretação, passando a solução dos problemas a depender de simples exame
de texto, de uma indagação: o fato está ou não expressamente previsto em lei? Conduzia-se a
legislação para um terreno perigoso...” (FANUCCHI, 1976, p.195).
Ruy Barbosa, tendo por certa a defasagem da perspectiva legalista absoluta, chega a
afirmar que
Em tempos já remotos, chegou-se à afirmação de que as leis eram odiosas, excepcionais e que a interpretação da lei tributária deveria ser feita restritivamente, só comportando a interpretação literal. Isto já é arqueologia fiscal, como também foram as chamadas interpretação‘in dubio pro fiscum’ ou ‘in dubio contra fiscum’ (NOGUEIRA, Ruy Barbosa 1999, p.89) (grifos nossos).
Ao se deparar com posicionamentos tão enfáticos, poder-se-ia crer em uma superação
da perspectiva hermenêutica clássica.
58
Entretanto, ao discorrerem acerca dos variados institutos tributários, todos esses
autores parecem olvidar de suas afirmações e voltam a fundamentar seus posicionamentos
com espeques em pressupostos que remetem à pureza cartesiana e à certeza matematizada do
Círculo de Viena.
Ives Gandra da Silva Martins parece se basear em ideais filosóficos anteriores mesmo
ao posicionamento de Descartes, incorporando aos seus ensinamentos raízes próprias do
jusnaturalismo de Grócio. Em obra destinada à matéria fiscal, afirma o autor:
Estamos convencidos da existência de um direito natural que rege as normas da sociedade em geral da mesma forma que as leis naturais regem os fenômenos conhecidos, como a chuva, o vento, a expansão da luz, etc. Na medida, entretanto, em que o homem não capta a essência dos princípios maiores, cria-se um descompasso entre o direito positivo e o direito natural (MARTINS, 1983, p. 20).
Outros doutrinadores, porém, parecem se identificar mais com os pressupostos
concernentes ao positivismo e ao normativismo de Kelsen. Ainda que inconscientemente, eles
passam a aderir a concepção de um “direito como questão de fato”. Crendo em uma
linguagem descritiva e exauriente da realidade, pensam que todo o Direito se encontra na
expressão legislativa, cabendo ao intérprete verificar unicamente questões fáticas para que
seja realizada a atividade subsuntiva, esta última, a única capaz de possibilitar a certeza e
previsibilidade encontradas nas ciências exatas.
Seguindo essa linha de raciocínio, identifica-se a posição de autores clássicos da
doutrina tributarista. Alfredo Augusto Becker assevera que
Uma vez criado o tributo, os intérpretes da lei devem investigar sua verdadeira natureza jurídica e esta poderia resultar, como se viu, do critério subjetivo do intérprete[...] e a única maneira de sair do manicômio jurídico tributário é encontrar o critério ‘objetivo’ que independa das flutuações subjetivas de cada intérprete [...] praticabilidade e certeza são especificidades do jurídico.(BECKER, 1972, p. 332-333)
Na mesma linha segue Geraldo Ataliba:
Assim, a lei descreve hipoteticamente um estado de fato, um fato ou um conjunto de circunstâncias de fato, e dispõe que a realidade concreta, no mundo fenomênico, do que foi descrito, determina o nascimento de uma obrigação de pagar um tributo [...] a lei tributária deve – sob pena de ter-se por ineficaz – descrever exaustiva e completamente a hipótese de incidência, em todos seus aspectos. (ATALIBA, 2005, p. 53; 200).
59
Também nomes de peso da atualidade do Direito Tributário não escapam dessas
mesmas armadilhas. As raízes positivistas que encampam seus pensamentos podem
facilmente ser percebidas quando da leitura de suas argumentações em torno dos princípios da
legalidade, tipicidade, anterioridade, dentre outros. Essa identificação será realizada quando
do estudo desses mesmos princípios nos capítulos posteriores.
Nesse sentido, Roque A. Carrazza conjuga os princípios da tipicidade e o anseio da
previsibilidade científica própria de Descartes. Afirma o autor que
o tipo tributário (descrição material da exação) há de ser um conceito fechado, seguro, exato, rígido, preciso e reforçador da segurança jurídica. A lei deve, pois, estruturá-lo em ‘numerus clausus’ [...] Se não se realiza o fato imponível tributário (fato gerador in concreto), isto é, se não se cumprem integralmente os elementos do suposto fato legal (sempre minucioso, de modo a permitir que o contribuinte calcule antecipadamente a carga tributária que terá o dever de suportar, o lançamento e a arrecadação do tributo serão inválidos. (CARRAZZA, 2004, p. 235; 398) (grifos nossos)
Na mesma trilha, Alberto Xavier, que se apresenta como um drástico defensor da
hermenêutica clássica:
A exigência de ‘reserva absoluta’ transforma a lei tributária em’ lex stricta’ (princípio da estrita legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer valoração pessoal (XAVIER, 2001, p. 18) (grifos nossos)
E continua o autor em favor do método silogístico41: “a aplicação da norma tributária a
um caso concreto traduz-se num raciocínio lógico, subsuntivo que tem como premissa maior a
norma tributária geral e abstrata, como premissa menor a situação fática da vida...” (XAVIER,
2001, p.34).
41 Não podemos deixar de registrar, desde já, alguns elementos que fragilizam a percepção silogística do Direito. Aroldo Plínio Gonçalves nos lembra, assim, que “o silogismo da aplicação poderia ter tido seu golpe de misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse verdadeiro ou falso, coreto ou incorreto, provável ou improvável, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogismo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer previamente a distribuição dos termos dos juízos. Nos três juízos, a lei é a premissa maior, o caso concreto é a premissa menor e a sentença é a conclusão, não há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente o termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas premissas. Apenas depois de proferida a sentença seria possível encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas não antes.” (GONÇALVES, 1992, p. 37-38.)
60
Partidário da mesma posição, Amílcar Falcão, em trecho que denota o papel de
observador a que é relegado o jurista assevera que “o intérprete, portanto, não cria, nem inova,
limita-se a considerar e a, simplesmente, declarar-lhe a acepção, o significado e o alcance”
(FALCÃO, 1993, p. 63).
Repare como o autor, ainda que não intencionalmente, faz uso da ontologia
aristotélica. Tal qual os pensadores do Círculo de Viena, Falcão parece aceitar que as palavras
utilizadas em um texto normativo já têm em si mesmas um significado intrínseco. Por essa
razão, todos os intérpretes conseguiriam chegar à mesma conclusão jurídica, afinal, todo o
conteúdo do direito encontra-se adstrito ao conteúdo engessado pelas expressões normativas.
Outros autores também poderiam ser mencionados. Misabel Derzi, muito embora se
apresente francamente progressista no estudo tributário, acaba por perseguir uma segurança
jurídica impraticável.
Em obra exclusiva sobre a tipologia tributária, Misabel faz estudo digno de nota. Após
minuciosa análise acerca das características dos “tipos tributários”, conclui a autora, em
concordância com os filósofos alemães, que os tipos não são efetivamente cerrados como
pressupõe toda a doutrina. Pelo contrário. Sua forma de construção acaba por lhes acarretar
uma abertura que lhes é própria, concluindo, assim, pela “abertura do tipo, que se revela na
inesgotabilidade de suas notas” (DERZI, 1988, p. 64). E de fato assim o é!
Todavia, após compreender os tipos tributários por demais abertos e flexíveis, tal
como já propusera Wittgenstein na década de 1930, Misabel passa a demandar a utilização de
uma linguagem mais hermética e insuscetível de variações de entendimento: “exige-se, então,
não só que a lei tipifique os fatos jurígenos e seus efeitos, mas que ela limite, tanto quanto
possível, a imprecisão conceitual, transformando-os em conceitos fechados” (DERZI In:
BALEEIRO, 1998, p. 137).
Noutro lado, Dario da Silva ao tentar trabalhar o art. 145 da CF também se utiliza de
métodos que o aproximam de Frege e Carnap:
Não se trata de proceder a uma interpretação meramente gramatical; aliás, não se trata de uma questão interpretativa. O que se que se quer é, antes de entrar-se no mérito da questão jurídica, fazer-se, corretamente, uma análise da sintaxe do § 4º do art. 145 da Constituição Federal. Observando a colocação das palavras na frase inicial do § 4º do art. 145 da nossa Constituição e a relação lógica das frases entre si deste parágrafo, chegar-se-á à conclusão de que... (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p.52-53)
Também na jurisprudência, conforme se depreende dos votos dos ministros do
Supremo Tribunal Federal, é possível identificar lampejos da hermenêutica clássica. Desse
61
modo, o Min. Marco Aurélio Mello, em mais de uma oportunidade, mostrou-se um
pesquisador dos conteúdos intrínsecos aos termos normativo-constitucionais.
Quando em análise do RE 198.08842 (DJ 05/09/2003), debatia-se acerca da
possibilidade ou não de incidência de ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e
serviços – art. 155, II da CF/88) sobre aquisição de lubrificantes e outros derivados de
petróleo realizada por uma empresa paulistana no estado do RJ. A lide tinha como base o
dispositivo constante no art, 155 § 2º, X, “b” da CF/88, onde se lê que o ICMS não incidirá
“sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes,
combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica”.
Nessa oportunidade, o Ministro Marco Aurélio não demonstrou dúvidas. Preso à
disposição textual presente no dispositivo constitucional, Marco Aurélio, em voto vencido,
compreendeu que a imunidade deveria abranger toda a operação de circulação de derivados de
petróleo, desconsiderando qualquer razão argumentativa que pudesse acarretar uma
interpretação de conteúdo diverso ao expresso na literalidade do texto. Sua argumentação
deixa clara a linha adotada pelo Ministro: “está na norma, Excelência [...] os constituintes
deveriam ter pensado nisso [...] já disse que a Carta atual uma Carta decaída. Que venha uma
emenda para corrigir o que nela está”(p. 645; 647; 649).
Repare como seu pensamento caminha na linha de esgotamento do conteúdo jurídico
naquilo que textualmente está presente no ordenamento jurídico!
Outra hipótese que clarifica a postura hermenêutica ainda presente em nosso Supremo
Tribunal reside nos votos do RE 201.465 (DJ 17.10.2003)43, objeto de inatacável análise
hermenêutica por parte de Godoi e Rolim(2006).
No ano de 1990, a correção monetária até então calculada por determinados índices,
passou a ser referenciada por outros indicadores em razão da lei 8.088/90. Encerrado o
período-base de cálculo do Imposto de Renda, observou-se um descompasso substancial entre
42 EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. LUBRIFICANTES E COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS, DERIVADOS DO PETRÓLEO. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. IMUNIDADE DO ART. 155, § 2º, X, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo. Conseqüente descabimento das teses da imunidade e da inconstitucionalidade dos textos legais, com que a empresa consumidora dos produtos em causa pretendeu obviar, no caso, a exigência tributária do Estado de São Paulo. Recurso conhecido, mas desprovido. 43 EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS. CORREÇÃO MONETÁRIA. LEI 8.200/91 (ART. 3º, I, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 8.682/93). CONSTITUCIONALIDADE. A Lei 8.200/91, (1) em nenhum momento, modificou a disciplina da base de cálculo do imposto de renda referente ao balanço de 1990, (2) nem determinou a aplicação, ao período-base de 1990, da variação do IPC; (3) tão somente reconheceu os efeitos econômicos decorrentes da metodologia de cálculo da correção monetária. O art. 3º, I (L. 8.200/91), prevendo hipótese nova de dedução na determinação do lucro real, constituiu-se como favor fiscal ditado por opção política legislativa. Inocorrência, no caso, de empréstimo compulsório. Recurso conhecido e provido
62
a variação do poder monetário afirmado pelo IBGE (1.800%) e aquele utilizado pelo Governo
em seu novo cálculo (850%).
Reconhecida a diferença, poder-se-ia facilmente afirmar que a lei que introduziu um
índice irreal realizava tributação de números que não compunham a renda do contribuinte44.
Reconhecendo esse fato, o Congresso editou a lei 8.200/90 que reconhecia o expurgo dessa
diferença, porém postergando ao ano de 1993 o abatimento da diferença mencionada.
O tema presente no RE 201.465 é a legitimidade da espera determinada pela lei
8.200/90. Caso se entendesse a diferença do cálculo da correção monetária ocasionada pela lei
8.088/90 legítima, poderia o Governo determinar o adiamento da “compensação” antedita –
seria um mero benefício proporcionado ao contribuinte. Ocorre que referido posicionamento
implica afirmar que a legislação formal pode entender como “renda” toda e qualquer situação,
independentemente de seu conteúdo real. Noutra senda, caso tida por ilegítima tal diferença, o
abatimento não poderia ser postergado.
Nesse sentido, é o debate: todo e qualquer conteúdo textual presente em uma lei que
passou pelo processo formal de elaboração é considerado Direito, independentemente de
qualquer outro motivo? Há na atualidade a prevalência dos procedimentos formais legislativos
para identificação do conteúdo que compõe nosso ordenamento jurídico em detrimento de sua
análise substancial? Noutros termos, a construção do Direito se encerra em um momento
pontual e acrítico de elaboração legislativa tal qual pensado pelos positivistas formalistas? Ou
não, é possível sim contestar o conteúdo das normas e reconstruí-las interpretativamente em
uma postura hermenêutica mais coerente com a contemporaneidade?
44 “Imagine-se que uma empresa comercial constituída em 01/01/2006 receba, como aporte inicial de seus sócios (capital social), o valor de R$100.000,00. imagine-se que a empresa aplique integralmente esse capital na compra de estoques e na formação de seu capital de giro, e não adquira nenhum imóvel, máquina ou equipamento cujo valor nominal possa ser alterado pela inflação. Suponhamos que em 31/12/2006 essa empresa apure em seu resultado um lucro de R$30.000,00. Esse lucro de R$30.000,00 não levará em conta a desvalorização sofrida ao longo do ano, pelo capital inicial dos sócios. Suponhamos que a inflação no ano de 2006 seja de 50%. Se a empresa fosse liquidada em 31/12/2006, os sócios receberiam de volta o capital inicial de R$10.000,00 mais os lucros produzidos durante o ano (R$30.000,00). Ocorre que, pela corrosão do poder de compra da moeda causada pela inflação, os sócios não terão obtido qualquer ganho real durante o ano, pois o poder de compra de R$130.000,00 no dia 31/12/2006 é menor do quer o poder de compra de R$100.000,00 no dia 01/01/2006 (...) O efeito deletério desse expurgo pode ser demonstrado por um exemplo simples e real. Um indivíduo adquire um imóvel por R$100.000,00 em 1º de janeiro. Se a inflação neste ano for de 950% (valor do expurgo de 1990), esse imóvel valerá R$1.050.000,00 no dia 31 de dezembro. Vendendo esse imóvel por exatos R$1.050.000,00 no dia 31.12, seu proprietário terá em mãos o mesmo poder aquisitivo que tinha no dia 1º de janeiro. Será razoável exigir que esse indivíduo pague 15% de imposto de renda sobre a correção monetária de R$950.000,00 (diferença entre o valor da aquisição e o valor da alienação).” (GODOI; ROLIM, 2006, p.61; 65). Diante dessa didática explicação dos autores, pode-se compreender o tema relativo ao RE 201.465. Caso o Fisco considere um percentual de correção monetária inferior ao real, ele estará tributando um valor nominal que não corresponde a qualquer ganho real por parte do contribuinte. Daí o debate: pode a legislação criar, através de uma lei formal a obrigação de exação não abrangida pelo real – renda – ainda que o texto legal chame tal ganho fictício de “renda” tal qual determinado pela divisão de competência constitucional?
63
Debruçado sobre essa temática, o então Ministro do STF Nelson Jobim, cujo
posicionamento baseou o acórdão da Corte45, apostou na liberdade ampla do poder legislativo,
desde que cumpridos seus requisitos formais. Asseverou o Ministro que “o conceito de lucro
real é um conceito decorrente de lei [...] para efeitos tributários, não há que se falar em
LUCRO REAL que não seja o decorrente de definição legal” (p.398; 399)46.
A linha hermenêutica convenceu também outros Ministros. O voto completo da
Ministra Ellen Gracie: “Sr. Presidente, no mérito, acompanho integralmente o eminente
Ministro Nelson Jobim, fixando-me no fato de renda é aquilo que a lei define como
tal.”(p.420)
Outra linha argumentativa que também se destaca é aquela que se filia à já trabalhada
Escola Histórica do Direito iniciada por Savigny, que por sua vez, identificava 4 modelos
possíveis de interpretação: interpretação gramatical; interpretação lógica; interpretação
histórica; e interpretação sistemática, todas elas utilizadas sem uma hierarquia pressuposta,
mas sempre em observância ao volkgeist (conferir supra). Nesse diapasão, Bernardo Ribeiro
de Moraes (2002b, p. 181 e ss.), e Celso Ribeiro de Bastos (1999, p. 184). Mas dentre eles, é
mesmo Ricardo Lobo Torres quem se destaca.
Muito embora já se tenha apontado as mazelas que a Escola Histórica do Direito pode
acarretar, dentre elas a prisão ao próprio texto a que Savigny acaba por se encontrar, Lobo
Torres, particularmente, refina o estudo da interpretação tributária quanto ao tema.
Em uma primeira análise, o autor trabalha a tarefa hermenêutica da mesma forma que
Savigny: “a melhor e mais duradoura classificação de métodos de interpretação forneceu-a
Savigny, que os reduzia a 4: gramatical, lógico, histórico e sistemático” (TORRES, 2005,
p.151)
Contrário à hierarquia de métodos interpretativos tal qual o autor alemão, Torres
defere severas críticas ao legislador do CTN, em especial ao art. 109 (Cf. TORRES, 1990,
p.70 e ss). Em seu pluralismo metodológico, o autor, tal qual Savigny, não identifica qualquer
prevalência entre os métodos interpretativos, “até por que não são contraditórios, mas sim se
complementam e intercomunicam” (TORRES, 1990, p.83).
45 É importante anotar que, em outras oportunidades, o STF adotou entendimento diverso. Nesse sentido, conferir artigo de Godoi e Rolim que trabalha de forma completa o histórico das decisões da Corte no que tange à liberdade legislativa para definição de pressupostos de incidência tributária: (GODOI; ROLIM, 2006, p. 62 e ss.) 46 É interessante destacar que, em seu voto, Nelson Jobim se utiliza de argumentos contrários à hermenêutica clássica, como a não ontologização dos significados (Cf. p.432), para fundamentar um posicionamento próprio da corrente positivista.
64
No entanto, Torres parece ciente dos riscos que a postura savignyana pode apresentar.
Tanto o é que ele mesmo já aponta considerações contrárias ao pensamento clássico
interpretativo. Afinado com a evolução filosófica, o tributarista leciona que o CTN, com sua
regulação acerca da interpretação e integração pretendia inconscientemente superar a
interpretação da aplicação do Direito, pensamento que ainda em Kelsen encontra defesa. E
mais, já ciente da fragilidade das bases lingüísticas do positivismo e normativismo, Lobo
Torres reconhece que
Com os progressos da lingüística, não se pode mais defender a univocidade da linguagem do Direito e a plena aptidão da letra da lei para expressar a ‘ratio’. No Direito Tributário nem os conceitos fundamentais são unívocos, eis que reina a imprecisão a respeito do significado de ‘imposto’, ‘taxa’, ‘fato gerador’, etc. (TORRES, 1990, p.100)
No plano da jurisprudência, também é possível identificar partidários da utilização dos
métodos da Escola Histórica do Direito. Quando dos RE’s 134.509 e 255.11 (DJ
13.09.2002)47, debatia-se se o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA)
presente no art. 155, III da CF/88 poderia incidir sobre aeronaves e embarcações.
Iniciando entendimento que levaria à conclusão da Corte, o Ministro Francisco Rezek
fez uso dos métodos de Savigny para alcançar o resultado de sua tarefa interpretativa. Rezek
busca em uma interpretação histórica o objetivo do constituinte em criar o IPVA como um
sucedâneo da “taxa rodoviária” da Constituição precedente (p.373). Repare, porém como sua
argumentação busca alcançar a vontade constituinte, da mesma forma como Savigny tentava
chegar ao volkgeist:
e não me pareceu, examinados os sucessivos textos constitucionais recentes que, em qualquer momento, tenha sido a intenção do constituinte brasileiro autorizar aos Estados, sob o pálio do imposto sobre propriedade de veículos automotores, a cobrança sobre a propriedade de aeronaves e embarcações de qualquer calado (p. 374)
Segue o Ministro posteriormente, acompanhado pelo Min. Sepúlveda Pertence e a
maioria da Corte, em argumentação ligada à interpretação sistemática. Considerando que os
registros de aeronaves e embarcações são realizados a nível federal, não há que se falar em
exação incidente sobre as mesmas a ser cobrada pelos Estados.
47 EMENTA: IPVA - Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (CF, art. 155, III; CF 69, art. 23, III e § 13, cf. EC 27/85): campo de incidência que não inclui embarcações e aeronaves.
65
Aos partidários dessa mesma linha de pensamento, alertamos que a percepção de um
Direito sistêmico, conjugando os vários dispositivos de forma a se construir um significado
coerente em atenção aos dados do caso concreto e às razões normativas presentes é, de fato,
fonte de legitimidade argumentativa. Não obstante, utilizar a interpretação sistemática tal qual
proposta por Savigny, tendo a expectativa de que uma análise conjunta trará a resposta no
texto legal se mostra, no mínimo, ilusória, pois atrelada às características sintáticas e
semânticas da linguagem.
Noutros termos, como observa o professor Álvaro Ricardo S. Cruz em sala de aula,
uma hermenêutica que pressuponha o Direito como um sistema se distingue da chamada interpretação sistemática de Savigny. Isso porque a construção de sentido de uma norma considerando sua inserção no ordenamento jurídico, constitui-se para a hermenêutica filosófica apenas o preconceito inicial a ser depurado pelo círculo hermenêutico quando da análise de um caso concreto.
Ainda que firmes na convicção de que a doutrina e jurisprudência brasileiras (a
primeira, em especial) se mantêm marcadas pelos ideais hermenêuticos próprios do início da
modernidade, não se pode deixar de destacar os autores que, atentos às inovações do campo
da epistemologia, deixam para trás a concepção matematizada e previsível da normatividade
tributária.
Humberto Ávila em vários trabalhos deixa claro que percebe ultrapassada a visão
antedita. Em texto acerca do estatuto do contribuinte, Ávila chega a criticar mesmo alguns dos
métodos de Savigny:
É inexato, pois, definir a interpretação como mera descrição do significado, quer no sentido de comunicação de uma informação ou conhecimento a respeito do texto, quer no sentido da intenção do seu autor [...] pois o significado não é algo incorporado às palavras, mas algo que depende precisamente do uso e da interpretação [...] por outro lado, a concepção que aproxima o significado da intenção do legislador pressupõe a existência de um autor determinado e de uma vontade unívoca fundadora do texto. Isso, no entanto, também não sucede... (ÁVILA, 2001, p.04)
Já em obra ligada ao estudo de regras e princípios, afirma o autor que “como os
dispositivos hipoteticamente construídos são resultado de generalizações feitas pelo
legislador, mesmo a mais precisa formulação é potencialmente imprecisa” (ÁVILA, 2005,
p.48).
66
Também Marco Aurélio Greco demonstra consistente conhecimento acerca da
atividade hermenêutica, não se deixando iludir pelo anseio de precisão absoluta e previsão
exata de conteúdos normativos através da linguagem descritiva.
Sem dispensar a importância da legalidade tributária, Greco concebe que a
multiplicidade de interesses, vontades, interações e relações presentes na realidade fazem com
que essa seja sempre mais complexa e rica quando comparada com a previsão casuística
realizada pelo legislador. Para ele,
Na medida em que a realidade é complexa e, em última análise, não existem fatos ou condutas absolutamente idênticos [...] pretender que (no campo da legislação) o direito posto contenha a previsão exata de todas e cada uma das condutas possíveis é absolutamente irreal e inatingível [...] os fatos não são inequívocos, nem quanto à sua ocorrência, nem quanto ao seu significado, por envolverem, no mais das vezes, valorações que extrapolam dados meramente empíricos. (GRECO, 2004, p.62; 373)
No que tange à jurisprudência, também é viável identificar momentos de fuga à prisão
neopositivista. Nesse sentido, quando da análise da validade da EC 41/03, utilizou-se o
Supremo Tribunal Federal da técnica de ponderação de valores. A teoria proposta por Alexy
(1997) vê nos princípios uma importante fonte normativa juntamente com as normas
positivadas.
Robert Alexy, em refluxo ao esvaziamento de conteúdo jurídico gerado pelo
positivismo e seu formalismo, cunhou uma importante visão principiológica do Direito ao
aglutinar essas espécies normativas em conjunto com as regras escritas e antes dominantes.
Mas não apenas. Também o aspecto dialógico permeado por regras básicas48, importante peça
na teoria alexyana, é um segundo mérito de sua construção teórica que possibilitou uma fuga
às concepções ontológicas do conteúdo jurídico pré-interpretativo.
48 “A validade do primeiro grupo de regras é uma condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que dá origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção: (1.1) Nenhum orador pode se contradizer. (1.2) Todo orador apenas pode afirmar aquilo em que crê. (1.3) Todo orador que aplique um predicado F a um objeto tem de estar preparado para aplicar F a todo
objeto que seja semelhante a ‘a’ em todos os aspectos importantes. (1.4) Diferentes oradores podem não usar a mesma expressão com diferentes significados.” (ALEXY, 2001,
p. 187) Não obstante, Alexy percebia que não bastavam as regras básicas. Necessária ainda a observância da regra de racionalidade, que implicava que ao pronunciar seus posicionamentos, o orador deveria justificar racionalmente para que outros participantes pudessem contestar suas justificativas: “todo orador tem de dar razões para o que afirma quando lhe pedem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que justifiquem uma recusa em dar uma justificação. Esta regra pode ser chamada de ‘regra geral de justificação’” (ALEXY, 2001. p.190).
67
Em que pese representar uma efetiva superação do ranço positivista, e por isso ter seu
merecido reconhecimento no desenvolvimento jurídico, Alexy encampa seu pensamento em
dois pontos frágeis.
Muito embora acerte quanto a necessidade de uma construção dialógica para a
aplicação do Direito ao caso concreto, referido embate discursivo poderia, para o autor,
adentrar em toda sorte de argumentação, seja ela de ordem jurídica, seja de ordem política.
Nessa trilha, em contrário aos entendimentos de Günther (2004) e Habermas (2003), ele
ignora a diferenciação entre os discursos de fundamentação (escolhas políticas) e de aplicação
(fundamentação principiológica presente no momento jurisdicional)49, estando ambos aptos a
serem verificados quando da decisão jurisdicional.
Ocorre, porém, que apenas os legisladores, democraticamente eleitos para tanto, detêm
a competência para gerir o debate acerca de escolhas deliberativas que devem reger aquela
dada comunidade (p.e. qual a área de prioridade de investimentos na sociedade). Agrava tal
situação a possibilidade, pensada pelo autor, de as decisões ocorridas em um caso concreto
serem estendidas aos demais! Ora, assim o sendo, o julgador passa a ingerir de forma
determinante na esfera destinada ao Poder Legislativo, mitigando de forma irreparável a
separação dos poderes necessária para o Estado democrático.
Não fosse suficiente, Alexy, apesar de suas tentativas em apontar um caráter
deontológico (dever-ser) à espécie principiológica, acaba por adotar uma postura axiológica
(valorativa) mesmo em relação aos princípios jurídicos (HABERMAS, 2003 p. 314 e ss.).
Isso porque, em seu entendimento, a aplicação dos mesmos deve se dar tanto quanto
possível, desde que observadas as regras para a ponderação de valores alexyana: adequação
dos meios escolhidos pela norma aos objetivos colimados; necessidade de escolha da medida
49 “Em discursos de aplicação não se trata da validade e sim da relação adequada da norma à situação [...] certamente, os passos complexos de uma interpretação construtiva não se deixam normatizar processualmente; porém eles subjazem ao controle da racionalidade processual de um discurso de aplicação institucionalizado juridicamente. Em todo caso, a jurisdição constitucional que parte do caso concreto está limitada à aplicação de normas (constitucionais) pressupostas como válidas; por isso a distinção entre discursos de aplicação de normas e discursos de fundamentação de normas oferece, mesmo assim, um critério lógico argumentativo de delimitação de tarefas legitimadoras da justiça e da legislação” (HABERMAS, 2003 p. 270; 323-324). Souza Cruz nos brinda com exemplo interessante acerca do debate entre a distinção necessária entre esses dois momentos da construção do Direito. “um exemplo vem, pois, a calhar: de uma forma geral, ninguém é contra o princípio da igualdade ou contra ações de inclusão social para pessoas mais carentes. Pergunte a qualquer um (sic) verá! Contudo, a questão ganha nova coloração quando a mesma é posta em um discurso de aplicação, tal como quando se está diante de um caso no qual um representante de alguma minoria pretere alguém (com nome, CPF, carteira de identidade, etc) no ingresso de um curso de ensino superior a coisa muda de figura. Ou seja, a argumentação que envolverá a legitimidade da decisão no discurso de justificação é distinta daquela que se emprega em um discurso de aplicação” (CRUZ, 2007 p. 193) É de se notar, porém, que Habermas dá um passo adiante à proposta de Günther, pois a relaciona com a perspectiva dworkiana de distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política (CRUZ, 2007, p. 223).
68
menos onerosa; e ponderação em sentido estrito, consistente na própria noção de otimização
principiológica, o custo/benefício entre a prevalência de um princípio ou outro (ALEXY,
1997, p.112): “...do conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma
questão de tudo ou nada, mas sim uma tarefa de otimização.” (tradução nossa)50 (ALEXY,
1997, p.166).
É de se observar como o autor, por meio de sua teoria ponderativa, cai na
desestruturação do sistema do Direito, fazendo-o sucumbir frente o sistema político com a
ampla ingerência do Judiciário no seio de questões e escolhas que, pelo regime democrático,
deveriam residir na esfera legislativa.
No que tange a identificação da ponderação de valores, Humberto Ávila é expresso
defensor de sua adoção:
O dever de proporcionalidade aplica-se a casos de colisão de princípios. Quando há uma colisão entre princípios, é preciso decidir qual princípio, em concreto, obtém prevalência [...] de um lado, há casos nos quais dois ou mais bens jurídicos se imbricam, de tal sorte que deve ser decidido se o meio é adequado para atingir o fim almejado (relação meio-fim), se o meio é o mais suave relativamente aos direitos fundamentais atingidos (relação meio-meio) e se os efeitos negativos da escolha do meio não são desproporcionais aos efeitos positivos decorrentes da promoção do fim (relação meio-fim).” (AVILA, 2006, p.93; 101) (grifos nossos)
Já quanto ao Supremo Tribunal, não se pode afirmar que o mesmo percorra de forma
explícita todo o trajeto que Alexy constrói para sua teoria. Entretanto, a análise própria de
custo/benefício de escolhas originariamente detidas no campo político é facilmente detectado
nas decisões da Corte, bem como a superação da limitação positivista.
Nessa trilha, cumpre destacar as ADIN’s 3105 e 312851, (DJ 18/02/2005). Na
oportunidade, debatia-se a constitucionalidade da inserção, pela EC 41/2003, da exação de
contribuições previdenciárias de servidores inativos. Diante de uma argumentação que
envolvia a disposição positivada de impossibilidade de burla aos direitos adquiridos (art. 5º,
XXXVI da CF/88) bem como princípios magnos, tais como a isonomia constitucional e
50 No original: “del concepto de principio resulta que en la ponderación no se trata de una cuestión de todo o-todo-o-nada, sino una tarea de optimización.” 51 EMENTAS: 1. Inconstitucionalidade. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Ofensa a direito adquirido no ato de aposentadoria. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Emenda Constitucional nº 41/2003 (art. 4º, caput). Regra não retroativa. Incidência sobre fatos geradores ocorridos depois do início de sua vigência. Precedentes da Corte. Inteligência dos arts. 5º, XXXVI, 146, III, 149, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, da CF, e art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. ...Não é inconstitucional o art. 4º, caput, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que instituiu contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e as pensões dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. 3. Inconstitucionalidade. Ação direta. Emenda Constitucional (EC nº 41/2003, art. 4º, § únic, I e II).
69
justiça social, o Supremo decidiu pela improcedência da ação e conseqüente
constitucionalidade da exação.
Noutros termos, o Supremo percebeu a existência de conteúdo jurídico mesmo em
confronto com um dispositivo expresso da Constituição. O embate que se viu formado
compreendia ainda o conflito de princípios constitucionais admitidos como fonte normativa
pela Corte – aqui, superação do modelo clássico – havendo, ainda, a relativização de um
frente outro prevalecente.
Em voto, o Ministro Cézar Peluso (ADI 3128 DJ 18/02/2005), relator para o acórdão
fundamentou:
Esse tratamento tributário diferenciado encontra justificação no conjunto de elementos político-normativos representados pelo caráter contributivo do sistema, pela obrigatoriedade de equilíbrio atuarial e financeiro, pelo imperativo de solidariedade social, pela distribuição eqüitativa dos encargos do custeio e pela diversidade da base de financiamento (pág. 104)
Em outro momento, passa à argumentação de que a decisão a ser proferida pelo STF
deveria observar se as modificações constitucionais seriam adequadas para empreender o
objetivo escolhido pelo constituinte reformador:
Ditaram essa transmutação do regime previdencial, entre outros fatores político-legislativos, o aumento da expectativa de vida do brasileiro e, conseqüentemente, do período de percepção do benefício, bem como a preocupação permanente com o dito equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, tudo isso aliado à queda da taxa de natalidade e à diminuição do acesso aos quadros funcionais públicos. Essa equação, de crescente pressão financeira sobre uma estrutura predominantemente solidária e distributiva, conduziria a inexorável desproporção entre servidores em atividade e aposentados, tendendo ao colapso de todo o regime...este inquietante quadro social, econômico e político, em que, sob juízo isento e desapaixonado, não se pode deixar de situar o país, interessa ao Direito, porque subjaz como fonte da razão normativa (ratio iuris) à aprovação da EC nº 41/2003, que estendeu aos servidores públicos inativos o ônus de compartilhar o custeio do sistema previdenciário. (pág.92-93; 95)
E percebe também ser sua interpretação a menos onerosa e mais interessante para se
lograr tais resultados, adentrando em um viés político:
Seria desproporcional e até injusto sobrecarregar o valor das contribuições dos servidores ativos para concorrerem à manutenção dos benefícios integrais dos inativos, sabendo-se que os servidores ora em atividade (grupo iii) poderão, à aposentadoria, receber, no máximo, proventos cujo valor não ultrapassará dez salários mínimos, de modo que, fosse outro o tratamento, contribuiriam para manter benefícios equivalentes a proventos integrais, mas receberiam até o limite do regime geral da previdência (pág.. 104-105)
70
Já o Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto, argumentou que
a tese sustentada na ação direta omite o fato de que o princípio dos direitos adquiridos, do mesmo modo que outros princípios constitucionais, admite ponderação ou confrontação com outros valores igualmente protegidos pela nossa Constituição. Numa palavra, estamos diante de princípios constitucionais relativos, (pág.43)
Noutra hipótese aqui já comentada, em razão do RE 198.088 (DJ 05-09-2003) debatia-
se junto à Corte a tributação ou não de petróleos e derivados em operações interestaduais.
Face o art. 155 §2º, X da CF/88, haveria imunidade tributária total da operação respectiva, ou
seria dado aos estados de destino a competência tributária?
Seguindo voto vencedor, repare como o Ministro Nelson Jobim acaba por descambar
por um utilitarismo, uma relação custo/benefício para determinar sua interpretação
constitucional, e consequentemente, a decisão jurisdicional proferida pelo Supremo:
...se a decisão fosse no sentido preconizado pelo Ministro Marco Aurélio, como conseqüência de uma leitura dessa forma sugerida por ele, teríamos a seguinte situação: todo consumidor que adquirisse petróleo – e quando em consumidor estou falando na indústria, estou falando na indústria de alumínio, estou falando em toda indústria que tenha como insumo o petróleo -, toda indústria deixa de pagar o tributo se adquirir o petróleo em outro Estado, pois pagará se adquirir internamente. O que isso significa? Significa que vamos ter uma enorme busca e alteração completa de toda malha distributiva de petróleo no país (p. 649)
Não se questiona aqui a correção ou não da conclusão final apresentada pela maioria
dos componentes do Supremo Tribunal Federal. O que se quer demonstrar é a forma de
argumentação que se evoca para alcançar o resultado tido por acertado com fulcro no “bom
senso” daqueles que ali estão para averiguar os aspectos de aplicação jurisdicional das
normas.
Em que pese a utilização da ponderação de valores pelo Supremo Tribunal Federal,
temos algumas resistências, por entendermo-la frágil em sua proposta de caráter axiológico,
bem como pela configuração de um legislador constituinte alternativo, tal qual já apontado
supra52. Não obstante, não se pode deixar de afirmar o salto dado pela mesma quando em
análise a hermenêutica clássica que ainda figura na maioria da doutrina e jurisprudência
tributária. A identificação de um espectro jurídico além das amarras positivistas/legalistas é,
sem dúvida alguma, um avanço!
52 Sobre o tema, é imprescindível a leitura de CRUZ, 2004, p. 157 e ss.
71
As considerações acerca da ponderação de valores, porém, demandariam obra própria,
seja em razão da explicação pormenorizada de suas premissas, seja pela refutação de suas
bases fundamentais. Diante desses obstáculos, remetemos os leitores aos autores que dela
trataram em maiores detalhes53.
Retornando ao destaque dado aos poucos autores e decisões que lograram escapar da
quase-hegemonia positivista na seara tributária, voltamos a alertar o leitor acerca da
prevalência da postura hermenêutica antedita na seara tributária, para que o mesmo não se
iluda com as passagens trabalhadas supra.
Uma vez identificada a massiva presença dessas bases filosóficas, cabe-nos agora
analisar duas questões:
Primeiramente, será que a adoção da hermenêutica clássica pela doutrina e
jurisprudência é eficiente e conveniente para o sistema tributário? Ou seja, com ela, consegue
o Direito Tributário alcançar os objetivos aos quais se propõe?
Em um segundo momento, dever-se-á ainda analisar se essa mesma técnica
interpretativa é viável, ou seja, se ela é possível de ser alcançada pelo jurista em razão de suas
bases epistemológicas.
53 Nesse sentido, conferir CRUZ, 2007.
72
CAPÍTULO 3 – O DIREITO TRIBUTÁRIO SOB A ÓTICA DOS D IREITOS
FUNDAMENTAIS
3.1 Introdução
Pois bem, já apresentado ao leitor como se deu a evolução da construção do
conhecimento científico – e consequentemente da interpretação jurídica – até o início do
século XX, momento em que o positivismo ainda detinha fortes bases epistemológicas.
Tentou-se também identificar, em nossa realidade tributária, uma persistente presença desses
embasamentos hermenêuticos na doutrina e jurisprudência.
Agora, uma nova proposta é apresentada. Será que essas teorias hermenêuticas
calcadas em uma linguagem descritiva da realidade e na crença de uma certeza objetiva das
legislações e obrigações fiscais é satisfatória ao Direito Tributário? Será que essa forma de
pensar e interpretar o Direito Tributário consegue preencher todos os anseios que marcam o
sistema tributário brasileiro? Caso isso ocorra, eventuais objeções contrárias à sua adoção,
obviamente, perderão força.
Entretanto, esse é um exame que nos demandará um esforço maior. Isso porque, para
que se torne possível analisar a suficiência ou não da hermenêutica clássica, necessário
apontar o que o sistema fiscal deve lograr para que considerado inserido dentro do sistema
democrático que hoje caracteriza nosso ordenamento. Tarefa impossível sem a análise do
Direito Tributário em sintonia com o conteúdo constitucional.
3.2 O Direito Tributário sob o crivo da Constituição
Nos mais variados campos do ensinamento jurídico, estudiosos têm direcionado suas
pesquisas atentos a uma interpretação e construção de seus respectivos institutos, com vistas a
uma hermenêutica construtiva e condizente com as normas constitucionais.
A tentativa de uma busca acerca dessa mesma observância nas obras de Direito
Tributário exporá a extrema carência de uma abordagem efetivamente concatenada com a
evolução constitucional.
73
Obviamente, não se pode afirmar a ausência absoluta de autores dedicados a uma
matéria fiscal condizente com os ditames do constitucionalismo. Entretanto, as obras
existentes se revelam geralmente dedicadas aos artigos relativos ao Direito Tributário
localizados no corpo do texto constitucional. É como se apenas aquelas normas presentes em
um documento de rito de elaboração diferenciado (leia-se constitucional) estivessem, de fato,
comprometidas com o conteúdo constitucional que visa reger todo o sistema do Direito.
Essa é uma crítica também apontada por Humberto Ávila: “é desacertada, pois, a
afirmação de que o sistema tributário se resume aos artigos 145 a 162 da Constituição de
1988. Esses dispositivos nada mais são do que uma parte dos pontos de partida para a
concepção do sistema tributário” (ÁVILA, 2001, p.03).
Ainda que nos coloquemos de acordo com Ávila, a postura apresentada pela doutrina
majoritária pode ser compreendida com certa naturalidade, uma vez a própria estrutura do
Direito Tributário em que inserida a mesma estar ainda extremamente arraigada à perspectiva
liberal-iluminista.
Essa forma de pensamento iluminista, detentora de uma racionalidade cartesiana e
compartimentalizada do conhecimento, acabou por resultar em uma ampla atividade de
análise – no sentido mais próprio do termo: divisão em prol da pureza científica – do saber em
si. Por isso mesmo, as mais diversas dicotomizações e fragmentações (p.e.direito
adjetivo/substantivo; fato e norma) são oriundas desse período histórico. Nesse sentido, a
postura cognitiva de segmentação da ciência exigiu uma documentação escrita para cada
“sub-área” do Direito, gerando, assim, o movimento de codificação – cujo fruto mais notório
é o código civil de Napoleão de 1.804 – que até hoje permeia a realidade de nosso sistema
jurídico.
É mais um indício da sobrevida que a filosofia clássica galga junto ao Direito
Tributário. Basta lembrar das características apontadas supra à Escola da Exegese e seu
estudo voltado unicamente à pesquisa e comentários da lei escrita.
A divisão estanque em códigos “auto-suficientes” visava justamente a simplificação e
matematização do saber científico propalado por Descartes. Um saber codificado ajudaria a
limitar os “devaneios da interpretação”, e por isso, conservaria a vontade e certeza legislativa.
A forma como se almejava trabalhar com um código tributário deixa bem claro o propósito de
sua inauguração:
procurou-se dar, com o CTN, uma sistematização ao Direito Tributário que fosse absolutamente rigorosa e que levasse a respostas categóricas do tipo ‘sim ou não’ [...] desenvolveu-se um Direito Tributário apoiado em conceitos frios, objetivos em
74
que os grandes princípios não comportavam debates substanciais. Anterioridade não comportava debate por que se resumia a uma data [...] legalidade idem, ou está na lei ou não está.” (GRECO, 2004, p. 51-52)
Em que pese a codificação como método analítico classificatório, sua adoção gerou a
sugestão/impressão de cisão dentro do estudo do Direito e de sua interpretação e aplicação. A
tentativa de tornarem estanques as diversas disciplinas ocasionou o equivocado entendimento
de que a busca (ou melhor dizer, a construção!) de sentido dos institutos jurídicos deveria se
apresentar confinada em sua respectiva seara.
A exaltação da autotomia tributária, plenamente influenciada pelo processo de
codificação já aludido, pode ser percebida em passagens diversas nas obras tributaristas:
Decisivo para qualquer argumento sobre a autonomia do ramo do Direito aqui estudado, e inclusive, para a escolha da denominação que se lhe deseja dar, é o aparecimento, em nosso direito positivo, a exemplo do que ocorre em vários outros países, de um Código Tributário. (FANUCCHI, 1976, p. 24)
Entretanto, ainda que se busque uma segmentação do conhecimento, seja para fins de
maior didaticidade, seja mesmo para satisfação das vaidades dos estudiosos de suas
respectivas áreas, trata-se de tarefa um tanto ingrata. Isso porque, não importa quão
empolgante sejam as argumentações, quantos princípios e institutos exclusivos se encontrem
para a aclamação da autonomia e emancipação de uma determinada área jurídica, virá o
jurista a se debater face uma impossibilidade. O Direito Tributário dialoga, necessariamente,
de forma constante com as demais disciplinas jurídicas: Direito Civil, Empresarial,
Administrativo, Processual, etc. Caso mencionado o Direito Constitucional, esse diálogo não
apenas se intensifica, como ainda acaba por se tornar conformador à área fiscal!
Afinal, não se pode olvidar do fato de o Direito Tributário, sem embargo à sua
importância na configuração do Estado Democrático, é apenas mais um sub-sistema dentro da
complexa rede de interações que hoje caracteriza a sociedade. Conforme se verá mais à frente,
nem mesmo o Direito (aqui em sentido lato) pode se esquivar do diálogo e irritação com
outros sistemas presentes na vida social.
É por isso que Paulo de Barros Carvalho, argumentando pela inadmissibilidade de
“tais foros de autonomia científica”, arrebata, de forma objetiva e irrefutável que “mesmo em
obséquio a finalidades didáticas, não deixaria a cisão de ser a cisão do incindível, a seção do
inseccionável”(CARVALHO, 2004, p. 13).
Também enfático o ensinamento de Sacha Calmon, para quem “o Direito é uno, todo
interligado a regrar a vida social. São tolices essas ‘autonomias científicas’ dos diversos
75
ramos do Direito [...] ora, essa divisão é a um só tempo, funcional e didática, nada mais.”
(COELHO, 2004, p. 33) (grifos nossos).
É nesse quesito que a supremacia da Constituição serve de grande valia. A
caracterização da Constituição, em sua genuína supremacia, acaba por rechaçar a
possibilidade de tentativa de compreensão do Direito Tributário distante do campo
constitucional. Não mais subsiste a idéia de uma carta constitucional desvinculante, uma mera
sugestão utópica para as diversas áreas jurídicas. Exige-se, de imediato, uma conformação de
todo o sistema para com as normas constitucionais (CRUZ,2006, p.146).
Assim, “a principal manifestação de preemência normativa da Constituição consiste
em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a
eliminar as normas que não se conformam com ela.” (CANOTILHO; MOREIRA, 1.991,
p.45.). Não é a Constituição que deve ser analisada e conformada com as disposições legais. É
a legislação ordinária que deve ser lida e adequada ao conteúdo constitucional que a preside!
Nesse sentido, Pereira trabalha com a idéia da Constituição como um “locus
hermenêutico”: “o lugar a partir do qual há uma conformação das possibilidades de sentido de
todas as normas inferiores, não tendo como, pois, compreender, interpretar e aplicar o Direito
independentemente do padrão constitucional” (PEREIRA, 2001, p. 120). Já Streck, com
outras palavras, mas na mesma direção, vê o texto magno como um “topos hermenêutico que
conformará a interpretação jurídica do restante do sistema jurídico [...] colocando à disposição
os mecanismos para a concretização do conjunto de objetivos traçados no seu texto normativo
deontológico” (STRECK, 2003 p. 241).
Diante dessa necessidade precípua de observação constitucional para a construção dos
diversos institutos presentes no sistema jurídico, a denominada “interpretação conforme” pode
ser entendida como um instrumento de concretização de fácil visualização, que ainda hoje
habita em nosso ordenamento.
Percebida por Hesse (1998, p. 70-75) como um dos princípios decorrentes da
supremacia constitucional, essa técnica hermenêutica, adotada pela nossa Corte
Constitucional, consiste na atribuição de um conteúdo interpretativo a determinado instituto
amoldado à substância constitucional. Ou seja, é a interpretação conformada pelo conteúdo
presente na Constituição, funcionando essa como um instrumento delineador das demais
normas jurídicas.
Essa contextualização representada pela construção de significado com olhos às
normas orientadoras de todo o ordenamento – Constituição – acaba por se mostrar um
importante instrumento não apenas à democracia, mas também capaz de trazer às demandas
76
atuais, textos legislativos elaborados em períodos históricos de realidade distinta, tal qual o
CTN. Noutros termos, é ferramenta para fazer com que institutos jurídicos elaborados há
tempos atrás dêem um salto para a atualidade. Afinal,
...de nada vale qualquer concepção epistemológica emancipatória se continuarem os juízes a aplicar as leis do século passado com a cabeça do século passado. Ou pior, se continuarem a ler os novos instrumentos e valores trazidos pela nova ordem jurídica (a instaurada no Brasil com o advento da Constituição de 1.988) sob o influxo da ordem anterior ou, ainda, insistirem em adaptar a Constituição ao espírito da legislação infraconstitucional. (SCHIER, 1.999, p. 62)
Se acreditamos demonstrada a importância da necessidade de análise do conteúdo
constitucional quando do estudo, não apenas do Direito Tributário, mas de qualquer disciplina
do sistema jurídico, não é difícil a percepção da especial importância da análise do conteúdo
dos direitos fundamentais.
Representadores de um núcleo de importância constitucional, os “direitos
fundamentais são matrizes de todos os demais; são direitos sem os quais não podemos exercer
muitos outros. São os direitos fundamentais, direitos que dão fundamento a todos os demais”
(SALGADO, 1986 p. 09).
Como repercussão dessa importância, poucas são as dúvidas, na melhor doutrina,
referentes às conseqüências que o conteúdo dos direitos fundamentais traz para o sistema
jurídico de uma forma geral. Cientes disso, Sarlet (2003), assim como Perez Luño (1998) já
ressaltaram as duas dimensões – objetiva e subjetiva – que os direitos fundamentais carregam
consigo.
A dimensão subjetiva, tida como a face dos direitos ligada à relação entre Estado e
cidadão e entre particulares entre si54, está relacionada com a regulação imediata de direitos
tais quais “liberdade” e “igualdade” da pessoa.
Não obstante, há ainda a dimensão objetiva, esta sim de maior importância para a
presente argumentação. Pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais, tais direitos não se
atêm a reservar ao indivíduo garantias em face do Estado e dos demais membros da
54 Sarlet, ao mencionar a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, se mostra mais arraigado à idéia de que a mesma está interligada apenas com a relação Estado/cidadão, restringindo referida faceta à competência negativa do Estado de atuação na esfera individual (Cf. SARLET, 2003.p. 149). Entretanto, já se considerarmos as lições de Sarmento (2004b) não mais podemos pensar os direitos fundamentais apenas na relação vertical tratada por Sarlet, mas também na relação horizontal, ou seja, entre particulares. Nesse sentido, Perez Luño se coloca mais atento, inserindo na dimensão subjetiva ora em comento, as relações entre os particulares. “En su dimensión subjetiva, los derechos fundamentales determinan el estatuto jurídico de los ciudadanos, lo mismo em sus relacionaes com el Estado que em sus relaciones entre sí. Tales derechos tienden, por tanto, a tutelar la libertad, autonomía y seguridad de la persona no sólo frente al poder, sino también frente a los demás miembros del cuerpo social” (PEREZ LUÑO, 1998. p. 22)
77
sociedade. Ganham os mesmos, força autônoma, alcançando assim, todo o corpo de regras
que compõem o sistema do Direito.
Dessa forma,
como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direitos objetivos, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme aos direitos fundamentais (SARLET, 2.003. p. 152).
Se o conteúdo dos direitos fundamentais consegue “se irradiar” para todas as áreas do
Direito e conformar materialmente seus conteúdos, torna-se fácil concluir que os direitos
fundamentais constituem um “ponto de referência sistêmico” (CANOTILHO, 1995 p.505)
para a compreensão dos institutos jurídicos. Não há mais como seccionar a hermenêutica
constitucional – em especial os direitos fundamentais – da hermenêutica infraconstitucional.
Não há como tentar entender e aplicar o Direito Tributário ignorando o conteúdo desses
direitos.
Ciente do quão determinante se apresenta o conteúdo constitucional para a
conformação dos inúmeros institutos jurídicos, Misabel Derzi identifica princípios tributários
pela sua simples compatibilidade com a efetivação dos direitos fundamentais esboçados na
Constituição. Na acertada opinião da autora, imunidades diversas, bem como certos princípios
tributários são decorrentes da própria idéia sistêmica que permeia o mundo constitucional,
sem qualquer expressão textual no CTN ou mesmo na nos “capítulos tributários” da
Constituição Federal. Nas suas palavras,
... há certas imunidades que, por serem logicamente dedutíveis de princípios fundamentais irreversíveis como a forma federal de Estado e a igualdade – capacidade contributiva, independem de consagração expressa na Constituição. É o caso das imunidades recíprocas das pessoas estatais e das instituições de educação e assistência social sem finalidade lucrativa, por exemplo. (DERZI, In: BALEEIRO, 2005, p. 115)
Mas, poder-se-ia argumentar, porém, que a doutrina brasileira é recorrentemente
presenteada com tratados que trabalham a tributação face o conteúdo constitucional. Essa
afirmativa não está de toda equivocada. Entretanto, os diversos autores que assim o fazem
parecem interpretar o Direito Tributário calcados em um antagonismo e parcialidade também
passíveis de críticas. Nesse sentido, não são raras as obras comprometidas com a construção
78
do sistema tributário unicamente para fins de reconhecimento de benefícios aos contribuintes
face o Estado, tais como imunidades, legalidade e proteção à propriedade.
Não se busca aqui a negativa desses direitos serem advindos na “irradiação” dos
direitos fundamentais. A evolução e conquista de direitos individuais faz sim parte da
estruturação de nosso seio constitucional, e, conseqüência direta, a observação desses
preceitos quando do planejamento e execução da tarefa tributária. Neste tocante, os
argumentos tecidos pelos autores em prol a uma “dimensão negativa”, são legítimos55.
Todavia, não se pode restringir a hermenêutica constitucional-tributária ao critério de
unicamente beneficiar o particular.
A análise constitucional do Direito Tributário deve se atentar para o conteúdo dos
direitos, ainda que, por vezes, isso resulte em construções jurídicas que irão reavaliar
garantias supostamente tidas por certas aos indivíduos tributados (p.e., a isenção de imposto
de renda aos magistrados analisada no RE 236.881 - DJ 26/04/2002)56.
É um equívoco que muitos autores insistem em realizar. Percebendo as disposições
constitucionais unicamente como cerceadoras da atividade arbitrária estatal, entendem tais
autores que o Direito Constitucional tem o escopo apenas de delimitar a área do Fisco em
benefício do contribuinte. E neste grupo, ainda preso a um pensamento maniqueísta acerca da
relação Estado/contribuinte, encontram-se nomes de grande peso e importância na formação
do Direito Tributário, geralmente com ênfase na defesa da propriedade individual. É mais
uma vez a influência de nossas raízes liberais no que tange à proteção da propriedade tal qual
um direito derivado da absoluta autonomia da vontade.
Nessa trilha, repare a diferença de tratamento com que Ives Gandra trabalha as
garantias constitucionais do contribuinte e do Fisco:
55 Ávila se mostra atento à necessidade de conformação do conteúdo fiscal à matéria constitucional. Para ele, “... essas normas funcionam como limites à intervenção tributária. Daí o significado fundamental da dimensão negativa das normas constitucionais. Isso não pode, porém, conduzir a um desprezo da dimensão positiva das limitações. A própria expressão ‘limitação’ conduz a uma descrição prioritariamente circunscrita à dimensão negativa, sem que outras normas, que instituem diretrizes positivas e possuem apenas uma eficácia mediata relativamente ao poder de tributar, sejam dignas da devida atenção (dignidade humana, proteção da família, desenvolvimento regional, etc)” (ÁVILA, 2006, p. 22). 56EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. REMUNERAÇÃO DE MAGISTRADOS. IMPOSTO DE RENDA SOBRE A VERBA DE REPRESENTAÇÃO. ISENÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. ISONOMIA TRIBUTÁRIA. INSUBSISTÊNCIA DO BENEFÍCIO. 1. O artigo 150, inciso II, da Constituição Federal, consagrou o princípio da isonomia tributária, que impede a diferença de tratamento entre contribuintes em situação equivalente, vedando qualquer distinção em razão do trabalho, cargo ou função exercidos. 2. Remuneração de magistrados. Isenção do imposto de renda incidente sobre a verba de representação, autorizada pelo Decreto-lei 2.019/83. Superveniência da Carta Federal de 1988 e aplicação incontinenti dos seus artigos 95, III, 150, II, em face do que dispõe o § 1º do artigo 34 do ADCT-CF/88. Conseqüência: Revogação tácita, com efeitos imediatos, da benesse tributária. Recurso extraordinário não conhecido.
79
Sempre que o princípio for uma garantia do contribuinte, como a uniformidade, a generalidade, à evidência o legislador ordinário não tem a faculdade de não admiti-lo. É obrigado a adotá-lo, pois caso contrário desrespeitaria a constituição. Sempre que o princípio caracterizar-se, essencialmente, como um direito à imposição, tem o Poder Tributante a faculdade de se utilizar ou não de tal opção (MARTINS, 1989, p. 63-64)
É também com espeques nessa forma de pensamento que Carrazza, ao dissertar acerca
do “estatuto do contribuinte” passa afirmar que
os direitos fundamentais, evidentemente, também amparam os contribuintes contra os poderes do Estado, inclusive o Legislativo. Deveras, todo o Título II da Constituição brasileira delimita o exercício das competências tributárias das pessoas políticas, impedindo-as de ingressarem nas áreas reservadas aos direitos à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade dos contribuintes... As pessoas políticas, enquanto tributam, não podem agir de maneira arbitrária e sem obstáculo algum, diante dos contribuintes. Muito pelo contrário: em suas relações com eles, submetem-se a um rígido regime jurídico. Assim, regem suas condutas de acordo com as regras que veiculam os direitos fundamentais e que colimam, também, limitar o exercício da competência tributária, subordinando-o à ordem jurídica. (CARRAZZA, 2005, p. 392 – 394)
Obviamente, não se pode perder de vista que, de fato, os direitos fundamentais
consagrados pelos movimentos constitucionalistas iniciaram-se, no século XVIII, com o
objetivo precípuo de delimitar as tarefas e insurgências de um Estado até então arbitrário.
Momento algum poderíamos olvidar as garantias e direitos daí decorrentes.
Entretanto, a efetivação dos direitos constitucionais, em especial, os direitos
fundamentais na esfera do Direito Tributário, abarca um plexo muito mais amplo do que
meras garantias a fim de beneficiar os contribuintes de um “vil e autoritário” Estado. Também
o Fisco – ou melhor a sociedade nele incorporada – passa a ter garantidos alguns direitos que
visam assegurar uma arrecadação que irá auxiliar na concretização dos ideais sociais (e
também liberais!) presentes na gama de direitos fundamentais
Dentre os autores brasileiro, importante mencionar a obra de Nogueira (1997, p.96),
que em uma postura de “direito/dever” não apenas do contribuinte, mas também do Estado,
rechaça a idéia de tributo como faculdade estatal, para ser “dever” da Administração para fins
de concretização dos ideais da sociedade.
De se notar ainda o trabalho do lusitano José Casalta Nabais. Traçando um
entendimento de “deveres fundamentais” paralelos à idéia de “direitos fundamentais”, o autor
trabalha em uma perspectiva de obrigação constitucional de pagamento de impostos com
80
vistas à efetivação constitucional57. Nabais rejeita a ainda dominante concepção da tributação
como mera restrição individual, e passa a concebê-la como parte de um plexo de obrigações
constitucionais do indivíduo. Para ele, “os impostos não podem ser havidos como restrições
aos direitos fundamentais, mas sim, na medida em que integram o dever fundamental de pagar
impostos, como limites imanentes a esses direitos.” (NABAIS, 2004, p. 399)
Munidos da necessidade de observância dos direitos fundamentais, aliada à
necessidade de construção e interpretação dos institutos conformados com o Direito
Constitucional, concluímos que o bom entendimento do que seja o tributo e o sistema
tributário, implica percorrer aqueles mesmos elementos de estudo. Caso tenha o CTN tentado,
em seu artigo terceiro, conceituar os tributos, apenas o fez de maneira formal – e ainda assim
defeituosa (AMARO, 2005, p. 19 e ss.).
Desde o período liberal, vários são os autores que também tentaram conceituar e
delimitar o tributo58 e, por conseguinte, delimitar o papel da seara fiscal. No entanto, quanto a
essas possibilidades de definição “ressente-se cada uma de um espírito que evolua com o
tempo em atenção às inclinações sociais.” (SIDOU, 1978. p.02). É uma concepção derivada
da presença dos pressupostos de engessamento ontológico de significado em um signo pré-
determinado, tal qual apontado no Círculo de Viena.
Aliás, essa é a grande problemática de estabelecimento de conceituações/delimitações
para institutos cujo papel na sociedade é tão mutante quanto os anseios daquela: facilmente se
tornam descontextualizados. Exemplo concreto se faz ao buscarmos as conceituações
clássicas de tributo, que sempre o consideram instrumento de confronto ente particular e
Estado, visão que hoje se denuncia anacrônica!
Ainda que as tentativas dos autores contemporâneos sejam, de certa forma,
proveitosas, não possibilitam, com completude, o entendimento acerca dos fins e
características que devem nortear a tributação. Afinal, conforme já constatou Heidegger
(2006), toda conceituação não obstante lance luzes, também gera sombras que nos impedem
de enxergar de forma abrangente. Em razão disso, no presente não procuraremos seguir os
exemplos anteditos e alcançar um conceito objetivo para o tributo.
57 Nos termos do autor: “resulta óbvio que o imposto se nos apresenta como um dever fundamental , isto é, um instituto jurídico que tem a sua disciplina traçada ao mais alto nível – ao nível constitucional - , onde integra a “constituição do indivíduo” (NABAIS, 2004, p. 185) 58 Dentre nós, Bernardo Ribeiro de Moraes, mesmo reconhecendo a dificuldade de uma conceituação possibilitar o entendimento em sua plenitude, afirmou que “tributo pode ser conceituado como um ônus instituído pelo Estado, com base no seu poder fiscal, definido em lei, exigido compulsoriamente das pessoas que vivem dentro de seu território, a fim dele poder desenvolver duas atividades na busca de suas finalidades.” (MORAES, 2002, p. 351-352)
81
Uma vez ser a tributação ligada à evolução constitucional dos direitos fundamentais, o
instituto tributário deve se mostrar compatível com a evolução daqueles. Nessa toada, uma
feição hermenêutica mais fidedigna deve abordar qual o papel que a tributação deve
desempenhar em um Estado democrático e atual, sem necessariamente concluir com uma
delimitação engessadora do que seja tributo. Temos por certo porém, que “hoje em dia, o
tributo se configura como um instituto jurídico-constitucional ao serviço da realização dos
mandatos constitucionais” (tradução nossa)59 (MORO,1999 p. 46).
O não exaurimento da tributação em si mesma impulsiona, assim, um estudo coligado
com os direitos fundamentais que se seguem. Devemos conhecê-los para alcançarmos o que
os tributos devem representar na contemporaneidade condizente com o conteúdo
hermenêutico constitucional tal qual afirmado. Nesse sentido, cabe-nos percorrer o trajeto que
os direitos fundamentais atravessaram pelos ao longo da evolução de paradigmas antes de
formarem seu conteúdo atual, para, por fim, realizar um paralelo dos mesmos aos sistemas
tributários respectivos.
3.3 As “gerações” de direitos e algumas ressalvas
A caracterização dos direitos constitucionais em cada momento não se dá de maneira
aleatória, desprendida de seu contexto real. A construção dos conteúdos das normas jurídicas
constitucionais é fruto, dentre outras coisas, de sua realidade histórica, pontuada no tempo, e
pelas premissas filosóficas e sociais então vigentes.
Também é certo afirmar que, por vezes, algumas diretrizes comuns pairam sobre a
construção dos saberes científicos, sociais, políticos e jurídicos de um dado momento.
Tal situação não significa absolutismo ou unanimidade de pensamento, mas apenas
comunhão de idéias debatidas em um mesmo momento que acabam por compor o horizonte
hermenêutico daqueles estudiosos, e, por conseguinte, influenciam suas formações e pré-
compreensões. Por isso mesmo, “as grandes etapas históricas de invenção dos direitos
humanos coincidem com as mudanças nos princípios básicos da ciência e da
técnica”(COMPARATO, 2001 p. 50).
59 No original: “hoy em dia, el tributo se configura juridicamente como un instituto jurídico-constitucional al servicio de la realización de los mandatos constitucionales”
82
Os ditos paradigmas seguem a concepção referida. Segundo as idéias defendidas por
Khun, as ciências se desenvolvem dentro de um compartilhamento de premissas que
demarcam o campo do conhecimento. Esse pano de fundo que influencia as tomadas de
posições e pontos de partida científicos é que marcam os “paradigmas” de estudo.
(HABERMAS, 2003b, p.131)
É com essa perspectiva que muitas vezes vemos tratados os paradigmas
constitucionais liberal, social e o contemporâneo, também chamado de pós-social ou Estado
Democrático de Direito.
Em 1979, Karel Vasak propôs, no Instituto Internacional de Direitos do Homem em
Estraburgo, uma forma classificatória para a evolução dos direitos fundamentais divididas em
três gerações, que normalmente, não apenas acompanham, mas caracterizam, no Direito, os
três paradigmas mencionados acima:
a primeira, surgida com as revoluções burguesas dos Séculos XVII e XVIII, valorizava a liberdade; a segunda, decorrente dos movimentos sociais democratas e da Revolução Russa, dava ênfase à igualdade e, finalmente, a terceira geração se nutre das duras experiências passadas pela humanidade durante a Segunda Guerra Mundial e da onda de descolonização que a seguiu, refletirá os calores da fraternidade (SAMPAIO, 2004 p. 259)
Apesar de ser largamente utilizada pelos livros jurídicos – e aqui também o será – a
classificação elaborada por Vasak, se mal interpretada, traz a uma série de aporias e
equívocos que se tentará ressalvar.
Uma das principais críticas que se faz à idéia de “gerações” de direitos é que tal
terminologia leva a entender a existência de rupturas às amarras da geração anterior e
conseqüente negação dessa, pela subseqüente. Em maior clareza, seria admitir que quando da
conquista dos direitos sociais ou de segunda geração houvesse negação e retirada do
ordenamento jurídico dos direitos liberais de primeira geração.
Ora, nada mais absurdo. Conforme já mencionado, os direitos, sejam fundamentais ou
não, se apresentam como fruto de um processo histórico e dinâmico. Com isso, a agregação
de novos direitos, e a releitura daqueles já conquistados ocorrem de forma incessante.
Por isso mesmo, não se pode afirmar que os direitos fundamentais se apresentam com
uma substancialidade determinada pela Constituição. Através de procedimentos garantidores
da democracia, o conteúdo desses direitos se submete ao constante crivo argumentativo, e por
conseqüência, a uma constante reavaliação. Nesse sentido, há quem afirme que os verdadeiros
direitos fundamentais são aqueles possibilitadores de procedimentos (postulados) que
83
permitem à sociedade rever e reconstruir seu conteúdo, impedindo, assim, um engessamento
ou determinação prévia de formas de vida protegidas pela Constituição (HABERMAS. 2003,
p. 159). Nesse entendimento, seriam direcionados aos direitos fundamentais dois papéis de
relevância: o de possibilitador do discurso, em uma concepção inclusiva na participação da
formação do Direito, e um segundo papel de fruto, como conteúdo jurídico do debate
democrático realizado com a atuação ampla de cidadãos, agora não apenas destinatários, mas
também autores das normas.
Dessa forma,
de uma lado, os direitos fundamentais, como condição do procedimento discursivo, são pressupostos da comunicação, e, portanto, despidos de conteúdo substantivo. Contudo, de outro lado, os direitos fundamentais, entendidos como conseqüências/produtos do procedimento discursivo, certamente estão repletos de substância (CRUZ, 2006, p. 172).
De todo modo, quando da modificação de “geração de direitos”, haverá uma revisão
do conteúdo daquelas garantias/direitos60 antes assegurados. Não há um repúdio à liberdade
ou aos diretos individuais pelas constituições sociais. A relação que os acompanha não é de
exclusão, e sim de complementaridade. No entanto, há uma adequação desses direitos já
incorporados ao ordenamento anterior à nova estrutura jurídico-social que é posta pela
sociedade transmutada, daí o termo “releitura” ou “reconstrução” dos direitos fundamentais.
A conquista de direitos liberais se deu de forma contínua e não se esgotou durante o
paradigma liberal. E junte-se a isso, também não foi exclusivo neste período cronológico da
história. Conforme alerta Bobbio, os direitos são “nascidos de modo gradual, não todos de
uma vez e nem de uma vez por todos” (BOBBIO,1992 p. 05).
Nessa toada, não obstante seja o século XVIII, na França, caracterizado como o marco
do período liberal, a Declaração Francesa de 1789 ostentava em seu artigo 21 a seguinte
redação, típica de um pensamento social: “A sociedade deve a subsistência aos cidadãos
infelizes, seja procurando-lhes trabalho, seja assegurando os meios de existência aos que não
têm condição de trabalhar”.
Encara a evolução dos direitos da mesma forma Perez Luño, para quem o processo
dialético de conquistas de direitos “jamais foi linear no qual não faltaram retrocessos e
contradições” (tradução nossa)61 (PEREZ LUÑO, 1998 p. 33).
60 Não adentraremos no presente na análise da diferenciação caráter instrumental ou material das garantias e direitos. 61 No original: “jamás fue lineal y en el que no faltaron retrocesos y contradicciones”.
84
Reforça o pensamento supra a noção de que a conquista de direitos e garantias não se
deu de maneira regular e concomitante nos diversos Estados nacionais. A França apresentou
ao mundo seus primeiros documentos liberais apenas no século XVIII, enquanto na Inglaterra,
em 1215, já havia a Magna Carta restringindo os poderes monárquicos.
Idéia outra que merece destaque dentro do estudo dos paradigmas dos direitos
fundamentais é a fragilidade da argumentação de completa cisão entre os diversos direitos
conquistados ao longo da evolução constitucional. Cada vez mais os autores (MAGALHAES,
2000, p. 08) se mostram cientes de que o gozo de um direito perpassa pela garantia de outros.
Não subsiste a perspectiva fragmentada e analítica dos direitos, tal qual uma mentalidade
cartesiana. Assim se compõe a noção de indivisibilidade dos direitos fundamentais: a sua
impossibilidade de fruição quando ausentes outros direitos, ainda que de outra “geração”.
Relacionando os direitos políticos (primeira geração) com os de prestação positiva
(segunda geração), José Adércio Sampaio dá exemplo claro de como não se pode cindir a
percepção e garantia dos direitos fundamentais: “não há voz forte o bastante para ser ouvida
no espaço democrático sem que antes se tenha bem alimentado na alma e no corpo”
(SAMPAIO, 2004 p. 289).
E da mesma forma segue Cruz:
Não há como se pretender apartar os direitos individuais dos direitos sociais, como por exemplo na discussão da extensão das cláusulas pétreas da Constituição (art. 60, § 4º inciso IV). De modo metafórico, é possível estudar de forma apartada os sistemas circulatório e respiratório do homem, mas na prática eles não podem subsistir sem o outro (CRUZ, 2007, p.337) .
Por todos esses motivos, há quem não aprove a terminologia “gerações de direitos”,
sendo mais adequada a menção a “dimensões”, ou mesmo “ondas geracionais” (SAMPAIO,
2004) de direitos fundamentais.
Cançado Trindade relembra que essa mesma divisão entre direitos individuais e
sociais foi realizada, no plano internacional, antes mesmo da elaboração teórica de Vasak.
Tanto o é que em 1951, a Assembléia Geral das Nações Unidas elaborou dois pactos
internacionais distintos, para tratar de dois grupos “distintos” de direitos humanos:
Pressupunha-se, na época, que enquanto os direitos civis e políticos eram suscetíveis de aplicação ‘imediata’, requerendo obrigações de abstenção por parte do Estado, os direitos econômicos, sociais e culturais eram passíveis de aplicação apenas progressiva, requerendo obrigações positivas (atuação do Estado) [...] mas afigurou-se, antes, como um reflexo da profunda divisão ideológica do mundo no início dos anos cinqüenta (CANÇADO TRINDADE, 2003, p.446-447).
85
Mas, já na época, percebia-se a fragilidade dessa construção segmentadora dos direitos
fundamentais. Na própria leitura do Pacto dos Direitos Civis e Políticos é possível identificar
direitos que serão efetivados ao longo do tempo, “progressivamente” tais quais os típicos
direitos sociais. Em contrapartida, também o pacto de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais apresenta em seu bojo, dispositivos cujos direitos requerem uma “aplicação
imediata”.
A consciência internacional acerca da impossibilidade de segmentação dos direitos
fundamentais restou mais fortemente expressa quando da I Conferência Mundial de Direitos
Humanos realizada no Teerã, em 1968. Nessa ocasião, a Conferência expressou a
indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais, reconhecendo que a fruição de direitos
civis e políticos passa, inexoravelmente, pela plenitude dos direitos sociais e econômicos, bem
como esses em relação àqueles (CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 452).
No campo tributário, Ávila (2006, p. 46), em expressa referência aos posicionamentos
adotados pelos Tribunais alemães, constata a concordância e complementaridade entre
garantias fiscais originariamente tidas por antagônicas – p.e., liberdade e propriedade vs.
dignidade humana. Há necessariamente, uma “justificação recíproca” entre os princípios das
diversas dimensões de direitos, cada qual buscando em um segundo seu próprio significado
normativo.
Mesmo diante desses dados, é recorrente a secção entre os diversos direitos
fundamentais, distinguindo, p.e. os direitos de segunda geração como sendo direitos
prestacionais, a que o Estado deva atuar positivamente. De fato, essa é a caracterização
comumente apresentada pela doutrina – e não sem razão, conforme se verá adiante. No
entanto, mais um ponto merece menção para que a afirmativa supra não sirva de guarida para
equívocos.
Por muito tempo – provavelmente uma tentativa de descrédito dos direitos de cunho
social – defendeu-se a idéia de que os direitos liberais, considerados “negativos” seriam de
custos menores ou mesmo inexistentes, enquanto os direitos sociais, implicadores de
prestações estatais, apresentariam alto custo, inviabilizando-os. Isso porque os últimos
demandariam um aparato estatal necessário para suprir os dispendiosos compromissos
constitucionais que os ordenamentos sociais criaram, enquanto os primeiros implicariam uma
mera abstenção do Estado.
É, porém defeituosa a conclusão. Nesse sentido “o primeiro passo a ser dado pela
doutrina é a difusão de que todos os direitos fundamentais possuem uma dimensão negativa e
uma prestacional e que todos, sem exceção ‘custam dinheiro ao erário” (CRUZ, 2007, p. 335)
86
A obra de Stephen Holmes e Cass Sustein (HOLMES; STEPHEN, 1999), de sugestivo
título (The cost of rights: why liberty depends on taxes) aborda bem a questão. Argumentam
os autores que mesmo para a efetivação de liberdades e direitos de propriedade (supostamente
negativos) há necessidade de alocação de recursos e atuação positiva estatal. Dessa forma, a
contratação e manutenção de uma estrutura policial demandam gastos vultosos que se
equiparam àqueles ligados aos direitos sociais supostamente responsáveis pelo
depauperamento dos cofres públicos.
Assim, para a garantia de direitos de aparente abstenção estatal, deve o Estado atuar
positivamente para sua efetivação. Dessa forma, os direitos fundamentais nunca são
unicamente positivos ou negativos. Nunca o são unicamente de primeira ou de segunda
geração. Assim, juntamente com Sarlet
importa que firmemos a nossa posição no sentido de que os direitos fundamentais podem exercer – inclusive simultaneamente – uma função defensiva e prestacional. Assim, por exemplo, o direito à saúde será direito negativo quando se cuida de afastar (direito de defesa) eventuais condutas que venham a violar a saúde das pessoas, mas será direito a prestações (isto é, direito positivo) quando se estiver a considerar um direito de acesso aos serviços e bens na área da saúde (SARLET, 2004 p. 440)
Conforme se percebe, não são poucos os cuidados que o trabalho junto à metodologia
de “gerações de direitos fundamentais” exige. Poder-se-ia argumentar, então, que melhor seria
se tomássemos outra linha de estudo, que não implicasse todas as ressalvas por nós abordadas.
No entanto, o sistema apresentado por Vasak e suas implicações tem também seus
méritos. A didaticidade e facilidade de percepção de direitos de características comuns que,
majoritariamente, foram conquistados em dado momento histórico e em razão de lutas e
acontecimentos específicos devem lhe ser atribuídas.
E esse mesmo motivo, conjugado com a familiaridade que os juristas brasileiros têm
com a técnica antedita, nos faz utilizar – porém cientes de suas armadilhas – a classificação
geracional de diretos.
87
CAPÍTULO IV - O DIREITO TRIBUTÁRIO E A DIMENSÃO LIB ERAL
4.1 Breves antecedentes aos direitos liberais
A terminologia “direitos fundamentais” surgiu em 1770, na França, na esteira de
acontecimentos político-culturais que, posteriormente, culminaram na Declaração de Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 (PEREZ LUÑO, 1998 p. 29) Pioneiros na criação da
nomenclatura que iria marcar o constitucionalismo, os franceses, à época, acreditavam ser
precursores, também, no reconhecimento de direitos dessa categoria.
Criticavam a Antiguidade pela caracterização do indivíduo relacionada à sua atuação
na polis62, bem como pelo seu necessário atrelamento a um corpo coletivo para a valorização
individual. Essas idéias causavam estranheza ao pensamento francês, que enaltecia o
individualismo burguês criador de barreiras de restrição justamente face o Estado – relação
diametralmente oposta à configuração cidadão/Estado da Antiguidade. Daí não creditarem à
Antiguidade a conquista de quaisquer direitos humanos ou fundamentais63.
Não obstante os franceses do século XVIII se reputarem “descobridores” desses
direitos fundamentais, é possível apontar, ainda na Antiguidade, o ponto de partida dos
mesmos.
Os sofistas, por exemplo, com fincas na igualdade biológica única, já caminhavam
para o reconhecimento de uma perspectiva isonômica entre os seres humanos (CANOTILHO,
1995, p. 501 e ss.). Até mesmo a idéia do cidadão da polis grega, tão áspera à burguesia
francesa, pode ser entendida como precursora dos direitos políticos do séc. XVIII.
No entanto, a identificação de direitos naturais ligados à “revelação dos deuses” foi
sem dúvida a maior fonte impulsionadora desses direitos. Assim fala Ferreira Filho, para
quem
62 “Nas idéias de Platão e Aristóteles não pertence o indivíduo a si mesmo, senão ao Estado” (BONAVIDES, 1993 p. 151.) 63 Apesar de aqui tratarmos os “direitos humanos” e os “direitos fundamentais” como sinônimos, não podemos deixar de registrar posicionamento diverso, que relaciona o primeiro com a ordem internacional e o segundo com o ordenamento constitucional - “direitos fundamentais aplica-se para aqueles direitos da pessoa reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guarda relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se atribuem ao ser humano como tal (hoje já reconhecendo-se a pessoa como sujeito de direito internacional), independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional” (SARLET, 2004 p. 417)
88
remoto ancestral dos direitos fundamentais é, na Antiguidade, a referência a um Direito superior, não estabelecido pelos homens mas dado a estes pelos deuses. Neste caso, cabe a citação habitual a Antígona, de Sófocles, em que isso é literariamente exposto, em termos inolvidáveis (FERREIRA FILHO,1999 p. 09)
Também o cristianismo propagado por Paulo de Tarso e a divulgação dos
ensinamentos de Jesus Cristo se mostrou importante elemento para o desenvolvimento de
direitos pertencentes à esfera do ser humano64. Para isso, o cristianismo começaria a se apoiar
na perspectiva de reconhecimento em uma ordem superior de leis destinadas a regular o
mundo dos homens. Já é um embrião que mais tarde se transformaria no já comentado direito
natural teológico que impulsionou de forma determinante o surgimento dos direitos
fundamentais.
Dentro da escolástica, Santo Agostinho iniciou o desenvolvimento de um
embasamento filosófico de vinculação a uma ordem divinatória. Todavia, foi Santo Tomás de
Aquino o maior representante dessa forma de pensamento.
Identificando quatro classes de leis (Lei Divina; Lei Eterna; Lei Natural e Lei
Humana) Aquino defendia que as Leis Humanas, criadas pelo Homem deveriam coadunar-se
com as Leis Eternas, que por sua vez se expressavam na Lei Natural. Caso assim não o fosse,
não haveria uma lei propriamente dita, mas sua simples distorção causada pelos homens não
respeitadores de um ordenamento superior e anterior à vontade humana. Tratava-se de
verdadeira busca de legitimidade em um sistema metafísico de direitos imutáveis já presentes
na esfera humana65 (Cf. capítulo II)
Conveniente para a Igreja, Aquino entendia que não era possível ao homem atingir o
conteúdo da lei suprema, consubstanciada na lei divina. Necessário um intermediário que
pudesse certificar-se da correta interpretação da revelação. Para ele, “se o intelecto pudesse
64 Nesse tocante, Fábio Comparato faz contundente crítica afirmando que, ainda que se perceba na “teoria cristã” uma defesa às condições de respeito e igualdade entre homens, mulheres, judeus, cristãos, senhores e escravos no “reino dos céus”, em realidade, a Igreja continuou apoiando a escravidão e subjugação das mulheres, dentre outras discriminações. Ressalta ainda o autor que quando das descobertas das Américas, houve a defesa por parte da Santa Sé que “os índios americanos eram inferiores aos espanhóis, assim como as crianças em relação aos homens, e até mesmo pode-se dizer, como os macacos em relação aos seres humanos” (COMPARATO, 2001 p. 18) 65 Ainda que fazendo referência a um período cronológico posterior, é interessante a ilustração que Raul Machado Horta nos oferece acerca da presença da religião no campo dos direitos: “A permanência se aliava à transcendência, infundindo na Constituição a sobrenaturalidade da criação divina. O culto idolátrico da Constituição ficou reconstituído na passagem de “Dansette” autor da “Historia religiosa da França contemporânea”, em texto citado por La Bigne de Villeneuve, no qual descreve o cerimonial observado na primeira sessão da Assembléia Legislativa. Doze representantes, escolhidos dentre os mais idosos, apresentavam a Constituição aos seus colegas. O representante que carregava o “livro divino” caminhava lentamente, olhos baixos, a cabeça inclinada. Os deputados se levantavam enquanto o cortejo passava. A Constituição assemelhava-se ao “Cristo Abstrato”. (HORTA, 2003, p. 98)
89
oferecer a visão beatífica de Deus, a vontade humana não poderia deixar de querê-la. Mas
aqui em baixo, isso não é possível” (REALE; ANTISERI, 1990 p. 566).
Entretanto, alguns séculos mais tarde, os acontecimentos históricos e o
desenvolvimento científico começaram a ocasionar uma diferente forma de cognição, de
percepção da realidade. Com Copérnico, Descartes e outros, o racionalismo e o
antropocentrismo passam a se sobrepor às crenças religiosas, culminando assim, na derrocada
do naturalismo divinatório.
Por conseguinte, a partir de Grócio, não mais se falava em direitos naturais anteriores
ao homem e apenas reconhecidos por meio de intermediários da Igreja. Continuava a existir
uma ordem natural que faziam parte da própria condição humana, mas agora laicizada, ela era
percebida pela reta-razão. Surge, assim, o jusnaturalismo, caracterizado pela identificação de
direitos inerentes à existência do homem.
É com base desses pressupostos teórico-científicos que a burguesia articulou seus
movimentos revolucionários intimamente ligados com a construção das teorias de direitos
fundamentais individuais.
Diante de um quadro histórico de abusos e ingerências constantes por parte da
monarquia, conjugado com um desprestígio político da burguesia e as bases jusnaturalistas
supra mencionadas, estavam postas as condições para a modificação da estrutura despótica de
Estado e banimento da simbiose entre Estado Absolutista e Igreja da sociedade oitocentista. O
homem burguês não mais admitiria seu papel coadjuvante na formação de sua própria
história. Daí, estão lançadas as condições para o surgimento dos primeiros direitos
fundamentais.
Juntamente a esse aparato jusnaturalistíco, Sampaio elenca, nesse período, três outras
matrizes para os direitos humanos: religiosa, processual e a propriedade (SAMPAIO, 2004, p.
141).
A Reforma Protestante, que rompeu com a unicidade religiosa e de interpretação da
Bíblia, transferiu a religião, antes presente na esfera pública, para a esfera individual.
Martinho Lutero foi, nesse aspecto, o nome mais representativo da liberdade individual de
interpretação dos textos bíblicos. Para ele, não poderia o homem ser um mero destinatário
passivo das normas divinas interpretadas e ditadas unicamente pela Igreja, mas sim o
verdadeiro protagonista de sua relação com o divino.
Repare desde já a exaltação dos caracteres individuais que mais tarde encarnarão na
caracterização dos direitos do indivíduo a serem reconhecidos como fundamentais.
90
No que tange à matriz processual, a exigência na Magna Carta (Inglaterra - 1215) do
“due processo of law” trouxe à baila instrumentos de controle da arbitrariedade da coroa,
símbolo publicístico do Estado. É mais um golpe à pujança ilimitada da Monarquia.
Noutro plano, a propriedade, antes desestimulada e objeto do alvedrio absolutista,
passou a ser o centro da sociedade burguesa em sua formação capitalista. A concepção de
busca individual de um projeto de vida próprio, cujo resultado final se consubstanciava na
acumulação patrimonial é um bem representativo da mentalidade individualista-burguesa que
começou a se formar.
Diante de todo esse quadro propício à formação de esferas jurídicas de proteção ao
indivíduo, nasce a primeira obra burguesa identificando os direitos naturais intrínsecos ao
homem. O inglês John Locke argumentava que havia uma gama de direitos que pertenciam ao
ser humano desde sua existência. Fiel ao paradigma de idéias de sua época, os direitos
elencados pelo autor eram aqueles capazes de proporcionar ao homem um vida de auto-
determinação, cuja exaltação da liberdade o distanciaria das amarras do Absolutismo que
antes tolhia qualquer anseio individual.
Locke creditava assim à “(vida, liberdade, propriedade e resistência) uma eficácia
oponível, inclusive aos detentores de poder”(SARLET, 2003 p. 43).
Ainda que anteriormente outros autores – p.e. Hobbes – houvessem trabalhado com o
jusnaturalismo, sempre o fizeram com o escopo de fundamentar o contrato social absolutista,
que não previa limites para a atuação estatal66. Mas, a partir desse momento, justamente como
refluxo do poder excessivo dos monarcas, passa-se a fundamentar os limites do Estado nos
direitos naturais que, por serem anteriores ao Homem – e por conseqüência, pré-estatais – não
poderiam ser violados por ninguém, nem mesmo pelo Estado. Essa é a lógica de Locke!
Daí a contribuição do jusnaturalismo à doutrina dos direitos fundamentais. Por serem
inerentes à condição humana, e intangíveis ao Estado, esses direitos individuais foram
classificados como fundamentais à vida do Homem.
As defesas da liberdade, autonomia individual e igualdade formal se transformaram
em ponto comum nas obras iluministas. No entanto, é o culto à propriedade individual que
mais marca esse período, podendo ser apontada como pressuposto para o próprio
66 Não podemos deixar de notar a existência de posições contrárias à idéia de Hobbes como um defensor do Estado Absolutista tal qual aqui trabalhado: “Se assumirmos a perspectiva de Kant e olharmos para trás em direção a Hobbes, descobriremos um modo de ler que vê em Hobbes o teorizador de um Estado constitucional burguês sem democracia, muito mais do que o apologeta do absolutismo desenfreado” (HABERMAS, 2003, p. 123).
91
reconhecimento do direito de liberdade burguês (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 102 e
ss.).
Também, é esse o entendimento de Magalhães, para quem
a primeira fase do Estado Liberal caracteriza-se pela vitória da proposta econômica liberal, aparecendo teoricamente os direitos individuais como grupo de direitos que se fundamentam na propriedade privada, principalmente na propriedade privada dos meios de produção. O alicerce teórico da liberdade é a propriedade [...] assim, o cidadão será apenas o proprietário (MAGALHAES, 2002 p. 63) (grifos nossos)
No mesmo sentido, Bobbio reconhece no culto à propriedade privada, o embrião para
o surgimento de todos os demais direitos. Relacionando a idéia exposta no parágrafo acima,
afirma o autor: “Numa sociedade em que só os proprietários tinham a cidadania ativa, era
óbvio que o direito de propriedade fosse levado a direito fundamental” (BOBBIO, 1992 p.
77).
Não por outro motivo, o artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789
prescrevia a propriedade como “direito inviolável e sagrado”! Vislumbrando uma
absolutização do direito natural à propriedade, seu conteúdo não poderia sofrer cerceamento
de qualquer espécie! Com esse raciocínio, já se vislumbra a relação da proteção patrimonial
com a tributação e seu rigor legalista.
Apoiados nessa gama de direitos individuais, passam a surgir os documentos
burgueses de restrição de atuação estatal e reconhecimento de direitos inalienáveis presentes
na esfera do cidadão. Parte-se assim para a segmentação entre as esferas público e privada,
com a exaltação desta última como uma garantia ao status de liberdade individual a ser
atribuída aos cidadãos agora soltos das amarras totalizantes do Estado anterior.
Já em 1215, a Magna Carta determinava, em solo inglês, limitações para a atuação do
Rei, dentre as quais, a máxima do princípio da legalidade tributária “no taxation without
representation”. Inobstante a falta de universalidade a compor o documento, a Magna Carta
inglesa tem como mérito apontar a direção para a qual se desenvolveriam os direitos
fundamentais a serem logrados. Ainda na Inglaterra é comum o apontamento ao Petition of
Rights (1628) e ao Bill of Rights (1689)67, que consolidaram o culto à lei como forma de
controle dos governantes.
67 Apesar do pioneirismo do movimento inglês, cujo primeiro documento data de 1.215, há críticas acerca do reconhecimento desses textos como sendo parte do momento liberal. Isso se dá em razão da falta de um caráter revolucionário, fazendo com que os direitos prescritos não fossem conquistados, mas sim convencionados. Assim se deu com a Magna Carta, que em nada foi além de um acordo entre os Barões e o Rei João Sem Terra. Da mesma forma se deu com o Bill of Rights, uma imposição da burguesia inglesa para dar o trono a Guilherme de Orange de forma acordada. Por isso mesmo, a Declaração De Direitos da Virgínia, de 1776, e a declaração
92
No Novo Mundo, a Declaração de Virgínia de 1776 incorporou a ideologia
jusnaturalista que contaminara a Europa e alçava os direitos civis individuais à categoria
fundamental. Lê-se: art. 1º “Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres
e independentes, e possuem certos direitos inatos”.
Mas, é a Revolução Francesa corriqueiramente apontada como sendo o grande
símbolo da transição de um Estado absolutista para uma nova estrutura social. Em 1789, é
elaborada, em meio a conturbados movimentos, a Declaração Francesa, proclamando que “a
sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos (fundamentais) nem
estabelecida a separação de poderes não tem Constituição” (acréscimos nossos). Logo após,
foi seguida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, esta última grande
influenciadora de todo o constitucionalismo posterior68 69.
Bobbio, em referência ao movimento burguês na França constata que
da concepção individualista da sociedade, nasce a democracia moderna (a democracia no sentido moderno da palavra) que deve ser corretamente definida não como faziam os antigos, isto é, como o governo do povo, e sim como o poder dos indivíduos tomados um a um [...] a democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos (BOBBIO, 1992 p. 119)
Com isso restou consolidada a gama de direitos de primeira geração que marcaram o
século XVIII.
Com a prevalência da autonomia/liberdade individual, igualdade aritmética
formal e ampla defesa da propriedade, formou-se uma corpo composto de indivíduos
presos em sua própria racionalidade. Uma verdadeira “poeira de átomos”.
A auto-suficiência individual e a crença na abstinência estatal resultaram em um
modelo de “Estado mínimo”70 impedido de intervir em qualquer seara, seja na economia, ou
Francesa, de 1789, são apontadas como marcos dos direitos fundamentais individuais - “em que pese a sua importância para a evolução no âmbito da afirmação dos direitos, inclusive como fonte de inspiração para outras declarações, esta positivação de direitos e liberdade civis na Inglaterra, apesar de conduzir a limitações do poder real em favor da liberdade individual, não pode, ainda, ser considerada como o marco inicial, isto é, como o nascimento dos direitos fundamentais no sentido que hoje se atribui ao termo. Fundamentalmente, isso se deve ao fato de que os direito e liberdades – em que pese a limitação do poder monárquico – não vinculavam o Parlamento” (SARLET, 2003p. 47) 68 Por força do Preâmbulo da Constituição Francesa de 1958, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão está ainda em vigor na França (Cf. FERREIRA FILHO, 1999 p. 19) 69 No decorrer do presente texto, daremos preferência para os movimentos franceses por apresentarem mais definidas as modificações do pensamento burguês. 70 Nesse sentido: “Na lógica do Estado Liberal, a separação entre Estado e sociedade traduzia-se em garantia da liberdade individual. O Estado deveria reduzir ao mínimo a sua ação, para que a sociedade pudesse se desenvolver de forma harmoniosa. Entendia-se, então, que a sociedade e Estado eram dois universos distintos, regidos por lógicas próprias e incomunicáveis” (SARMENTO, 2004 p. 383)
93
mesmo na prestação positiva de serviços à coletividade. Daí a noção de direitos de feição
negativa.
Como forma de controle dos excessos públicos, a positivação e culto à legislação se
apresentaram como o remédio mais eficaz. Em realidade, todo o cenário da revolução
burguesa confluía para a adoção de uma perspectiva de segurança jurídica com fulcros no
texto legal.
Tendo o jusnaturalismo como força teórica, estavam postas as condições para um
positivismo calcado no texto normativo.
De fato, a única limitação para o gozo e fruição dos direitos naturais, inalienáveis,
imprescritíveis e anteriores ao homem, é a possibilidade de outro igual fazê-lo. No entanto,
referida regulação de fruição de direitos não pode se dar arbitrariamente, sendo possível
lograr tal justiça unicamente por meio da lei!
Nesse sentido, o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o
exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que
asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites
apenas podem ser determinados pela lei”. Tanto o é que este é dispositivo em que Kant se
apóia para formular seu princípio jurídico de universalização das ações jurídicas
(HABERMAS, 2003, p. 114).
Dessa forma,
a afirmação, pelo jusnaturalismo moderno, de um Direito racional, universalmente válido teve efeitos práticos importantíssimos, seja na teoria constitucional, seja na obra de codificação que vieram a caracterizar a experiência jurídica do séc. XIX. Estes efeitos, no entanto, contribuíram para corroer o paradigma que os inspirou, de fato, a codificação terminou por constituir-se em ponto involuntário entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico (LAFER, 1988 p. 38-39)
A racionalidade solipsista exacerbada, conjugada com a crença de exatidão na ciência
e na hermenêutica da época, apontava para o texto escrito como única forma de garantia de
delimitação dos comportamentos estatais antes abusivos. Afinal, por meio dele, busca-se uma
técnica racional capaz de trazer uma verdade unívoca e clara, que não permitisse o mal das
ambigüidades em que pudesse se apoiar o Estado vil. Nesse sentido, com base na idéia
aristotélica de que as leis contrariamente aos homens, não têm paixões, tentou-se construir
“um governo de leis e não de homens”(FERREIRA FILHO, 1999, p. 01).
94
Não por outro motivo, os documentos ingleses já aludidos faziam tanto apelo à norma
legal, como se vê na máxima da Magna Carta “no taxation without representation”.
Diante disso, é possível afirmar que o direito positivado relacionava justiça com
legalidade (inclusive tributária), tratando-os como sinônimos.
Essa identificação tem, como é óbvio, grande utilidade para operadores jurídicos, pois elimina, ou pelo menos atenua sensivelmente, as ambigüidades inerentes a qualquer discussão sobre o que é justiça [...] nesse sentido, a identificação entre o conceito formal de justiça e o conceito formal de direito confirma o princípio da inegabilidade dos pontos de partida do Direito Positivo – a Dogmática Jurídica – para dessa maneira, encaminhar de modo controlado, o processo decisório no Estado e na sociedade (LAFER, 1988 p. 66-67) (grifo nosso)
Da mesma forma a Revolução Francesa. Não sem motivo François Furet, citado por
Nogueira (1997, p. 63)asseverou que “A Revolução Francesa constitui o advento da Lei”.
Não apenas o controle estatal e proteção da propriedade privada dependiam do
princípio da reserva legal: também seus pressupostos de igualdade desembocavam na adoção
da lei como forma de justiça suprema. Por meio dela, não haveria distinções de nascimento.
Através do rigor legislativo, se concretizaria a igualdade formal que flamulava na bandeira
francesa. Afinal, conforme já se pensava em Atenas com Eurípedes, “uma vez escritas as leis,
o fraco e o rico gozam de um direito igual; o fraco pode responder ao insulto do forte, e o
pequeno, caso esteja com a razão, vencer o grande”(EURÍPEDES apud COMPARATO, 2001
p. 12).
Ainda que a princípio possa-se afirmar que o período liberal foi marcado pela
positivação de direitos abstratos, não tendo o homem concreto como objeto de estudo, ácida
foi a crítica de Marx ao concluir que, ao contrário, trata-se de direitos direcionados a um
homem por demais concreto e determinado: o homem burguês (MARX, 2000, p.34-35).
Delineado o surgimento e principais pontos dos direitos fundamentais individuais,
passemos a relacioná-los com o sistema tributário.
95
4.2 Os direitos individuais e a tributação
4.2.1 Dos antecedentes tributários ao Estado fiscal
Não se sabe precisamente quando da primeira aparição do tributo em meio às
sociedades humanas. Sabe-se, porém, que tal instituto há muito habita o seio dos sistemas
jurídicos. Para Balthazar, a longevidade da figura fiscal é tamanha que, “com a formação dos
grupos sociais, em face da sedentarização das tribos, o homem sentiu a necessidade de formar
fundos financeiros (pecuniários) arrecadados de todos os membros da comunidade para
atender às necessidades coletivas” (BALTHAZAR, 2005, p. 19).
Ainda que sustentando a mesma nomenclatura “tributo”, o instituto ora analisado não
manteve suas características. É certo, portanto, que o lastro que se constrói remetendo a um
passado tão distante tão qual ora se faz, implica em considerar a tributação em seu aspecto
mais simples e diversificado.
Não é possível a identificação em períodos precedentes de todos os elementos que
hoje dão forma à exação fiscal. Essa dinamicidade mutacional impulsionou Marciano Godoi,
em menção à estrutura tributária de épocas remotas, a afirmar que: “nada obstante, a
tributação existente em civilizações como estas, e mesmo a tributação nas sociedades
medievais, têm em comum com a tributação do período moderno e contemporâneo talvez só o
nome” (GODOI,1999, p. 173-174).
Na Antiguidade, o tributo era comumente utilizado como uma imposição dos países
vencedores aos sucumbidos nas guerras, sendo, dessa forma, uma afirmação de um povo
frente a outro, não demonstrando a relação de verticalidade (Estado/cidadão) nos mesmos
moldes que hoje presenciamos.
Entretanto, a falta de consistência na utilização dos instrumentos fiscais fez com que o
tributo não carreasse apenas essa feição. São diversas as utilizações que o instituto em tela
representou ao logo da história.
De acordo com Ruy Barbosa (NOGUEIRA, Ruy Barbosa 1999, p. 05 e ss.), subsídios,
doações, confisco, imposições de guerras, exigências do soberano para armar cavaleiros,
incrementar casamentos e festas, enfim, foram várias as destinações e motivações das exações
na época antiga, o que torna tormentosa a tarefa de delimitação de seus caracteres.
96
Já de acordo com Alberto Nogueira (1997, p. 112 e ss.), até mesmo a utilização de
uma tributação semelhante à atual pôde ser observada na Roma Antiga em meio às demais
utilizações dos impostos.
Seguindo a dinâmica apresentada, no período da formação dos Estados nacionais e
concentração de poder absolutista, a tributação mais uma vez mudou sua estruturação. Em que
pese tal período, porém, o sistema fiscal passa a ser mais delineado, apresentando assim, uma
sistemática mais específica e condizente com sua realidade.
Durante o lapso cronológico compreendido pelo fim do feudalismo e o declinar do
absolutismo, a concentração de poderes nas mãos monárquicas era caracterizadora do
momento histórico. Essa acumulação excessiva fez com que a relação entre Estado e
economia fosse extremamente estreita, não apenas no que tange à intervenção nas práticas
comerciais, como também à própria exploração mercantil estatal.
É tida como decorrência dessas características a identificação, no orçamento público,
de ingressos numerários predominantemente advindos dos rendimentos da propriedade e
patrimônio monárquicos. Diante desse marcante elemento indicador histórico, atribui Ricardo
Lobo Torres (1991, p. 13) a esse período a classificação de “Estado Patrimonial”.
Sidou, ao tratar da história da tributação, já afirmava, em referência ao sistema de
concentração de poderes monárquicos, que “durante a mais negra e mais longa noite da
História, o príncipe era o senhor absoluto dos direitos individuais, porém, contentava-se com
as rendas de suas propriedades, no que se concentrava toda a riqueza do
Estado”(SIDOU,1978, p. 28).
Também Adam Smith corrobora a assertiva de Sidou e a classificação de Lobo Torres,
professando que “a renda proveniente das terras da Coroa constituiu por muito tempo a maior
parte da receita das antigas soberanias da Europa” (SMITH, 2003, p. 1040).
Diante do inflado desempenho dos patrimônios estatais, o papel atribuído à tributação
era meramente coadjuvante no que tange à arrecadação de recursos para os fins do Estado.
Entretanto, havia clara presença da figura tributária na economia absolutista. Momento das
grandes navegações, da concentração metalista e do apogeu da balança comercial do
mercantilismo, a tributação tinha uma nítida finalidade extrafiscal de proteção das
exportações e inibimento das importações, preservando assim, o saldo de exportação dos
países.
Todavia, ainda que presente a extrafiscalidade aduaneira, não há que se questionar a
negligência em relação à tributação, bem como sua subsidiariedade no que tange às despesas
97
públicas. No entanto, como defender a tese antedita diante da notória importância do aspecto
tributário para o estourar dos movimentos revolucionários71?
Arrebata eventual dúvida Gail Bossenga, lecionando que “não foi o peso do imposto,
mas o caráter arbitrário, a repartição injusta e a incapacidade de reformar o sistema que
provocaram um ódio profundo contra a estrutura do imposto” (BOSSEGA, Gail, apud
NOGUEIRA, 1997, p. 67). Essa disparidade na distribuição do ônus tributário é muito bem
ilustrada na frase proferida pelo Bispo de Sens a Richilieu: “O costume antigo era que o povo
contribuísse com seus bens, a nobreza com seu sangue, e o clero com suas preces”
(HUGON,1945, p. 65) .
Com o sucumbir da política absolutista pelos movimentos burgueses, mais
notadamente com a Revolução Francesa, percebe-se uma radical ruptura com a forma de
Estado antes dominante. Por conseguinte, também na tributação intensa alteração pôde ser
observada, reflexo direto do surgimento dos direitos naturais individuais alçados à categoria
de direitos fundamentais.
Sabe-se que a constante presença abusiva do Estado (antes Absolutista) passou a ser
rechaçada pós-revoluções burguesas. No entanto, ainda que o ente estatal fosse neste
momento visto como um “inimigo social”, referida instituição não poderia ser simplesmente
extinta. Conseqüentemente, sua manutenção exigia alguma forma de geração de riquezas.
Considerando que não mais cabia à esfera pública explorar economicamente qualquer
área do mercado, agora de exclusividade privada, não havia outra maneira senão a tributação
como método de sustento dos dispêndios estatais.
Passa-se a conceber, neste período, uma marcante dicotomia entre os papéis do Estado
e da sociedade, dicotomia essa que caracterizaria a nítida divisão Direito Público/Direito
Privado, tributária ao Iluminismo e hoje objeto de contestação.
Assim sendo, o sistema econômico, ligado aos interesses particulares, se mostrava
detentor de características próprias, distintas do perfil estatal. Enquanto a exploração
mercantil, para ser bem sucedida, deveria ter por finalidade precípua a lucratividade, não se
atentando para demais responsabilidades, ao Estado caberia preocupar-se unicamente com
questões obstativas da busca dos interesses individuais. A divisão entre essas duas esferas era,
na visão dos liberais, determinante.
É nesse sentido que o liberal Adam Smith argumenta, afirmando que
71 Conforme leciona Derzi, um dos maiores motivos para a eclosão da Revolução Francesa foi o fato de nobres e clérigos não sofrerem qualquer exação tributária, o que simbolizava a carência de igualdade que maculava o período. (Cf. BALEEIRO,1998, p. 535 e ss.)
98
não parece haver tipos mais incompatíveis que o comerciante e o soberano [...] a natureza instável e perecível do capital e dos créditos não permite que se confiem a eles os principais fundos daquela receita certa, constante e permanente, a única que pode garantir segurança e dignidade ao governo (SMITH, 2003, p. 1038-1040)
Com a exclusividade da exploração privada destinada aos particulares, a tributação
ganha um novo status de principal fonte de recursos estatais72. É celebrada a ascensão do
“Estado Fiscal”73, prevalecente na atualidade74.
No exemplo brasileiro, pode-se identificar a fiscalidade da estrutura estatal ao
observar o conteúdo presente no artigo 173 da CF/88, onde se lê:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nessa Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
Essa perspectiva dicotômica acerca dos papéis do Estado e da sociedade em áreas tão
distintas pode ser relacionada com a concepção negativista que se tinha do Estado na época.
Como um refluxo do absolutismo antecessor, a visão do ente estatal como um inimigo do
particular restou dominante nas décadas liberais.
Conjugando tal fato com a identificação do tributo à figura do Estado em razão de ser
sua nova fonte de financiamento, passou-se a perceber o instituto em comento como uma
ameaça patrimonial ingerente e vil. Por isso mesmo afirma-se que “as várias definições
clássicas [...] limitavam-se a considerar o tributo pondo de confronto o contribuinte e o
Estado” (SIDOU, 1978, p. 05). Desde já nos perguntamos: somente as definições clássicas do
período o fazem? Veremos que não. Ainda na atualidade muitas das posturas típicas do
paradigma liberal persistem em habitar as obras ligadas ao Direito Tributário.
72 Apesar de constatar a existência dessas duas fases na história tributária, Ricardo Lobo Torres identifica em alguns países (Alemanha, Espanha, Áustria, algumas cidades da Itália e Portugal na era Pombalina) uma fase de transição denominada de “Estado de Polícia”. Entretanto, por não se apresentar como uma constante nos demais países europeus, fonte primária da presente análise histórica, não foi realizada uma menção expressa cerca de tal fase, sem porém, deixar de registrar sua ciência. Cf. TORRES, 1991, p. 54 73 Segundo José Casalta Nabais, “a expressão e o conceito de estado fiscal devem-se a Lorenz von Stein” (NABAIS, 2004, p. 191) 74 Apesar de o modelo de tributação ligada às necessidades financeiras públicas serem regra na época atual, pode-se também mencionar algumas raras exceções existentes. Conforme afirma o português Casalta Nabais, “há certos estados que, em virtude do grande montante de receitas provenientes, por exemplo, da exploração de matérias primas (petróleo, gás natural, ouro, etc) ou até da concessão do jogo (como Mônaco ou Macau) podem dispensar os respectivos cidadãos de constituírem com os seus rendimentos e patrimónios o seu principal suporte financeiro”(NABAIS, 2004, p. 193)
99
Já lançadas as características centrais desse novo Estado Fiscal, é possível agora
relacionar os direitos fundamentais burgueses logrados no período iluminista com as novas
características que o Direito Tributário passou a aparentar.
4.2.2 A igualdade formal
Considerando a igualdade formal e aritmética que os revolucionários oitocentistas
franceses almejaram e concretizaram pós-revolução como direito inerente à condição humana,
impossível seria não haver modificações na estrutura tributária liberal. A mesma concepção
formalista de igualdade caracterizadora do constitucionalismo burguês foi importada para o
sistema fiscal.
Em virtude disso, a igualdade tributária passa a ser entendida meramente como a
generalidade na contribuição ao Estado. Busca-se, nesse momento, a negação dos privilégios
desarrazoados (questões de nascimento – nobreza – ou classe social – clero) até então
vigentes no sistema jurídico-tributário.
Se antes era a discriminação de alguns que maculava o cenário jurídico e culminava na
carência de igualdade e justiça, o refluxo liberal consistiu no posicionamento diametralmente
contrário: um tratamento isonômico absoluto com fins a abolir quaisquer benefícios que
pudessem desacreditar o papel da justiça no Direito.
Consubstanciou-se essa nova igualdade no idêntico tratamento diante da lei.
Eventual atuação em sentido diverso por parte da legislação seria contemplada como uma
ingerência estatal e uma discriminação inadmitida, cerceadora dos ideais prevalecentes.
Entende Alberto Deodato que
Para os liberais que Adam Smith chefia, a imposição não deve, tanto quanto possível, mudar a repartição das rendas e da fortuna, nem nada transpôr nas relações individuais e as da fortuna [...] para êles, generalidade é tomada ao pé da letra: todo indivíduo ligado ao Estado, quer sua renda seja grande ou fraca, quer conste de rendas ou de produtos do trabalho, é, em princípio, contribuinte de impostos. Nenhuma isenção lhe é concedida para o mínimo necessário à subsistência. (DEODATO, 1949, p. 27).
É com fincas nessa busca por uma igualdade burocrática que autores da época
buscavam argumentação em favor de impostos indiretos sobre consumo.
100
Ainda que tal dicotomia seja objeto de algumas contestações75, a classificação entre
impostos diretos e indiretos é utilizada em larga escala por toda a doutrina.
São considerados diretos os impostos que reúnem em uma mesma figura a pessoa
responsável pelo pagamento da exação e a pessoa que irá arcar efetivamente com o ônus
financeiro decorrente da tributação. Implicam tais tributos na identidade do contribuinte de
direito e de fato. É o caso do IPVA (imposto sobre veículos automotores), por exemplo. A
pessoa que deve recolher o tributo é aquela que irá sofrer uma diminuição patrimonial em
razão da exigência fiscal. Esse tipo de imposto permite uma maior individualização da
tributação, contribuindo, então, com o tratamento diferenciado entre os vários contribuintes,
conforme veremos mais adiante.
Noutra senda, são considerados indiretos os impostos que possibilitam uma cisão entre
os contribuintes de fato e de direito. Nesses impostos indiretos, o responsável tributário que
deverá repassar o numerário para os cofres públicos não será o mesmo que irá arcar, no final
da cadeia, com o ônus pecuniário derivado da tributação.
Moraes, ao elucidar a classificação ora em análise, leciona que a tributação indireta
acarreta uma secção entre os momentos de percussão e repercussão na incidência fiscal.
Entende o autor, por momento da percussão do imposto, como sendo aquela etapa do impacto
imediato, do alcance pela tributação do contribuinte de direito, responsável pelo pagamento
em dinheiro para o Estado. Lado outro, o momento da repercussão “(do latim: repercuter,
repetição, repercutere, bater) se dá quando o contribuinte legal (contribuinte percutido,
contribuinte de jure) transfere o ônus do imposto, no todo ou em parte, para um terceiro,
denominado contribuinte de fato, ou contribuinte repercutido” (MORAES,2002, p. 464)76.
Nesse sentido, pode-se indicar o ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e
serviços). Durante a cadeia produtiva, o ICMS incide sobre a circulação dos produtos,
fazendo com que os comerciantes das diversas etapas produtivas tenham que repassar certa
quantia para o Estado. Entretanto, ao final da cadeia de consumo, não serão tais comerciantes
(contribuintes de direito) que irão sofrer os impactos financeiros dos encargos ficais, mas sim
o consumidor final, uma vez tal tributação ser transferida para o mesmo. Na terminologia
popular, é como se os impostos estivessem “embutidos” no preço final do produto, cabendo
ao consumidor suportar sua incidência.
75 Bernardo Moraes, mencionando nomes como Gaston Jèze e Benedecto Captan, leciona que a classificação impostos diretos/indiretos aponta para uma série de problemáticas. Cf, MORAES, 2002, p. 432. 76 No entender de Bernardo Ribeiro de Moraes, seria possível anda identificar o momento da incidência final do imposto, quando da última transferência ou passagem do ônus fiscal, além de um momento da difusão do imposto, que ocorre quando seus efeitos econômicos atingem o mercado em razão da não transferência total do sacrifício decorrente da exação. Cf. MORAES: 2002, p. 465 e 466
101
Através desse instrumento fiscal, todos os indivíduos, ao realizarem qualquer
consumo, estariam arcando com os custos tributários. A justificativa liberal predominante
fundamentava que a incidência fiscal não pouparia ninguém – nem mesmo clero ou nobreza,
antes largamente beneficiados – uma vez a parcela destinada ao erário já presente no custo
dos produtos (NOGUEIRA, 1997, p. 72 e ss.).
É o instrumento mais conveniente para atingir não apenas o objetivo de impedimento
de discriminações arbitrárias, como também para lograr a isonomia formal entre os
indivíduos. Isso porque, quando da incidência do IPI (imposto sobre produtos
industrializados) ou do ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços), rico e
pobre pagam a mesma tributação para a aquisição de um produto. A igualdade em seu sentido
“absoluto”!
Intensifica a relação anunciada entre impostos indiretos e isonomia formal o fato de
que naqueles, não é possível mensurar diversas alíquotas – progressividade – em razão dos
distintos perfis de contribuintes. Ganha força, com isso, a idéia de uma identidade de
tratamento entre os diversos cidadãos77.
Também Ruy Barbosa Nogueira relaciona a tributação indireta com a concepção de
igualdade caracterizadora do período liberal.
Os chamados impostos indiretos sobre o consumo, gastos ou despesas do indivíduo surgiram no final da Idade Média, com o objetivo não só de fornecer ao Tesouro maior arrecadação para atender à necessidades financeiras do Estado, mas para alcançar também as classes privilegiadas (clero e nobreza) que não eram atingidos pela tributação direta (NOGUEIRA, Ruy Barbosa1999, p. 08) (grifos nossos)
Corrobora nossa assertiva Aliomar Baleeiro (1987, p.181). Estudando a evolução
tributária, o autor aponta autores que, na busca de uma igualdade efetiva, se mostravam
indignados com o descaso social com que os impostos indiretos sobre o consumo
apresentavam.
A noção de tributação neutra, aritmeticamente isonômica e indiferente às vicissitudes
sociais derivadas do sistema liberal se propagou por todo o mundo, havendo poucos países, no
77 Exemplo que denota a característica ora apontada é aquele contatado por Moura Filho em pesquisa à tributação açucareira na França. Ressalva-se, porém, a adiantada iniciativa na monarquia francesa: “Com duplo objetivo — intuito arrecadador e desejo de justiça fiscal — Colbert, ministro de Luis XIV, buscou em 1664 uma forma de substituir o imposto direto — do qual eram isentos a nobreza e o clero — por impostos indiretos, cujo pagamento seria proporcional aos gastos de cada um. O açúcar de cana, na época um produto de luxo, destinado exclusivamente aos ricos e portanto ainda excluído de qualquer tributação, foi logo taxado.” (MOURA FILHO,2001 p. 4).
102
início de século XX que, de fato, demonstravam sinais de alguma tributação direta como o
imposto de renda.
É também o pensamento de Marciano Godoi, que, lembrando os ensinamentos de
Souza Franco, caracteriza os sistemas fiscais do liberalismo como “incidindo os tributos
principalmente sobre a riqueza das classes agrárias e sobre o consumo, sendo que a idéia de
utilizar o imposto como forma de realizar a justiça, redistribuindo renda e riqueza, ainda está
longe de se estabelecer” (GODOI,1999, p.177).
Na mesma situação, é possível apontar outra técnica de tributação imediatamente
ligada à igualdade burguesa: a utilização de impostos de alíquotas proporcionais.
Necessário, antes de adentrar na fundamentação proposta, municiar o leitor do
conteúdo a que se refere a proporcionalidade.
É possível classificar os tributos em três espécies, tomando como referência a alíquota
dos mesmos: tributos fixos, proporcionais e progressivos.
São fixos os tributos que implicam uma mesma quantia final a ser paga por todo e
qualquer contribuinte, indiferentemente a qualquer individualidade. Trata-se de medida
atualmente rejeitada para fins de exação de impostos e contribuições, sendo, porém, utilizada
para as taxas, já que o valor dessas pressupõe o custo de um serviço público específico e
divisível ou o exercício de um poder de polícia (art. 77 CTN).
Objetos da presente análise, são proporcionais os tributos cujo valor final da exação
varia de acordo com a base de cálculo respectiva, mantendo estável, porém, a alíquota
incidente.
Nessa toada, é proporcional o imposto que incide sobre 10% do valor da renda da
população. A quantia a que se resumirá a obrigação tributária dos indivíduos será diversa
(quem aufere R$100.000,00 pagará R$10.000,00, enquanto quem recebe R$1.000,00 arcará
com R$100,00), entretanto mantém-se imutável a alíquota de 10% sobre os diversos
contribuintes. A variação final é decorrente da variação da base de cálculo.
Noutro lado, são progressivos os tributos que apresentam alíquotas diversas crescentes
na medida em que aumenta a expressão de riqueza da base de cálculo. Seria o caso de tributar
aqueles que auferem R$100.000,00 com 20% de alíquota sobre a renda adquirida, enquanto se
faz incidir a alíquota de 5% sobre a renda de R$1.000,00.
É de se notar que a proporcionalidade dos impostos se apresenta perfeitamente
compatível com a linha de pensamento burguesa, que pregava a igualdade de tratamento a
todos os indivíduos sem a possibilidade de diferenças discriminatórias, ainda que positivas.
103
Inadmite-se, nesse período, um eventual direcionamento fiscal com cargas não
equivalentes aos vários contribuintes. A igualdade árdua e sangrentamente conquistada não
permitiria uma discriminação causada pela progressividade tributária, não consagradora da
repartição isonômica almejada78.
É possível constatar, assim, serem os impostos proporcionais paralelos à razão
aritmética de igualdade. Poderíamos mesmo classificar tais impostos de “impostos neutros”,
uma vez não interferirem em nada na proporção de riquezas entre os indivíduos.
Insta salientar, porém, que mesmo nesse momento, não se desconsidera uma
necessidade de observação da capacidade econômica de cada um contribuir para os
dispêndios do Estado. Tanto o é que são repudiados, desde já, os chamados impostos fixos.
Ensina Derzi (In: BALEEIRO, 1998, p.03) que os pressupostos básicos de um sistema
tributário, dentre os quais o princípio da capacidade contributiva, foram desenvolvidos por
Von Justi e disseminados por Adam Smith já no século XVII. Já Godoi (1999, p.188) afirma
ser a capacidade contributiva um verdadeiro cânone das idéias smithianas, identificando assim
o princípio em tela já no momento liberal.
Não se equivocam os autores, já que a noção de proporcionalidade implica certa
observância, ainda que tímida, da expressão de riqueza do contribuinte, respeitando, porém, a
manutenção da proporção a ser paga por cada qual. Entretanto, a relação entre perspectiva
igualitária burguesa e o critério de identidade de alíquotas salta aos olhos!
O que também deve ser destacado é a adoção da linha de pensamento liberal da
“teoria do benefício” para fins de capacidade contributiva: a correta divisão das exações
estatais corresponderia ainda à igual medida de proteção que o indivíduo se beneficiava do
Estado.
Considerando que dentre suas poucas tarefas cabia ao ente público a segurança interna
e externa como forma de salvaguarda da propriedade adquirida pela autonomia privada,
quanto mais propriedade detivesse o indivíduo, mais benefícios diretos estaria fruindo das
atividades estatais. É mesmo um acordo contratual que fazem particular e Estado, em sua
postura mais liberal do civilismo burguês!
É nesse sentido que argumenta o pai da economia clássica: “É necessário que os
súditos de todos os estados contribuam o mais possível para a conservação do governo,
78 Nesse sentido argumenta Michel Troper que diante da perspectiva de igualdade que circulou nos pensamentos burgueses, “é provável que eles tivessem estimado que um imposto progressivo não fosse igualmente repartido”. (Troper, apud NOGUEIR,: 1997, p. 63)
104
proporcionalmente às suas respectivas capacidades, isto é, em proporção aos rendimentos que
cada um usufrui sob a proteção do Estado” (SMITH, 2003, p. 1046).
Hector Villegas (1980, p. 11), ao dissertar acerca das teorias de fundamentação dos
impostos, faz menção a uma secção que pode facilmente ser aglutinada na idéia smithiana. O
autor distingue em duas diferentes correntes a “teoria do preço de troca” – baseada na
retribuição aos serviços prestados pelo Estado – e a “teoria da retribuição pela segurança”. É
de se notar, entretanto, que ambas podem ser encontradas dentro da idéia contraprestacional
ampla a que se refere Smith.
4.2.3 A legalidade formal e a garantia da segurança/previsibilidade jurídica
É habitual a identificação da Magna Carta de 1215 como representação do marco
inicial do aparecimento do princípio da legalidade tributária nos sistemas jurídicos. De fato, o
documento celebrado entre o Rei João Sem Terra e os Barões ingleses demonstra a força que
a concentração de poder real viria a perder nos séculos seguintes, culminando na instauração
de governos burgueses pela Europa.
No que tange à comum caracterização de precursora da legalidade da Magna Carta,
Misabel Derzi, amparada em Victor Uckmar, contesta a idéia de auto-tributação iniciada
apenas pelo texto de 1215. A tributarista mineira cita os seguintes fatos exemplificadores da
autotributação anteriores à Carta inglesa, embora instrumentalizada de maneira diversa:
a promessa de Anselmo a Willian Rufus, em 1096; de quinhentas libras esterlinas, repelida pelo rei, por insuficiente, teve na recusa do arcebispo um empecilho para ser aumentada; a auto-tributação eclesiástica, consagrada no Lateran Council, de 1179; as decisões de 1188, que instituíram o tributo de um décimo da renda, foram tomadas com a intervenção pessoal de Henrique II a fim de se obter o consentimento da cidade ao pagamento; incidente semelhante se dá em 1192, quanto ao recolhimento de cem mil libras esterlinas necessárias para resgatar Ricardo I, etc.(DERZI: In BALEEIRO,1998, p.50)
Entretanto, o documento britânico de 1215 tem por mérito realizar o cerceamento das
arbitrariedades da coroa. Para isso, instituiu a máxima no taxation without representation,
idéia que apenas posteriormente viria a ser incorporada pelos movimentos franceses.
Com essa postura de “autorização popular”, o consentimento dos
destinatários/contribuintes passa, assim, a ser forma de compatibilização entre a liberdade de
105
utilização da propriedade e a tributação “contrária” ao patrimônio dos cidadãos79. O que
importa vislumbrar nesse momento, é a legalidade como uma amarra àqueles atos tidos por
indesejáveis praticados pelo Estado e contrários aos direitos naturais. Dentre esses direitos, a
garantia da propriedade em sua plenitude!
Mencionado anteriormente que, a partir desse período, o culto ao texto legal, situando-
o como sinônimo de legitimidade, percorreu todo o ordenamento jurídico. Não poderia ser
diferente com o campo tributário. O princípio da legalidade transformou-se na principal arma
de controle dos arbítrios fiscais anteriores.
Calcados na busca de uma previsibilidade matematizada das incidências tributárias e
ingerências estatais, buscavam os liberais uma segurança jurídica consubstanciada na
ausência de ambigüidades ou espaços para a criação de exações não previstas ou esperadas
pelo contribuinte. Pautavam-se os autores na idéia de que a inequivocidade das palavras
escritas garantiriam a paz jurídica que inabitou o período antecessor. Lembrem-se que no
período da Revolução Francesa, as descobertas de Galileu já haviam “sacudido a Europa”, e
os pensamentos matematizantes de Descartes estava em plena expansão.
Aparece hipertrofiada a segurança jurídica em que passa a se pautar a sociedade
liberal. Com vistas a esse objetivo precípuo, nada mais eficiente do que a utilização de uma
legislação que não teria olhos para discriminações, nem mesmo possibilitaria interpretações
dúbias “convenientes” às discricionariedades arbitrárias do chefe do Executivo em detrimento
dos direitos da sociedade.
E para otimizar a pretensão liberal, acenava-se a limitação da atividade do intérprete,
afinal, apenas com a ausência de subjetividade seria garantida a pureza do método
subsuntivo.
É nítido como a concepção ora trabalhada se coaduna com a teoria de separação de
poderes, tão ventilada à época! Observem bem como tal concepção ainda hoje permanece
presente no seio do sistema tributário:
Conforme já trabalhado, a expectativa de esgotamento do conteúdo do Direito nos
estritos termos constantes nas normas legais, culminando na prática meramente silogística do
fato à norma, visava deixar toda a determinação da materialidade jurídica nas mãos dos
legisladores legitimamente habilitados. Com isso, não apenas a atividade judicial, mas
também administrativa, têm seu âmbito de atuação severamente tolhidos, impedidas, portanto,
79 Em que pese a definitiva importância que o desenvolvimento da autotributação por meio da legalidade no século XIII apresente para o atual Direito Tributário, mister assinalar que referida concepção possui sentido e alcance distintos das hoje observadas. Sobre o tema, conferir NABAIS, 2004, p. 325 e ss.
106
de participarem da reconstrução interpretativa, ou no entendimento clássico, obstados de se
utilizarem de quaisquer elementos ponderativos que pudessem levar à arbitrariedade
repudiada pelo liberalismo.
Em razão deste mesmo motivo, em conjunto com o receio da violação da igualdade
construída no período oitocentista, é que se torna possível a leitura, no CTN, do art. 142
parágrafo único: “a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob
pena de responsabilidade funcional”. Percebam como a “vinculação” do ato administrativo de
realizar o lançamento por parte dos agentes fiscais cumpre, justamente, a ausência de qualquer
discricionariedade, qualquer liberdade de pensamento e interpretação, seja dos fatos, seja das
normas. É a exaltação máxima do culto à prevalência legislativa decorrente do fetichismo
legal que habitou o cenário constitucional há mais de duzentos anos.
Na cátedra de Cruz, em seus debates em sala,
os pressupostos metateóricos do ato administrativo vinculado são os mesmos da Escola da Exegese, ou seja, de que a aplicação do Direito possa ser mecânica. Assim, o administrador, ao fazer o lançamento do tributo, não deve pensar, não deve raciocinar, não deve interpretar. Em outras palavras, separar o incindível, aquilo que lhe faz ser humano: sua condição hermenêutica!
Mas nosso Código Tributário não encerra sua nostalgia legalista apenas no dispositivo
mencionado. Da mesma forma, a atividade judicial se vê castrada de sua necessária
construção interpretativa. É a mesma lógica que rege o art. 111: “interpreta-se literalmente a
legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II –
outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias ou acessórias”.
É interessante notar que, neste caso, há duas questões distintas reunidas: em que pese a
prisão ao conteúdo do texto normativo e uma restrição do mesmo aos termos e vocábulos
constantes na legislação, o CTN tenta realizar a literalidade unicamente quando se está em
jogo potenciais benefícios aos contribuintes.
De todo modo, o que importa destacar é o fato de que, no século XVIII – com ecos na
atualidade – é possível afirmar que a legalidade teve como principal suporte propulsor, a
necessidade de segurança e certeza jurídica cuja inexistência contrariava os anseios privados e
impedia a prevalência de uma tranqüilidade dos contribuintes, que nunca conseguiam
antecipar a ciência de suas obrigações perante o Fisco80.
80 Nesse sentido, Derzi: “correspondendo sempre a um ideal de coparticipação (sic) política, o princípio da legalidade, seja em matéria penal, administrativo-orçamentária ou tributária, floresceu graças aos fatores sócio-econômicos do Estado burguês, representando a mais significativa expressão do princípio jurídico da segurança[...] a concepção de Estado de Direito liga-se à de Democracia e de contenção do arbítrio. A segurança
107
A legalidade passou, então, a representar a maior garantia constitucional do
contribuinte. É Nabais quem leciona que
A idéia de protecção da confiança não é senão o princípio da segurança jurídica na perpectiva do indivíduo, ou seja, a segurança jurídica dos direitos e demais posições e relações jurídicas dos indivíduos [...] Mas esta protecção da confiança pressupõe, por seu turno, a segurança jurídica do direito objectivo, ou seja, das normas jurídicas enquanto padrões ou critérios de actuação dos indivíduos e de decisão das entidades públicas... Daí que o princípio da segurança jurídica no domínio do direito dos impostos tenha a ver fundamentalmente com o legislador...(NABAIS, 2004, p. 395-396)
Observe como as palavras do liberal Adam Smith caracterizam bem o momento a que
se refere:
É preciso que o tributo que todo indivíduo está obrigado a pagar seja fixo, e não arbitrário [...] Na tributação, a certeza sobre aquilo que todo indivíduo precisa pagar é uma questão de tal relevância, que, segundo mostra a experiência de todas as nações, creio não haver mal tão grande como a existência de um grau ,mínimo de incerteza. (SMITH,2003, p. 1047) (grifos nossos).
Mas ainda na doutrina atual, sob a justificativa de segurança e previsibilidade para o
contribuinte, permanece a concepção de legalidade como possibilidade de ontologização e
objetificação das obrigações tributárias. Não se dissipou completamente a idéia de utilização
de instrumentos pretensamente unívocos e garantidores da certeza obrigacional como forma
de instituição de proteção individual face ao Estado. Reparem que não diferem muito as
palavras de Smith das de Hugo de Brito Machado, para quem
o princípio da legalidade pode ser entendido em dois sentidos, a saber, (a) o de que o tributo deve ser cobrado mediante o consentimento daqueles que o pagam, e (b) o de que o tributo deve ser cobrado segundo normas objetivamente postas, de sorte a garantir a plena segurança nas relações entre o fisco e os contribuintes. (MACHADO, 1991, p. 14)
Mas não é exclusividade do tributarista antedito o anseio por uma segurança jurídica
como forma de previsibilidade das obrigações fiscais. O trecho retirado da obra de Renato
Martins Prates acerca da interpretação no Direito Tributário reforça nosso argumento no
sentido de que, ainda hoje, a doutrina tributária brasileira se mantém apegada à busca por uma
certeza algébrica prévia das obrigações particulares para com o Fisco: “... a segurança jurídica
jurídica fica, então, hipertrofiada e a lei parece o caminho mais idôneo para alcançá-la”(DERZI In: BALEEIRO, 1998, p. 51-72)
108
encontra-se resguardada [...] quando as pessoas podem saber de antemão o que é
juridicamente permitido e o que é juridicamente proibido” (PRATES, 1992, p. 37).
Trata-se de posicionamento amplamente discutível. Enquanto se pauta a segurança
jurídica em uma necessidade legislativa para que válida a exigência tributária, há razões para
sua aceitação. Entretanto, a previsibilidade das obrigações materiais, adiante se perceberá,
não se trata de escolha dos contribuintes, mas propriamente de uma impossibilidade
lingüística e humana!
Em adiantamento à argumentação que será desenvolvida posteriormente, Günther, em
obra relacionada com a elaboração e aplicação das normas, identifica um princípio de
universalização (princípio “U”) que bem se adeqüa às pretensões de Prates e demais
tributaristas quanto à antevisão dos conteúdos normativos presentes nas legislações fiscais.
Nesse esteio, a vertente “forte” do princípio “U” aludido, consiste em: “Uma norma é válida
e, em qualquer hipótese, adequada, se em cada situação especial as conseqüências e os efeitos
colaterais da observância geral desta norma puderem, ser aceitos por todos, e considerados os
interesses de cada um individualmente” (GÜNTHER, 2004, p. 65).
Observem: caso uma norma seja considerada válida em toda e qualquer situação
semelhante, é possível, sim, prever de forma precisa (e cartesiana) quais seus efeitos, qual
será a materialidade jurídica decorrente de seus mandamentos. Estaria então cumprida a
vontade dos nossos doutrinadores!
Ocorre, porém, que o próprio Günther aponta uma série de problemas que não podem
simplesmente ser ignorados, e que mais à frente merecerão maior deslinde. Inicialmente,
pressupor a capacidade de previsão de todas as situações a que uma norma é aplicável é,
incontestavelmente, uma condição idealizante no sentido mais platônico do termo, o que já
coloca a pretensão previsibilista em um patamar metafísico.
Ademais, a aceitação de manutenção de conteúdos normativos para todas as hipóteses
com similitudes àquela pensada originalmente pelo intérprete – o que poderia ensejar uma
antecipação dos conteúdos à aplicação jurisdicional – é encampada na necessidade de que tal
intérprete se preserve enclausurado em um individualismo racionalista e solipsista tal qual
imaginado por Kant. Afinal, todo caso concreto será marcado por variáveis que influenciarão
o conteúdo do Direito aplicado, e a perspectiva alheia, a contribuição de visões e
interpretações dos demais envolvidos é um dos elementos contributivos para a integração de
tais variáveis (GÜNTHER, 2004, p. 44 e ss.). Daí se afirmar que a postura hermenêutica em
que persistem os doutrinadores pátrios é um retorno explícito à filosofia da consciência da
modernidade!
109
Também ciente dessas vicissitudes, Dworkin, de forma sucinta, assevera que “após o
caso ser decidido, nós podemos dizer que o mesmo se adeqüa a uma determinada regra [...]
mas a regra não existe antes de o caso ser decidido” (tradução nossa)81 (DWORKIN, 1978, p.
28)
E de fato assim, o é. Não há que se falar em regras jurídicas ou conteúdos legais antes
de sua argumentação frente a um caso concreto, com sujeitos, elementos externos, variáveis e
variantes, enfim, uma série de contributos outros que irão compor a construção de seu
conteúdo àquela situação. Se em todas as lides tributárias assim o são, como afirmar uma
previsão normativa sem facear obstáculos intransponíveis?
Interessante também anotar o intercâmbio que as idéias de legalidade e contraposição
sociedade/Estado derivadas do pensamento liberal minimalista apresentam. A lógica do apego
à pretensa segurança derivada dos preceitos literais da norma reside no fato de que o Estado é
compreendido como um ente na constante iminência de abusar dos poderes concedidos. Essa
recorrente ameaça, que nas idéias liberais desvirtuaria a natural organização da sociedade,
culminou justamente na exaltação dos instrumentos que prometiam a certeza do papel do
Estado e das obrigações particulares.
Eis mais um elemento que auxilia na constatação de que nossa doutrina parece não
querer se desgarrar do liberalismo burguês. Observem como a passagem de Cordelli Alves
busca bases em uma visão dicotômica e oposicionista entre Estado/sociedade, importando-a
do pensamento liberal e trazendo para o sistema jurídico atual:
Formulou o legislador constituinte [...] uma regra de competência negativa, vedando à pessoas de direito público interno a criação ou aumento de tributo sem a competente previsão legal. Justifica-se plenamente essa preocupação exagerada do constituinte, na medida em que a exigência de tributos configura-se como o exemplo mais significativo de ingerência do Estado no patrimônio particular [...] a inviolabilidade dos direitos individuais concernentes à segurança e à propriedade e mesmo à liberdade, somente poderá ser garantida se essa ação tributária obedecer a limites rígidos estabelecidos em lei. (CORDELLI ALVES, 1984, p. 48-49)
Isso se dá em razão da manutenção de uma anacrônica premissa. A mais expressiva
parcela da doutrina permanece lançando suas argumentações tendo como base a oposição
cerrada entre Estado e particular, em um retardatário refluxo de um absolutismo que há muito
já se esvaiu.
81 No original: “After the case is decided, we may say that the case stands for a particular rule [... ] but the rule does not exist before the case is decided.”
110
Impressiona a força da perspectiva liberal. O quanto os autores ainda se agarram à
idéia de um Estado vil e agressor que tributa indiscriminadamente o sagrado patrimônio
individual do particular – seu “direito natural” – não poupando esforços para fazer valer o
arbítrio fiscal e predatório...
Para não sermos taxados de um eventual exagero, observem os seguintes títulos de
obras contemporâneas: “O contribuinte brasileiro: vítima do Fisco” (ISIDORO,1999); “Os
limites da legalidade tributária no estado democrático de direito: fisco X contribuinte na arena
jurídica: ataque e defesa” (NOGUEIRA, Alberto, 1999).
Reputamos já ultrapassada, porém, essa visão maniqueísta em que se apóiam alguns
de nossos autores. Já não mais se sustenta a perspectiva combativa e oposicionista entre as
esferas público/privada, Estado/particular. Compomos todos uma complexa e interligada
estrutura social, onde os âmbitos público e privado não apenas deixam de se enfrentar em uma
arena de disputa, com ainda se confundem em suas próprias substâncias.
Vejam agora outros aspectos da legalidade no que tange à busca pela segurança
jurídica exaltada no século XVIII.
4.2.3.1 Legalidade e tipicidade tributária
Ainda que presentes algumas ressalvas, talvez seja o princípio da legalidade o
principal contributo do sistema tributário liberal para a atualidade82. Se queremos aqui
questionar a forma como a doutrina e jurisprudência nacionais persistem, majoritariamente,
em trabalhar a concepção legalista de tributo, momento algum acreditamos possível
abandonar essa conquista democrática originada com o paradigma liberal. Todavia, é
importante destacar o posicionamento tanto dos liberais oitocentistas, quanto da doutrina
atual, no sentido de buscar uma previsibilidade absoluta de obrigações fiscais através do
exaurimento legal.
82 Cumpre ressaltar a curiosidade de que, não obstante a previsão do princípio da legalidade assole a quase unanimidade dos ordenamentos contemporâneos, a Argentina não contempla, expressamente o princípio da legalidade tributária (Cf. OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 22)
111
A presente Constituição, não obstante tenha já previsto no texto de seu artigo 5º, II83 a
obrigatoriedade de legislação para a instituição de obrigações particulares, preferiu o
constituinte ser mais minucioso quanto à legalidade tributária84, expressa no artigo 150, I:
Art.150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
Para autores como Campos (1984, p.218), não basta a simples elaboração de um
instrumento legal para a satisfação e obediência do princípio da legalidade tributária. Deve-se
perquirir a reserva absoluta da lei. Ou seja, para efetivamente lograr a segurança e tolhimento
de discricionariedade do Fisco, o princípio da legalidade deve ser alçado a uma esfera ainda
mais restritiva. Cabe à legislação a previsão dos critérios ligados à exação tributária, sendo
certo que, para alguns (MACHADO, 2005, p 54), mesmo elementos secundários à atividade
fiscal – p.e. prazo para recolhimento de tributo – exigem antecedente legal autorizativo,
posicionamento que, na atualidade, não encontra respaldo jurisprudencial.
Nessa mesma trilha, preferem outros autores trabalhar com a segmentação entre o
princípio da legalidade e seu sub-princípio da tipicidade tributária.
Seguindo lição de Bernardo Moraes (2002b, p. 96 e ss.) e Carrazza (2004, p.398 e ss.),
tipicidade tributária, que não foge da lição da tipicidade penal, é a necessidade de previsão de
todo e qualquer elemento da tributação em seu respectivo instrumento normativo. Não basta a
simples autorização legislativa permissiva para a instituição de uma exação, caso contrário,
poderia a mesma prever a delegação de tal tarefa a um outro poder ou órgão que o exerceria
através de um decreto normativo.
Na linha desses autores, não fosse a tipicidade tributária, o Legislativo, poder
característico da representação da vontade popular, poderia meramente autorizar, por meio de
lei, ao chefe do Executivo a instituição ou majoração de tributos. Seria o mesmo resultado
absurdo de não se exigir qualquer ato normativo!
83 Art. 5º, II da CF: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 84 Leciona Oliveira Junior (2000, p. 05 e ss.) que o princípio da legalidade sempre esteve presente nas ordens constitucionais brasileiras. Previa a Constituição do Império de 25 de março de 1824: “art. 36. É privativa da Câmara dos Deputados a iniciativa sobre: I – impostos (...) Art. 171. Todas as contribuições directas, á excepção daquellas, que estiverem applicadas aos juros, e amortisação da Dívida Pública, serão anualmente estabelecidas pela Assembléia Geral, mas continuarão, até que se publique a sua derrogação, ou sejam substituídas por outras.”
112
Para a doutrina tradicional, a legalidade, na acepção da tipicidade, implica um
exaurimento no que tange à expressão dos dados fáticos que irão autorizar a incidência
tributária. A descrição abstrata de que decorre a tipicidade tributária assim compreendida
acarreta uma delimitação exaustiva das condições possibilitadoras da obrigação fiscal. Nesses
termos, Sacha Calmon, ao trabalhar os elementos caracterizadores do tributo escreve que
“conceituar até a exaustão, tipificar tudo o que diz respeito às matérias acima exalta o
princípio da tipicidade” (COÊLHO, 2005, p. 227).
Alberto Xavier (2001) talvez seja o mais eloqüente defensor da obediência estrita à
tipicidade da tributação. Para o autor, a não observância da legalidade em seu aspecto mais
intenso – tipicidade – macula de forma irreparável a lisura e a democraticidade do sistema
fiscal. Mas não apenas.
Segundo Xavier, é a legalidade estrita que permite a conservação da separação de
poderes. Para ele, o exclusivismo que é dado ao legislador como sendo o único capaz de
interferir, em qualquer nível, na identificação dos fatos e situações tributáveis impede que
outros poderes interfiram na atividade legiferante. Parece pensar o autor que a interpretação
que venha a acrescentar qualquer elemento não intentado pelo legislador é ingerência à
atividade do Legislativo (Cf. XAVIER, 2001 p. 26). Mais uma vez pode ser apontada a
relação entre o fetiche legalista e exauriente das normas legais e a noção de lançamento
tributário como ato vinculado trabalhada páginas atrás, em consonância com a separação
absoluta dos poderes, tal qual argumentado por Xavier.
Em sua obra, os corolários que o luso-brasileiro entende por imprescindíveis para a
configuração da tipicidade no âmbito da tributação descrevem bem a postura de exatidão que
aqui se pretende delinear:
- seleção – necessidade de a lei tributária descrever minudentemente os tipos que irão
exaurir modelos de uma realidade que o Estado quer tributar;
- numerus clausus – a tipicidade pressupõe uma taxatividade de suas hipóteses de
previsão, não se admitindo situação que não descrita na forma do requisito supra;
- exclusivismo – a ocorrência no mundo fenomênico da realidade pretensamente
descrita pelo tipo tributário é necessário e suficiente para o surgimento da obrigação
pecuniária para com o Estado
- princípio da determinação ou da tipicidade fechada – esse derradeiro requisito
determina a necessidade de uma precisão dos termos utilizados pelo legislador na elaboração
dos tipos tributários. “Por outras palavras: exige a utilização de conceitos determinados,
entendendo-se por estes [...] aqueles que não afetam a segurança jurídica dos cidadãos, isto é,
113
sua capacidade de previsão objetiva dos seus direitos e deveres tributários” (XAVIER,2001,
p. 19)
Repare que todos os elementos que o autor ressalta para a configuração da reserva
absoluta da lei/tipicidade são calcados em pressupostos dignos de uma linguagem descritiva e
representativa da realidade, possibilitadora de uma delimitação ligada a um positivismo em
sua mais pura expressão. É a própria hermenêutica clássica tendo sobrevida aos cuidados do
autor, com todo seu aparato de cerceamento de “acréscimos interpretativos” em virtude de um
receio de arbitrariedades ou distorções da vontade legislativa.
A divisão liberal dos poderes apóia-se numa interpretação estrita desse conceito de lei. Ela caracteriza a lei através de princípios semânticos gerais e abstratos e considera preenchido o princípio da legalidade da administração, quando a execução administrativa se limitar rigorosamente a uma concretização do conteúdo normativo geral, de modo adequado às circunstâncias. Na linha dessa interpretação, a lei não deve a sua legitimidade ao processo democrático, mas à sua forma gramatical. O encurtamento semântico propõe uma interpretação da divisão de poderes seguindo uma lógica de subsunção. (HABERMAS, 2003, p. 236).
Novamente, legalidade e segurança jurídica se apresentam não apenas interligadas,
mas mesmo ensejadoras uma da outra. A tentativa de uma descrição taxativa dos elementos
fáticos do tipo tributário busca impedir eventuais ambigüidades que pudessem prejudicar a
previsibilidade do contribuinte no que tange aos seus débitos para com o Estado. É a
confiança extrema no texto da lei, que tem por objetivo expulsar qualquer subjetivismo do
aplicador e intérprete tributário85. Tanto ao Poder Judiciário quanto à Administração (basta
lembrar do lançamento) nada mais restaria do que a aplicação subsuntiva, neutra e
vinculada da realidade fática descrita e exaurida no texto legal.
O princípio da tipicidade impõe que o tributo só seja exigido quando se realiza, no mundo fenomênico, o pressuposto de fato a cuja ocorrência a lei vincula o nascimento da obrigação tributária. Dito de outra maneira, o tributo só pode ser validamente exigido quando nasceu por vontade da lei. Se não se realiza o fato imponível tributário (fato gerador in concreto), isto é, se não se cumprem integralmente os elementos do suposto fato legal (sempre minucioso, de modo a permitir que o contribuinte calcule antecipadamente a carga tributária que terá o
85 Em referência ao princípio da tipicidade no sistema jurídico alemão, bem como às características aludidas no texto supra, Nabais leciona que “todavia e independentemente da construção dogmática a que se adira ou perfilhe, o certo é que a generalidade da doutrina e jurisprudência alemãs vê no princípio da tipicidade fiscal um qualificado princípio da legalidade da administração, concluindo que, relativamente ao objecto do imposto, ao sujeito do imposto, à matéria colectável e ao montante do imposto, quem deve decidir é o legislador pelo que a lei deve, quanto a estes elementos, ou seja, quanto aos elementos essenciais dos impostos, levar a sua disciplina tão longe quanto possível, excluindo-a assim, quer da competência da administração, traduza-se esta em poder normativo (regulamentar) ou numa qualquer margem de livre decisão decorrente da utilização pela lei de cláusulas gerais ou de conceitos (normativos) indeterminados...” (NABAIS, 2004, p. 354)
114
dever de suportar, o lançamento e a arrecadação do tributo serão inválidos. (CARRAZZA, 2004, p. 398) (grifos nossos)
Por isso mesmo, é de praxe argumentar que, ausente na previsão legislativa qualquer
elemento ocorrido empiricamente, há óbice no nascimento da obrigação e conseqüente
cobrança fiscal. É o que Aires Barreto denomina “insuficiência da hipótese tributária”
(BARRETO, 1995, p. 267).
Com base nesses pressupostos, não raro, encontra-se afirmações no sentido de que a
tipicidade tributária exige a utilização de uma linguagem mais cerrada, fechada e rígida por
parte do legislador (MORAES, 2002b, p.96).
Pauta-se o sub-princípio da legalidade ora em análise pela busca de uma densidade
descritiva mais intensa e determinante, em contraponto à indefinição interpretativa que
supostamente culminaria em uma ingerência patrimonial abusiva. Não se admitem tipos
fluidos capazes de permitir presunções ou ficções atentatórias à certeza jurídica. A prática do
silogismo aristotélico é, para tal corrente, a única solução para a determinabilidade ansiada.
Quando em estudo da tipicidade tributária, Misabel Derzi (In: BALEEIRO, 1998, p.
117) critica a terminologia adotada pela quase totalidade da doutrina fiscal, adotando um
“princípio da especificação conceitual”.
Mais atenta às vicissitudes da linguagem, Derzi, em obra dedicada ao tema, alerta
sobre a impossibilidade de maximização da segurança jurídica em toda a esfera legislativa.
Mais. A autora acerta novamente, ao perceber que o Direito Tributário não pode ser
compreendido como um dado pronto pelo legislador, mas sim um construir constante e
ininterrupto. (DERZI,1988, p. 287-288).
No desenvolvimento de um estudo diferenciado, a tributarista realiza minuciosa
análise acerca da tipologia, buscando encontrar quais as características dos ditos “tipos
tributários”. Com vistas a esse objetivo, recorre aos filósofos alemães para concluir, com
excelência, que os tipos não são efetivamente cerrados como pressupõe toda a doutrina. Pelo
contrário. Sua forma de construção acaba por lhes acarretar uma abertura que lhes é própria,
concluindo, assim, pela “abertura do tipo, que se revela na inesgotabilidade de suas notas”
(DERZI:1988, p. 64).
Não obstante, após constatar o equívoco por que se pauta a doutrina, Misabel retorna
sua mente para a busca da mesma precisão que caracterizam os autores já apontados, filiando-
se à postura dominante de busca por uma legalidade engessadora, enaltecendo a segurança
jurídica por meio da técnica legislativa.
115
Nesse sentido, após realizar minuciosa distinção entre os “tipos legais tributários” e a
“especificação conceitual” por ela utilizada, Misabel conclui que a utilização de tipos abarca
uma abertura conceitual inadmissível para os parâmetros fiscais. Para ela, seriam os tipos por
demais flexíveis, permitindo assim, graduações e concessões que culminariam na
indeterminação rechaçada pela certeza tida por escopo. Por isso mesmo, a lei deveria ser
“fonte fundamental e exclusiva de produção de normas tributárias novas, abstratas e
genéricas, as quais espancam ou devem espancar, na medida do possível, a discricionariedade
dos atos de aplicação, quer administrativos, quer judiciais...” (DERZI, 1988, p. 287) (grifos
nossos).
É importante deixar claro, desde já,q eu também somos contrários à
discricionariedade, entretanto, com base em razões distintas, conforme se verá adiante. De
todo modo, reparem como Derzi, mesmo identificando o problema que assola a teoria da
tipicidade cerrada, cai na armadilha de uma saga por uma especificação conceitual que, mais
descritiva e exaustiva, não permitiria os espaços abertos negligenciados pela tipologia,
culminando, dessa forma, em uma vinculação das atividades administrativas (lançamento,
fiscalização, etc) e jurisdicionais.
Percebe-se, assim, que as expectativas originadas no período liberal ainda estão
presentes entre nós. As mesmas noções de busca incessante pela segurança jurídica em
virtude de um receio de abusos de um Estado Absolutista (?), bem como a adesão a uma visão
matematizante do Direito e da linguagem se mostram bem à vontade nas obras de nossos
autores.
Em meio à doutrina, Ávila, com desenvoltura hermenêutica, questiona o entendimento
dominante acerca da tipicidade, denominado por ele de “princípio da determinabilidade
fática” (AVILA, 2006, p. 308 e ss.). Tendo por inatingível a pretensão de descrição absoluta e
cerrada dos pressupostos fáticos a serem observados pelo aplicador tributário, Ávila prefere
alterar o enfoque dado ao princípio.
A exigência constitucional, para o autor, se materializa em uma determinação de
existência normativa, e não em uma pré-determinação conceitual das obrigações presentes na
legislação fiscal. Segundo ponto, seria um direcionamento ao legislador para que busque,
quando da tarefa de elaboração normativa, uma maior clareza (mas não certeza
interpretativa!) quanto aos elementos essenciais da tributação.
Todavia, ainda que vozes isoladas acompanhem Ávila neste entedimento (dentre as
quais no filiamos), não se pode questionar a exponencial prevalência da postura descritiva e
fechada do princípio da tipicidade no seio doutrinário. Mais adiante, tentar-se-á desvendar:
116
será que essa perene busca pela utilização precisa da linguagem é capaz de garantir a
previsibilidade e certeza jurídica que objetivam os tributaristas?
4.2.3.2 Legalidade e a irretroatividade e anterioridade tributárias
Ainda que seja a legalidade a principal ferramenta no embate pela segurança jurídica
tributária, também outros princípios merecem menção. Dentre esses, destacam-se os
princípios da anterioridade e irretroatividade das leis fiscais, sem os quais, a própria idéia de
legalidade se esvairia no limbo da inocuidade. Ávila percebe esses princípios tão ligados à
segurança jurídica chega a descrevê-la em duas perspectivas:
Primeiro, o cidadão deve saber previamente quais são as normas válidas. Isso só é possível, quando elas atingirem fatos ocorridos após a sua edição (proibição da retroatividade) e quando o cidadão tiver condições de conhecer com antecedência o conteúdo das leis (regra da anterioridade). (AVILA, 2006, p. 145)
Ora, se não pode haver imposições fiscais sem a “expressa e detalhada” previsão legal,
as leis tributárias também não podem atingir fatos que precederam sua vigência, momento
antecedente em que ainda não havia legislação respectiva. É o comando do princípio da
irretroatividade.
Trata-se de conseqüência lógica da própria noção de legalidade, tanto o é que
Bernardo Moraes (2002b, p.97) o classifica como corolário do princípio da reserva da lei.
Caso pudesse a lei retroagir e alcançar situações cronologicamente anteriores à sua existência,
acabar-se-ia por onerar fatos, e exigir obrigações com um fundamento legal que simplesmente
não compunha o sistema jurídico do momento. Seria o mesmo que cobrar tributo sem
embasamento legal – que, com efeito, não ali estava quando do fato gerador.
Caso fosse isso possível, tocaria por terra toda a noção de certeza acerca das
obrigações que a legalidade tenta se pautar. Destarte, seguindo a idéia esboçada, a segurança
jurídica volta-se não apenas para o futuro – com a reserva absoluta da lei fiscal – como
também para o passado, com a garantia da irretroatividade das leis tributárias86.
86 Misabel, confirmando a excelência e detalhamento de seus trabalhos, chega a diferenciar a retroatividade própria ou autêntica, da retroatividade imprópria, ou retrospectiva. Seria a retroatividade própria aquela ocorrida quando a legislação atinge relações jurídicas e fatos que exauriram completamente seu ciclo de formação antes do aparecimento da lei no espectro jurídico correspondente. Quanto a tal espécie, conforme profere a autora, não há espaço para qualquer dúvida quanto à sua inconstitucionalidade, já que contrária à confiança na lei e à
117
Para Amaro (2005, p.118 e ss.), a Constituição de 1988 já consagra a irretroatividade
(relativa, para o autor) em seu art. 5º, XXXVI, determinando que a lei não pode atingir o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Todavia, preferiu o constituinte
elaborar preceito específico, atualmente presente no artigo 150, III”a”, onde se lê:
Art. 150 . sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ... III . cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
No mesmo sentido de proteção da faculdade de planejamento fiscal, apresenta-se o
princípio da anterioridade tributária, identificado como a “dimensão formal temporal da
segurança jurídica” (ÁVILA, 2006, p.305).
Ainda que se respeite a exigência de lei formal e material para a criação e modificação
de tributos, bem como a observância da não retroatividade das mesmas, não se conseguiria
deixar intocada a possibilidade de antecipação da visão do contribuinte, no que se refere ao
seu planejamento e débitos fiscais, se de um dia para ou outro pudesse surgir lei inteiramente
nova que passasse a exigir expressiva obrigação em pecúnia.
Nessa toada, sem a garantia de um lapso mínimo entre a vigência da lei e sua
possibilidade de cobrança, não estaria acobertado o indivíduo das surpresas e inconsistências
das normas tributárias.
Atualmente no Direito brasileiro, a anterioridade tributária vê-se expressa em dois
dispositivos constitucionais. Com eles, não apenas a lei respectiva deve ser anterior ao
exercício financeiro em que irá começar a incidir, como também deve observar o lapso
temporal de noventa dias para surtir os efeitos correspondentes. Nessa senda, o texto
constitucional:
Art. 150 . sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ...
segurança do sistema jurídico. Noutro lado, é imprópria ou retrospectiva a retroatividade quando a lei não se prende completamente ao passado, ou mesmo ao futuro, mas sim “...em um presente ainda não concluído, porém em vias de formar o fato jurídico e as relações jurídicas [...] no caso dos impostos periódicos, ela é editada no curso do ano, antes do temo final do nascimento do Direito” (TIPKE apud DERZI In: BALEEIRO,1998, p. 192) Nesses casos, não houve a completa formação do fato gerador a que se refere a nova legislação tributária. Essa foi elaborada no intercorrer, no “meio” da realização do fato imponível. Exemplo pragmático é a súmula 584 do STF, que afirmava que “ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”. Esse entendimento, porém, já se demonstra superado pela doutrina, legislação e jurisprudência (Cf. AMARO, 2005, p. 133).
118
III . cobrar tributos: ... b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
Acerca do princípio da anterioridade da lei tributária, Derzi esclarece que o Fisco
chegou a argumentar no sentido de que a anterioridade deveria se dar apenas em relação à
deflagração do processo de cobrança dos créditos tributários. Segundo tal linha de
pensamento, a constituição da obrigação tributária, a incidência da lei sobre o fato gerador
poderia se dar de forma imediata.
Todavia, contrária a tal posicionamento do Fisco que, de tão pouco adotado é hoje
inexpressivo, a autora afirma que “a única interpretação compatível é aquela que permite a
adequada proteção da segurança jurídica, pela abolição da surpresa tributária” (DERZI In:
BALEEIRO,1998, p. 172).
Nítida assim, a preocupação que os tributaristas demonstram quando em análise a
possibilidade de usurpação da garantia de segurança e previsibilidade jurídicas. A
anterioridade e irretroatividade incorporam nosso ordenamento para apoiar e corroborar o
apelo pela certeza obrigacional exaltada pela doutrina, ainda como eco do
iluminismo/liberalismo do século XVIII!
4.2.3.3 Legalidade, propriedade e elisão fiscal
Ponto que não pode ser desconsiderado quando da análise das influências dos direitos
fundamentais de primeira geração para a construção do ordenamento tributário é a estreita
ligação que a legalidade mencionada guarda com a proteção absolutizante da propriedade
individual.
A percepção de salvaguarda da esfera patrimonial privada como um dos pilares do
desenvolvimento social figurou como um dos elementos cerceadores da presença estatal na
esfera econômico-social. Juntamente a isso, a tributação era percebida claramente como um
instituto, embora necessário, atentatório à esfera fundamental do indivíduo, onde a
propriedade privada encontrava posição de destaque.
119
É clara a proximidade com que os autores liberais proclamavam a proteção da
propriedade tal qual a garantia da liberdade – ecos até hoje presentes em nosso corpo
doutrinário. O mesmo valor dado à liberdade humana é também identificado, nessa linha de
pensamento, à propriedade individual. Tanto o é que a instrumentalização das áreas penal e
tributária se deu da mesma forma: a tipificação cerrada e estrita das hipóteses em que o
“Estado-malfeitor” poderia adentrar nessas duas esferas de quase absolutização e sacralização.
Douglas Yamashita explica o entendimento:
... o Direito Tributário, assim como o Direito Penal são ramos jurídicos sensíveis, pois limitam direitos fundamentais do cidadão, tais como a liberdade e a propriedade. É por isso que num Estado Democrático de Direito exige-se do Direito tributário o máximo de segurança jurídica, traduzida na certeza jurídica (YAMASHITA, 2000, p. 735)
Ora, pressupondo que se deveria limitar ao máximo a presença fiscal maculadora do
auferimento de resultados provenientes da autonomia individual, não havia melhor remédio
que a segurança jurídica trazida pela legalidade tributária. Com a previsibilidade “inerente” ao
pretenso engessamento das obrigações por parte da legislação, buscava-se o mínimo
pagamento de tributos, que não poderiam advir de qualquer outro instrumento que não a
legislação formal burocrática.
Em razão desses elementos que ganha força a defesa à elisão fiscal.
Uma vez identificado o princípio da legalidade, a dedução de sua esfera negativa não
demanda maiores esforços. Se apenas pode ser passível de cobrança fiscal aqueles
fatos/situações textualmente previstos, tudo aquilo que não o é não pode ser objeto de
obrigação tributária.
Diante dessa perspectiva, surge a clara possibilidade de optar por negócios jurídicos,
ou “roupagens jurídicas” que geram menores ônus fiscais. Bernardo Moraes (2002, p. 468)
chega a afirmar a quase obrigatoriedade por parte do contribuinte na escolha dessas formas
menos custosas. Compartilha esse pensamento Caio Goulart Penteado. Assim, assevera o
autor, que “se existem alternativas, escolhe-se a de menor impacto fiscal, manda a lógica, o
bom sendo. E não o impede a lei ou a ética” (PENTEADO, 1988, p. 05).
É nítida a relação de pertinência entre tal concepção e a prevalência da autonomia da
vontade apontada no sistema jurídico liberal do século XVIII. Essa representa, em realidade, o
próprio núcleo argumentativo fundamentador das práticas elisivas.
É isso que nos faz concordar com o entendimento de que
120
... é, porém óbvio o (excesso de ) positivismo dum tal entendimento que, por seu turno, tem subjacente uma concepção de homem soberano isolado (no contexto dum estado inimigo das liberdades) e de contribuinte interessado em pagar o menos possível de imposto(s), como se lhe assistisse um direito fundamental de não pagar impostos.(NABAIS, 2004 p. 386) (grifos nossos)
Por essa trilha, segue Alberto Xavier, expoente na defesa da elisão tributária e que a
percebe como conseqüência direta da garantia dos direitos fundamentais dos contribuintes em
exaltação da legalidade e proteção patrimonial.
Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação constituem uma garantia individual que tem por objeto proteger os direitos do homem consistentes no ‘direito de propriedade’ e no ‘direito de liberdade econômica’ no qual se inclui a liberdade de contratar (XAVIER, 2001,p. 111)
A objetificação a que se propõe a exigência legal estrita possibilitaria o amplo
planejamento fiscal das empresas privadas, que teriam capacidade de realização do
planejamento econômico-tributário, inerente à atividade de exploração mercadológica
capitalista.
Com isso, potencializar-se-ia a faculdade dos particulares em desenvolver ao máximo
suas habilidades individuais. A segurança jurídica fiscal culmina, para a corrente oitocentista
(e ainda atual!), na valorização da iniciativa privada e no incentivo às empresas adentrarem no
mercado econômico. Restringindo a condução da atividade mercantil unicamente à vontade
individual, nada mais lógico que disso resultasse a conclusão no sentido de que o
planejamento fiscal, voltado para o crescimento dos lucros e maior viabilidade econômica dos
empreendimentos privados se submetesse também à autonomia da vontade.
Partindo dessa perspectiva,
em termos do (sub) sistema tributário, implica o reconhecimento da livre conformação fiscal dos indivíduos, traduzindo-se na liberdade destes para planificarem a sua vida econômica sem consideração das necessidades financeiras da respectiva comunidade estactual e para actuarem de molde a obter o melhor planejamento fiscal (tax ou fiscal planning, Steuerplanung) da sua vida, designadamente vertendo a sua ação econômica em actos jurídicos ou actos não jurídicos de acordo com a sua autonomia privada, e guiando-se mesmo por critérios de evictação de impostos ou de aforro fiscal (NABAIS,2004, p. 205-206)
Neste campo, ganha fôlego a defesa à prática da elisão fiscal, que segundo Malerbi,
é a expressão empregada pela doutrina para designar a descrição tipológica de determinados comportamentos que os particulares manifestam perante a tributação, e que se fundem em um ponto referencial comum a todos: comportamentos tendentes a evitar uma incidência tributária ou a obter uma incidência tributária
121
menos onerosa, mediante via jurídica lícita que lhe proporcione tal desiderato. (MALERBI, 1984, p.14-15)
Carlos Vaz (1987, p. 16) realiza diferenciação digna de nota.
Segundo o autor, há “elisão induzida” quando o legislador, levado por motivações
extrafiscais, incita a realização de negócios beneficamente tributados ou ainda, carentes de
qualquer forma de incidência fiscal, tal qual ocorre com as isenções.
No que tange a tais práticas elisivas, não há muito o que argumentar. Nesses casos, o
particular meramente segue uma oportunidade que o governo, conscientemente, coloca em
disponibilidade. Obviamente, porém, no período liberal não se detectava, tal qual na
atualidade, a indução de comportamentos no intuito de direcionamento do mercado e
economia. Conforme será possível observar, esta é prática que o Estado apenas deterá, com
maior ênfase, quando do surgimento do Estado social.
Noutra senda, a chamada “elisão resultante de lacunas da lei”, nomenclatura do
próprio Vaz, para quem “resulta ela das próprias brechas, furos ou lacunas da lei, que os
norte-americanos denominam de loopholes, por onde passam incólumes vários contribuintes,
havendo até, segundo Baleeiro, especialistas na arte de orientá-los no aproveitamento desses
pontos fracos do direito positivo” (VAZ, 1987, p. 18).
É este nosso foco de análise.
Mediante a busca de métodos lícitos, pressuposto básico para a caracterização da
elisão fiscal, o instituto em comento utiliza “artimanhas”, estratégias de fuga fiscal legalmente
protegida visando o não pagamento ou retardo no cumprimento das obrigações tributárias.
Nessa toada, não há como confundir a elisão fiscal, com a evasão fiscal, instituto
caracterizado pela sua ilicitude, pelo não pagamento anti-jurídico de um tributo devido ao
Fisco.
Forma de identificação pragmática e de fácil operacionalização é aquela adotada por
quase totalidade da doutrina pátria, consistente na verificação do momento da atuação do
contribuinte. Se anterior ao fato gerador, evitando-o, trata-se de elisão fiscal. Se posterior ao
fato gerador, o tributo já é devido, e seu não pagamento será considerado evasão, com a
conseqüente tentativa de, por meio de um ardil, ludibriar a Administração Tributária e se
furtar de sua obrigação legal.
No que tange à evasão fiscal, não gastaremos muitas letras. A elisão fiscal sim, é
objeto de certa controvérsia.
122
Segundo leciona a doutrina, os principais instrumentos que os contribuintes têm à sua
disposição para a realização de práticas elisivas são: o negócio fiduciário, e o negócio
indireto.
Entende-se por negócio fiduciário a transmissão de direito ou objeto a um indivíduo
para um fim específico e previamente acordado. Este adquirente do objeto ou direito assume a
posição de fiduciário, a confiança de realizar o fim respectivo e posteriormente, devolver ao
seu proprietário genuíno.
Leciona Greco (2004) que o STF já considerou o negócio fiduciário instrumento para
realização de fraude à lei em um caso concreto, desconsiderando, assim, sua imposição
perante o Fisco e a tributação (RE 82.447 DJ 17/09/1976). Entretanto, segundo a linha dos
defensores da elisão fiscal, caso não se apresentem as características do abuso de direito e da
fraude à lei, poderia sim haver sua utilização lícita para atingir as finalidades perseguidas.
O negócio indireto, por sua vez se apresenta de diversa forma.
Entende-se que há um negócio jurídico indireto, ou com fins indiretos, quando as
partes realizam um negócio jurídico lícito, mas com vistas não em sua finalidade ou
conseqüência típica, mas sim no desiderato de lograr conseqüências que seriam atingidas por
um outro negócio jurídico mais oneroso. Insta destacar que as partes, de fato, querem realizar
aquele mesmo negócio, elemento que o diferencia da simulação. No entanto, a mola
propulsora que as guia é atípica.
Pesquisando a origem civilista do instituto, Alberto Xavier, com base em Galvão
Telles ensina que
o contrato que se celebra compreende só os elementos típicos de determinada espécie contratual, mas na intenção das partes, pela forma como esses elementos estão dosados ou pelo jogo das circunstâncias, ela seria também adequada para atingir a finalidade inerente a outra espécie contratual. (TELLES apud XAVIER, 2001, p. 59)
O mesmo Xavier traz um exemplo de negócio indireto que pode aclarar a perspectiva
do leitor ao lembrar do “uso do contrato de compra e venda, oneroso, para atingir um fim da
liberalidade [...] em que o preço de favor permite atingir os mesmos fins que uma doação do
vendedor, e em que um preço excessivo permite atingir os mesmo fins que uma liberalidade
do comprador” (XAVIER, 2001, p. 59)
Não obstante, imprescindível ressaltar que, ainda que a escolha alternativa de dado
negócio acarrete menor ônus fiscal para o contribuinte, suas conseqüências empíricas,
econômicas ou negociais serão as mesmas do negócio jurídico de tributação mais excessiva.
123
Conseqüências essas que muitas vezes tenta o governo coibir por meio de tributação daquele
respectivo negócio. Esse é um ponto que será valioso adiante quando de sua relação com a
extrafiscalidade e a intervenção estatal no domínio econômico.
Godoi (2007, p. 237 e ss.), fugindo do posicionamento adotado pela esmagadora
maioria da doutrina brasileira, não se restringe à classificação esboçada acima, revendo toda
sua estruturação.
Em artigo dedicado ao tema, o tributarista identifica não apenas duas espécies
classificatórias (elisão e evasão), mas também uma terceira: a “elusão fiscal”. Segundo seus
ensinamentos, que acompanham as legislações de grande parte dos países europeus, há
momentos em que o planejamento tributário perpetrado pelo contribuinte, ainda que não
chegue a configurar uma evasão fiscal, ultrapassa a mera expectativa de economia fiscal, pois
se utiliza de uma artificialidade não condizente com a lisura do sistema jurídico. Nesses casos,
não se trata mais de uma elisão fiscal propriamente dita, em que a licitude da economia
tributária é perfeita, mas sim de elusão fiscal.
Ainda que existam especificidades técnicas no sistema de cada país, há três parâmetros muito recorrentes para diferenciar a elisão da elusão: 1. o manifesto artificialismo das configurações ou formalizações jurídicas adotadas pelo contribuinte (abuso de forma, abuso das possibilidades de configuração que o direito positivo oferece, fraude à lei), 2. a completa inexistência de um motivo não-tributário que possa explicar ou justificar a escolha do contribuinte por aquelas formas jurídicas artificiosas e 3. a vulneração que seria promovida nos propósitos da lei e do sistema tributário, caso pudesse prevalecer o esquema montado pelo contribuinte. (GODOI, 2007, p. 247)
Mister asseverar que o autor apresenta uma inovação quando comparado com o
contexto de defesa pura e simples da autonomia privada geralmente calcada em argumentos
típicos do século XIX. O exame “pragmático” que ele faz se insere na perspectiva do Estado
Democrático de Direito que será visto mais adiante.
Em que pese a correção da doutrina do autor, que reestrutura a concepção elisiva
dentro do Direito brasileiro, tentar-se-á trabalhar, no presente, com a visão “clássica” acerca
da elisão fiscal sob pena de se desvirtuar dos pressupostos basilares do trabalho. Afinal,
sempre bom reforçar, o próprio objetivo que guia a presente pesquisa consiste na verificação
de procedência do entendimento positivista e formalista expressados na absolutização da
tipicidade tributária que também encampa a visão tradicional de elisão tributária, questão já
superada pela visão esboçada por Godoi.
124
4.3 A interpretação descritiva e a primeira geração de direitos.
Encerrado o desenvolvimento e caracterização do Direito Tributário em razão da
primeira geração de direitos fundamentais, será agora desenvolvido um outro enfoque do
trabalho.
Já argumentado, quando da evolução do cap. III, que não se pode pensar qualquer
ramo do Direito sem a observância do Direito Constitucional, em especial, os direitos
fundamentais. Assim, para a verificação se uma técnica interpretativa é satisfatória e eficiente
aos anseios jurídicos, pode-se realizar a análise de seu sucesso na concretização desses
direitos. É este o desafio que se apresenta agora. Uma vez constatado que a postura legislativa
descritiva da realidade, fechada em precisões conceituais consegue efetivar todos os direitos
fundamentais, eventuais críticas em direção a esta postura hermenêutica perdem qualquer
sentido!
Sem embargo, a recíproca também se mostra verdadeira. Se concluída a insuficiência
de qualquer técnica hermenêutica, a mesma deve, de imediato, ser repensada, pois não
condizente para com seus escopos. E quanto à primeira geração de direitos, a previsibilidade
das obrigações materiais em receio aos abusos estatais pode ser caracterizada como o
principal instrumento de proteção aos direitos fundamentais emergentes: propriedade,
liberdade e igualdade formal.
Em resposta ao absolutismo precedente, em conjunto com a falta de tratamento
isonômico, limites à vontade monárquica e autoritarismo estatal, a burguesia liberal,
influenciada pelo pensamento científico que gritava a exatidão matematizada da representação
da realidade pelo intelecto humano, passou a limitar a atuação do Estado por meio da certeza
cartesiana que a legislação formal seria capaz de proporcionar. A lei objetiva, descritiva de
uma realidade que pretendia tributar, não permitia privilégios ou abusos. Afinal, ao intérprete
– inclusive ao Fisco – não cabia agregar qualquer elemento subjetivo que pudesse macular a
pureza legal expedida pelo Legislativo. Ao Executivo e Judiciário, cabia a neutralidade da
aplicação da lei, e nada mais.
Ora, se possível atingir essa certeza da descrição da realidade, dos fatos empíricos, já
há como garantir a identidade de tratamento (isonomia) e a previsibilidade dos ônus fiscais
direcionados ao contribuinte (propriedade)! Basta que o legislador trate minuciosamente as
hipóteses de incidência. Não há mais problemas! Essa é a síntese do pensamento liberal que
125
propiciou a maximização dos princípios da legalidade e da tipicidade. É a “hipertrofia” da
segurança jurídica a que se refere Derzi (In: BALEEIRO: 1998, p. 72).
Já apresentado, quando do estudo acerca da tipicidade tributária, a persistência dos
autores atuais em se filiarem ao posicionamento supra. Para Carrazza, “o tipo tributário
(descrição material da exação) há de ser um conceito fechado, seguro, exato, rígido, preciso e
reforçador da segurança jurídica”(CARRAZZA, 2004, p.235). Na mesma linha Alfredo
Becker, que faz referência justamente à idéia de certeza algébrica que se tenta dar às
obrigações fiscais: “a regra jurídica incide porque o incidir infalível (automático) é justamente
uma ‘especificidade do jurídico”(BECKER, 1972, p. 280). Também Geraldo Ataliba: “a lei
tributária deve – sob pena de ter-se por ineficaz – descrever exaustiva e completamente a
hipótese de incidência, em todos os seus aspectos (ATALIBA, 2005, p. 200).
Com efeito, a legislação deve sim ser considerada fonte fundamental de obrigações
tributárias, é bom deixar claro que, momento algum, se propõe aqui um retorno ao
arbítrio e discricionariedade na aplicação jurisdicional. Aliás, imbuídos desse propósito é
que rejeitamos a ponderação de valores de Alexy (Cf cap. II).
Entretanto, não é pelo fechamento dos sentidos dos vocábulos que se logrará tal
objetivo. A única forma de se manter a legitimidade jurídica das normas, bem como fiscalizar
a adoção de teses pelo judiciário é a garantia de um procedimento argumentativo, e não
tentando esgotar a realidade em signos como se esses fossem capazes de exaurir toda sua
significação.
É ciente disso que Derzi reconhece a inevitabilidade de conceitos imprecisos.
...reconhecemos em qualquer campo do Direito, mesmo no Direito Tributário, onde a segurança jurídica, a uniformidade na aplicação da norma e a praticabilidade reforçam a legalidade estrita, a existência daquela zona de penumbra a que se refere Carrió, onde são fartos os conceitos legais obscuros e indeterminados (DERZI, 1988, p. 287)
Todavia, conforme já apontado, não abre mão a autora da matematização do Direito
Tributário: “exige-se, então, não só que a lei tipifique os fatos jurígenos e seus efeitos, mas
que ela limite, tanto quanto possível, a imprecisão conceitual, transformando-os em conceitos
fechados” (DERZI In: BALEEIRO, 1998, p. 137). Mais uma vez torna-se possível a relação
entre o paradigma liberal e os pressupostos epistemológicos do neopositivismo do Círculo de
Viena!
O ponto central que se busca aqui colocar à prova é justamente este: será que a
tipicidade e a legalidade tributária, apoiadas em uma descrição fechada, exaustiva da
126
realidade conseguem garantir os mecanismos de alcance dos direitos individuais, aqui
compreendidos na segurança jurídica e a previsibilidade das obrigações perante o Estado?
Não temos tanta convicção...
Pensemos as imunidades constitucionais. Trata a CF/88 de hipóteses em que não é
possível a incidência de ônus fiscais em razão das imunidades constitucionais ali
estabelecidas. Se pautados pelos escopos esboçados pelos autores supra mencionados,
devemos ter a segurança jurídica de antecipar, de prever qual será o teor total das obrigações
tributárias incidentes.
Nos termos do art. 150 VI, “d” da CF/88, é vedado aos entes da Federação instituir
impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.
Segundo as premissas ora em debate, este dispositivo constitucional é claro, e tem em
si a representação da realidade jurídico-tributária que deve reger as relações pertinentes. Não
pode haver incidência de impostos sobre livros, jornais, periódicos e papéis destinados a sua
impressão. Será que diante dessa simples determinação será possível antecipar quais serão as
obrigações tributárias de uma editora que confecciona e distribui livros e periódicos em geral?
Afinal, assim como a tipicidade que gera a obrigação fiscal, também as imunidades devem ser
expressas por uma linguagem fechada, sem margem a ambigüidades e incertezas87.
É claro que o objetivo que se persegue não é atingido! Não se pode inferir todas as
implicações jurídico-tributárias que existem e ainda irão existir através de uma simples
disposição legal.
Nesse sentido, poder-se-ia perguntar: quais os objetos que podem ser beneficiados
pela imunidade ora apresentada?
Os livros, obviamente! Mas em que “os livros” consistem? Carrazza (2004, p. 716)
enfrenta essa dificuldade. Como saber se o produto que confecciono deve ou não ser onerado
por obrigações fiscais? Como ter a certeza de minhas obrigações?
87 Àqueles que possam vir a argumentar a impossibilidade da utilização de exemplos envolvendo imunidade em razão de já haver uma predisposição interpretativa extensiva, arrebatamos com dois argumentos: a primeiro, estamos aqui a demonstrar didaticamente como a tentativa de exaurimento da realidade se mostra impossibilitada por meio da tipicidade fechada proposta pela doutrina. Para isso, tanto exemplos envolvendo imunidades quanto tributação são satisfatórios. A segundo, não procede o argumento de que a doutrina compreende a imunidade de forma extensiva ao ponto de invalidar nossa exemplificação. Nessa toada, a argumentação de Ávila: “A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal também interpreta de modo mais declaratório as imunidades quando, ao analisar o dispositivo constitucional que menciona a imunidade de ‘impostos’, entendeu que a imunidade alcança ‘apenas’ os impostos; não as contribuições; também interpreta literalmente, quando entende que não há livro, periódico ou jornal, sem papel, por ter a Constituição previsto um dos elementos destinados à obtenção do produto final assegurado pela imunidade. A mesma Segunda Turma interpreta de modo restritivo as imunidades, quando cria distinções que não estão previstas no conteúdo mais imediato dos dispositivos constitucionais...” (AVILA, 2001b, p.15)
127
Seriam “os livros” aqueles definidos nos dicionários da língua portuguesa? Devemos
entender imunes todo o “conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou
brochado” (LAROUSSE CULTURAL, 1992, p.694)?
Nesse sentido, caso um contribuinte realize a impressão e a encadernação de um livro
jurídico, o mesmo está tranqüilo acerca da incidência da imunidade constitucional em tela.
Mas, se pretende atingir os estudantes de baixo poder aquisitivo, barateando seus produtos,
poderia imprimir o mesmo conteúdo em folhas e apenas grampeá-las e não encardená-las?
Será que estará incluso na hipótese constitucional?
Pela definição anterior, acreditamos que não. Mas, perante a isonomia – e lógica –
constitucional – não há qualquer racionalidade em onerar fiscalmente apenas aqueles produtos
que visam repassar o conteúdo intentado a uma parcela que apenas pode ter acesso a meios de
estudo mais baratos.
Atento a esse desafio, Carrazza elaborou definição distinta. Para ele, “são
considerados ‘livros’ para fins de imunidade tributária, os que se prestam a difundir idéias
informações, conhecimentos, etc.” (CARRAZZA, 2004, p. 720). Ora, assim sendo, a apostila
antedita seria beneficiada!
E, quanto à editora que lança um livro jurídico em dois formatos distintos: impresso e
em CD-ROM? Como poderia a mesma saber previamente quais serão suas obrigações fiscais?
Como poderia se planejar com a precisão e a segurança jurídica que os autores reputam
imprescindíveis? Afinal, nas idéias expostas por Hugo de Brito, “o planejamento empresarial
[...] supõe assim uma possibilidade de previsão objetiva e esta exige, por seu turno, uma
segurança quanto aos elementos que a afetam” (MACHADO,1991, p. 17).
Ocorre que é impossível saber de antemão todas essas implicações tributárias!
Esses debates ora apresentados não se restringem apenas no campo doutrinário.
Também o STF teve que perquirir qual o conteúdo a ser atribuído aos vocábulos presentes no
dispositivo constitucional examinado.
No RE 174.476 (DJ 12/12/1997) discutia-se se era possível a cobrança de ICMS sobre
filmes fotográficos para imagens monocromáticas e papéis fotográficos para fotocomposição
por laser, produtos que são consumidos quando da impressão de jornais.
Nesse caso, contrariando a perspectiva descritiva e exaustiva dos textos normativos, o
STF percebeu a necessidade de se desobstruir os empecilhos fiscais à produção e circulação
de meios de informação. Concebeu a Corte que também os insumos para a impressão
deveriam ser interpretados dentro do dispositivo constitucional. Foi vencido o pressuposto
metodológico liberal esboçado pelo Min. Maurício Corrêa para quem
128
o papel que na verdade desses autos se faz referência, vernacularmente não é o papel na sua acepção usual [...] não é papel para a impressão de jornal, mas sim meio técnico para se chegar à impressão [...] fora está, pois, da abrangência da norma específica contida no art. 150, VI ‘d’ da Carta Política (p. 648)
Em outra oportunidade, porém, decidiu o STF pela não incidência de imunidade às
tintas para impressão, ainda que também percebidas como insumo para impressão (RE
265.025 DJ 21/09/2001).
Sobre a mesma questão, o que se interpretar efetivamente como “jornais livros e
periódicos”? Outro ponto derivado da ausência de unanimidade interpretativa com que se
deparou o Supremo. No RE 221.239 (DJ 25/05/2004) e RE 183.403 (DJ 07/11/2000)
prevaleceu o entendimento de que os “álbuns de figurinhas” e também “apostilas” deveriam
ser abrangidos pela imunidade em tela.
Notem como são todas questões que denotam as dúvidas e incertezas interpretativas
acerca das obrigações tributárias derivadas de um texto constitucional aparentemente claro.
Contrárias, portanto, ao objetivo de matematização e previsibilidade das exações.
Diante do desafio interpretativo que apresentou o texto constitucional, o Supremo
Tribunal Federal expediu a súmula 657, na tentativa de pacificar o tema e expressar sua
tendência interpretativa: “A imunidade prevista no art. 150, VI, d da CF abrange os filmes e
papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos.” Pautou-se o Supremo na
idéia de que, caso houvesse a consolidação do Direito em virtude de um entendimento
sumulado, o judiciário estaria resolvendo todos os problemas interpretativos. Afinal, a partir
daí não haveria mais controvérsias acerca das hipóteses de sua incidência!
De se destacar que, mesmo a súmula elaborada pela Corte não conseguirá afastar as
ambigüidades e garantir a segurança comentada. Também seu enunciado será objeto de
interpretação e ensejará incertezas e duplicidades significativas tal qual o texto constitucional,
afinal são ambos objetos a serem interpretados pelo sujeito.
O mesmo pode ser apontado em outras situações. Derzi, em atualização à obra de
Baleeiro questiona-se quando trata das imunidades relativas a instituições de assistência social
(art. 150, VI “c” da CF/88): “mas o que é uma instituição? E uma instituição de assistência
social?” (DERZI: In BALEEIRO, 1998, p.320).
É a mesma problemática enfrentada pelo STF no RE 202.700 (DJ 01/03/2002) em que
a Corte se debruçou sobre a temática da incidência ou não de impostos sobre as entidades de
previdência privada. Estariam as mesmas compreendidas no âmbito da expressão “instituição
129
de assistência social” utilizada pela CF/88 em seu art. 150, VI ‘c’? Ou teriam os vocábulos
utilizados pelo constituinte um conteúdo descritivo prévio, capaz de delimitar exaustivamente
quais instituições e obrigações fiscais se situam no plexo jurídico obrigacional a que se refere
o dispositivo aludido?
No caso, mais uma vez o STF preferiu sumular a questão. Segue o enunciado 730: “a
imunidade tributária conferida a instituições de assistência social sem fins lucrativos pelo art.
150, VI, "c", da constituição, somente alcança as entidades fechadas de previdência social
privada se não houver contribuição dos beneficiários.”
E que não venham argumentar que a insatisfação da segurança jurídica reside
unicamente na esfera da concessão de benefícios fiscais. Seguindo a mesma trilha, a recente
decisão do Superior Tribunal de Justiça acerca da legitimidade do recolhimento de
contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas prestadoras de serviço. Muito
embora a expressão “empresa” fosse antes facilmente entendida como “empresa comercial”, o
STJ percebeu que a práxis jurídico-tributária possibilitava a compreensão de que ali estavam
abrangidas as empresas que fazem comércio, seja de bens, seja de serviços, daí a possibilidade
de sua exação tributária (REsp. 895.87888, DJ 08/08/2007). Ora, mas não seria plausível ao
contribuinte imaginar que, pelo fato de sua empresa ser uma prestadora de “serviços”, ela não
deveria ser obrigada a contribuir com um tributo destinado a “empresas comerciais”? Afinal,
trata-se de duas espécies distintas de empresa! Obviamente que, seguindo o posicionamento
de exaurimento do conteúdo legal nos termos normativos, essa certeza jurídica deveria restar
garantida. Mas mais uma vez as expectativas de uma exatidão milimétrica e antecipada da
matéria tributária foram lançadas ao espaço89!
88 CONTRIBUIÇÕES SESC/SENAC. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO. A Primeira Seção reiterou o seu entendimento e considerou legítimo o recolhimento das contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas prestadoras de serviço. A Min. Relatora afirmou que modernamente o conceito de empresa comercial é amplo, devendo, pois, abarcar todas as empresas que fazem comércio, seja de bens, seja de serviços. Assim, a Seção negou provimento ao recurso. Precedentes citados: RESp 431.347-SC, DJ 25/11/2002; REsp 719.146-RS, DJ 2/5/2005; REsp 705.924-RJ, DJ 21/3/2005, e REsp 446.502-RS, DJ 11/4/2005. REsp 895.878-SP, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 8/8/2007. 89 Muito embora se tenha optado por apontar apenas alguns exemplos elucidativos de como a tentativa de se engessar um conteúdo normativo a determinadas expressões utilizadas em nosso ordenamento jurídico é esvaziada pela pragmática, são vastas as situações com a qual se poderia argumentar. Assim, é possível lembrar também a controversa questão acerca do “direito adquirido”. Muito embora a hermenêutica clássica venha argumentar que a mera determinação constitucional (art. 5, XXXVI da CF/88) de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, e a coisa julgada”, o delineamento do que consista referido “direito adquirido” se mostra algo longo da univocidade ansiada pelos tributaristas brasileiros. Sampaio (2005) elenca uma série de possibilidades e correntes envolvendo o instituto jurídico aludido. Entretanto, restringindo a exemplificação, apenas quanto a relação entre os servidores públicos e a Administração, pelo menos três conteúdos distintos podem ser apontados. Assim o sendo, a corrente “contratualista” (SAMPAIO, 2005, p.94 e ss.) compreende que a relação entre servidores e Estado detém as mesmas características de uma relação privada, razão pela qual, assim como ocorre com os direitos trabalhistas, há proteção, pelo direito adquirido, de todos os direitos e deveres que vigoravam quando da inserção do servidor nos quadros públicos. Noutra vertente, a
130
É por isso que se afirma. Não há a determinabilidade almejada na utilização dos
termos lingüísticos, ainda que se faça com escopo de construir uma tipicidade fechada. O
alcance dos conteúdos de todo e qualquer termo (dentre os quais aqueles utilizados na
elaboração normativa) nunca será estagnado, nunca terá unanimidade. Não viveremos para
presenciar todas as pessoas concordando absolutamente com o significado de uma palavra ou
de uma legislação, tendo por certo seu âmbito de incidência apenas pela leitura de um
dispositivo legal.
Se assim o é, não apenas a questão patrimonial, compreendida pelos liberais na
previsibilidade supra, é alvejada pela prática tributária. Também a pretensão de um isonomia
formal, outro direito fundamental de primeira dimensão, consubstanciada na identidade de
tratamento perde foco. Afinal, se há tantas variantes para um mesmo texto legal, impossível
determinar fielmente que todos os indivíduos receberão o mesmo conteúdo interpretativo.
Aqui nem se está a tratar da implausibilidade filosófica dos pressupostos das teorias
interpretativas em cheque. Desta análise ocupar-se-á posteriormente. As presentes palavras
buscam apenas demonstrar como a tentativa de representação exaustiva da realidade não é
suficiente para garantir a segurança jurídica e isonomia formal pretendida pelos autores
tributaristas diante do princípio da legalidade e da tipicidade. Se não se pode garantir uma
univocidade de significados, como atingir a certeza e previsibilidade do conteúdo de uma
legislação, e consequentemente, das obrigações tributárias? Como antecipar quais serão os
ônus fiscais da empresa que lançou o livro em CD ROM?
É como Dworkin afirma quando em estudo o “convencionalismo” ou “teorias
semânticas” 90 como técnica de interpretação jurisdicional. Em observação à realidade
americana, Dworkin reúne, nessa corrente interpretativa, as escolas de pensamento que tentam
corrente “unilateralista” (SAMPAIO, 2005, 96 e ss.) argumenta que os direitos e deveres tangentes à relação servidor-Estado são derivados de leis vigentes e elaboradas unilateralmente pelo segundo. Dessa forma, também a alteração de eventuais condições e privilégios também podem ocorrer por meio de um instrumento legal e unilateral. Não fosse bastante, Sampaio (2005, p. 99 e ss.) indica uma terceira corrente “mista”, que incorpora algumas nuances de ambas anteriores. Assim, a corrente mista desconsidera eventual proteção à expectativa de direito, mas protege o direito adquirido, ainda que este ainda não tenha sido usufruído. Entretanto, a mesma corrente admite hipóteses excepcionais de se flexibilizar também o direito adquirido, quando ocorre uma gritante violação à justiça constitucional. Observem como um único instituto possibilita uma variedade de concepções distintas quanto ao seu conteúdo. Mais uma vez, não pode determinar, de antemão, quais serão as repercussões de uma aplicação da proteção ao “direito adquirido”. Tanto o é, que quando do julgamento das ADIN’s 3105 e 3128 (DJ 18/02/2005) referentes à inserção, pela EC 41/2003 da cobrança de contribuições previdenciárias de servidores públicos inativos – temática ligada à legislação fiscal e à relação servidor/Estado – referida proteção ao direito adquirido foi francamente ignorada pelo Supremo Tribunal Federal, permitindo de forma ampla a cobrança das exações correspondentes. Ora, mas caso fosse observado o engessamento dos conteúdos normativos em sede de termos lingüísticos a posição aderida pelo STF não seria a mesma, pois conservaria uma pretensa materialidade antevista pelos contribuintes consistente na impossibilidade de realizar retroações. 90 O autor apresenta uma sutil diferença entre as duas classificações, pouco importante para o presente estudo. (DWORKIN, 2003, p. 144)
131
pautar o direito unicamente (!) em uma construção escrita e anterior ao intérprete – no nosso
caso, a lei positivada.
Aponta o autor o argumento a favor do convencionalismo, aproximando sua obra dos
argumentos da tipicidade e previsibilidade tributárias:
O sistema convencionalista é melhor porque a eqüidade requer que o povo seja informado quando seus planos possam ser interrompidos pela intervenção do poder de Estado, privando-o de liberdade, propriedade ou oportunidade. Intervenções desse tipo só se justificam quando as ocasiões de intervenção tiverem sido anunciadas com antecedência, de tal modo que os que ouçam possam saber e entender (DWORKIN, 2003, p.171)
Mas, esclarece Dworkin em comunhão com nossa crítica que “não importa quão
explícitos sejam esses procedimentos convencionais, ou quão escrupulosamente venham a ser
usados, casos vão surgir, como os que usamos em nossos exemplos, nos quais as instruções
serão vistas como obscuras ou incompletas” (DWORKIN, 2003 p. 171-172).
Diante disso é que também não aceitamos a justificativa de que basta a expedição de
outros atos normativos para exaurir eventuais dúvidas que forem surgindo em razão das
legislações ou súmulas anteriores. Isso não é suficiente. Afinal, também quando em confronto
com essa nova legislação, os intérpretes terão diferentes entendimentos acerca da mesma.
Necessitará então de uma terceira lei para esmiuçar ainda mais seu conteúdo. O mesmo
ocorrerá. E assim por diante. É um ciclo infindável.
O que se deve ter em mente é a impossibilidade de o legislador antecipar as diversas
interpretações de uma norma legal, ou ainda os casos concretos que existirão no mundo fático.
Inexiste a faculdade de um texto legal conseguir abranger todas as situações que estão por vir.
Até mesmo porque não consegue o mesmo representar e descrever a realidade a qual se
tentará aplicá-lo.
A única conseqüência concreta que se pode observar dessa compulsão legislativa que
tenta, por meio da utilização de inúmeros atos legislativos, exaurir por completo o conteúdo
das normas, é a inflação legislativa que hoje contamina, principalmente, o Direito Tributário.
A quantidade de leis, portarias, decretos, etc., ao invés de possibilitar um maior
conhecimento do conteúdo das normas tributárias e garantir seu conhecimento por parte dos
contribuintes para que os mesmos possam gozar da previsibilidade tão enaltecida, apenas
dificulta sua compreensão por parte de profissionais e demais particulares. Distancia nosso
sistema jurídico ainda mais da univocidade e da segurança jurídica pleiteada.
Alfredo Becker, dissertando acerca desse “manicômio tributário” ressalta que
132
A lei é promulgada e ambos os Ministérios supõem que o problema foi resolvido e que a unanimidade e a harmonia na interpretação da lei fiscal entre os dois Ministérios permanecerão. Pura ilusão. Em todos os tempos e em todos os Estados os Ministros sempre tardam muito em baixar do plano olímpico das abstrações, em descer dos problemas abstratos e das soluções abstratas. E quando, passados muitos meses ou anos, finalmente seus pés tocam a terra dos homens, ficam perplexos e irritados ao verem que o antigo problema continua insolúvel e que aquela perfeita solução abstrata é um novo perfeito problema concreto. (BECKER, 1999, p.15) (grifos nossos).
Resta concluir, dessa forma, a pouca eficácia que a tipicidade fechada, e a busca por
um exaurimento legislativo, face o objetivo de segurança jurídica e previsibilidade das
obrigações fiscais. Os direitos fundamentais de primeira geração, instrumentalizada nesses
pressupostos, permanecem distantes com tal postura hermenêutica. Será, porém, que a
descrição legislativa logra as propostas decorrentes das demais dimensões de direitos
fundamentais?
133
CAPÍTULO V – OS DIREITOS DE SEGUNDA DIMENSÃO E A TR IBUTAÇÃO
5.1 O Estado e os direitos sociais
Não obstante a estruturação social da sociedade burguesa – propícia e propulsora da
então iminente Revolução Industrial – parecesse correta, a concretização no mundo empírico
não se deu da maneira ansiada, acarretando a destruição dos próprios pilares do liberalismo.
Dessa forma, a inércia estatal, ao invés de possibilitar a livre concorrência e autonomia
individual/empresária tal qual deveria, acabou por ocasionar uma dominação do mercado pelo
poder do capital91. Em detrimento da liberdade concorrencial e consumerista, trustes,
holdings, cartéis e monopólios desestabilizavam e enfraqueciam as condições e existência de
empregos. As condições fáticas esboçadas pelo papel isolado da autonomia da vontade
resultaram na própria limitação da liberdade individual.
Não se pode negar que se tratou de período de intensa produção e acumulação de
riquezas. Entretanto, como os cidadãos partiam de pontos iniciais distintos não tinham a
possibilidade de competirem ou perquirirem seus direitos de maneira equivalente – a
igualdade formal implicava na exata igualdade de tratamento entre o grande industrial e o
proletariado, p.e. Por conseguinte, o cenário resultante do sistema liberal-capitalista foi uma
sociedade de intensa exploração da mão de obra – caracterizada pelas excessivas jornadas e
exploração infantil – desemprego, degradação social, miséria e exclusão. “A materialização
resulta do fato de que ‘a liberdade de direito, portanto, a permissão jurídica para fazer ou
deixar de fazer algo não possui nenhum valor sem a liberdade de fato, ou seja sem a
possibilidade de escolher entre aquilo que é permitido...” (HABERMAS, 2003b, p. 140)
Crítico dessa forma de estruturação social, Godoi (1999, p. 211) conclui que um
sistema jurídico como o apresentado, que impossibilita a todos os indivíduos uma igualdade
concreta de perseguir seus projetos e aspirações pessoais, não é um sistema jurídico legítimo.
Nesses casos, é obrigação do Estado se utilizar de instrumentos modificadores das
arbitrariedades privadas e desigualdades provocadas.
91 “A concepção de um liberalismo atomista, de liberdade do indivíduo no âmbito do mercado, veio a ser desmentida pela realidade histórica. A partir de meados do século XIX o capitalismo se transforma. As unidades se unem, formando grupos, dando origem ao novo Estado industrial. Com os grupos econômicos surgem os primeiros questionamentos sobre a plena liberdade de comércio.” (LEOPOLDINO DA FONSECA, 2004 p. 257).
134
Ainda que cientes de que as palavras proferidas por Fidel Castro têm por referência a
conduta norte-americana em outro momento histórico, poder-se-ia facilmente compreendê-las
como ilustração da crítica que o Estado social direciona ao seu modelo precedente: “nunca lhe
importou a miséria, a ignorância, a insalubridade, a falta de escolas, de hospitais, de serviços
médicos, nunca lhe importou, realmente, o desemprego...” (tradução nossa)92
(CASTRO,1985, p.06).
É única a conclusão de Magalhães:
esse liberalismo utópico do século XVIII, que afirma a neutralidade do Poder Público diante dos problemas sociais, conduziu os povos livres a um capitalismo absorvente, desumano e escravizador. A sociedade fica reduzida a uma comunidade de cidadãos teoricamente livres e materialmente escravizados (MAGALHAES, 2002 p.131)
Em que pese a crítica ao modelo liberal ser mais enfática no início de século XX, não
se pode deixar de reconhecer alguns autores que, desde o século XVIII, previam a ineficácia
dessa forma de pensar a abstenção estatal.
Ainda que ordinariamente classificado como um pensador liberal em razão de
contemporaneidade ao século das luzes, Rousseau já lançava lampejos de insatisfação perante
a escravidão do modelo capitalista burguês. Também não concebia a idéia de um homem que
bastasse em si mesmo, enclausurado em sua própria racionalidade tal qual apregoado à época.
Bonavides chega a caracterizar este filósofo genebriano como uma “arma de combate (que)
constitui o primeiro incentivo à grande rebelião anticapitalista do século XX” (BONAVIDES,
1993 p. 165) (acréscimo nosso).
A corroborar a assertiva do constitucionalista, na obra rousseauniana “Contrato
social”, o filósofo expressa todo seu receio acerca da igualdade formal burguesa: “Sob os
maus governos esta igualdade é só ilusória e aparente, e não serve senão para manter o pobre
na sua miséria e o rico na sua usurpação” (ROUSSEAU, 1970, p. 57).
E, mais adiante, prossegue em sua crítica à exacerbação da autonomia individual e
acumulação de riquezas excessivas, percebendo a necessidade de provimento de condições
mínimas aos cidadãos, até mesmo para a sobrevivência da democracia: “...e quanto à riqueza,
que nenhum cidadão seja bastante opulento para poder comprar o outro, e nenhum tão
paupérrimo para necessitar vender-se.” (ROUSSEAU, 1970 p. 88).
92 No original:“nunca le importó la miseria, la ignorancia, la insalubridad, la falta de escuelas, de hospitales, de servicios médicos, nunca le importo, realmente, el desempleo...”
135
Se surpreende a quase profetização da falácia liberal por parte de Rousseau – que não
presenciou as conseqüências devastadoras do capitalismo burguês –, com o aparecimento dos
primeiros sinais de esgotamento da perspectiva liberal, várias foram as movimentações
ideológicas em torno de uma nova visão de sociedade.
Anarquistas, socialismo utópico93 ou socialismo cristão (encíclica Rerum novarum do
Papa Leão XIII em 1891), não faltavam críticas ao modelo vigente cujas conseqüências
feriam os olhos dos observadores.
Multiplicam-se os defensores das reformas e surgem os que vislumbravam a possibilidade de um mundo diferente para melhor. Melhor porque todos os homens seriam iguais, sem exploração e sem opressão de uns sobre os outros, baseada que seria na solidariedade ou no cooperativismo e não no individualismo ou na propriedade privada. Eram os que viriam a ser chamados por Marx (2001) e Engels (1985) socialistas utópicos. (SAMPAIO, 2004 p. 212)
Com efeito, impossível percorrer o surgimento das idéias sociais sem mencionarmos o
nome de Karl Marx, pensador que vivenciou pessoalmente as mazelas geradas pela Revolução
Industrial na Inglaterra (BARBER, 1976, p. 120-121).
Com maior “dimensão de realidade” (para o momento político do século XIX) acerca
do fenômeno social, Marx defendia que o capitalismo seria seu próprio algoz, uma vez
inevitável a insustentabilidade do quadro que criaria, e de fato criou. Não contava o autor,
porém, com a dinamicidade e alta capacidade de adaptação que o sistema por ele combatido
acabou por apresentar.
De toda forma, este revolucionário pensador dicotomizou os conflitos que, de certa
maneira, refletiam o exacerbado fosso social, resumindo sua análise em um embate de classes.
Contemporaneamente a essas idéias, o crescimento de movimentos operários e de
camponeses famintos exigindo garantias de direitos mínimos, conjugados com a
universalização do sufrágio, inflaram os ânimos sociais e impulsionaram uma reviravolta no
quadro dos direitos fundamentais.
93 “O socialismo utópico, de pensadores como Charles Fourier, Robert Owen e Louis Blanc, também questionavam o liberalismo, considerando-o incapaz de resolver a questão social, mas não propunha, como solução, que os proletários tomassem o poder pela força, parecendo acreditar na possibilidade de convencimento da burguesia da necessidade de promoção de reformas sociais, esta corrente, apesar do seu idealismo algo inocente, desempenhou um papel relevantíssimo na criação do Direito do Trabalho. Já a doutrina social da Igreja, embora discordando radicalmente da idéia marxista de luta de classes, abria-se para a questão operária, defendendo instituição de direitos mínimos para o trabalhador” (SARMENTO, 2004 p. 386-387).
136
É importante, porém, destacar que essa nova gama de conquistas não significou a
negação do capitalismo ou mesmo dos direitos individuais consagrados pelos liberais. Refuta-
se essa possibilidade pela assertiva contrária.
Em realidade, a modificação no quadro político e sócio-econômico representou a
adoção de uma via capaz de sustentar e revigorar um sistema que já apresentava sinais de
exaustão. Dessa forma, a atenuação do individualismo presente, seja nos direitos
fundamentais, seja na condução econômica, foi uma tentativa bem sucedida de sobrevida ao
capitalismo, que diante da Revolução Russa de 1917 percebeu-se ameaçado de extinção. Não
houve a sucumbência do Estado liberal entre as demandas sociais, e sim sua transmutação em
Estado social!
Tal interligação se mostra tão expressiva que, a título de exemplo, a primeira
legislação de conteúdo intervencionista se deu com o desiderato de garantia dos ideais liberais
de concorrência (Lei Sherman/1890).
Este raciocínio se estende a todos os direitos sociais perante aqueles de primeira
geração/dimensão, o que reforça nosso pensamento acerca da indivisibilidade94 dos direitos
fundamentais. Afinal,
... para que realmente os direitos individuais pudessem ser usufruídos, deveriam ser garantidos os meios para que isso fosse possível. Dessa forma, se o liberalismo proclama a liberdade de expressão e de consciência, deve toda a população ter acesso ao direito social à educação, para formar livremente sua consciência política, filosófica e religiosa [...] Portanto, os direitos sociais aparecem como mecanismo de realização dos direitos individuais de toda a população. (MAGALHAES, 2002 p. 46)
Desponta o surgimento, então, de um novo conjunto de direitos que vêm
complementar a geração anterior e impor uma reconstrução de seus conteúdos. Se antes eram
encontrados direitos de titularidade meramente individual, novas garantias pertencentes a toda
a coletividade passam a residir nesta esfera de direitos. A partir de então não apenas o cidadão
isolado poderia demandar alguma postura de outrem, mas também os grupos sociais veriam
seus interesses garantidos.
Isso significa que, diante da ineficácia da abstenção estatal, este percebeu que não
mais poderia quedar inerte. Passaria o Estado a garantir uma série de prestações positivas com
intuito de suprir as necessidades vitais básicas que o sistema burguês não logrou êxito. Não
94 “Assim, com o passar do tempo foi se consolidando a convicção de que, até para o efetivo desfrute dos direitos individuais (liberdade negativas) era necessário garantir condições mínimas de existência para cada ser humano (liberdades positivas)” (SARMENTO: 2004 p. 387)
137
mais poderia manter sua anterior posição de “um simples árbitro das competições econômicas
destinada a garantir aos vencedores os frutos de uma luta socialmente desigual” (GRAU,
2000, p. 21).
É interessante como este engrandecimento das funções e importância estatal Estado é
refletido e embasado nas doutrinas filosóficas que começavam a despontar.
Muito embora Georg W. Friedrich Hegel tenha vivido nos anos em que a construção
filosófica dos Estados liberais burgueses mais ganhava força no Velho Mundo (1770-1831), o
desenvolvimento de suas teorias e de sua concepção de Estado são amostras de um
pensamento que iria se coroar justamente no Estado Social, algumas décadas à frente – mais
uma comprovação de que os momentos paradigmáticos não se desenrolam de forma estanque
e perfeitamente pontuada no tempo-espaço.
Contemporâneo à racionalidade exacerbada pela filosofia da consciência, Hegel não
abandona a razão prática kantiana intimamente ligada aos ideais liberais vistos no capítulo
antecedente, nem mesmo se desvencilha do ideal de um Direito consubstanciado nas normas
legais e positivadas (HEGEL,1997, p.183 e ss.)
Todavia, ainda que conservando tais elementos do constitucionalismo burguês, este
filósofo alemão constrói seus pensamentos de forma a se opor, frontalmente, à relação
cidadão/Estado apresentada no constitucionalismo liberal. Nessa toada, Hegel tenta realizar
um giro na dialética existente entre as esferas pública e privada, fazendo com que o Estado
deixe de ser mero elemento de garantia da individualidade, para que esta se torne subordinada
à consagração dos interesses públicos. Este é o ponto que mais o traz em ligação com a
caracterização do paradigma social em estudo.
A posição anteriormente esboçada pelos teóricos burgueses de mera observância dos
anseios particulares não conseguia explicar, em sua visão, a complexidade das relações
sociais constatadas na interação existente entre os indivíduos situados dentro de um corpo
coletivo. Daí o autor classificar a prevalência dos interesses individuais como uma postura
“autodestrutiva” da liberdade tão clamada pelos revolucionários franceses (PADUANI, 2005,
p. 77). Não se pode afirmar que Hegel se equivocara em seu prognóstico. Conforme
desenvolvido supra, de fato, a exaltação ilimitada da autonomia e interesses individuais,
conjugada com a inércia estatal culminaram em uma realidade que, não obstante tenha a
liberdade garantida como direito absoluto, as condições fáticas determinavam seu próprio
estrangulamento, em uma direta negação aos princípios do liberalismo – vide a liberdade de
concorrência e a liberdade contratual entre patrões e empregados, ambas reduzidas a um jogo
de força cujo o detentor de maiores recursos dita as regras.
138
Diante desse quadro de decadência da organização jurídica e estatal, Hegel percorreu
caminho bem diverso de seus contemporâneos. Assim, ele inverte a ordem de prioridades
dentro das esferas de interesses públicos e privados, colocando os primeiros com uma
premência necessária para a sobrevivência não apenas da instituição estatal, mas também para
a própria satisfação do particular, agora compreendido como membro de um
universo/grupamento maior e transcendente à sua individualidade:
Hegel contrapõe a uma concepção privatística do direito uma concepção pública, a uma teoria do direito como princípio de organização. E cumpre este passo adiante na elaboração do sistema jurídico precisamente porque se dá conta da insuficiência de uma imagem do direito extraída das relações de direito privado para representar a complexidade do Estado moderno (BOBBIO, 1991, p.91)
Neste novo cenário de supremacia do interesse público sobre o privado (qualquer
semelhança com os princípios administrativos não é mera coincidência), o Estado Social,
aqui antevisto nas idéias de Hegel, ganha novo destaque. Ele deixa de ser um apêndice às
relações privadas, para se tornar o foco do interesse e preocupação do Direito.
Isso porque, para Hegel, o Estado não é um simples agrupamento de indivíduos, mas
algo superior à soma de vários elementos antes isolados, anterior e superior a eles, e portanto,
identificado como a representação de uma eticidade universal95. Tanto o é, que tanto Estado
como Constituição devem, para ele, representar o conjunto de costumes, valores, ideais e
particularidades de seu povo respectivo.
Ora, mas se para o autor o Estado passa a ser o centro gravitacional a partir do qual
todos os demais interesses deveriam convergir, começa a se tornar fácil o entendimento da
idéia de sacrifício dos direitos e anseios particulares em benefício de uma articulação pública,
afinal, o ente público passa a ser ao mesmo tempo, fundamento e fim, para qual convergem
todas as vontades. Sua afirmação da prevalência do público sobre o privado se inflama ao
ponto de afirmar que, caso não seja observada tal supremacia, será constatado o próprio
desaparecimento do Estado96.
95 Salgado faz estudo minucioso acerca do filósofo alemão, e leciona que “o Estado é, então, o momento de superação (Aufhebung) da sociedade civil, superior, enquanto a sociedade civil permanece imersa no confronto das necessidades econômicas em que prevalece o interesse particular de cada um , o Estado organiza-se como realização da liberdade, fim supremo de cada um. Desse modo, não pode ser compreendido como organização destinada a garantir a ‘propriedade e liberdade pessoal’. Essa é a liberdade como pessoal no nível simplesmente do direito abstrato, ou a liberdade como livre-arbítrio a todos reconhecida na sociedade civil e anteriormente, no Estado de direito. Entretanto,no Espírito objetivo, o indivíduo só tem ‘objetividade, verdade e moralidade’, só é indivíduo livre e real na medida em que participe do Estado, considerado como seu fim e destino, a que todas as demais satisfações individuais se subordinam” (SALGADO, 1996, p.400) 96 Por óbvio, Hegel não discursa por uma sufocação completa dos interesses individuais. Seu argumento caminha por uma trilha diversa. Ele reconhece a liberdade particular – e até lhe dá bastante crédito – mas afirma que
139
Quando a organização política perde a natureza pela qual é o fim supremo a que se subordinam todas as particularidades e interesses individuais ou quando o Estado de fim passa a ser meio para as satisfações desses interesses, nas suas relações empíricas, então não há mais Estado [...] não é mais um Estado a organização em que o interesse particular ou os privilégios se consagram ou predominam sobre o interesse comum e sobre os direitos de igualdade inscritos no racional fundamento da humanidade (SALGADO, 1996, 403) (grifos nossos)
Reparem como que, com isso, os direitos materiais que antes estavam garantidos de
forma absoluta no constitucionalismo anterior passam a sofrer revisão. A defesa da liberdade
e propriedade, por exemplo, antes na base do pensamento burguês, passam a ter sentido
unicamente se adequadas às finalidades do interesse público. Não é problemática a relação
desta teoria com a idéia de função social da propriedade. Ao bem da verdade, é exatamente
essa a pregação da observância da utilização da propriedade com vistas ao contexto público e
social.
Outro ponto da tributação do Estado social que se coaduna com o pensamento
hegeliano é a observância de uma capacidade contributiva material. Ainda que representando
uma diminuição no patrimônio particular (antes inadmissível!), a exação tributária torna-se
legítima, desde que fundamentada na satisfação dos interesses públicos, p.e., a igualdade
substancial. Afinal, a plenitude da propriedade privada e a consagração da liberdade somente
conseguem ser verificadas caso os interesses privados se mostrem condizentes com a
observância dos interesses do Estado!
Mas não apenas! Com a maximização do Estado, que agora deveria suprir todas as
demandas sociais, antes ignoradas pelo constitucionalismo liberal, a atividade prestacional
pública atingiu seu ápice. E, com isso, o espaço que o interesse público ocupou dentro do jogo
social, o que por sua vez significou um inchaço ainda maior da máquina estatal!
Observem como Bonavides leciona de forma elucidativa e detalhada o
engrandecimento do papel do Estado no que tange sua relação com a sociedade antes
absoluta:
apenas quando o cidadão age em conformidade e em atenção às finalidades de “algo maior” ele consegue atingir plenamente tal liberdade. Assim, ele tenta conjugar as esferas pública e privada, para que, com a supremacia da primeira, seja a segunda, indiretamente, alcançada. Em suas palavras: “Na verdade, não deve o interesse particular ser menosprezado e suprimido, mas sim, conservado em harmonia com o interesse geral para que, assim, um e outro sejam assegurados. O indivíduo que está subordinado pelos deveres, no cumprimento deles como cidadão obtém a proteção de sua pessoa e da sua propriedade, o respeito pelo seu bem particular e a satisfação da sua essência substancial, a consciência e o orgulho de ser membro do conjunto”. (HEGEL, 1997, p.213).
140
... quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência pelo quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, pode o Estado, com justiça receber a denominação de Estado social97 (BONAVIDES, 1993 p. 182).
Os textos constitucionais tidos como precursores de previsão dos direitos sociais98 se
materializam na Constituição Mexicana de 1917 – com forte influência do pensamento
anarquista de Bakunin – e a Constituição de Weimar de 1919.
Essa última, com maior projeção em relação à primeira, era extremamente incisiva na
mudança de postura. Seu artigo 153 prescrevia que a “propriedade obriga”, impondo assim,
uma preocupação social com a coletividade na fruição dos direitos individuais. Esses direitos
antes tidos por absolutos na esfera individual, tal qual a propriedade, não mais poderiam ser
gozados sem a preocupação e adequação com seu contexto social. É o mesmo entendimento
trabalhado por Hegel.
Inseridos nesse conjunto de “inovações” sociais, dois merecem destaque.
Intimamente ligada à noção de função social da propriedade mencionada na
Constituição alemã de Weimar, a igualdade entre os cidadãos sofreu significativa
reformulação. Se anteriormente bastava a igualdade aritmética, os direitos sociais irão
vislumbrar os indivíduos preocupados com suas diferenças. É o velho brocardo jurídico
“tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais”.
Para efetivar a igualdade tal qual propalada, cabia ao Estado – e também à sociedade,
embora tal construção não estivesse à época bem definida – o fornecimento de instrumentos
capazes de possibilitar a manutenção das condições básicas da vida humana.
Passa a imperar uma busca por uma igualdade substancial, em que o tratamento
equivalente entre pessoas distintas é objeto de uma profunda revisão material. A concepção de
97 Justamente em razão desta gama de direitos que agora passam a pertencer à esfera estatal, surgem, permeando as constituições sociais,teorias de fundamentação duvidosa que ainda hoje habitam as discussões jurídicas, tais como “reserva do possível”, ou mesmo normas constitucionais de “eficácia diferida”, ou “normas constitucionais programáticas”. 98 Cumpre referenciar, entretanto, a posição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem “ o principal documento da evolução dos direitos econômicos e sociais foi a Constituição francesa de 1848” (FERREIRA FILHO, 1999 p. 45). Ocorre que, não obstante a modificação do cenário liberal para o social tenha se dado de forma gradual – já afirmamos a historicidade que os direitos fundamentais carregam consigo – costuma-se pontuar cronologicamente a I Guerra Mundial juntamente com a crise da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, como símbolos da derrocada do sistema liberal e o aparecimento de constituições sociais.
141
isonomia abandona a equivalência de tratamentos, e se foca no resultado final, momento em
que a igualdade deveria efetivamente ser alcançada. É onde o Estado passa a atuar de forma
ativa da alteração dos quadros sociais através de uma atuação assistencial e paternalista na
prestação de serviços públicos (saúde, educação, etc).
Paralela à ilação acima é a posição de Comparato, que ao comentar a Constituição de
Weimar pós-guerra defere à mesma “uma orientação determinada na política de investimentos
e de distribuição de bens; o que implica uma intervenção estatal no livre jogo do mercado e
uma redistribuição de renda pela via tributária” (COMPARATO, 2001 p. 200) (grifos nossos).
Noutro ponto, cumpre ressaltar a nova postura de participação ativa do Estado no
desenvolvimento econômico.
Conforme já tratado anteriormente, a concepção de liberalização econômica, apoiada
na crença da auto-regulação do mercado e da economia e consubstanciada no laissez-faire
laissez-passer não alcançou o êxito pretendido. Seu fracasso não se ateve unicamente no
campo econômico, uma vez suas conseqüências irradiarem para o colapso social em que
adentrou a Europa e América no século XIX.
Por conseguinte, passou-se a perceber a importância que o aspecto econômico de uma
sociedade apresentava para a concretização dos direitos fundamentais. Não mais era
admissível a postura de coadjuvante estatal. A entidade pública deveria assumir a
responsabilidade de atuar no mercado econômico com fulcro de não permitir o abuso do
poder financeiro e o conseqüente desvirtuamento dos direitos fundamentais tal qual se dera no
lapso temporal liberal.
Garantidor da ordem econômica, o Estado – não confundir com monopólio econômico
estatal, este caracterizador dos Estados socialistas – alcança papel de concretização dos
direitos previstos, e também modificação da realidade posta99.
Nesse contexto, emerge o pensamento keynesiano, promessa de modificação no
cenário sócio-econômico com uma atuação responsável do Estado. Tendo como pano de
fundo uma caótica Europa entre Guerras, Keynes se esforçou em se afastar das radicais
críticas marxistas acerca dos desacertos capitalistas. Segundo ele, o núcleo central do sistema
capitalista poderia facilmente ser preservado. Mas para isso, deveria o Estado largar sua
99 Dando uma guinada no pensamento econômico, Keynes volta à doutrina mercantilista de acumulação de capital. É mérito seu a introdução de novos elementos para o cálculo das taxas de juros, como p.e. a especulação, facilmente detectável na atual economia. Keynes se preocupava com a estabilidade econômica a curto prazo, utilizando-se do jargão “a longo prazo todos morreremos”. Justamente por isso, conjugado com sua preocupação com a poupança, taxa de juros e especulação, esse notório economista não concebia a inércia estatal quanto a econômica nos termos defendidos pelos liberais.
142
posição distante da realidade do mercado, uma vez a desregulamentação ser contrária à
empregabilidade e estabilidade da economia100.
Sua crítica ao “laissez faire” se pautava no argumento de que um mercado
desregulado era inevitavelmente instável. A abstenção estatal não apenas deixava de trazer
benefícios, mas poderia ser entendida como um vício social. Keynes, percebendo a
importância dos tributos extra-fiscais no andamento da economia, chegou a afirmar que
diante de flutuações, “os remédios da política fiscal seriam mais eficientes que os da política
monetária” (BARBER,1979, p.224).
A presença da figura pública no cenário econômico para a geração do
desenvolvimento financeiro e social foi de importância ainda maior em países de
desenvolvimento tardio que, pela sua própria condição retardatária, necessitavam de um
maior auxílio estatal para a contenção das externalidades econômicas. A Itália, denotadora de
uma progressão econômica recente, percebeu, após a II Guerra, a necessidade de criar, em
1956, o “Ministério da Participação Estatal”, responsável por realizar um controle direto
sobre o mercado privado, a política governamental e as empresas públicas. Seguindo a
mesma “fórmula interventiva” foi criado, ainda, o “Instituto de Reconstrução Industrial”,
além de outros entes ligados ao incentivo de setores específicos da economia.
Os resultados? Deixamos para Souza (1999, p.74) constatar: “o valor da produção
industrial triplicou entre 1938 e 1961, sendo que ela duplicou somente nos anos de 1950. a
causa desse rápido crescimento, conhecido como milagre italiano, deveu-se ao Plano
Marshall e à participação do Estado na economia”.
Da mesma forma, é possível situar a economia brasileira em um cenário de
desenvolvimento retardatário, o que demonstra como as argumentações ora realizadas não se
restringem às latitudes acima da linha do Equador.
Até a ascensão do governo Vargas, no início do século XX, a postura governamental
brasileira seguiu, predominantemente, a visão liberal, mantendo-se timidamente distante da
regulação econômica (RIANI, 1997, p. 42). Entretanto, com o caminhar da década de 1920
para 1930, em combate com as conseqüências da queda da Bolsa norte-americana em 1929, o
100 “Keynes já se tinha dirigido a essa conclusão em meados da década de 20, com o reconhecimento de que o laissez faire convencional era inadequado aos problemas crescentemente complexos das sociedades industrializadas [...] sua educação profissional tinha-lhe ensinado a respeitar as forças analíticas do neoclassicismo e advertira-o quanto às fontes de seu poder de permanência. Como estrutura lógica elegante, o neoclassicismo apresentava um encanto indubitável; não obstante, o sistema neoclásico (que, na Teoria Geral, ele chamou de ‘teoria clássica’ representava ‘a maneira em que gostaríamos que a Economia se comportasse. Mas supor que ela realmente faz isso é supor que nossas dificuldades desapareceram’ [...] sua argumentação buscava mostrar que um sistema de mercado não-regulado tendia a ser cronicamente instável e incapaz de garantir a plena utilização dos recursos produtivos. ” (BARBER, 1979, p. 220; 239).
143
Estado passou a atenuar a frieza das regras econômicas, comprando o café produzido para
posteriormente queimá-lo e assim manter a estabilidade de renda no sistema econômico
(SOUZA, 1999, p.380). Muito embora a postura visualmente diminuta, a intervenção do
Estado frente a crise ensaiada no período despertou seu interesse de forma determinante para
o desenvolvimento da industrialização brasileira e sua diversificação econômica.
Dois episódios, porém, marcaram o envolvimento mais direto do governo na economia nesse período. O primeiro refere-se à criação do Conselho Federal do Comércio Exterior, composto das principais expressões econômicas da época que procuravam traçar medidas de políticas econômicas visando à intensificação do comércio exterior e ao desenvolvimento industrial do país. O segundo episódio que marca definitivamente a intervenção ou a participação direta do governo na economia foi a criação da Cia. Siderúrgica Nacional. [...] Esse processo de intervenção teve seu ponto máximo de envolvimento após a revolução de 1964. Dentro do modelo implantado, o Estado passa a exercer um papel-chave dentro do processo de crescimento. Ele se torna a mola propulsora do crescimento (RIANI, 1997, p. 43-44) (grifos nossos)
Conforme visto nas linhas antecedentes, a aparição do Estado pode ser compreendida
como uma intervenção no domínio econômico em combate aos abusos e distorções do sistema
capitalista desregulado. Entretanto, sua eficácia não reside neste único aspecto.
Outra postura estatal determinante na modificação do status quo é a possibilidade de
conduzir ou conformar posturas privadas capazes de resultar em uma otimização dos direitos
sociais. Ou seja, através de instrumentos de caráter nitidamente econômicos, o Estado
consegue modificar os comportamentos dos cidadãos para que estes auxiliem na efetivação de
direitos fundamentais. A soberania estatal e seu aparato coercitivo podem ser alocados no
direcionamento das próprias atitudes dos administrados.
Nessa toada, é exemplo a imunidade tributária concedida a instituições de assistência
social que auxiliam na tarefa de concretização de direitos como educação, saúde, alimentação,
lazer, dentre outros. Nesses casos, há o incentivo e a facilitação àqueles que querem atuar em
conjunto com o poder público na prestação de serviços sociais conquistados pelo
constitucionalismo no início do século XX.
No plano do atual sistema jurídico brasileiro, lê-se na Constituição de 1988:
Art. 174- Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
144
No que tange à matéria em análise, o constituinte, ao prever a possibilidade de
intervenção pública com escopos de maior desenvolvimento, se demonstra alinhado com o
próprio cenário internacional, conforme bem ressalta Clark:
O Direito ao Desenvolvimento, que faz parte dos Direito Humanos dos Povos, é determinado pela carta de Direitos e Deveres dos Estados da ONU (Resolução n. 45.111, editada em 1972), que aponta o direito das nações em desenvolvimento, ou melhor, do Terceiro Mundo, de se desenvolverem – respeitadas suas soberanias – por meio de intervenções no domínio econômico e social, além de receberem ajuda internacional das nações desenvolvidas. (CLARK, 2001 p. 198)
Se foi possível a remissão a Hegel para exemplificar as razões jusfilosóficas que
impulsionaram o agigantamento de uma Administração Pública prestacional caracterizadora
do Estado social, também no campo hermenêutico pode-se destacar o desenvolvimento de
obras que visavam modificar a forma de perceber e interpretar o Direito no anseio de melhor
adeqüá-lo às nuances do Estado social que estava a surgir.
Situado nesta gama, Carl Schmitt elaborou sua teoria do Estado calcado em certa
continuidade dos ensinamentos hegelianos, principalmente no papel preponderante que aquele
detinha junto à relação público/privado. Assim como Hegel, Schmitt parte da crítica à
concepção burguesa de um ente estatal subserviente às vontades particulares, e por isso,
excessivamente controlado pela sociedade. A visão de uma obediência cega e respeito
absoluto a direitos subjetivos individuais tal qual outrora trabalhado serviria unicamente para
a manutenção do status quo, em detrimento do fortalecimento de um Estado capaz de
efetivar direitos e garantias a um leque muito maior de administrados.
Partindo dessa premissa, Schmitt se encontra no refluxo ao formalismo jurídico-
positivista. Para ele, o grande mal que adentrava nas raízes da hermenêutica formalista
desenvolvida pelo Estado burguês era a possibilidade de se legitimar qualquer espécie de
conduta ou conteúdo, desde que observado o rito de elaboração normativa. Conforme lembra
Bonavides (1996, p. 46 e ss.), é de se imaginar o absurdo que essa técnica interpretativa abre
ao se criar a possibilidade de se afirmar que uma legislação que se consubstancia em um
golpe de Estado possa ser, por razões formais, “estritamente legal”!
O distanciamento da realidade que marcava a forma de pensar o Direito positivado
implicava diretamente uma despreocupação com a “qualidade normativa”, noutros termos,
com a substancialidade, o conteúdo das leis que vinham a compor o ordenamento jurídico.
145
Em busca de uma solução para esse impasse dentro da teoria jurídica vigente, Schmitt
identificou a necessidade de se incrementar as normas legais de um elemento político, ligado
à representação da vontade material do Estado.
Schmitt critica o formalismo que caracteriza a concepção liberal de lei e propõe uma concepção política de lei. A concepção formal de lei é definida por Schmitt como um acordo dos órgãos legislativos competentes, dentro do procedimento legislativo prescrito. A compreensão da lei, entretanto, não poderia ser reduzida a essa concepção formal, principalmente porque possibilitaria ao legislador realizar tudo através da lei, mesmo que em afronta aos princípios do Estado de Direito [...] A concepção política de lei, em contraste com o Estado de Direito burguês, resulta da forma de existência política do Estado e de uma conformação concreta da organização do domínio. (BARACHO JUNIOR, 1999, 76)
Mas o desenvolvimento da hermenêutica política de Schmitt não se encerra na mera
repulsa ao formalismo jurídico. Extremamente conveniente para a existência de um ente
estatal massivo e presente tal qual o Social, o autor identifica uma prevalência absoluta do
Poder Executivo nas relações entre poderes, bem como na condução das interpretações
legislativas e constitucionais.
De forma similar à visão hegeliana, o constitucionalista alemão se mostra tendente a
identificar o Estado como um organismo representativo da homogeneidade dos valores sociais
vigentes em sua respectiva base populacional. A partir daí, ele passa a se perguntar quem tem
condições para tornar concretos os anseios e vontades da sociedade.
O Legislativo, apesar de ser a imediata fonte representativa da vontade popular, se
mostrava demasiadamente preso a interesses econômicos e partidários, uma vez o jogo
político significar, na prática, a representação de um grupo ou associação que elegeu seu
parlamentar respectivo.
Noutro lado, o Judiciário, “está submetido a determinações formais preexistentes,
quais sejam, a Constituição formal e a lei” (BARACHO JUNIOR, 1999, p.80).
Assim sendo, caberia ao chefe do Executivo a guarda e defesa do Estado
constitucional. Ao contrário dos demais poderes, o Executivo seria o único realmente
independente e alheio aos jogos e influências externas. Além do mais, em virtude do seu papel
de representante da unidade nacional e da homogeneidade social, ele é o único habilitado a
identificar, com precisão, qual a vontade popular a ser sanada pelo Estado.
Munido dessas idéias, e partindo da cisão entre Constituição formal (escrita) e material
(substantiva) – próxima à dualidade platônica ideal/real (CRUZ, 2004, p.108) – Schmitt
elabora entendimento no sentido de que, muito embora haja um texto constitucional
146
positivado, apenas o Füher, o chefe do Poder Executivo é legitimado para afirmar qual o
conteúdo a ser interpretado do texto, e assim, determinar o sentido da Constituição material.
Noutros termos, apenas o chefe Executivo detinha o poder interpretativo da Constituição, e,
por conseguinte, a determinação do conteúdo da mesma residia em sua única vontade!
Não fosse bastante, Schmitt cria a atuação paralela entre os poderes Legislativo e
Executivo. Muito embora o autor reconheça o papel que o legislador detém em um Estado que
se pretenda democrático, ele aponta, juntamente ao “legislador ordinário”, a existência de um
“legislador extraordinário” corporificado mais uma vez no Poder Executivo. Dessa forma, o
Füher, pela sua discricionariedade, poderia estabelecer medidas quaisquer voltadas à proteção
da segurança e interesse público e gravá-las com o status de lei.
Em que pese possa o legislador ordinário editar leis, a lógica do Estado Liberal o separa do aparato necessário à aplicação, ao passo que o legislador extraordinário ratione necessitatis tem a faculdade de dar, a todas as disposições singulares que adotar, o caráter de lei. Em conseqüência, o presidente do Reich, ao invés de decretar normas gerais, pode promulgar instantaneamente e de uma maneira imediata uma ordem singular [...] Schmitt afirma a existência de uma supremacia do legislador extraordinário ratione necessitatis perante o legislador ordinário, pois o próprio legislador extraordinário é o árbitro sobre os pressupostos de seus poderes (BARACHO JUNIOR, 1999, p. 90)
É o direcionamento máximo do poder jurídico às mãos do Executivo, demarcando de
vez, a predominância do político sobre o Direito!
Reparem, porém, como essa construção hermenêutica e de teoria do Estado consegue
legitimar os mecanismos necessários para a sustentação de um Estado superdimensionado tal
qual se delineava com o paradigma social. Além do mais, a necessária conformação dos
interesses particulares aos objetivos publicísticos se torna a argumentação perfeita para
fundamentar o sacrifício de direitos antes tidos por subjetivos (p.e. propriedade) em benefício
de finalidades e compromissos agora presentes na esfera de obrigações estatais. Noutros
termos, sendo interesse público a intervenção do Estado na economia ou na sociedade, torna-
se também possível a supressão da propriedade, seja pela desapropriação (Direito
Administrativo), seja pela exação fiscal!
Assim, até mesmo em um nível de interação inter-estatal é possível identificar a
preocupação com um intervencionismo positivo ao foco de atingir todos os anseios sociais.
Após a delimitação, dentro do paradigma social, dos elementos mais marcantes ao
sistema tributário – igualdade material e intervenção do Estado no domínio econômico –, não
se possível isentar este texto da reflexão das palavras de Édis Milaré, que questiona o papel
147
dos cidadãos na construção de uma sociedade concretizadora daqueles ideais que proclama
buscar. É para todos o trecho a seguir:
Infelizmente somos herdeiros – e por vezes praticantes convictos – de um sistema ético mal elaborado ou, até mesmo, deformado. Crescemos orientados por preceitos de uma moral individual (para não dizer individualista). Damo-nos por honrados e probos se, nas relações interpessoais de nossa esfera individual, não nos apropriamos indebitamente dos bens de outrem ou não lhe fazemos violência. Saldar débitos, cumprir a palavra, não causar prejuízo são obrigações da quais, em rigor, não poderíamos vangloriar – são comezinhas. Se ficarem nisso, exclusivamente, e discursando a visão social, elas se revestem de certo caráter farisaico. A moral que nos falta – pensando em termos de ética do Bem Comum e Ética do Meio Ambiente – é aqueloutra menos conhecida e praticada: a moral de cunho e alcance sociais. (MILARE, 2004 p. 90)
5.2 A tributação em consonância com os direitos sociais
Um primeiro ponto a ser observado quando da realização de um estudo acerca do
sistema tributário e o surgimento dos direitos sociais de segunda geração, é a elucidação de
um eventual entendimento errôneo induzido pelo momento do surgimento do Estado Fiscal.
Ainda que, de fato, seja coincidente o nascimento de uma estrutura de receitas públicas
baseada na tributação e o insurgir das revoluções liberais, não se pode restringir o Estado
Fiscal ao modelo de Estado mínimo burguês.
Mesmo quando diante de um Estado Social, a prevalência de sustento do erário
público por meios fiscais se mantém. Consolida a argumentação o fato de Ricardo Lobo
Torres (2005, p.08) fazer uso da denominação “Estado Social Fiscal”.
Casalta Nabais, além de reconhecer a afirmativa supra, ainda faz a diferenciação:
... não se deve identificar o estado fiscal como estado liberal, uma vez que aquele, no entendimento que dele temos, conheceu duas modalidades ou dois tipos ao longo da sua evolução: o estado fiscal liberal, movido pela preocupação de neutralidade econômica e social, e o estado fiscal social economicamente interventor e socialmente conformador. O primeiro, pretendendo-se um estado mínimo, assentava numa tributação limitada – a necessária para satisfazer as despesas estritamente decorrentes do funcionamento da máquina administrativa do estado –, uma máquina que devia ser tão pequena quanto possível. O segundo, movido por preocupações de funcionamento global da sociedade e da economia, tem por base uma tributação alargada – a exigida pela estrutura estadual correspondente. (NABAIS, 2004 p. 194)
148
Nos termos já adiantados pelo autor lusitano, não obstante permaneça no paradigma
social a sistemática de Estado Fiscal, certas modificações na seara tributária podem ser
percebidas.
Não se poderia pensar de outra forma. As modificações e releituras dos conteúdos de
direitos fundamentais deram uma nova faceta para o perfil sócio-econômico das nações.
Conseqüência direta, também as concepções, crenças e instrumentos tributários refletiram
essa modificação.
No que tange às alterações provenientes da nova gama de direitos reconhecidos no
primeiro paradigma, dois pontos se mostram centrais para o campo fiscal: a nova acepção de
igualdade material e atuação estatal no domínio econômico como forma de concretização dos
demais direitos sociais.
5.2.1 Igualdade substancial e justiça tributária
O debate e indagações acerca de uma justiça igualitária e distributiva remetem a
Aristóteles em “Ética a Nicômaco” (2003, p. 108 e ss.). No entanto, foram os
questionamentos advindos da modificação do conteúdo igualitário, endossados pelos teóricos
dos direitos sociais, que repercutiram na utilização da tributação como forma de efetivação da
igualdade101.
Se, pelo plexo de direitos precedentes, a igualdade bastava-se no tratamento isonômico
perante a lei e excluía toda forma discriminatória, neste momento, com uma nova concepção
de igualdade concreta, o sistema tributário acompanha os ditames constitucionais e passa a se
atentar para as peculiaridades dos contribuintes. Noutros termos, a capacidade contributiva
passa a incorporar nova faceta, e consequentemente, desempenhar novo papel no campo
fiscal.
Abandona-se a idéia de generalidade e universalidade tributária tal qual entendida
anteriormente – consubstanciada na máxima de que todos, sem exceção devem contribuir para
com o Estado. E adota-se um conceito mais próximo de nossa aceitação, que implica o
101 Apesar do maior espaço adquirido com a conquista dos direitos de segunda geração, leciona Aliomar Baleeiro que há cerca de cinco séculos já se conhecia a possibilidade de utilização da tributação como forma de redistribuição de riquezas entre os indivíduos. (Cf. BALEEIRO, 1987, p. 179)
149
entendimento de generalidade tributária como sendo a não possibilidade de isenções em razão
de privilégios odiosos102, tais quais os do Ancièn Regime103.
Discriminações outras, porém, se tornam não apenas compatíveis com a nova
concepção de universalidade, mas sim exigidas. Nos termos já mencionados quando do estudo
da reconstrução conteudística da igualdade, tratamentos desiguais, desde que fundamentados
racionalmente, passam a ser instrumento de efetivação de uma nova acepção igualitária,
modificando, assim, a lógica do pensamento tributário até então dominante. Todo o estudo da
tributação - e consequentemente, da justiça tributária – deve se atentar para o contexto social e
concepções ideológicas, filosóficas e políticas vigentes.
5.2.1.1 O princípio da capacidade contributiva
Entendido como sendo a observância da capacidade econômica do contribuinte, o
princípio da capacidade contributiva é tido como sendo o maior reflexo e talvez o maior
representante de um tratamento isonômico substancial na esfera jurídico-tributária. De fato, se
temos por pressuposto a nova acepção de isonomia que passa a incorporar os ordenamentos
constitucionais em uma análise individualizada das peculiaridades dos diversos indivíduos
para um tratamento condizente à sua realidade, é a capacidade contributiva a principal
ferramenta nas mãos do Estado.
102 Algo próximo foi enfrentado pelo Supremo Tribunal quando do RE 236.881 (DJ 26/04/2002), onde se debatia as imunidades de Imposto de renda a militares e magistrados pela mera posição profissional ostentada pelos mesmos: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. REMUNERAÇÃO DE MAGISTRADOS. IMPOSTO DE RENDA SOBRE A VERBA DE REPRESENTAÇÃO. ISENÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. ISONOMIA TRIBUTÁRIA. INSUBSISTÊNCIA DO BENEFÍCIO. 1. O artigo 150, inciso II, da Constituição Federal, consagrou o princípio da isonomia tributária, que impede a diferença de tratamento entre contribuintes em situação equivalente, vedando qualquer distinção em razão do trabalho, cargo ou função exercidos. 2. Remuneração de magistrados. Isenção do imposto de renda incidente sobre a verba de representação, autorizada pelo Decreto-lei 2.019/83. Superveniência da Carta Federal de 1988 e aplicação incontinenti dos seus artigos 95, III, 150, II, em face do que dispõe o § 1º do artigo 34 do ADCT-CF/88. Conseqüência: Revogação tácita, com efeitos imediatos, da benesse tributária. Recurso extraordinário não conhecido. 103 No caso do atual ordenamento constitucional brasileiro, essa idéia de isonomia impedindo privilégios pessoais desmotivados é embasada no artigo 150, II da CF/88: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados ao Distrito Federal e aos Municípios: II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação semelhante, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”
150
É o princípio em tela que permite a adequação pormenorizada do sistema tributário às
particularidade individuais. Isso porque o princípio da capacidade econômica ou contributiva
determina que a legislação fiscal seja compatível com a força contributiva real de cada
cidadão, dando assim, uma maior percepção e concretização de justiça e igualdade
constitucional.
Desde Benevuto Griziotti, Dino Jarach e Emílio Giardina104, há uma forte corrente
doutrinária que defende ser a capacidade contributiva a própria razão da instituição dos
impostos. Seria esse ditame a própria corporificação da igualdade no Direito Tributário,
resumindo a justiça fiscal unicamente na observância das forças econômicas de cada
contribuinte.
É outro o entendimento mais atual de autores como Derzi, Moro (1999, p. 64 e ss) e
Godoi. Este último, ao tratar da acepção ora mencionada, chega a asseverar que “o primeiro
equívoco era considerar que a capacidade contributiva podia por si só e com exclusividade dar
conta de implementar, no campo tributário, a igualdade como valor constitucional” (GODOI,
1999, p. 212). E conclui o autor pela insuficiência da unicidade reducionista que pode
ocasionar o exclusivismo da capacidade contributiva na representação da igualdade
constitucional. Todavia, Godoi não deixa de reconhecer sua inegável posição de destaque na
concretização do mencionado direito fundamental: “o princípio que orienta a justiça tributária
é o princípio da igualdade, sendo a capacidade contributiva um subprincípio importante e
atuante, mas não o único” (GODOI,1999, p. 213-214).
Pela mesma trilha caminha Misabel Derzi. Afirma a tributarista mineira, após
considerar a indiscutível importância do princípio em questão, que “é, entretanto errôneo
pretender reduzir a justiça tributária ao princípio da capacidade contributiva. Nem a
igualdade, nem a justiça tributária se reduzem aos limites da capacidade contributiva. Nem
assim o sistema tributário”. (DERZI. In: BALEEIRO: 1998, p. 697-698).
Ainda que não reste pacífico o exaurimento ou não da igualdade na esfera da
capacidade contributiva, indiscutível o reconhecimento do papel predominante deste princípio
no intento de materialização dos ideais igualitários. Nesse sentido, comungamos com o
posicionamento expressado por Ives Gandra Martins (1983, p.28), que reconhece a
capacidade contributiva e a redistribuição financeira como “princípios dorsais” da estrutura
normativa tributária.
104 Acerca das idéias dos pensadores supra, verificar BALEEIRO,1998, p. 714 e ss., e GODOI, 1999, p. 212
151
Conforme já abordado, desde Adam Smith e demais membros da corrente liberal a
capacidade contributiva já era considerada quando do estabelecimento da tributação.
Afirmado anteriormente, porém, o entendimento míope que abarcava tal princípio. Restrito a
um objetivo de mera proporcionalidade, a capacidade contributiva rezava uma rigorosa
relação entre os benefícios auferidos pelo cidadão e a quantidade de tributos a serem pagos.
Era momento em que a teoria do benefício – ou na nomenclatura de Paul Hugon (1945, p. 16)
“teoria do lucro” – permeava a justificativa da observância da expressão de riqueza dos
diversos contribuintes, calcada fortemente na perspectiva contraprestacional.
Tido atualmente por insuficiente, a crítica ao pensamento supra é adiantada pelo
próprio John Stuart Mill, economista da escola liberal:
Na teoria da justiça que estamos analisando, os menos capazes de se ajudarem e defenderem a si próprios, por serem aqueles para os quais a proteção é a mais indispensável, teriam que pagar a cota maior do preço dessa proteção – o que é inverso do verdadeiro conceito de justiça distributiva, que consiste não em imitar, mas em corrigir as desigualdades e os erros da natureza (MILL, 1983, p.291).
Com efeito, a noção de capacidade contributiva calcada na proporção em razão do
benefício fruído não encontra mais guarida. Isso porque, de encontro aos ideais de justiça
esboçados neste novo paradigma de Estado Social, a teoria smithiana de igualdade de
benefícios tem um embasamento puramente econômico, sem qualquer atenção aos anseios
contemporâneos de justiça social.
O tributarista e economista mineiro Marciano Seabra de Godoi, diante do perfil
mercadológico que se pode perceber na visão de capacidade contributiva da teoria do
benefício, delineia a mesma como sendo detentora de um “fundo contratualista e característica
dos albores do liberalismo político e econômico” (GODOI, 1999, p. 189).
Também Casalta Nabais não poupa a idéia em comento. Caracterizando-a como sendo
extremamente objetiva, o autor lusitano conclui que a teoria sob análise é incapaz de
expressar a real capacidade contributiva dos indivíduos. Remete ainda a dois pontos
intransponíveis. Em primeiro lugar, é de se considerar que uma série de benefícios não são
passíveis de terem os impostos como contrapartida – p.e. o objetivo estatal de erradicar a
pobreza. Além do mais, é tormentosa, para não dizer impossível, a busca pela mensuração dos
benefícios usufruídos por cada cidadão!
Por fim, constata Nabais que, se é dado aos impostos a imprescindível tarefa de
custeio da estrutura estatal, juntamente com suas atividades consagradoras dos objetivos
152
constitucionais, é de todos a responsabilidade de contribuição tributária, independentemente
dos benefícios individualmente auferidos (NABAIS,2004, p. 451).
Teoria fundamentadora da capacidade contributiva que parece dominar a doutrina
pátria é aquela referente a uma “igualdade de sacrifícios”. De acordo com essa segunda teoria,
não devem os cidadãos contribuir em observância a suas fruições dos benefícios estatais, mas
sim de forma a garantir os dispêndios do Estado, respeitando uma equivalência entre os
sacrifícios sofridos pelos contribuintes. É idéia que desde o século XIX é aventada pelo
economista Stuart Mill:
A igualdade de tributação, portanto, como máxima de política, significa igualdade de sacrifício. Significa distribuir a contribuição de cada pessoa para cobrir as despesas do governo de tal forma que ela não sinta nem mais nem menos incômodo, com a cota que lhe cabe pagar, do que qualquer outra sente, pagando a dela (MILL, 1983, p. 290).
Seguindo essa corrente de pensamento, identifica-se a possibilidade de ajustamento da
tributação às peculiaridades individuais dos contribuintes. Noutros termos, já há uma
instrumentalização para se alcançar a igualdade substancial.
Leciona ainda Godoi105 em sua minuciosa análise que, em países como Espanha e
Itália, diante do advento do Estado Social, também a teoria do sacrifício vem recebendo certas
críticas, principalmente em razão de seu “viés individualista”.
Murphy e Nagel (2005, p. 34 e ss.) acompanham a crítica, mas sob outra ordem de
fundamentação. Constatam os autores que a teoria do sacrifício pressupõe uma justa
distribuição dos resultados do mercado, ou seja, a teoria parte de um pressuposto de que a
divisão final das riquezas do sistema capitalista é legítima.
Partindo da idéia de que se deve cobrar a mesma parcela de sacrifícios dos indivíduos,
mantendo uma proporcionalidade dessas cotas de sacrifício, concluem os autores que a teoria
em análise contabiliza os resultados distributivos como forma de parâmetro para a
metrificação do tributo a ser pago pelo contribuinte, tendo-os, assim, como legítimos. Afinal,
é a partir dessa divisão final que se verifica a exação de cada um, bem como o “sacrifício” de
cada contribuinte.
105 Marciano Seabra, em atenção à doutrina européia acerca do tema colaciona a seguinte passagem de Pedro Manuel Herrera Molina, que bem exemplifica a concepção de solidariedade que vem justificar o princípio da capacidade contributiva: “La contribución al interés general mediante el sistema impositivo no tiene el sentido de contraprestación o un beneficio ni es expresión de un interés individual. Representa, por el contrario, una exigencia del caráter social de la naturaleza humana: el principio de la solidariedad” (MOLINA apud GODOI: 1999, p. 220)
153
Ocorre que, para eles, não é lógica a afirmativa de que a pessoa detenha qualquer
direito sobre uma propriedade ou renda que acumula antes das exações tributárias.
Em melhores palavras, a divisão proveniente da economia de mercado é, em grande
parte, derivada da própria política econômica e legislativa adotada pelo Estado. Nesse sentido,
a receita de um empresário da área siderúrgica é diretamente ligada à legislação ambiental que
o Estado elabora. Ou ainda, os grandes lucros de um investidor da bolsa de valores são
resultados, em parte, das flutuações das taxas de juros determinadas pelo Banco Central
(MURPHY; NAGEL, 2005, p. 47). Percebe-se, assim, a ausência de titularidade exclusiva e
pré-estatal dos resultados de lucro ao indivíduo.
Uma vez haver auxílio do governo para o alcance desses resultados, não se pode
reputá-los justos para com aqueles não beneficiados pelas ações públicas. Para eles, o direito
de propriedade é produto derivado de uma complexa teia de elementos dentre os quais o
sistema tributário faz parte.
Nessa baila, certos da ilegitimidade da repartição de resultados do mercado anteriores
à atuação mitigadora do Estado, os autores criticam o próprio pressuposto da teoria do
sacrifício – divisão de lucros pelo mercado – entendendo suas idéias vinculadas ao
“libertanismo vulgar” que marcou os ideais burgueses.
Calcados nisso, Murphy e Nagel perseguem outra justificativa para a observância da
capacidade contributiva. Para eles, “a idéia de tributação de acordo com a capacidade
contributiva é entendida em função da noção de que a justiça exige uma redistribuição outra
que não a efetuada pelos retornos do mercado” (MURPHY, NAGEL:2005, p. 43).
É também nessa esteira que se funda noção de capacidade contributiva baseada na
solidariedade social destacada por Godoi (1999, p. 191 e ss.) e aplicada em certos países
europeus. A acepção de comunhão de uma sociedade em que se deve perquirir uma justiça
social que irá permitir uma melhor condição de vida a todos passa a ser, nesses locais, a mola
propulsora que possibilita a tributação diferenciada entre ricos e pobres.
Com efeito, a teoria do sacrifício apresenta algumas dificuldades de trabalho.
Primeiramente, não é fácil a mensuração dos sacrifícios perdidos por cada indivíduo, nem
mesmo estabelecer os critérios adequados a essa aferição. Dworkin torna isso claro ao
trabalhar, analogamente, a concepção de igualdade por equivalência de bem-estar106.
106 “Mas podemos observar, antecipadamente, que cada um dos conceitos conhecidos de bem-estar dá origem a óbvios problemas conceituais e práticos com relação ao teste e à comparação dos níveis de bem-estar de cada pessoa. Cada um deles tem como conseqüência que as comparações de bem-estar serão sempre indeterminadas: sempre acontecerá que entre duas pessoas nenhuma delas terá menos bem-estar, embora seu bem-estar social não seja igual [...] meu primeiro argumento contra essa versão restrita da igualdade de satisfação também se baseia
154
Não fosse bastante, a manutenção de uma proporção de sacrifícios pode ensejar uma
utilização míope da capacidade contributiva, redundando na idéia de tributação proporcional e
neutra combatida pelo Estado social.
Não obstante, corretamente utilizada, a teoria em comento pode ensejar uma
modificação da perspectiva tributária, possibilitando-a incorporar a possibilidade de alteração
da estrutura social com a qual defronta, apresentando uma “concepção ativa” da atuação do
princípio da capacidade contributiva. Concluímos assim, que ultrapassados alguns obstáculos
abstratos e teóricos, e aplicada de forma coerente com os anseios sociais constitucionais, os
resultados práticos da teoria em tela podem equivaler àqueles decorrentes das teorias de
distributividade de riquezas ou de solidariedade social.
Tanto o é que, calcados nesse aparato teórico, é que os autores do início do século XX
passaram a argumentar a capacidade contributiva como reflexo positivo da isonomia
constitucional.
De todo modo, essa nova idéia de capacidade contributiva com vistas à efetivação do
direito fundamental da igualdade substancial ganhou notabilidade com autores como Wagner
e F. Flora (BALEEIRO, 1987 p. 181) que, objetos de questionamento, foram por vezes
classificados com “tendências comunistas”. Tais juristas, porém “desejavam apenas melhor
distribuição da renda nacional, tributando-se as classes prósperas segundo a capacidade
contributiva e melhorando-se a situação das classes pobres pelas despesas de assistência e
seguros sociais” (BALEEIRO, 1987, p. 181).
Adolf Wagner, por exemplo, demonstrava perplexidade diante da tributação com
equivalência formal entre a renda proveniente do trabalho e de capitais. Da mesma forma,
discursava pela incompatibilidade entre o Estado Social e o rechaçamento de isenções aos
incapacitados de contribuir, tal qual pretendia a universalidade tributária burguesa. Para ele, a
realização da igualdade substancial implicava um maior ou menor gravame ante as nuances
apresentadas por cada contribuinte (DEODATO, 1949, p. 28-30).
Mesmo recentemente, no Brasil, o princípio analisado foi recebido por alguns com
timidez. Sampaio Doria, em alusão ao texto constitucional brasileiro de 1946, comenta o
ceticismo que alguns tributaristas da época encaravam a aplicação efetiva da capacidade
contributiva (DORIA,1986, p. 181).
no argumento que empreguei contra a igualdade de êxito relativo. O principal atrativo de uma forma restrita de igualdade de satisfação está na afirmação de que ela torna as pessoas iguais no que todas valorizam do mesmo modo e fundamentadamente no que diz respeito a sua posição pessoal. Mas não se pode sustentar esse atrativo, pois as pessoas diferem, de fato, na importância que cada uma dá à satisfação, até no sentido mais amplo que faz desse termo a definição de estados de consciência” (DWORKIN, 2005, p. 10; 46).
155
Todavia, parece restar tranqüila a idéia, na atualidade, de que a tributação deve
observar as condições reais dos contribuintes para exigir-lhes uma exação tributária107. Da
mesma forma, não parece haver quem questione a atitude discriminatória do legislador ou
constituinte ao estabelecer isenções ou imunidades àqueles que não apresentam qualquer
possibilidade financeira, permitindo assim, que os custos do Estado sejam compartilhados
apenas entre os mais favorecidos pelo jogo econômico.
Segundo Leão, Hector Villegas atribui quatro principais conseqüências ao princípio, a
partir das quais podemos delinear suas características básicas:
1. todos devem contribuir para os gastos públicos, exceto aqueles que possuem um nível econômico muito baixo; 2. o sistema tributário deve-se estruturar de tal maneira, para que aqueles que possuem maior capacidade econômica tenham uma participação mais alta na entrada de dinheiro para o cofre público; 3. não se podem selecionar como fato imponível circunstâncias ou situações que não sejam abstratamente idôneas para refletir a capacidade contributiva; 4. em nenhum momento o tributo que recai sobre o contribuinte pode exceder à razoável capacidade contributiva das pessoas. (LEAO, 1999, p. 18) (grifos nossos)
Assim sendo, certo é que a capacidade contributiva, ainda hoje, encorpa nosso sistema
tributário. Em busca de previsão expressa, pode-se encontrar a seguinte redação na
Constituição Federal:
Art. 145. [...] §1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão cobrados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Mister destacar já em princípio, o fato de não mais perdurar a dúvida presente quando
da Constituição de 1946. Conforme relembra Ulhôa Canto (1989, p. 03), restava incerto
107 Embora não termos encontrado, na doutrina brasileira, qualquer autor que se demonstrasse expressamente contrário à observância da capacidade contributiva, o ibérico Casalta Nabais indica alhures corrente representada por W. Leisner que considera a noção de capacidade contributiva por demais indeterminada, e em razão disso, acaba o princípio em comento por apresentar-se como uma “expressão da pura brutalidade do poder”, sem qualquer fundamentação racional justificante face à idéia de liberdade que norteia o pensamento do autor. É o próprio autor lusitano em sua extensa e completa obra acerca do dever da tributação quem responde as críticas apontadas à capacidade contributiva: “porém, um tal entendimento parece ignorar, como logo fez notar A. Berliri, aquando das discussões suscitadas pelas primeiras aplicações do princípio pela Corte Constitucional italiana, que os conceitos indeterminados não são desconhecidos do direito em geral: assim, conceitos como os de interesse público, ordem pública, bons costumes, moral equidade, alimentos, etc., em toda a parte são considerados conceitos jurídicos ... outra objecção contra o argumento da indeterminabilidade do princípio da capacidade contributiva: é que este, afinal de contas, outra coisa não representa senão uma expressão específica do entendimento, por toda a parte considerado definitivamente ultrapassado da constituição como um conjunto de normas essencialmente programáticas...” (NABAIS,2004 p. 459-460)
156
quanto à possibilidade de ter o texto constitucional da época dado uma natureza meramente
programática ao princípio. Não resistiram as controvérsias, e resta pacificada a noção de ser
norma de eficácia a ser obedecida pelo legislador e intérprete.
Cumpre registrar, desde já, a inovação que Greco (2004) realiza ao não restringir a
irradiação de efeitos da capacidade contributiva à sua eficácia negativa, como se a mesma
acarretasse unicamente uma limitação constitucional ao poder de tributar. Já inserido na
superação do oposicionismo entre Estado e sociedade, o autor constrói uma faceta positiva do
princípio em questão, galgando-lhe, assim, a função de viabilização dos direitos
fundamentais.
Dessa forma, juntamente com o já consolidado entendimento de que o Estado não
poderá alcançar fatos e situações incapazes de denotar capacidade contributiva, Greco parte
para a afirmação de que sempre que houver possibilidade de o mesmo atingir demonstrações
de força financeira, deverá fazê-lo. Afinal, conforme já aprendido, uma vez compreendida
como um princípio constitucional, a capacidade contributiva remete diretrizes à atuação
negativa, mas também positiva do Estado, exigindo deste último, sua efetivação.
Muito embora a alusão às idéias de Greco seja pertinente no momento para fins de
situá-lo junto aos demais autores que lidam com a capacidade contributiva, o grau de
refinamento de sua análise constitucional-tributária demanda que seja postergado o maior
deslinde de seu pensamento ao estudo do paradigma do Estado Democrático de Direito.
Uma segunda anotação acerca do princípio em análise e sua disposição constitucional
refere-se à sua abrangência. Segundo consta no texto do art. 145 § 1º da CF/88, “sempre que
possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte...”.
Em que pese a menção “sempre que possível” e “os impostos” expressos no texto
constitucional, diante da função de concretização de um direito fundamental que a capacidade
contributiva representa, deve-se entender que, não “sempre que possível”, mas “sempre”
devem “todos os tributos” observar a capacidade econômica dos contribuintes. E não nos
encontramos sós nesse posicionamento. Afirma Hugo de Brito Machado (2005, p. 59) que a
expressão “sempre que possível” expressa no texto constitucional abarca apenas a
pessoalidade dos impostos, sendo certo que todos os impostos devem sempre se adequar à
capacidade econômica. Parece se restringir o autor, porém, ao alcance dos impostos.
Em sentido oposto argumentam Luciano Amaro (2005, p. 139 e ss.) e Roque Antonio
Carrazza (2004, p. 95 e ss.). Para esses autores, a Constituição permitiu exceções à capacidade
157
contributiva para os impostos, já que algumas espécies não se compatibilizariam com o tal
princípio, como p.e., os impostos indiretos.
Já registramos nossa discordância acerca dessa idéia, e sobre a capacidade contributiva
nos impostos indiretos dissertaremos adiante. Entretanto, cumpre, no presente, aludir outro
posicionamento do qual partilhamos, e que encontra certa resistência por parte da doutrina.
Em nossa concepção, todos os tributos devem observar a força contributiva dos
indivíduos quando de sua instituição e quantificação. Isso implica afirmar que não apenas
impostos, mas também contribuições variadas, empréstimos compulsórios e taxas devem se
atentar para a determinação constitucional.
Grande parte dos autores, dentre os quais Misabel Derzi (In: BALEEIRO, 1998, p.
695), e Gilberto de Ulhôa Canto (1989, p. 11-12) entendem que não precisam as taxas
observar obrigatoriamente os ditames da capacidade econômica. Pautam a argumentação
sobre o fato de as taxas, por serem o pagamento do custo do exercício do poder de polícia ou
de prestação de serviço específico e divisível, têm seu valor atrelado aos gastos necessários
para a realização das atividades pertinentes. São atividades ligadas não a uma situação ou
característica relacionada ao contribuinte – p.e. manifestação de riqueza – mas sim na
contraprestação por uma relação presente entre Estado e indivíduo.
No mesmo sentido argumenta Werther Botelho (SPAGNOL, 1994, p. 42 e ss), que
realiza divisão entre as espécies tributárias e identifica nas taxas e contribuições de melhoria,
mero objetivo fiscal de pagamento ou ressarcimento; enquanto os impostos, contribuições e
empréstimos compulsórios são mais afetados pela possibilidade de realização de justiça
distributiva.
Com efeito, a estrutura do fato gerador tributário e sua forma de quantificação tornam
mais trabalhoso o vislumbre da capacidade contributiva em taxas tributárias. Obviamente que,
em razão disso, as formas de expressão da capacidade econômica não se darão da mesma
forma que nos impostos. No entanto, há instrumentos capazes de proceder à adequação dessas
espécies tributárias ao princípio estudado108.
Atentos a isso, somos mais filiados à argumentação de Sacha Calmon (COÊLHO,
2005, p.56 e ss), para quem, nas espécies tributárias tidas como mais resistentes à aplicação da 108 Não podemos deixar de ressaltar decisão por parte do Supremo Tribunal Federal em que se observou que a corriqueira relação realizada entre taxas e capacidade contributiva não tem, de fato, esse conteúdo. Quando do RE 177.835 (DJ 25/05/2001), o Supremo se viu diante da verificação de constitucionalidade da cobrança da taxa de polícia por parte da Comissão de Valores Mobiliários, em observância ao patrimônio que a empresa apresenta perante o mercado. A decisão pela constitucionalidade desta cobrança variável à expressão patrimonial das empresas, apesar do que possa aparentemente denotar, não se tratou de uma observância da capacidade contributiva na exação de taxas. Mas sim a relação entre o valor cobrado e o serviço a ser exigido por parte da CVM, órgão responsável pela fiscalização da atividade mercantil mobiliária.
158
capacidade contributiva – taxas e contribuições de melhoria – é possível sua concretização em
uma dimensão negativa pela “incapacidade contributiva”.
Noutros termos, é factível a discriminação daqueles que não detêm a capacidade de
arcar com o ônus proveniente das espécies tributárias anteditas, ainda que beneficiados pelo
serviço, poder de polícia, ou melhoramento decorrente de obra realizada. Nesses casos, houve
certa adequação da incidência tributária à realidade econômica dos contribuintes, ainda que
apenas no sentido de desoneração dos mais deficitários.
É o que ocorre, a título exemplificativo, com o a isenção da taxas de fiscalização
judiciária incidente sobre as atividades notariais cujos custos são repassados aos usuários, nos
termos da lei estadual mineira 15.424/04. Expressa, em seus artigos 20 a 22 hipóteses de
isenção do pagamento do tributo (taxa de fiscalização judiciária) referenciado para
beneficiários da justiça gratuita e para pobres no sentido legal em certas circunstâncias. Faz a
lei a desoneração daqueles que não detêm um potencial financeiro compatível com o ônus
fiscal que lhes é repassado. Não seria isso uma incidência da capacidade contributiva?
5.2.1.1.1 Capacidade contributiva absoluta e relativa
Critério importante para a percepção do alcance e abrangência do princípio
constitucional estudado é sua classificação em capacidade contributiva absoluta e relativa.
Calcada nos ensinamentos de Emilio Giardina, Misabel Derzi109 detalha bem os
impactos da capacidade contributiva nas várias esferas jurídicas, caracterizando com rigor a
secção ora analisada. Explica a autora ser a capacidade contributiva objetiva ou absoluta
aquela ligada ao momento inicial de elaboração normativa. De observação obrigatória por
parte do legislador, a capacidade contributiva absoluta impõe a escolha dos fatos geradores e
alíquotas desveladoras da força econômica para a redação das normas pertinentes à previsão
de incidência. Não é dado ao Legislativo pinçar fatos tributáveis que não sejam expressão de
uma força econômica disponível, ou mesmo fatos que se amparam em exibições futuras ou
mesmo remotas de aptidão financeira.
Acompanha o entendimento acerca da necessidade de observação da capacidade
contributiva absoluta Cristóbal Moro, para quem “o legislador deverá tipificar como fato
109 DERZI In: BALEEIRO, 1998, p. 690 e ss. A autora apresenta ainda quadro explicativo com base em Regina helena Costa acerca classificação ora aduzida de grande peso didático.
159
imponível de um tributo todas as situações expressivas de capacidade econômica no sujeito
que respondam à idéia de justiça que informa o estabelecimento do mesmo” (tradução
nossa)110 (MORO,1999, p. 68).
Nestes casos, o princípio analisado tem duas funções. A primeira delas é funcionar
como pressuposto da tributação. Caso haja a criação de qualquer tributo (ou imposto,
dependendo da corrente de pensamento) sem a observância da capacidade contributiva, o
ordenamento não aceitará tal espécie tributária como parte do sistema jurídico. É o “sentido
negativo” da capacidade contributiva percebida por Nabais (2004, p. 469).
Há ainda a capacidade contributiva como critério de escolha e quantificação dos fatos
geradores tributários, ou seja, mesmo perante duas hipóteses de expressão econômica pelos
contribuintes, qual é a mais propícia para alcançar o objetivo constitucional? E qual alíquota
deve ser utilizada para que compatível com os ditames de igualdade substancial do
constitucionalismo social? Essas são as perguntas que embasam a segunda vertente da
capacidade contributiva absoluta ou objetiva.
Reparem, porém, como esta acepção do princípio em tela acarreta, caso utilizado de
forma isolada, uma homogeneização de exações dos contribuintes meramente em razão da
escolha de fatos ou situações jurídicas tributáveis, desconsiderando, porém, as nuances e
particularidades de casa situação distinta. De fato, a capacidade contributiva absoluta
representa, sem sombra de dúvidas, uma conquista na efetivação da isonomia material
caracterizadora do constitucionalismo social. Entretanto, sua aplicação pode culminar em uma
miopia, caso desconsidere a análise singular que cada indivíduo ou empresa demanda para a
construção de um conteúdo igualitário legítimo.
Não à toa, Derzi continua sua lição desenvolvendo a concepção de capacidade
contributiva subjetiva ou relativa, mais ligada à real aptidão financeira do contribuinte. Atenta
à verdadeira acepção que a isonomia e a capacidade contributiva devem denotar, a autora
destaca que a correta aplicação do ditame constitucional culmina na observância da
subjetividade como um todo, e não meras escolhas de determinados fatos ensejadores da
tributação. Em conjunto com a vertente “absoluta” da capacidade contributiva, devem ser
consideradas outras peculiaridades individuais que irão compor a realidade financeira de cada
contribuinte, o que implica, também, a consideração de gastos com saúde, educação, moradia,
número de indivíduos dependentes, dentre outros elementos. A verificação das nuances
110 No original: “el legislador deberá tipificar como hecho imponible de um tributo todas las situaciones expresivas de capacidad económica en el sujeto, que respondan a la idea de justicia que informa el estabelecimento del mismo”
160
individuais objetivadas pela materialização da igualdade substancial não pode ser restringida a
uma abordagem superficial de dados homogeneizantes de uma pretensa realidade financeira
(p.ex. avaliação unicamente dos rendimentos mensais do contribuinte). Toda a subjetividade
do cidadão deve ser objeto de ponderação para que se chegue ao objetivo final, que é a
incidência tributária condizente com sua realidade financeira efetiva. Mais uma vez, deixar-
se-á um maior detalhamento da capacidade contributiva relativa ou subjetiva ao momento do
constitucionalismo contemporâneo, em razão de compatibilidade de idéias.
De todo modo, conjugando as perspectivas objetiva e subjetiva da capacidade
contributiva, o limite mínimo, ou básico que se costuma apontar a que deve garantir tal
princípio é o mínimo existencial, parcela mínima de subsistência que não pode, em hipótese
alguma, ser objeto de exação fiscal. A imposição tributária apenas pode ocorrer se
ultrapassado esse limite mínimo, essa esfera mínima garantidora dos direitos fundamentais do
indivíduo, a partir da qual a justiça jurídica não aceita realizar cobranças. É entendimento há
muito debatido no seio da tributação111.
Trilham por esse caminho Baleeiro (1987, p. 259), Godoi112, e mesmo Casalta Nabais.
Apesar de constatar a complexidade de se trabalhar com a concepção de mínimo existencial
(NABAIS, 2004, p. 578), conclui o autor lusitano que
o princípio da capacidade contributiva exige, relativamente ao imposto pessoal sobre o rendimento, o respeito pelo princípio do rendimento disponível, segundo o qual ao rendimento líquido, ou melhor, à soma dos rendimentos líquidos, há que proceder às deduções de despesas provadas, sejam as imprescindíveis à própria existência do contribuinte (mínimo de existência individual), sejam as necessárias à subsistência do casal ou da família (mínimo de existência conjugal ou familiar). Efectivamente, a capacidade contributiva só começa a contar a partir desses mínimos, ou seja a partir do que cada pessoa ou conjunto de pessoas precisa para a sua existência física (alimentação, vestuário e habitação) e existência humana (instrução e educação), enquanto pressuposto respectivamente do direito à vida e a uma vida minimamente digna como ser humano. (NABAIS, 2004, p. 522)
Segue a mesma linha Ricardo Lobo Torres (2005, p. 69 e ss), que não admite a
tributação aquém de um mínimo existencial-social que a todos deve ser garantido. Segundo
111 O economista John Stuart Mill nos leciona que desde Jeremy Benthan, já se tem a ciência da possibilidade de se atingir uma igualdade substancial por meio da não-tributação do mínimo existencial: “A maneira de reparar essas desigualdades de ônus, que parece ser a mais eqüitativa é a recomendada por Benthan: isentar de tributo determinado mínimo de renda, suficiente para garantir o indispensável para a subsistência” (MILL, 1983, p. 292). 112 O economista e tributarista mineiro expande a perspectiva de mínimo existencial para fins de capacidade contributiva também para as empresas: “ o conceito de capacidade contributiva começa a formar-se quando, no caso das pessoas físicas, preserva-se o mínimo vital individual e familiar, e no caso das pessoas jurídicas deduzem-se todos os gastos e elementos passivos que influem na situação econômica do contribuinte.” (GODOI: 1999, p. 197)
161
ensinamento propalado pelo autor, no Direito Constitucional pátrio, são vários os dispositivos
a partir dos quais identificamos o ditame de respeito ao mínimo existencial. Dentre estes, a
própria concepção substantiva de igualdade (art. 5º da CF/88), e de dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III da CF/88).
5.2.1.1.2 A capacidade contributiva e seus subprincípios.
Há autores que, ao detalhar o estudo acerca da capacidade contributiva, acabam por
identificar outros subprincípios entendidos como expressão daquele primeiro, muitos deles, de
também previsão constitucional e objetivo igualitário.
Nessa senda, no entender de Leão(1999, p. 19 e ss.), surgem os subprincípios da
proporcionalidade, personalização, progressividade e seletividade. Para Moro (1999), reflexos
da capacidade contributiva seriam os princípios da progressividade e proibição do confisco.
No que tange à proibição de confisco113, fácil é a interligação entre ambos. É
entendida como confiscatória aquela tributação que extrapola as forças financeiras do
contribuinte com tal intensidade, que acaba por implicar confisco de seu patrimônio.
Obviamente, para que haja respeito ao substrato econômico que o contribuinte pode dispor,
certamente, não pode a cobrança fiscal ter escopo de confiscar os bens daquele. O não
confisco é, em realidade, o ditame mais extremo do respeito à força econômica do
contribuinte.
Não obstante seja intimamente ligado à capacidade contributiva, pode a proibição do
confisco ser percebido já nos ideais liberais. Considerando ser a tributação confiscatória
forma de sufocamento das riquezas privadas produtivas do particular, ela acaba por atacar a
própria fonte originária da tributação contrária, assim, à linha liberal já estudada.
A personalização, prevista no art. 145 § 1º da CF/88, é a própria noção de efetivação
da isonomia e da capacidade contributiva subjetiva, uma vez corresponder na adequação da
oneração fiscal às condições pessoais de cada indivíduo. Os demais subprincípios elencados
113 Na constituição brasileira, o artigo 150 veda a todos os entes federados “IV – utilizar tributo com efeito de confisco;”
162
são instrumentos de concretização da capacidade contributiva, razão pela qual estudaremos no
próximo tópico114.
5.2.2 Concretização da igualdade fiscal
Pois bem, já compreendida a modificação que a reconstrução do conteúdo da
igualdade ocasiona na teoria do Direito Tributário. Em razão dessa nova concepção de
igualdade substancial derivada das conquistas do constitucionalismo social, a capacidade
contributiva passa a adquirir papel de destaque na estrutura fiscal.
Entretanto, como de fato concretizar empiricamente essas idéias? Quais os
instrumentos disponíveis para a efetivação dessa isonomia que caracteriza o segundo
momento da evolução dos direitos fundamentais?
5.2.2.1 Progressividade e proporcionalidade tributárias
Afirmado anteriormente como a capacidade econômica, aos olhos liberais, restringia-
se à adoção de uma proporcionalidade tributária – alíquotas fixas e comuns a todos – ligando,
assim, a concepção de proporcionalidade ao tratamento isonômico de todos perante a lei –
mera igualdade formal burguesa.
Desconsiderando a progressividade, por ser exageradamente ingerente ao status quo, o
sistema tributário liberal não deu qualquer ênfase a essa técnica de tributação115, pautando-se
principalmente pelos tributos proporcionais. Tentou-se, com isso, manter a neutralidade
114 Roberto Wagner Lima Nogueira (NOGUEIRA, 2003, p.94) apreende do conteúdo de capacidade econômica não mais um princípio derivado, mas sim flexibilização de princípios constitucionais consagrados. Para o autor, a capacidade contributiva permeia todo o sistema jurídico brasileiro, forçando uma interpretação que se coadune com os objetivos de justiça fiscal determinados pelo princípio do qual nos ocupamos. Assim sendo, até mesmo o sigilo fiscal, com fulcro no direito à intimidade (art. 5, XXX da CF/88) deve ser interpretado à luz da justiça tributária, entendimento que se consubstancia na polêmica Lei Complementar 105/2001. 115 Neste tocante, é importante a menção à seguinte passagem de Nabais: “É certo que mesmo no quadro do estado liberal, em que a exigência de uma igualdade social estava por natureza ausente, não faltou quem defendesse a progressividade de alguns impostos, estribando-se para tanto que na necessidade de compensar com ela a regressividade de outros impostos, que na ideia do aumento mais que proporcional da capacidade contributiva com o aumento do rendimento, mas nenhuma destas ideias põe em causa as conclusões alcançadas...” (NABAIS, 2004, p. 494)
163
cartesiana que embasa o pensamento liberal, fazendo uso de um método que não modificasse
a distribuição de riquezas atingidas pela pureza do sistema econômico.
A mesma visão de preservação das regras naturais das ciências empíricas é destinada
também à ciência econômica, daí não caber ao homem interferir nas distribuições
patrimoniais geradas pelo mercado. Por isso a proporcionalidade ser, para Derzi (In:
BALEEIRO, 1998, p. 540), representada pela idéia “leave them as you find them”.
Com efeito, é de se notar a falta de compatibilidade entre a acepção de igualdade
constitucional reconstruída pelo constitucionalismo social, detentor de uma visão ativista e
substancial, e a técnica da proporcionalidade.
Já deve estar claro que, enquanto a igualdade material implica uma atuação positiva do
Estado para corrigir as distorções que o mercado causa na divisão de riquezas entre os
cidadãos, dando-lhes real paridade isonômica, a proporcionalidade, nos termos aludidos
acima, busca uma manutenção dessa estrutura social. Ora, diante da modificação de postura
de direitos fundamentais, é de se argumentar pelo anacronismo dos sistemas fiscais baseados
nesta forma de fixação de alíquotas.
Partindo da premissa de tratamento diferenciado para contribuintes com realidades
distintas, a igualdade substancial pode apenas ser atingida por meio da progressividade,
sistema de mensuração que melhor se adeqüa às distorções entre os indivíduos com diversas
capacidades contributivas116 - já visto serem progressivos117 os tributos que apresentam
alíquotas diversas crescentes na medida em que aumenta a expressão de riqueza da base de
cálculo (vide cap.IV).
Percebendo a força e expressividade que a progressividade apresenta para fins de
modificação da realidade social e efetivação da igualdade, se manifesta com seu particular
estilo Aliomar Baleeiro:
O imposto pessoal e progressivo poderá ser o instrumento surdo e adequado a uma revolução social, sem ‘sangue, suor ou lágrimas’, mas tão radical quanto as de caráter catastrófico que têm congestionado cemitérios, cárceres e orfanatos, apavorando as sociedade ameaçadas pela sua propagação insinuante e insidiosa (BALEEIRO, 1998, p. 699).
116 Percebendo uma maior justiça tributária e isonomia constitucional na progressividade, afirma Hugo de Brito Machado: “A idéia de injustiça da rigorosa proporcionalidade entre um indicador de capacidade contributiva e o calor do imposto nos autoriza, então a concluir afirmando que a progressividade é, realmente, uma forma justa de calcular os impostos.” (MACHADO, 2005, p. 299) 117 Progressividade na CF/88: Imposto de renda ( art. 153, § 2º, I da CF/88); IPTU (art. 156, § 1º c/c art. 182, § 4º, II ambos da CF/88) e ITR ( art. 153, § 4º, I da CF/88)
164
Certo é que, percebidos os contribuintes com forças econômicas distintas, também a
incidência das obrigações tributárias devem consistir em intensidades diferentes. Não apenas
em razão do montante da base de cálculo relacionada, mas também pela própria alíquota
respectiva. É a lógica que prevalece. Aqueles com maiores condições de participação
contributiva devem se submeter a alíquotas crescentes.
Isso porque, para o contribuinte que aufere renda mensal de R$50.000,00, o dispêndio
de 10% de sua renda tem significado marginal inferior à arrecadação de 10% da renda de um
trabalhador de R$500,00 mensais. A discrepância da utilidade final que cada unidade de real,
bem como cada ponto percentual descontado de seus rendimentos tem para esses dois
contribuintes distintos é inquestionável.
Enquanto os R$5.000,00 tornados indisponíveis ao primeiro contribuinte seriam
destinados para a compra de um belo terno, ou na ostentação do gasto deste valor em um
único jantar, os R$50,00 arcados pelo segundo seriam destinados à compra da cesta básica
familiar, ou mesmo de medicamentos imprescindíveis para a manutenção de sua saúde.
É isso que justifica o abandono da adoção exclusiva do critério proporcional, com
alíquota única a todos os destinatários, em benefício de uma diferenciação não apenas de
montantes obrigacionais, mas mesmo de alíquotas percentuais entre os contribuintes118.
Não é outro o pensamento de Cristóbal Moro, para quem “se constitui em um dos
instrumentos de penetração no marco do sistema tributário [...] o princípio da progressividade
afeta a concretização do princípio da capacidade econômica na configuração dos tributos”
(tradução nossa)119 (MORO, 1999, p. 71).
Na opinião de Carrazza (2004, p. 82 e ss.), a progressividade deve abarcar todos os
impostos, sem qualquer exceção, sendo essa a única forma de se atingir a pessoalidade e
capacidade contributiva constitucionais. Em razão disso, chega mesmo o autor a defender a
inconstitucionalidade dos impostos de alíquota fixa – proporcionais!
Mas nem todos se mostram tão receptivos à idéia de progressividade no Direito
Tributário.
Gilberto de Ulhôa Canto identifica a existência de uma corrente que atrela a noção de
progressividade com “objetivos ideológicos anti-capitalistas” e, portanto, contrária ao
118 Nessa mesma trilha, argumenta Conti, citado por Leão (1999, p.28) : “la proporcinalidad tributaria que en Adam Smith venia instrumentada mediante impuestos proporcionales con alícuotas constantes aplicadas a la base imponible, se perfecciona con la progressividad construída con alicuotas crescientes aplicadas sobre dicha base, con la finalidad de obtener la igualdad de sacrifício en el pago de las cargas impositivas”. 119 No original: “se constituye en uno de los instrumentos de penetración en el marco del sistema tributário...el principio de progressividad afecta a la concreción del principio de capacidad economica en la configuración de los tributos”
165
desenvolvimento econômico dos países. Diante dessa pretensa controvérsia acerca da
correção da utilização da progressividade, o autor se mostra descontente com a previsão da
mesma em nosso texto constitucional. São suas as palavras seguintes: “não quero considerar o
mérito das opiniões em ambos os sentidos, mas o simples fato da existência de controvérsia
parece contraindicar (sic) uma tomada de posição em termos de norma constitucional”
(CANTO, 1989, p. 24). Como se todos os institutos constitucionais aplicados fossem dotados
de unanimidade interpretativa!
Arrebata a argumentação contrária a afirmação de Aliomar Baleeiro (1998, p. 701),
que após reconhecer a maior dificuldade de manuseio dessa técnica fiscal, conclui
acertadamente que a personalização dos impostos não compromete o desenvolvimento
econômico. Antes pelo contrário. A instrumentalização de uma maior justiça na distribuição
dos gastos públicos – e conseqüentemente, na distribuição de riquezas – é elemento que
contribui para um desenvolvimento otimizado e democrático do Estado. Ilusão é pensar que a
manutenção da atual desigualdade sócio-econômica é o correto caminho para se atingir a
plenitude dos objetivos da justiça social.
5.2.2.2 Tributos diretos e indiretos
Não obstante a definição das alíquotas fiscais tenha, de fato, um papel
determinantemente importante na efetivação dos desideratos de isonomia do
constitucionalismo social, também a escolha dos fatos geradores altera os dados da
capacidade contributiva no ordenamento tributário.
Nos termos já mencionados, pautaram as sociedade do século XIX em uma maior
utilização de impostos indiretos, incidentes a todos com a mesma alíquota. Foi a maneira mais
racional de se atingir a totalidade dos contribuintes sem permitir as discriminações negativas
do Ancièn Regime. Nogueira relata que a partir do sistema tributário liberal, a utilização dos
impostos indiretos sobre consumo “foi-se ampliando para atingir a quase-totalidade dos
artigos de consumo” (NOGUEIRA, Ruy Barbosa, 1999, p. 09).
O primeiro ponto a ser observado é que a tributação indireta, principalmente sobre o
consumo, dificulta a utilização da progressividade, que conforme pudemos perceber, é
importante instrumento para a capacidade contributiva. A propósito, é justamente essa
166
peculiaridade dessas espécies tributárias que fez os liberais receberem-na tão bem em suas
teorias jurídicas.
Por estar a exação fiscal já presente no preço final do produto comercializado –
“imposto embutido no preço” -, é dificultado ao Fisco realizar a incidência diferenciada de
alíquotas para os diversos consumidores. Afinal, todos irão sofrer a mesma cobrança para a
compra do produto consumido.
Nesse sentido, os impostos indiretos não são capazes de apresentar a mesma
flexibilidade que os impostos diretos pessoais, tal qual o Imposto de Renda. Esse último, p.e.,
permite a determinação de várias faixas de alíquotas sendo, assim, detentor de maior
compatibilidade com a progressividade fiscal e com o exame da individualidade do
contribuinte.
Mas não é apenas isso. A utilização dos impostos indiretos, que no caso brasileiro são
exemplos o ICMS (art. 155, II da CF/88) e o IPI (art. 153, IV da CF/88), pode, na prática,
levar a um efeito regressivo, ou seja, onerar de forma mais excessiva justamente quem detém
menos recursos.
Ocorre que, por manter a mesma alíquota sobre o consumo de determinados bens, o
imposto acaba por exigir o pagamento dessa mesma alíquota por parte de todos os
contribuintes – a repetição de tal dado já se faz redundante. No entanto, é de se observar que
os contribuintes mais abastados direcionam um percentual muito menor de sua renda para o
consumo do que um contribuinte menos favorecido.
Em exemplificação simplória, uma família que detenha uma renda líquida mensal de
R$10.000,00, poderá direcionar, por exemplo, R$5.000,00 – 50% da renda – para o consumo
não apenas de suas necessidades mais imediatas, mas também para a satisfação de certos
luxos. Noutro lado, uma segunda família com renda de apenas R$1.000,00 terá que destinar
uma parcela muito maior de sua renda, p.e. R$800,00 – 80% da renda líquida – para a
satisfação unicamente de suas necessidades primárias.
No exemplo, houve um efeito regressivo do imposto indireto, pois o mesmo acabou
onerando de forma mais expressiva aquele contribuinte que deveria ser poupado das
exigências fiscais. Noutras palavras, é o contrário do ideal de capacidade contributiva!
É isso que faz Aliomar Baleeiro argumentar que
consideram-se ‘regressivos’ o Imposto sobre Produtos Industrializados e o Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias sobre artigos essenciais à vida, porque retiram do total das despesas das famílias modestas frações proporcionalmente maiores que de pessoas mais abonadas. É velha a observação de que tanto menor é o salário, tanto maior a parcela destinada à satisfação das
167
necessidades fundamentais (Lei de Engels). (BALEEIRO, 1998, p. 751) (grifos nossos).
Em que pese esse caráter regressivo dos impostos indiretos e sua conseqüência
obstadora da capacidade contributiva, há autores que se mantêm céticos às críticas
direcionadas aos sistemas em que prevalecem tais espécies tributárias.
Nessa toada, calcado em um projeto de desenvolvimento econômico, Ives Gandra
professa longa argumentação contrária à tese de que impostos indiretos são regressivos e
destoantes do conteúdo constitucional fundamental da igualdade. Não podemos deixar de
trazer suas exatas palavras, com marcantes raízes liberais:
O fundamento ideológico de tal postura é que o tributo indireto é regressivo e injusto socialmente, e o direto é justo e distributivo. A tendência dos países em reverter tal concepção ideológica idealística de utilizar-se da tributação indireta, prevalecendo sobre a direta tem constatações práticas. É que a tributação direta desestimula a poupança, o investimento, gerando menor desenvolvimento, menos emprego e, por outro lado, menor arrecadação. Por ser a tributação indireta neutra, a maior disponibilidade que a reduzida tributação direta produz gera maiores estímulos aos investimentos e poupanças, portanto, progresso econômico e nível de volume arrecadatório superiores.( MARTINS, 1989, p. 44-45) (grifos nossos)
E prossegue o autor afirmando o caráter ideológico de uma corrente e o pragmático da
oposta, concluindo, por derradeiro, com sua discordância acerca da opção constituinte:
os ideais que defendem a predominância da tributação direta sobre a indireta são bem maiores do que os resultados. Já os resultados dos que defendem a predominância da tributação indireta sobre a direta são bem maiores que os ideais. Por voto, os países desenvolvidos têm deixado os ideais com os ideólogos e adotado as soluções práticas que lhes têm permitido, na década de 80, acentuada evolução [...] o nosso constituinte preferiu adotar a tese dos ideólogos mal sucedidos e não dos práticos bem sucedidos, razão pela qual expressou sua preferência pela tributação direta, desestimuladora da poupança, do trabalho e do investimento. (MARTINS, 1989, p. 46; 48-49)
Com a devida vênia, discordamos do pensamento esboçado por Ives Gandra. Não há
que se atrelar a utilização de tributos indiretos ao desenvolvimento das nações de primeiro
mundo. Nesse sentido, Sacha Calmon (COELHO, 2005, p. 47 e ss.) ressalta que mesmo
países como EUA e Inglaterra não colheram bons frutos da tributação indireta. Antes pelo
contrário, notaram esses mesmos países uma intensificação da desigualdade social.
Destaca ainda Sacha que o Brasil, recorrente privilegiador dos tributos indiretos, não
obteve aumentos significativos na poupança e em investimentos, o que fragiliza o argumento
de necessária relação entre os impostos indiretos e o desenvolvimento sócio-econômico.
168
Noutro lado, mesmo quando enfrentados tributos indiretos, não são atadas as mãos do
legislador para a observância da capacidade econômica dos indivíduos120.
A seletividade121, ou seja, a escolha de quais bens serão tributados em razão de sua
essencialidade, podem direcionar a tributação para aquelas classes sociais relacionadas com
alguns fatos geradores específicos.
Nessa toada, produtos relacionados à cesta básica alimentar, higiene, saúde e vestuário
devem ser objeto de menor ou nenhuma tributação já que, por si só não são capazes de refletir
eventual riqueza de seu comprador, além de necessários para a manutenção de um mínimo
vital intangível à tributação.
Em contrapartida, produtos denotadores de um excesso financeiro, que expressam uma
forte presunção de capacidade contributiva, tais como artigos de luxo, podem ser objeto de
uma tributação mais onerosa, resultando, justamente, em uma maior imposição fiscal àqueles
com maior disponibilidade pecuniária.
É fraca, no entanto, a expressividade da essencialidade para fins de capacidade
contributiva. Enquanto os impostos diretos permitem um maior detalhamento em seu processo
de individualização de alíquotas para os distintos perfis de contribuintes, a essencialidade dos
impostos indiretos acarreta a adoção de uma sistemática fiscal objetiva e distante, baseada
unicamente na presunção de aquisição de determinados produtos.
Com propriedade, é nítida a compatibilidade entre a essencialidade e a capacidade
contributiva. No entanto, sua eficácia, quando comparada à tributação direta se mostra pouco
empolgante122.
Ainda que se tenha apontado instrumentos tributários a partir dos quais decorrem
efeitos sociais e econômicos distintos, não se pode absolutizar e pretender um sistema fiscal
calcado apenas em tributos pessoais e repudiar aqueles ligados ao consumo, por exemplo. A
utilização de uma única metodologia tributária inexoravelmente nos levaria a uma distorção
do sistema em si, não propiciando os objetivos que aqui argumentamos buscar.
120 Em sentido contrário, Carrazza argumenta que pela natureza, certos impostos não permitem o atendimento da capacidade contributiva, tais como o ICMS, que é um dos impostos indiretos aos quais nos referimos. Segundo o autor, isso ocorre em razão da característica que apresentam tais impostos de não serem custeados pelo responsável tributário, e sim repassados aos consumidores. (CARRAZZA, 2004, p. 94 e ss) 121 No direito brasileiro, a seletividade é obrigatória para o IPI ( art. 153 § 3º, Ida CF/88) e permitida ao ICMS ( art. 155, § 2º, I da CF/88) 122 Corrobora nossa argumentação Casalta Nabais, para quem “resulta claro a fraca, senão mesmo fraquíssima expressão do princípio da capacidade contributiva nos impostos indirectos, os quais hão-de-ser aferidos basicamente através do recurso a outros princípios ou preceitos constitucionais [...] Daí que não nos parece compatível com o princípio da capacidade contributiva uma tributação inteira ou esmagadoramente assente em impostos indirectos.” (NABAIS, 2004 p. 482)
169
A idéia de equidade horizontal, definida como a igualdade de tratamento das pessoas igualmente situadas em relação a algum critério de equidade vertical, leva em si um erro. Esse erro consiste em tomar-se a renda, o consumo, ou a riqueza pré-tributárias como uma base moral e depois procurar-se formular um critério de justiça que diga o quanto de imposto cada indivíduo tem de pagar de acordo com sua posição nessa base (MURPHY, NAGEL, 2005p. 225)
No entanto, ainda que fazendo uso de todas essas técnicas tributárias, deve-se sempre
atentar aos seus princípios retores para que possível adequá-las aos ditames constitucionais
ora observados. Mais uma vez se destaca: é a efetivação dos pressupostos constitucionais que
fundamentam e reconstroem os conteúdos dos institutos fiscais.
5.2.2.3 Nível arrecadatório
Além de toda essa instrumentalidade fiscal de que se dispõe o Estado para fazer valer
os anseios sociais que o pautam, também um outro mecanismo é crucial para o êxito
pretendido: a arrecadação. O potencial dos cofres estatais pode influenciar – e muito – na
atuação direta do Estado na mitigação das desigualdades sociais.
Nesse sentido, cada vez mais autores reconhecem, na capacidade contributiva, uma
possibilidade real de redistribuição de fortunas, uma forma de alterar a distribuição imediata
realizada pelo mercado capitalista.
Para Sidou, a nitidez dessa caracterização vem ao estudar os objetivos dos impostos:
Atuando sobre a repartição, o objetivo equilibrador do imposto é diretamente social e indiretamente econômico, porque, compensando as desigualdades de fortuna [...] função imediata, objetiva o crescimento da capacidade econômica do contribuinte, função diferida [...] A função diferida decorre de que o desestímulo aos desníveis da fortuna privada num grupo social, à medida em que reduz aritmeticamente o poder econômico das classes mais abastadas, aumenta geograficamente a capacidade contributiva dos menos abastados. (SIDOU,1978, p. 41)
De fato, parece a capacidade contributiva ter adquirido cada vez mais essa função. Nos
termos estudados anteriormente, não cabe mais ao Estado manter sua posição de mero
espectador em um jogo parcial e desbalanceado que é o mercado econômico.
Antes pelo contrário. Cabe ao ente estatal agir, neutralizando os vícios que maculam o
sistema liberal e compensando os absurdos desníveis de igualdade que insistem em
caracterizar o mundo contemporâneo. Porém como realizar tal desiderato redistributivo?
170
Os instrumentos afirmados anteriormente auxiliam esse propósito? Obviamente que
sim. A progressividade e seletividade na tributação permitem direcionar a maior parcela dos
custos de manutenção estatal para aqueles que expressam uma maior aptidão econômica para
concorrer com os mesmos. Poupar as classes menos favorecidas em atenção às suas
dificuldades econômicas já é grande expressão de igualdade constitucional. Porém, não
suficiente.
Sendo responsabilidade do Estado atuar de forma a minimizar as desigualdades que
assolam a humanidade, pode o mesmo direcionar parcela dos recursos angariados pela
atividade tributária para as camadas mais necessitadas. É a própria idéia de um sistema
tributário possibilitando a concretização de um aspecto social que até então era tido por
ausente na matéria fiscal.
Nesse sentido professa Derzi:
O belo no Direito Tributário é que esse ramo visa a tirar recursos financeiros dos mais ricos para utilizá-los em educação, saúde, assistência, e previdência social, etc, especialmente em benefício dos economicamente mais fracos. A justiça tributária é norma informativa de todo o direito, assim como de todas as espécies de tributos, mas acentua seu caráter redistributivo nos impostos (DERZI In: BALEEIRO, 2005, p. 200)
Não se ignora o fato de o artigo 167, IV da CF/88 impedir a vinculação dos recursos
advindos dos impostos, o que, em uma primeira análise poderia fazer cair por terra toda nossa
argumentação acerca da destinação dos numerários advindos da arrecadação para fins sociais.
Afinal, não há qualquer garantia de que o produto das exações advindas dos impostos terá, de
fato, destinação ligada à diminuição das desigualdades sociais.
Não obstante, a argumentação pela secção ente Direito Tributário e Direito
Orçamentário como dois pontos estanques não pode subsistir. Para vislumbrar a tributação
como forma de redistribuição de rendas, deve-se considerar a tributação em conjunto com o
Direito Orçamentário, uma vez ser este último o responsável pela alocação dos recursos
advindos daquela.
O tributarista mineiro Werther Spagnol, apoiado nos ensinamentos de Bereija, acaba
por concluir que a relação de instrumentalidade entre receita e gastos implica um estudo que
considere a relação de sistematicidade entre essas duas esferas, sob pena de perda da própria
razão normativa. E não carece de acerto o autor em comento.
Uma vez concluído que a tributação tem como um de seus fundamentos retores a
capacidade contributiva, também a destinação de seus gastos deve efetivar esses pressupostos.
171
Afinal, é a mesma racionalidade constitucional que embasa e justifica tanto a exação quanto a
alocação financeira das verbas públicas. Conclui Werther que “a análise do binômio
ingressos-gastos passa necessariamente pela via orçamentária, responsável pela sua
contabilização, não podendo, portanto, a tributação ser estudada, enquanto meio de obtenção
de ingressos, apartada dessa dinâmica” (SPAGNOL,1994, p. 47).
Reforça o posicionamento antedito os americanos Murphy e Nagel, para quem
a maioria das questões acerca da justiça ou da imparcialidade do sistema tributário devem ser resolvidas considerando-se a tributação como um elemento de um panorama econômico muito mais abrangente, que inclui gastos com bens públicos e com a redistribuição (MURPHY, NAGEL,2005, p. 223)
Mas, mesmo para aqueles mais céticos e resistentes à idéia de uma atuação conjunta
do Direito Tributário e Orçamentário, pode a arrecadação ser percebida como efetiva forma
de destinação de recursos.
Isso porque não obstante sejam os impostos caracterizados pela sua não-afetação (art.
167, IV da CF/88), há tributos que apresentam característica exatamente oposta. É o caso da
previsão constante no artigo 149 da CF/88 que abarca as contribuições sociais, de intervenção
no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas.
Quando em análise as contribuições, é taxativa a determinação de sua destinação. Na
lei criadora desses tributos, deve, desde já, ser estabelecido o destino final das verbas deles
originários123.
Nessa trilha, não é difícil imaginar a União instituíndo uma contribuição sobre a
movimentação financeira cuja arrecadação efetivamente seja direcionada para custear projetos
da saúde, por exemplo.
No hipotético exemplo imaginado, o correto pagamento do tributo devido implicará
um repasse indireto para aqueles menos capazes de suprir a básica necessidade de
atendimento hospitalar ou gastos com a saúde em geral. Lado outro, seu não pagamento
significaria óbice na redistribuição de riquezas em benefício dos que permanecem em
condições precárias de vida.
Assim como é possível perceber a existência de um direito fundamental social em
relação à igualdade substancial, direito à moradia, saúde, enfim, toda a gama de direitos de
123 “O que importa sublinhar é que a Constituição caracteriza as contribuições sociais pela sua ‘destinação’, vale dizer, são ingressos necessariamente direcionados a instrumentar ou financiar a atuação da União (ou dos demais entes políticos, na específica situação prevista no § 1º do art. 149 renumerado pela EC n. 33/2001, com a redação da EC n. 41/2003) no setor da ordem social.” (AMARO, 2005 p. 53)
172
segunda geração comumente elencados, é também possível apontar a existência de um dever
fundamental de segunda geração.
Conforme bem trabalha Nabais (2004), todo direito fundamental implicará também
um dever fundamental contraposto possibilitador de sua realização. Trata-se, no caso, de um
dever fundamental do contribuinte participar, com sua cota tributária, para que haja a
efetivação dos direitos fundamentais de segunda geração.
Posição mais radical de utilização redistributiva dos tributos é aquela defendida por
Murphy e Nagel.
Ao discorrer acerca da capacidade contributiva, os autores não se contentam a
trabalhar com um “mínimo universal” intangível pela fiscalidade tal qual se mencionou
anteriormente. Para eles, deve haver uma tributação negativa para aqueles indivíduos abaixo
desse “nível mínimo” representada na efetiva transferência de recursos financeiros para os
mesmos.
No entender dos autores, apenas será possível atingir os efeitos pretendidos pela
progressividade tributária se incrementarmos a renda daqueles que, não apenas não podem ser
tributados, mas ainda necessitam de auxílio financeiro direto.
Nós mesmos preferimos aquelas concepções de justiça segundo as quais a sociedade deve ter o objetivo de proporcionar a todos os seus membros pelo menos um nível mínimo de bem estar e de acesso às oportunidades. Essa doutrina exige que se considerem cuidadosamente dois tipos de progressividade no sistema tributário. Em primeiro lugar, a progressividade de uma substancial renda mínima universal, que resulta num imposto de renda negativo (transferência de dinheiro) para as faixas de baixa renda. Em segundo lugar, a progressividade das alíquotas marginais (MURPHY, NAGEL, 2005, p. 191)
No que tange à transferência direta de recursos aos contribuintes deficitários,
permanecemos tímidos em nosso posicionamento, não possuindo subsídios para concluir pela
sua eficácia ou ineficácia em um âmbito mais amplo. Mas de não se pode deixar de considerar
o risco de um paternalismo que, ao invés de propiciar uma inclusão democrática, acarreta, em
realidade, um passivismo cívico que contraria qualquer evolução social.
Entretanto, o que é mister destacar, e presente em ambas as atuações distributivas
fiscais, é a importância que a arrecadação apresenta no que tange à concretização do ideal
igualitário. A correta exação fiscal não mais representa uma agressão do Estado ao patrimônio
particular, mas sim é instrumento que torna capaz a atuação do Estado em seus objetivos de
isonomia constitucional.
173
É certo que não apenas os direitos sociais, mas toda a gama de direitos fundamentais
depende de uma satisfatória arrecadação tributária. Afinal, conforme já debatido no início
deste trabalho, todos os direitos demandam um custo e prestações positivas por parte do
Estado.
Não se pode desconsiderar, porém, que foi a partir do constitucionalismo social que
mais se deu valor à atuação estatal dependente de recursos públicos. Diante disso, e
preservando nosso propósito de apontar as características básicas de cada momento
constitucional, não poderíamos deixar de apontar a importância da arrecadação tributária para
concretização das atuações estatais a partir do estudo dos direitos de segunda geração.
5.2.3 A intervenção do Estado no domínio econômico como concretização dos
direitos sociais
No início deste capítulo, chegou-se à conclusão de que a intervenção estatal na esfera
econômica é necessária para a efetivação dos direitos de segunda geração. A inércia do Estado
já comprovou ser, a duras conseqüências, desvirtuadora do conceito material de justiça e
igualdade. Esses foram os frutos da abstenção pública teorizada nos séculos XVII a XIX.
Da mesma forma, concluiu-se que a realização dos direitos de segunda geração (e
também de outras gerações!) implica uma atuação na vida econômica, evitando assim, o
abuso do capital privado e a manipulação do mercado por parte deste. Mas não apenas.
A intervenção pública se mostra também imprescindível se analisada a possibilidade
de conformação das ações privadas visando o alcance de um direito determinado. Essa
dimensão negativa, a capacidade de induzir os particulares com escopo de otimizar a
efetivação dos objetivos constitucionais pode ser tão determinante quanto a atuação direta e
imediata do Estado na vida social (dimensão positiva).
Não por outro motivo Alberto Deodato (1949, p. 05-15), em obra destinada
exclusivamente à extrafiscalidade e elaborada ao final da década de 40, se defronta com a
percepção social dos estragos sociais em que o “Estado Gendarme” culminou. Apontando
medidas combativas de uma crise social tal qual observada anteriormente, Deodato apóia-se
nos artigos constitucionais (art. 145 e 146 da CF/1946) em que consta previsão de uma ordem
econômica justa com presença estatal.
Como atuar a fim de efetuar tais desideratos é o que se verá a seguir.
174
5.2.3.1 A extrafiscalidade
Após o desenvolvimento das características que marcaram o aparecimento e
desenvolvimento do constitucionalismo social, espera-se já restar claro o quão necessária a
presença do Estado para a efetivação dos direitos ditos de segunda geração. A anterior inércia
estatal demonstrou ser, a duras penas, desvirtuadora da idéia de justiça e igualdade. Porém,
mais uma vez deve-se destacar. Não apenas esses, mas todos os direitos fundamentais
demandam tal presença, sejam eles classificados como liberais, sociais ou mesmo difusos!
Mesmo porque não se pode segmentar, de forma estanque, o bloco único e inter-relacional
que compõem tais direitos. Momento algum é abandonada a indivisibilidade que hoje se
reconhece aos mesmos (Cf. cap. III). Eventuais críticas pela análise apartada ora realizada
representarão, em realidade, o não entendimento da preferência meramente didática em
apresentar ao leitor as nuances predominantes em cada momento constitucional. Acredita-se,
assim, já restar clara a implausibilidade de se destacar, de forma objetiva, quais direitos
pertencem a cada geração respectiva. Afinal
conforme o caso, por exemplo, o direito ao meio ambiente saudável pode ser tratado argumentativamente como questão interindividual de direito de vizinhança, como condições adequadas de trabalho de uma categoria profissional, ou, até mesmo, como direito das gerações futuras: depende da perspectiva argumentativa, se individual, coletiva, social ou difusa de quem o defende em juízo (OLIVEIRA, 2003, p. 137)
Quando do Estado Patrimonial, a tributação não apresentava o relevo para as contas
públicas tal qual a atualidade, permanecendo assim, com caráter de subsidiariedade. De todo
modo, certas tarefas determinantes para aquele modelo de Estado eram atribuídas ao sistema
fiscal, principalmente em decorrência dos tributos extrafiscais, entendidos como aqueles
destinados a propósitos outros que não a arrecadação financeira estatal. Seu foco deixa de ser
a arrecadação, para se dirigir a outros interesses.
Nessa senda, perseguem os tributos extrafiscais fins imediatos sociais, políticos,
econômicos, ou mesmo o escopo de determinar, ou pelo menos, estimular ou desestimular
alguma outra conduta por parte dos contribuintes que esteja em consonância com os interesses
estatais.
175
Essa atuação indireta do Estado por meio do sistema tributário pode ser alcançada pela
exação positiva ou negativa, ou seja, tanto pela maior oneração tributária, como também por
reduções e isenções/benefícios fiscais.
Trata-se assim, de normas (fiscais) que, ao preverem uma tributação, isto é, uma ablação ou amputação pecuniária (impostos), ou uma não tributação ou uma tributação menor [...] estão dominadas pelo intuito de actuar directamente sobre os comportamentos econômicos e sociais dos seus destinatários [...] ou seja, de normas que contêm medidas de política económica e social. (NABAIS, 2004, p. 629)
Percebendo que a majoração ou redução de tributos aduaneiros acarretava alterações
no número de importações e exportações em razão da modificação do preço dos produtos
correspondentes, o Estado utilizava tal estratégia fiscal a fim de manter positiva sua balança
comercial. Era a época do mercantilismo e da preponderância das exportações sobre as
importações como medida de desenvolvimento das nações.
O posterior período liberal, calcado na crença de auto-regulação econômica, inadmitia
a intervenção estatal em qualquer seara que pudesse macular a pureza do sistema sócio-
econômico, inclusive através de regulações indiretas por meio da tributação. Em razão disso,
a extrafiscalidade, ameaçadora da neutralidade retora dos ideais liberais, perdeu fôlego à
época sem, contudo, desaparecer completamente.
Nesse período, vislumbrava-se a tributação apenas em sua finalidade fiscal, ou seja,
em sua capacidade de auferir rendas para sustento dos dispêndios públicos. Nesse sentido,
tal finalidade corresponde à meta econômica dos sistemas tributários mais antigos, que limitavam a utilização dos impostos para um fim unicamente fiscal, determinado pelo total das necessidades públicas [...] A economia clássica, condenando em princípio toda intromissão do Estado no desenvolvimento econômico, propugna pelo imposto como instrumento exclusivamente financeiro, para servir como carreador de receitas públicas necessárias para as despesas do Estado, não para outros fins. (MORAES, 2002, p. 441) (grifos nossos)
Certo é, porém, que já com A. Wagner, no final do século XIX, se buscava a
concepção de que os impostos, além de sua mera função fiscal, deveriam também ser
utilizados para correção das distorções do mercado (NABAIS, 2004, p. 229). Desde já se
percebia que a ausência de mecanismos para conter as distorções causadas pelo jogo
econômico levaria ao próprio caos que caracterizou a transição do século XIX ao século XX.
No entanto, a visão do autor antedito se restringiu aos teóricos do socialismo estatal, não
alcançando de forma plena o âmbito financeiro-tributário.
176
Para Nabais (2004, p. 230 e ss.) a crítica ao pensamento de Wagner acerca da
instrumentalidade da figura tributária começou com negação absoluta e incisiva à função
extrafiscal dos impostos, não a admitindo em qualquer grau ou intensidade. Essa rejeição foi
motivada pelo resquício das idéias liberais contrárias a uma postura intervencionista por meio
do Fisco.
Posteriormente, porém, em razão do próprio avanço do Estado social, passa-se a exigir
a instituição de mecanismos de atuação estatal no domínio econômico. Essa era, ademais, a
própria crítica que Keynes direcionava ao abstencionismo estatal. Para ele, a economia
clássica conseguia seus desideratos quando o cenário era favorável, mas uma vez
estremecidas as condições econômicas, cabia à intervenção estatal garantir a estabilidade e o
desenvolvimento (BARBER,1979, p. 239 e ss.). Com essas idéias em ascensão, foram
mitigados os argumentos contrários à extrafiscalidade, dando azo, assim, à sua aceitabilidade
inicial. A partir desse momento passa a ser propagada a “teoria do fim extrafiscal secundário”.
Segundo essa linha de pensamento, é aceitável que os impostos tenham por escopo
fins outros que não a mera arrecadação de verbas de custeio, apresentando, assim, uma
finalidade secundária que não a finalidade fiscal. Esta última, mantendo a força adquirida no
período liberal, não tinha de ser exclusiva, mas mantinha seu status de objetivo principal da
tributação. Daí a “secundariedade” da finalidade extrafiscal identificada já na classificação da
teoria.
Em que pese a falta de expressividade da extrafiscalidade, na sessão de 1948 em
Roma, Neumark deu novo ânimo ao debate. Após examinar a realidade tributária de sua
época, concluiu o autor que os impostos são, de fato, instrumento de política econômica,
social e demográfica dos países (BALEEIRO, 1987, p. 182).
Diferente não poderia ter sido. O próprio momento histórico pedia um maior espaço à
intervenção estatal tributária. Após a crise da bolsa americana em 1929 e o reconhecimento do
fracasso da inércia do Estado, a extrafiscalidade passou a ganhar novo terreno como política
de intervenção econômica, possibilitando assim, o alargamento da “Central Banking Policy”
(HUGON, 1945, p. 28).
De todo modo, apenas mais tarde, no entardecer do século passado, em meados da
década de setenta que o caráter “secundário”, ou subsidiário, da extrafiscalidade é
abandonado. Torna-se mais visível que a utilização extrafiscal da tributação, não contradiz o
Estado social, mas de fato, é um eficaz instrumento à sua disposição. Uma vez a realidade
social e econômica tendo se mostrado sensíveis à extrafiscalidade, essa passa a ser percebida
como viabilizadora dos próprios objetivos lançados ao constitucionalismo social.
177
A compatibilidade dessas idéias é clara. Conforme mencionado, não mais se cogita a
hipótese de uma inércia do ente estatal comungando com as conseqüências sócio-econômicas
(im)previsíveis do liberalismo sem freios. Nessa toada, nada mais adequado que a utilização
de um instituto já presente na esfera soberana para conciliar os objetivos estatais e atuar na
ordem econômica.
Nesse sentido, conforme bem expressa o autor lusitano que alude a essa evolução
histórica,
os objectivos extrafiscais dos impostos não são apenas admissíveis, mas antes exigíveis, de modo a que a actividade fiscal concorra directamente para a prossecução dos fins constitucionais, nos quais se inclui a própria modificação da base económica e social exigida pela constituição em ordem à realização da já referida igualdade de facto. Em suma, o uso do instrumento tributário no sentido extrafiscal, não é apenas constitucionalmente legítimo, antes se tornou num dever constitucional. (NABAIS,2004, p. 240) (grifos nossos)
Com efeito, não se pode negar a capacidade que a tributação tem em incitar ou inibir
comportamentos particulares, onerando ou desonerando124 certas atividades.
Mesmo encarando-se o imposto como tendo a única função de financiar as despesas públicas e de repartir os encargos coletivos, os seus efeitos estão longe do ideal de neutralidade financeira. Qualquer medida fiscal, queira o legislador, queira não, terá repercussões não fiscais (DEODATO,1949, p. 46)
Exatamente por isso, não apenas é possível identificar a extrafiscalidade125 na
tributação, sendo desconsiderado o questionamento acerca de sua legitimidade constitucional,
como também a própria classificação clássica acerca dos papéis das espécies tributárias não
mais se sustenta.
Tradicionalmente, os tributos são divididos entre parafiscais, fiscais e extrafiscais.
124Esclarece ainda Nabais (2004, p. 636 e ss.) que durante longo tempo houve certa reticência quando à aceitação dos benefícios fiscais como mecanismo extrafiscal, posicionamento que hoje não mais persiste, com a ressalva de alguns poucos, tais como L. Ras-Tello. 125 Acerca dos autores espanhóis: “la doctrina, cuando aborda la concepción de la extrafiscaliadd, lo hace, mayoritaritamente, desde una perspectiva negativa: la define como el fenómeno tributario que provoca un alejamiento de mayor o menor grado, respecto del fin natural del instituto tributario, que es el fiscal, conforme al cual se configura el mismo instrumento medial, allegando los medios económicos necesarios para alcanzar los fines del Estado. De lo expuesto podemos deducir que la mayoria de la doctrina define la extrafiscalidad como un fenómeno sin entidad propia, sin unos perfiles claros [...] En la actualidad, el fenómeno de la extrafiscalidad se presenta de modo cualitativamente distinto. Incluso pude definirse de modo positivo. Desde ésta perspectiva, la extrafiscalidad deja de ser um modo de configuración de los tributo ajeno o marginal al fenómeno tributário para presentarse como um modo de ser del fenómeno impositivo em la época contemporanea, encaminado a hacer realidad, dentro del respeto a los princípios materiais de justicia, los mandatos constitucionales” (MORO: 1999, p. 50)
178
Certas vezes, o Estado prefere atuar em conjunto com pessoas jurídicas distintas, seja
pela sua maior especialização, seja pela própria simplicidade administrativa desoneradora do
Estado. Podem, então, ocorrer duas hipóteses.
Em uma primeira situação, o sujeito ativo particular arrecada e fiscaliza a exação, com
todas as garantias e privilégios pertinentes (art. 7º do CTN), mas repassa, ao final, o produto
da arrecadação ao ente político competente.
Há possibilidade, porém, de o sujeito ativo, além de arrecadar e fiscalizar a respectiva
obrigação fiscal, manter consigo os valores advindos da tributação, utilizando-o na prestação
de suas atividades específicas. É o caso da parafiscalidade.
Nessa toada, são parafiscais126 aqueles tributos que têm suas “receitas diretamente
atribuídas a certas entidades criadas pelo poder público para o desempenho de determinadas
atividades, cujas características técnicas exigem autonomia administrativa e financeira”
(BECKER,1972, p. 349). Exemplo claro são as contribuições destinadas ao terceiro setor:
SESC, SENAC, etc..
Discordamos da lição de Alfredo Becker apenas em um ponto. Enquanto para o autor
apenas entidades criadas pelo poder público podem se relacionar com o Estado por meio da
parafiscalidade, entendemos que também as entidades privadas podem atuar em conjunto com
o poder público, posicionamento este, mais concordante com as lições de Bernardo Moraes127
e de Geraldo Ataliba (ATALIBA, 2005, p. 35).
Em que pese nosso posicionamento crítico à distinção classificatória tradicional, a
diferenciação dos tributos parafiscais ainda pode se afirmar pertinente. Mas é interessante
observar que o direcionamento de recursos advindos da tributação a entidades privadas para
estimulá-las a atuar em conjunto com o Estado pode também ser entendido como uma espécie
de extrafiscalidade. Ou seja, mesmo aqui há uma confusão entre as diversas classes de
tributos identificados pela doutrina. Mais uma vez nos firmamos contrários à segmentação
absoluta que relembra o cartesianismo do século XVIII.
Prosseguindo, seriam fiscais aqueles tributos destinados unicamente à obtenção de
receitas para o sustento dos gastos públicos. Teriam assim, função exclusivamente financeira,
126 Conforme ensina Aliomar Baleeiro, “a expressão – parafiscalidade – se consagrou a partir do inventário de Schumann, realizado na França, em 1946, que levantou e classificou os encargos assumidos por entidade autônomas e depositários de poder tributário, por delegação do Estado, como parafiscais” (BALEEIRO,2005, p. 82) 127 “Assim, podem figurar como sujeito ativo da obrigação tributária relativa à contribuição especial tanto a união, como suas autarquias ou órgãos de assistência social (SESI, SENAC, SENAI, etc.) ou profissionais (sindicatos, órgãos de classe, etc.). Portanto, a lei pode oferecer capacidade tributária ativa tanto para a União como para pessoa distinta do Estado, desde que investida em funções públicas específicas” (MORAES,2002, p. 646)
179
de garantir ao Estado o orçamento pecuniário para a concretização das atividades estatais, sem
qualquer reflexo em outras searas da vida social. Para Paulo de Barros Carvalho,
fala-se, assim, em ‘fiscalidade’ sempre que a organização jurídica do tributo denuncia que os objetivos que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos de sua estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres público, sem que outros interesses – sociais, políticos ou econômicos – interfiram no direcionamento da atividade impositiva. (CARVALHO, 2004, p. 230)
Por fim, os tributos extrafiscais já apresentados ao leitor, cuja implementação – ou não
implementação, caso dos benefícios fiscais tais como isenções e imunidades – o Estado
consegue incitar ou coibir certas práticas ou políticas adotadas pelos particulares.
A problemática que se impõe acerca da classificação supra mencionada é que não mais
é possível realizar a distinção delineada entre tributos exclusivamente fiscais e extrafiscais.
Todo o sistema tributário está tanto impregnado de extrafiscalidade, e sua conseqüente
tentativa de influenciar os comportamentos particulares, quanto de intuito arrecadatório.
Obviamente, é equivocado o entendimento de que, após alçado o reconhecimento da
extrafiscalidade tributária, a tributação tenha perdido sua função inicial de obtenção de
receitas para os gastos públicos. O Fisco ainda é a fonte de custeio dos gastos estatais.
Entretanto, não se pode deixar enganar pela ilusão de se conseguir trabalhar de forma
estanque apenas a fiscalidade dos tributos.
Pautados pela lógica da acumulação de riquezas, qualquer oneração fiscal com que se
depararem, irão os particulares apresentar maior resistência em manter a prática dos fatos
geradores, buscando, assim, outras alternativas que lhes possibilitem menos despesas. Essa
lógica prevalece ainda que, a princípio, a instituição da exação tenha ocorrido em virtude
apenas de objetivos arrecadatórios.
Além do mais, a previsão por parte do legislativo quanto a todas as possíveis
conseqüências de uma criação ou modificação na carga tributária se mostra inimaginável.
Assim, várias serão as hipóteses em que uma norma de objetivos fiscais irá gerar efeitos
econômicos, sociais ou políticos mesmo sem a intenção estatal.
E a recíproca também é verdadeira.
Dessa forma, há momentos em que o Estado, voluntariamente, institui, aumenta ou
diminui uma obrigação fiscal com a expectativa de modificar os comportamentos dos sujeitos
passivos a ela relacionados.
É o caso, por exemplo, da utilização da progressividade dos tributos IPTU (art. 156 §
1º, c/c art. 182, § 4º, II, ambos da CF/88) e o ITR (art. 153, § 4º, I da CF/88). No caso do
180
IPTU progressivo, trata-se de uma expressa intenção constitucional em promover a função
social da propriedade urbana, criando obstáculos àqueles que com ela não se adeqüam. É
assim instrumento de efetivação do conteúdo de propriedade preocupada com o entorno social
(fruto do paradigma social) por meio da tributação.
No entanto, a adoção dessas medidas também irá gerar impactos sobre a arrecadação
tributária. Não há como argumentar contrariamente.
Nas palavras de Gouvêa, “a fiscalidade e a extrafiscalidade não se excluem, senão que
se complementam sempre, pois não há fiscalidade (arrecadação) que não importe outras
conseqüências, nem extrafiscalidade que se opere sem a arrecadação de receitas
tributárias.(GOUVEA, 2006, p. 80)
Não obstante essa evolução da visão classificatória, ainda há aqueles que persistem em
uma análise seccionante da tributação. Tanto o é que definem limites distintos à atuação
tributária de “espécies fiscais” e “espécies extrafiscais”.
5.2.3.1.1 Limites da extrafiscalidade e seu conflito com a capacidade contributiva
Interessante questão se apresenta quando da análise dos limites aos quais deve se
atentar a utilização da extrafiscalidade. Para doutrinadores como Werther Botelho, os limites
à extrafiscalidade não se distinguem das demais técnicas tributárias. Percebendo o sistema
fiscal como um corpo único, Werther recorda que
não se pode olvidar que a tributação responde a princípios globais e, devem ser os mesmos interpretados em consonância com as normas constitucionais, visto que interdependentes[...] é mister fincar que os limites à tributação extrafiscal são os mesmos impostos de maneira geral ao poder de tributar (SPAGNOL, 1994, p. 40)
Por sua vez, para Casalta Nabais (2004, p. 645 e ss.), há limites distintos aos tributos
fiscais e extrafiscais, o que de per se implica a admissão da classificação dicotômica acima
questionada. Preferimos optar pela idéia de que há tributos que apresentam maior densidade
ou tendência extrafiscal, ou maior densidade ou tendência fiscal. Nesses casos,
compatibilizam-se as idéias de Nabais com a desconstrução classificatória realizada por
Gouvêa.
181
Para o autor lusitano, os tributos fiscais devem ficar mais atentos aos limites traçados
pelo princípio da legalidade tributária e a suposta rigidez que essa garantia legalista propõe.
Por outro lado, as exigências da legalidade devem ser atenuadas diante das influências que as
demandas sociais, políticas e ambientais exigem da tributação. Em virtude disso, a
extrafiscalidade apresenta, para o autor, uma “legalidade soft” (NABAIS, 2004, p. 655).
Com efeito, há impostos no Direito brasileiro que, após instituídos por meio de lei,
podem ter suas alíquotas alteradas por meio de decreto do Poder Executivo, representando,
assim, exceção ao princípio da legalidade. É o que ocorre com o IPI (impostos sobre produtos
industrializados), II (imposto sobre importação), IE (imposto sobre exportação) e IOF
(imposto sobre operações financeiras) (art. 153, incisos I, II, IV e V, c/c §1º do mesmo art.
153 da CF/88), tributos cujas modificações de alíquotas ocasionam rápidos efeitos no
mercado econômico. Da mesma forma, a diminuição e restabelecimento da alíquota da CIDE
referente a petróleos e derivados (art. 177, § 4º, I”b” da CF/88).
E de outra forma não poderia se dar. Considerando a forte mutabilidade dos cenários e
decisões econômicas, deve o Estado ter em mãos instrumentos interventivos de semelhante
agilidade sob pena de total perda de eficácia. Para que esses impostos extrafiscais consigam
acompanhar as necessidades regulatórias do mercado, a própria legalidade, princípio absoluto
em momento precedente, deve parcialmente ceder.
Questão diferente se encontra a limitação da extrafiscalidade pela igualdade ou
capacidade contributiva.
Dentro da doutrina brasileira, identifica-se corrente, da qual é componente Lobo
Torres (2005, p. 97), no sentido de a extrafiscalidade ter como principal limite a própria
capacidade contributiva.
Noutra trilha, há autores na defesa de que, quando a tributação se dirige a estimular ou
desestimular comportamentos particulares, ela não é capaz de observar a o princípio
contributivo.
É isso que faz Nabais afirmar que o princípio da igualdade não tem qualquer aplicação
nessas espécies tributárias: “no concernente ao primeiro setor – o dos impostos extrafiscais ou
dos agravamentos extrafiscais de impostos –, o princípio da legalidade fiscal sofre uma
atenuação, enquanto o princípio da igualdade fiscal não tem em rigor aplicação” (NABAIS,
2004, p. 659).
Já na construção do pensamento de Ávila (2006, p. 350 e ss.), a questão deve ser
resolvida, jurisdicionalmente, por meio da ponderação de valores teorizada por Alexy.
182
Muito embora a teoria alexyana possa representar uma superação do ranço positivista,
ela acaba por cair em algumas armadilhas. Destaca-se o fato de não ser capaz de diferenciar
argumentos jurídicos e políticos, permitindo, assim, uma análise “custo-benefício” por parte
do intérprete. Tarefa essa que, a princípio, resta situada na esfera legislativa, e não
jurisdicional.
Dessa forma, Ávila acredita que cabe ao jurista verificar se a violação ao direito da
igualdade tem uma relação de “medida-fim” com o objetivo extrafiscal. Noutros termos,
caberia ao intérprete verificar se o benefício da extrafiscalidade justifica o custo da
desigualdade provocada pela ação não-fiscal dos tributos, realizando a análise de vantagens e
desvantagens que a prevalência da extrafiscalidade sobre a igualdade acarreta no caso
concreto128.
Não é a opinião com a qual compartilhamos.
De fato, quando se realiza a graduação de alíquotas para fins extrafiscais, há
incidência das mesmas sobre todos os particulares inseridos no papel de sujeito passivo da
obrigação tributária. Ora, se o objetivo que impulsiona o Estado é a conformação dos
comportamentos dos cidadãos – e não a repartição dos encargos dos cofres públicos –, não se
pode falar em exceção à exação fiscal. Mesmo aos menos favorecidos. Esse é o ponto que
constrói o pensamento de total anulação do princípio da igualdade.
Não se pode esquecer, porém, que a capacidade contributiva absoluta é um verdadeiro
ditame constitucional que não pode ser simplesmente largado para que o Estado possa atuar
na economia. A busca por uma conquista social – presença estatal na sociedade – não
contraria a outra – respeito à isonomia.
Assim, a extrafiscalidade pode sim afastar a capacidade contributiva para fins de
critério de gradação. No entanto, deve observar sempre a escolha dos fatos geradores que
servirão de base para a cobrança fiscal. É de se lembrar o posicionamento de Moro
mencionado páginas atrás: “o legislador deverá tipificar como fato imponível de um tributo
todas as situações expressivas de capacidade econômica no sujeito, que respondam à idéia de
justiça que informa o estabelecimento do mesmo” (tradução nossa)129 (MORO,1999, p. 68)
128 “...a desigualdade com base em fins externos (finalidades extrafiscais) deve ser proporcional (relação ‘medida-fim-bem-jurídico’) no sentido de saber se a medida (o meio) é apto para promover a finalidade extrafiscal almejada (relação ‘meio-fim’), se a medida consiste no meio mais suave relativamente ao direito fundamental à igualdade de tratamento (relação ‘meio x meio’) e se as vantagens decorrentes da promoção da finalidade extrafiscal estão em relação de proporção com as desvantagens advindas da desigualdade (relação ‘vantagens x desvantagens’).” (ÁVILA,2006, p. 350-351). 129No original: “el legislador deberá tipificar como hecho imponible de um tributo todas las situaciones expresivas de capacidad económica en el sujeto, que respondan a la idea de justicia que informa el estabelecimento del mismo”
183
E isso porque “o fato de a tributação extrafiscal colimar fins diversos da simples
captação de dinheiro para o erário não autoriza o legislador e demais operadores do Direito a
olvidarem a capacidade contributiva” (LEÃO, 1999, p. 28).
Não fosse suficiente, é interessante ressaltar que a utilização de impostos com maior
dimensão extrafiscal, pode, última análise, ser instrumento de efetivação da própria igualdade
substantiva.
Quando o Estado atua no campo econômico, ele o faz em busca da maximização dos
objetivos constitucionais, dentre eles, a igualdade. Tomem o exemplo das políticas de
investimento e atração de indústrias para determinadas regiões do país por meio da alteração
de alíquotas tributárias. Apesar de uma aparente violação à idéia de isonomia – já que certas
empresas serão mais beneficiadas que outras situadas em local distinto – não há que se falar
em desigualdade constitucional, antes pelo contrário.
É importante estar atento para a nova concepção isonômica que o constitucionalismo
social trouxe aos ordenamentos jurídicos. Igualdade não mais significa um tratamento
idêntico entre todos, mas sim em um tratamento desigual, desde que arrazoado e justificado. É
nesse sentido que o próprio texto constitucional vem prever no art. 151, I, c/c art. 170, VI, a
vedação de criação de tributo federal não uniforme entre pessoas federativas, sendo possível,
porém, a concessão de incentivos para melhor promover o equilíbrio sócio-econômico entre
as diversas regiões brasileiras e redução de suas desigualdades regionais e sociais. Daí que
essa postura de extrafiscalidade não desrespeita, mas sim corrobora a efetivação da igualdade.
5.2.4 Reflexos hermenêuticos: a interpretação econômica e a inflação normativa
pelo Executivo.
Vencida a análise dos impactos materiais dentro do sistema fiscal em razão da
alteração que o constitucionalismo social apresentou quando comparado com seu antecessor,
mister referenciar os reflexos hermenêuticos que surgiram neste novo momento constitucional
em ligação do com Direito Tributário.
Com a maior imponência estatal, representada tanto na assunção de um maior número
de serviços prestacionais, como em uma maior atuação na esfera econômica, o Estado, na
pessoa do chefe do Poder Executivo, sentiu necessidade de um aumento progressivo na
condução dos espaços social, econômico, e também jurídico. A supremacia do interesse
184
público, esboçada nas idéias de Hegel, ganhou uma instrumentalização hermenêutica
importante com o desenvolvimento da teoria do Estado de Carl Schmitt. Nos termos já
destacados, este teórico alemão segmentou a Constituição em dois planos (formal e material),
dando o chefe do Executivo a habilitação para determinar qual a única interpretação correta
da mesma. Noutros termos, o conteúdo material da Constituição residia nas mãos do Füher.
Esta é tese que, justamente por ser característica dos Estados totalitários, não ganhou adeptos
em todos os Estados sociais.
Contudo, sua teoria não se esgota neste ponto. Schmitt também previu a existência de
um legislador extraordinário, paralelo ao Poder Legislativo propriamente dito, por meio do
qual o Poder Executivo poderia lançar medidas normativas para regulamentar as nuances
sócio-políticas enfrentadas.
É algo próximo ao que ainda se identifica no cenário tributário brasileiro. É de largo
conhecimento o fato de que o compêndio de normas tributárias já não se esgota nas
legislações emanadas pelo Congresso Nacional. Antes pelo contrário!
Não fossem suficientes as medidas provisórias com reconhecida legitimidade para
criação de tributos, e cuja “urgência e relevância” não são aferidas, em regra, pelo Poder
Judiciário (AI-AgR 489108 STF – DJ 26/05/2006), há também o oceano de portarias,
resoluções, instruções normativas, etc.
Atuando como um “legislador extraordinário schmittiano”, o Executivo acaba por se
apoderar de funções muitas vezes destinadas ao Poder Legislativo! Obviamente, não se ignora
aqui o entendimento teórico no sentido de que os atos administrativos não detêm legitimidade
para inovar no cenário jurídico, devendo unicamente regulamentar a “moldura” delineada pela
legislação formal. Mas ainda que observada tal limitação (o que nem sempre ocorre), a
regulamentação apropriada aos decretos, resoluções, portaria e outros instrumentos emanados
pelo Executivo, a inflação normativa propiciada pela atuação desmesurada do Estado vem
desfacelando o sistema tributário.
É o que Becker (1999, p.17 e ss.) constata e caracteriza como um “carnaval
tributário”.
No que tange a tais implicações aos contribuintes, já destacado no capítulo anterior. A
quantidade excessiva de normas, ao contrário de assegurar uma melhor atenção aos seus
conteúdos, resulta, unicamente, em uma complexa rede legislativa em que nem mesmo os
operadores do Direito conseguem navegar apropriadamente, quiçá os contribuintes!
Mas um segundo reflexo do paradigma do Estado social dentro da prática tributária
brasileira pode ser percebido. Já estudado que, em virtude da forte mutabilidade dos mercados
185
econômicos, há impostos no Direito Brasileiro que, após instituídos por meio de lei, podem
ter suas alíquotas alteradas por meio de decreto do Poder Executivo, representando, assim,
exceção ao princípio da legalidade. É o que ocorre com o IPI, II, IE e IOF (art. 153, incisos I,
II, IV e V, c/c §1º do mesmo art. 153 da CF/88).
Nesses casos, em consonância com a ampliação de poderes do chefe do Executivo, o
Governo consegue determinar decisões cuja força normativa, a princípio, deveria ser
reservada às decisões articuladas pelo Poder Legislativo democraticamente eleito para tanto.
Todavia, este não é a única questão ligada à hermenêutica tributária que se apreende
da verificação da maximização do papel do Estado. Juntamente a isso, imprescindível
destacar a interpretação econômica, intimamente ligada aos demais elementos que
emergiram no mesmo período.
Tanto assim o é, que a primeira aparição positivada da teoria da interpretação
econômica ocorreu em 1919, quando da promulgação do Código Tributário Alemão em cujo
anteprojeto, de autoria de Enno Becker, se lia:
§ 4º: Na interpretação das leis fiscais deve-se ter em conta a finalidade, o seu significado econômico e a evolução das circunstancias. § 5º: A obrigação do imposto não pode ser evitada ou diminuída mediante o abuso das formas e das possibilidades de adaptação do direito civil
O marco cronológico de seu surgimento, por si só, já argumenta a proximidade que a
interpretação econômica guarda com a nova composição de direitos fundamentais e ideais que
surgiam à época. Capacidade contributiva, igualdade material, presença estatal na vida
econômica, enfim são todos elementos que bem coadunam com a Constituição de Weimar,
também datada de 1919, e apontada como marco do constitucionalismo social.
Em que pese a aparição, não por acaso, em conjunto com o nascimento do segundo
paradigma, a antevista interpretação ganhou maior espaço junto ao apogeu dos regimes
nazista e fascista na Europa (BECKER,1999, p. 139-143). Sua adoção pelos regimes
totalitários, em que a força da discricionariedade do Executivo se torna exacerbada,
estigmatizou a interpretação econômica, criando-lhe uma áurea negativamente mitificada. De
todo modo, não se pode deixar de apontar que, de fato, sua proposta hermenêutica dispensa os
formalismos legalistas e assegura um maior campo de manobra para os anseios estatais.
Segundo sua proposta, o Direito não pode restar preso a aspectos formais que visam
burocratizar os procedimentos fiscais. Assim, para fins de exação, deixam de ser consideradas
as referências meramente técnicas consubstanciadas em nomes de institutos jurídicos diversos
186
– p.e. doação; compra e venda – como fonte discernidora das obrigações tributárias, para
dirigir seu foco de análise a uma postura mais pragmática e buscar os aspectos e impactos
econômicos efetivamente realizados no mundo jurídico. Segundo tal técnica interpretativa,
passaria a ser regra, e não exceção, o norteamento do intérprete, não pelos fatos ou atos
jurídicos formalmente apresentados, mas sim o fato ou efeito econômico implícito ou
subjacente à formalização antedita. Este enfoque econômico seria, nessa trilha, a fonte, ou
melhor, o próprio objeto de estudo do intérprete.
Esta nova perspectiva de análise dos fatos, atos e situações jurídicas tributáveis viria à
tona e se desvencilharia do método anterior sempre que houvesse alguma espécie de
utilização abusiva das formas jurídicas postas à disposição dos contribuintes quando da
realização de seus negócios privados. E referido abuso se daria, no entender de seus
formuladores, sempre que o indivíduo ou a empresa se utilizasse de uma estrutura jurídica
com vistas a objetivos atípicos à mesma.
Sua predisposição em analisar a lei pelo viés financeiro ganhou alguns adeptos dentre
os autores pátrios (FALCAO, 1993) muito em razão de sua instrumentalização a favor da
efetivação e observância da capacidade contributiva dos fenômenos tributados.
Mas, como tal efetivação ocorre, e qual a polêmica junto à doutrina brasileira?
Dentre as diversas possibilidades de diálogo da seara tributária com os demais sub-
sistemas jurídicos, destaca-se o art. 110 da CTN, onde se lê que
a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados, expressa ou implicitamente pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Em nossa concepção estamos diante unicamente de dispositivo que reforça a
delimitação de competências tributárias decorrente do federalismo brasileiro. Nesses termos,
uma vez o art. 155, I da CF/88 determinar que compete aos Estados e Distrito Federal instituir
impostos sobre doações e, paralelamente, o art. 156, II do mesmo texto deferir aos Municípios
a criação de impostos sobre transmissões inter vivos por ato oneroso, não pode uma lei
estadual afirmar que, para fins de ITCD, entende-se doação toda alienação realizada
onerosamente.
Isso sim, poderia ser considerado um desvirtuamento de institutos de Direito Privado
para fins de instituição tributária. Repare, porém, que, pelo nosso entendimento do artigo
citado, a interpretação econômica não serviria de qualquer efeito, pois doações e compra e
187
venda detêm realidades econômicas distintas e respeitadas por esta nova técnica
interpretativa.
Entretanto, os autores tendem a pensar o art. 110 do CTN de forma diversa.
Considerável parcela dos doutrinadores tem demonstrado um pendão para compreender que,
caso a legislação tributária faça qualquer menção a determinado instituto de direito privado,
tal norma deverá ser entendida com base na tipicidade descritiva fiscal, restringindo ao
máximo qualquer possibilidade interpretativa ao núcleo do respectivo instituto, ainda que
outras hipóteses pudessem ser abrangidas pela competência tributária constitucional.
Ocorre que referido formalismo poderia vir a cair por terra caso a interpretação
econômica viesse a desconsiderar essas nuances privatísticas e atingisse de forma similar as
distintas situações formalizadas, mas com idêntico impacto econômico. Noutros termos, boa
parte das atividades elisivas calcadas na distinção formal de institutos em busca da realização
de negócios indiretos seria desbaratada em razão da obtenção dos mesmos resultados
financeiros típicos dos negócios jurídicos formais tributados e evitados pelos contribuintes
elisivos. E o obstamento da elisão fiscal representaria, para o Estado social, uma otimização
arrecadatória tida como necessária para as teorias à época – ainda que não tenha sido criada
intencionalmente com tal propósito (GODOI, 2007, p. 259 e ss.).
A identificação da interpretação econômica no Direito Pátrio já havia sido ventilada
quando do anteprojeto de Código Tributário Aranha de Souza (PRATES, 1992, p. 70 e ss.).
Entretanto, o debate acerca de sua incorporação ao nosso sistema jurídico ganhou novo fôlego
com o advento do parágrafo único do art. 116:
a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Alguns autores nacionais, geralmente filiados a uma busca pela igualdade material
instrumentalizada pelo Direito Tributário, acompanham a possibilidade de sua utilização.
Muitos deles, porém, afirmam que sua aceitação em nada depende da disposição trazida no
art. 116 do CTN.
Nesse sentido, Amílcar Falcão assevera que interpretar economicamente a norma
tributária nada mais é do que respeitar a própria lógica do sistema fiscal, afinal, se “ em
direito civil interessam os efeitos dos atos e as condições de validade exigidas para a sua
constituição ou formação [...] ao direito tributário só diz respeito a relação econômica a que
188
esse ato deu lugar...” (FALCAO, 1993, p. 76). Em sua concepção, não se trata de uma
atividade construtiva ou inovadora por parte do hermeneuta tributário, mas simples adequação
às peculiaridades que a seara fiscal exige quando do trato de suas normas.
Todavia, é fato que a grande maioria da doutrina brasileira, acompanhando a postura
formalista descritiva até o momento apontada e criticada, apresenta sérias rejeições frente a
possibilidade de utilização da interpretação econômica, principalmente embalada em uma
argumentação contrária à arbitrariedade e insegurança jurídica que viriam de mãos dadas com
esta forma interpretativa. E, para tanto, é recorrente a exemplificação de “quão autoritários”
eram os Estados que a adotaram (COELHO, 2005, p. 238 e ss.).
Prates (1992, p. 76 e ss.) cai no mesmo maniqueísmo apontado quando do surgimento
do constitucionalismo liberal, eis que caracteriza sua adoção uma deformação do Direito
Tributário, a fim unicamente de satisfazer o Fisco, este “inimigo voraz dos pobres
contribuintes”. Já para Hugo de Brito, a consideração de dados econômicos em detrimento das
regras clássicas de interpretação “implicaria em (sic) negar o Direito, afetando a segurança
que o mesmo empresta às relações humanas na sociedade.” (MACHADO, 2005, p. 124).
Na mesma trilha segue Alberto Xavier, forte defensor do legalismo em sua expressão
mais rígida:
O princípio da legalidade em geral e o da legalidade da tributação em especial, exige que a interpretação dos conceitos jurídicos adotados pela lei se faça por ‘métodos jurídicos’ e ainda, que tanto a interpretação do ato jurídico concreto quando sua qualificação face à lei tenha em consideração os ‘efeitos jurídicos do ato’ (XAVIER, 2001, p. 39)
Contudo, parecem estes autores olvidar que, conforme destaca Godoi, a teoria da
interpretação econômica, em que pese ter surgido em um clima de efetiva insegurança
jurídica, ganhou ares mais brandos ao longo de sua evolução tributária.
A maioria dos autores aprendeu a aplaudir e a apoiar sem qualquer espírito crítico a infundada vinculação que Alfredo Augusto Becker promoveu (sem um mínimo de método ou rigor científico) entre a interpretação econômica do direito tributário e as idéias nazistas. Com um mínimo de rigor, imparcialidade e disposição para a pesquisa bibliográfica, chega-se a duas conclusões: é grosseiramente falsa a vinculação entre o surgimento da teoria da interpretação funcional do direito tributário e as idéias de matiz autoritário como o nazismo ou o fascismo; após a etapa inicial da “interpretação funcional” (BECKER, JARACH), a teoria evoluiu para posições bem mais equilibradas (BLUMENSTEIN, HENSEL), que atingiram um grau muito maior de segurança jurídica (GODOI, 2007, p. 257-258)
189
É neste esteio que se pode afirmar, sem receios, que a interpretação econômica ora
trabalhada surge muito mais em virtude de um constitucionalismo social voltado à igualdade
material e demais pressupostos fundamentais do momento, do que no intuito de propiciar
totalitarismos verificados posteriormente.
Muito embora encontre razão a asseveração supra, não se pode negar que, tanto
doutrinária, quanto jurisprudencialmente130, prevalece o entendimento pela inaplicabilidade
da interpretação econômica. E de outro modo não poderia se dar. Afinal, conforme se tem
constatado ao longo do texto, nossa realidade hermenêutica-tributária caminha junto a uma
utilização da tipicidade estrita como dogma interpretativo, o que, por si só, refuta a
possibilidade de adoção conjunta com uma visão econômica do Direito. Tanto assim o é, que
se escolheu como cerne do trabalho demonstrar a inviabilidade de uma interpretação
formalista e descritiva da realidade, pois essa sim, habita as obras fiscais, ao contrário da
interpretação econômica ora ventilada.
5.3 Os direitos de segunda geração e a ineficácia da interpretação
descritivo-formalista
Ultrapassada a análise e caracterização dos direitos fundamentais de segunda geração,
bem como sua relação com a disciplina tributária, proceder-se-á tal qual realizado em relação
aos direitos liberais-individuais. Assim, cabe a pergunta: será então que a hermenêutica
positivista, com suas bases cartesianas e inserida em uma postura ontológica e descritiva da
realidade consegue concretizar os direitos surgidos no paradigma social?
No que tange aos direitos da geração burguesa, já restou constatada sua ineficácia.
Caso se conclua pela sua inconsistência também em relação aos direitos sociais, este será um
grande golpe à argumentação em favor de sua manutenção nos ensinamentos tributários!
As conseqüências nefastas da inércia estatal consagrada no Estado revolucionário
burguês tornaram nítida a impossibilidade de o Estado persistir alheio ao jogo sócio-
econômico que os particulares travavam sem quaisquer regras estabelecidas. O fosso social
130 Conferir, a título de exemplo: junto ao STF: RE AgR 465.143 DJ 16/02/2007. Já quanto ao STJ: RESP 797.799 DJ 15/02/2007. Em ambas, não houve a tributação por entenderem, os respectivos ministros, que não podem prevalecer, unicamente, os impactos econômicos dos negócios jurídicos para fins de exação.
190
delineado, e o ocaso do próprio sistema capitalista exigiam uma modificação urgente na
forma de se pensar a relação Estado-sociedade.
Dois são os pontos necessários para a edificação social dentro do campo fiscal.
Em primeiro lugar, a observância da capacidade contributiva ganha novo fôlego, não
apenas em virtude da pretensão de se materializar a igualdade substancial negligenciada pelos
liberais, mas também como forma de arrecadação de valores pecuniários com vistas aos
serviços públicos prestacionais, agora no seio das funções do Estado embalado pela
isonomia.
Ao bem da verdade, já comentado que todos direitos fundamentais, inclusive aqueles
classificados como negativos ou liberais exigem frutos da exação fiscal. A garantia e proteção
dos direitos individuais reclama, tal qual as gerações posteriores, um dispêndio estatal e uma
prestação positiva em última análise. Afinal, como gozar plenamente a liberdade sem uma
rede de policiamento estruturada e com extensa folha salarial? Enfim, não se quer afirmar
aqui, qualquer cisão, qualquer direcionamento arrecadatório unicamente aos direitos de
segunda geração. Entretanto, para fins de labor didático, e em respeito ao pensamento
desenvolvido quando do surgimento dos direitos sociais, deter-se-á a questão da arrecadação e
a interpretação positivista neste tópico.
Segundo elemento que emergiu no constitucionalismo social, em virtude do fracasso
anterior, o Estado passa a ser ator com expressiva interação junto à economia. Para isso, na
seara tributária, contava com o instrumento da extrafiscalidade, nos termos já debatidos.
Em que pese a relação a ser procedida entre o princípio da tipicidade estrita e esses
mecanismos tributários em destaque do paradigma social, importante relembrar o leitor de um
instituto comentado quando dos direitos liberais de primeira geração.
Quando da investigação do pano de fundo que começava a se mostrar no Estado
Gendarme, restou destacada, juntamente com a proeminência da legalidade e segurança
jurídica, a exacerbação da autonomia da vontade e propriedade material, todas questões
intimamente ligadas ao racionalismo e antropocentrismo que embasaram a filosofia da
consciência.
Calcado nas bases individualistas do momento histórico, o contribuinte do Estado
burguês apostava na crença de que poderia desenvolver suas atividades comerciais e
individuais da forma como bem entendesse, o que incluía a realização de planejamentos
tributários (elisão fiscal) com escopo de evitar o pagamento de tributos, atividade à época
compreendida como verdadeiro direito fundamental.
191
Ocorre que, para se proceder às práticas elisivas – em seu conceito clássico131 – o
contribuinte acaba por tomar apoio, justamente, na interpretação positivista-descritiva,
principalmente quando sua elisão fiscal se consubstancia nos já estudados “negócios
indiretos”. A existência dos negócios indiretos é identificada quando as partes realizam um
negócio jurídico lícito, mas com vistas não em sua finalidade ou conseqüência típica, mas sim
no desiderato de lograr conseqüências que seriam atingidas por outro negócio jurídico mais
oneroso. Em que pese a economia do tributo – que seria devido caso houvesse a realização do
negócio jurídico típico – as conseqüências empíricas, econômicas ou negociais dos negócios
indiretos ou atípicos serão as mesmas daquele mais oneroso.
Repare assim que, não obstante seja possível inferir uma mesma substancialidade na
conclusão dos negócios jurídicos, o contribuinte se apóia em um formalismo jurídico, em uma
distinção de roupagens formais de institutos que descrevem de maneira distinta, relações
comerciais ou situações jurídicas sem considerar suas razões, conseqüências, motivos ou
qualquer outro elemento.
Nesse sentido, a tentativa de enquadrar suas atividades desoneradoras de tributos em
loopholes ou brechas da lei não foge de uma base de interpretação firmada nas descrições de
institutos sem qualquer referência aos conteúdos respectivos. Nessa toada, o que se pretende
destacar é a íntima relação que se quer afirmar entre a elisão fiscal e a absoluta adoção da
hermenêutica positivista, imprescindível para sua viabilidade. Tanto o é que a legalidade se
apresenta como o mote principal dos defensores da elisão fiscal.
É neste caminho que segue a defesa de Xavier a favor da elisão:
Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação constituem uma garantia individual que tem por objeto proteger os direitos do homem consistentes no ‘direito de propriedade’ e no ‘direito de liberdade econômica’ no qual se inclui a liberdade de contratar (XAVIER, 2001, p. 111)
Diante desses termos, muito embora venha ser utilizada a argumentação da elisão
fiscal como um óbice à concretização dos direitos sociais, referida construção deve ser lida
como uma demonstração de como a hermenêutica formalista ora combatida embarga tais
direitos.
131 Obviamente, a elisão fiscal aqui trabalhada se refere àquela adotada pela doutrina tributária que se utiliza do instrumento da tipicidade estrita para sua realização, o que demonstra ser a doutrina dominante. O entendimento esboçado por autores como Godoi (2007) não será objeto de menção, pois, por adotar uma visão hermenêutica progressista, o autor acaba por determinar um novo conteúdo ao instituto “elisão fiscal”, nos termos já vislumbrados no presente trabalho.
192
5.3.1 A elisão fiscal e a capacidade contributiva
Aprendido que há muito se argumenta ser a capacidade contributiva fundamento e
limite da tributação. Ou seja, apenas pode haver exação onde há saúde financeira dos
contribuintes para tal. Da mesma forma, onde há tal demonstração de capacidade econômica
deve haver tributação sob pena de quebra à isonomia constitucional.
As cargas tributárias devem ser repartidas tendo em conta a possibilidade de
pagamento de cada contribuinte, sendo certo também que aqueles em igual situação devem
sofrer também igual tributação. É pressuposto lógico e que não demanda maior deslinde.
Ora, se a capacidade contributiva se consubstancia também na correta cobrança
daqueles que demonstram situação financeira condizente à mesma, as variadas tentativas de
ludibriar o Fisco acabam por violar esse princípio constitucional-tributário. É nesse aspecto
que a elisão fiscal passa a contrariar a capacidade contributiva e a isonomia constitucional.
Sua proposta em fazer com que os contribuintes deixem de realizar o pagamento com fulcro
na exacerbação da autonomia da vontade e no formalismo legislativo acarretam uma distorção
na correta distribuição dos encargos fiscais entre os contribuintes.
Além do mais, a elisão fiscal, para ser bem executada, demanda um aprofundado
estudo dos rios de legislação tributária que hoje incidem sobre as empresas. Estudo este que
apenas consegue ser realizado com qualidade satisfatória por profissionais específicos,
contratados unicamente por empresas de considerável porte financeiro, ou mesmo
contribuintes individuais com montantes de riqueza que lembram mesmo faturamentos de
pessoas jurídicas. A análise pormenorizada das possibilidades de alterações formais nos
negócios jurídicos, a pesquisa de portarias ou decretos que possam apresentar as “lacunas
jurídicas” – graças à exaustividade e fetiche descritivo das normas tributárias – acabam por
demandar uma complexidade acessível apenas àqueles com significativo montante a ser
economizado frente o Fisco.
O ponto que se quer aqui destacar é a exclusividade da realização da elisão fiscal
apenas àqueles que possuem uma expressividade econômica justificadora de substancial
parcela da tributação caso observada a capacidade contributiva.
Ora, se apenas os mais afortunados conseguem financiar um estudo que possa resultar
em uma economia fiscal, e a tributação deve, por princípio, tributar mais onerosamente
justamente essas pessoas, pode-se concluir que o resultado imediato dessas atividades é a
possibilitação de uma economia justamente daqueles que mais deveriam contribuir!
193
E quanto a isso nem mesmo os defensores da elisão fiscal discordam! Seus
argumentos hoje nem mesmo tentam desconsiderar que a elisão, calcada em uma
interpretação das normas tributárias descritiva-subsuntiva, tem por conseqüência certa
distorção dos ditames contributivos constitucionais. Tentam os mesmos desconsiderar o
combate à elisão por outros pressupostos.
Assim, Xavier entende que a igualdade que é violada pela elisão fiscal deve ser
concebida apenas como uma garantia individual do contribuinte, e não um direito do Estado
que possa ensejar uma tributação a desconsiderar a elisão fiscal (XAVIER, 2001, p. 128).
Mais uma vez se depara com a idéia de que a proteção das garantias dos contribuintes
apenas se dá em um conflito polarizado público/privado. Deve-se entender que o Estado não
se resume em um fim em si mesmo. A necessidade de as exações observarem a capacidade
contributiva não é unicamente com vistas a angariar maiores quantias ao Fisco, mas também
para efetivar a idéia isonômica entre os indivíduos que compartilham o sustento estatal.
Esquece o autor que, nesses casos, a prática elisiva acaba por atingir também a
isonomia constitucional que permite àquele em inferior situação financeira ter menores
encargos do que outro contribuinte mais abastado. A capacidade contributiva não é apenas
uma limitação do poder de tributar face o Estado, mas também uma garantia de tratamento
igualitário entre os próprios contribuintes fiscais. Como então afirmar que a elisão fiscal não
agride direitos dos particulares?
Imaginem assim o seguinte exemplo. A legislação referente ao Imposto de
Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) existente no Município “M” determina que todos
aqueles que adquiram bens imóveis a título oneroso devem arcar com o pagamento do
imposto devido. Ocorre que, nos termos da legislação, apenas aquelas transmissões que
tenham a base de cálculo superior a R$100.000,00 (cem mil reais) permitem a exação
comentada.
Com isso, visa o município “M” preservar os cidadãos que não detêm capacidade
contributiva suficiente para participar do custeio fiscal.
Ocorre que o contribuinte “C” deseja adquirir um imóvel no valor de R$400.000,00
(quatrocentos mil reais) – significativo potencial contributivo – mas não deseja efetivar o
pagamento tributário correspondente.
Diante disso, “C” faz a seguinte prática elisiva: primeiramente, “C” negocia com o
alienante para que este transmita 25% do imóvel a cada um dos quatro filhos de “C”. Nesse
primeiro negócio jurídico, não haverá o pagamento de ITBI, uma vez cada transação ter como
valor-base a quantia de R$100.000,00 (cem mil reais). Posteriormente, cada um de seus filhos
194
transmite sua cota-parte a “C” que deterá 100% do imóvel. Também neste segundo momento
não haverá qualquer exação tributária, pois cada uma das transferências não excederá o valor
de R$100.000,00 (cem mil reais) definidos pela legislação.
Dessa forma, o contribuinte “C” conseguiu adquirir um imóvel no valor de
R$400.000,00 (quatrocentos mil reais) sem realizar o pagamento do tributo correspondente.
Afinal calcado em uma linguagem descritiva, “M” não pode exigir a obrigação tributária de
“C”, uma vez cada transmissão realizada ao longo do processo não ultrapassar o valor-limite.
Caso se adote a interpretação formalista e descritiva tal qual o neopositivismo, essa é a
conclusão apresentada!
Diante desta situação, é possível identificar os valores constitucionais feridos pela
elisão fiscal em comento. Um segundo contribuinte que adquira um imóvel de mesmo valor,
sofrerá uma oneração fiscal não incidente sobre “C”. Neste primeiro momento já se pode
argumentar pela não observância da isonomia constitucional, já que duas pessoas com mesmo
potencial financeiro sofreram imputações distintas.
Da mesma forma é passível de questionamento o respeito à capacidade contributiva
quando em comparação a outro indivíduo “X” que efetivamente não detenha capacidade
contributiva e adquira um imóvel no valor de R$100.000,00 (cem mil reais). Não se pode
reputar constitucional que ambos detenham a mesma realidade obrigacional sendo que eles
não comungam da mesma capacidade contributiva.
É simples o exemplo, mas suficiente para demonstrar como as práticas elisivas podem
subverter esse princípio constitucional representador da isonomia no Direito Tributário. E
mais. Vendo o Fisco sua arrecadação se esvaindo, irá o mesmo aumentar as cargas tributárias
para compensar a diminuição do fruto das exações. Carga essa que irá incidir justamente
sobre aqueles que não detêm a estrutura para realizar comportamentos elisivos.
Em última análise, a elisão fiscal resulta em um direcionamento da carga tributária
àqueles que menores condições têm de arcar com os gastos públicos. Nesse sentido, nos EUA,
de 1990 a 1997, as pessoas jurídicas, reduziram 60 bilhões em seus ônus tributários, enquanto,
no mesmo período, a pessoas físicas, com menor poder financeiro, aumentaram 80 bilhões
seus gastos com tributos (GRECO, 2004, p. 12-13).
Em seminário realizado pela Escola de Fiscalização Fazendária o palestrante Luiz
Arruda Vilela destacou que
o Comissário Rossotti, que é o Comissário – Chefe da Receita americana, num depoimento ao Congresso Americano, estimou em US$195 bilhões quanto o fisco americano federal deixava de .arrecadar por conta de elisão e de evasão [...] esses
195
US$195 bilhões estimados pelo Rossotti correspondem a US$1.600 por contribuinte norte-americano, quer dizer, isso é o quanto custa a cada contribuinte, um cálculo per capita médio [...] que indica que o planejamento tributário de alguns, o não-cumprimento de alguns tem um custo que é transferido para aqueles que pagam... (VILLELA, 2002 p. 37) (grifos nossos)
O mesmo fato se dá também no Brasil. Leciona Greco que “considerações feitas
diversas vezes pelo então Secretário da Receita Federal Eduardo Maciel, em seus
pronunciamentos no sentido de que, das quinhentas maiores empresas do Brasil, cerca de
metade não pagava imposto sobre a renda há vários anos” (GRECO, 2004, p. 11-12). Como
conseguiam tais empresas um feito desse monte? Justamente por meio da elisão fiscal ora em
comento.
É a transferência dos encargos fiscais às empresas sem poder aquisitivo, ou mesmo às
pessoas físicas! Tudo isso é resultado desse planejamento tributário calcado em brechas e
excessividade formalística das normas e exações em nosso sistema.
É por isso que Douglas Yamashita afirma que a incidência das práticas elisivas acaba
por instituir um “imposto sobre a ignorância”. “É um imposto odioso por sua regressividade,
pois quanto mais pobre o contribuinte, menos recursos ele tem para se instruir sobre a forma
jurídica abusivamente elisiva e mais imposto ele paga” (YAMASHITA, 2000, p. 747).
E é a forma interpretativa que possibilita a subversão da capacidade contributiva.
Angariar a interpretação tributária apenas em elementos formalísticos, pautando por um
exaurimento descritivo das possibilidades de exação – tipicidade estrita – acaba por ocasionar
uma não observação de outros elementos que compõem a realidade jurídica, dentre eles, o
elemento econômico que fundamenta a tributação.
Mas a doutrina, de uma forma geral parece permanecer receosa em abandonar esse
“anacrônico” método hermenêutico, ainda que consciente das conseqüências dirigidas à
capacidade contributiva. Sacha Calmon, embora sensível à importância que o princípio
contributivo exerce em nosso ordenamento, prefere priorizar, em teoria, a pretensa segurança
jurídica que anteriormente demonstramos inalcançável pelo formalismo jurídico.
Assim, acerca de uma hipótese interpretativa que considera critérios econômicos
quando da incidência fiscal assevera: “ainda que alguns estejam levando vantagem, é
preferível manter o princípio da legalidade do que estender ao Administrador poderes que
amanhã se tornariam muito difíceis de controlar” (COELHO, 2005,p. 245).
Ora, momento algum pretendemos estender ao Executivo poderes para o arbítrio,
apenas discordamos que isso possa ser feito por meio de instrumentos típicos do século
XVIII. Todavia, não se pode desconsiderar, ou mesmo subestimar, o fato de que se está
196
desconstruindo a capacidade contributiva com a elisão fiscal calcada em um positivismo
interpretativo de subsunção do fato à lei escrita.
Diante dessa hipótese, se revolta Alberto Xavier. Para o autor, não se pode cogitar
uma flexibilização à tipificação quase-algébrica que ainda hoje perseguem os tipos tributários.
A legalidade estrita e o formalismo apresentado pelos sistemas tributários são, para ele,
elementos nucleares para a proteção dos cidadãos contra posturas autoritárias do Estado.
Nesse sentido, a liberdade individual de buscar uma menor exação fiscal, ainda que calcada
em negócios indiretos elisivos, não pode ser cerceada por objetivos de incidência isonômica.
O autor chega a exaltar, ainda, o quanto seria um “despautério” a flexibilização do princípio
da tipicidade:
Levada às últimas conseqüências a doutrina do abuso de direito conduz à conseqüência de submeter os direitos e garantias individuais (e não apenas a legalidade e a tipicidade da tributação) à cláusula de ‘reserva de abuso’, pois na lógica dessa doutrina, o abuso é causa legítima de perda da tutela (XAVIER, 2001 p. 136)
E de fato, é isso que queremos ressaltar! Nem mesmo a legalidade, nem mesmo a
tipicidade tributária podem ser sustentadas ante sua utilização espúria. Não mais se pode
pautar o ordenamento em princípios de um Estado de Direito, onde apenas se considera algo
quando previsto textualmente em lei. O art. 1º da CF/88 lembra bem: estamos em um Estado
Democrático de Direito, que abarca a proteção individual, mas também a busca pela
realização de uma isonomia e uma capacidade contributiva constitucional. Outros direitos
fundamentais também exigem concretização!
A partir do momento em que a formalização jurídica é utilizada apenas para desvirtuar
objetivos constitucionais, deve-se sim flexibilizá-la, deve-se sim considerá-la não absoluta tal
qual Xavier denuncia!
Não se pode afirmar uma prevalência de direitos individuais sobre os sociais, ou vice-
versa (se é que Xavier acerta ao atrelar a segurança jurídica aos direitos individuais). A
Constituição, em sua complexidade, exige a efetivação de todos os direitos fundamentais que
ali encontram abrigo (GRECO, 2004 p. 45). Dentre eles, a isonomia substancial corporificada
na capacidade contributiva. Ademais, a indivisibilidade dos direitos fundamentais, não apenas
permite, mas exige a observância de todas as garantias constitucionais para a plena
possibilidade de gozo, inclusive dos direitos individuais. É concepção que até mesmo liberais
como R. Dworkin já admitem:
197
Segundo a igualdade de recursos, os direitos à liberdade que consideramos fundamentais são uma parte ou um aspecto da igualdade distributiva, e estão, portanto, automaticamente protegidos sempre que se alcança a igualdade. A prioridade da liberdade está assegurada, não à custa da igualdade, mas em seu nome. (DWORKIN, 2005, p. 177)
Não fosse bastante, a exaltação da autonomia da vontade corporificada na elisão fiscal
e conseqüente desvio da obrigação contributiva gera efeitos também nos níveis arrecadatórios
perpetrados pelo sistema fiscal. É argumento de ordem lógica.
Nesse sentido, desfalcando os cofres estatais, indiretamente se está pauperisando a
possibilidade de atuação pública instrumentalizada a fim de promover direitos fundamentais
de toda e qualquer dimensão constitucional. Nesse tocante, inserimos também as liberdades
individuais e direitos difusos.
Mais um exemplo de insuficiência da interpretação descritiva em consagrar direitos
fundamentais pela tributação.
5.3.2 A elisão fiscal e a extrafiscalidade
O fosso social em que se afundaram as nações, e a destruição dos próprios
pressupostos liberais serviram de alerta para a impossibilidade de manutenção da inércia
estatal e da plena confiança nas regras do jogo de mercado.
O Estado não apenas poderia intervir, ele deveria intervir! É uma de suas obrigações
conseguir manter uma economia saudável e atenta aos ditames do art. 170 da CF. Para tal, não
há outro remédio senão a interferência no espaço econômico, direta ou indiretamente. São os
ensinamentos advindos da teoria econômica keynesiana.
Nesse campo, é a extrafiscalidade o melhor instrumento tributário destinado a orientar
as condutas de indivíduos e empresas junto ao mercado. Neste propósito, pode o Estado tanto
inibir práticas indesejadas e prejudiciais à coletividade, onerando esses mesmos negócios
jurídicos, como também incentivar setores ou atividades que representam ganho ao interesse
público através de uma desoneração fiscal.
Todavia, caso o Estado se mantenha adepto da postura hermenêutica em debate, suas
armas para dissuadir os particulares em realizar as condutas indesejadas acabam por se tornar
demasiadamente restritas. Referida assertiva se baseia no fato de que, ao onerar fiscalmente
alguma conduta contrária aos interesses públicos, a descrição dos fatos geradores nunca
198
conseguirá abarcar todas as formas de se atingir aquele mesmo resultado lesivo. Afinal, já se
constatou a impossibilidade de exaurimento de todas as acepções decorrentes dos termos
lingüísticos utilizados nas normas legais.
Exemplificativamente, caso entenda pertinente o Fisco estadual onerar os proprietários
de veículos automotores com escopo de desestimular a compra e utilização de qualquer meio
de transporte que venha a contribuir para a poluição atmosférica resultante em gastos com
saúde e prejuízos na indústria do turismo, conseguirá o Estado alcançar seu desiderato? Mais
uma vez nos deparamos com a insuficiência descritiva. O que pode ser entendido como
veículo automotor? Carros? Motos? E quanto a aeronaves e navios132, os primeiros com tanto
potencial poluidor quanto os carros? Percebam como, também aqui, na tentativa de uma
atuação extrafiscal por parte do Estado, as vicissitudes da linguagem alcançam o operador do
Direito e se coloca como contraponto à utilização mecânica dos termos normativos.
Mas a questão que por ora se mostra mais relevante é a realização dos chamados
negócios indiretos, estes sim relacionados com a elisão fiscal que se tem sob análise.
Para a demonstração de como esse outro objetivo constitucional-social é frustrado
pelas práticas elisivas, que por sua vez têm o formalismo interpretativo como pressuposto,
apoiar-se-á em uma exemplificação que, embora simples, torna clara a problematização
pretendida no que tange à efetivação dos planejamentos estatais133.
A redação original do decreto-lei 1.598/77, regulamentador do imposto de renda,
previa em seu art. 64 § 5º que “a sociedade que resultar de fusão e a que incorporar outra
sucedem as sociedades extintas no seu direito a compensar prejuízos no prazo previsto neste
artigo”. Nestes termos, o que se apreende do conteúdo normativo é que caso uma empresa
altamente lucrativa venha a incorporar uma segunda empresa cujo resultado financeiro tenha
demonstrado prejuízos, a empresa incorporada poderia compensar, “abater” de seus lucros os
déficits da empresa incorporada, e com isso, evitar o respectivo pagamento tributário.
Referido dispositivo foi, primeiramente alterado em 1979, e finalmente, revogado pelo
decreto-lei 1870/81. Os verdadeiros motivos ensejadores da revogação do dispositivo em
comento não se mostram objeto de preocupação. Mas imaginem por um instante que as
recorrentes incorporações entre empresas lucrativas e deficitárias, em intensidade excessiva,
estivessem abalando a confiança do mercado acionário brasileiro, o que conseqüentemente,
acarretava um menor investimento externo na economia. Diante disso, os interesses estatais
132 Quanto ao tema, o STF já se pronunciou de forma contrária à incidência de IPVA sobre navios e aeronaves (RE’s 134.509 e 255.11 (DJ 13.09.2002). 133 Sobre o tema, já debatemos em OLIVEIRA, 2007.
199
de preservação de um crescimento macroeconômico capaz de propiciar um aumento da
empregabilidade se mostravam ameaçados.
Para a concretização de sua política econômica e social, o Estado visou, justamente,
coibir a conseqüência econômica de incorporações e abatimentos de lucros/prejuízos entre
empresas lucrativas e não lucrativas, conseqüência essa comumente lograda quando da
realização de um negócio jurídico específico: a incorporação da empresa deficitária pela
economicamente sustentável. Ora, se este é o negócio jurídico típico, bastaria então o Estado
revogar o dispositivo aludido e tributar os lucros totais, não considerando a compensação
então permitida. Com isso, as empresas se sentiriam desestimuladas a praticar incorporações
de forma excessiva, e a normalidade do mercado estaria restaurada.
Não obstante, já sabemos que por meio do negócio jurídico indireto134 (elisão fiscal), o
particular realiza um ato jurídico com fins atípicos, alcançando dessa forma, conseqüências
comumente atingidas por ato mais oneroso. E com base nessas idéias que as empresas
começaram a alterar a forma de incorporação.
Muito embora a legislação não permitisse a compensação dos lucros da empresa
incorporadora face os prejuízos da empresa incorporada, não havia qualquer disposição
referente à situação contrária. Com base nisso, primeiramente, os sócios da empresa lucrativa
adquiriam a empresa marcada pelos prejuízos fiscais. Logo após, as empresas deficitárias
incorporavam as lucrativas, evitando, assim, o pagamento da exação tributária.
Posteriormente, a empresa incorporadora alterava seu objeto social, endereço, enfim, adquiria
toda a faceta da empresa incorporada.
Observem como, na prática, o resultado final foi o mesmo: não houve o pagamento da
tributação devida, e mais importante, os particulares persistiram em realizar a incorporação de
empresas lucrativas e deficitárias.
Poder-se-ia debater acerca do impacto que a prática elisiva aqui considerada
impulsiona junto à isonomia e livre concorrência (outras empresas na mesma situação, ou
mesmo concorrentes, terão maior encargo fiscal, e por isso, maior custo operacional, afetando
134 Godoi (2007, p. 277 e ss) trabalha o tema de forma aprofundada. Mas na concepção do autor, não se trata de um mero negócio indireto, cabendo mesmo a interpretação de que a “incorporação às avessas” é, de fato, uma simulação. Não ignoramos esse dado, e, caso partíssemos para uma visão hermenêutica contemporânea que compartilhamos com Godoi, nossa conclusão não seria diferente. Entretanto, deve-se ter claro o fato de que se pretende analisar a elisão fiscal na perspectiva da tipicidade estrita e formalista da doutrina majoritária. Eis a razão pela qual desenvolveremos o tema compreendendo a situação fática como um genuíno exemplo de elisão fiscal por meio do negócio indireto. Neste mesmo estudo, Godoi apresenta ainda a divisão de posicionamentos dentro do Conselho de Contribuintes e as diversas decisões acerca do tema, tanto a favor da visão formalista utilizada no texto principal, quanto alinhadas ao seu próprio entendimento.
200
seus preços de mercado), ou mesmo quanto à arrecadação. São todas questões ligadas aos
direitos fundamentais de primeira e segunda geração.
Contudo, neste tópico mais interessa o fato de que o Estado, na tentativa de atuar de
forma presente no domínio econômico, e com isso, efetivar o constitucionalismo social,
pretendia, por meio da tributação, evitar uma prática empresarial que contaminava o
planejamento estatal. Ocorre que, ao fazer uso da mencionada atividade elisiva, a empresa em
questão acabou por tornar ineficaz a medida de concretização da política econômica ou social
que o Estado se prestou a realizar. Com isso, a elisão fiscal, encampada no formalismo
tipificante ora em debate, tornou absolutamente inócua a extrafiscalidade e a intervenção do
Estado na economia, frustrando a concretização de mais um direito fundamental
constitucional.
E que não venham argumentar que caberia ao Estado prever também esta
possibilidade para proibi-la, e assim, atingir seus objetivos. Afinal, ainda que se busque uma
previsão de todo e qualquer negócio jurídico que venha a causar os mesmos resultados
econômicos, nunca o legislador conseguirá barrar a mutabilidade das relações econômicas,
sociais, mercadológicas, etc. Nunca se conseguirá engessar a realidade através de uma
previsão normativa prévia capaz de abranger todas as hipóteses e situações por meio das quais
os contribuintes podem vir a realizar a elisão fiscal.
Daí a conclusão de que também os direitos sociais de segunda dimensão/geração,
identificados na isonomia substancial e intervenção do Estado no domínio econômico, restam
obstaculizados pela utilização da interpretação formalista e exauriente das normas positivadas.
5.3.3 A “discricionariedade” positivista
Já tem o leitor por certo que o objetivo que guia o presente trabalho reside na
verificação da plausibilidade da concepção tipificante, baseada na descrição e esgotamento da
realidade em textos escritos que encampa o posicionamento da doutrina dominante no Direito
Tributário. Esta é, sem dúvida alguma, a principal base teórica que ensejou a teoria
positivista. Sua adoção implica, a princípio, um repúdio, justamente, a qualquer elemento de
discricionariedade por parte do intérprete. Aliás, este é um de seus principais motes: não
permitir que a ingerência de elementos externos à pureza das intenções legislativas desvirtua a
preservação do conteúdo determinado previamente à aplicação da norma.
201
Não restam dúvidas que quaisquer argumentações que possam ser apresentadas em
prol de uma liberdade discricionária junto ao Direito Tributário soará como arbítrio aos
ouvidos de nossos doutrinadores – suas defesas à argumentação liberal antevistas deixam isso
suficientemente claro. Qual a razão então de relacionar “discricionariedade” e “positivismo”?
Muito embora se constate a pouca importância que elementos discricionários detêm
junto ao Direito Tributário pátrio – as argumentações aqui realizadas têm um cunho muito
mais de evitar possíveis críticas a um esquecimento que, de fato, seria imperdoável – não se
pode olvidar que, também o positivismo, apresenta uma corrente que, apesar de privilegiar a
positivação normativa, abre também espaço para um decisionismo discricionário.
Já verificado que o normativismo kelseniano – que pode ser situado junto ao
constitucionalismo social – compreende a norma como uma moldura na qual possível a
inserção de vários quadros. Caso o conteúdo interpretativo fosse compatível com a moldura,
seria o mesmo aceitável, e a escolha de qual moldura/interpretação a ser aplicada no caso
concreto, caberia unicamente à determinação discricionária do magistrado (KELSEN, 1998,
p. 389 e ss.).
Da mesma forma, Dworkin, em observação à realidade americana, faz uma
aglutinação das teorias positivistas em uma corrente única por ele denominada
“convencionalismo”. Como o próprio nome indica, os adeptos de tal corrente preferem
restringir a análise jurídica às “convenções” (leis e precedentes), ou seja, às determinações de
conteúdos jurídicos realizadas previamente às decisões judiciais. Nesses casos, restaria
garantida a segurança jurídica que embasa o positivismo. Entretanto, quando ausente uma
definição precisa acerca de determinado Direito – pressuposto necessário para uma pretensa
“segurança” –, restaria constatada uma lacuna jurídica, e caberia ao juiz “criar” um conteúdo
normativo a reger o caso analisado. Afinal, não se pode deixar de resolver uma lide, deixá-la
sem qualquer decisão unicamente pelo fato de não haver certeza e consenso acerca do Direito.
Este espaço “discricionário” é que poderia ser utilizado, de forma abusiva pelo
Executivo em uma ação estratégica e envolto no contexto social. Afinal, se a ausência de
qualquer atividade interpretativa almejava a proteção cerrada aos direitos dos contribuintes, a
discricionariedade poderia dar azo a excesso de exação por parte do Executivo.
Ultrapassada esta primeira apresentação, Dworkin secciona o convencionalismo em
duas correntes. Os adeptos do convencionalismo estrito seriam aqueles juristas que, envoltos
em uma mesma concepção tipificante do princípio “U” forte de Günther (2004), afirmam que,
ausente uma unanimidade universal acerca do conteúdo jurídico em questão, já estaria
verificada a lacuna jurídica. A segurança jurídica a que se propõe o convencionalismo se
202
dissiparia se qualquer pessoa interpretasse a norma de maneira diversa, pois nesses casos, já
não se teria a previsibilidade absoluta de obrigações.
Nesses casos, chega-se a uma crítica fácil, afinal, nunca se terá unanimidade
interpretativa acerca de qualquer Direito. Dessa forma, a quase totalidade dos casos
apresentados aos tribunais será caracterizada pelas ditas “lacunas”, e a conseqüente criação
jurídica por parte do Judiciário. Ora, situações como estas configuram a própria negação do
convencionalismo dworkiniano, pois qualquer pretensão de segurança sucumbiria frente a
recorrente inovação jurídica realizada pelo Judiciário. Não à toa, Dworkin classifica tal
proposta como “comicamente frágil” (DWORKIN, 2003, p. 153).
Noutra senda, um convencionalismo moderado é composto por aqueles que
compreendem que, mesmo ausente um consenso universal acerca de um conteúdo
interpretativo, o magistrado pode aplicar a interpretação que lhe pareça correta, ainda que
polêmica, não havendo, assim, qualquer lacuna jurídica. Não é difícil a relação entre a idéia
ora esboçada e a escolha livre entre as interpretações possíveis dentro da “moldura da norma”
tal qual ventilado no normativismo de Kelsen. Também aqui, o espaço para uma
discricionariedade capaz de desnaturar a estrutura jurídica.
Desde já é importante ressaltar: críticas em comum não significam paridade de
pensamento. Muito embora os tributaristas brasileiros tentem rechaçar qualquer margem de
discricionariedade pelo receio de macular sua festejada previsibilidade obrigacional, nossa
crítica caminha por outros trilhos – mesmo porque já verificado que a tipicidade cerrada
trabalhada por esses autores não alcançam dita segurança tributária.
A grande questão que envolve a escolha discricionária de interpretações, seja por parte
dos magistrados, seja pelo Executivo quando da realização de lançamentos, reside na perda da
feição democrática que deve permear o ordenamento.
Não fosse suficiente o risco de perda de integridade dentro do sistema jurídico –
coerência interna entre as diversas decisões – o decisionismo interpretativo, a determinação
do conteúdo normativo imposto verticalmente sem qualquer participação efetiva das partes na
construção de seus significados faz cair por terra qualquer pretensão de uma estrutura
democrática que embala os debates contemporâneos. Com ele, destina-se a uma elite
magistrada a determinação de escolhas e valores para os casos concretos, como se capazes de
representar uma comunidade homogênea e concordante com suas visões hermenêuticas e
suprimindo qualquer argumentação discursiva dos envolvidos. Ora, caso se afirme a
construção de um conteúdo normativo condizente com os anseios da própria população sobre
a qual incidirá o Direito, não se pode pretender sua participação como sendo secundária.
203
Quais características e qualidade habilitam nossos magistrados a determinar, a seu bel prazer,
e de forma individual, as normas regentes de toda a comunidade?
Daí que se afirma: uma atuação hermenêutica que se diga preocupada com a
estruturação democrática necessária ao momento atual do constitucionalismo deve pressupor
a participação irrestrita de todos os envolvidos na elaboração da materialidade normativa.
Neste esteio, permeado pela presença argumentativa de seus participantes, o magistrado deve
se pautar pela busca à resposta/decisão correta ( e, por isso, não discricionária!) que deverá
resolver o caso concreto posto e, assim, garantir a melhor justiça a ser aplicada.
Defensor da possibilidade da consecução de uma resposta correta às decisões
administrativas e jurisdicionais, Cruz (2007), apoiado na análise do pensamento de Hart e
Dworkin, aponta algumas objeções contrárias ao fornecimento de uma conclusão desta
natureza aos casos concretos com que se deparam os magistrados, todas elas com pretensões
de arrefecer os golpes deferidos à atuação discricionária dos julgadores.
Poder-se-ia argumentar, primeiramente, a impossibilidade de se estabelecer de forma
apriorística todas as interpretações possíveis de uma norma legal, justamente em decorrência
da já comentada indeterminação substantiva dos vocábulos normativos. Diante desta “falha
lingüística”, outra posição não restaria ao hermeneuta além de decidir, dentre aquelas
interpretações possíveis, a que mais lhe agrada.
Conforme lembra Cruz (2007, p. 242), a ausência de uma isomorfia, de um casamento
indissociável entre os termos lingüísticos e seus significados, não pode sustentar um óbice à
busca das ações humanas, dentre as quais, a aplicação justa do Direito. Caso assim se
procedesse, restaria ao intérprete nada além de um absoluto utilitarismo, em que a “regra
hermenêutica” seria a imposição da melhor relação “custo-benefício” auferida em cada
situação enfrentada.
Ademais, ainda que se possa falar em uma indeterminabilidade dos termos
lingüísticos, apenas se pode fazê-lo quando se imagina tais termos “em abstrato”. Ver-se-á
mais adiante que, uma vez analisado o caso concreto, é possível sim determinar (ainda que
provisoriamente!) qual o conteúdo dos termos lingüísticos, e consequentemente, normativos,
que regem determinada lide (AMORIM, 2006, p.34).
Noutro lado, uma segunda crítica reside no argumento de que o Direito não é capaz de
aferir se uma resposta/decisão é efetivamente “a correta”, sendo este um recalque dos anseios
matematizantes da racionalidade moderna.
Ora, aqui se deve estar atento ao fato de que uma objeção de tal natureza procura
espeques na idéia de que não se pode determinar o que é “certo” ou “errado”, “melhor” ou
204
“pior”. Não obstante, a mera tentativa de se defender referida construção teórica já é se
pautar, ainda que implicitamente, na busca por uma “melhor” teoria interpretativa. Reparem
como essa contradição performativa, a argumentação contrária à pragmática já desconstrói os
fundamentos da crítica em debate.
Suprir os anseios de uma resposta correta relativa ao caso concreto é assegurar aos
cidadãos que os julgadores estão comprometidos em buscar a melhor adequação de justiça e
Direito em relação àquela situação, estando, para isso, desprendidos de suas preferências
pessoais e discricionárias, e imbuídos na tarefa de construção participativa do Direito
aplicado. Referida resposta pode ser modificada no futuro? Obviamente que sim, mas isso não
representa uma abertura a quaisquer decisões ou respostas jurisdicionais. Afinal, a própria
concepção de uma resposta correta pressupõe a consciência de sua provisoriedade, de sua
precariedade e constante possibilidade de revisão, desde que diante de novos elementos que
assegurem uma nova e melhor decisão. Caso contrário, sim, poder-se-ia afirmar a prisão
epistemológica à racionalidade cartesiana e seu projeto de determinar uma solução
inquestionável e invariavelmente adequada a um problema.
205
CAPÍTULO VI – O SURGIMENTO DOS DIREITOS DIFUSOS E O DIREITO
TRIBUTÁRIO
Neste ponto, um leitor mais habituado pode estar um tanto espantado. No desenrolar
do trabalho, foram desenvolvidos os paradigmas liberal e social, juntamente com seus
respectivos direitos fundamentais característicos. Não estaria então no momento de se
proceder um estudo dos direitos difusos em comunhão com o delineamento do Estado
Democrático de Direito?
Não exatamente. De fato, temos a ciência de que, comumente, nas análises
paradigmáticas das distintas etapas constitucionais pós-revolucionárias, há uma identificação
entre os direitos de primeira geração junto ao paradigma constitucional liberal; direitos de
segunda geração comungados com o desenvolvimento do Estado social, e finalmente, o
Estado Democrático de Direito caracterizado pelos direitos difusos. Não obstante, nossa
compreensão acerca dos direitos fundamentais próprios de um Estado Democrático se mostra
um tanto distinta do mero reconhecimento dos direitos difusos nesta terceira onda geracional,
abarcando tanto uma feição de condição de possibilidade discursiva, quanto de resultado
provisório do debate realizado pelos cidadãos. Justamente em razão disso, um discurso acerca
do atual paradigma constitucional será postergado para algumas páginas adiante.
Ademais, caso fossem apresentadas, desde já, as nuances Estado Democrático de
Direito, correr-se-ia o risco de confundir duas críticas que devem, para fins de melhor
entendimento, permanecer estrategicamente separadas: a efetividade dos direitos
fundamentais frente a hermenêutica clássica; e a superação de seus pressupostos filosóficos.
Isso porque, conforme se verá mais à frente, a própria concepção de um Estado democrático
demanda o vencimento das barreiras hermenêuticas da modernidade.
De todo modo, não se poderia deixar de reconhecer a relevância que o surgimento dos
direitos difusos representou ao leque de direitos fundamentais que têm sido reconhecidos e
reconstruídos na história constitucional. Além do mais, muito embora não possam ser
identificados como únicos representadores do Estado Democrático, os direitos difusos
compõem, sem sombra de dúvida, a terceira geração de direitos fundamentais, e emergiram
simultaneamente com a formação do Estado Democrático. Esse é motivo suficiente para
prosseguirmos em nosso estudo, que visa apresentar como a hermenêutica positivista não
consegue lograr satisfação quanto a concretização dos direitos fundamentais delineados ao
longo do tempo.
206
Ainda que sob o risco de pecar pela redundância, é importante mais uma vez frisar. A
verificação dos direitos difusos de forma apartada dos demais se dá unicamente para fins de
labor didático. Tem-se por ciente e certa a indivisibilidade dos direitos fundamentais como a
impossibilidade de se seccionar este que se mostra como um bloco coeso e inseparável (Cf.
cap. III). Todavia, para realizar o destaque dos variados instrumentos tributários surgidos ao
longo da evolução constitucional, a facilidade de apresentação justifica um estudo
segmentado tal qual o desenvolvido. Eventuais censuras acerca desta opção representarão não
o desconhecimento por nossa parte da indivisibilidade aludida, mas sim uma parca
compreensão dos propósitos que nos guiam.
Após todo o desgaste histórico de lutas para a consolidação dos direitos sociais na
esfera fundamental da humanidade, a II Guerra Mundial com suas conseqüências – dentre as
quais os processos descolonizações das nações africanas e reconhecimento de uma
interdependência internacional – modificou a estrutura de direitos até então consagrados.
A sociedade internacional passou a perceber que fazemos todos parte de um mesmo
planeta. Coexistimos e compartilhamos um frágil habitat onde a ação de um único indivíduo
pode repercutir mundialmente, colocando-nos em uma posição de inter-relacionamento
constante que denota nossa precariedade.
Não por acaso, neste mesmo momento verifica-se a expansão do Direito Internacional.
Os limites geográficos dos países deixaram de representar uma efetiva fronteira de sua
influência, bem como deixaram de significar uma soberania absoluta frente poderes de outros
Estados. Essas constatações são conseqüências diretas da consciência humana da
interpenetração dos impactos das decisões tomadas nos diversos cantos do globo.
Em que pese quais direitos efetivamente decorreram da percepção do cenário global
pós II Guerra, não se pode apontar um consenso entre os diversos autores, cada qual
apontando um rol próprio de novas garantias constitucionais (SAMPAIO, 2004, p. 293-297).
Não obstante, é esse caráter de fragmentariedade, de difusão e internacionalização que
caracteriza o novo paradigma de direitos fundamentais135 .
Para que se possa aceitar uma concepção de transposição de fronteiras em termos de
reconhecimento de direitos comuns, utiliza-se como suporte a idéia de solidariedade.
Sampaio, ao mencionar Falk e o tema em análise:
135 “A atribuição da titularidade de direitos fundamentais ao próprio Estado e à nação (direitos à autodeterminação, paz e desenvolvimento) tem suscitado sérias dúvidas no que concerne à própria qualificação de grande parte destas reivindicações como autênticos direitos fundamentais” (SARLET, 2003 p. 54). Quanto a esta objeção à caracterização de “direitos fundamentais” aos direitos difusos, conferir a completa elenco de críticas em SAMPAIO: 2004p. 302-307
207
solidariedade que se funda, para ele, numa “geogovernança humana”, uma espécie de democracia transnacional que propicie a todas as pessoas em todos os lugares o atendimento de seus interesses essenciais, como membros grupos ou humanidade inteira para viver uma digna e respeitada vida... Ou como depõe, uma geração de direitos que exige para a satisfação uma resposta co-ordenada de escala mundial às ameaças aos direitos humanos advindas da interdependência global de todos os povos e nações” (SAMPAIO, 2004, p. 297) (grifos nossos)
Ambientada nessa percepção de diretos pertencentes à humanidade, e em decorrência
dos horrores perpetrados na II Guerra, surge em 1948 a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que em seu artigo primeiro reconhece a tríade da Revolução Francesa “liberdade,
igualdade e fraternidade”.
Reparem como essa pequena menção no texto da Declaração de 1948 já dá azo para
perceber o caráter de indivisibilidade e releitura dos direitos fundamentais. Analogamente, os
três elementos dos paradigmas constitucionais: a liberdade do individualismo burguês; a
igualdade dos regimes sociais; e finalmente, a solidariedade que fundamenta a noção de
direitos de terceira dimensão. Todos eles reconstruídos em atenção aos novos contextos
constitucionais, e tratados conjuntamente, sem qualquer caráter de exclusão.
Retornando à análise deste novo paradigma, é justamente a idéia de fraternidade ou
solidariedade que mais marca e caracteriza essa nova gama de direitos fundamentais. A
relação de proximidade e interdependência que embasa a solidariedade desses direitos resulta
na imediata modificação de sua titularidade, sendo classificada – como o próprio nome sugere
– como difusa, fluida e repartida entre todos os indivíduos.
Para Sarlet, “a nota distintiva destes direitos de terceira dimensão reside basicamente
na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinível e indeterminável, o que se revela, a título
de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida” (SARLET, 2003
p. 54). Baracho Júnior, por sua vez afirma que “direitos difusos são necessidades comuns a
uma pluralidade de indivíduos e que somente podem ser satisfeitos numa perspectiva
comunitária” (BARACHO JUNIOR, 1999 p. 249). E não apenas a doutrina.
Também na esteira do reconhecimento dos direitos difusos, já em 1972, foi elaborada
a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, primeiro
documento internacional a prescrever direitos pertencentes apenas à humanidade de forma
ampla, incapazes de serem apropriados individualmente. E de fato, há direitos que são
impossíveis de serem destacados à esfera do indivíduo, ou mesmo de pequenas coletividades
locais. Como se apropriar da cultura, ou ainda, como delimitar quais indivíduos aproveitam a
preservação de um patrimônio histórico?
208
É por isso que, de forma arguta, disserta Lúcia Valle Figueiredo que
a indivisibilidade é a primeira característica do direito difuso [...] Capelleti, em frase feliz pergunta: de quem é o ar que respiro? A resposta nem se faz necessária. De quem pode ser o patrimônio ecológico, o meio ambiente hígido, os bens que forma o patrimônio cultural de uma nação, as paisagens notáveis, as reservas ecológicas? A resposta já, instintivamente, deve ser apenas uma: de todos e de cada um, de cada um e de todos. (grifos nossos) (FIGUEIREDO, 1989, p. 15)
Dentre os direitos comumente citados como pertencentes a essa terceira geração,
possível citar o direito à paz, ao meio ambiente, desenvolvimento dos povos, patrimônio
histórico cultural, direto das minorias, comunicação e qualidade de vida136. Não diminuindo
ou deixando de reconhecer a definitiva importância material de todos esses direitos/garantias
para o bem desenvolvimento de uma unidade global humana, há quem aponte preeminência
aos direitos ambientais.
Bobbio, ao abordar o tema, assevera que
ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído (BOBBIO, 1992 p. 06) (grifos nossos)
Compartilhamos da opinião do renomado autor. Sem desacreditar os demais direitos
difusos, a questão ambiental tem se mostrado como o grande desafio da humanidade para hoje
e para as próximas décadas. Por isso mesmo, tomaremos os mesmos como espécie dentro do
gênero “direitos difusos” para a demonstração do papel tributário em sua concretização.
Não se pode olvidar ou desconsiderar que a ação humana e suas conseqüências
degradatórias acompanham o homem em toda sua evolução – tanto o é que Juraci Magalhães
aponta indícios de legislações protecionistas do meio ambiente desde a Antiguidade
(MAGALHAES, 1998, p. 02). Entretanto, não se consegue encontrar, na atualidade, qualquer
autor que negue a exponencial atenção que tem sido direcionada à questão ambiental e
ecológica.
De fato, crises ambientais como o aquecimento global; escassez energética;
mortandade de espécies animais; chuvas ácidas; lixos químicos; a iminente escassez de água
136 Dentre os autores, conferir: FERREIRA FILHO, 1999 p. 58-63; LAFER, 1988 p. 140 e ss.
209
potável; ou mesmo eventuais estratégias para reversão ou paralisação desses problemas, vêm
freqüentando de forma recorrente os meios de informação137.
Durante a evolução das nações hoje desenvolvidas, o crescimento econômico se
apoiou na constante exploração de recursos naturais, por vezes, não renováveis. Como
prosseguir na evolução das sociedades modernas sem a contínua deteriorização das condições
ambientais se mostra o verdadeiro desafio às presentes e futuras gerações.
Atento ao contexto em que inserida a Europa, o Presidente da Comunidade Européia
(2007) José Manoel Barroso, já afirmou considerar a questão energética – intimamente ligada
à preservação ambiental – como sendo “a nova revolução industrial”.138
Em virtude dessa crescente preocupação, ganha força a argumentação em prol de um
desenvolvimento sustentável, ou seja, a coordenação, a conciliação entre a satisfação das
necessidades da população e desenvolvimento social e a preservação das matrizes ecológicas
de vida.
A importância pela busca de um desenvolvimento consciente com as particularidades
ambientais ganhou maior expressão quando da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (a ECO 92), em cuja Declaração do Rio, se estabeleceu o
princípio do desenvolvimento sustentável como meta a guiar todos os países: “Princípio 4:
para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante
do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste”.
Observando também atitudes pragmáticas, Milaré:
As preocupações com a produção sustentável não têm sido meramente emocionais ou estéreis. Entre muitas iniciativas tomadas em referência ao tema, deve-se mencionar a normatização internacional elaborada e proposta pela ISO - International Organization for Standardization, compendiada na série iso 14.000. Essa organização internacional, sediada em Genebra, vem atuando dentro dos seus fins societários específico, desde 1947. Nos últimos anos, ela editou normas para assegurar a qualidade dos produtos industriais, a série isso 9.000. As normas da série iso 14.000 visam resguardar, sob o aspecto da qualidade ambiental, não apenas os produtos como também os processos produtivos (MILARÉ, 2004, p.60-61).
Justamente em razão de todo esse desenvolvimento, se reconheceu aos direitos
ambientais a categoria de direito fundamental. É interessante notar, porém, que há duas
fundamentações no sentido de uma proteção dos direitos ambientais.
137 Conferir, a título de exemplo, TEXEIRA JUNIOR, 2006, p.30-32. 138 Estado de Minas pág. 20 caderno “ciência” data 11 de janeiro de 2007
210
Há argumentações que seguem a idéia de que o Direito é responsável por regrar as
condutas humanas em virtude de o próprio meio ambiente ser detentor de direitos. Assim, o
ambiente é protegido em benefício dele próprio, como um fim em si mesmo. É, nos termos de
Dixon e McCorquodale (2003, p. 466) uma “environmentally-centred concern”, ou seja, a
centralização do meio ambiente como foco de atenção ao Direito139.
Noutro ponto, a corrente que defende a preservação das condições ambientais não em
razão do ambiente em si, mas sim para preservar o meio adequado para a sobrevivência e
bem-estar da comunidade humana. Está é uma abordagem mais antropológica dos direitos
ambientais. A humanidade o protege para seu próprio privilégio, e não do meio ambiente
propriamente dito.
Em que pese o debate que busca locar em qual corrente reside a fundamentação dos
direitos ambientais, sua importância não deixa de estar clara. E da mesma forma seu caráter
“difuso” que o enquadra na terceira dimensão de direitos fundamentais.
Conforme tratado no início deste tópico, a explosão do Direito Internacional está
relacionada com a percepção por parte da comunidade internacional da interação existente
entre os diversos países e suas decisões aparentemente isoladas. Tendo a informação como
certa, não há como deixar de relacioná-la com a proteção ao meio ambiente, que, de imediato,
acaba por demonstrar um caráter internacional e difuso.
É nesse sentido que Mello (2004, p. 1342) afirma que a proteção do meio ambiente
deve, obrigatoriamente, ser internacional, sob pena de total ineficácia. Afinal, por ser o meio
ambiente um corpo único e complexo, não se pode separar os impactos ambientais em
fronteiras imaginárias tais quais as dos Estados nacionais. Por isso mesmo, é comum a
utilização do jargão: “o meio ambiente não conhece fronteiras”.
... a ação isolada de um ou de alguns países em defesa do patrimônio ambiental – que, afinal, pertence à humanidade, de hoje e de amanhã – pouco resultado produzirá na contenção de problemas de alcance transfronteiriço, como a poluição atmosférica, a contaminação dos ecossistemas aquáticos, a degradação do solo e da vegetação, a extinção de espécies animais e vegetais [...] a verdade é que somente uma ação conjunta, solidária e harmônica entre os diversos países seria capaz de mudar esse quadro (MILARE, 2004, p. 944)
139 “...the law could be conceived in terms of an environmentally-centred concern, so that the environment would be preserved for its own sake and not only to maintain human life and human interests. In Sierra Club v. Morton 405 US 727 (1972), before the Supreme Court of the United States, Douglas J said elonquently: ‘the voice of the inanimate object, therefore, should not be stilled. That does not mean that the judiciary takes over the managerial functions from the federal agency. It merely means that before these priceless bits of America (such as a valley, an alpine meadow, a river or a lake) are forever lost or are so transformed as to be reduced to the eventual rubble of our urban environment, the voice of the existing beneficiaries of these environmental wonders should be heard’ ”. (DIXON; MCCORQUODALE, 2003, p. 466)
211
A impossibilidade de contenção dos impactos decorrentes das ações contrárias ao
ecossistema, de forma ampla, é responsável por caracterizar a solidariedade e
fragmentariedade que identifica os direitos difusos. Mas não apenas.
A construção do pensamento ambientalista passa pela concepção de que os frutos da
Terra não nos pertencem de forma absoluta. Somo meros “comodatários” dos bens
ambientais, nós o utilizamos, mas com a responsabilidade de resguardá-los para as futuras
gerações. É outra argumentação que busca na solidariedade, o fundamento para a proteção
ecológica:
a espécie humana detém o ambiente natural do nosso planeta em conjunto com todos os membros de nossa espécie: gerações passadas, a geração presente, e as futuras gerações. Como membros da geração presente, nós detemos a terra em confiança das futuras gerações. Ao mesmo tempo, nós somos autorizados a utilizar e nos beneficiarmos da mesma (tradução nossa)140 (DIXON; MCCORQUODALE, 2003, p. 463).
Seguindo essa esteira, a Declaração de Estocolmo de 1972 é hoje considerada o marco
inicial da defesa internacional dos direitos fundamentais ambientais141. Declara a mesma,
como primeiro princípio, que
O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequados num meio ambiente de tal qualidade que lhe permita levar uma vida digna e gozar do bem estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
A partir daí outros vários documentos foram elaborados, todos eles preservando
mentalidade esboçada nas linhas acima. Para mencionar alguns, a Convenção sobre o
Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção
(1973); Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982); o controverso
Protocolo de Kyoto (1997), e também a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (RIO 92), que culminou na elaboração da Agenda 21, Rio de
Janeiro, em 1992.
140 No original: “... the human species hold the natural environment of our planet in common with all members of our species: past generations, the present generation, and the future generations. As members of the present generation, we hold the earth in trust of the future generations. At the same time, we are beneficiaries entitled to use and benefit from it” 141 Mello (2004, p.1346 e ss.) nos relata, porém, uma série de tratados e Acordos internacionais que, anteriores à Declaração de Estocolmo, já previam alguns direitos relativos ao meio ambiente. Nesse sentido, a Convenção de Genebra sobre alto-mar de 1958, a Convenção de 1954 em Londres, destinada à prevenção da poluição decorrente de vazamento de petróleo, dentre outros.
212
Também no ordenamento interno vemos expressões desses novos direitos
fundamentais. A própria Constituição Federal já expõe todas as características dos direitos
ambientais de terceira dimensão. De forma sucinta, ela reúne informações acerca da
fragmentariedade da titularidade, e a obrigação estatal, bem como da sociedade, em defendê-
los.
Determina assim o artigo 225 da CF/88: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-los e preservá-los para
as presentes e futuras gerações”.
Não fosse suficiente, o mesmo texto constitucional, em seu artigo 170, VI tem a
proteção do meio ambiente como princípio de sua ordem econômica. Para Milaré (2004,
p.305), esse dispositivo constitucional torna ilegítima qualquer forma de iniciativa privada
que seja contrária à proteção ambiental. Este é ponto a se destacar, pois demonstra a ciência
do constituinte da aludida relação sustentável a ser alcançada entre proteção ambiental e
desenvolvimento econômico.
Mas a análise constitucional não se exaure na mera disposição expressa ao meio
ambiente.
Na concepção de Renata Ferreira e Celso Fiorillo (FERREIRA; FIORILLO, 2005,
p.13), o direito a um ambiente saudável e protegido é mesmo decorrência de direito a um
“mínimo existencial constitucional” já relacionado com a efetivação da igualdade no
paradigma social. Para os autores, o plexo mínimo de direitos necessários ao ser humano, que
antes abrangia apenas condições materiais e prestações sociais positivas, passa a encampar,
também, o direito a um meio ambiente sadio, até mesmo pela sua intensa relação com a
proteção à dignidade da pessoa humana protegida no art. 1º, III da CF/88.
Não se pode olvidar que as adequadas condições ambientais são essenciais para o
alcance, não apenas de condições satisfatórias de vida, mas para a própria sobrevivência da
espécie humana. Por isso mesmo, Milaré (2004, p. 137) identifica na garantia do direito à vida
(art. 5, caput, CF/88), a própria manifestação da proteção ambiental.
Também a nível infra-constitucional temos o delineamento da preocupação com o
patrimônio natural. Já em 1981 a lei federal 6.938 estabeleceu a “Política Nacional do Meio
Ambiente”, que caracterizou o meio ambiente como “patrimônio coletivo ou comunitário” –
leia-se difuso.
E a necessidade de regulamentação dos impactos ambientais das ações humanas
seguiu adiante, podendo ser mencionada a lei 7347/85 (dispõe a ação civil pública como
213
instrumento de proteção ao meio ambiente), lei 9.605/98 (lei de crimes ambientais), lei
9433/00 (institui a Política Nacional de Recursos Hídricos), dentre outras.
Não se pode negar o surgimento desse novo plexo de direitos fundamentais. A
compreensão da interdependência humana fez reconhecer garantias que não podem ser
apropriadas como de titularidade exclusiva. Para o interesse deste trabalho, os direitos difusos,
e em destaque os direitos ambientais, seguem a mesma esteira dos demais que os precederam.
Por comporem e reforçarem o conjunto fundamental do constitucionalismo, eles também
funcionam como um “locus hermenêutico”, um conteúdo conformador que subsidia a
construção dos institutos jurídicos, inclusive, tributários.
6.1 Tributação e o meio ambiente: uma realidade constitucional
Em que pese o amplo leque de direitos que consagram a terceira geração de direitos,
os direitos ambientais foram apontados como detentores de maior destaque. Por óbvio,
momento algum se pretende reduzir a importância de direitos tais como o patrimônio
histórico-cultural, ou ainda o direito à comunicação sem fronteiras. Ocorre, porém, que, para
fins de didaticidade, bem como uma melhor caracterização da matéria tributária face os
direitos fundamentais em um sucinto espaço de texto, o destacamento de uma espécie dentro
do gênero “direitos difusos” se mostra aconselhável. Entretanto, todas as considerações aqui
desenvolvidas acerca da tributação ambiental podem ser transportadas, mutatis mutandi, aos
demais direitos difusos já apontados no trabalho.
Dadas as características históricas do direito tributário, é natural a tendência a pensar o
sistema fiscal relacionado unicamente àqueles bens constitucionais aos quais o mesmo era
apontado como expressamente atrelado: liberdade; segurança e patrimônio.
Com efeito, todos esses bens jurídicos são invariavelmente trabalhados quando em
debate a atuação fiscal do Estado. Entretanto não formam os mesmos um rol taxativo de
direitos ligados à tributação. Também os direitos ambientais, tanto em voga, podem ser
percebidos como objeto e mesmo finalidade da atuação tributária em nosso Estado Fiscal –
ainda que, à primeira vista, possa causar estranheza a interligação entre proteção do meio
ambiente e a exação tributária.
Neste tocante, importante atentar para o seguinte. Deve-se ter por certa a compreensão
de serem os direitos de terceira geração, em especial os direitos ambientais ora tratados, um
214
elemento adicional na composição do plexo de direitos fundamentais que compõem o
ordenamento jurídico-constitucional. Certa ainda a percepção de que tais direitos compõem o
conjunto delineador da faceta do Estado, bem como o conjunto de princípios e diretrizes que
direcionam sua atuação frente à sociedade e seus interesses.
Ora, se nas bases do Estado Fiscal está a pressuposição de que a tributação cumpre a
finalidade precípua – mas não única – de efetivar as finalidade estatais, não restam dúvidas
acerca da necessidade de a tributação prestar atenção para a necessidade de um meio ambiente
sadio e sustentável tal qual prega a Constituição.
Não fosse bastante, não se pode deixar de lembrar a própria base teórica que encampa
esse trabalho.
Já apresentada a supremacia da Constituição, bem como o papel de “locus
hermenêutico” que exercem os direitos fundamentais. Diante disso, não há que se
desvencilhar da assertiva de que todo o sistema tributário deve sim, ter seu conteúdo
construído de forma a, não apenas se adequar, mas mesmo concretizar os direitos
fundamentais que o informam, dentre os quais os direitos de terceira dimensão, de cujo
gênero é espécie o direito ambiental.
Já mencionado como a freqüente contribuição humana para degradação ambiental tem
motivado os teóricos do direito a pesquisar formas de reversão deste nefasto quadro. Neste
cenário, desponta a importância crescente do tributo, do qual é exigido maior protagonismo
no combate pelo ambiente sadio. É esse o papel que Ferraz (2003, p. 167) garante aos
denominados “green taxes”.
Também na doutrina brasileira identifica-se uma crescente produção de artigos, obras
e legislações coadunando o sistema fiscal à necessária proteção ambiental.
Para Fernando Scaff e Lise Tupiassu (2005, p. 105), a Constituição atual não deixa
margem para escapes. Em virtude da obrigatoriedade de Ordem Econômica se atentar aos
impactos ambientais (art. 170, VI da CF/88), os autores argumentam a vinculação da
tributação como instrumento de consecução dessas mesmas finalidades.
No mesmo sentido Lopes (2005, p. 47), que destaca a importância que o
desenvolvimento sustentável acarreta no planejamento dos objetivos fiscais do Estado,
principalmente a nível preventivo.
Mas não apenas no aspecto de prevenção de novas lesões à seara ambiental se pode
detectar a atuação do Estado, e consequentemente, da tributação. Tão factível quanto ao
obstamento de novos comportamentos poluentes ou devastadores, a reversão de estados
215
ecológicos delicados também se apresenta possível através da atividade tributária. Nesse
sentido é que argumenta Moro:
As medidas fiscais materializam sua intervenção ambiental desenvolvendo, bem uma função preventiva, nesta perspectiva, tratam de se antecipar à produção do prejuízo, incentivando comportamentos condizentes com o meio ambiente, ou dissuadindo os contrários; bem uma função de restauração do meio, em cuja perspectiva, o tributo contribui com a preservação do meio ambiente através do financiamento de atividades de restauração, redistribuindo os custos que ocasionam tais medidas entre os sujeitos contaminadores (tradução nossa)142 (MORO, 1999, p. 83)
Instrumentos não faltam, e assim se verá.
Santana (2004 p. 17) relembra que quando da elaboração da Agenda 21, em 1992,
houve o estabelecimento de um plano de ação para alcance do desenvolvimento sustentável.
Em meio às possibilidade de atuação do Estado, estavam:
a) tributos ambientais: impostos, taxas, contribuições de melhoria e contribuições de
intervenção no domínio econômico;
b) autorizações negociáveis de exploração;
c) subsídios;
d) depósitos-retorno ou imposto restituível – instrumento utilizado em países tais
como Bélgica em que parte do preço da mercadoria é devolvida ao consumidor quando este
retorna com embalagens ou produtos descartáveis.
Da mesma forma, a OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento
Econômicos), lembrada por Oliveira (1999, p.13) contatou que “os tributos ambientais
(écotaxes), desde que adequadamente concebidos e postos em prática, podem ter um (sic) real
eficácia em matéria de proteção do meio ambiente”.
E a viabilidade da atuação fiscal junto à preservação natural não reside apenas na
esfera doutrinária ou especulativa. Segundo a OCDE, o imposto sobre emissões de enxofre na
Suécia possibilitou a redução de 6.000 toneladas de emissão do gás, quanto na Dinamarca, a
tributação conseguiu elevar a reciclagem de tímidos 32% para significativos 61% dos
materiais destinados ao lixo (OLIVEIRA, 1999, p. 72 e ss).
142 No original: “Las medidas fiscales materializan su intervención ambiental desarrollando, bien uma función preventiva, desde esta perspectiva, aquéllas tratan de anteponerse a la produción del perjuicio, incentivando comportamientos acordes con el medio o disuadiendo de los contrários; bien una función de restauración del medio, desde esta perspectiva, el tributo contribuye a la preservación del medio atraves de la financiación de actividades de restauración, redistribuyendo los costes que ocasionan dichas medidas entre los sujetos contaminadores”
216
Também no Direito Brasileiro, há medidas que comprovam a possibilidade e
contemporaneidade da utilização do sistema tributário para o alcance dos direitos ambientais.
Segundo ditames da lei 9.393/96, são excluídas da base de cálculo do ITR áreas de
floresta nativa e outras classificadas como de interesse ambiental.
Já com fulcro na lei estadual carioca 2273/94, no estado do Rio de Janeiro, há prazos
especiais para pagamento de ICMS para indústrias ou agroindústrias que utilizam tecnologias
ligadas à proteção ambiental. São todos exemplos de como a tributação pode se ligar ao
direito ambiental.
Da mesma forma, o IPTU progressivo é instrumento mencionado pelo art. 182 § 4º, II
da CF/88 e pela lei 10.257/01 (Estatuto das Cidades) para fins de “garantia do direito a
cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental...” ( art. 2º lei 10.257/01)(grifos nossos).
Merecem destaque também as taxas, outra espécie tributária que contribui para a
realização dos anseios constitucionais ambientais, o que parece não estar ainda
suficientemente claro em toda a doutrina.
Assim, ainda há autores que, como Freire (2000, p. 64), compreendem que a atuação
das taxas de polícia ligadas à proteção do meio ambiente têm toda sua eficácia esgotada em
uma abstenção dos particulares, uma postura por parte dos mesmos em não realizar atividades
potencialmente poluidoras.
Ocorre que, nos termos expressos pelo art. 77 do CTN, ensejam a cobrança de taxas
“...o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial de serviço
público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição”.
Ora, seguindo esse raciocínio, também o exercício do poder de polícia pelo ente
público pode ensejar uma obrigação positiva do particular capaz de auxiliar no trato da
proteção ambiental: o pagamento de taxas relacionadas e direcionadas à atividade humana
predatória do meio ambiente.
Essas “taxas ecológicas” possibilitam uma maior atuação do poder de polícia
fiscalizatório das atividades pertinentes e potencialmente prejudiciais ao ecossistema
ambiental. Nesse sentido, a taxa de controle e fiscalização ambiental (lei 10.165/00) que
apresenta seu fato gerador “o exercício regular do poder de polícia conferido ao IBAMA para
controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos
naturais”.
217
Ou ainda, a taxa anual incidente sobre mineração (lei 7.886/89) cuja receita é
destinada ao Departamento Nacional de Produção Mineral143. A título de demonstração da
expressividade das receitas advindas das ditas “taxas ecológicas”, a Procuradora Federal
Cristina Esteves informa que em decorrência da taxa anual mencionada, foi arrecadado no
exercício financeiro de 2005 o significativo montante de R$39.232.451,46144 (ESTEVES,
2006, p. 3185)!
Dentre o gênero tributário, porém, é o ICMS ecológico que maior atenção tem
recebido das obras com as quais nos deparamos (OLIVEIRA,1999; FERREIRA, FIORILLO,
2005).
Utilizado pioneiramente pelo estado do Paraná, em 1991, e adotado posteriormente
por outros estados, tais como São Paulo (1993), Minas Gerais (1995), Rondônia (1996),
Amapá (1996), Rio Grande do Sul (1998), dentre outros, o ICMS ecológico tem por objetivo
predominante o crescimento no número de áreas de conservação ambiental em Municípios.
Cumprindo – ainda que involuntariamente e em desconhecimento – a receita do
BUND (Federação para o Meio Ambiente e Proteção da Natureza da Alemanha) para
reformas tributárias ecológicas (KURZ, 1998, p.20), o ICMS ecológico pode ser destacado
por não implicar em qualquer incremento ou criação de impostos, não configurando assim,
maior oneração tributária. É a demonstração de que não apenas em aspectos arrecadatórios se
baseia o sistema fiscal ambiental.
Segundo consta no art. 158, IV da CF/88, pertencem aos Municípios 25% do produto
da arrecadação pelos estados a título de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
presente no art. 155, II do texto constitucional. Referido montante de participação municipal
do produto arrecadado deverá ser creditado nos termos a serem estabelecidos em lei estadual
regulamentadora do dispositivo em comento.
A iniciativa paranaense em criar o ICMS ecológico se deu a partir dessa possibilidade
regulatória, condicionando a participação dos municípios na renda decorrente do ICMS à
adoção de políticas ambientais.
É de se notar que o Estado do Paraná percebeu um aumento de 142,8% de unidades de
conservação em seu território como resultado da implementação desta técnica tributária
relativa ao ICMS (SANTANA, 2004,p. 25).
143 Necessário mencionar existência de controvérsia acerca da sua natureza de taxa ou preço público dessa exação (Cf. ESTEVES,2006). 144 Seguindo cotação datada de 31/12/2005, o valor em questão representaria US$ 16.837.961,98
218
Tivemos o cuidado de reservar esse tópico para espancar eventuais dúvidas acerca da
possibilidade de utilização do sistema tributário para a realização dos objetivos
constitucionais ambientais. Vejam, agora, quais características marcam essa nova faceta do
sistema fiscal brasileiro.
6.1.1 Os princípios ambientais-tributários
Assim como nas relações entre o sistema tributário e os demais direitos fundamentais
é possível identificar determinados princípios que lhes são próprios, também a fiscalidade
ambiental deve atenção a algumas diretrizes informadoras do direito ambiental.
Entretanto, delimitar com precisão quais os princípios que figuram nesse rol é tarefa
que deve considerar os diversos posicionamentos existentes. Seguindo o entendimento de
Antunes (2000, p. 25), se destacam: princípio do direito humano fundamental; princípio
democrático; princípio da prudência; princípio do equilíbrio; princípio do limite e o princípio
do poluidor-pagador.
Em que pese a importância de todos e cada um dos princípios mencionados, pode-se
identificar dois que, mais facilmente, conseguem informar a tributação ecológica: o “princípio
da prevenção” e o “princípio do poluidor-pagador”.
6.1.1.1 Princípio da prevenção
Grande parte das atividades perpetradas pelo Homem e com resultados prejudiciais ao
meio ambiente apresenta caráter de irreversibilidade, ou de difícil reparação. A extinção de
uma floresta nativa, ainda que replantada, não conterá as idênticas particularidades naturais. A
alteração de um ecossistema biológico pela desertificação dos solos e florestas
freqüentemente não permite o retorno da cadeia biológica que agrupava as variadas espécies
que ali habitavam e compunham o delicado entrelaçamento de seu ecossistema. A utilização
indiscriminada de recursos não renováveis também suscita menção.
Em razão dessas considerações, cabe ao Estado prevenir as conseqüências advindas
das condutas indesejadas e prejudiciais ao meio ambiente que compomos. Ao Poder Público é
219
dada a tarefa de se antecipar a eventuais posturas atentatórias dos particulares, e atuar de
forma a inibir ou impedir a execução dessas atividades.
Nesses casos, o foco orientador das condutas não reside nas ações danosas, mas sim
anteriores ao dano propriamente dito, ou seja, nos comportamentos em que haja justo receio
de comprometimento ambiental.
Nixon e McCorquodale (2003, p. 469) lecionam que, no cenário internacional, é
possível identificar diferentes versões do princípio da prevenção. Uma primeira versão,
denominada “action-guided”, exige a ação imediata em face de qualquer conduta que esteja,
potencialmente, causando danos ambientais. É corrente não muito utilizada em nosso
ordenamento interno, sendo mais vislumbrada em acordos internacionais especificamente
relacionados à vida marinha.
Noutra trilha, o princípio da prevenção pode ser compreendido em sua versão
“deliberation-guiding”. Nesses casos, o princípio é compreendido como a impossibilidade de
a incerteza acerca da consumação ou não de danos ambientais servir de escusa para não se
tomar qualquer atitude combativa. É a postura mais freqüente nos demais acordos
internacionais, e também em nosso ordenamento interno. Se há uma ameaça de um
considerável dano ambiental, não podem o Estado e coletividade aguardarem conclusões
científicas para que passem a considerar aqueles dados. Algo próximo ao chamado “princípio
da precaução” trabalhado pela doutrina.
Essa idéia, que foi incorporada no sistema jurídico brasileiro pela internalização da
Conferência Mundial sobre o Clima (dec. legislativo 1/94), também é aplaudida por Milaré
(2004, p.145): “a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para
procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a evitar a degradação do meio ambiente.
Vale dizer, a incerteza científica milita em favor do ambiente”.
Na mesma moeda, se cabe ao Estado confrontar e regulamentar condutas que
presumivelmente irão gerar impactos prejudiciais, também deve o Estado estimular e tornar os
particulares a aderirem condutas alternativas e de maior compatibilidade com os objetivos
constitucionais ambientais.
É como alertam Ferreira e Fiorillo:
restou caracterizado pelo art. 225 da Carta Magna o dever tanto do Estado como da sociedade civil não só de defender como de preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentro de uma concepção jurídica de que não basta tão somente defender os bens ambientais de lesão eventualmente ocorrida, mas é preciso sobretudo preservar a vida de ameaça que possa ocasionalmente surgir (FERREIRA; FIORILLO, 2005, p. 15)
220
Em foco a efetivação desses ideais, pode-se contar, tanto com a possibilidade de
extrafiscalidade, quanto da utilização dos produtos arrecadados pelo erário. Tratar-se-á
melhor do assunto adiante.
Certo é, porém, que o aspecto preventivo vem galgando espaço a olhos vistos. Não à
toa, há autores que identificam, na postura antecipadora dos danos ecológicos, o cerne das
normas que regulamentam o direito ambiental (VIEIRA, 2006, p. 3012).
6.1.1.2 Princípio do poluidor-pagador
Instituído pela OCDE já em 1972, o princípio poluidor-pagador foi adotado também
pela Declaração do Rio em seu princípio nº 16, cuja redação traz uma clara definição do
mesmo:
as autoridades nacionais devem procurar assegurar a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando em conta o critério de que quem contamina deve, em princípio, arcar com os custos da contaminação, levando-se em conta o interesse público e sem distorcer o comércio e os investimentos internacionais
Juntamente com os produtos de mercado – externalidade natural do processo
produtivo – quando desse processo, são lançadas também conseqüências negativas –
poluentes – à sociedade. Afirma-se serem externalidades em razão de seu compartilhamento
com toda a sociedade, que, apesar de não auferir qualquer benefício dos produtos positivos
gerados, sofre todas as conseqüências decorrentes dos desgastes ambientais ocasionadas pela
produção de tais produtos. Daí a necessidade de internalização desses efeitos negativos dos
processos industriais de modo que sejam incorporados ao próprio custo de produção e
compensados com os lucros derivados dessas atividades.
A primeira implicação que vem à mente, quando mencionado o princípio em tela,
remete invariavelmente à sua utilização para fins de incidência e gradação de multas e outras
de sanções ambientais.
Com efeito, o princípio “poluidor-pagador” é calcado principalmente em um viés
retributivo, afinal se consubstancia na internalização dos ônus relacionados com a atividade
221
produtiva. E, de fato, esse custeio pode ser facilmente percebido como imposição de multas
sancionatórias pela degradação já realizada pelo mesmo.
Seria exemplo uma lei que viesse a exigir a instalação de filtros ou equipamentos
ecologicamente positivos, sob pena de multa pecuniária. Nesses casos, o receio da atuação
coercitiva e punitiva do Estado (multa) forçará o potencial poluidor a adotar práticas e
condutas de preservação.
Ora, poderia então o leitor questionar: como é possível importar esse conceito ao
Direito Tributário, se o mesmo tem como base teórica a impossibilidade expressa de o tributo
ter a sanção como fato justificador de sua incidência (art. 3 CTN)?
Com propriedade, não pode o Direito Tributário se valer de sancionar fatos ilícitos
com vistas à instituição de tributos, cuja tarefa é destinada às multas, detentoras de um regime
legislativo distinto da tributação. É entendimento já pacífico no cenário jurídico-tributário.
Entretanto, é de se destacar que não apenas na atividade sancionatória se consegue
identificar a importância principiológica do direcionamento dos ônus ambientais a seu
responsável.
Ocorre que além das regras de sanção que o Poder Público possui, já visto que, por
meio da extrafiscalidade, pode o Estado impelir o contribuinte a adotar certas condutas
capazes de otimizar a efetivação de seus objetivos.
Imaginem, assim, uma tributação menos onerosa apenas àquelas empresas que
instalem os devidos filtros e equipamentos ambientais. O contribuinte que não adotar essas
medidas acabará vendo incidir, sobre seu patrimônio, ônus fiscal superior ao de seus
concorrentes. E não se trata de qualquer incidência sancionatória, e sim, de estímulo positivo
aos contribuintes.
A partir daí duas serão as hipóteses conseqüentes. Pode a empresa responsável arcar
com os valores relativos à preservação ambiental, aumentando seus gastos e não repassando
aos seus consumidores, o que implicará queda em seu lucro final (hipótese menos provável).
Ou então, irá o respectivo agente poluidor repassar aos seus clientes esse custo ambiental
adicional agregado ao valor final de seus produtos.
Esse segundo ponto é tido como principal para Roberto Ferraz no que tange ao reflexo
do princípio poluidor-pagador à população de forma geral. Para o autor,
se os custos da degradação ambiental não forem refletidos nos preços, as decisões econômicas nunca serão ecologicamente corretas. A função das ‘green taxes’ é justamente essa: [...] trazer para o custo de cada bem ou mercadoria o custo que seu consumo representa em termos ambientais (FERRAZ, 2003, p.167-168)
222
De todo modo, haverá uma orientação dos custos ambientais decorrentes do produto
ou serviço àqueles que insistem em consumí-los ou praticá-los.
O que importa diferenciar, porém, é que, se no trato das condutas ilícitas o princípio
antedito de expressa na forma de incidência de multas, haverá situações em que condutas
lícitas hão de ser gravosamente oneradas através da tributação com espeques neste mesmo
princípio ambiental. Daí se afirmar serem duas as funções distintas das multas e
extrafiscalidade no seio ambiental.
Caracteriza-se, assim, um princípio cujas bases residem na mesma idéia de
solidariedade que compõe o fundamento dos direitos difusos.
A solidariedade que embasa a tributação conformada pelo princípio poluidor-pagador
leva em conta um sentido de eqüidade na busca de uma distribuição dos custos de reparação e
prevenção de danos ambientais àqueles que mais contribuem para a ocorrência desses danos
que a todos afetam. Caso a realização de uma atividade tenha intrinsecamente a produção de
prejuízos ambientais a toda a sociedade, nada mais justo que a oneração mais expressiva seja
direcionada ao respectivo agente poluidor.
Nesses casos, não se trata de uma punição propriamente dita. Mas sim do justo custeio
de atividades públicas beneficiadoras do meio ambiente por parte daqueles que mais o violam.
Ao Estado é dado atuar no intuito de melhorar as condições ambientais para a adequada
fruição das comunidades, incluindo a adoção de políticas preventivas e mesmos de reversão
de eventuais quadros negativos catalisados pelo agente poluidor. Assim, deve o último ser o
principal contribuinte a arcar com os respectivos gastos.
Por isso mesmo Moro (1999, p. 79) afirma que o princípio poluidor-pagador é uma
compatibilização da tributação ambiental à idéia de justiça tributária.
A realização de atividades econômicas que degradam o meio ambiente, ainda quando sejam lícitas, supõem um prejuízo à sociedade dos mandamentos constitucionais. Neste sentido, aqueles que prejudicam a sociedade quando aos mandamentos constitucionais, forçando-a a empregar um acréscimo de recursos para manter as condições adequadas de vida, devem contribuir em maior medida que aqueles que não prejudicam desta maneira a sociedade ou que a beneficiem com suas atitudes, sempre dentro dos limites principiológicos de justiça tributária. (tradução nossa)145 (MORO,1999, p. 79)
145 No original: “La realización de actividades economicas que degraden el medio, aun cuando sean lícitas, suponen un alejamineto de la sociedad de los madatos constitucionales. En este sentido, aquellos que alejen a la sociedad de nos mandatos constitucionales, forzándola al empleo de un plus de recursos para mantener las condiciones adecuadas de vida, deben contribuir en mayor medida que aquellos que no perjudiquen de dicha manera a la sociedad o que la beneficien con su actitud, siempre dentro de lo márgenes de los principios de justicia tributaria”
223
Imaginem assim, a exploração do transporte aéreo. É de conhecimento geral quão
agressiva ao meio ambiente se mostra o funcionamento de aeronaves em geral. Diante desse
fato, manda a justiça tributária, fundamentada no princípio poluidor-pagador, onerar essas
atividades de forma mais expressiva para que o Estado tenha capacidade financeira para
adotar medidas ambientais que compensem a poluição causada pelas empresas aéreas.
Da mesma forma, mas em sentido oposto, uma indústria que adote todas as medidas
possíveis para mitigação ou mesmo anulação dos impactos ambientais de sua atividade não
pode, pelo princípio em tela, e mesmo pelo princípio básico de justiça, ser tributada da mesma
forma que sua concorrente poluente. E são vários os argumentos que direcionam para essa
conclusão.
Primeiramente, ela já internalizou os custos dos danos causados pela sua atividade,
implementando políticas de redução de poluentes com a instalação de filtros e outros
equipamentos específicos – e freqüentemente, de elevado custo. Conseqüentemente, essa
mesma empresa irá produzir menores prejuízos ambientais, gerando assim, menor atuação
pública no sentido de compensação dos danos ocasionados. Repassando à sociedade menos
ônus ambientais, manda o Direito seja a mesma menos tributada.
Por derradeiro, é de notar que o custo do produto final da empresa responsável com as
conseqüências ambientais de sua atividade será mais elevado do que sua concorrente que não
instalou os equipamentos destinados a atenuar a emissão de poluentes ou lixos tóxicos. Ora,
não se pode punir comercialmente um contribuinte por adotar condutas mais condizentes e
compatíveis com os comandos constitucionais. Antes pelo contrário, deve-se é incentivar os
particulares a atuar de acordo com as determinações do texto constitucional, dentro do qual
está a proteção ao meio ambiente, inclusive na seção referente à Ordem Econômica e
Financeira (art. 170, VI da CF/88). Caso não haja uma tributação diferenciada entre esses dois
contribuintes, estaria o Estado a beneficiar o poluente, já que seus preços finais serão mais
agressivos do que aqueles relativos à indústria consciente. Imperam o bom senso, a isonomia
substancial e a defesa da livre concorrência.
224
6.2 Concretização dos direitos difusos ambientais via tributação
Neste ponto, as conclusões acerca da concretização dos direitos fundamentais via
sistema tributário já se mostram um tanto adiantadas ao leitor. Não apenas em razão do fato
de tais argumentações já terem sido lançadas no texto durante a análise da tributação
ambiental, mas também em virtude de os instrumentos fiscais à disposição dos direitos
difusos já terem sido desenvolvidos em outros momentos desta pesquisa.
6.2.1 A extrafiscalidade
Assim como apontado quando da intervenção do Estado no domínio econômico em
razão dos direitos sociais, também no que tange ao meio ambiente, a extrafiscalidade vem se
apresentando como o principal mecanismo de um sistema fiscal atento às preocupações
ambientais. É por meio da condução dos comportamentos particulares via tributação que o
Estado, ainda que indiretamente, consegue incentivar a produção e comercialização de
produtos condizentes com o desenvolvimento sustentável do ambiente, estimular a
implementação de políticas e equipamentos ambientais em fábricas e indústrias, desincentivar
práticas que acarretem danos ambientais passíveis de prevenção e inibir ou tornar mais
oneroso o consumo de bens e produtos ligados à degradação do meio ambiente, além de
outras medidas.
Tudo isso pode ser logrado através de benefícios fiscais – imunidades, isenções,
prazos especiais, etc. – ou mesmo, uma maior oneração de atividades e produtos.
A intenção é mesmo clara. O desânimo que se quer inflingir no potencial contribuinte-
poluidor decorre da maximizada carga fiscal a que estará sujeito. Tenta-se convencê-lo a
adotar práticas ecologicamente interessantes em razão da diminuta tributação incidente. É o
caso do exemplo aeronáutico mencionado supra.
É como leciona Moro
O efeito de tal articulação tributária, como parece lógico, é de desanimar a realização dessas atividades (poluentes) já que a obrigação de pagar esse aumento de carga fiscal obstaculiza sua realização. Por sua vez, produz um efeito positivo: incentiva a inovação tecnológica, já que a pressão tributária exercida orienta os
225
comportamentos a não degradar (tradução nossa)146 (MORO,1999, p. 89) (acréscimo e grifos nossos)
Se tomado por base, mais uma vez, o transporte aéreo, poder-se-ia conceber uma
tributação privilegiada àquelas empresas que adotam medidas atenuadoras da emissão de
poluentes, tais como filtros ou outras instalações. Em contrapartida, as empresas que
persistirem em não adotar essas práticas, não observarão qualquer redução em sua carga
tributária.
As conseqüências deste cenário já foram aclaradas: internalização dos custos; repasse
dos mesmos ao consumidor; diminuição da receita da empresa. É um ciclo que leva o
contribuinte a considerar como melhor opção atuar em concordância com o meio ambiente.
Essa possibilidade conformadora do Estado, atraindo comportamentos desejados e
repelindo os indesejados, faz da extrafiscalidade o instrumento de tributação ambiental mais
apontado pelos autores que se ocupam do tema.
Auxilia essa preferência a perspectiva preventiva que a extrafiscalidade denota. Ao
alterar os comportamentos dos contribuintes de forma a adequá-los aos anseios ambientais, o
Estado evita condutas prejudiciais e permite a maior adoção de práticas benéficas ao meio
ecológico, prevenindo, assim, danos que poderiam ocorrer caso permanecesse inerte o poder
Público. No exemplo das fábricas incentivadas a instalar filtros anti-poluentes, o Estado, por
meio da extrafiscalidade, conseguiu prevenir o lançamento de dejetos que iriam agravar a
poluição atmosférica.
Nesse sentido se expressa Heron de Santana:
...a regulação indireta, que visa influenciar a atividade econômica na direção do desenvolvimento sustentável [...] apresenta significativas vantagens em relação à regulação direta, primeiro pelo seu caráter preventivo, constituindo-se em alternativa às políticas repressivas de comando e controle, que, em regra, exige um dano já manifestado e na maioria das vezes de difícil reparação, e segundo pelo caráter não-coativo de sua intervenção, o que facilita a adesão dos destinatários ao comando normativo (SANTANA, 2004, p. 11)
Várias das condutas já mencionadas no presente trabalho se relacionam com a
extrafiscalidade ambiental. A concessão de prazo especial para pagamento de ICMS àquelas
indústrias e agroindústrias que adotarem tecnologias condizentes com a proteção do meio
ambiente; a instituição de impostos consistentes em parcela do preço de produto descartável
146 No original: “el efecto de dicha articulación tributaria, como parece lógico, es de desanimar la realización de dichas actividades ya que la obligación de pagar ese plus de carga fiscal obstaculiza su realización. A su vez, produce un efecto positivo: incentiva la inovación tecnológica, ya que la presión tributaria ejercida orienta los comportamientos a la no degradación.”
226
cujo pagamento pelo contribuinte é recuperado quando do retorno do produto; a adoção do
ICMS ecológico, estimulando os Municípios a criarem mais áreas de proteção ambiental;
redução do valor do IPI para veículos automotores movidos a álcool-combustível, catalisando,
assim, sua comercialização, enfim, são inúmeras as possibilidades em que a tributação pode
potencializar as condutas ecologicamente corretas e de menor potencial poluidor.
Uma vez identificado o êxito da extrafiscalidade junto ao princípio da prevenção, não
se pode restringir seu alcance a um único princípio ambiental. Por intermédio dessa técnica
tributária – extrafiscalidade –, também o princípio poluidor-pagador tem seu conteúdo
respeitado.
Isso porque a modificação do valor final da exação a ser cobrada do contribuinte
deverá ser proporcional às condutas favoráveis ou contrárias ao meio ambiente. Dessa forma,
aqueles que preferirem arcar com os gastos excessivos, estarão internalizando os custos das
externalidades negativas decorrentes de suas atividades.
Mais uma vez socorre o exemplo das empresas aéreas. A empresa que pretendeu
persistir no comportamento lesivo à preservação da qualidade atmosférica terá um custo
maior a ser incorporado em sua contabilidade de produção. Com isso, restará direcionada a
responsabilidade pecuniária àquele contribuinte que deu azo aos prejuízos ambientais.
6.2.2 Arrecadação
Em que pese o maior destaque atribuído à extrafiscalidade ambiental, não se pode
relegar ao esquecimento a fiscalidade – ou seja, a capacidade arrecadatória – que os tributos
ambientais também denotam.
A extrafiscalidade, muito embora eficiente, não esgota todas as exigências ambientais
que se apresentam na atualidade, devendo o Estado também atuar direta e positivamente na
realidade.
Por vezes, uma atividade lícita e até mesmo necessária para a sociedade (lembrem o
exemplo dos transportes aéreos) será altamente agressiva à saúde ambiental. Nessas situações,
não basta a atividade preventiva intentada pela extrafiscalidade. Por mais que essa venha a
lograr uma redução dos danos ambientais, não conseguirá anular todos seus efeitos.
Nesses casos, cabe ao Estado atuar positivamente na tentativa de restaurar o
ambiente degradado, ou mesmo para prevenir outros danos através de políticas públicas
227
adequadas. Ocorre que, para sua atuação, são necessários recursos, recursos esses que, em um
modelo Fiscal, são advindos dos tributos.
Já delineada no capítulo precedente a impossibilidade de uma absoluta secção entre
essas duas facetas da tributação – fiscalidade e extrafiscalidade. No entanto, percebe-se uma
maior dimensão de uma dessas finalidades observando os motivos ensejadores de sua
instituição, ou mesmo as características que configuram a espécie tributária utilizada.
Sempre que se depara com a possibilidade de trabalhar a tributação como forma de
garantir maior robustez na capacidade monetária estatal para a consagração de fins
determinados – nesse caso, fins ambientais – esbarra-se no seguinte empecilho: nos termos do
art. 167, IV CF/88, resta inválida toda vinculação de receita advinda de impostos, salvo as
exceções constitucionais.
Diante disso, não seria possível argumentar que a arrecadação em si irá propiciar uma
maior efetivação daquele bem ou interesse jurídico-social específico, já que, uma vez
direcionado o produto da arrecadação aos cofres públicos, poderá o Executivo alocá-lo da
forma que bem entender, observadas as disposições pertinentes.
E, de fato, os impostos se mostram o meio menos eficiente de fiscalidade ambiental
quando em análise a certeza de destinação de suas verbas para fins ecológicos. Cientes disso,
afirmam Renata Ferreira e Celso Fiorillo que “os impostos têm maior resistência para atingir
as finalidades de proteção ambiental em razão da não vinculação da receita” (FERREIRA,
FIORILLO, 2005, p. 56).
Neste ponto, mister relembrar o já argumentado quanto à destinação de recursos para
efetivação dos direitos sociais.
Em primeiro lugar, já demonstrou-se a importância em se trabalhar a tributação em
consonância com o Direito Orçamentário, ou seja, com a alocação dos recursos decorrentes da
atividade fiscal. Não há como realizar um estudo genuinamente completo ignorando a ligação
sistêmica que o Direito carrega entre suas “sub-áreas”. Além do mais, se a preocupação
ambiental deve conformar o sistema tributário em razão de seu caráter de fundamentalidade,
por que deveria sê-lo diferente com a destinação dos recursos?
São os mesmos pressupostos constitucionais, são os mesmos objetivos e direitos
fundamentais direcionando, tanto a tributação, quanto o orçamento.
É de se considerar ainda um pressuposto lógico. Quanto mais verbas, quanto mais
recursos financeiros o Estado obtiver, maior possibilidade haverá de destinação dos mesmos
aos objetivos ora visados. Não se argumenta aqui um maniqueísmo fiscalista, ou mesmo uma
228
concepção de tributação a qualquer custo, embasada pelo frágil fundamento de que será
revestido ao “bem comum”.
O que se pretende destacar é que, desde que amparado pelas exigências legais e
constitucionais, a tributação é legítima, e seu não cumprimento pode dificultar a realização
dos direitos fundamentais como um todo, já que diminui a amplitude de ação do Estado por
retirar sua capacidade monetária de atuação positiva.
José Marques Domingues (OLIVEIRA, 1999, p. 25) apresenta exemplificação de
como a tributação de impostos, aliada ao direito orçamentário, pode dar concretude aos
direitos ambientais. Leciona o autor que nos EUA há o denominado “Superfund”. Esse
“super- fundo” consiste em vultoso fundo de verbas públicas decorrente de receitas
provenientes do imposto de renda, imposto sobre petróleo e derivados e imposto sobre
produtos químicos e derivados. A destinação desse fundo é exclusivamente voltada para o
combate à poluição.
Não fosse bastante o argumento, é de se considerar que se por um lado, há figuras
tributárias que não comportam vinculação de suas receitas, tais como os impostos, há, em
oposição, espécies de tributos que obrigatoriamente devem ter suas receitas atreladas àquela
causa ensejadora. É o caso das taxas e contribuições.
O pagamento de taxas pelos contribuintes é devido em razão da utilização real ou
potencial de serviços públicos, ou ainda, em decorrência do poder de polícia do Estado (art.
77 CTN). Tanto o valor a ser pago a título de taxas, quanto a destinação do respectivo valor
devem sempre observar o motivo que possibilitou a incidência das mesmas. Nesse sentido,
uma taxa de controle e fiscalização ambiental que tem como fato gerador o poder de polícia
atribuído ao IBAMA terá sua verba destinada à manutenção daquela atividade fiscalizatória.
E não há que se falar em escassez arrecadatória das taxas ambientais. Mencionado
anteriormente o valor arrecadado a título de taxa anual para atividades de mineração: R$
39.232.451,46147 apenas no exercício de 2005.
Nesses casos, pode-se sim afirmar que o pagamento do tributo da forma devida irá
possibilitar diretamente atividades do Estado ligadas à preservação do meio ambiente, sem o
risco de ver tais verbas orçamentárias destinadas a outros fins – tais como pagamento de
subsídios de servidores. Há a certeza da aplicação do fruto daquele tributo em sua causa
ensejadora, podendo as taxas serem caracterizadas como um instrumento tributário à
consecução de um fim mais concreto que os demais.
147 Seguindo cotação datada de 31/12/2005, o valor em questão representaria US$ 16.837.961,98
229
Noutro lado, há as contribuições sociais e contribuições de intervenção no domínio
econômico, espécies tributárias que se caracterizam por terem, desde sua criação, a
arrecadação destinada à finalidade pública certa e determinada. O montante financeiro
arrecadado a título de contribuições sociais e CIDE’s deverá ser aplicado diretamente em
atividades relacionadas com o setor tributado. Por isso mesmo Sacha Calmon categoriza essas
espécies tributárias como sendo impostos “afetados a finalidades específicas” (COELHO,
2004, p. 77). Leciona Godoi em trabalho que questiona os pressupostos das contribuições que
a leitura dogmática da Constituição não deixa margem a dúvidas: enquanto os impostos se destinam a financiar genericamente as despesas públicas, sem que o legislador possa vincular sua arrecadação a órgão, fundo ou despesa (vide art. 167, IV da CF), nas contribuições sociais e nas cides o legislador necessariamente determina a vinculação de sua arrecadação a uma específica finalidade(GODOI, 2007c p.81)
Assim sendo, uma eventual CIDE cobrada das empresas de transporte aéreo poderá
será aplicada em um fundo de incentivo à pesquisa a motores propulsores de aeronaves menos
poluentes. Não há que se falar em outra destinação a esses recursos a nível de teoria
constitucional. Seu objeto monetário arrecadado ser direcionado para a atividade especificada,
impondo assim, uma direta relação entre a arrecadação da tributação e a efetivação do direito
constitucional ambiental.
Não obstante, para Godoi (2007c p. 83 e ss.) estamos, na atualidade, presenciando um
desfacelamento dos caracteres tradicionais das contribuições.
Inicialmente, para o autor, se é dado à legislação pré-determinar o destino reservado à
arrecadação das contribuições, a prática jurisprudencial tem admitido que essa finalidade não
seja diretamente relacionada com o fato gerador (RE 396.266 DJ 27/02/2004). Essa é crítica
que não abala nossa exposição. Afinal, ainda que se dê tal liberdade ao legislador, desde que
este vincule a receita proveniente a finalidades ambientais, sua arrecadação continuará sendo
aplicada às finalidades previstas na lei.
Noutro ponto, Godoi questiona a aplicabilidade da “vinculação de receitas” em um
exame acurado da realidade. Atento aos diversos regimes de contingenciamento das receitas
provenientes das contribuições, argumentando a aceitação por parte do STF do
desvencilhamento da relação, supostamente direta, entre contribuições e destino de receitas
(ADI 2925 DJ 04/03/2005).
Pensamos o tema sob outro foco de análise, interpretando que, por mais que
efetivamente haja o contingenciamento de receitas decorrentes das contribuições, o Supremo
230
já proferiu entendimento no sentido de impossibilidade de utilização daquele numerário em
objetivos outros que não o determinado na legislação que enseja a contribuição. Com efeito,
se destinação diversa daquela prevista legalmente ocorre, não entende o STF que haja a
inconstitucionalidade da exação, pois o fato gerador restou consumado. Não obstante, trata-se
de uma distorção da atividade tributária cuja responsabilidade pode ser perquirida em outras
searas, podendo, mesmo culminar em condenação por má gestão de recursos (ÁVILA, 2006,
p. 268).
Ou seja, ainda que não haja o efetivo gasto do respectivo valor no ano subseqüente, o
mesmo restará “reservado” para essas finalidades, ainda que para um posterior atendimento
(RE 158208 DJ 24/08/2001)148.
Possível afirmar, assim, que em todos esses casos, as condutas dos contribuintes que
resultem no não pagamento de um tributo, originariamente legítimo, acaba por se apresentar
atividade obstadora da ação do Estado na concretização dos objetivos constitucionais
ambientais.
6.3 A terceira dimensão de direitos e a interpretação positivista-
descritiva dos textos
A esta altura, o leitor já deve estar convencido da insuficiência dos resquícios do
neopositivismo vienense em nossa prática tributária. A argumentação já firmada nos capítulos
antecedentes revelou, de forma cabal, o quão míope a tentativa de se engessar,
ontologicamente, conteúdos jurídicos em termos vocabulares escolhidos pelo legislador. Se
assim foi constatado quando da análise do sistema fiscal frente os direitos de primeira e
segunda geração (didaticamente separados face sua indivisibilidade – cf. cap. III), o mesmo
148 Nesse sentido, é elucidativo o voto do Ministro Maurício Correa quando da decisão do RE mencionado. Após constatar a constitucionalidade da exação, ainda que houvesse o contingenciamento, o Ministro argumenta que “não se trata de receita pertencente à União Federal apenas porque ficou depositada no Tesouro Nacional. Tanto assim é que ficou assegurado ao Instituto do Açúcar e do Álcool o exercício de todas as atribuições relacionadas com a intervenção da União no domínio econômico, na área da indústria canavieira do país, assim como o apoio ao setor, em todos os seus segmentos, na forma da legislação, restando claro na citada disposição que ‘o exercício, pelo instituto do Açúcar e do Álcool, das atribuições referidas far-se-á de acordo com a programação elaborada pela mesma autarquia e submetida, pelo Ministro da Indústria e do Comércio à aprovação no Conselho Monetário Nacional, e uma vez aprovada, a programação elaborada pelo IAA, ficam assegurados os recursos necessários a sua execução’. Portanto, embora a receita proveniente da arrecadação das contribuições seja recolhida ao Tesouro Nacional, essa está vinculada aos fins da autarquia.” (p. 1148-1149)
231
se dá face os direitos difusos-ambientais. Afinal, os próprios mecanismos de efetivação desses
direitos se identificam com aqueles estudados anteriormente.
No que tange à arrecadação fiscal decorrente de tributos, mais especificamente, de
contribuições destinadas a causas ecológicas, a elisão fiscal, cujos espeques se voltam às
premissas da tipicidade estrita tributária e em um silogismo formalístico já se mostrou
obstáculo suficiente para os contribuintes evitarem o pagamento de tributos devidos, e,
conseqüentemente, desfalcar as propostas da tributação ambiental.
Da mesma forma, em que pese a expressividade que a extrafiscalidade denota, tanto
preventivamente, quanto em relação com o princípio “poluidor-pagador”, impossível atuar na
condução das atuações particulares sem a dispensa dos métodos hermenêuticos a que se
prende nossa doutrina. É fato também já demonstrado quando em análise a extrafiscalidade
social!
Para que seja factível o êxito a partir desse pressuposto metodológico, necessário seria
uma realidade tributária-ambiental de lenta mutabilidade e altíssima precisão conceitual. Caso
contrário, cair-se-ia mais uma vez na ampla existência de “brechas legais” a partir das quais
os agentes poluidores conseguirão contornar o Estado. É a mesma situação esboçada em
referência à intervenção do Estado no domínio econômico.
Mas, será que o cenário ambiental apresenta uma configuração de tal precisão?
Obviamente que não. Esperamos já restar clara a idéia de impossibilidade de uma
representação absolutamente fidedigna da realidade por meio da linguagem escrita. Além do
mais, as tecnologias ambientais, os conhecimentos adquiridos acerca das atividades ligadas ao
meio ambiente modificam constantemente, tornando impossível a previsão textual de quais
atividades devem ser reputadas indesejadas pela sociedade.
É o que argumenta José Domingues Oliveira, único autor verificado que trabalha o
assunto ciente dessas dificuldades. Para ele, os tipos tributários referentes ao direito
ambiental, graças à indeterminação conceitual que permeia o tema, devem ser os mais
“abertos” possíveis, flexibilizando, assim, a legalidade estrita que geralmente acompanha a
doutrina pátria.
E o autor faz seus comentários, ciente da realidade que compõe a tributação ambiental.
A lei 10.165/00 cita o fato gerador da taxa de fiscalização: “o exercício regular do poder de
polícia conferido ao IBAMA para controle e fiscalização das atividades potencialmente
poluidoras e utilizadoras de recursos naturais”. É daí que se pergunta:
232
Em que consiste concretamente ‘sadia qualidade de vida’? ou atividade ‘potencialmente’ poluidora? O que se entende por ‘degradação’ e ‘significativa’ do meio ambiente? Somente o avanço da ciência responde a essas indagações. O que era coerente ou indispensável ontem é hoje degradador ou absolutamente dispensável. A velocidade com que os fatos ambientais ocorrem e a rapidez com que a evolução tecnológica permite detectar fontes poluidoras e alterações qualitativas e quantitativas na tecnologia de produção são incompatíveis com a rigidez de uma tipicidade ‘fechada’ (OLIVEIRA, 1999, p.106)
E a dinamicidade que compreende a tributação ambiental – não apenas essa, mas toda
a realidade com a qual se depara o Direito – é notada também no exterior. Segue abaixo
trecho do relatório da IFA (International Fiscal Association) que questiona justamente a
legalidade fetichista ainda hoje cultuada:
Outra questão é a difícil aplicação do princípio (nenhuma tributação sem representação) no caso dos tributos ambientais [...] para ser válida, a legislação instituidora do tributo deve conter todos os respectivos elementos essenciais, isto é, os contribuintes, a base de cálculo e a forma de cômputo do tributo. Considerando a finalidade específica do tributo ambiental, esse princípio, geralmente acatado é muito difícil de ser aplicado integralmente (IFA apud OLIVEIRA, 1999, p. 79)
E de fato assim deve seguir o questionamento acerca da tributação. Como
efetivamente definir exaustivamente no texto normativo quais as atividades poderão receber o
incentivo fiscal respectivo? Ou ainda, como delimitar quais atividade serão tributadas pela
taxa de fiscalização que abrange as “atividade potencialmente poluidoras” tal qual definido na
lei 10.165/00?
Se firmado o apego a esses pressupostos, haverá a inutilidade da tributação ambiental.
Conseguir-se-á tornar ineficaz um dos instrumentos que o Estado tem em favor da alteração
das condutas humanas ligadas à relação homem-ambiente.
A todo o momento estamos reconstruindo a substância, a materialidade dos sistemas
jurídicos, frutos de contextos, lutas, interpretações, modificações valorativas, argumentações,
experiências, doutrinas, jurisprudências, enfim, todo o complexo conjunto de fatores que
determinam a evolução conteudística dos direitos dos homens.
É como ressalta a lucidez de Sacha Calmon: “o Direito, portanto, é datado
historicamente e geograficamente situado”149 (COELHO, 2004, p. 03). E de fato o é. O direito
149 É importante frisar que a argumentação por um Direito situado histórica e geograficamente não implica uma contradição com a adoção do procedimentalismo habermasiano, de berço alemão, como marco teórico. Isso porque a assertiva supra utilizada caminha pela fundamentação da ausência de um Direito atemporal, prévio aos contextos históricos e evolutivos. Não significa, porém, que não se pode se encontrar uma universalização de teorias surgidas em terras outras que não a brasileira. Até mesmo porque, as próprias conotações de local/universal sofrem uma revisão que não pode ser ignorada: “os conceitos de local e universal não podem
233
que nos rege no momento da elaboração desses pensamentos, na escrita dessas palavras,
sofrerá reconstruções e modificações até o momento do leitor pairar os olhos sobre essas
páginas.
Durante a exposição desenvolvida neste trabalho, tentou-se destacar como nenhum dos
objetivos constitucionais-fundamentais surgidos ao longo da evolução constitucional a que
deve atenção o sistema tributário alcançam êxito através de uma metodologia interpretativa
calcada em uma descrição da realidade no texto normativo. Sejam direitos de primeira,
segunda ou terceira geração, a adoção de uma hermenêutica fechada em precisões conceituais
falha plenamente em consagrar seus objetivos cosntitucionais-tributários.
O esforço empreendido se viu justificado pela certeza de que, uma vez solidificada a
compreensão de que não se consegue atingir os objetivos que os direitos fundamentais pautam
ao sistema tributário, não se pode mais sustentar a utilização de métodos interpretativos
calcados nesses pressupostos.
Mas ainda não terminamos nossos argumentos.
Não apenas como inconveniente e infrutífero no que tange o atendimento dos
objetivos fundamentais da Constituição podemos reputar a interpretação descritiva das
normas tributárias. Também questionável hermeneuticamente! É o que veremos a seguir.
6.4 Direitos de outras dimensões?
Antes de adentrar no debate hermenêutico das bases filosóficas da interpretação
cerrada própria à tipicidade tributária, não se poderia deixar de realizar este pequeno adendo.
A evolução do Direito Tributário percorreu as três ondas geracionais de direitos
apontados pela grande maioria dos constitucionalistas. Entretanto, não se pode ignorar o
acréscimo de autores que afirmam a existência de dimensões outras de direitos que ainda não
foram trabalhadas nessa pesquisa. Se assim o for, deve-se também coadunar o sistema
tributário a esses direitos fundamentais.
Segundo Ingo Sarlet (2003 p.55), é mérito do constitucionalista Paulo Bonavides a
preconização na discussão jurídica pátria dos direitos de quarta geração. Para este, “são
mais serem tratados como questões distintas, o que de certo seria algo afeto ao paradigma da consciência. Desse modo, o “universalismo” da teoria da Constituição dos “habermasianos” – em especial Marcelo Cattoni – absolutamente não considera as peculiaridades culturais e históricas do Brasil” (CRUZ, 2007, p.21)
234
direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao
pluralismo” (BONAVIDES, 2003, p. 571).
O próprio Sarlet se apresenta favorável à concepção de reconhecimento dos direitos
decorrentes da globalização como uma nova dimensão, ressalvando, porém, aguardar uma
consagração em âmbito internacional e no ordenamento interno para sua completa admissão.
Na mesma trilha, Walber Agra (2007, p. 122), identificador de direitos de quarta e quinta
dimensões.
É mais completa a obra de Sampaio (2004 p. 298-302) que, demonstrando as várias
colocações de autores nacionais e estrangeiros, acaba por comprovar a falta de consenso e
unidade no que consistem eventuais direitos de quarta geração. Direito a uma vida saudável
com a natureza; desenvolvimento sustentável; alargamento das fronteiras democráticas;
comunicação relacionada à mídia de massa; direitos virtuais; direito das mulheres; direitos
sexuais; reprodutivos, enfim, o leque de possibilidades ofertadas pelos autores chega a
arrefecer e dissipar alguma força argumentativa que a existência de uma quarta geração de
direitos poderia oferecer.
Em nossa concepção, não há espaço para um reconhecimento de uma nova gama de
direitos fundamentais. Caso se parta de uma perspectiva dialética de constante reconstrução
do conteúdo material desses direitos, facilmente conclui-se que todos os direitos apresentados
se encaixam em alguma das classificações lançadas por Vasak e aqui trabalhada.
Nesse sentido, como argumentar serem os direitos das mulheres de quarta geração?
Não estariam as mesmas abarcadas na terminologia “direitos dos homens”? Não seria essa
proposta uma aporia teórica calcada em uma interpretação por demais restritiva dos diretos já
conquistados? Ou mesmo o direito à mídia de massa. Não seria o mesmo uma simples
contextualização do direito à informação e à liberdade de expressão constantes no rol de
direitos individuais desde o século XVIII?
Se a nós não apresenta consistência a tentativa de reconhecimento de uma quarta
geração de direitos, quanto o mais o será uma quinta, cujo conteúdo se apresenta ainda mais
fluido.
Ainda segundo Sampaio, para Tehrariane consistiriam tais direitos naqueles relativos
ao “cuidado, compaixão e amor por todas formas de vida, reconhecendo-se que a segurança
humana não pode ser plenamente realizada se não começarmos a ver o indivíduo como parte
do cosmos e carente de sentimentos de amor e cuidado” (SAMPAIO, 2004p. 302) !!! Peculiar
o entendimento do autor. Não obstante, difícil concebermos a argumentação antedita
235
suficiente para a identificação de certos direitos como exemplares do pensamento de
Tehrariane.
Já no entender de Marzouki, configuram os direitos em comento aqueles
oriundos de respostas à dominação biofísica que impõe uma visão única do predicado “animal” do homem, conduzindo os “clássicos” direitos econômicos, culturais e sociais a todas as formas físicas e plásticas, de modo a impedir a tirania do estereótipo de beleza e medidas que acaba por conduzir a formas de preconceitos com raças ou padrões reputados inferiores ou fisicamente imperfeitos.(SAMPAIO, 2004, p.302)
Conforme se apreende do exposto, não há qualquer consistência na secção e
classificação de um conjunto próprio de direitos compondo uma “geração”/“dimensão”
apartada.
Mister reforçar o alerta de que não se pretende desconsiderar quaisquer direitos
identificados como posteriores à terceira dimensão. Entretanto, não é possível visualizar
características que imponham uma classificação própria. Assim como mencionado com os
“direitos das mulheres”, no nosso entender já presentes em uma interpretação contextualizada
dos “direitos do homem”, também a proteção face qualquer discriminação a que pretende se
referir Marzouki já se encontra resguardada nos consolidados direitos da igualdade e
dignidade da pessoa humana.
Com efeito, a evolução e constante agregação de novos direitos à esfera do indivíduo e
da coletividade se apresentam recorrentes. No entanto, é perfeitamente possível trabalhar com
todos aqueles já reconhecidos fazendo uso da tradicional classificação de Vasak.
Consequentemente, a (re)construção do conteúdo constitucional do Direito Tributário tem sua
análise satisfeita com seu relacionamento com as três dimensões de direito esboçadas.
236
CAPÍTULO VII – A INTERPRETAÇÃO TRIBUTÁRIA FRENTE A
HERMENÊUTICA COM TEMPORÂNEA: A DESCONSTRUÇÃO E A
IMPOSSIBILIDADE DOS PRESSUPOSTOS INTERPRETATIVOS POSITIVISTAS.
Os paradigmas liberal e social produziram formas de interpretação condizentes com o
mundo da vida da época. Contudo, seus pressupostos de cunho positivistas mostraram-se
ineficazes para a efetivação dos direitos fundamentais. Ainda que na convicção de que a
incapacidade de concretização dos direitos fundamentais seja motivo suficiente para a
improcedência dos métodos interpretativos de bases positivas, tentar-se-á desfalcar todas as
possibilidades de sustentação desta forma interpretativa (ou não-interpretativa) que ainda
habita o sistema tributário.
Com isso, ficará clara a idéia de que não se está a argumentar que a utilização das
idéias descritivas e o anseio da segurança jurídica material sejam pouco interessantes. Essas
são buscas, em realidade, impossíveis de serem concretizadas! Nessa toada, posicionamentos
em favor desta anacrônica visão pelo receio de descumprimento do legalismo tributário, muito
embora denotem uma obediência e boa fé dos intérpretes, são tarefas tão ilusórias quanto o
esforço de Peter Pan em aprisionar a própria sombra!
Assim, mister voltar os olhos para os pressupostos filosóficos em que se pautam os
teóricos favoráveis à prática subsuntiva no Direito Tributário. Deve-se, para concluir o
presente trabalho, analisar se suas bases hermenêuticas encontram respaldo na filosofia
contemporânea. Com vistas a essa tarefa, proceder-se-á tal qual no capítulo segundo. Serão
lançadas as bases dos pensamentos desenvolvidos de forma a deixar claro nosso
posicionamento. Entretanto, a poupar o corpo textual, remete-se o leitor a um aprofundamento
paralelo aqui evitado.
A construção do pensamento positivista ao longo do processo evolutivo que o Direito
trilhou se deu de forma concatenada com seu entorno epistemológico, havendo, assim, uma
coerência se seus pressupostos com os das demais ciências que, à época, modificavam a
forma de produção do conhecimento. A negação à submissão de uma autoridade eclesiástica
adiantada por Galileu, bem como o princípio da causalidade trabalhado por Newton junto às
ciências exatas foram reproduzidos, à sua própria maneira, na seara jurídica. Assim, o
racionalismo de Descartes conseguiu transferir, também ao Direito, a “purificação” de
influências religiosas, bem como o infalibilismo e neutralidade do método. E neste contexto, o
237
princípio da causalidade newtoniano adquiriu, no seio jurídico, a feição de “princípio da
imputação” já verificado em Kelsen.
Ora, se a construção da hermenêutica moderna se apresentou envolvida e
impulsionada por reviravoltas também em outras áreas científicas, de outra forma não poderia
ocorrer com seu questionamento e desconstrução.
A evolução das ciências durante o século XX foi marcada, justamente, pela
verificação da falácia dos pressupostos de certeza e previsibilidade. A teoria da evolução
darwiniana rejeitou uma suposta linearidade progressiva para abraçar a visão de que a
evolução das espécies naturais também é permeada por diversas possibilidades, algumas bem
sucedidas, outras nem tanto, mas definitivamente, caracterizada por progressos e retrocessos,
como se a própria natureza soubesse das variações que ela mesma pode acarretar.
Na mesma trilha, a absolutização e fixação de conceitos na modernidade (p.e. tempo e
espaço) sofre outro duro golpe quando Einstein coloca à prova dogmas científicos, realizando
tarefa próxima ao questionamento galileano às verdades papais de outrora. Einstein percebe
que
...para se fixar a simultaneidade de acontecimentos distantes no espaço seria necessário conhecer-se a velocidade. Para se conhecer a velocidade era preciso conhecer-se a simultaneidade dos eventos; logo, a simultaneidade de eventos especialmente distantes só poderia ser definida arbitrariamente. Com isso, a velocidade permitiu relativizar o espaço (dobra espacial) e o tempo. Diante disso, as leis da física contemporânea abandonaram a condição de serem universais. Ao contrário, elas passaram a assentar-se em mediações localizadas no tempo e no espaço. Einstein demonstrou que tais conceitos eram relativos, vez que eram dependentes da velocidade, posto que a velocidade da luz poderia fazer com que os conceitos arbitrários de unidade de tempo se relativizassem. O espaço também poderia ter padrões de medida alterados em função da velocidade, abrindo o conceito para o estudo atual da dobra espacial (CRUZ, 2004, p. 139)
Se nem mesmo tempo e espaço são medidas absolutamente “confiáveis”, também a
neutralidade cartesiana é descartada com o “princípio da incerteza” desenvolvido por
Heisenberg e Böhr. Referida idéia, ilustrada de forma didática no documentário “Quem somos
nós?” (2005) desenvolveu-se quando, em uma experiência para se determinar a espaço e local
de um feixe de elétrons, os cientistas verificaram que, quando não havia qualquer instrumento
de observação da trajetória dos mesmos, eles se comportavam de uma determinada maneira.
Entretanto, quando pretendiam fixar seu deslocamento, o próprio feixe de luz necessário para
“enxergar” os elétrons influenciava em sua trajetória. Isso significa que, mesmo na física, cuja
exatidão pretendia-se tributária à postura observacional de seus estudiosos, não se pode
238
separar eventos de cientistas, o que faz ir para o espaço os resultados apriorísticos aos objetos
investigados!
Não por outra razão, Barbosa (2006) inova ao trabalhar o Direito Internacional em
consonância com a Teoria do Caos. Afinal, a precisão das leis científicas da modernidade
cede lugar à noção de entropia, consubstanciada na idéia de desordem e imprevisibilidade do
sistema em razão do comportamento de seus próprios elementos, e também pela inserção de
outros, a ele alheios. Assim da “certeza”, passa-se à “probabilidade”!
A própria racionalidade individual e autônoma que seria capaz de propiciar todo o
aparato solipsista para a compreensão do mundo sofreu revisões de seus conceitos. Freud, em
seu estudo acerca do processo cognitivo, vai além da consciência até então tida por auto-
suficiente, e possibilita a abertura também para os instintos e inconsciência (CRUZ, 2004, p.
141-143).
Enfim, não se quer aqui realizar uma verticalização da pesquisa em áreas da física,
química ou mesmo psicanálise. De todo modo, importa destacar o fato de que toda a
estruturação dos postulados cartesianos na formação de uma ciência neutra, previsível e
matematizada é revisitada nas mais diversas searas do conhecimento! E de forma diversa não
poderia se dar em relação à produção e evolução hermenêutica. Assim como o nascimento,
também a revisão da racionalidade moderna – que antes culminara no positivismo jurídico –
se deu em consonância e ambientada em todo esse paradigma científico em formação,
impulsionada também pelas reviravoltas hermenêutica e social150, vivenciadas no mesmo
período. E em seu viés hermenêutico é que agora se irá adentrar.
7.1 A reviravolta lingüístico-pragmática de Wittgenstein.
No início desta obra, foi apresentada a construção de um pensamento calcado
fortemente nas bases epistemológicas da Grécia Antiga, cujas premissas encontravam raízes
em pressupostos tanto platônicos quanto aristotélicos. A concepção de um fetiche legalista,
com espeques na crença de um exaurimento das possibilidades factuais da realidade, acaba
por perpassar uma idéia de descrição dos eventos empíricos em uma perfeição semântica-
gramatical.
150 Sobre o tema, verificar a obra de CRUZ, 2004, p. 135 e ss..
239
Nesses termos, o culto ao texto legal deságua na admissão de uma possibilidade
descritiva de situações ideais próximas ao mundo das Idéias de Platão – p.e. “deve obrigação
tributária todos aqueles proprietários de bem imóvel urbano”. Lado outro, as diversas
situações ocorridas no “mundo fenomênico” seriam, assim, um reflexo imperfeito dessa
realidade idealizada – João ser, no “mundo real”, proprietário de um imóvel situado na rua
“X”, de valor “Y”.
Em composição à idéia exposta, para se apostar em uma possibilidade de descrição da
realidade, é necessário admitir que as palavras estão, inexoravelmente, associadas a um
conteúdo representativo específico. Noutros termos, é como se cada palavra já carregasse
consigo uma essência antes mesmo de ser utilizada pelo sujeito. Significa que, quando da
menção a “bem imóvel”, o significado dessa expressão já estava delimitado antes mesmo de o
legislador expressá-la em sua hipótese normativa. Afinal, cada signo já conteria referência
própria a um objeto da realidade, uma isomorfia entre signo e significado. Essa é a feição
ontológica e essencialista derivada de Aristóteles151 e seu antecessor.
Essa mesma forma de pensar, influenciada pela busca de uma certeza cartesiana,
relegou à linguagem o papel de designação da realidade empírica – mais uma vez, Platão. Esta
era a forma de trabalho do Círculo de Viena, que elevou ao máximo a saga por uma
matematização lingüística já relacionada com a noção de tipicidade e segurança jurídica
tratados na doutrina brasileira.
Dentre aqueles pensadores, foi apresentado Wittgenstein, que em um primeiro
momento, se filiou à linguagem matematizada argumentada por Frege, Carnap e outros
autores. Entretanto, a evolução do pensamento de Wittgenstein se mostrou tão irreverente
quanto sua própria vida152. Nesse sentido, muito embora o autor tenha aproximado da corrente
positivista vienense, ele foi, também, seu principal algoz.
Ainda que a crítica de Wittgenstein tenha sido paulatinamente construída ao longo do
tempo153, ganhou corpo e ares concludentes com a publicação póstuma da obra “Investigações
151 Oliveira, em sua obra, foi capaz de sintetizar, em poucas palavras, a junção dessas influências platônicas e aristotélicas que perseguem nossos autores tributaristas: “já que a linguagem não passa de um reflexo, de uma cópia do mundo, o decisivo é a estrutura ontológica do mundo que a linguagem deve anunciar. A essência da linguagem depende,assim, em última análise, da estrutura ontológica do real. Existe um mundo que nos é dado independentemente da linguagem, mas que a linguagem tem a função de exprimir” (OLIVEIRA, 1996, p. 121) 152 A obra de Christiane Chauviré (1989), muito embora se preocupe em apresentar na bases filosóficas e a evolução do pensamento de Wittgenstein, é também fonte de informação biográfica do autor, demonstrando os conflitos e reviravoltas que marcaram sua história acadêmica e pessoal. 153 É interessante anotar que, apesar dos autores mencionarem quase exclusivamente as duas principais obras de Wittgenstein – “Tratactus” e “Investigações filosóficas” – como se as mudança de posição por parte do autor tenha se dado de forma brusca, Hintikka apresenta diversas passagens que denotam que os questionamentos acerca da viabilidade da infalibilidade semântica da linguagem adotada outrora ocorreram de forma progressiva
240
filosóficas”, momento em que deferiu seus principais golpes às bases de sustentação da teoria
defendida pelo Círculo de Viena, e atingiu toda a construção epistemológica da filosofia da
consciência.
Primeiramente, Wittgenstein anotou o quão falacioso era o entendimento de uma
linguagem com função unicamente denotativa de um conteúdo previamente determinado.
Após reparar nas diversas formas com que os homens fazem uso da linguagem, o autor passou
a contestar a idéia reducionista de que essa serviria unicamente como instrumento de
transmissão de conteúdos acabados.
Convicto dessa nova posição, ele apontou uma séria de outras funções ignoradas ou
negligenciadas pela filosofia anterior:
Há um número incontável de espécies: incontáveis espécies de aplicação àquilo que chamamos ‘símbolos’, ‘palavras’, ‘proposições’. E esta multiplicidade não é nada de fixo, dado de uma vez por todas; mas antes novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem [...] imagina a multiplicidade dos jogos de linguagem nestes exemplos e em outros: Dar ordens e agir de acordo com elas – descrever um objeto a partir do seu aspecto ou das duas medidas – construir um objeto a partir de sua descrição (desenho) – relatar um acontecimento – fazer conjecturas sobre o acontecimento – formar e examinar uma hipótese... (WITTGENSTEIN, 2002, p. 189-190).
Mas se estamos expostos às variadas formas de utilização lingüística, nossa destreza
em nos comunicarmos sem o risco de confusão das suas diversas funções se mostra a chave
para a compreensão de toda a filosofia da linguagem.
Wittgenstein notou que, graças aos conhecimentos advindos da própria experiência,
somos capazes de identificar qual o papel que a linguagem está desempenhando em cada
contexto pragmático distinto (DELACAMPAGNE, 1997, p. 64). Esse foco à relação
conteúdo/pragmática é justamente o que marcou sua linha de pensamento. Assim, detemos a
habilidade de perceber que, em um determinado conjunto de elemento que compõem uma
realidade contextual própria, a linguagem é posta de maneira especificamente diversa.
Com isso, Wittgenstein caminhava para a afirmativa de que a linguagem não se mostra
como um mero instrumento de representação do “mundo em si” captado pela racionalidade
humana tal qual imaginado. Ao bem da verdade, a linguagem serve, a partir do autor, como no tempo. “A crise filosófica de Wittgenstein em outubro de 1929 foi, na verdade, a culminação de um longo processo que então chegou ao seu término... um estágio anterior da indagação de Wittgenstein é ilustrado por Philosophical remarks, III, seção 32. Ali, Wittgenstein levanta novamente a questão fundamental: ‘qual é a ligação entre os signos e o mundo?’ ele não fornece nenhuma resposta precisa e simplesmente diz: ‘talvez devamos dizer ‘o uso dos signos’ [...] significativamente, apenas o uso da linguagem é mencionado aqui, e não jogos de linguagem [...] a mudança radical ocorre em The brown book. Um dos germes das idéias posteriores de Wittgenstein acerca dos jogos de linguagem é sua observação de que eles desempenham um papel fundamental no aprendizado da linguagem” (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994, p. 217; 255-256).
241
uma forma de acesso à própria realidade, meio pelo qual se constrói o conhecimento e o
mundo ao qual temos contato. É uma reviravolta na relação mundo/linguagem.
Wittgenstein desce às pressuposições epistemológicas desta posição: que o conhecimento humano é algo não lingüístico, uma tese que, à primeira vista, parece ser, de modo geral, comum à tradição, até mesmo à filosofia da consciência da modernidade. É exatamente essa pressuposição da teoria lingüística do Tratactus que agora é posta em questão: não existe um mundo em si independente da linguagem, que deveria ser copiado por ela. Só temos o mundo na linguagem; nunca temos o mundo em si, imediatamente, sempre por meio da linguagem [...] a linguagem não é um puro instrumento de comunicação de um conhecimento do realizado, é, antes, condição de possibilidade para a própria constituição do conhecimento enquanto tal. (OLIVEIRA, 1996, p. 127-128) (grifos nossos).
Expliquemos melhor como se dão essas alterações.
Segundo o neopositivismo vienense, cabia ao filósofo buscar uma linguagem artificial
que lograsse a extinção de ambigüidades e incertezas decorrentes da utilização dos signos
ordinários (facilitação à segurança jurídica da tipicidade fiscal).
Entretanto, ao partir para o estudo observacional do papel da linguagem, Wittgenstein
percebeu o quão absurda a proposta antedita. O autor notou que não há como proceder a uma
estruturação relacional ontológica, exata e atemporal entre signo e significado tal qual
propunha o neopositivismo.
Analisando a utilização pragmática da linguagem – e essa é a verdadeira reviravolta de
postura quanto a relação linguagem-filosofia - ele percebeu que os conteúdos dos termos
lingüísticos não se encontram previamente engessados aos seus signos correspondentes. Se
impossível a estabilidade perene da relação conceitual, também cai por terra o objetivo de
utilização instrumental da linguagem como forma de transmissão exata do conhecimento a ser
comunicado.
... as comparações linguagem-mundo devem ocorrer no tempo. Isso torna a condição dos objetos do Tratactus extremamente ambígua. Pois, se esses objetos são atemporais, os complexos desses objetos são presumivelmente também atemporais, mas se assim for, será impossível comparar esses fatos atemporais com as proposições da nossa linguagem, que pertencem ao mundo físico (HINTIKKA, HINTIKKA, 1994, p.226)
Atento à importância das relações contextuais, o autor argumentou que apenas durante
a utilização pragmática de um termo lingüístico esse adquire seu verdadeiro conteúdo
provisório. De forma simplificada, apenas “falando” colabora-se com a edificação de
significado dos termos falados. Eis a razão de Wittgenstein firmar que “o sentido de uma
palavra é o seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 2002, p. 207).
242
Exemplo claro é a construção de conteúdo das diversas gírias utilizadas pelos jovens e
adultos na modernidade. Expressões tais como “chapa”, ou “bombar” não mais têm como
conteúdo empírico uma referência a uma “extensão plana de metal utilizada pelas indústrias
ou siderurgias”, ou mesmo relação com artefatos explosivos utilizados em conflitos armados.
Em um diálogo atual, é possível também identificar, no uso desses vocábulos, a intenção do
sujeito de fala se referir a uma pessoa querida, ou mesmo a uma festa ou evento que reunirá
muitas pessoas. São conteúdos que, muito embora não tenham sido “originariamente”
estabelecidos aos termos respectivos, hoje são aceitos e compreendidos com naturalidade.
Toda essa construção de novos significados se deu não em virtude de uma
determinação prévia do espelhamento termo/realidade, mas sim em decorrência da própria
utilização (e aceitação) por parte dos interlocutores!
Caso se queira um exemplo jurídico, pode-se imaginar o signo “livro” expressado em
nosso texto constitucional para fins de imunidade tributária (art. 150, VI, “d” da CF/88). Não
é insensata a afirmativa de que, quando da redação do texto da Constituição, havia um
conteúdo correspondente à palavra “livro” decorrente de sua própria utilização pragmática
que compunha a realidade lingüística do momento. Tratava-se, p.e., de uma compilação de
folhas destinadas à transmissão de informações diversas.
Suponha, porém, que com a evolução tecnológica, as pessoas passaram a perceber que
a função antes atribuída aos “livros” – transmissão de conhecimento didático ou cultural –
também poderia ser atingida através de um aparato eletrônico que contivesse todo o conteúdo
presente em um “livro” tradicionalmente impresso e consubstanciado na compilação de
páginas tal qual aludido. Ora, diante da “semelhança”, ou “familiaridade” que os objetos
denotavam quanto a sua função educativa, também esse novo aparato eletrônico – p.e., o CD-
ROM – passou a ser apontado com a mesma expressão lingüística: “livro”.
Mais uma vez, a utilização pragmática da palavra foi responsável pela alteração de seu
conteúdo conceitual, podendo significar, ainda, uma eventual modificação no conteúdo
jurídico – imunidade tributária – do dispositivo que o utiliza.
As palavras ao serem usadas cercam-se por uma atmosfera, adquirindo uma fisionomia própria que as circunscreve. Tudo se passa como se as palavras fossem como o nome Schubert, impossível de ser separado da música do compositor. Por isso a melhor maneira de perceber uma expressão com uma significação determinada é imaginá-la como se estivesse sendo apresentada num palco, como se fosse uma citação. Somente assim se captura essa atmosfera em que ela se move o espaço representativo que, se não determina precisamente o conceito, faz parte de seu movimento. É dentro dele que [...] damos vida às determinações conceituais sem que, contudo, elas se confundam com esses seus meios de apresentação (GIANNOTTI, 1995, p. 167-168)
243
Daí o termo “reviravolta linguístico-pragmática”. É abandonada a convicção de uma
linguagem instrumental de conteúdos pré-determinados ao uso. Seus conteúdos conceituais
são agora adquiridos apenas por meio da própria utilização pragmática, de seu uso prático nas
diversas situações de fala.
Com isso, é atirada ao espaço a segurança jurídica positivista decorrente da
possibilidade de engessamento dos conteúdos normativos previstos no texto legal. Afinal, os
mesmos termos utilizados pelo legislador poderão vir a adquirir novos significados em
decorrência, justamente, das diversas utilizações lingüísticas tributárias à dinamicidade do
mundo humano.
Se os elementos contextuais são históricos, mutáveis no tempo, também a utilização
da linguagem o será – mais uma vez, as gírias. Dessa forma, como conceber a determinação
atemporal de um conteúdo a um termo lingüístico154? Este é o lado metafísico do
neopostivismo que Wittgenstein denunciou155!
É por isso mesmo que Misabel Derzi, ao tentar determinar qual o conteúdo tributário
advindo da previsão de imunidade às instituições sociais, se questiona: “mas o que é uma
instituição? E uma instituição de assistência social? (In: BALEEIRO, 1998, p.320).
Da mesma forma, a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça acerca da
legitimidade do recolhimento de contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas
prestadoras de serviço. Muito embora a expressão “empresa” fosse antes facilmente entendida
como “empresa comercial”, o STJ percebeu que a práxis jurídico-tributária possibilitava a
154 Giannotti anota passagem interessante em que Wittgenstein nos exemplifica com uma ilustração que bem representa as várias possibilidades de assunção de conteúdo: “quando Wittgenstein compara o conteúdo proposicional a uma fotografia de um boxeador, numa determinada posição de luta, pretende frisar que seu sentido varia conforme se alteram as maneiras de uso da figura. Quando ela mostra como um aprendiz deve comportar-se numa determinada situação, funciona como norma. E conforme esse uso, certas partes e certos aspectos da figura se tornam mais relevantes em relação aos outros: tal posição de pernas indica maior capacidade de movimentação, tal posição de punho, melhor guarda, e assim por diante. Ao retratar, porém, um fato memorável, tudo se concentra na imagem como um todo, na sua capacidade de evocar o evento. Isto obviamente não acontece quando a fotografia é colocada nas paredes do quarto de uma jovem fã. O uso altera a pregnância das partes, ou melhor, determina o modo de sua análise, de sorte que é nele que a articulação se repõe e se mostra.” (GIANNOTTI, 1995, p.77) 155 Antes mesmo da elaboração da obra “Investigações”, Wittgenstein já percebia a relação signo/realidade tal qual afirmamos. Em “The Brown Book”, meditava o autor: “Tendemos a nos esquecer de que apenas o uso específico de uma palavra lhe dá seu significado. Consideremos o nosso velho exemplo do uso de palavras. Alguém é enviado ao comerciante com um pedaço de papel onde estão escritas as palavras ‘cinco maçãs’. O uso das palavras na prática [itálicos de Wittgenstein] é o seu significado. Imagine-se que fosse comum que os objetos a nossa volta carregassem rótulos com palavras mediante as quais nossa fala se referisse aos objetos. Algumas dessas palavras seriam nomes próprios dos objetos, outras, nomes genéricos (como mesa, cadeira, etc.), outros ainda, nomes de cores, nomes de formas, etc. isso significa que uma etiqueta teria um significado para nós apenas na medida que fizéssemos dela um uso particular [grifos nossos], agora é fácil imaginar que seríamos afetados à mera vista de uma etiqueta em alguma coisa e que esqueceríamos que aquilo que a torna importante é seu uso.” (WITTGENSTEIN apud HINTIKKA; HINTIKKA, 1994 p. 258).
244
compreensão de que ali estavam abrangidas as empresas que fazem comércio, seja de bens,
seja de serviços, daí a possibilidade de sua exação tributária (REsp. 895.878156, DJ
08/08/2007). Também neste exemplo, impossível estabelecer, de forma milimétrica e
antecipada, quais as abrangências de conteúdo a que o texto constitucional se refere!
Caso se venha argumentar por uma segurança jurídica consubstanciada na exigência
de elaboração normativa para a criação de um tributo, há fortes razões para que consideremos,
com seriedade, a proteção desta garantia tributária. Entretanto, a previsibilidade que
direciona(va) o princípio da tipicidade tributária se dá em busca por uma certeza material do
conteúdo obrigacional.
Sendo assim considerado, não se trata nem mesmo de uma escolha hermenêutica
que estamos sugerindo, mas sim de uma impossibilidade derivada de nossa estrutura
lingüística e humana. Afinal, por mais que o legislador se paute pelo projeto de delimitação
material das relações fiscais, conscientemente ou não, sua tarefa deixará margem para
interpretações distintas daquela pensada originariamente.
Mas, a ausência de uma estabilidade absoluta não significa, por outro lado, a utilização
absolutamente desordenada e arbitrária dos signos presentes no ato de fala.
Neste tocante, Wittgenstein identifica que os diversos contextos em que inseridos os
termos lingüísticos acabam por corresponder a jogos de linguagem distintos, com regras
próprias que devem ser seguidas por seus participantes. Nesses jogos de linguagem a
aceitação das regras por parte dos interlocutores também irá refletir sua própria importância
no jogo lingüístico – pode-se mesmo afirmar que a pragmática wittgensteiniana chega,
também, à construção das regras do jogo de linguagem (DELACAMPAGNE, 1997, p. 61 e
ss.).
O fato de as regras serem reconhecidas não significa, porém, que sua aplicação decorra de modo mecânico, uma vez comum [...] o jogo não é uma fatalidade natural, nem mesmo uma imposição de forças supra-individuais, coletivas, sociais anônimas, pois a comunidade em questão só surge no próprio ato de jogar por meio do reconhecimento de regras e aceitação de papéis que dirigem a ação global. (OLIVEIRA, 1996, p. 144)
156 CONTRIBUIÇÕES SESC/SENAC. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO. A Primeira Seção reiterou o seu entendimento e considerou legítimo o recolhimento das contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas prestadoras de serviço. A Min. Relatora afirmou que modernamente o conceito de empresa comercial é amplo, devendo, pois, abarcar todas as empresas que fazem comércio, seja de bens, seja de serviços. Assim, a Seção negou provimento ao recurso. Precedentes citados: RESp 431.347-SC, DJ 25/11/2002; REsp 719.146-RS, DJ 2/5/2005; REsp 705.924-RJ, DJ 21/3/2005, e REsp 446.502-RS, DJ 11/4/2005. REsp 895.878-SP, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 8/8/2007.
245
O que se quer aqui destacar é que, diante das variadas possibilidades de utilização da
linguagem, em cada contexto, em cada realidade distinta, os interlocutores aceitam e
possibilitam o uso da linguagem de uma dada maneira. Assim, em cada entorno contextual
haverá um jogo de linguagem com regras próprias que irá conduzir a comunicação, sem,
porém, serem regras deterministas que culminem no mecanicismo de outrora157.
Mas, da mesma forma que apenas se consegue aprender as regras de um jogo de
xadrez movimentando as peças em uma tentativa de “lançar jogadas”, o mesmo ocorre com as
regras do jogo lingüístico. Nessa esteira, somente se logra acesso e sucesso em transitar
dentro do ambiente lingüístico, quando utilizada a pragmática para o aprendizado de tais
regras.
Sendo possível utilizar as palavras de diversas formas, e assim dar-lhes conteúdo,
deve-se fazê-lo dentro das regras do respectivo jogo de linguagem em que o diálogo está
inserido. Em uma simplificação didática, pode-se referir à coerência da utilização da
linguagem em relação ao ambiente e participantes da fala158.
O conceito de jogo da linguagem pretende acentuar que, nos diferentes contextos, seguem-se diferentes regras, podendo-se, a partir daí, determinar o sentido das expressões lingüísticas. Ora, se assim é, então a Semântica só atinge sua finalidade chegando à Pragmática, pois seu problema central, o sentido das palavras e frases, só pode ser resolvido pela explicitação dos contextos pragmáticos. Uma consideração lingüística que não atinge o contexto pragmático é, nesse sentido, essencialmente abstrata... (OLIVEIRA, 1996, p. 139)
Nessa trilha, é importante notar que, ainda que os termos lingüísticos tenham,
invariavelmente, algum âmbito de indeterminação, o que fulmina as pretensões
neopositivistas, não se pode afirmar a ausência de limites na atuação do sujeito. Dessa forma,
utilizam-se os signos, e dão-lhe significado, sempre em observância a uma relação de
157 A importante diferenciação entre as regras compreendidas pela técnica cartesiana e as regras do jogo de linguagem de Wittgenstein é apontada também por Chauviré: “a crítica do Bedeutungskörper pretendia dissipar a ilusão de um ‘corpo de regras’ (Regelskörper) que supostamente determinaria de maneira mágica a significação das expressões. Ora, a seu ver a regra não era uma ‘fórmula mágica que nos mantém sob seu encanto’, a ponto de nos fazer aplicá-la mecanicamente em cada caso, passivamente subsumidos à sua força. Considerava necessário repelir imperativamente essa idéia de injunção, que não corresponderia a nada de real. A ‘solução’ wittgeensteiniana consistiu em constatar que a regra (ou a significação) de um lado, e o uso (ou os casos de aplicação), de outro, estão em conexão interna (sendo impossível pensar em um sem o outro...” (CHAUVIRÉ, 1989, p.95-96). 158 Com sua estruturação teórica do pragmatismo lingüístico culminando nos jogos de linguagem, Wittgenstein consegue fechar o cerco à relação até então estática entre signo e significado: “partindo do jogo de linguagem, não se pode mais defender a identificação da significação com a coisa: ela consiste na função de reconhecimento dos objetos correspondentes a partir da percepção de seu nome no curso de uma atividade determinada. Dito de outro modo, o uso é uma dimensão irredutível: o importante não é mais se perguntar sobre a significação, mas sobre o uso”. (AUROUX,1998, p.273)
246
familiaridade159, de “semelhanças e parentescos” (OLIVEIRA, 1996, p. 131). A utilização
arbitrária dos termos lingüísticos é tentativa inválida de desconsiderar as regras do jogo de
linguagem.
Nessa trilha, é perspicaz a crítica que Godoi e Rolim (2006, p. 59 e ss.) deferem ao
desrespeito ao “núcleo significativo mínimo” por parte dos legisladores tributários. Sem
desconhecer a construção dos conteúdos lingüísticos derivados de sua pragmática conceitual,
os autores apontam tentativas esdrúxulas de se utilizar expressões em desrespeito às regras do
jogo de linguagem em que estão inseridas.
Nesse sentido, o art. 38 da lei 4506/64, que tecia a obrigatoriedade de pagamento de
imposto de renda em situações fáticas que não demonstravam quaisquer formas de acréscimo
patrimonial. Ainda que não concordemos com a delimitação essencialista e ontológica dos
termos normativos tributários, também não se pode argumentar, na atualidade, que a práxis
jurídica possibilite que o termo “renda” tenha por conteúdo algo distinto de aquisição, a que
título for, de algum ganho patrimonial. Com acerto, também este foi o entendimento do
Supremo Tribunal Federal (RE 117.787 DJ 23/04/1993).
Da mesma forma, não se pode pretender examinar e atuar com todos os signos e sinais
como se detentores da mesma dimensão de indeterminabilidade. Cada expressão lingüística,
em observância aos contextos e regras do jogo lingüístico, permite uma maior “flexibilidade
de uso”, incorrendo, assim, em uma maior ou menor possibilidade de construção de
significado: “Sem elasticidade, os conceitos não se aplicam. Obviamente, a elasticidade dos
conceitos matemáticos não é a mesma que aquela inerente aos conceitos psicológicos”
(GIANNOTTI, 1995, p. 170)
Nessa baila, legislação tributária que determine o pagamento de tributo quando da
ocorrência de transmissão de bem imóvel acima de R$100.000,00, utiliza-se de termos
lingüísticos com menor dimensão de alteração pragmática de conteúdo do que uma segunda
norma que tenha como fato gerador “a transmissão de bem imóvel de valor representativo de
capacidade contributiva”.
Com essas novas construções epistemológicas, a reviravolta lingüístico-pragmática
retira a credibilidade das bases do pensamento positivista de boa parte dos tributaristas atuais.
159 “A frase é retirada de seu uso cotidiano, pensada segundo um esquema que é exterior a ela, conservando, todavia, sua matriz significativa prévia. É como se jogássemos damas com as figuras do jogo de xadrez e imaginássemos que o primeiro jogo ainda conservasse o espírito deste último [...] cada conceito, ou melhor, cada sistema de conceitos se envolve, pois, numa atmosfera própria de indefinição, que, ao contrário do que se costuma imaginar, não perturba seu conteúdo duro de sentido, mas pertence ao próprio coração de sua significabilidade como meio de apresentá-lo” (GIANNOTTI, 1995, p. 44-45; 170).
247
Não há que se falar em determinação e exaurimento das hipóteses factuais por meio da
descrição de comportamentos em sede normativa. A tentativa de relacionamento prévio entre
os signos e suas significações, não apenas pode ser tida por falaciosa, como também
metafísica, pautando suas premissas em uma dualidade platônica impossível de ser atingida.
Com isso, também o mito da exatidão, da certeza e da possibilidade de “conceitos
fechados” garantirem a segurança jurídica de previsibilidade absoluta de direitos e obrigações
materiais perde força. Conseqüentemente, a própria forma liberal de pensar o Direito
Tributário, abandonando essas premissas já derrubadas deve ser reconsiderada.
Não fosse suficiente a derrocada da pretensão de estabilização determinista dos
conteúdos conceituais, a pragmática de Wittgenstein acabou por minar um segundo ponto que
caracteriza a filosofia da consciência.
Já trabalhado que o enaltecimento da racionalidade humana atingiu em Kant seu ápice.
Nos ensinamentos do filósofo prussiano, o homem tinha acesso ao mundo por meio de sua
razão solipsista. O indivíduo não precisava de uma interação com os demais para deter o
conhecimento, pois este era derivado da forma como os objetos da realidade se amoldavam às
“fôrmas” da racionalidade e suas intuições puras. Assim, “Kant concebe uma razão atemporal
capaz de unificar em si o intelecto e a intuição. Isso porque os elementos do mundo
fenomênico somente poderiam ser apreendidos por meio da intuição humana, especialmente
por meio de juízos sintéticos a priori” (CRUZ, 2006, p. 29).
Ocorre que, com Wittgenstein, é constatado que o acesso à realidade não pode ser
atingido pela razão kantiana, mas apenas por meio da linguagem. Deixa de haver um mundo
em si, para existir um mundo “na” e “pela” linguagem. Em harmonia com esses
ensinamentos, já se conclui que a linguagem constrói seu significado por meio da pragmática,
sempre atenta às regras do jogo de fala presente à situação respectiva.
Ocorre que essa é tarefa que a filosofia da consciência não consegue satisfazer. “As
pessoas são reduzidas a mônadas isoladas, com consciências individuais à quais só o
indivíduo tem acesso. Como é possível a linguagem como fenômeno social? Que sentido tem
descrever fenômenos psíquicos individuais se os outros não têm acesso a essa dimensão?”
(OLIVEIRA, 1996, p. 134).
Eis outra incompatibilidade entre a teoria esboçada pelo segundo Wittgenstein e a
permanência dos pressupostos da reta-razão. A percepção da realidade envolta unicamente na
esfera do individualismo se choca com o caráter eminentemente público que permeia a
linguagem.
248
O reconhecimento da multiplicidade dos usos possíveis da linguagem exclui então toda redução a um modelo único, e supõe reconsiderar a problemática clássica [...] sua argumentação contra a possibilidade de uma linguagem privada visa precisamente mostrar o caráter fundamental do jogo de linguagem (público) que permite a representação dos estados mentais (AUROUX, 1998, p.275-276)
Com efeito, não há que se falar em uma apropriação individual das regras da
linguagem e uma conseqüente atividade comunicacional independente da ação de outros
sujeitos. A própria estruturação do jogo lingüístico depende do ambiente em que se situa para
adquirir seu status característico. Conclusão imediata é a impossibilidade de construção de
conhecimento de forma isolada, como se o intérprete estivesse ilhado de seu entorno
contextual.
Com isso, mais um pilar da filosofia da consciência despenca. O intérprete não
consegue atingir o significado dos termos normativos isolado em um quarto fechado com a
suposição de que sua razão atinge toda a capacidade de compreensão da realidade. Não há
interpretação ou conhecimento pelo solipsismo, porque, simplesmente, não há conteúdo
normativo na lei em si. Proclama-se o abandono da relação sujeito-objeto (intérprete-norma)
em reconhecimento da interação sujeito-sujeito (STRECK, 2003, p.92 e ss.).
O conteúdo das expressões, das normas, da Constituição, enfim, todo o conhecimento
que se quer ter acesso pressupõe a interação intersubjetiva dos diversos interlocutores com
quem compartilhamos nossa situação de fala.
7.2 A interpretação como processo construtivo e a impossibilidade da
neutralidade científica: a fusão de horizontes interpretativa.
A busca pela univocidade interpretativa dos textos legais que comandou a
hermenêutica clássica – pressuposto já derrubado pela filosofia da linguagem de Wittgenstein
– não se edificou de forma independente ao seu contexto histórico, como se relegasse apenas
à lingüística o cartesianismo metafísico.
Durante a modernidade, todas as áreas do conhecimento que almejassem o título de
cientificidade deveriam demonstrar instrumentos capazes de submeter seu objeto de pesquisa
à neutralidade e rigor matemático-científico. Era o ponto em que as ciências humanas se
sentiam fora da formação do conhecimento responsável, já que seu foco de análise, por si só,
apresentava variáveis que impediam o sucesso consagrado na química, física e matemática.
249
Eis o mérito de Descartes, que conseguiu “popularizar” a necessidade do método, mesmo para
as “ciências do espírito”, inclusive o Direito, para a obtenção da “certeza científica”.
Restou apresentado no início deste trabalho que, para isso, Descartes entendia
imprescindível purificar a ciência de toda e qualquer influência externa que pudesse macular o
procedimento de pesquisa. Neste momento, o intérprete/pesquisador deveria cumprir seu
papel de mero observador da natureza para, assim, reproduzir o conhecimento que nela havia
detectado. Este aparato epistemológico cartesiano, hoje abatido pelas críticas vistas a seguir,
encontrava toda a coerência quando pensado em conjunto com os demais elementos que
compuseram a formação da filosofia da consciência: o racionalismo capaz de alcançar, por si
só as respostas científicas; o antropocentrismo que acarretou a super-valorização da
individualidade humana, etc.
Conforme já se sabe, essa perspectiva científica, ao ser propalada ao Direito, culminou
no método subsuntivo de aplicação da norma. Destinaram ao jurista a tarefa de fazer incidir o
conteúdo previamente determinado no texto legal à situação fática. Caso contrário, caso
pudesse o mesmo “interferir” no conteúdo jurídico com sua subjetividade, restaria
desrespeitada a vontade original do legislador, e não se conseguiria repetir de forma exata a
incidência normativa identificada na lei, acabando, assim, com a certeza matemática
norteadora dos sistemas científicos – divisão clássica dos poderes.
Além do mais, segundo o entendimento dos pensadores da modernidade, apenas
cumprindo de forma rigorosa os ditames legais seria possível garantir a todos a mesma
aplicação do conteúdo legal, obedecendo, assim, a igualdade absoluta entre os cidadãos,
princípio primeiro do Iluminismo. Mais uma vez, a necessidade de reprodução exata do
Direito original, sem a subjetividade interpretativa que poderia desvirtuar a pureza do método.
Eis mais alguns pontos caracterizadores da filosofia da consciência que se buscará
refutar, agora, em virtude do giro hermenêutico proporcionado por Hans-Georg Gadamer.
Uma questão prévia que se deve deixar clara é a absoluta adesão de Gadamer à
filosofia da linguagem trabalhada por Wittgenstein. As idéias ora expostas – primeiro a
reviravolta lingüístico-pragmática, e agora o giro hermenêutico – não se mostram conflitantes,
antes complementares, fato que faz esses dois pensamentos unirem forças e censuras no
combate ao positivismo metodológico. Esse elemento agregador, que reforça nossos
argumentos, foi reconhecido expressamente por Gadamer, que lhe reserva um capítulo
próprio:
250
Percebemos agora que todo esse processo é um processo de linguagem [...] a linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se representa mundo. Para o homem, o mundo está aí como mundo numa forma como não está para qualquer outro ser vivo que esteja no mundo. Mas este estar-aí do mundo é constituído pela linguagem (GADAMER, 1997 p.497; 571).
Não obstante a teoria gadameriana apenas fosse se formar na segunda metade do
século XX, seu pensamento é fruto de uma evolução filosófica perpetrada por diversos
autores ao longo do tempo. Em sua obra, Gadamer desenvolve com minúcias a evolução do
tema que resolvera se ocupar, e reconhece o mérito – e direciona críticas – aos pensadores que
fez uso para formar o delineamento de sua contribuição filosófica.
Já no início do século XIX, Schleiermacher, conhecido como o “pai da hermenêutica”
(PEREIRA, 2001, p. 13), deu ares de autonomia a essa área de estudo, além de buscar o
entendimento de como se dá o conhecimento de forma ampla.
Schleiermacher tem o mérito de contextualizar o significado do individual perante o
todo, lançando o objeto de compreensão a um estudo mais sistêmico e abrangente. Para ele,
somente se alcança o entendimento do significado de uma frase diante do conjunto completo
da obra em que esta inserida, mas da mesma forma, apenas se vislumbra o significado do
todo, compreendendo cada frase individual.
Não obstante o raciocínio circular desenvolvido, Shleiermacher se empenhou na
identificação de standards, regras objetivas capazes de cercar todo o ato de compreensão
(CRUZ, 2007, p. 37). Justamente em razão dessa ausência de superação de formas
objetivantes do entendimento, é correta a constatação de que a ação hermenêutica
permaneceu, mesmo após sua autonomia, francamente presa à metodologia da filosofia
moderna160.
A tarefa então iniciada ganhou desenvolvimento posterior com os estudos de Wilhelm
Dilthey. Este, identificando uma separação entre ciências do espírito (humanas e sociais) e
ciências naturais (exatas), tentou situar a atividade compreensiva dentro de seu papel
histórico, e proclamar a independência dos métodos de compreensão das ciências do espírito.
160 “A auto-reflexão lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XIX, está completamente dominada pelo modelo das ciências da natureza [...] Já a partir do contexto da Lógica de Mill percebe-se que não se trata de reconhecer uma lógica própria das ciências do espírito, mas de demonstrar, ao contrário, que também nesse âmbito o método indutivo, que está à base de toda a ciência experimental, tem validade única. Mill toma pé numa tradição inglesa, cuja formulação mais efetiva foi dada por Hume na introdução de sua obra Treatise. Mesmo na ciência moral estaria em questão reconhecer uniformidade, regularidade e legalidade, que tornariam previsíveis os fenômenos e processos individuais [...] mas o que representa o verdadeiro problema que as ciências filosóficas colocam no pensamento é que não se consegue compreende corretamente a natureza das ciências do espírito, usando o padrão de conhecimento progressivo da legalidade (Gesetzmässigkeit).” (GADAMER, 1997, p. 37-38)
251
Dilthey já tinha a noção de que não se pode pretender a história sem considerar que o
próprio sujeito faz parte da própria história, e por isso, imerso em seu objeto de análise161.
Todavia, sua empreitada de cortar o cordão da exatidão das áreas humanas e sociais foi
prejudicada pelas amarras inconscientes que o prendiam às ciências naturais:
Mesmo assim, Dilthey se deixou influenciar profundamente pelo modelo das ciências da natureza, embora quisesse justificar justamente a independência metodológica das ciências do espírito [...] para Dilthey o conhecimento científico implica em dissolução dos vínculos vitais, a conquista de uma distância em relação à própria história, pois somente isso possibilita considera-la como objeto (GADAMER, 1997, p. 41)
Dentre os autores aludidos por Gadamer, é sem dúvida Heidegger quem lhe exerceu
maior influência. Autor da obra “Ser e Tempo” (2006), Heidegger percebe que o ser, presente
na linguagem, não pode ser compreendido de forma a menosprezar seu aparato histórico
anterior.
Sua crítica face a filosofia da consciência se pautava por essa centrar todo o foco de
análise apenas no sujeito, independentemente de sua relação com o mundo. Ocorre, porém,
que a questão da temporalidade, negligenciada pela modernidade, é crucial para se
compreender como o sujeito é capaz de compreender o ente que se revela perante si.
No entendimento do filósofo, não se consegue apreender o significado do objeto (p.e.,
ente/legislação) que se quer interpretar tal como ele é plenamente. Em realidade, o sujeito
deve buscar aquilo que está oculto no ente, que por sua vez, irá se desvelar frente seu
observador. Isso implica reconhecer que o objeto a ser interpretado apresenta inúmeras facetas
que irão sendo reveladas ao ser (intérprete) – ilustração próxima ao quadro de Magritte (“Le
fils de l'homme”) em que o pintor retrata, como de costume em suas obras, uma maçã
sobreposta à face do homem, indicando que sempre se deve perquirir aquilo que é oculto no
próprio objeto de pesquisa.
Cruz, em felicidade didática exemplifica que
Podemos designar o fruto da macieira em diversas línguas: maçã, apple, manzana, pomme, etc. Mas, a designação desse ente ainda não a desvelou pois ele pode ter múltiplos significados (modos de existência) a partir de contextos diferentes.
161 Segundo recorda Gadamer, “... em oposição à dúvida cartesiana, e à certeza do conhecimento matemático da natureza fundado sobre aquela, Vico afirmara o primado epistemológico do mundo da história feito pelo homem; Dilthey irá repetir o mesmo argumento: ‘A primeira condição de possibilidade da ciência da história consiste em que eu mesmo sou um ser histórico, e que aquele que investiga a história é o mesmo que a faz’. O que torna possível o conhecimento histórico é a homogeneidade de sujeito e objeto [...] dava razão à escola histórica em que não existe um sujeito geral, mas somente indivíduos históricos. A idealidade do significado não pode ser atribuída a um sujeito transcendental, mas surge da realidade histórica da vida” (GADAMER, 1997, p. 300; 302)
252
Assim, a Big Apple representa a cidade de New York. Pode também representar o amor enamorado (a maçã do amor), o objeto do pecado da história bíblica de Adão e Eva ou, até mesmo, significar a traição do presente da bruxa à Branca de Neve [...] assim, podemos perceber o que se oculta na maçã: primeiro, por detrás da associação entre a promessa da sensação gustativa de se saboreá-la, se esconde tanto a perspectiva de se conhecer as delícias do comércio e da vida cultural de New York quanto os devaneios do sexo e do amor... (CRUZ, 2007, p. 39)
Mas o encontro e descoberta do significado do ente apenas se dá por meio da
linguagem, compreendida não como instrumento, mas elemento que marca a cognoscência do
próprio sujeito, e perenemente conectada ao mundo em que se situa. Ora, se assim o é, pode-
se concluir que o ser apenas é “ser no mundo”. Noutros termos, o sujeito apenas se constitui
porque ligado à sua relação com o mundo e suas tradições, experiências e subjetividade. Por
isso mesmo, impossível a tarefa de compreensão do ente sem se passar pela consideração do
próprio ser!
O ser-no-mundo na linguagem não é simplesmente um ser dentro do mundo, ao modo de uma consciência que se apropria do mundo em sua própria interioridade. O Dasein é falante, não porque ele seria um interior separado do exterior, mas porque compreendendo-se enquanto ser-no-mundo, ele já é exterior. (AUROUX, 1998, p. 257).
O que Heidegger tenta transmitir é sua constatação de que o ser apenas é capaz de
compreensão porque está situado no mundo. Sua carga histórica, que precede o ato
hermenêutico em si, é o que possibilita o entendimento. Com isso, ele oferece uma concepção
até então refutada pela filosofia da modernidade: as características e particularidades do
ser são parte indissociável do procedimento cognoscitivo162.
Justamente por isso, não há como se proceder a um sistema mecanicista do
conhecimento, afinal, cada sujeito é marcado de forma diversa pelas relações sociais a que é
exposto, o que acarreta a diversidade do desvelamento do ente.
Com essas bases teóricas, Gadamer parte para a investida de pesquisar o fenômeno da
compreensão e sua relação com os métodos apriorísticos da ciência. O próprio autor esclarece
a tomada de empréstimo dos ensinamentos de Heidegger e por onde caminhará a partir daí:
162 Oliveira leciona que “aqui reaparece a pluridimensionalidade da linguagem: por um lado compete à linguagem revelar o ente em sua verdade e exprimí-la na palavra. No entanto, o que se revela nunca é só um ente: no dizer o ente transcendemos o ente na direção do ser o sentido-fundamento que possibilita a revelação dos entes. Então, é por meio da palavra que o homem, ser histórico vem ao ser. Heidegger chama esse evento de relação hermenêutica entre o homem e o ser. A consideração dessa problemática significa, em Heidegger, o pôr o alicerce para a construção de um novo paradigma: a ontologia hermenêutica é um retorno ao evento do desvelamento que é também, ao mesmo tempo, ocultamente (essa é a aporia originária do ser enquanto evento de desvelamento) (Entbergen) e ocultamento (Verbergen) entanto temporalização do ser (OLIVEIRA, 1996, p. 213)
253
Somente Heidegger desenvolveu em toda a sua radicalidade: só fazemos história na medida em que nós mesmos somos ‘históricos’; significa que a historicidade da pré-sença humana em toda a sua mobilidade do relembrar e do esquecer é a condição de possibilidade de atualização do passado em geral [...] (mas) Heidegger só se interessa pela problemática da hermenêutica histórica e da crítica histórica com a finalidade ontológica de se desenvolver, a partir dela, a estrutura prévia da compreensão. Nós, ao contrário, uma vez tendo liberado a ciência das inibições ontológicas do conceito de objetividade, buscamos compreender como a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. (GADAMER, 1997, p. 350; 354) (acréscimos nossos)
Gadamer argumenta, em sintonia com Heidegger, que não se pode pretender o sujeito
como se este estivesse solto no espaço, alheio e imune aos acontecimentos, experiências e
tradições que compõem sua situação histórica. Em realidade, sempre que se procede alguma
empreitada interpretativa, o intérprete o faz permeado por preconceitos e pré-compreensões.
Isso porque somos todos herdeiros de uma tradição histórica social e familiar que nos
é passada como um diálogo entre passado e presente, o que, desde já, nos situa geográfica e
historicamente no mundo. Nossa rede de conhecimentos, experiências e subjetividades
prévias ao processo do conhecer forma nosso “horizonte hermenêutico”, que conforme
leciona Heidegger, é pressuposto para o processo de conhecimento e compreensão da
realidade.
Em uma busca inicial pela compreensão das artes, o autor detecta a impossibilidade de
se adentrar no conteúdo e sentimento passados por uma obra de arte sem a utilização das
expressões individuais como meio de acesso a um quadro ou escultura. Há um
compartilhamento de mundos, o do intérprete e o da arte, que, em conjunto, irão formar a
compreensão pessoal do primeiro. Essa exemplificação inicial servirá, para Gadamer, como
analogia para expandir sua teoria para todos os campos do conhecimento. Assim como se
procede com as artes, também a história, os textos, as normas, romances, etc.
Com esses dados, Gadamer percebeu que a história não está aí para a pertença e
observação neutra dos homens, mas, em realidade, estes pertencem à história, pois é ela que
nos compõe e nos fornece o substrato para a formação do “eu-hermenêutico”. Por isso
mesmo, a carga subjetiva interpretativa abandona a pecha de desvirtuadora da pureza
metódica, e toma agora a posição de condição de possibilidade, pressuposto inarredável para
a compreensão do objeto posto. Isso é o que faz Pereira (2001, p. 32) afirmar que “a
compreensão humana possui uma temporalidade intrínseca. Ou seja, não existe possibilidade
de compreensão que se dê fora da História, fora da influência temporal.”. Gadamer chama
essa relação imbricada entre ser e história de “princípio da história efeitual” (GADAMER,
1997, p. 397 e ss.).
254
Dessa forma, para que, ao elaborar este trabalho pudéssemos compreender a
perspectiva liberal da tributação, tivemos experiências próprias que possibilitaram apreender o
conteúdo tributário que se desenvolvia no século XVIII. Assim, já tivemos que pagar tributos
e sentimos a diminuição patrimonial imediata que deles decorre. Tivemos oportunidade,
também, de participar de debates acerca da ingerência patrimonial e sede fiscal que, para
algumas pessoas, caracterizam o Estado brasileiro. Da mesma forma, já nos sentimos
pesarosos com a possibilidade de termos sobre nós a incidência de uma obrigação tributária
sem qualquer lastro de legitimidade, o que nos colocou, também na busca por uma segurança
jurídica...
Toda essa carga subjetiva não serviu de mácula para a pureza do método racionalista
de estudo histórico, mas se mostrou imprescindível para que compreendêssemos todo o
contexto histórico-tributário que habitava a cabeça dos juristas no século XVIII, ainda que
para uma posterior crítica.
Nessa trilha, Gadamer inverte a polaridade que antes dominava a filosofia cartesiana.
As tradições e pré-compreensões que, para Descartes, poderiam acarretar a deformação do
processo científico e cognitivo, passam a ser elementos essenciais para que o sujeito consiga
empreender qualquer atividade intelectiva.
Da mesma forma, a pomba imagina voar com mais liberdade no vácuo porque não contaria mais com a resistência do ar, esquecendo-se que tal resistência é condição de possibilidade de seu vôo, no vácuo (que seria a condição ideal de vôo, sem resistência, sem atrito) a pomba não voaria: assim também os interesses são condições de possibilidade da experiência, ao mesmo tempo que lhe impõem um limite (DUTRA apud CRUZ, 2007, p. 52).
Todavia, não se trata aqui de uma imposição arbitrária das subjetividades individuais
em detrimento do próprio objeto interpretado. Obviamente, Gadamer não propõe um
determinismo ou uma imposição desarrazoada da situação hermenêutica do intérprete, caso
contrário, não se daria a interpretação de um texto, mas sim a produção de conteúdos
absolutamente novos, incoerentes com o objeto analisado.
Aquele que quer compreender não pode se entrar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e conseqüente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa neutralidade não pressupõe nem uma ‘neutralidade’ com relação à coisa, nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma destacada
255
apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. (GADAMER, 1997, p. 358).
Se o sujeito chega ao ato interpretativo já carregado de uma vivência particular,
também o texto tem, em si, uma série de informações e possibilidade de conteúdo que estão à
disposição para interagir junto àquele que lhe busca. Até mesmo o aspecto temporal lhe é
presente. Uma legislação escrita há 200 anos não pode ser interpretada da mesma forma que
outra elaborada na contemporaneidade. Assim como o reconhecimento de uma situação
histórica do sujeito é primordial para a compreensão, da mesma forma, a abertura ao
horizonte hermenêutico que o texto tem a apresentar e que irá se relacionar com o intérprete.
Algo como um diálogo entre dois interlocutores com tradições, opiniões e experiências
distintas e aptos a compartilharem suas visões acerca de um tema.
Não à toa, o próprio autor trabalha, em sua obra, uma dialética de pergunta e resposta
entre ser e ente, ente o jurista e a norma (GADAMER,1997, p. 474 e ss.).
A compreensão seria, então, uma fusão desses horizontes, o do intérprete e do objeto,
o primeiro modificando a “posição original” do segundo e o segundo modificando o primeiro.
Gadamer consegue, enfim, abandonar a relação unidirecional da construção do conhecimento,
e teoriza o círculo hermenêutico, que aglutina intérprete e objeto em uma mesma dimensão
participativa da compreensão.
Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver para além do que está próximo e muito próximo, não para abstrair dele, mas precisamente para ver além do que está próximo, em um todo mais amplo e com critérios mais justos [...] compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos (GADAMER, 1997, p.403; 404).
Em complemento, a oportunidade de compreensão a que se submete o sujeito
incrementa ainda mais seu horizonte hermenêutico, sua visão e pré-compreensão acerca do
objeto. Dessa forma, em uma nova atividade interpretativa, aquele já estará modificado, não
empreendendo um mesmo conteúdo de compreensão, mas sim brindado com um refinamento
maior.
Em verdade, ainda que não importe qualquer prejuízo ao conceito, trata-se mais propriamente de uma espiral hermenêutica, já que o movimento de compreensão formado por dita relação vai, ao longo do processo, estabelecendo patamares mais corretos de interpretação, que, por sua vez, lançarão novas luzes sobre os preconceitos e assim seguidamente rumo a um entendimento mais adequado. Caso fosse literalmente circular, o intérprete sairia do movimento da mesma forma que entrou, ou seja, com os mesmos preconceitos originais. Não poderia ter, por isso,
256
nenhum juízo sobre suas validades, nem conquistar qualquer ganho em qualidade. (PEREIRA, 2001, p. 35) (grifos nossos)
Conseqüência direta, Gadamer não mais admite a separação metodológica entre
compreensão, interpretação e aplicação. A própria estrutura do conhecimento por que
caminha o autor o leva a argumentar que compreender, interpretar e aplicar compõem um
mesmo complexo momento cognoscitivo, e não etapas estanques tal qual propunha o
positivismo (GADAMER, 1997, p. 406 e ss.). Dessa forma, apenas se alcança, melhor, apenas
se constrói o sentido de um texto normativo se diante de um caso concreto de aplicação
normativa. Noutros termos, não há Direito sem contexto!
Por isso mesmo, não há como aceitar a pressuposição kelseniana, abraçada pelo nosso
ordenamento, de controle de constitucionalidade “abstrato” designado pelo constitucionalismo
positivista, pois simplesmente, não há conteúdo em textos abstratos, mas apenas em razão de
uma historicidade do sujeito e de seu objeto de interpretação.
Ao ler este trecho da pesquisa, o leitor, desde já, tenta antecipar qual o conjunto da
obra, e projeta para o futuro o significado que irá construir de sua leitura. Isso apenas ocorre
porque as expectativas e interesses do leitor o impulsionam a buscar o conteúdo que dialoga
com seu horizonte hermenêutico. Talvez a base histórica que o compõe tenha um substrato
filosófico coincidente com as teorias aqui expostas e assim, a ansiedade pela constatação de
uma conclusão jurídica concordante já o leve a compreender o texto. Pode também, devido a
pressupostos distintos, estar projetando, simultaneamente à leitura, uma conclusão que não lhe
procede, instigando, assim, uma futura crítica.
De todo modo, o contato inicial do texto já começa a modificar sua compreensão
acerca do conteúdo interpretado. Todavia, a concepção originalmente estabelecida pela fusão
imediata dos horizontes texto/intérprete não pode prevalecer de forma definitiva, estando
sempre atenta à evolução e revisão que o texto irá proporcionando ao longo da leitura.
A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido [...] a compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. (GADAMER, 1997, p.356)
Ora, mas se aceita a compreensão de um texto como a fusão de horizontes entre
intérprete e objeto, e admitida também que cada sujeito possui um horizonte hermenêutico
próprio derivado de suas tradições, interesses, conhecimentos, enfim, sua subjetividade, se
257
está a afirmar que em cada processo de conhecimento, o resultado será distinto, ainda que se
referentes ao mesmo texto? Significa então que uma mesma legislação tributária pode
culminar em resultados interpretativos diversos? É absolutamente isso que Gadamer
afirma!
A grande contribuição gadameriana para nossa pesquisa consiste justamente na
conclusão de que ainda que queiramos não há que se falar em uma repetibilidade de
conteúdos normativos advindos de diversas interpretações de um mesmo texto legal. Muito
menos, uma recuperação exata do sentido do texto que seu autor pretendeu. Eis a razão para a
qual Greco, ao proceder estudo acerca do planejamento tributário, constatar que
Alguém poderá se espantar dizendo que, sendo assim, o Direito seria influenciado pela ideologia e que a interpretação teria um ingrediente ideológico. Óbvio que sim! Lembrando palavras já ditas, o juiz não julga a partir da Lua; o juiz é um homem comum, sensível à sua realidade [...] um conjunto de valores pode ser organizado de diferentes maneiras conforme a pessoa os conceba. Uns podem colocar em primeiro lugar a solidariedade, em segundo a segurança, em terceiro a liberdade, e em quarto a propriedade. [...] outra pessoa pode tomar os mesmos quatro valores e organizá-los diferentemente (GRECO, 2004, p.385)
Toda e qualquer atividade hermenêutica é, em realidade, não uma apreensão de
conteúdo definitivo a ser meramente captada pelo observador, mas sim uma verdadeira
construção de conteúdo derivado da fusão de horizontes do texto e intérprete. Por isso
mesmo, um texto nunca será lido tal qual escrito originariamente. Eis, também, a razão da
inadmissão das fundamentações jurídicas em busca de uma “vontade da lei” ou “do
legislador”:
O sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso, a compreensão nunca é um comportamento meramente reprodutivo, mas também produtivo [...] é o que na experiência hermenêutica havíamos caracterizado como o momento da história efeitual. Toda atualização na compreensão pode compreender-se como uma possibilidade histórica daquilo que é compreendido. A própria finitude histórica de nossa existência implica estarmos conscientes de que, depois de nós, haverá outras pessoas que compreenderão de modo cada vez diferente. Mas em nossa experiência hermenêutica não há dúvida de que a obra continua sendo a mesma, sujo significado continua se determinando. (GADAMER, 1997, p. 392; 487). (grifos nossos)
É, definitivamente, o fim da “era das certezas”!
E não apenas na seara do conhecimento jurídico. Não obstante se tenha restringido à
análise de textos normativos, a teoria gadameriana tenta demonstrar que, não importa em qual
258
âmbito científico163, nunca se poderá pressupor a utilização de métodos apriorísticos como
garantia de alcance de repetibilidade e previsibilidade dos resultados. Sempre iremos interferir
na condução das experiências, não importa em qual área, inclusive nas ciências da natureza164.
Este é dado não das áreas sociais, ou mesmo do Direito, especificamente, mas sim da
própria finitude e existência humana! Toda a compreensão passa, inexoravelmente, pela
junção de um horizonte prévio e um novo que nos é apresentado. Mesmo o momento de
escolha do objeto a ser investigado, ou o enfoque da pesquisa a ser perpetrada passa pela
influência subjetiva prévia. O desafio da descoberta acerca de um tema que alguém possa ter
comentado; ou a continuação de um trabalho realizado por uma pessoa próxima, ou ainda
qualquer outro elemento externo. São todas manifestações da presença de nossa tradição
hermenêutica quando do início da investigação científica.
Daí que uma eventual justificativa afirmada por servidores públicos do Fisco, por
exemplo, no sentido de que preferem se filiar à postura neutra, literal e estrita contida
expressa e indubitavelmente no texto da lei em razão de receios de posteriores procedimentos
administrativos e disciplinares – que poderiam argüir porque se distanciaram da prática de
“atividades vinculadas” – não se sustenta. Ora, se já constatada a impossibilidade de se
atrelar de forma definitiva, atemporal e unânime um conteúdo a algum termo lingüístico, a
prática declarada pelo servidor em questão não terá qualquer êxito. Afinal, por mais que
163 “Gadamer maintains that the structure of prejudice he describes obtains not only for historical and textual interpretation but for the natural and social sciences as well. Forms of scientifical knowledge themselves constitute tradition; they develop certain norms and methods, rely on certain criteria of verification and falsification and make certain assumptions about their own development. To this extent all understanding or observation of an object domain involves a pre-judgment in terms of a particular interpretive ‘paradigm’ or set of prejudices. Hence, not only are our interpretations of history or texts rooted in our situation and tradition, even those ‘methodologically based’ judgments of meaning that we take to be most objective are prejudiced in particular ways. It follows that there can be no observation of ‘facts’ or confirmation of theoretical hypotheses that is neutral or objective in the sense for which positivism searches sense there is no observation or confirmation that is not conditioned by a tradition” (WARNKE, 1987, p. 108). ( tradução nossa: “Gadamer sustenta que a estrutura de preconceitos que ele descreve se impõem não apenas pra interpretações históricas ou textuais, mas para as ciências naturais e sociais também. Formas de conhecimento científico por si só constituem tradição. Elas desenvolvem certas normas e métodos, dependem de certos critérios de verificação e falsificação e fazem certas suposições sobre seu próprio desenvolvimento. Toda a compreensão ou observação de um objeto envolve pré-julgamentos de um paradigma interpretativo particular ou uma série de preconceitos. Doravante, não apenas nossas interpretações da história ou de textos estão ligadas a nossa situação ou tradição, mesmo aqueles julgamentos “metodologicamente baseados” com intuito de sermos objetivos são influenciados de uma forma particular. Isso significa que não há observação de fatos ou conformação de hipóteses teóricas neutras ou objetivas no sentido que o positivismo pretende, pois não há observação ou confirmação que não seja influenciada pela tradição”. 164 O filme “Quem somos nós” (2005) deixa claro como o pesquisador influencia de forma determinante nos resultados das pesquisas na física, ciência que, a princípio, é caracterizada pro sua exatidão e precisão. Neste filme/documentário, é demonstrada uma experiência realizada com uma carga de elétrons que, sem a presença do observador durante o procedimento, atinge um resultado determinado. Entretanto, quando os cientistas se posicionam para examinar a mesma experiência, a mera presença do observador já alterava o resultado final do mesmo evento. Nem mesmo nas ciências tidas por exatas pode-se colocar o homem como mero espectador. Sua própria presença sempre acarretará alguma modificação nas conclusões experimentadas.
259
imagine estar seguindo o conteúdo legal, ele o estará fazendo “a seus olhos”, ou seja, estará
seguindo o conteúdo que ele imagina. Não obstante, um magistrado ou superior hierárquico
poderá compreender os termos normativos de maneira diversa e assim, concluir que referido
servidor incorreu em excesso de exação ou mesmo fugiu de suas obrigações vinculadas.
Justamente por isso, o que se quer aqui enfatizar é que o repúdio à hermenêutica descritiva e
positivista não é uma questão de melhor escolha, mas a verificação de algo ilusório!
Mas se a tradição subjetiva do intérprete influencia sobremaneira o resultado de sua
atividade interpretativa, não se está a afirmar a mercê às opiniões individuais e ideológicas
dos julgadores.
De fato, não há mais que se falar em métodos jurídicos previamente determinados
capazes de garantir a certeza científica de outrora. Nossa condição humana sempre nos
colocará de maneira diversa perante o objeto, o que consequentemente, comprometerá a
neutralidade interpretativa buscada pelo positivismo. Entretanto, o horizonte hermenêutico
gadameriano, muito embora seja um ponto de partida, não se mostra uma determinação da
chegada ao conteúdo proveniente da experiência hermenêutica.
Caso assim o fosse, um magistrado com intensa experiência junto à atividade
partidária socialista anterior à sua atividade pública, sempre decidiria de forma a desestruturar
as grandes corporações empresariais, pois sua tradição subjetiva iria impulsionar a construção
de um conteúdo normativo impregnado de seus ideais, vislumbrando unicamente a
observância cega à capacidade contributiva.
Isso sim seria a dilapidação da estrutura jurisdicional e a adoção de um relativismo
capaz de desestabilizar por completo uma sociedade democrática.
Daí o questionamento que o leitor pode dirigir acerca da validade do conteúdo
atingido pelo sujeito165. Como identificar os preconceitos que nos auxiliam a ter acesso ao
objeto interpretado, e aqueles que tentam determinar de forma autoritária as decisões nos
processos judiciais?
Afinal, pode-se argumentar, sem receios, que há tradições que foram impostas e
mantidas, não por representarem a forma de vida dos sujeitos, mas sim em razão da força e
coação em um intuito de manutenção de status quo. Basta pensar na posição que as mulheres,
165 A questão da verificação da correção ou validade dos enunciados foi despertada, em realidade, por Apel: “Sem dúvida, Heidegger e seus seguidores prestaram uma contribuição inegável ao problema da constituição do sentido, mas se equivocaram com respeito ao problema da verdade e da validade. Portanto, se queremos uma hermenêutica crítica, que incorpore a pergunta pela validade e verdade, não podemos seguir exclusivamente o caminho heideggeriano e gadameriano...” (APEL apud CRUZ, 2007, p. 86).
260
por anos, ocuparam dentro da hierarquizada estrutura social brasileira. Há nesse caso, não
uma mera condição de possibilidade, mas sim uma imposição ideológica coercitiva.
Habermas, filósofo que reconhece com louvor o salto proporcionado por Gadamer,
não deixa de apontar esta espinhosa questão (WARNKE, 1987, p. 108 e ss.). As tradições
hermenêuticas não podem servir como uma restrição interpretativa, mas sim possibilitar uma
eventual emancipação do horizonte histórico original. Sobre a tradição histórica da Escola de
Frankfurt, Habermas tem a forte preocupação com a possibilidade de deturpação dos
discursos em virtude da colonização do agir comunicativo em razão do poder burocrático ou
financeiro.
Realizando uma auto-reflexão acerca dos princípios ideológicos, devemos ser capazes
de identificá-los, e trabalharmos nossa interpretação de forma a, sem abrir mão de nossa
tradição, realizarmos um autoquestionamento, e tentar superar os vícios que a mesma pode
acarretar. Com isso, podemos ser capazes de, ao final, construir um conteúdo até mesmo
contrário às nossas pré-compreensões originais, pois procedemos uma apropriação crítica de
nossas tradições hermenêuticas (HABERMAS, 2003, p. 201 e ss.). No exemplo do
magistrado supra, estamos a propor a conscientização da presença de sua carga ideológica,
para impedir que a mesma tome os rumos do julgamento final e silencie os demais
argumentos e vozes presentes na construção do conteúdo normativo.
Gadamer, em resposta ao questionamento, persistiu nos ensinamentos de sua obra.
Não com a pretensão de negar as linhas gerais dos argumentos habermasianos, mas afirmando
que, desde o início, sua teoria se preocupara com a distinção entre preconceitos maliciosos e
produtivos no âmbito cognoscitivo. A leitura habermasiana teria sido, em sua opinião,
extremamente reducionista, compreendendo o círculo hermenêutico apenas quanto as
tradições explícitas, mas ignorando que, também o oculto fora considerado:
A partir de sua perspectiva, Habermas ilegitimamente restringe o alcance da hermenêutica, compreendendo como verdade “expressada”, afirmações que agentes fazem explicitamente ou valores que eles sustentam. Hermenêutica, porém lida com preconceitos e limites não meramente articulados em posições individuais ou sociais, mas com suposições e expectativas que essas posições incluem. Por exemplo, os interesses da hermenêutica se estendem além da apreciação de conteúdos explícitos dessas afirmações – que mulheres são mais apropriadas para tarefas domésticas – e assim por diante – para o complexo de visões implícitas sobre a distribuição apropriada de poder que as assertivas circundam (tradução nossa) 166 (WARNKE, 1987, p.113).
166 No original: “From his perspective, Habermas illegitimately restricts the range of hermeneutic understanding to ‘expressed’ truth, to claims agents explicitly make or values they uphold. Hermeneutics, however, deals with prejudices and hence not simply with the positions an individual or society can articulate but with the assumptions and expectations those positions include. For example, hermeneutic interests extends beyond an
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Dessa forma, segundo afirma Gadamer, a identificação e distinção dos interesses
espúrios se dariam no próprio procedimento de compreensão permeado pela linguagem. A
partir do instante em que se inicia o contato junto ao ente, o sujeito, pela antecipação do
todo167, persistirá, ininterruptamente, avaliando suas pré-compreensões a fim de verificar a
legitimidade das mesmas perante a construção de um conteúdo final.
Em busca à obra gadameriana, é possível, de fato, encontrar passagens em que o autor
defende um necessário refinamento das pretensões determinantes das tradições prévias:
Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’ [...] enquanto tais, os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a consciência do intérprete não se encontram à sua livre disposição. O intérprete não está em condições de distinguir por si mesmo e de antemão os preconceitos produtivos, que tornam possível a compreensão, daqueles outros que a obstaculizam e que levam a mal-entendidos. Essa distinção deve acontecer, antes, na própria compreensão, e é por isso que a hermenêutica precisa perguntar pelo modo como isso se dá, o que implica elevar ao primeiro plano aquilo que na hermenêutica tradicional ficava à margem: a distância temporal e seu significado para a compreensão. (GADAMER, 1997, p.355; 391)
Há autores, porém, que não se dão por satisfeitos com a argumentação de Gadamer,
afirmando que o mesmo peca por não perceber que apenas a força argumentativa propiciada
por procedimentos seria capaz de permitir a depuração das fundamentações apresentadas, e,
com isso, possibilitar a verificação de legitimidade e validade das interpretações realizadas
pelos sujeitos (CRUZ, 2007. p. 89 e ss.).
appreciation of the explicit content of those claims – that women are best-suited to domestic tasks – and so on – to the complex of implicit views about the appropriate distribution of power and so on that the claims encompass” 167 “... para fugir da afirmação de que sua teoria daria azo a uma submissão cega à força da autoridade e da tradição, que não seria capaz de distinguir preconceitos legítimos e preconceitos ilegítimos, nem seria competente para ultrapassar condições de comunicação ideologicamente perturbadas, passa igualmente a ressaltar as propriedades críticas presentes na própria Hermenêutica, as quais podem ser representadas pelas idéias de antecipação do todo, distância temporal, diálogo, situação de aplicação e retórica [...] a antecipação do todo, ínsita ao processo de compreensão, exerceria para o autor uma tarefa constante de pôr à prova as pré-compreensões do intérprete [...] outro ponto importante para a correção dos preconceitos seria a distância temporal [...] Há uma verdadeira ação positiva no distanciar-se do tempo, eis que o momento futuro, pelo choque com o aprendizado capitaneado pelo passado histórico, está apto a iluminar os juízos verdadeiros [...] Essa assertiva só cobra sentido na estrutura do diálogo e da relação entre pergunta e resposta, também já mencionados, mas que, nesse contexto, passam a assumir nitidamente sua função crítica [...] outro aspecto importante para reduzir a possibilidade de mal-entendido é a conseqüência advinda da mencionada inserção da aplicação na mecânica interna da compreensão. Ora, para GADAMER, a compreensão não ocorre em abstrato, sem suspensão, mas se refere, sempre, à situação hermenêutica de um sujeito [...] GADAMER também fez menção expressa a um domínio explícito em que a Hermenêutica se encontra com a Retórica: a de que não há conclusões que se imponham por si mesmas, mas que são pontos de chegada atingidos pelo diálogo esclarecedor.” (PEREIRA, 2001, p. 63-67)
262
De todo modo, o debate quanto ao mérito da percepção originária acerca do tema não
é o cerne desta pesquisa. O que importa destacar é a concordância de ambos pensadores, ao
final, na inexorável presença das pré-compreensões no âmbito interpretativo, bem como a
necessidade da constante auto-reflexão acerca da validade na condução da construção do
conhecimento interpretado.
O giro hermenêutico auxilia, assim, a encerrar de vez os pressupostos positivistas e
descritivos de aplicação do texto. Ao ter contato com uma norma legal, não há como
apreender seu conteúdo jurídico em toda sua plenitude, ou mesmo, a totalidade da mensagem
que pretende, o legislador, ou a lei, transmitir. Apenas se logra acesso à norma “para o
intérprete”, marcada pelo horizonte hermenêutico que, em conjunto com o texto, construirá
um conteúdo interpretativo.
Por isso mesmo, a impossibilidade da certeza cartesiana na apropriação dos textos
normativos, ou mesmo de qualquer outro objeto. Sempre estaremos permeados por nossa
situação histórica, aliás, dela necessitamos para termos acesso justamente aos objetos os quais
queremos aproximação.
Se Descartes popularizou a certeza de um método prévio como forma de garantir a
pureza do conhecimento e a certeza dos resultados, Gadamer vem desconstruir suas
pretensões, e mostrar a impossibilidade de uma certeza cartesiana em qualquer seara. “Trata-
se de uma relação intransponível que o Iluminismo, na sua ingenuidade metódica, não pôde
perceber: como se fosse possível vendarmos os olhos para aquilo que forma nossa herança
cultural, como se nos fosse dado pular a própria sombra”. (PEREIRA, 2001, p. 33).
Paradoxalmente, a própria ânsia positivista de criar uma metodologia capaz de
proporcionar a neutralidade científica e certeza matematizada dos resultados jurídicos já é, por
si só, um reflexo das pré-compreensões que marcavam o horizonte hermenêutico de seus
filósofos. A necessidade de rejeição de autoritarismos anteriores (Igreja e monarquia) na
construção de um conhecimento científico é, em realidade, a presença da tradição histórica na
elaboração de uma teoria neutralizadora das próprias tradições168. Uma verdadeira contradição
performativa!
168 Nesse sentido, Gadamer nos informa que a pré-compreensão do período das Luzes é o “preconceito contra o preconceito” (GADAMER, 1997, p. 360 e ss.).
263
7.3 A nova hermenêutica e a interpretação econômica
Após o exposto, comprovou-se ultrapassada a viabilidade pragmática (efetivação dos
direitos fundamentais) e filosófica (falibilidade dos pressupostos positivistas) das teorias
hermenêuticas descritivas do Direito. Diante deste quadro, uma postura que possivelmente
poderia ser adotada por parte do leitor seria a seguinte: ora, uma vez demonstrada toda a
falibilidade da pretensão descritiva e formalista da tipicidade estrita que marca o positivismo
tributário, não resta outra saída senão a filiação à alternativa hermenêutica já apresentada: a
interpretação econômica. Afinal, tal qual a postura adotada no presente trabalho, esta técnica
interpretativa é também combativa do formalismo jurídico que habita o Direito Tributário.
Conforme desenvolvido alguns tópicos atrás, a chamada interpretação econômica,
inicialmente detectada junto ao advento do Estado social alemão, consiste na mudança de
foco interpretativo para fins de exação tributária. Tomando por secundária a forma ou
“roupagem” jurídica que os atos dos particulares assumem, a interpretação com fins
econômicos busca justamente as conseqüências e resultados econômicos advindos dos atos e
negócios jurídicos. E, a partir desta verificação, que deixa para trás a tipicidade estrita
tributária, faz incidir a oneração fiscal em razão dos impactos financeiros percebidos.
Todavia, tornou-se claro que duas severas críticas provenientes dos tributaristas
contemporâneos pretendem fulminar a adoção desta técnica hermenêutica.
Um primeiro ponto seria a verificação do caráter autoritário da interpretação
econômica. Assim, Prates (1992) sugere que a busca pelos aspectos econômicos nas
legislações tributárias corresponderia a um poder atribuído à Administração Pública capaz de
ensejar os abusos estatais verificados outrora. Para constatar tal afirmativa, bastaria observar o
fato de que sua utilização ganhou espaço justamente em regimes autoritários, como o nazismo
alemão e o fascismo italiano (COELHO, 2005, p. 238 e ss.).
Esta é argumentação cuja fragilidade nem de perto chega a estereotipar a interpretação
econômica como instrumento de regimes não democráticos. Ora, não há que se dar um
apanágio arbitrário a uma técnica interpretativa utilizada pelos homens com tal objetivo em
um dado momento da história. Em analogia conveniente pelo nosso objeto de trabalho, é algo
próximo ao que Wittgenstein ensinou com os vocábulos: não há conteúdo ontológico também
nas propostas hermenêuticas. É a pragmática, o homem, senhor de suas condutas que fará uso
dos instrumentos que lhe são postos para alcançar resultados e conteúdos de responsabilidade
de suas ações.
264
Caso contrário, poder-se-ia destinar a mesma crítica ao formalismo descritivo que
tanto agrada esses mesmos autores. Afinal, foi com base no normativismo kelseniano que a
Corte Alemã conseguiu justificar muitos dos atos cometidos pelo regime do Führer durante o
III Reich. Ambas são técnicas interpretativas que, em si mesmas, não foram criadas com
intuitos totalitários, muito embora tenham sido utilizadas com esses fins.
Diferentemente do que afirmam alguns autores brasileiros, essas idéias surgidas na primeira década do século XX por si mesmas não constituem indício de totalitarismo, ainda que tenham sido posteriormente apropriadas pelo governo nazista alemão (que aliás se apropriou ou colonizou inúmeros outros institutos e idéias jurídicas preexistentes). (GODOI,2007, p. 258),
Noutro plano, há aqueles que temem um desfacelamento da segurança jurídica
enclausurada na observância estrita e gramatical dos termos utilizados exaustivamente pela
lei. É o velho retorno à tipicidade tributária dos modernos. Nesse sentido é que Machado
afirma que a adoção da prática interpretativa em tese configuraria “negar o Direito, afetando a
segurança que o mesmo empresta às relações humanas na sociedade.” (MACHADO, 2005, p.
124).
Ora, quanto a isso a argumentação prévia já apresentou todas as falhas incontornáveis.
Não mais possível tentar calcar a segurança jurídica em um estabelecimento dos conteúdos
legais por meio de uma descrição exauriente dos termos normativos. Não apenas é
insatisfatório constitucionalmente, como também indispõe de bases hermenêuticas fortes o
bastante. Basta voltar os olhos para os giros lingüístico e hermenêutico também trabalhados
neste capítulo páginas acima.
Pois bem, diante da inconsistência das críticas destinadas à interpretação econômica
proferidas pelos nossos tributaristas, poderíamos então afirmá-la o centro das soluções
interpretativas fiscais? A resposta é igualmente negativa.
A interpretação econômica, muito embora seja titular do mérito de tentar despachar a
unicidade interpretativa calcada em formalismos textuais presente nos textos legais, acaba por
cair no mesmo mal em que a técnica subsuntiva vem a falhar.
Assim como o positivismo antes criticado, a proposta ora em comento visa determinar,
de antemão, um único critério conteudístico de verificação como ordem interpretativa. Ao
declarar a única relevância dos resultados financeiros numericamente emanados dos dados
fáticos, este método de análise determina a resposta da construção interpretativa antes mesmo
de iniciada. Sob esta perspectiva, o resultado hermenêutico da interação sujeito/ente restaria
tão viciado por um sistema de antecipação de conteúdo, quanto a análise cartesiana!
265
Mister observar a impossibilidade de se erigir um único dado material para a
verificação da correção hermenêutica, afinal conforme se verá adiante, a legitimidade das
normas jurídicas perpassam por muitas outras searas que não a econômica! Caso contrário,
poderíamos meramente chamar nossos contadores e suas calculadoras, uma vez serem eles os
capazes de afirmar, numericamente, quais os impactos econômicos decorrentes dos fatos
jurídicos. Eles sim, seriam os únicos capacitados para proceder a uma hermenêutica tributária.
Mas este não é o único problema que impede a adoção da interpretação econômica.
Neste ponto da pesquisa, o leitor já é capaz de perceber que o fechamento das diversas
ciências em sistemas herméticos nada mais é que uma remanescência da postura científica
autosuficiente da filosofia da consciência. Com efeito, o isolamento em barreiras analíticas da
ciência apenas corrobora a expectativa de um conhecimento apartado e isolado, em
dissonância à realidade complexa em que desembocam todos esses sistemas. É o que
Luhmann (1990, p. 45) denomina de sistemas “black box”.
Nessa toada, a neutralidade do Direito, distanciado dos demais elementos políticos,
sociais, econômicos, etc., há muito enfrenta argumentações que desafiam, de forma
instransponível, a pureza dos métodos jurídicos.
Conforme leciona Luhman (1990)169, o sistema jurídico se mostra inevitavelmente
aberto cognitivamente aos demais sistemas existentes na sociedade, mantendo também uma
relação recíproca. Considerando que nenhum sistema consegue se firmar isolado de seu
ambiente, o Direito é “irritado” pela esfera econômica (bem como pela política, social, etc.),
recebendo desta as informações, questionamentos e pretensões de soluções aos problemas
econômicos que se ligam ao mundo jurídico. Nesse sentido, não há que se afirmar uma
atividade interpretativa tributária desconsiderando os impactos que as decisões causarão, tanto
no âmbito dos particulares, quanto na macroeconomia quando, p.e., do julgamento da
inconstitucionalidade de um tributo cobrado há vários anos.
169 É importante destacar o fato de que nossas reservas quanto ao pensamento de Kelsen e demais autores não se perde por uma aceitação acrítica do pensamento luhmanniano acerca da teoria dos sistemas. Temos ciência das diferenças de sua visão quando em comparação com a postura habermasiana que, muito embora também aceite a idéia de irritabilidade dos diversos sub-sistemas sociais, admite pontos ausentes à teoria de Luhmann, tal qual a abertura ao mundo da vida. “Entretanto, devemos deixar claro que Habermas rejeita parcialmente a concepção luhmaniana de sistemas, eis que, além de incluir os indivíduos nos mesmos, suporta a idéia de existir uma linguagem comum que subjaz aos pontos limites de diferenciação dos códigos especiais que é já e sempre requerida para se tratar com problemas sociais. Isso, por si só impede a manutenção da visão de sistemas autopoieticamente fechados, eis que se mantém abertos permanentemente para esta linguagem que é fornecida pelo mundo da vida” (CRUZ, 2007, p. 369). Não obstante, pensamos que a verticalização desnecessária em pontos hermenêuticos por demais específicos contribuirá não para o enriquecimento da obra, mas sim para o desinteresse do leitor tributário.
266
Todavia, ainda que se perceba de forma clara um diálogo entre os sistemas presentes
na sociedade em razão da abertura cognitiva antedita, tais sistemas mantêm uma clausura, um
fechamento operacional necessário para sua própria caracterização. Isso implica dizer que o
Direito, apesar de receber influências externas, detém uma auto-referenciação quando da
identificação de seus problemas bem como da estruturação de seu funcionamento. Assim, o
próprio sistema do Direito é que determina o que é lícito ou ilícito, em uma postura auto-
reprodutiva e conservando o código deontológico próprio que auxilia na delimitação de sua
identidade170.
A partir do momento em que algum sistema perde sua autopoiese, sua auto-
organização, ele se desnatura, tornando-se então submisso às dominações externas que, a
partir de então, passam a comandar o próprio funcionamento daquele. Uma eventual
intromissão excessiva dentro da esfera interna do sistema o corrompe, restando, assim,
desestruturado e sem a condução de suas operações pelo seu próprio código.
Com esta razão que Luhmann leciona que “sem a diferença em relação ao seu entorno,
nem sequer existiria a auto-referência, pois a diferença é a premissa para a função das
operações auto-referenciais. Neste sentido, a manutenção do limite (boundary maintance)
significa a manutenção do sistema.” (tradução nossa)171 (LUHMANN, 1990, p. 50-51).
E este é o caminho final para a interpretação econômica. Sua prática culmina em uma
determinação do que seja Direito, não em razão da linguagem jurídica que lhe é própria, mas
sim em razão de argumentos unicamente econômicos que passam a prevalecer sobre o código
binário jurídico. É o mesmo equívoco encontrado na utilização da ponderação de valores, que
realiza a intromissão excessiva do arsenal do sistema político sobre o sistema do Direito,
porém agora a subjugação do Direito se dá por meio de dados da economia! Não à toa, Cruz,
em sala de aula, argumenta que
Tanto a abertura que os subsistemas sociais devem ao mundo da vida quanto sua irritação pelo contato com elementos de outros subsistemas não devem conduzir à desnaturação de cada um deles. Assim, o Direito, como um subsistema social, deve simultaneamente, apreender os valores e a ideologia que permeiam o sistema político, mas não pode ceder à lógica utilitarista da técnica da ponderação de
170 Bem da verdade, Luhman, conforme leciona Chamon Junior, compreende que um sistema apenas adquire identidade quando é capaz de se distinguir dos demais: “E enquanto sistemas auto-referenciais esta característica ‘referencial’ deve ser entendida em termos de ‘descrição’, i.e., como uma descrição capaz de ser levada adiante em um dado contexto frente a outras possibilidades. É desta forma que o sistema constrói a si mesmo: se distinguindo dos demais, enfim, descrevendo a si mesmo como algo diferenciado do ambiente” (CHAMON JUNIOR, 2005, p. 83). 171 No original: “Sin la diferencia respecto al entorno ni siquiera existiría la autorreferencia, pues la diferencia es la premisa para la función de las operaciones autorreferenciales. En este sentido, el mantenimiento del limite (boundary maintenance) significa el mantenimiento del sistema”.
267
valores como método válido de interpretação de normas jurídicas. Da mesma forma, deve compreender a racionalidade instrumental dos dados e conceitos econômicos, mas não pode se amoldar também ao utilitarismo e discricionariedade da busca de resultados pela chamada interpretação econômica. Tanto em um caso quanto em outro, a conseqüência será a desnaturação do Direito e de sua pretensão emancipatória, eis que cede, ao agir estratégico e ao agir instrumental, inerentes à “ponderação de valores” e à “interpretação econômica”, que passam a prevalecer sobre os mecanismos de estabilização das pretensões sociais.
É por isso que, em companhia de Greco (2004, p. 151 e ss.), afirma-se nem a
interpretação descritiva da filosofia da consciência, nem a interpretação econômica. A
atividade hermenêutica implica em considerar fundamentos de segurança jurídica, impactos
econômicos, capacidade contributiva, efeitos indiretos dos tributos, enfim, o mais amplo
espectro de fundamentos argumentativos. Limitar as possibilidades discursivas e visões
construtivas do debate, elegendo um único elemento material é desestruturar a legitimidade
das normas democráticas.
Ora, mas se desconsiderada também a viabilidade da interpretação econômica como
método eficazmente utilizado para fins da nossa proposta hermenêutica tributária, estaríamos
então abandonados à carência de teorias hermenêuticas capazes de suprir nossa necessidade
interpretativa?
268
CAPÍTULO VIII – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E U M
PROCEDIMENTALISMO SUGERIDO
A análise hermenêutica realizada páginas atrás encontrou seu desfecho combatendo os
pressupostos filosóficos do positivismo. Com a evolução do pensamento epistêmico ao longo
do século XX, foi visto cair por terra a pretensão de uma racionalidade solipsista captar, com
a neutralidade cartesiana, o conteúdo normativo ontológico dos dispositivos legais.
É compreensível a busca por uma certeza matematizada do conhecimento científico, e
também jurídico. Por certo, temos todos a constante tendência de buscar a firmeza de bases
sólidas e científicas para amenizar as incertezas contingenciais da vida humana. Nossa própria
tradição histórica nos lançou a uma empreitada desta natureza.
Não obstante, compreendido, com Wittgenstein e Gadamer, a impossibilidade de se
lograr o engessamento do Direito em leis escritas, ou mesmo, a repetição absolutamente
equânime dos mesmos conteúdos legais ao longo do tempo ou espaço, indiferente ao
intérprete. Com isso, impossível também prever, com a exatidão imaginada pelos pensadores
modernos, as obrigações tributárias determinadas em legislações positivadas e descritivas por
intermédio do Poder Legislativo (tipicidade estrita).
Neste ponto, o leitor tributarista pode estar um tanto confuso. Estaremos então fadados
a uma insegurança jurídica propiciadora dos arbítrios que outrora ocorreram em razão da
ausência de dispositivos democráticos? Estaríamos aqui afirmando a inocuidade dos
instrumentos legislativos no que tange à construção legítima de um Estado regulado pelo
Direito? Obviamente não! Bem poder-se-ia afirmar justamente o contrário. A crítica
habermasiana a que aderimos no início deste trabalho e direcionada à ponderação de valores
de Alexy é, justamente, o reconhecimento do papel que a atividade legislativa detém em um
Estado democraticamente estruturado.
Durante todo o empreendimento pela censura às formas interpretativas da filosofia da
consciência, restou destacado que a segurança jurídica que se tem por inatingível é aquela
ligada à fixação dos conteúdos materiais presentes nas normas legais (exaurimento jurídico
pela tipicidade tributária). Entretanto, caso modificada a forma como pensamos o Direito,
bem como a relação Estado/cidadão, torna-se possível vislumbrar um novo paradigma que
permite tocar, com maior propriedade, a faceta democrática que deve embasar o Estado
contemporâneo. Não se encerrará este trabalho sem o esforço por sua comprovação.
269
Este é o ponto em que o debate hermenêutico converge para uma segunda questão
ainda suspensa nesta pesquisa. Sob o auspício de realizar uma análise segmentada,
primeiramente da relação entre a hermenêutica descritiva e os direitos fundamentais, para em
seguida avaliar a viabilidade filosófica daquela, optou-se por postergar o delineamento do
atual Estado Democrático de Direito, momento contemporâneo do constitucionalismo.
Já restou identificado o paradigma liberal, cuja prevalência do indivíduo face o Estado
– resultado de um repúdio ao absolutismo precedente – culminou na dominação e colonização
da sociedade pelo jogo dos economicamente fortalecidos. A inércia estatal, muito embora
tenha se fundamentado na preservação da liberdade individual, contribuiu para o próprio
cerceamento dos princípios liberais em razão da ausência dos pressupostos fáticos necessários
para o gozo dos mesmos.
Noutro ponto, o constitucionalismo social, diante do fracasso de seu antecessor,
primou pela forte presença estatal na vida social e econômica. Foi possível constatar um giro
de 180º em um refluxo das mazelas que o liberalismo propiciara. Dessa forma, o interesse
estatal ganhou nova feição, prevalecendo de forma marcante sobre os interesses privados –
nesse sentido, o pensamento hegeliano é bastante exemplificativo: caberia ao particular
qualquer sacrifício, mesmo de sua vida(!), para a satisfação do interesse público. Partindo
para um papel prestacional, o Estado assume obrigações de efetivação da justiça social, o que
lhe garantiu prioridade em todas as searas, dentre elas o Direito e a Economia.
Mas, também o Estado social não se livrou de riscos de uma desestruturação
democrática. A sobreposição dos valores e interesses estatais em detrimento das escolhas
privadas pode acarretar uma quebra na autonomia individual que, muito embora não deva
retornar ao propósito burguês, não pode ser olvidada sob pena de se desmantelar a própria
atuação democrática da sociedade. Não fosse bastante, mesmo as práticas sociais
assistencialistas, fundadas em um discurso efetivamente convincente, correm um risco de,
contrariamente ao seu objetivo, contribuir para uma retirada de seus beneficiados do debate
democrático. São problemáticas que inabilitam o Estado social de se manter vivo em uma
proposta de democracia.
Também os direitos fundamentais identificados nestes dois paradigmas
constitucionais, em conjunto com a terceira geração/dimensão de direitos consubstanciada nos
direitos difusos reconhecidos, pecam de forma grave. Em todas essas oportunidades, os
direitos fundamentais se mostraram como uma declaração de conteúdo ontológico, como se
descobertos prontos e acabados, cuja materialização de uma nova matéria representasse o
núcleo do Estado Constitucional daquele momento em diante. Ver-se-á, porém, que os
270
direitos fundamentais, em um Estado efetivamente democrático, detêm diferente acepção.
Além do mais, a concepção, então vigente, de segmentação no gozo dos direitos reconhecidos
em cada momento de forma distinta cai por terra. Afinal, conforme já ressaltado, a
indivisibilidade dos direitos fundamentais demonstra o quão impossível a fruição apartada de
direitos de uma geração sem a necessária garantia daqueles de geração diversa. Nessa toada,
como exercer direitos políticos sem a garantia de uma igualdade material no acesso à
educação? São todas temáticas que já foram tratadas (Cf. Cap. III).
Mas o que toda essa questão acerca da caracterização do Estado Democrático de
Direito e seus direitos fundamentais tem a ver com o debate hermenêutico que iniciou este
capítulo? Em realidade, tudo! Os moldes em que culminaram a formação e estruturação dos
Estados constitucionais anteriores são tributários, justamente, à forma como até então se
percebia e identificava o conteúdo jurídico e suas formas interpretativas. Assim, pode-se
afirmar, sem receios, que a teoria hermenêutica que envolve um dado momento constitucional
é capaz de influenciar, de forma marcante, tanto a construção dos princípios basilares do
Estado e sua relação com a sociedade, como também a própria visão acerca de seus
respectivos direitos fundamentais.
Em razão disso, para realizar um delineamento do Estado Democrático de Direito,
optamos por enveredar pela análise de uma nova hermenêutica jurídica. E com esse propósito
que aqui são lançadas as idéias de Jürgen Habermas, cujo projeto de uma teoria discursiva do
Direito é capaz de propiciar a construção e interpretação do sistema jurídico em consonância
com os giros lingüístico e hermenêutico que inabilitam o positivismo e a própria filosofia do
sujeito. Conforme se perceberá, o procedimentalismo discursivo culmina em uma revisão de
todos os elementos debatidos nos paradigmas anteriores, desde a relação entre Estado e
sociedade, passando à legitimidade dos conteúdos jurídicos, e chegando a uma nova
determinação do que sejam os direitos fundamentais democráticos. É, sem sobra de dúvida, a
estruturação de um novo “molde” de Estado – agora sim, Democrático de Direito – por meio
de uma proposta hermenêutica procedimentalista.
Um ponto, porém, cumpre ser ressaltado já no princípio desta empreitada. Todas as
argumentações que serão desenvolvidas no presente tópico podem ser transmutadas às mais
diversas disciplinas do Direito, não sendo exclusividade do sistema fiscal a necessária
adequação ao novo constitucionalismo procedimentalista. Se por um lado foi constatada, nos
paradigmas anteriores, a luta para a declaração de independência e autonomia dos diversos
ramos jurídicos – cujo ápice pode ser verificado na exaltação da codificação – a hermenêutica
do Estado Democrático de Direito caminha por outra trilha.
271
Não há que se falar em formas interpretativas exclusivas desta ou aquela área do
Direito, como se cada qual fosse marcada por peculiaridades próprias decorrentes dos bens
jurídicos que visa proteger. Mesmo porque não há, nem mesmo, a possibilidade de se
argumentar uma autonomia científica tal qual pretendido anteriormente. O sistema jurídico se
despede de sua ilustração como vasos estanques, e se reestrutura na forma de um grande bloco
dialógico entre suas disciplinas.
Este é argumento que reforça ainda mais o combate à manutenção da hermenêutica
clássica junto ao Direito Tributário. Assim, não há que se falar em um debate fiscal apartado
do Direito Constitucional, sob o fundamento dogmático de que o primeiro trata, com
exclusividade, de bens jurídicos imprescindíveis ao indivíduo. Objetivar o Direito Tributário
por meio de um raciocínio de tipicidade estrita em razão de sua “proteção à propriedade” é
ignorar o fato de que todos os ramos do Direito protegem a propriedade, liberdade, relações
entre particulares, etc – basta a lembrança da desapropriação no Direito Administrativo, ou
mesmo os direitos reais no Direito Civil. Por isso mesmo, visões inquestionáveis relativas a
cada disciplina jurídica perdem por completo qualquer sustentabilidade ante a complexidade e
amplitude dentro de um Estado Democrático. Por esta razão, as conclusões alcançadas no
debate que se segue não devem ser restringir a qualquer disciplina jurídica, mas sim, serem
compreendidas no bojo de todo o sistema jurídico. Que siga, então, o estudo do
constitucionalismo Democrático de Direito.
Habermas, cuja extensa pesquisa se corporifica em um sem número de obras,
acompanhou pessoalmente o desenvolvimento e derrocada do III Reich alemão, período em
que o formalismo jurídico e a reta razão acatados por Kelsen foram utilizados como forma de
legitimar, juridicamente, decisões de uma guerra marcada por campos de concentração,
genocídio e outras barbáries.
Diante disso, o autor percebeu que o desenvolvimento isolado de uma racionalidade
técnica autônoma, e a conseqüente validação do Direito esgotada na formalização pontuada,
não alcançava qualquer projeto de justiça, pois firmada unicamente no tecnicismo jurídico
desconectado das considerações morais e ético-políticas172. Habermas deixa claro que não se
172 “De outro lado, é possível afirmar que Habermas identificava o neopositivismo como manifestação da chamada razão instrumental que tanto atormentara os frankfurtianos. Uma razão que teria desumanizado a ciência por meio da imposição de um saber único, baseada no método matemático de descrição da natureza como algo dotado de causalidade, fundada na repetibilidade dos eventos naturais, mecânico, que esperava apenas a intervenção do intelecto humano para ser descrito por meio de leis universais e imutáveis. Para esse raciocínio, o conhecimento técnico estaria, de um lado, imunizando-se de qualquer controle democrático e, de outro lado, transformando as decisões de fundo ético, pragmático e moral, em questões subordinadas/dependentes apenas do conhecimento de especialistas. O primeiro problema de identifica com a época da teoria. A questão da tecnologia
272
pode eclipsar de forma absoluta as pretensões de construção de um Direito correto apenas
tendo por base a estabilização de expectativas. A segurança jurídica, não obstante seja um
princípio que permeia o cenário democrático – momento algum se pode olvidar –, trata-se de
apenas mais um elemento que compõe tal sistema.
Para preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do direito, os juízos emitidos têm que satisfazer simultaneamente às condições da aceitabilidade racional e da decisão consistente [...] o problema da racionalidade da jurisprudência consiste, pois, em saber como a aplicação de um direito contingente pode ser feita internamente e fundamentada racionalmente no plano externo, a fim de garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção. (HABERMAS, 2003, p. 246-247)
Ciente deste desafio, e consciente da insuficiência do solipsismo moderno ante as
complexidades e incertezas que obstaculizam determinações conclusivas anteriores a fatos
concretos, Habermas (2003, p. 19 e ss.) abandona a filosofia do sujeito – cuja razão prática
determinava condutas materiais a serem obedecidas – sem, porém, se despedir da
racionalidade, agora, de feição comunicativa e situada dentro do medium lingüístico. Por meio
da discursividade, da abertura à visão e contribuição alheia, todos os sujeitos de fala buscam
um entendimento não impositivo, um acordo racional intersubjetivo consubstanciado em
normas jurídicas aptas a reger os diversos projetos de vida que se submetem ao direito173. Eis
o grande salto dado pela adoção deste novo modelo de racionalidade: a negativa da
perspectiva kantiana de um sujeito singular auto-suficiente e onisciente alcançar acesso ao
conhecimento determinado e anterior ao intérprete, para uma racionalidade construtiva e
intersubjetiva em que o debate entre os atores livres é o substrato de formação dos
conteúdos jurídicos.
Não se trata mais da identificação de conteúdos prévios ditados por sujeitos
individuais (paradigma liberal), ou mesmo um macro sujeito superdimensionado (paradigma
nuclear ter sido desenvolvida sem qualquer acesso crítico da sociedade, fechada em gabinetes de cientistas militares, teria alterado significativamente a importância da razão instrumental, eis que a sobrevivência da raça humana estaria em jogo: um poder técnico insensibilizado pela racionalidade das formas de vida ético-culturais de uma dada sociedade, moldada por interesses objetivos irrefletidos e não devidamente depurados pelos valores democráticos, poderia agora, apagar da face da terra (sic) a humanidade” (CRUZ, 2006, p. 63-64) (grifos nossos). 173 Cruz deixa claro que Habermas não abandona completamente a razão prática, apenas deixa de considera-la auto-suficiente na busca de uma racionalidade. “Neste sentido, não há que se falar em uma substituição da razão prática pela razão comunicativa, eis que, para Habermas, a razão comunicativa não se coloca na antiga função clássica da razão prática, isso é, como fonte de produção de normas sociais, mas apenas como condição de possibilidade e validade para pretensões de validade em torno de tais normas. E, por outro lado, a razão prática não desaparece. No entanto, suas pretensões ficam muito mais modestas, vez que não opera mais como suporte direto para a legitimação do Direito e para a Moral, mas tão-somente como fio condutor para a construção e reconstrução dos discursos de racionalização e legitimação do poder” (CRUZ, 2007, p. 157-158).
273
social), ambos momentos constitucionais em que a autonomia dos particulares se curvou
frente às condições fáticas (liberal), ou o sufocamento por uma vontade supra-individual
(social). Com a atuação cidadã simultânea na destinação e formação da vontade política,
Habermas revê a segmentação das autonomias pública/privada e reorganiza a idéia de
autolegislação com a participação efetiva dos indivíduos na construção do conteúdo
normativo sem o encapsulamento do saber jurídico, que antes possibilitava uma dominação
política silenciosa.
Com o reconhecimento de uma eqüiprimordialidade entre as esferas pública e
privada, são esquecidas todas as velhas idéias antes ventiladas de submissão de um ator social
em benefício de outro. Conseqüentemente, também a oposição entre Estado e sociedade sofre
uma determinante desconstrução. E com isso, teorias como a elisão tributária fundamentada
na prevalência absoluta da autonomia da vontade individual em detrimento dos interesses do
Estado, ou ainda a concepção administrativista de mera submissão dos interesses dos
indivíduos aos interesses públicos, deixam de merecer crédito. Afinal, particular e Estado,
agora de mãos dadas, detêm não apenas a mesma importância, mas também (por que não
dizer?) os mesmos anseios174! Afinal a construção da vontade estatal passa pela atuação
participativa dos particulares envoltos em suas vontades, fazendo com que o diálogo entre
Estado e sociedade se torne intenso.
Quer-se tributar em busca de uma melhora social (p.e. CPMF175)? Pois bem
coloquemos as razões desta tributação em debate e vejamos se os objetivos lançados serão
atingidos por meio do instrumento proposto. Caso positivo, uma vez percebida a concordância
na argumentação desenvolvida em prol desta escolha política, também os particulares tomam
parte da decisão de uma tributação com vistas a uma otimização na prestação de serviços
públicos na área da saúde. A partir daí, não apenas o interesse público se volta à efetivação
desta tributação e sua correta aplicação no destino determinado (caso se trate de tributo
vinculado, obviamente), mas também os particulares, que debateram e elegeram esta, a
melhor escolha para a construção de um Estado Democrático por todos e para todos.
Obviamente, é possível que o Estado prefira manter à parte a participação popular na
formulação do Direito aplicada à comunidade. Por vezes, o debate acerca da tributação 174 É importante anotar que momento algum se pretende afirmar qualquer pretensão fantasiosa de que Fisco e contribuinte sempre estarão com uma visão romantizada em busca de um entendimento comum a todo o momento. É ingênua a pressuposição de que Habermas, ou mesmo nós, não tenha ciência de que, muitas das vezes, Estado e particular irão atuar de forma a buscar seus próprios interesses por meio do agir estratégico. Não obstante, a busca por um entendimento comum se mostra pressupostos para a própria integração social! Acerca das nuances e problemáticas envolvendo o agir comunicativo e agir estratégico, ver-se-á mais adiante. 175 Aqui se faz referência ao debate ocorrido ao longo do ano de 2007 acerca da prorrogação da contribuição incidente sobre movimentação financeira, que, ao final, não ocorreu.
274
seguirá, inversamente ao imaginado, o agir estratégico e ignorará por completo o debate
argumentativo que ora se faz alusão. É, sem dúvida, um constante risco. Mas, deve-se sempre
ter por certo que, com a construção jurídica determinada verticalmente (de cima para baixo)
viria, em conjunto, o risco de uma perda de legitimidade e de comprometimento da população
com as normas elaboradas sem sua atuação discursiva.
Enfim, aqui se fala de uma democracia genuína, em que os participantes e afetados
pelo Direito detêm a possibilidade de participar do debate acerca das normas que lhes irão
incidir.
Uma ordem jurídica é legítima na medida em que assegura a autonomia privada e a autonomia cidadã de seus membros, pois ambas são co-originárias; ao mesmo tempo, porém, ela deve sua legitimidade a formas de comunicação nas quais essa autonomia pode manifestar-se e comprovar-se. A chave da visão procedimental do direito consiste nisso. Uma vez que a garantia da autonomia privada através do direito formal se revelou insuficiente e dado que a regulação social através do direito, ao invés de reconstituir a autonomia privada, se transformou numa ameaça para ela, só resta como saída tematizar o nexo existente entre formas de comunicação que, ao emergirem, garantem a autonomia pública e a privada (HABERMAS, 2003b, p. 147)
Nessa trilha, o sistema jurídico deixa de determinar de antemão quais aspectos
materiais deverão ser marcados como fundamentais, para instituir mecanismos e
procedimentos de participação comunicativa e inclusiva na elaboração do Direito.
Apoiado nos ensinamentos de Freud e Kohlberg, Habermas identifica a sociedade
atual como dotada de uma moralidade pós-convencional176. Noutros termos, uma sociedade
que, mesmo possuidora de valores próprios, detém a capacidade de visualizar, avaliar e
questionar as regras, posicionamentos e tradições vigentes para a construção de um conteúdo
condizente com as fundamentações a serem apresentadas e aceitas pelos interlocutores.
Assim, é possível que os próprios cidadãos participativos colaborem no debate e
construção de um conteúdo normativo atento e relacionado (mas não submisso – basta
lembrar o embate Gadamer vs. Habermas) aos valores, tradições, percepções e visões da
176 “Na etapa pré-convencional da sociedade, a comunidade ainda não possui valores próprios, vez que as tradições/costumes ainda não se consolidaram [...] a fase convencional corresponde ao momento em que os valores éticos, religiosos, sociais políticos e econômicos já estão estabelecidos, firmando um status quo social [...] na etapa pós-convencional, os indivíduos, mesmo detentores de uma herança cultural, conseguem identificar os valores que formam sua identidade e passam a ter juízos de valor crítico sobre os mesmos, por meio do reconhecimento de direitos individuais e de princípios universais. Numa metáfora, poder-se-ia dizer que na moralidade pré-convencional o indivíduo está aprendendo as regras do jogo. Na etapa convencional, ele está apto a joga-lo. Finalmente, na fase pós-convencional ele se torna capaz de criticar tais regras” (CRUZ, 2006, p. 135-136).
275
sociedade. É banida a estrutura puramente coercitiva e impositiva que Weber177 identificava
no Direito, sem qualquer preocupação com a legitimidade de conteúdo, em benefício de um
sistema jurídico cuja base de validade está ligada à abertura a
diferentes posições metódicas (participante versus observador), a diferentes finalidade teóricas (explicação hermenêutica do sentido e análise conceitual versus descrição e explicação empírica), a diferentes perspectivas de papéis (o do juiz, do político, do legislador, do cliente e do cidadão) e a variados enfoques pragmáticos da pesquisa (hermenêuticos, críticos, analíticos, etc.) (HABERMAS, 2003, p. 23).
Segundo seu pensamento, uma ética discursiva/comunicacional, não apenas passaria a
situar a racionalidade no tempo/espaço, como daria abertura aos demais elementos externos à
reta-razão, sempre na esteira de uma postura cognoscitiva plurilateral. Daí o consenso
habermasiano em busca de um entendimento capaz de realizar a integração social
(MOREIRA, 2002, p. 111 e ss).
Uma vez pautado no mérito do melhor argumento, bem como na sinceridade178 de os
participantes se abrirem a fundamentações alheias pela sua força argumentativa, deságüa-se
em um consenso na perspectiva de uma não coercitividade na aceitação de posicionamentos
instituídos, e na construção jurídica de um entendimento intersubjetivo com bases na
fundamentação vencedora. Observe que aqui não se trata de uma abdicação de todo o caráter
sancionatório ou coativo do sistema do Direito. Após elaborado o conteúdo legítimo de uma
norma legal, esta se reveste de todo o aparato institucional que lhe é próprio, restando ao
indivíduo a obediência aos seus preceitos sob pena de sanções estabelecidas.
Todavia, em razão das diferenças de interesses, que não abandonam seus
interlocutores no debate argumentativo, por vezes, não será atingido pelos participantes um
consenso propriamente dito179. Nessa trilha, é factível imaginar que, em busca de uma solução
para o fim da “guerra fiscal”, os Estados não cheguem a uma decisão unânime acerca da
177 “Segundo Weber, o Estado de direito obtém sua legitimação, em última instância, não da forma democrática da formação política da vontade, mas somente de premissas do exercício da dominação política conforme ao direito – a saber, da estrutura abstrata das regras e leis, da autonomia da jurisdição, bem como da vinculação jurídica e da construção ‘racional’ da administração” (HABERMAS, 2003, p. 102). 178 Mais uma vez, é importante evitar um eventual equívoco em pensar Habermas como uma fantasia desprendida da realidade. A sinceridade habermasiana não significa uma pressuposição de que todos os envolvidos sempre estarão comprometidos a dizer unicamente a verdade em prol de um agir comunicativo. Desde já vale lembrar, o agir estratégico é não apenas lembrado, mas espera-se que ele esteja presente! A sinceridade que ora se faz alusão significa um comprometimento dos participantes em possibilitar argumentações alheias e estarem abertos às mesmas. Pressuposto este que, uma vez ausente, impossibilita qualquer forma de comunicação! Sobre o tema, ver-se-á mais adiante. 179 Diante dessas verificações é que se pode constatar que eventual crítica de que os habermasianos “fantasiam” uma realidade inexistente de modo algum procede! Ver-se-á que o pensamento de Habermas, não se embasa ou mesmo conclui uma sociedade metafísica onde todos os envolvidos participem rousseauneanamente em prol unicamente de um justo debate democrático, mas sim em atenção às contingências reais do mundo que nos cerca.
276
tributação inter-estadual. Afinal, nenhum deles admite perder receitas ou mecanismos de
incentivo a empresas e indústrias de suas regiões. Nesses casos, o princípio majoritário de
decisões se apresenta como um instrumento que não foge à tentativa de integração social. Não
obstante, ele deve vir acompanhado de dois outros elementos para não desnaturar a
democraticidade que busca Habermas: a “temporariedade”, consistente na possibilidade,
sempre presente, de serem revistas, pelos participantes, as decisões provisórias acerca do
tema; e “reciprocidade”, que implica a aceitação de que, os atuais vencedores devem se
também se submeter às mesmas regras, caso aja uma modificação do Direito determinado por
uma eventual reavaliação dos conteúdos precariamente firmados.
Não obstante, possibilitar um referido acordo racional necessita de certas “condições
ideais de fala” que devem estar presentes em qualquer âmbito discursivo para que este seja
permeado pela racionalidade, e não pela mera colonização do poder comunicativo sob o
manto do poder administrativo, hierárquico e financeiro.
O discurso pressupõe uma ‘situação ideal de fala’ que, sinteticamente, exige como pré-requisitos contrafactuais imanentes à própria linguagem: a simetria de posições e a igualdade na oportunidade de fala; a idéia subjacente de ego e alter ego (como pressuposto da diferença e do pluralismo); o médium lingüístico [supondo uma dimensão sintática (gramaticalmente adequada à compreensão), uma dimensão semântica (o entendimento das expressões) e uma dimensão pragmática[...]; ilimitação de tempo para se obter o acordo; e a sinceridade, ou seja, a crença naquilo que se fala e o intuito de levar o outro a uma decisão racionalmente motivada e a ausência de coação interna ou externa na execução do discurso. (CRUZ, 2006, p. 88)
Com isso, Habermas centra seu foco de pesquisa na garantia dessas condições
procedimentais que possibilitam um debate racional voltado para a busca de uma
regulamentação jurídica ampla e democrática. O direito escapa à mera obediência a um
procedimento formal, para buscar a aceitação dos cidadãos/destinatários da norma. O próprio
conceito de legitimidade jurídica cunhado pelo autor passa a abraçar tal abertura discursiva
em prol dos fundamentos de validade do Direito, ou seja, a aceitação não imposta dos
argumentos validativos do mesmo, sempre dispostos a uma reavaliação diante de novas
idéias, posições ou fundamentações. É de se perceber que sua legitimidade foge da
observância de conteúdos determinados aprioristicamente para se voltar à garantia de
procedimentos possibilitadores da participação discursiva dos afetados pela norma.
Trazendo todo este aparato teórico à proposta de construção democrática do direito,
Habermas consegue importar o “princípio do discurso”, que estabelece a validade normativa
277
pelo assentimento dos participantes, ao processo deliberativo-político, e assim, elaborar um
“princípio da democracia”180.
Em poucos termos, suas idéias podem ser esboçadas na máxima de que não é mais a
forma que legitima o direito, mas sim as razões de seu conteúdo anuídas pelos
envolvidos em um procedimento discursivo: “O direito não consegue seu sentido normativo
pleno per se através de sua forma, ou através de um conteúdo moral dado a priori, mas
através de um procedimento que instaura o direito, gerando legitimidade.” (HABERMAS,
2003, p. 172.).
Em sua acepção, a formação dos conteúdos normativos passa pela garantia de
instrumentos procedimentais que permitem a participação irrestrita e não-coercitiva de todos
os cidadãos no debate político. Neste procedimento deliberativo, a causa final que irá
legitimar o conteúdo das normas será o consentimento voluntário decorrente da força
argumentativa das fundamentações apresentadas pelos participantes na busca do
entendimento.
A partir daí, a norma legal, fruto deste procedimento, não estará gravada com a
imposição desmotivada de outrora, mas sim de uma carga democrática que lhe dará
legitimidade para condicionar os comportamentos sociais. Mais uma vez se ressalta como a
crítica ao positivismo não significa um repúdio à legislação!
Mas em que sentido a legitimidade surge da legalidade? À medida que a legalidade é, ao mesmo tempo, criação e reflexo da produção discursiva da opinião e da vontade dos membros de uma dada comunidade jurídica [...] Com o processo legislativo cercado por cuidados e prescrições em seus procedimentos, temos um fundamento legítimo que aponta para uma base de validade do Direito estatuído. Isto porque com a positivação do direito não temos a emanação de um poder arbitrário ou autoritário, ao invés, trata-se da manifestação de uma vontade legítima portadora de um poder que, em última instancia, emana do povo (MOREIRA, 2002, p. 161; 125).
Habermas constata que as teorias antes utilizadas para fundamentar o Direito se
desvirtuavam justamente de sua base de legitimidade por pecar de um mesmo mal: elas
180 “A idéia da autolegislação de cidadãos não pode, pois, ser deduzida da autolegislação moral de pessoas singulares. A autonomia tem que ser entendida de modo mais geral e neutro. Por isso introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A idéia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica.” (HABERMAS, 2003, p. 158). Neste ponto, Habermas aproveita para demonstrar sua desvinculação com o discurso kantiano de vinculação do Direito à moral. Para ele, o debate jurídico é deontologicamente neutro, ou seja, não está determinado pelos conteúdos morais anteriores ao sistema jurídico, podendo assumir quaisquer formas, desde que embasadas pela fundamentação argumentativa das razões de validade da norma.
278
retiravam da esfera do debate público o questionamento dos pressupostos de validade
normativa.
E de fato, o assim o era. O jusnaturalismo e jusracionalismo embasavam a fonte do
direito vigente em uma norma suprapositivada transcendental que, por ser anterior à
existência humana e intrínseca à sua natureza, não permitia avaliações de conteúdo. Isso se
torna claro nos pensadores contratualistas, que percebiam a força jurídica no pacto fundador
do Estado, portanto, externo e impermeável ao exercício da política (HABERMAS, 2003, p.
123 e ss.).
Da mesma forma, o positivismo, que pautava a expectativa de estabilização de
comportamentos por meio de um procedimento legislativo que, após concluído, tinha seu
conteúdo normativo sacralizado. Obstava, assim, o resgate de suas fundamentações, a não ser
por meio de outro instrumento legislativo formal181. Ou ainda, o viés schmittiano, que lançava
como dogmas as escolhas e decisões políticas do Füher corporificadas em instrumentos
normativos expedidos pelo Executivo.
Ora, se em busca da democraticidade esboçada na efetiva participação por meio do
poder comunicacional, e diante da transposição da legitimidade do Direito a uma
possibilidade de constante verificação dos fundamentos de validade das normas, Habermas
tenta justamente evitar o cerceamento discursivo antes presente nas teorias jurídicas modernas
e pré-modernas. Isso porque, seguindo suas premissas, tais restrições desmotivadas – seja em
termos de banimento de conteúdos, seja limitando os instrumentos procedimentais – são
capazes de desvirtuar o caráter democrático do Direito respectivo, e até mesmo o próprio
Estado Democrático de Direito. E tal não é de se estranhar, afinal, uma democracia de bases
sólidas pressupõe, justamente, a superação das visões não participativas que antes habitavam
o seio jurídico, e cujo conteúdo definido por uma minoria dominante apenas eram acessados
pela sociedade quando de sua aplicação.
Por isso mesmo, em despedida à neutralidade jurídica, ele identifica a presença de
argumentos morais (não-vinculantes, daí seu discurso deontologicamente neutro em
superação a Kant182), ético-políticos (autocompreensão da comunidade de vida compartilhada,
181 “De um lado, a garantia estatal da normatização do direito oferece um equivalente funcional para a estabilização de expectativas através de uma autoridade sagrada. Enquanto as instituições apoiadas em imagens de mundo fixam as convicções que comandam o comportamento através de limitações à comunicação, o direito moderno permite substituir convicções através de sanções, na medida em que libera os motivos que acompanham a obediência a regras, porém, impõe respeito. Em ambos os casos, evita-se uma desestabilização provocada por dissenso fundamentado, na medida em que os destinatários não podem questionar a validade das normas a serem seguidas.” (HABERMAS, 2003, p. 59) (grifos nossos). 182 “Entrementes, exatamente porque se trata de um princípio deontologicamente neutro é que se recusa a subordinação do Direito positivo ao Direito natural e, assim, há uma recusa da relação de complementaridade
279
com suas tradições, valores, etc.) e pragmáticos (ponderação e escolha de meios para atingir
fins já estabelecidos)183. A possibilidade de se levantar argumentos de todas essas gêneses
demonstra o salto da liberdade discursiva que encampa sua teoria.
Assim também se sucede com a interação entre os sistemas jurídicos e não-jurídicos.
Tal qual verificado quando da negação da interpretação econômica páginas atrás, a postura
seccionada dos diversos sistemas que compõem o mundo da vida os fazem perder a
sensibilidade para o complexo de problemas que aflige os demais. Dessa forma, os sistemas
fechados se tornam incapazes de resolver os anseios da sociedade emaranhada no ambiente de
todos os sistemas simultaneamente.
Mesmo apresentando algumas nuances diferenciadoras do pensamento luhmaniano184,
Habermas deixa clara a possibilidade de irritação da linguagem jurídica pelo diálogo com os
sistemas político, econômico, social, médico-científico, etc., desde que não haja a
sobreposição já atacada no capítulo anterior.
São questões e fundamentos que, ao longo do processo, serão filtrados e depurados
pelos mecanismos que o direito instrumentaliza.
Tal qual a necessidade de um amplo espaço para a problematização de conteúdos
morais, éticos, pragmáticos, e mesmo oriundos de outras esferas ou sistemas sociais,
entre as esferas da Moral e do Direito como a traçada nas Tanners Lectures [...] ao distanciar-se da normatividade de um mandamento moral, a razão comunicativa vai poder estabelecer-se a partir de um princípio do discurso neutro do ponto de vista de uma validade deontológica, ou seja o princípio do discurso é deontologicamente neutro. Essa neutralidade deontológica vai ser o fio condutor que permitirá a Habermas estabelecer uma Filosofia do Direito distinta da kantiana, visto que a relação entre Direito e Moral se dá de modo co-originário [...] mas em que medida as normas jurídicas e as normas morais não co-originárias? Quando uma não é legisladora para a outra. E isso quer dizer que não se pode buscar o fundamento de uma apelando para a normatividade da outra.” (MOREIRA, 2002, p. 138; 141; 148). 183 De forma resumida, Habermas explica que “em primeiro lugar, as deliberações servem para a ponderação e o discernimento de fins coletivos, bem como para a construção e a escolha de estratégias de ação apropriadas à obtenção desses fins; em segundo lugar, o horizonte de orientações axiológicas, no qual se colocam essas tarefas de escolha e de realização de fins, pode ser introduzido no processo de formação racional da vontade pelo caminho de um auto-entendimento que se apropria de tradições. Em discursos pragmáticos, nós examinamos se as estratégias de ação são adequadas a um fim, pressupondo que nós sabemos o que queremos. Em discursos ético-políticos, nós nos certificamos de uma configuração de valores sob o pressuposto de que nós ainda não sabemos o que queremos realmente.” (HABERMAS,2003, p. 202) 184 “Entretanto, devemos deixar claro que Habermas rejeita parcialmente a concepção luhmaniana de sistemas, eis que, além de incluir os indivíduos nos mesmos, suporta a idéia de existir uma linguagem comum que subjaz aos pontos limites de diferenciação dos códigos especiais que é já e sempre requerida para se tratar com problemas sociais. Isso, por si só impede a manutenção da visão de sistemas autopoieticamente fechados, eis que se mantém abertos permanentemente para esta linguagem que é fornecida pelo mundo da vida. Isso permite, por exemplo, que, de um lado, o Direito possa ainda garantir sua linguagem própria de lidar com as expectativas de comportamento, respondendo a todas com um sim ou com um não e, de outro lado, incorpore aos processos institucionalizados de formação de vontade e opinião de contribuições oriundas dos contextos informais de comunicação encontrados nesse mundo da vida.” (CRUZ, 2007, p.369)
.
280
Habermas se concentra também na amplitude procedimental no que tange às oportunidades
de fala dentro dos debates argumentativos.
Nessa trilha, para que se perceba a concretização da faceta democrática, deve haver
um processo de institucionalização desta produção observando dois pontos.
O primeiro é a ampla liberdade comunicativa, em simetria de posições entre os
participantes, não coercitividade, bem como demais condições ideais de fala. Isso significa,
no âmbito da discursividade, a irrestrição argumentativa dos membros na formulação das
normas jurídicas a serem institucionalizadas. Quanto a isso, já tratado.
A segunda questão a ser observada encontra-se ligada à correição procedimental, que
deve dar ares de institucionalização às vontades democraticamente formuladas.
Mister atentar que, uma vez legitimar-se a norma legal em seus fundamentos racional-
argumentativos, a possibilidade de correção de eventuais injustiças presentes naquelas se
mostra inevitável, sob pena de sacralização do Direito, ainda que de origem discursiva.
Ademais, argumentos, aqui considerados como razões resgatadas por meio do discurso,
nunca podem ser cogentes, impositivos, e assim, não indicam um ponto final ao consenso
momentâneo. Caso contrário, Habermas estaria a negar suas próprias bases!
A aceitação da falibilidade das verdades provisórias culmina, justamente, no resgate
argumentativo das fundamentações racionais da norma. Estando a legitimidade do Direito
vinculada a tais razões, as pretensões de validade normativa apenas se sustentam enquanto
seus argumentos forem convincentes, argumentos esses que podem ser questionados a
qualquer momento. Qualquer problematização envolvendo o convencimento que antes
possibilitou a construção do Direito suspende sua aceitação para se (re)verificar em que pé se
encontra o entendimento acerca do mesmo. Dessa forma, Habermas reconhece que a
legitimidade deve carregar consigo a constante possibilidade de revogabilidade, ou de
reconstrução do entendimento acerca da materialidade jurídica presente nas normas
positivadas.
Em exemplificação, poder-se-ia tomar, mais uma vez, a situação da imunidade
tributária em benefício de livros e periódicos prevista no art. 150, VI, “d” da CF/88.
A força deste dispositivo reside, segundo a teoria em comento, no entendimento
intersubjetivamente buscado pelas partes envolvidas e convencidas das razões que
fundamentam o conteúdo constitucional. Em um procedimento jurisdicional em que se esteja
debatendo a imunidade tributária dos livros eletrônicos, tem-se a possibilidade de resgatar as
razões validativas da norma.
281
Nesse caso, é plausível imaginar que, após a problematização e o embate discursivo
entre os participantes, haja a percepção de que a disseminação da cultura e educação é um dos
objetivos que a sociedade visa alcançar, além de ser um pressuposto para a participação ampla
e consciente no debate deliberativo. Dessa forma, sendo essas as razões que fundamentam a
própria norma, seu conteúdo também deve abarcar a imunidade dos livros eletrônicos, que
demonstram as mesmas características dos livros impressos quanto às razões ora aludidas. Daí
a reconstrução ou a reformulação do entendimento – e conseqüentemente, da substância
jurídica – acerca do dispositivo constitucional. Reparem como o texto positivado deixa de ser
ponto de chegada, para ser ponto de partida e objeto de debate!
Eis uma possibilidade de construção do conteúdo jurídico condizente, tanto com os
giros lingüístico e hermenêutico, quanto à constante observância da vontade popular,
verdadeira fonte do poder instituído.
8.1 Falácias procedimentalistas?
Em que pese toda a robusta força teórica que as presentes idéias denotam, não se pode
ignorar a não unanimidade das mesmas como uma resposta alternativa à hermenêutica
positivista já tida por caquética.
Nesse sentido, poder-se-ia argumentar, em combate à teoria habermasiana, sua
possibilidade de aplicação apenas em países que já avançaram pelo Estado social, tal qual a
Alemanha, berço do filósofo em destaque. Entretanto, em países em desenvolvimento, com
números de desigualdade tão expressivos como o Brasil, pretensões tais como simetria de
posições, médium lingüístico ou consciência discursiva são elementos formais que não
encontram correspondentes fáticos. Afinal, como afirmar a autonomia comunicacional
daqueles que não detêm as condições mínimas de subsistência? Para esses autores, o Estado
social é uma etapa ainda não vivenciada pelo Brasil, daí a impossibilidade de se trabalhar uma
superação de seus ideais prestacionais. (STRECK, 2004, p.174 e ss.).
Deve-se compreender, porém, que Habermas não trata de condições a serem atingidas
no Brasil, Angola, Dinamarca, Suécia, Alemanha ou qualquer lugar que o seja. Seu estudo
aborda, em realidade, condições necessárias a toda e qualquer comunicação humana, não
importa as peculiaridades do país ou se seus índices de desenvolvimento social.
282
Ademais, somente por meio da possibilidade de participação dessas pessoas
aparentemente fora do discurso, será possível revirar o status quo social e democrático para
atingir as melhoras a que seus críticos fazem reverência! Caso contrário, perpetrando o Estado
em uma oferta não planejada de serviços assistenciais, nunca se trará à baila a posição e
vontade dos próprios afetados ou “beneficiados” pelos programas sociais estatais,
permanecendo à margem de uma dominação silenciosa por parte dos detentores de poder
(CRUZ, 2006, p.173 e ss).
Além do mais, o raciocínio que encampa o entendimento de que o Brasil não detém os
índices e elementos sociais necessários para a construção de uma estrutura democrática e
participativa de toda a população deságua em uma solução comunitarista um tanto
problemática e já vista no início desta pesquisa: considerando a prevalência do Legislativo
quando do Estado Liberal, do Executivo quando do Social, no Estado Democrático de Direito,
caberia ao Poder Judiciário fugir das amarras do formalismo jurídico e atuar de forma
presente na sociedade para garantir a justiça social e efetivar os direitos cidadãos!
Neste caminho, já apresentada a teoria da ponderação de valores como uma superação
do positivismo descritivo aqui tanto combatido. Sua robustez teórica, quando em confronto
com a concepção de tipicidade que inunda nossa doutrina é infinitamente superior, não à toa,
Ávila (2006, p.93 e ss.) se mostra fiel seguidor de seus ensinamentos.
Esta corrente hermenêutica, desenvolvida por Alexy, repudiou a utopia positivista e
adotou uma postura principiológica, colocando essas espécies normativas em conjunto com as
regras escritas dentro do ordenamento jurídico.
Juntamente a isso, percebeu a importância do aspecto dialógico no processo de decisão
judicial, e portanto, de construção do Direito. Nessa tarefa, ele identificou certas regras
básicas185 que, juntamente com a racionalidade argumentativa, dariam às pessoas a liberdade
de argumentação para demonstrar suas razões e sua opinião acerca do tema em debate. Esse
185 “A validade do primeiro grupo de regras é uma condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que dá origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção: (1.5) Nenhum orador pode se contradizer. (1.6) Todo orador apenas pode afirmar aquilo em que crê. (1.7) Todo orador que aplique um predicado F a um objeto tem de estar preparado para aplicar F a todo
objeto que seja semelhante a ‘a’ em todos os aspectos importantes. (1.8) Diferentes oradores podem não usar a mesma expressão com diferentes significados.” (ALEXY, 2001,
p. 187) Não obstante, Alexy percebia que não bastavam as regras básicas. Necessária ainda a observância da regra de racionalidade, que implicava que ao pronunciar seus posicionamentos, o orador deveria justificar racionalmente para que outros participantes pudessem contestar suas justificativas: “todo orador tem de dar razões para o que afirma quando lhe pedem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que justifiquem uma recusa em dar uma justificação. Esta regra pode ser chamada de ‘regra geral de justificação’” (ALEXY, 2001. p.190).
283
espaço argumentativo seria, para Alexy, a forma de controlar o subjetivismo potencialmente
arbitrário do julgador.
Entretanto, Alexy se apóia em pontos um tanto criticáveis.
Uma primeira questão a se anotar é a frágil distinção entre princípios e regras em que
o autor insiste em se apoiar. Muito embora o reconhecimento principiológico seja, de fato,
uma superação necessária ao cenário formalista em que se encontravam as nações européias,
trabalhar distintamente princípios e regras, e conservar a essas últimas o mesmo tratamento
cerceador à atividade hermenêutica é “dar um passo” além do fracasso positivista, sem,
porém, “levar consigo o resto do corpo”.
Ora, uma vez identificada a falácia dos pressupostos interpretativos que sugerem uma
“aplicação cerrada” dos textos legais, ou mesmo, um maior conteúdo jurídico “inserido” na
norma jurídica, não há que se falar em regras escritas detentoras de menor exigência
interpretativa do que os princípios, como se os últimos fossem “mais abstratos” ou “abertos”.
Espera-se já restar suficientemente claro: toda e qualquer atividade humana irá deflagrar uma
necessária interação hermenêutica entre objeto e intérprete. Daí se concluir pela, sempre
imprescindível, construção interpretativa em que deve se adentrar o jurista em todo e qualquer
caso. Essa é a lição que Gadamer lecionou e que foi vista no capítulo anterior!
Cruz (2007, p. 269 e ss.), ciente do giro hermenêutico que ora se alude, inova com sua
doutrina e dispensa por completo as distinções existentes entre princípios e regras jurídicas.
Compreendendo ambas as espécies em uma única e indissociável classificação de “normas
jurídicas”, o autor demonstra como os princípios e as regras escritas dependem, igualmente,
da atividade interpretativa que Alexy privava às últimas.
Ademais, Alexy parece admitir, durante a lide jurisdicional, qualquer espécie de
argumentação, seja de ordem jurídica, seja de ordem política – fundamentações utilizadas no
momento de elaboração da norma, e, portanto, representativos das escolhas pragmáticas
políticas de um corpo legislativo eleito para tanto. Nesse sentido, ignora Alexy a distinção
realizada por Günther (2004) e Habermas acerca dos discursos de fundamentação (escolhas
políticas) e de aplicação (fundamentação principiológica presente no momento
jurisdicional)186.
186 “Em discursos de aplicação não se trata da validade e sim da relação adequada da norma à situação...certamente, os passos complexos de uma interpretação construtiva não se deixam normatizar processualmente; porém eles subjazem ao controle da racionalidade processual de um discurso de aplicação institucionalizado juridicamente. Em todo caso, a jurisdição constitucional que parte do caso concreto está limitada à aplicação de normas (constitucionais) pressupostas como válidas; por isso a distinção entre discursos de aplicação de normas e discursos de fundamentação de normas oferece, mesmo assim, um critério lógico argumentativo de delimitação de tarefas legitimadoras da justiça e da legislação” (HABERMAS, 2003 p. 270;
284
Não fosse suficiente, o resultado derivado do debate jurisdicional recheado de
argumentos típicos do momento de elaboração normativa, e aplicado a um caso concreto,
poderiam ser estendidos aos demais. Com isso, o julgador passa a ingerir na esfera destinada
ao Poder Legislativo, mitigando a separação dos poderes necessária para o Estado
democrático.
Além do mais, quando em análise um aparente conflito de princípios constitucionais
(e apesar de tentar diferenciar princípios – caráter deontológico – e valores – axiológico187)
Alexy acaba por adotar uma postura axiológica mesmo em relação aos princípios jurídicos
(HABERMAS, 2003 p. 314 e ss.).
Isso porque o autor concebe a aplicação dos mesmos tanto quanto possível, desde
que observadas suas regras para a ponderação de valores alexyana: adequação dos meios
escolhidos pela norma aos objetivos colimados; necessidade de escolha da medida menos
onerosa; e ponderação em sentido estrito, consistente na própria noção de otimização
principiológica, o custo/benefício entre a prevalência de um princípio ou outro (ALEXY,
1997, p.112): “do conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma questão
de tudo ou nada, mas sim uma tarefa de otimização” (tradução nossa)188 (ALEXY, 1997,
p.166).
Reparem como Alexy, em sua construção teórica, cai na desnaturação do sistema
jurídico pelo político, permitindo que uma análise tipicamente reservada pra os debates
legislativos e deliberativos invada o âmbito do sistema jurisdicional que, a princípio, não
detém tal legitimação democrática. É nesse sentido que se afirma, categoricamente, a
impossibilidade de se direcionar, unilateralmente aos magistrados, a titularidade reconstrutiva
dos direitos responsáveis por reger a coletividade, conseqüência direta do pensamento
323-324). Souza Cruz nos brinda com exemplo interessante acerca do debate entre a distinção necessária entre esses dois momentos da construção do Direito. “um exemplo vem, pois, a calhar: de uma forma geral, ninguém é contra o princípio da igualdade ou contra ações de inclusão social para pessoas mais carentes. Pergunte a qualquer um (sic) verá! Contudo, a questão ganha nova coloração quando a mesma é posta em um discurso de aplicação, tal como quando se está diante de um caso no qual um representante de alguma minoria pretere alguém (com nome, CPF, carteira de identidade, etc) no ingresso de um curso de ensino superior a coisa muda de figura. Ou seja, a argumentação que envolverá a legitimidade da decisão no discurso de justificação é distinta daquela que se emprega em um discurso de aplicação” (CRUZ, 2007 p. 193) É de se notar, porém, que Habermas dá um passo adiante à proposta de Günther, pois a relaciona com a perspectiva dworkiana de distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política (CRUZ, 2007, p. 223). 187 “El modelo de los principios y el modelo de los valores han demonstrado ser esencialmetne iguales por lo que respecta a su estructura, com la diferencia de que el uno debe ser ubicado en el ámbito deontológico (el âmbito del deber ser) y el outro em el ámbito axiológico ( el âmbito de lo bueno)” (ALEXY,1997, p. 147) . 188 No original: “...del concepto de principio resulta que en la ponderación no se trata de uma cuestión de todo o-todo-o-nada, sino uma tarea de optimización.”
285
valorativo alexyano. É a própria coletividade quem deve fazê-lo. Esta é a própria base do
pensamento do Estado Democrático de Direito!
Importante se atentar para o alerta realizado por Cruz:
Ao vislumbrar uma divisão discursiva dos poderes, nosso autor se afasta tanto das visões clássicas de Montesquieu e Locke quanto do normativismo kelseniano, que procura indiferenciar a forma de produção normativa. Assim, impõe limites à Jurisdição, cônscio de que qualquer poder, que se julga absoluto, tiraniza absolutamente. E a ‘liberdade’ que os magistrados ganham pela ponderação de valores se dá pela subtração da liberdade/autonomia de cada um de nós. (CRUZ, 2006, p. 240) (grifos nossos).
No que tange tais tentativas críticas de se desacreditar o procedimentalismo por meio
da ausência de condições materiais e sociais propiciadoras da consciência e consistência
discursiva e participativa, fazem escola as palavras de Bonavides:
Àqueles, portanto, que levantam e repetem o velho refrão de que não se acha o País aparelhado para a democracia [...] deve-se responder como respondeu Lord Russel, o reformista do liberalismo inglês à pervicácia dos seus opositores: ‘ quando ouço falar que um povo não está bastantemente preparado para a democracia, pergunto se haverá algum homem bastantemente preparado para ser déspota’ (BONAVIDES, 1996, p. 21)
Guardadas as proporções, o mesmo questionamento pode ser aferido aqui. Será que
nossos magistrados nasceram com a qualificação necessária para deter o poder de efetivação
dos direitos impondo a toda a sociedade suas escolhas e valores em uma ingerência direta às
opções políticas realizadas pelo corpo de parlamentares democraticamente eleito?
Recentemente, Alexy tentou se desvencilhar das censuras dirigidas ao seu método
ponderativo em dois artigos, traduzidos e compilados no livro “Constitucionalismo
discursivo” (2007). Em sua defesa, Alexy (2007, p. 112 e ss.) relembra uma lide decidida pela
Suprema Corte Alemã em que a revista “Titanic” referira-se a um oficial da reserva como
“aleijado” em um claro conflito principiológico entre “liberdade de expressão” e
“personalidade”. Considerando que a Corte confirmou o resultado do julgamento em primeira
instância por meio da utilização de seu método, compreendendo a ofensa como “grave” – o
que permitiria a indenização pleiteada – Alexy argumenta que não houve uma imposição
subjetiva das vontades e valores dos magistrados. Afinal, duas vezes se alcançou a mesma
conclusão fundamentada acerca do caso concreto, o que demonstraria suas bases de
racionalidade. Juntamente a isso, a elaboração de uma fórmula hermenêutica para a
286
verificação dos “pesos” de cada princípio dentro de um caso concreto seria suficiente para
corroborar a mesma racionalidade apontada.
Ora, a mera verificação de confirmação de resultados não implica em uma definitiva
aferição de racionalidade dos métodos empregados (Ferraz, 2007, p.149). Além do mais, isso
não exime a ponderação de valores utilizada de sua principal crítica: a valoração axiológica de
princípios constitucionais colidentes e sua aplicação em virtude dos “pesos” que cada qual
apresenta no caso concreto. Pensar a jurisdição de tal forma é pressupor uma homogeneização
de valores e interesses em uma sociedade que, em realidade, se mostra multifacetária e
composta de inúmeros projetos de vida boa. Tanto o é que, na mesma lide, o aludido oficial
fora também referido pela revista como “nascido-assassino”, o que no entendimento da Corte
Alemã não poderia ser considerado uma intervenção grave o suficiente para acarretar uma
indenização. Pois bem, como questiona Ferraz (2007, p. 149) “quem pode dizer, com
segurança, que ‘nascido-assassino’ é uma intervenção leve e ‘aleijado’ é uma intervenção
grave ou gravíssima?”.
Ademais, ao elaborar sua “fórmula-peso”189 como resposta às decisões jurisdicionais,
Alexy se situa, sem perceber, na filosofia da consciência e na pré-determinação metodológica
há muito banida pelo giro hermenêutico gadameriano. Em um aparente retrocesso
hermenêutico, Alexy (2007, p. 149) chega a descrever matematicamente como se daria
referida equação principiológica190:
I i x G i
G i, j = ------------ I j x G j
Ora, já visto e concluído que a transposição de uma lógica metódica e matemática à
construção de um juízo normativo é tão absurda quanto a tentativa de se aplicar as leis da
física às lides jurisdicionais. A revisão das precisões cartesianas dos métodos pretensamente
garantidores da racionalidade moderna sucumbiu frente a hermenêutica que Gadamer
demonstrou inexistir previamente ao caso concreto. Vale sempre lembrar que o Direito se
189 “Uma relação forma o núcleo da ponderação, a qual, quando se trata de direitos fundamentais como direitos de defesa, pode ser descrita como relação ‘entre a gravidade da intervenção e o peso dos fundamentos que a justificam’. Uma primeira visão na qualidade dessa relação permite uma fórmula quanto-tanto, que se encontra com freqüência, que pode ser designada como ‘lei de ponderação’, e, que abrange igualmente defesa como proteção, formulada como se segue: quanto mais alto é o frau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro” (ALEXY, 2007, p. 82-83). 190 Pela fórmula alexyana, Gi,j representaria o peso concreto do princípio Pi relativamente ao princípio Pj; Ii e Ij representam, respectivamente, a intensidade de intervenção dos princípios “i” e “j”, e Gi e Gj, respectivamente, o peso abstrato dos princípios “i” e “j”. (Cf. ALEXY, 2007, p. 137-148).
287
mostra como um produto da construção incessante e participativa dos envolvidos e afetados
pelas normas, e não uma valoração de medidas e pesos dos princípios por parte de uma elite
magistrada apoiada em fórmulas de exatidão jurídica.
Em continuidade, não procedem, no mesmo esteio, as críticas que, ligadas à
argumentação comunitarista, vêem as condições ideais de fala próximas ao idealismo
platônico transcendental, e por isso, metafísicas.
Cruz, aproveitando os ensinamentos apelianos, demonstra, de forma cabal, como
qualquer tentativa de argumentação passa pela necessária pressuposição da existência das
ditas condições ideais de fala. Mesmo quando se tenta argumentar contrariamente à presença
das mesmas no âmbito argumentativo, pois nenhuma forma de comunicação genuína
consegue sucesso sem tais garantias procedimentais. Daí podermos utilizar a menos
problemática denominação “condições contrafactuais de fala”.
Observe: o cético afirma que a ‘situaçao ideal de fala’ (ou U) não existe. Ora, quem o faz, buscando com isso provar a outrem que diz a verdade, de certo admite que o ouvinte, em condições de igualdade para consigo mesmo, possa contestá-lo. E tal afirmativa pressupõe um médium lingüístico que permite a comunicação ente eles. de certo, está implícita no seu raciocínio a sinceridade na veracidade da assertiva que faz e que se dispõe a sustentar. E, absolutamente não pretende convencer o outro por qualquer forma de coação, senão pela força do melhor argumento. Por conseguinte, sem perceber, o cético cai em contradição performativa e dá azo à fundamentação justamente daquilo que pretendia contestar [...] pois o cético não percebe que ‘diz algo fazendo exatamente o contrário’. (CRUZ, 2007, p. 107-108)
Seguindo nesta esteira, não detém sustentabilidade a censura no sentido de que
Habermas se esquece das contingências mundanas quando pressupõe uma participação
ingênua dos indivíduos nos processos discursivos, quando que, em realidade, todos o fazem,
imbuídos unicamente de seus interesses pessoais, o que viria a implicar destruição à
“sinceridade”, elemento presente nas condições ideais (ou contrafactuais) de fala.
Inicialmente, cumpre anotar que é igualmente ingênua a concepção de que todas as
pessoas fazem uso ininterrupto do agir orientado por vantagens próprias. Caso assim o fosse,
a própria estruturação social que hoje se conhece se apresentaria um projeto inalcançável – o
agir comunicativo pelo entendimento é elemento de integração social –, devendo todos
retornarem ao Estado hobbesiano com a única função de proteger o homem de seus iguais.
Além do mais, Habermas não ignora o fato de que, muitas das vezes, os participantes
não se inserem no debate em busca de um entendimento não coercitivo, mas sim no rastro de
satisfações próprias em virtude do poder financeiro ou administrativo. Nesses casos, os
agentes dispensam o agir comunicativo, e fazem uso do agir estratégico, manipulando as
288
regras do direito em virtude de suas pretensões. Quando assim ocorre, p.e., no processo
político deliberativo, não se parte para um consenso não coercitivo, mas para uma
“negociação”, um pacto de compensação de interesses.
Não obstante, para o agente fazer uso de seu agir estratégico, ele acaba por depender
da existência do próprio agir comunicativo e das regras do debate. Afinal, ele precisa crer que
o outro participante envolvido está suficientemente em busca de um entendimento ao ponto de
aceitar as argumentações daquele, ainda que dirigidas a fins pessoais. Neste momento, o
“sujeito estratégico” acaba por depender da “sinceridade” habermasiana, vista aqui não como
a ingenuidade ou crença de que todos estão a falar a absoluta verdade, mas sim que os
envolvidos estão aptos à receptividade e à procura de um entendimento comum.
...sempre que a orientação pelo sucesso e a orientação pelo entendimento chegam a formar uma alternativa completa aos olhos dos sujeitos agentes, a regulamentação intersubjetivamente obrigatória de interações estratégicas precisa fazer jus a duas condições contraditórias, as quais não podem ser preenchidas simultaneamente na ótica dos atores. Tais regras representam, de um lado, delimitações factuais que modificam de tal forma o leque de dados, que o ator, no enfoque de alguém que age estrategicamente, sente-se obrigado a adaptar objetivamente seu comportamento à linha desejada; de outro lado, elas precisam desenvolver, ao mesmo tempo, uma força social integradora, na medida em que elas impõe obrigações aos destinatários, o que só é possível, segundo nosso pressuposto, na base de pretensões normativas reconhecidas intersubjetivamente (HABERMAS, 2003, p. 47) (grifos nossos)
Ademais, não se está a propor um debate ausente de qualquer contexto
jurisdicionalizado. Antes pelo contrário! Os embates argumentativos que irão determinar os
caminhos que o Direito deve perquirir serão envoltos em procedimentos judiciais e
administrativos em que as partes terão oportunidade de fala para expor suas razões. Nesses
termos, para um controle de argumentações estratégicas (que invariavelmente estarão
presentes no discurso jurídico!) todos essas questões serão depuradas ao longo do processo.
Nessa trilha, em um procedimento de cunho fiscal, a fundamentação perpetrada pelo
Fisco geralmente virá em busca de uma visão estrategicamente voltada para o
constitucionalismo social e a necessidade de angariação de tributos para se promover a
“justiça social” e a “prestação de serviços públicos” a toda a sociedade.
Noutro ponto, a defesa realizada pelo contribuinte esbarrará, provavelmente, na idéia
de que a tributação excessiva impede a livre condução da iniciativa privada, e a literalidade
das descrições tipificantes deve ser obedecida sob pena de que a insegurança jurídica se abata
no cenário social e, com isso, seja instaurada a balburdia no Direito. Argumentos, obviamente
ligados ao paradigma liberal de proteção à propriedade privada.
289
Ora, mas como então saber quais dessas razões devem ser efetivamente consideradas
como parte de um agir comunicativo que irá culminar na decisão correta habermasiana?
Caberá ao processo administrativo e judicial observar e depurar a argumentação estratégica
das partes, e diante dos demais dados fáticos do caso concreto, realizar a depuração, a
filtragem dos fundamentos apresentados, e assim, buscar a resposta correta para a questão em
análise. Não serão desconsiderados os argumentos estratégicos embasados por interesses
individuais no seio da argumentação jurisdicional. Pelo contrário, sua presença é até mesmo
esperada! Ocorre, porém, que os processos administrativos e judiciais devem apresentar
mecanismos de identificação e depuração/filtragem dos mesmos. Caso contrário, os
oposicionistas a Habermas deteriam razão em sua crítica relativa à ingenuidade conceitual do
agir comunicativo na esfera jurídica.
Exemplo elucidativo acerca da procedimentalização na seara fiscal se apresenta na
análise do chamado “lançamento por arbitramento” constante no art. 148 do CTN, onde se lê
que
Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial (grifos nossos)
Nas hipóteses previstas no lançamento por arbitramento é possível a verificação de
uma séria de elementos ligados ao procedimentalismo aludido. Inicialmente, é superada a
visão de preponderância de qualquer das esferas, pública ou privada. As declarações
particulares não gozam, aqui, de qualquer supremacia frente aos interesses públicos. Tanto o é
que, uma vez entendida a insuficiência ou inidoneidade das mesmas, o Fisco poderá
desconsiderá-las e arbitrar a base de cálculo correspondente. Tampouco se cai na
discricionariedade executiva pensada por Schmitt, em que o chefe de Estado poderia lançar
diretrizes com força de lei e assim conformar os comportamentos estatais justificando-se no
interesse público.
Sempre que se deparar com uma situação desta natureza, o arbitramento realizado pelo
Fisco deverá ser permeado por um processo no qual devem ser garantidos a participação e
contraditório, dando a ambas as partes a possibilidade argumentativa e exposição de suas
razões. E quanto às fundamentações lançadas pelas partes, terão seus argumentos depurados
justamente pelo procedimento. Mais uma vez se destaca. Todo o conteúdo jurídico é
290
permeado pela procedimentalização e interpretação construtiva do Direito aplicado ao caso
concreto.
8.2 Os direitos fundamentais e o sistema tributário
O leitor atento já deve ter notado o quanto a teoria procedimentalista ora adotada
enfoca a participação efetiva e ativa de todos os membros da sociedade na construção de um
conteúdo justo e democrático do Direito que irá reger dada comunidade social. Não se fala,
momento algum em conteúdos pré-estatais fundamentais, ou mesmo direitos fundamentais
cujo conteúdo, já determinado, deve reger todo o desenvolvimento do Estado e sociedade. A
feição democrática é colocada em destaque para, justamente, dar aos afetados pelas normas, a
possibilidade de argumentar quais os conteúdos de direitos são efetivamente fundamentais
para os mesmos. É oportunidade que os paradigmas liberal e social não concederam aos
administrados.
Ora, se assim o é, uma primeira acepção acerca do que sejam direitos fundamentais
neste novo paradigma já se torna clara: são direitos fundamentais aqueles necessários para a
garantia de participação efetiva nos debates e argumentações jurídico-políticas. Noutros
termos, são direitos que, como condição de possibilidade, fornecem ao cidadão os elementos
exigidos para estar presente e atuante nas esferas públicas discursivas e, uma vez inserido na
arena argumentativa, possa, juntamente com os demais membros da sociedade, construir de
forma irrestrita e não coercitiva, o conteúdo dos direitos que entende adequado.
Mas como então identificar quais seriam tais direitos/postulados? Habermas faz sua
sugestão:
(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. [...] (2) Direito fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; (3) Direito fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração positivamente autônoma da proteção jurídica individual. [...] (4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo. [...] (5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente (HABERMAS, 2003, p.159-160)
291
Mister destacar como os direitos fundamentais, neste momento, denotam um caráter
muito mais instrumental, do que material, remetendo o cidadão não apenas à ampla
possibilidade de postulação de seus direitos, mas também à garantia de liberdade e condições
fáticas de empreender em um debate que culminará na tomada de rédeas da estruturação do
Estado, da sociedade e das relações privadas. Afinal, este é efetivamente, seu papel:
instrumentalizar e possibilitar que os indivíduos assumam a cidadania ativa e participativa na
construção dos conteúdos normativos. Assim sendo, a liberdade, não é mais compreendida em
sua acepção liberal-burguesa, mas sim em uma perspectiva de amplitude de participação na
arena pública, a isonomia, abandona o status de finalidade do Estado social, e adquire o
caráter de meio, consubstanciada na igualdade de posições e oportunidades de se expor a
argumentação pretendida, e assim por diante.
Essa releitura discursiva retira de tais direitos sua dimensão substantiva clássica. A liberdade, por exemplo, resumir-se-á à perspectiva do indivíduo de participar na implementação dos discursos sociais de fundamentação e aplicação das normas jurídicas. A dignidade da pessoa humana passa a ser compreendida pelo fato de todos poderem participar em simétricas condições no discurso com todos os demais interessados. Dessa forma, enquanto os direitos fundamentais atuam como condição para o discurso, não se sustentam sobre valores substantivos. Ao contrário, são entendidos como regras de comunicação (CRUZ, 2006, p. 168)
Também aqui o Direito Tributário adquire função inclusiva no cenário democrático,
muitas das vezes, diga-se de passagem, fazendo uso dos mecanismos vislumbrados quando do
estudo do sistema tributário no paradigma social. Nada mais compreensível. Afinal, não se
afirma qualquer negativa ou repúdio aos direitos constitucionais anteriores, sejam eles liberais
sociais ou difusos. A temática da reconstrução, e não negação de direitos é bem vinda também
(e principalmente) no Estado Democrático de Direito. Entretanto, a maior ênfase apontada às
ferramentas tributárias ligadas ao constitucionalismo social se justifica quando em análise o
déficit de experimentação brasileira de um genuíno Estado social prestacional de serviços
públicos inclusivos.
Dentro deste espectro, pode ser facilmente destacada a observância à capacidade
contributiva como elemento de inserção democrática no debate comunicativo. Obviamente
que, para se manter em atenção à perspectiva de direito fundamental ora verificada, não se
pode retroagir à visão míope de capacidade contributiva smithiana, consubstanciada na
generalidade e universalidade na contribuição dos encargos estatais, como se a igualdade se
resumisse na isonomia formal. Nem tampouco se está a argumentar em uma mera
homogeneização de exações referentes a condições objetivas relativas a cada classe social,
292
função que uma tributação progressiva mal versada poderia resultar em um
constitucionalismo social.
São valiosos os ensinamentos lembrados quando do deslinde focado na capacidade
econômica dos contribuintes. As teorias defendidas por vários dos autores contemporâneos ali
mencionados representam um conteúdo isonômico tributário consoante com os direitos
fundamentais possibilitadores do discurso.
Inserido neste seleto grupo, Marco Aurélio Greco, (2004, p. 292 e ss), em um salto de
refinamento, garante ainda maior eficácia ao princípio desenvolvido quando do
constitucionalismo social. Segundo o autor, a capacidade contributiva não é mera derivação
da isonomia constitucional, mas verdadeiro desdobramento da solidariedade social. Para
Greco, após a CF/88, o princípio da capacidade contributiva passou a ostentar papel
conformador da tributação, ditando positivamente como a mesma deverá ocorrer em nosso
sistema jurídico.
Quando do constitucionalismo social (e mesmo liberal!) já se argumentava a eficácia
negativa do princípio em tela, o que implica a impossibilidade de exação nas situações em que
ausente força econômica. Esse é um posicionamento mais ligado a uma limitação do poder de
tributar do Estado, impondo-lhe barreiras para evitá-lo atingir o patrimônio daqueles inaptos
para tal. Quanto a isso pouca polêmica reside na atualidade.
Entretanto, a análise de Greco não se restringe a essa delimitação cerceadora do
Estado. Ciente de se tratar a capacidade contributiva verdadeiro princípio constitucional – e
não mera limitação ao Estado – o autor identifica sua incidência não apenas negativamente,
mas também positivamente. Ou seja, não apenas o Estado não poderá alcançar fatos e
situações não denotadores de capacidade econômica, mas sempre que houver possibilidade de
o Estado atingir demonstrações de força financeira, deverá fazê-lo. Isso porque, sendo um
princípio constitucional, a capacidade contributiva remete diretrizes à atuação negativa, mas
também positiva do Estado, exigindo deste último, sua efetivação.
Interessante notar que o autor já parte de uma outra perspectiva da situação Fisco X
contribuinte quando em comparação com o pensamento do tradicional constitucionalismo
social. Condizente com os pressupostos que embasam seu pensamento, Greco abandona a
idéia oposicionista entre Estado e cidadão, o que lhe permite ver na eficácia positiva da
capacidade contributiva uma forma de efetivação de direitos fundamentais. Para ele, a
tributação “deixa de ser vista da perspectiva do confronto entre contribuinte e Fisco [...] para
ser vista como instrumento de viabilização da solidariedade no custeio do próprio Estado”
(GRECO, 2004, p. 284).
293
Ora, a construção argumentativa realizada por Greco passa pela observação daquilo
que já comentamos supra. Não se pode interpretar o Direito Tributário tendo a Constituição
Federal apenas como uma referência distante, ou pior, tendo-a como parâmetro apenas
quando conveniente para o contribuinte. Os ditames constitucionais, em virtude de sua
supremacia interpretativa, forçam o jurista a conformar todos os institutos tributários ao plexo
de determinações e garantias que pairam sob o sistema constitucional! (vide cap. III)
Por certo, sua teoria não pode ser interpretada como defesa a uma cobrança
maniqueísta de valores pecuniários. Mesmo porque, em uma concepção de
eqüiprimordialidade entre os interesses públicos e privados, não há qualquer embasamento
para se afirmar maniqueísmos!
O que Greco se utiliza para sua construção teórica são fundamentos que em todo o
momento foram lembrados nas páginas desta obra: a necessidade de se interpretar todo o
Direito Tributário em conformidade com o conteúdo constitucional e de direitos
fundamentais, em contrário à doutrina dominante, cuja memória seletiva se recorda da
supremacia constitucional unicamente para tratar de cerceamento à exação fiscal (Cf. cap. III)
Em continuidade, a ilação realizada por Derzi talvez se mostre ainda mais antenada ao
paradigma do Estado Democrático.
Foi visto quando do constitucionalismo social, a segmentação da capacidade
contributiva em suas vertentes “absoluta” e relativa”. Atenta à distinção entre a demonstração
de saúde financeira e contributiva no momento da elaboração normativa e escolha dos fatos e
situações a serem tributados (absoluta), e a identificação de real aptidão do contribuinte no
caso concreto (relativa), Derzi possibilita uma reconstrução do teor contributivo condizente
com os direitos fundamentais aqui expostos.
Muito fácil seria, sob os auspícios da capacidade contributiva absoluta, determinar
critérios objetivos de aferição patrimonial, e com isso, presumir o montante tributário a ser
exigido de determinado indivíduo. É a completa homogeneização do conteúdo jurídico-
tributário de isonomia!
Noutro lado, a capacidade contributiva subjetiva ou relativa se mostra ligada à
aptidão real do contribuinte, capacidade essa que apenas poderá ser aferida no momento da
análise do caso concreto. É a observação das peculiaridades individuais para que haja uma
compatibilização entre a exação e a realidade do contribuinte.
Nessa baila, importante perceber, que para uma análise subjetiva da capacidade
contributiva, não basta a simples mensuração do reflexo patrimonial meramente presuntivo,
294
como por exemplo, o montante financeiro recebido mensalmente em decorrência da força
laboral191.
A correta aplicação do ditame constitucional culmina na observância da subjetividade
como um todo, o que implica na também consideração de gastos com saúde, educação,
moradia, número de indivíduos dependentes, dentre outros elementos. A análise das
particularidades individuais a que se presta a efetivação da igualdade constitucional não pode
se ater a uma superficial abordagem restrita a uma primeira impressão ou a um único dado a
ser considerado. Toda a subjetividade do cidadão deve ser objeto de ponderação para que se
chegue ao objetivo final, que é a incidência tributária condizente com sua realidade financeira
efetiva, e não apenas presumida192.
Faz escola o ensinamento de Aliomar Baleeiro: “salta aos olhos que, por exemplo,
alguns milhares de cruzeiros anuais bastam a um jovem solteiro, não satisfazendo, entretanto,
ao chefe de família prolífica, sobrecarregado por dívida e moléstia prolongada de um filho”
(BALEEIRO,1998, p. 748).
É nesse sentido também que se procura diferenciar com maior rigor terminológico a
capacidade contributiva e a capacidade econômica. Francesco Moschetti, mencionado por
Godoi (1999, p. 195) entende ser a capacidade econômica a totalidade da força financeira que
o contribuinte reflete em razão de fatos presuntivos ou significativos de riqueza (p.e. renda
auferida, imóveis, automóveis de luxo, etc).
Munido dessa informação, segundo Moschetti, pode-se chegar à efetiva capacidade
contributiva. Basta, a partir daí, considerar a situação pessoal do contribuinte, tal como
considerado por Baleeiro supra, a fim de se concluir se há, de fato, fração da riqueza do
contribuinte com aptidão para ser objeto de exação fiscal.
191 É de se notar que nem todos os autores compartilham conosco essa visão acerca da subjetividade da capacidade contributiva. Assim sendo, em sentido contrário ao expressado no texto, Roque Carrazza: “a capacidade contributiva à qual alude a Constituição e que o legislador ordinário deverá levar em conta, ao criar os impostos, é objetiva, ou seja, refere-se às manifestações objetivas de riqueza do contribuinte (ter imóvel luxuoso, possuir automóvel do ano, ser proprietário de jóias ou obras de arte valiosas, etc.) Assim, atenderá ao princípio em exame, a lei que, ao criar o imposto, colocar em sua hipótese de incidência fatos deste tipo que Becker denomina ‘fatos signos presuntivos de riqueza’. Pouco importa, no caso se algum contribuinte, que praticar o fato imponível do imposto, não tiver condições subjetivas de suportar a carga tributária.” (CARRAZZA, 2004, p. 80). 192 Também o Superior Tribunal de Justiça se apresenta atento à necessidade de se verificar a capacidade contributiva em seu aspecto subjetivo. Assim, em análise de agravo regimental em recurso especial acerca da incidência de COFINS em entidade de assistência social, a Corte argumentou que “Realmente, não representando a alíquota, em si, encarada isoladamente, índice aritmético de qualquer matiz abusivo, afastada fica a análise da capacidade contributiva objetiva ou segundo a lei em tese. De seu turno, não coligindo a parte contribuinte (até pela impropriedade da via eleita, para tal fim) elementos concretos sobre sua realidade de maior ou menor fortuna material cotidiana, igualmente não se constata desrespeito à capacidade contributiva subjetiva, precisamente o outro matiz do ora enfocado dogma, que o considera com referência aos dados estruturais peculiares ao contribuinte.” (AgRg 12720 - DJ 06.08.2007) (grifos nossos).
295
É por isso que se pode afirmar que há possibilidade de existência de capacidade
econômica sem haver concomitantemente capacidade contributiva. Acaso se imagine um
indivíduo agraciado com alto salário, mas também, gravado com sérios gastos familiares de
saúde, não se pode afirmar que o mesmo detém aptidão para repartição dos gastos estatais
apenas pelo fato de auferir alta renda.
Da mesma forma, pode-se considerar a insuficiência da análise da simples posição de
sujeito passivo tributário de uma obrigação tributária de alto valor para constatar a alta
capacidade contributiva do indivíduo. Preocupado com esse potencial desvirtuador dos
objetivos principiológicos, Sainz de Bujanda diferencia a capacidade tributária passiva e a
capacidade contributiva. Em consideração ao autor, segue Leão:
A primeira noção diz respeito à situação de sujeito passivo da relação jurídica tributária, o que não é suficiente para garantir que o sujeito tenha aptidão econômica para responder pelo gravame tributário. Já a segunda noção diz respeito à idoneidade do sujeito de concorrer aos encargos públicos e não a mera aptidão a ser sujeito passivo de um tributo (LEAO, 1999, p. 32)
Nessa baila, as idéias aqui desenvolvidas possibilitam o caminhar para uma análise
subjetiva das peculiaridades de cada contribuinte, não se atendo à verificação de seu
patrimônio, ou mesmo se este figura como responsável tributário. O debate discursivo e o
estudo interpretativo do caso concreto é elemento que de imediato se coaduna com o
procedimentalismo habermasiano. Afinal é esta a lição que o sistema tributário deve abraçar:
a necessidade de verificação dos conteúdos jurídicos em cada caso concreto, uma vez a
construção da materialidade ser reflexo dos elementos e interpretações inevitáveis e
diferenciadas em cada situação distinta.
É importante ter em mente, juntamente com Marcelo Cattoni que
se partimos de uma concepção procedimentalista do Direito, em que qualquer proposição jurídica é fruto de interpretação, sobre o pano de fundo de visões paradigmáticas concorrentes, não se pode predefinir o ‘conteúdo’ ou a ‘extensão total’ de um dispositivo normativo, que ganha sentido a cada novo caso concreto (OLIVEIRA, 2002, 112)
Para isso, todos os mecanismo ligados à efetivação isonômica já verificados podem –
e devem – ser utilizados: proporcionalidade, progressividade, seletividade, e inclusive, a não
tributação do mínimo existencial. Todos os elementos que possam auxiliar na possibilidade de
melhoria de condições fáticas capazes de realizar a inclusão do contribuinte no cenário de
cidadania são abarcados pelos direitos fundamentais do Estado Democrático.
296
Quanto ao último, Cruz, ligando o mínimo existencial aos direitos fundamentais na
visão habermasiana, afirma que
Nesses termos, podemos vislumbrar a noção de mínimo existencial já dentro da argumentação moral, eis que aqui prevalece a perspectiva de reciprocidade de modo a se garantir a todos as condições materiais para que possam participar dos discursos de formação da vontade política na sociedade (CRUZ, 2007, p. 373)
Exemplificativamente, pode ser lembrada a tributação consubstanciada no imposto de
renda incidente sobre pessoa física. Inicialmente, seu caráter de imposto direto já auxilia a
coadunar os encargos decorrentes da exação fiscal às forças econômicas do contribuinte –
sobre o tema, conferir cap. IV. Entretanto, para se verificar uma isonomia material, deve-se
fazer uso da progressividade tributária, instrumento que desde o constitucionalismo social já
auxilia a maximizar o substancialidade do princípio da igualdade. Assim o sendo, a legislação
brasileira pode ser apontada como exemplo, uma vez prever a existência de três alíquotas
distintas aos contribuintes em decorrência de seus proventos financeiros193. Com esses
elementos, já resta caracterizado o respeito aos ditames da capacidade contributiva absoluta
delineada quando do constitucionalismo social. Mas será suficiente para a observância da
subjetividade dos casos concreto e construção da isonomia com vistas a um Estado
Democrático?
Assim o sendo, é observada a não tributação da parcela mínima necessária para a
satisfação de condições mínimas de educação, cultura, alimentação, saúde, etc.,
imprescindíveis para a inclusão dos contribuintes na esfera pública discursiva? E quanto a
eventual diminuição da base de cálculo em razão de dispêndios suportados em virtude das
particularidades de cada contribuinte? Da mesma forma, um estudo pormenorizado das
origens das receitas: são provenientes de ganhos de capital, tais como aluguéis, ou são
decorrentes da força laboral do contribuinte? Seria conveniente homogeneizar a exação
tributária de dois indivíduos em razão de seus proventos sem considerar que apenas um deles
aufere renda em razão de seu trabalho?
E quanto à tributação indireta? Há uma escolha dos bens as serem tributados em
consonância com o princípio da seletividade? Os materiais escolares – e não apenas os livros
– estão livres de exações fiscais no intuito de facilitar o acesso de todos os brasileiros aos
meios de educação? Ou sua carga de impostos e contribuições se equipara aos bens de luxo?
193 No exemplo pátrio, há previsão de isenção de imposto de renda àqueles que auferem quantia mensal inferior a R$1.313,69; alíquota de 15% àqueles com rendimentos compreendidos entre R$1.313,69 e R$2.625,12; e por derradeiro, alíquota de 27,5% àqueles com renda mensal superior a R$2.625,12.
297
São temáticas que, muito embora sejam inauguradas no constitucionalismo social, não podem
ser esquecidas no presente.
Enfim, todos estes são instrumentos que, empenhados em conjunto, são capazes de
realizar a efetivação dos direitos fundamentais (postulados) de inclusão discursiva a que se faz
alusão.
Mas aqui deve ser feita importante ressalva.
Quando do desenvolvimento do conteúdo jurídico da igualdade na seara do Direito
Tributário referente ao Estado social (Cf. Cap. V), foi comentada teoria seguida por autores
como Murphy e Nagel (2005), para quem a efetivação da isonomia transcende a mera
observância da capacidade contributiva e passa pela prestação positiva de serviços públicos
(educação, saúde, moradia, etc) e mesmo a transferência direta de recursos aos contribuintes
deficitários194.
Por óbvio, a postura assistencialista estatal em busca da concretização de direitos e
garantais sociais mínimas não apenas se mostra necessária (principalmente em países de
desenvolvimento tardio como o Brasil), mas é mesmo louvável! Com efeito, ainda não
atingimos um nível de inclusão social e participativa para compreendermos, em plenitude, a
inserção de todos os brasileiros na esfera de cidadania ativa e em condições de debater com
consciência e qualidade a construção de seus direitos.
Nessa toada, a prestação de uma educação satisfatória, a conscientização cultural e
política por meio de ações públicas, programas de incentivo e proteção à saúde, e mesmo as
transferências diretas de recursos (p.e. o chamado “bolsa-escola” do governo federal) detêm
importante papel na elaboração de uma estrutura democrática. Mas deve-se estar sempre
atento ao objetivo precípuo da atuação do Estado na efetivação da igualdade: concretizar as
condições necessárias para a participação discursiva de todos os cidadãos na formação da
vontade política e social.
Caso o Estado se deixe envolver e adote o paternalismo assistencialista como
finalidade, o resultado colhido será a própria retirada do cidadão-cliente da arena pública, ao
mesmo tempo em que seu passivismo restará controlado em atenção aos ditames do dizer
romano: “pão e circo”.
194 Nas palavras dos autores: “Nós mesmos preferimos aquelas concepções de justiça segundo as quais a sociedade deve ter o objetivo de proporcionar a todos os seus membros pelo menos um nível mínimo de bem estar e de acesso às oportunidades. Essa doutrina exige que se considerem cuidadosamente dois tipos de progressividade no sistema tributário. Em primeiro lugar, a progressividade de uma substancial renda mínima universal, que resulta num imposto de renda negativo (transferência de dinheiro) para as faixas de baixa renda. Em segundo lugar, a progressividade das alíquotas marginais” (MURPHY; NAGEL, 2005, p. 191).
298
Nestes casos, sob a proteção de uma superficial atenção à justiça e igualdade social, o
Estado acaba por cercear a liberdade comunicativa e a autonomia democrático-participativa
dos indivíduos. Daí se afirmar a necessária temporalidade dos programas assistenciais
prestados no Estado Democrático de Direito, afinal, “a posição passiva em face da coisa
pública faz súditos e não cidadãos” (BONAVIDES, 1996, p. 21).
Atento a essas nuances e desafios da estrutura estatal contemporânea, Giddens trilha
pelo mesmo pensamento. Tanto o é que, em sua concepção “auxílios-desemprego, por
exemplo, deveriam acarretar a obrigação de procurar trabalho ativamente, e cabe aos
governos assegurar que os sistemas de bem-estar social não desencorajem a procura ativa”
(GIDDENS, 2001, p. 75)
Mas não somente a capacidade contributiva pode auxiliar na garantia de amplitude e
liberdade comunicativa. Também a extrafiscalidade se apresenta como importante
mecanismo à consecução dos objetivos democráticos ora delineados pelos direitos
fundamentais. Uma exemplificação clara já foi recorrentemente trabalhada. A previsão de
imunidade a livros, jornais e periódicos constante no art. 150, VI, “d” da CF/88 é a
incorporação do incentivo à produção e disseminação de conhecimento, cultura e instrução à
população. Obviamente que, para a otimização das condições discursivas, deve-se interpretar,
não apenas este, mas todos os dispositivos constitucionais e tributários em consonância com a
virada hermenêutica proposta por Gadamer. Caso contrário, já constatado o quão desvirtuados
os fundamentos de uma extrafiscalidade inclusiva diante de livros eletrônicos, p.ex.
Da mesma forma, a percepção de existência de minorias étnicas, sexuais, e de gênero,
debilitadas pelas chances ofertadas pela própria sociedade contribuiu para o delineamento das
chamadas ações afirmativas. Compreendidas como uma atuação do Estado, em conjunto ou
não com particulares, com vistas a incentivar a inclusão e inserção destas mesmas minorias no
cenário político, social, econômico, educacional, etc., as ações afirmativas configuram mais
uma possibilidade de maximizar a irrestrição participativa na seara dos direitos fundamentais.
A fixação de alíquotas, ou mesmo a previsão de benefícios fiscais em atenção a tais
programas inclusivos se mostra, no cenário de um Estado Democrático, como elemento de
otimização do discurso dessas pessoas, a princípio, secundarizadas nos debates jurídicos.
Nessa toada, as imunidades ou isenções de instituições educacionais que incentivem a
instrução e participação de pessoas portadoras de deficiência física, por exemplo, servirá de
contribuição para que essa parcela da sociedade consiga uma melhor inserção e qualificação
para realizar o embate discursivo a que se propõe a estrutura democrática.
299
No mesmo sentido, também a proteção das culturas locais e suas tradições, em
respeito à pluralidade discursiva e à possibilidade de exposição de toda a ordem de
argumentos para serem debatidos pela sociedade pode ser maximizada pela atuação tributária.
Em proximidade com o texto constitucional atual, basta debruçar sobre a interpretação do art.
150, VI “b” onde se lê a proibição de instituição de impostos incidentes sobre “templos de
qualquer culto”. Como interpretar tal mandamento à luz de uma hermenêutica inclusiva?
A concessão de imunidades em benefício às diversas Igrejas e religiões mais populares
não deixa lastro para dúvidas. Mas e quanto a terreiro de umbanda, ou mesmo outras práticas
religiosas de menor aceitação? Não deveriam igualmente aproveitar a disposição
constitucional antedita? Afinal, os direitos fundamentais compreendidos como condição de
possibilidade implicam em, justamente, dar a máxima liberdade de apresentar, fundamentar e
desenvolver argumentos e práticas que o cidadão julgue pertinente e parte de sua carga
cultural, ética e religiosa.
Enfim, esboçamos apenas exemplos de como o Direito Tributário pode se prestar à
efetivação deste Estado Democrático que todos tanto clamam. Contudo, esta é unicamente
uma primeira faceta dos direitos fundamentais neste momento constitucional.
Caso se tenha compreendido que na esfera de um Estado Democrático de Direito a
amplitude argumentativa possibilita aos destinatários da norma construir e reconstruir
incessantemente os conteúdos jurídicos que irão reger as relações sociais, uma segunda
acepção de direitos fundamentais se mostra ululante.
Uma vez garantidos os direitos fundamentais (postulado) como condição de
participação no embate democrático, todos os cidadãos terão, justamente, a oportunidade de
construir o conteúdo provisório (pois passível de revisão) dos direitos fundamentais, agora
vistos como conseqüência ou resultado do debate comunicativo.
Não se trata de uma pré-determinação de direitos fundamentais por decisões pré-
estatais, mas sim a transferência aos destinatários para a definição de que direitos sejam estes!
Caso compreendam que o conteúdo fundamental a ser observado culmine na construção de
isonomia e capacidade contributiva consubstanciadas no desenvolvimento igualitário das
diversas regiões nacionais, assim o será! Da mesma forma ocorre com a definição de qual
conteúdo de direitos ambientais e de liberdades a serem incorporadas ao núcleo fundamental
de direitos. Daí a possibilidade de importação de todos os direitos fundamentais elaborados
nas três dimensões distintas, bem como seus reflexos tributários.
Todavia, uma vez a revisão discursiva implique uma renovação deste conteúdo
isonômico ou ambiental como direito fundamental, seus resultados, frutos de um discurso
300
amplo e democrático, serão agregados ao ordenamento jurídico, modificando, assim, a visão
inicial adotada. E assim por diante.
Eis a razão de não se poder determinar e fixar, de antemão, o conteúdo que os direitos
apresentarão dentro da esfera de direitos fundamentais. Afinal, a substancialidade dos
mesmos, nesta segunda visão, é a própria conseqüência do discurso travado entre os
cidadãos, e proporcionado pela existência e garantia dos direitos fundamentais/postulados.
É como leciona Cruz:
de uma lado, os direitos fundamentais, como condição do procedimento discursivo, são pressupostos da comunicação, e, portanto, despidos de conteúdo substantivo. Contudo, de outro lado, os direitos fundamentais, entendidos como conseqüências/produtos do procedimento discursivo, certamente estão repletos de substância (CRUZ, 2006, p. 172).
Em paridade de pensamento, afirma Galuppo:
Se, agora, quisermos apresentar uma definição dos Direitos Fundamentais, esbarramos então em um problema. Exatamente porque eles são construídos historicamente, um conceito simplesmente conotativo absoluto de Direitos Fundamentais é impossível, já que eles são irredutíveis a uma única realidade (GALUPPO, 2003, p.236)
Em que pese o desenvolvimento do Direito Tributário em consonância com os direitos
fundamentais, preferimos deixar, por derradeiro, o ponto que mais foi debatido ao longo do
trabalho, e também que maior temor causa aos tributaristas. No início deste capítulo foi
exposto que não se olvidaria da segurança jurídica, mas apenas a reformularíamos em
concordância com as evoluções hermenêuticas apresentadas páginas atrás com Wittgenstein e
Gadamer.
Com feito, discorremos essas páginas acerca do procedimentalismo habermasiano
justamente no intuito de demonstrar a viabilidade (e necessidade) de tal segurança. Não a
versão positivista, envolvida com a estabilização e certeza de conteúdos jurídicos materiais e
identificados previamente pelo intérprete. Isso já demonstrado impossível.
Mas sendo a legitimidade do Direito ligada à aceitação ampla e racional das razões
normativas, bem como à constante possibilidade de resgate do debate argumentativo, é
possível identificar a segurança jurídica na garantia de procedimentos que asseguram ao
interessado rever, criticar e reavaliar o conteúdo jurídico por meio do debate de seus
fundamentos de validade em um processo cercado pela amplitude discursiva, e assim, atingir
o direito material em questão. Aliás, foi visto que os próprios direitos fundamentais devem ser
301
lidos dessa forma: carentes de conteúdos materiais determinados, e garantidores de
possibilidades participativas para a construção democrática do direito.
É como o próprio autor esclarece:
A segurança jurídica, apoiada no conhecimento de expectativas de comportamento inequivocamente condicionadas, representa, ela mesmo, um princípio que pode ser contraposto, in casu, a outros princípios. Em troca, a postulada teoria do direito possibilita unicamente decisões corretas, que garantem a segurança jurídica num outro nível. Os direitos processuais garantem a cada sujeito de direito a pretensão a um processo eqüitativo, ou seja, uma clarificação discursiva das respectivas questões de direito e de fato; deste modo, os atingidos poder ter a segurança de que, no processo, serão decisivos para a sentença judicial argumentos relevantes e não arbitrários. (HABERMAS, 2003, p.280-281). (grifos nossos)
A angústia do intérprete tributário apenas se esvairá quando atentar ao fato de que a
era das certezas materiais já se foi, melhor, nunca existiu. O combate às pretensões da postura
hermenêutica moderna de uma matematização dos conteúdos jurídicos apreendidos pela
técnica e pela razão individual não é uma luta em favor de um método de melhor aplicação. E
sim a um método que consiga efetiva aplicação!
A opção por trabalhar os pressupostos hermenêuticos – ainda acompanhados pelo
risco de uma abordagem talvez por demais breve – nos serviu justamente para tentar alertar
àqueles que ainda defendem a necessidade de uma previsão exata das obrigações tributárias
por meio da descrição minuciosa das condições de aplicação subsuntiva, da ilusão metafísica
em que se encontram.
A segurança jurídica é sim possível, mas em outros moldes. Devemos lutar para que
nosso sistema do Direito seja capaz de garantir procedimentos que dêem a garantia de
participação efetiva no debate pela construção dos conteúdos jurídicos, bem como seu resgate
interpretativo via jurisdição. Este é o desafio que nos é posto. Encerrar com as recorrentes
repetições interpretativas derivadas de autores renomados ou mesmo tribunais, no intuito
recuperar as fundamentações que embasam as posições hermenêuticas de cada participante do
cenário jurídico democrático.
302
CAPÍTULO IX – CONCLUSÃO
Vencidos os tópicos antecedentes, a conclusão do trabalho sem mostra, em realidade,
um tanto quanto redundante. A visão, ainda predominante, de um conteúdo jurídico exaurido
em termos normativos não mais se sustenta. Bem da verdade, nunca se sustentou.
Sua miopia interpretativa, calcada em um formalismo exacerbado prefere se fechar em
fundamentações de bases platônicas e aristotélicas, e desviar os olhos dos objetivos e
características delineadas no sistema tributário nos diversos momentos dos direitos
fundamentais. Nem mesmo os direitos liberais, presentes na justificação de uma tipicidade
descritiva e positivada conseguem ser alcançados. Quiçá os demais! Segurança jurídica,
capacidade contributiva, intervenção econômica, direitos difusos, igualdade material,
condições discursivas, não importa qual deles seja colocado em pauta, todos restam obtados
pela persistência das premissas positivistas não amadurecidas.
Não fosse suficiente, nem mesmo suas fundamentações e bases filosóficas encontram
guarida na atualidade. Há tempos, a evolução hermenêutica tem demonstrado que a crença em
uma ontologização, um engessamento dos conteúdos normativos, e em um intérprete
atemporal capaz de captar de forma neutra o Direito com a exatidão prevista pelo legislador
não passam de ilusão! O giro lingüístico de Wittgenstein e o giro hermenêutico de Gadamer
apontam falhas ainda mais contundentes à subsunção idolatrada pelo princípio da tipicidade e
seu fetichismo legal. Sua adoção não implica uma simples discussão acerca de qual a melhor
corrente ou teoria interpretativa, mas sim a comprovação de ser essa uma prática inatingível!
Eis que, em um Estado Democrático de Direito, cujo primado pela participação efetiva
de seus membros na condução e construção dos conteúdos jurídicos marca como
característica distintiva, o procedimentalismo habermasiano se apresenta como opção mais
adequada.
Em consonância com a filosofia da linguagem wittgensteiniana e a fusão de horizontes
gadameriana, Habermas propõe uma “virada de foco”. Caso se queira, realmente, um
conteúdo democrático das normas jurídicas e tributárias, deve-se esquecer o mito da fixação
dos direitos materiais. Permeado por instrumentos procedimentais, deve-se colocar em debate
constante todas as normas jurídicas, permitindo, assim, a incessante reconstrução de seus
conteúdos, sempre que suas fundamentações argumentativas já não se mostrarem
convincentes.
303
De posse destes ensinamentos, tentamos demonstrar, exemplificativamente, maneiras
de o Direito Tributário se inserir em um contexto democrático e ser capaz de alcançar todos
os seus pressupostos. Por meio de uma participação inclusiva de todos os afetados pelas
normas jurídicas, em conjunto com a constante reconstrução substantiva das mesmas, é
possível lograr, não somente uma hermenêutica factível, mas também os direitos
fundamentais delineados no Estado Democrático de Direito e seus reflexos tributários.
Por óbvio, não se trata de menosprezo da “garantia legal” que tanto seduz os
tributaristas, espera-se que se tenha claro! Mas sim de colocar a legislação como ponto de
partida para uma análise interpretativa e construtiva muito mais rica (e também mais
complexa). Os anseios para uma sociedade democrática implicam a vontade de simplificação
do Direito ceder espaço para uma possibilidade de participação e de democratização dos
conteúdos jurídicos, e também tributários.
304
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