amor imortal - j. a. nogueira

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NARRATIVAS DE ÜMA DOLOROSA iNICh^pAO NOS MISTÉRIOS 0,A MORTE E do AUEM E D I.CA'0

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Page 1: Amor Imortal - J. A. Nogueira

NARRATIVAS DE ÜMA DOLOROSA iNICh^pAO NOS MISTÉRIOS 0,A MORTE E do AUEM

E D I.CA'0

Page 2: Amor Imortal - J. A. Nogueira

espirito

CONSOLADOR

Livro precioso do

PADRE MARCHAL

A indole da obra jus-

tifica de sobejo o seu

titulo. E' um reposito-

rio de incentivos para

amarmos a vida e uma

fonte inexhaurivel de

forças para encarar-

mos sem temor a morte.

Volume, br. . . 6$000

Ene 8$000

LIVRARIA DA

FEDERAÇÃO

Av. Passos, 30

Page 3: Amor Imortal - J. A. Nogueira

J. A. NOGUEIRA

AMOR IMORTAL

precedido de um estudo sôbre o espiritualismo moderno

NARRATIVAS DE UMA DOLOROSA INICIAÇÃO

AMOR IMORTAL MORRER... ACABAR... OS SINOS MISTERIOSOS UMA PROFISSÃO DE FÉ

• , OS DEUSES MORREM

Terceira edição

LIVRARIA DA FEDERAÇAO ESPIRITA BRASILEIRA S8, Avenida Passos, 30 — —*- Sio de Janeiro

Page 4: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Temos o prazer de oferecer ao público, em ter- ceira edição, o notável livro do Dr. J. A. Nogueira intitulado Amor Imortal, trabalho originalissimo que foi considerado pela crítica- uma verdadeira obra prima, como se pôde ver dos juizos com que abrimos o volume e que são da autoria de escritores como Alberto de Oliveira, Agrippino Grieco, Mon- teiro Lobato, Augusto de Lima, Sud Mennucci e ou- tros ilustres mestres. O autor — um dos grandes no- mes das letras nacionais — é, além de fino estéta, um brilhante jurista e eminente magistrado, larga- mente conhecido e acatado, tendo dado á publicidade outras obras da maior repercussão, como sejam So- nho de Gigante, País de Ouro e Esmeralda e ^ls- pectos de Um Ideal Jurídico. "La Nación", o gran- de órgão platino, em um estudo crítico sobre o li- vro Sonho de Gigante, resumiu da seguinte forma as características de seu estilo e de sua personali- dade de escritúr: "Por su profundidad de pensa- miento, por su cultura, por su originalidad, por su amenidad, por su clareza de exposición, el Sr. No- gueira non es solamente uno de los mas eminentes pensadores dei Brasil sino también de toda la Ame- rica dei Sur." (*)

Amor Imortal, embora composto de cinco no- velas, constitúe um só romance filosófico, um só

(*) Edição de 12 de Nov. de 1922.

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6 AMOR IMORTAL * *

grande poema, como unanimemente o proclamaram os críticos, pois todas as narrativas se desenvolvem como variações em torno do mesmo leit motif: — o mistério da morte e do além. Seu ilustre autor, depois de muitos anos de meditação e após profundos es- tudos, a que se entregou, chegou á' consoladora cer- teza da sobrevivência da n-lma, como o narra no magnífico prefácio que escreveu especialmente para esta edição, no qual expõe de maneira brilhante a evolução de suas idéias ácerca do espiritualismo mo- derno.

Cremos assim, com a republicação desta obra, cujas primeiras edições lançadas por Lello & Ir- mão, de Portugal, e Monteiro Lobato & Cia., de S. Paulo, já se achavam de ha muito esgotadas (•), haver prestado um inestimável serviço não só ás le- tras nacionais, como também a todos aqueles a querf; interessa o estudo dos problemas fundamentais que teem preocupado os maiores filosófos e pensadores * de todos os tempos.

A Editora.

((*) A primeira edição, da Liv. Chardron, do Porto, saiu em 1915, e a segunda, da casa Monteiro Lobato, data de 1923.

Page 6: Amor Imortal - J. A. Nogueira

JUÍZOS DA CRÍTICA SÔBRE "AMOR

IMORTAL" \

No genero esotérico temos o Snr. J. A. Nogueira. Seu livro "Amôr Imortal" é para nós como uma visãò

do esplendor: "quasi aspectus splendoris". Sem fragor ver- bal, com uma arte de escrever fidalga, com um estilo em que ha austeridade e beleza, êle prova que não quer só distrair

.^os leitores, mas também dar-lhes que fazer ao cérebro. As / personagens de seu idilio quasi não toem vida física e aban-

|- donam-se no amor como se abandonariam em Deus. A he- roína do livro, tal a sua espiritualidade, parece destacada de um díptico religioso e infunde ás cenas em que aparece a plenitude de alegria dos ágapes fraternais dos primitivos cristãos. Vendo-a, acreditniaas na psicoplástica, acreditamos que a alma é que modela a face. Não é o Snr. J. A. No- gueira dêsses estétas ambiguos que cultivam a sua histeria "com prazer e terror" simultâneos, á moda de Baudelaire. E' um sensitivo e um meditativo, um escritor honesto que, para vencer, não teve necessidade do compadrio das revis- tas e da "claque" das escolas.

AGRIPPINO GRIEOO. >

(Do livro "Evolução da Prosa Brasileira", pag. 148.)

# #

Li seus escritos, e o primeiro louvor que lhe manifesto está em dizer-lhe que repetira a leitura, se outras ocupações mo permitissem. O novo trabalho "Amor Imortal" é, a meu ver, batante a firmar-lhe o nome de escritor. São páginas que se lêem com crescente interêsse e onde algo existe das

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II

"Histórias" de Edgard Póe e da "Rainha Mab" de Shelley, desta, principalmente, pela fantasia e mistério. Altair é irmã de lanthe, o espirito sonhador de "Amor Imortal" parente proximo do panteista de "Alastor". Nesta novela, como em tudo o mais, ha idéia, ha imaginação, ha estilo, e tudo elevado. Os senões, que os ha, não é preciso lhos aponte,:

o senhor mesmo os emendará — fugazes sombras que raream, absorvidas num grande esplendor.

Muito espero de sua pena. Escreva sempre. Sinto-o capaz de obras primas.

ALBERTO DE OLIVEIRA. (Carta-prefácio da 1.* edição, referente apenas á novela

"Amor Imortal".)

.. .muito sincera e gostosamente subscrevo na sua quasi totalidade os conceitos de Alberto de Oliveira. r

OSORIO DUQUE ESTRADA. (Do Registro Literário". "Imparcial", de 7 de Junho

de 1915.) , , ,

^ Não se afere pelo estalão comum dos pechisbeques lite- rários do ano, de produção intra o extra-acadêmica, o livro de estréia de J. A. Nogueira.

O seu primeiro mérito é ser escrito em português, lin- gua, se não morta, moribunda, por influxo da endosmose francesa, de ação permanente, que nos vai dessorando a musculosa lingua de Camilo e pondo-a para aí um calão do porto de mar.

Infelizmente, por contingência do cloreto de sodio ba- tismal, o autor não possue nome de boa soada estética. A vulgaridade do José Antonio anteposto ao Nogueira mete suspeita de permeio entre o leitor e o livro. Agrava-o ainda o fato de ser Nogueira um novo que estréia, um novo intei- riço, de fôrma e fundo, novo na lingua usada como novo no tema das novelas — atitudes flosóficas em face do mis- tério da vida. Não obstante, o livro resgata o ruim nome, como resgata a audácia da estréia.

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' m

Não ha vaeüações: "Amor Imortal" é o mais forte, dos mais belos e sem dúvida o mais profundo livro dado á estampa nestes últimos anos.

Escapando ao quadro vulgar do romance ou conto e ao da dissertação filosófica núa e hispida, cria um genero novo entre nós, no qual se romanceam penetrantes visões do idea- lismo moderno. E' a história das várias atitudes evolutivas de um espirito de profunda cultura, doente da ânsia dos horizontes intérminos e vagos da vida humana.

Egresso da teologia, em cujo borzeguim não encontrou o molde ansiado pelo seu espirito e pela sua sensibilidade, não corrompidos ainda, um e outra, pelo contacto dos nos- sos nucleozinhos de civilização refletida, São Paulo e Bio, a, sua atitude na novela inicial que dá nome ao volume é a de um céptico pela razão, que continúa crente pela sensi- bilidade.

A' velha idéia da imortalidade da alma imprime uma amplitude nova, romanceando um amor terreno que trans- põe a morte e persiste, eterno, de astro em astro, infinito e imortal.

Tirante os diálogos, poucos aliás, que pecam por dese- ^fegáncia e por uns tons de vulgaridade fáceis de apagar (*), 'a novela é, em conjunto, magistral, justificando a frase ul- tima do prefácio de Alberto de Oliveira: "Sinto-o capaz de obras primas".

Concorrem ali tintas de Edgard Póe com tonalidades novas, compostas na palheta do autor o só suas, ao descre- ver as sensações de um morto que volta, sob as formas as- trais da sua vida extra-terrestre, á procura da amante cho- rosa, ainda viva no mundo. Encontra-a, e tenta abraçá-la:

"Três vezes tentei enlaçá-la com os meus braços invi- síveis, três vezes penetrei-lhe através do corpo, colhendo-me inane, como um vento imuginario ou sonho vago."

Mas fujamos á tentação de transcrever; do contrário seria mxstér reeditar a novela, tão encantador se nos apre- senta êsse poema de severa beleza e forte psicologia onde há páginas sem equivalentes em nossa literatura.

O autor, entretanto, evolue. Na novela seguinte delineia uma crise de pessimismo atróz. A sua sensibilidade afeita ao absoluto, & contemplação, àquela fôrma de imortalidade psíquica estabelecida na primeira novela, adoece. Ha reba-

(*) As passagens a que se refere o escritor já foram modificadas e escoimadas das imperfeições assinaladas.

<9*

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IV

tes, lutas, repugnâncias, febre, desânimo, e o resíduo final de tudo isso é, lójicamente, a idéia do Nirvana.

Amaldiçôa, então, o mundo em "Morrer... Acabar..." onde se debuxa, pávida, a figura branca de'Venerando, um velho desarvorado por todos os vendavais da vida, novo Job que, coerente, aporta ao "Eclesiastes".

"VI todas as coisas que se fazem debaixo do sói e eis que tudo é vaidade e aflição de espírito".

A cena da morte de sua filha, que êle oculta & espôsa e - e um visitante para poupar a este uma má impressão e dar àquela um prolongamento de esperança, continuando a dis- sertar calmamente sôbre o vasio da vida, põe arrepios dolo- rosos no leitor em cujo ânimo evoca toda a coôrte dos gran- des pessimismos negros. O espirito afirmador da vida, ao vento polar dessa novela, sente afrouxarem-lhe todas as cor- das da energia, vacila e descrê.

A lójica do pessimismo conduz ao suicidio, mas a vul- garidade do remedio não sôa bem aos espirites fortes, nos quais, ainda quando todo o Eclesiastes lhes carrilhona cm tôrno, zumbindo a zoada letal do aniquilamento, subsist^ sempre um fundo subconciente de resistência em reserva.' Isto explica porque Schopenhauer se não suicidou e, ao con- trário disso, refloriu mais tarde, em Nietzsche, na mais ^ esplendorosa afirmação da vida. 1

Nogueira, nos "Sinos Misteriosos", arranca-se ao polvo negro, rehabilita a vida e reafirma-a, levantando a exco- \ munhão maior lançada contra ela.

Era mistér justificar o ilojismo de aceitar a vida após os ululos arrepiadores de Venerando. Desaparecera a fé da primeira atitude entremostrada no" Amor Imortal". Desapareceria também o langor negativista. Nogueira des- cobre o sexto sentido misterioso, o pressentimento, a adi- vinhação subliminal. Levam-no a esse porto os místicos modernos, de Maeterlinck a Novalis. Perpassa nos "Sinos" um sôpro grandiloqüente de poesia trágica. O descritivo ergue em linhas simples, numa justa medida jônica, um quadro de lenda, onde um rei de balada, em festim per- manente, ouve, com persistência, o badalar de sinos mis- teriosos, e uiva no desespêro impotente de os calar

Não pára aí o ciclp evolutivo do autor. Não lhe sa- tisfaz essa nova atitude. Aprofunda filosofias, medita a India e o complexo gênio germânico. Consulta o dualismo em suas múltiplas apresentações, e refuga-o como refuga o monismo materialista. O monismo idealista detem-no uns

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instantes. For fim, deixa-se seduzir pelo idealismo ab- soluto.

Negar a existência da matéria e só reconhecer a exis- tência do espirito, afirmar a suprema potencialidade da vida... A idéia é, sobretudo, literaria. "Uma profissão de fé" resulta dêsse estádio. Que páginas soberbas de sonho, de fôrça, de um vigor inédito são essas I A moldura é um sonho, a idéia outro sonho — sonho magnifico de sugestão.

Um viajante adormece á beira da estrada e assiste & prédica de um sacerdote de religião desconhecida. Essa oração é um fulgor permanente de irradiações a pairar sôbre um auditorio em êxtase...

A obra prima de que A. de Oliveira antevia a possi- bilidade aí está. Nunca se realizou tão ràpidamente um vaticínio arrojado. A não ser que a novela derradeira, " Deuses morrem..." não levante a palma da primazia. Percebe-se nela que o autor, em seu voo através das filo- sofias, cruzou com a águia taciturna de Sils-Maria. Nietz- sche o domina, e, novo Virgilio, o conduz ao "seu" alto.

, ^Não achára a verdade até ali. Mas que é a verdade? A /'eterna interrogação de Pilatos gó permite marchas de

' / flanco. Um dêsses ladeamentos é que não ha verdade e / sim verdades, milhões de verdades, as verdades de cada

um, verdades que coesistem, lutam entre si, entre-assimi- lam-se, conquistam-se umas ás outras, subordinadas á lei geral dos sôres vivos.

Quem atinge esta cumeada descobre o infinito do re- lativo. Nietzsche aqui funcionou como pólen. E' a sua missão, fecundar aquele em quo toca. Ninguém sai dclo uniformizado por um certo molde, sai livre, sai "si pró- prio". O seu aforismo — "Yademecumf Vadetecum-' — resume toda uma filosofia libertadora: Queres seguir-me? Segue-te.

Nogueira, á poderosa lixivia nietzscheana, desfaz-se de todas as pêias e assume livremente uma atitude defi-, nitiva, particularmente sua, em face do problema eterno. Oai num cepticismo fervoroso e criador. "Deuses mor- rem", a mais bela página do livro, é uma sonata amorosa onde se pinta a forma em que, como num oásis, apraz ao seu espirito e á sua sensibilidade eleger domicilio, clarea- dos pela luz heróica de um cepticismo feliz — feliz á inod.à de Zaratustra quando, encarado com a vida, exclama ra- dioso: "acabo de olhar-te nos olhos, 6 vida".

Impossível dar conta, em um resumo, do extranhissimo

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VI

esplendor que irradia dessa novela, como impossível anali- sar a impressão causada pela sua leitura.

Analisar é esquartejar, para exibir e comentar fragmen- tos: mas como esquartejar, quebrar pedaços ao que é sonho, ao que é imaterialização translúcida? Nem nos socorre a trans- crição: não se destaca sem. prejuízo da harmonia geral um trêcho siquer, capaz de entremostrar vagamente a pujante beleza desta peregrina obra darte.

MONTEIBO LOBATO. '

(Do livro '.'Idéias de Jeca Tatú".)

J. A. Nogueira, com o seu extranho romance "Amor Imortal", é citado como um dos nossos escritores de mais forte personalidade, profundo na intenção filosófica, ou- sado na concepção, feliz na realização, "capaz de grandes cousas", na frase de Alberto de Oliveira. *\

HILÁRIO TAOITO.

(Prólogo da "Vida Ociosa", de Godofredo Rangel.)

Queria exprimir a impressão de deslumbramento que me ficou da leitura de "Amor Imortal", e ao mesmo tempo assaltava-me o receio do dizer chatices indignas dele e da minha admiração.

RICARDO GONÇALVES.

4*

Ha poucos anos, prefaciado por Alberto de Oliveira, surgiu do prélo, com o titulo "Amor Imortal", um livro de contos, que foi uma brilhante revelação do espírito culto, da imaginação criadora e do bom gôsto literário do senhor J. A. Nogueira. Sondo a edição limitada a poucos foi-me dado apreciar as belezas excêntricas daquele livro, que, além do valor literário, documentava interessantes origi-

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aalidades de um pensador. Não era só o encanto da narra- tiva que prendia a atenção do leitor; era também a su- gestão de hipóteses filosóficas e científicas, apresentadas despreocupadaniente em episódios dramáticos.

AUGUSTO DE LIMA. ("Imparcial", 5-4-1921.) '

Póde-se dizer do autor o que Hugo disse de Beaude- laire — deu-nos um novo aspecto do Belo, um novo modo de sentir. A leitura de "Amor Imortal" mergulha-nos numa atmosfera extranha, numa irrealidade transcendente, que é um deleite para os cultores das finas estesias.

x GODOFREDO RANGEL.

»

O tom simbólico dos contos dá-lhes um sabor exquisite / o elevado. As idéias reveladas exaltam sempre, deixam-nos

J entrever uma beatitude "post mortem" consoladora e ex- celsa.

Nos dias aflitivos de hoje, em que toda a humanidade sofre como nunca, essas vozes de promessa nos alentam, ombora mentirosas. E quem nos pode garantir a inveraci- dade da metempsicose ou do panteismo!

Tal como 0 vemos no seu livro, o sr. Nogueira é uma alma afeita ao super-natural, ás emotividades superiores, aos lances de bondade verdadeira que só teem os corações iluminados de uma filosofia cuja moral riscou dos seus preceitos castigos e mercês.

JOSE' OITIOICA.

- (Croniea Literaria d'"A Rua", 1-8-1915.)

* *

Verdadeiramente, se ha aguma coisa que se pareça com essa atitude — literaria por^corto — é justamente uma daa

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VIII

mais sólidas e das mais fortes obras da ciência coeva: a filosofia científica de José Ingenieros.

A concepção do ilustre pensador argentino faz do mundo uma sequencia natural e evolutiva de transformações ener- géticas da materia. Diz êle:

"La Bealidad se manifiesta al conocimiento humano en tres aspectos fundamentales: lo que existe, lo que vive y lo que piensa. Ellos encierram los enigmas eardinales que en todo tiempo intentaron descifrar los diversos sistemas metafísicos; los filosofes clássicos necesitaron extender su imaginación más allá de los limites estrechos de su expe- riencia."

E mais adiante: "Dentro de la concepción unitaria de lo real, la filo-

sofia cientifica explica "en continuidad" todo lo que existe." B, resolvendo o problema armado, diz & pag. 74 dos seus

estupendos "Princípios de Psicologia", (5." edição): "En la evolución de la energia planetaria, las diversas

especies de materia han surgido unas de outras partiendo de Ias de constitución atômica y molecular más simples, \ hasta llegar a Ias de constitución atômica y molecular más compleja: morfogenia. En el curso de esa evolución, la ad- A quisición de Ias propriedades fisico-químicas es una resul- tante de nuevos estados de equilíbrio interatómico y inter- molecular; poco a poco, en el curso de evoluciones mile- narias se produce la adquisición de nuevas propriedades en cada "especie" o estado de la materia: fisiogenia."

Pois bem. "Amor .Imortal" é essa mesma teoria corpo- rificada num sonho. A energia criadora da "continuidade funcional" de Ingenieros trasmuda-so aqui em amor. E' o amor imortal que engendra a ascensão dos corpos para os intermúndios desconhecidos.

Haverá incongruência em conjugar uma filosofia ba- leada em dados rigorosamente científicos com o surto de uma fantasia ao sabor do instinto f

Não. Toda a grande luta do pensamento humano, nessa tragédia épica que se chama a história da filosofia, resu- me-se, enfim, em ter cada vez mais liberdade. Liberdade no sentido filosófica, na alta acepção de poder devassar os mis- térios da natureza e seus fenômenos sem pêias e sem "parti-, pris". Após tantos séculos, nós exigimos hoje, aos pensa- dores, a deliciosa inocência de um Pasteur quando Fabre lhe apresentou o casulo cuja moléstia o grande farmacêu- tico ia estudar.

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IX

E' preciso que eada filósofo que destrói umas tantas velhas regras, crie outras novas mais largas, que dêem ao pensamento maior amplitude e mais ar.

Nós nunca chegaremos a viver sem opiniões e sem pre- conceitos, o que importaria no desaparecimento da vida. Mas poderemos pelo esforço e pela experiência conseguir que as novas doutrinas sejam sinão as verdadeiras, as mais largas, que deem ao pensador folgas e espaço que as outras mais antigas não permitam.

Ora, J. A. Nogueira parte do mesmo ponto de Vista das transformações incessantes e no ponto em que Ingenie- ros pára — porque, sábio, não ultrapassa os limites da ciência — o outro vai além. Para o seu espirito insaciado e manietado pelo ilojismo dos instintos, a solução alvitrada não alcançou tudo e não satisfez o seu ideal.

"Todo ideal é uma hipótese" é o proprio Ingenieros que o afirma. E como que valendo-se dessa verdade, o ro- mancista mineiro desdobra-lhe o sistema e multiplica-o, se- guindo-lhe, fantasiosamente, a mesma marcha pelo infinito a,f<5ra.

Escutai-o nesta página soberba, de onde extravasa uma ' - jxtranha, uma irresistível beleza:

"Tudo provém do amor e existe para o amor — dizia / a voz misteriosa — ser é amar... O nada, o não ser é í.f simplesmente a negação do amor. O universo é o amor em

L{ todas as suas manifestações. A materia inerte e incon- íf ciente é a primeira tentativa de amor, é o primeiío gesto

do amor para se realizar... Todos os sêres vivem, todos os sêres amam, ainda os que julgais insensíveis, por que não surpreendeis a vida oculta que os atrai para o amor universal... O planeta de que vindes ainda era uma nebu- losa indistinta e vaga — e já vos amáveis desde toda a eternidade... Bevestistes todas as formas possiveis nesse pequeno astro, amando-vos sempre, buscaado-vos infatigavelmente, gravitando sem cessar um para o outro... Percorrestes a enorme cadeia dos sêres que chamáveis ina- nimados, numa longa tentativa para chegardes & alvorada do amor conciente..

Um dia estremecestes á luz! Vosso eteijo amor abri- gara-se no seio da mesma flor! Continuastes a vos aproxi- mar através das inúmeras formas da Vida que separam a planta do homem.. Passastes o arreból da conciência por todas as séries de animais — até que um dia, homem e mu- lher, chegastes á luminosa afirmação de Vosso amor..."

4

Page 15: Amor Imortal - J. A. Nogueira

X

E' a pura expressão do energetismo de Ingenieros, toda a sua metafísica da experiência, vista através de um ponto de vista literário. Eu não indago se a filosofia de J. A. Nogueira é exata ou verdadeira. Literariamente a expressão Verdade não tem valor nem som.

E' preciso ver se tem Beleza. E tem-na. Bastava essa novela para dar ao livro do pensador mi-

neiro um cunho incontestável de originalidade. Mas 0 romancista é, antea de tudo, um crítico. Um crí-

tico sagaz, penetrante, que parece ter no cérebro olhos de lince. Se o leitor quer uma prova, leia os três magistrais artigos em que estudou "As Espumas" e a personalidade de Amadeu Amaral. (*)

E fiél ao seu temperamento e mais ao seu programa, em que "estabeleceu, como dógma, que a maior ou menor alegria e beleza de cada existência está na razão direta da alegria e beleza da existência imediatamente antecedente", êle passa em revista as atitudes dos outros homens diante do magno "xis" da vida.

E nessa análise escreve mais quatro novelas: "Morrer... Acabar...", "Qs sinos misteriosos", "Uma profissão do fí" e "Os deuses morrem", onde atinge a uma grande potencit ■ lidade emotiva.

E' que tais novelas são fórmulas de equilíbrio entre o mistério da vida e a ansiedade do homem.

A primeira compõe-se de duas partes: "Tudo 6 vai- dade e aflição de espirito" e "Os mortos são mais felizes que os vivos". São duas rajadas de filosofia trágica em que ha bafos gélidos de uma enorme angústia subterrânea...

"Sinos misteriosos" lembram duas mãos crispadas para o céu. E' o dilema secular em que se lancina a alma da- queles que tendo atingido os altos cumes do raciocinio 16- jico sentem as tendências se lhes rebelarem á idéia fria de uma existência sem alvo.

E' o problema m&ximo da conciência enfeixado num belíssimo símbolo.

A meu ver esta novela devia estar anteposta a "Mor- rer... Acabar.." A dúvida nos espiritos humanos surge antes da negação.

"Uma profissão de fé" é um conto otimista de con- traste aos dois primeiros, feitos eom o mais negro cepti- cismo. E' o sono delicioso do viajor que adormece & beira

(*) Vide Sonho ãe Gigante, cap. "TJm Poeta".

Page 16: Amor Imortal - J. A. Nogueira

XX

de um regato e, nesse encantamento, figura-se entrar na terra onde um povo ideal professa como verdade suprema que "a realidade é obra do pensamento e do desejo".

"E' uma loucura imaginar — diz o sacerdote dêsse credo —> que os paraisos são os mesmos para todos, que to- das as unidades espirituais são iguais e terão igual desti- no... Cada um cria os seus paraisos..."

Paremos aqui... Esse pensamento central de que a materia é fato do espirito está de tal forma desdobrado, jogando com todas as habilidades e subtilezas da dialética, como nuances num tema musical, que seria impossível dar da novela um bocado como síntese, sem quebrar-lhe a uni- dade inteiriça.

"Os deuses morrem" é o mais longo e também menos claro dos contos do livro. Prêso ao encanto dos seus símbo- los, J. A. Nogueira não se lembrou de que o povo ledor, no país, não ama aprofundar-se muito naquilo que lê. Ou

, compreende de um jacto ou passa adiante. Voltar atrás, ler de novo e ruminar, isso é que não.

"Os deuáes morrem" é, como a anterior, uma novela otimista: a glorificação da vida em si mesma, isenta das nossas idéias acessórias: "Tereza fitou-mo chorando, e rindo ao mesmo tempo: — Não fales em além, Henrique... Não

;. sei se ha além... Sei sómente que ha o nosso amor... — jl Dizes bem, Tereza... O que chamamos realidade e verdade íX nada tem que ver com a Vida e com o Amor... A certeza é W um repouso e nada mais... Tais sombras não podem que-

brar o ritmo da Vida... Basta que vivamos... Que nos importa o segrêdo da Vidaf Morreste. Ví-te morta. Que importa issof Foi uma verdade. Não o é mais. Verdades, a Vida as dá, a Vida as tira — bom haja a Vida. Mas que estou en a ponderar, amor, quando te tenho a meu lado?"

Neste ponto acaba o livro e com êle a revista crítica que J. A. Nogueira faz ás aspirações sentimentais e reli- giosas dos sêres humanos...

STJD MENNUCCI.

(Trechos de um estudo publicado no "Estado de São Paulo", de 11-4-1920.) *

Page 17: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Ao espirito imortal 1

de meu filho Luiz Edgard Nogueira,

falecido aos vinte anos de idade.

Quanã nous en irons-nous oi, vows êtes, colombes, Oú sont les Enfants marts et les printemps enfouis Et tous les chers Amours ãont nous soinmes les tombes. Et toutes les elartés ãont nous sommes les nvÂts?

Vers oe grand ciei elêment oú sont les âiotames, Les aimés, les absents, les étres ohers et doux, Les baisers des Esprits et les regards des Ames... Quand nous en irons-nousf Quand nous en irons noust

Quanã viendrez-vous oheroher notre humble casur qui sombre t Quand nous reprenãez-vous â oe monde chamei, Pour nous bercer ensemble, aux profundeurs de I'ombre, Sous Véblouissement du regard étemelf...

(Viotor Hugo, Contemplations.)

Page 18: Amor Imortal - J. A. Nogueira

t

ESTUDO SÔBRE O ESPIRITUALISMO MODERNO

Sumario. — Também tive meu filhinho... — Como deixei ãe ser materialista para voltar ao Deus de minha infancia. — O maior acontecimento do SecvXo XIX: — o irrupção do mundo invisível, — Função aperfeiçoadora da Dor. — Auxiliar invisível. — Escada de Jacob. — O céu de Swendenborg comparado com o alêm-túmulo do espiri- tualismo moderno. — Aos que se escandalizam ou xom- bam. — Um grnade fisiologista-, Ch. Bichet. — Um

/.I grande poeta: Victor Sugo. — Um grande apóstolo e í,/ artista: Tolstoi. — Assim falou Zarathuatra. — Amor ir Imortal é um documento de singulares premonições. —

Solemnia Verba.

Page 19: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Também tive meu filhinho.

Tu via toujows. Tu agi». Tu conseilles. Tu préserves. Si tu as cessé d'etre virible, oe n'est pas que tu tote parti, o'ett que je tuie aveugle. ,

Ed. EstauniJÍ.

O grande sábio Luiz Figuier, autor de nume- rosas obras de Ciência, tendo perdido um filho de 20 anos, voltou seus olhos para o Além, e escreveu Le Lendemain de la Mort. Oliver Lodge, o céle-

k ' bre físico e pesquisador inglês, lançou ao mun- do o seu admiravel livro Raymond, ou A Vida e a Morte, em que nos conta a história comovent# dos últimos tempos de vida de seu filho, um en- genheiro de 27 anos que, depois de atos de des- prendimento e heroísmo na Grande Guerra, se pas- sou para o plano invisivel, mas de lá continuou a comunicar-se com seus pais e irmãos, em conversas íntimas cuja flagrante realidade não deixa dúvi- das acerca da identidade do comunicante. O pas- tor Walter Wynn nos deu a história, não menos comovente, da sobrevivência de seu amado filho no livrinho consolador a que deu por título esta afirmativa cheia de deslumbramento: Rupert Uves: Rupert está vivo/ ,

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12 AMOR IMORTAL

Como esses tres conhecidos escritores, (#) como o nosso Coelho Neto, de quem ouvi palavras de fé e de esperança, como outros milhares de pais igualmente extremosos, tive um filho de 20 anos, de 20 anos e 6 meses, que aguardava o complemento de seus 21 anos como um dia de festa e que expirou, em per- feita lucidez, por uma manhã de segunda-feira, ás 9 e 20 minutos, em nossa casinha do Ipanema, a . pouca distância do mar onde se banhára alegremen- te como os outros meninos e jovens de sua idade e donde saira com o coração ferido, a bater, a ba- ter num tremor, num tremor de pássaro em ago- nia ...

Também tive meu filhinho e o perdi sem saber como nem por quê... Era inteligente, era bom, era santo... Valia mais do que eu, muito mais, pois dava-me lições de bondade. E deixou-nos no come- ço de uma semana ensoladarada em que devera ter ido para seu empreguinho na cidade, no Juizo Elei- toral, ou para seus estudos e leituras. Deixou-nos chorando e chamando-nos com infinita dor: Papai- zinho! Mamãezinha! Foi no começo da semana, se- gunda-feira, ás 9 e 20 da manhã do dia 30 de Junho de 1930...

Oh! meu querido filhinho, como falar .e escre- ver de ti sem chorar copiosamente?!

Mas não nos deixaste sem consolo. Ao te acha- res do outro lado do abismo sem fundo que separa este nosso grosseiro mundo dos paramos indescri-

(*) A esses tres casos famosos pode-se juntar o do juiz Dahl, membro notável da Suprema CSrte da Norue- ga, o qual, tendo perdido dois filhos e achando-se inconso- lavel, teve a ventura de conhecer a verdade esoterico-reli- giosa da comunhão com os Mortos, havendo publicado dois livros que despertaram viva controvérsia: "Nova luz sobre a vida do além-túmulo" e "Nossa presença sobre a terra".

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. ESTUDO SOBBE O E8PIRITUALISMO MODERNO 13

tiveis em que estáis, fizeste esforços sobrehumanos • para nos certificares da tua presença. Os sinais com

. que nos aeenavas das escarpas altíssimas para onde subiste, não se perderam no vácuo. Antes, transpu- seram o incomensuravel e vieram até os nossos co- rações palpitantes de saudade. Operaste o milagre de nos levar a esquecer todas as interrogações me- tafísicas para nos fazeres sentir com incomparavel candura e naturalidade a verdade cotidiana, come- zinha, infinitamente consoladora da comunhão dos pobres mortos que somos com os saudosos vivos que nos aguardais á beira da morte... E desde então a morte deixou de ser para nós uma cousa terrífi- ca para se converter em uma suprema alegria, so- nho divino alcançado a final pelos pobres sêres ca- tivos e punidos que compomos este ínfimo e pesado mundo.

Oomo deixei de ser materialista para voltar ao Deus de minha infancia ft

(■ l Fui educado no rigorismo dos dogmas católi-

cos. Houve mesmo uma época em que tomei veemen- temente a sério esses dogmas. Foi por volta de meus 17 anos, quando aliava á tradução cotidiana de Vir- gílio e Horacio a quintaessência da patrologia dos primeiros séculos do Cristianismo e a escolástica medieval através da Suma tomistica vulgarizada por Sanseverino e outros compendiadores. Subi en- tão ao sétimo céu do misticismo eucarístico. Vivi a Imitação de Cristo e os Exercidos Espirituais de Santo Ignacio de Loyola. Santo Afonso de Liguori, com sua rigidez teológica, cruzou-se em minha alma com a suavidade de S. Francisco de Sales, de San- ta Joana de Chantal, de Santa Angela de Foligno, a visionária da Paixão... Adorei nessa etapa de

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14 AMOR IMORTAL

minha vida o divino prisioneiro dos sacrarios, so- bretudo quando o encontrava abandonado em al-

■ guma capelinha deserta de pequenos povoados. E cheguei a me perguntar a mim mesmo com espan-

■ to como era que os homens cuidavam da vida e se agitavam pelo mundo a fóra, esquecidos de que Deus em pessoa, Deus em corpo, sangue, alma e divindade se achava presente realmente entre nós, no silêncio de qualquer igrejinha campestre onde bruxoleasse numa lampada de azeite uma pequeni- na chama quasi imperceptiveí.

Muito mais tarde vim a compreender que o ob- it jeto desse meu fervor juvenil encerrava simbòlica- jl mente, no fundo oculto de qus^i todas as reli- ct giõés, o império de uma das mais misteriosas leis

que regem os mundos de sofrimento e expiação como o nosso pobre satélite solar, isto é, a grande lei do sacrifício, sob cujo jugo os seres vivos só per- manecem vivos e evolucionam á custa da vida de seus irmãos. Sem holocaustos não é possivel a exis- tência neste planeta. O anjo mais puro que se haja

.v incarnado entre nós não vinga percorrer o brevís- simo caminho que vai do berço ao túmulo sem de- vorar a cada movimento milhares e milhares de se- res vivos... E todos os deuses e todos os cristos terão que imolar-se, dando a sua carne e sangue, pela vida e salvação dos outros. E' nessa aceitação

^ da lei do sacrifício que está o sentido simbólico pro- fundo da eucaristia ritual assim do cristianismo como do mltraismo e de outros cultos de origem

v asiática. ; Voltemos, porém, á história de minhas atitudes

, espirituais na primeira mocidade. A verdade é que * ; aos 20 anos essa ventania de misticismo tinha sido tt substituída por uma violenta e extrema negação.

A leitura ávida dos filósofos do sec. XVIII e pri-

' *

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ESTUDO SOBRE O E8PIRITUALI8MO MODERNO 15

mórdios do XIX demolira, em pouco tempo, com ò seu racionalismo, as ingenuidades de uma fé cega, arrastando-me por força da lei psicológica de com- pensação pelos contrários, a arremesses de incredu- lidade e de revolta que me tornaram conhecido como orador iconoclasta nas saudosas rodas acadêmicas da Faculdade de Direito de São Paulo.

Professei então com ardor a metafísica do ma- terialismo. Hume, Hobbes, Holbach, Comte, Spen- cer, Buckner, Haekel, Nietzsche, êsse grande ilu- minado que se desconhece a si mesmo, foram os meus ídolos e inspiradores... Considerei a sobre- vivência como uma fantasia pueril e o além dos espiritualistas e «cultistas como uma cousa absolu- tamente cômica. Nunca ninguém foi mais olimpica- mente sincero em suas negações. (*) Quando me fa- lavam em outra vida, ria-me e zombava com a supe- rioridade de um homem que julgava conhecer de ciência própria quão frágeis são os alicerces das ilusões metafísicas e religiosas.

Mas um dia, tinha eu 26 anos, já estava casado e esperavamos o nascimento de meu filhinho, cuja perda vinte anos após me ia despedaçar o coração,

(*) Entre essas atitudes desprezadoras, que não se abaixam á verificação dos fatos, são tipicas a de Gustavo Le Bon e de Anatole France. Aquele, prefaciando o livro espiritualista de Lombroso cuja tradução incluiu na sua bi- blioteca de filosofia cientifica, escreveu que fazia essa pu- blicação para mostrar, por um documento, como um sábio célebre, habituado aos métodos científicos mais seguros, ao penetrar na esfera religiosa, se revelava de uma credulidade infinita. Quanto ao grande romancista, cuja religião era toda . ironia e piedade, nunca passou além da troça pueril

> em relação aos fenomenos psíquicos, chegando a afirmar que William Crookes tinha sido vítima de uma farsa armada por umas moças. Essas poses olímpicas são contraproducen- tes em sua imensa fragilidade.

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16 AMOB IMOETAL

um dia, todo o imenso edifício de minha convicções ! científicas foi abalado por um pequenino fato apa-

rentemente insignificante, mas que, como a maçã .de Newton (si licet parva componere magnis) veiu

modificar de súbito toda a minha concepção meca- nicista da vida e do universo.

•* E' o caso que eu verificára a realização de um sonho que tivera de véspera. Tratava-se de assunto em si absolutamente frívolo. Mas a verdade é que êle fôra previsto no sonho. Fiquei surpreso ante a enormidade da revelação. A velha superstição bí- blica, de que eu tanto ria, do sentido profético dos sonhos de Faraó, das visões de Daniel ou da pre-

riH monição da mulher de Pilatos acerca do sacrifício HjLj de Jesus tinha uma base na natureza! O homem,

em cuja conciência o futuro se podia projetar, não podia ser uma simples máquina! No sistema do

' / mundo organizado pela ciência materialista não ha lugar para as profecias. Na hierarquia de átomos e células que compunham o meu corpo e secretavam

. o meu pensamento não havia eu alcançado se pu- desse admitir o conhecimento antecipado do que ainda vai suceder. D'aí a reviravolta de meu espí- rito e a tensão com que entrei a reexaminar os da- dos com que eu julgara ter resolvido o problema do to be ar not to be.

Nem se objete que o prever o futuro é tão ma- ravilhoso como o leml.rar-se a gente do passado. Não

< ha dúvida que a memória, como observava Richet no seu magnífico livro L'Avenir et la Premonition,

l: é um verdadeiro milagre e toca as raias do sobrei 1 ' natural, razão por que já Platão no Pheãon a apre-

' sentava como prova da imortalidade da alma. ' ^ Certamente para quem medita profundamen-

te, tudo na vida aparece como um perpétuo mila- gre, uma pura maravilha. Mas os fenômenos que

íí»*, ' vÍ l

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fogem ao habitual impressionam-nos mais do que os cotidianos. Bis porque o dom da profecia, a capaci- dade de prever o que ainda não é, o que ainda de- pende de milhões e milhões de dados inteiramente aleatorios, aparece como um fato imenso, um fato grande como uma montanha, para me servir dc uma imagem de Carlyle, sucesso que destroi pelas ba- ses toda a precária metafísica do materialismo. (#)

Pois foi essa previsão do futuro por meio dos sonhos, que tanto surpreendeu a Schopenhauer e que foi familiar ao grande Goethe, que entrou pela minha vida com uma frequencia inaudita. Desde a época acima apontada não houve um grande acon- tecimento de alegria ou de sofrimento, em minha modesta existência, que se não projetasse antecipa- damente em meus sonhos. Poderia eu escrever um grosso volume de narrativas semelhantes ás catalo- gadas por Geley, Richet, Bozzano e outros autores do mesmo tomo. A interpretação dos sonhos por Freud me fez sorrir, quando apareceu, pois veri- fiquei que o conhecido médico vienense deixára de lado como obra de pura superstição precisamente o que ha de mais interessante em materia de so- nhos, isto é, o sonho profético. Aliás sobre este assunto um ilustre magistrado espanhol escreveu uma obra que completa e sublima a obra de Preud: La Psicanálise del Sueno Profético (por Cesar Ca- margo y Marin).

Ha atualmente toda uma biblioteca sobre o so- nho premonitório. Só quem vive completamente alheio aos avanços da Ciência metapsíquica é que

(*) Paul Gibier, no seu esplêndido livro Análise das Oousas, também apresenta o sonho promonitorio como uma das provas mais convincentes da independencia do espírito em relação ao corpo.

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lá AMOR IMORTAL

pode admirar-se de semelhantes afirmações. Trata- se de um fato incontestável e verificado por innme- ros homens de cultura e da mais alta responsabili-

( J dade. Maeterlinck chega a propor um método de provocar sonhos supranormais.

f Pois bem, esse fato, de que eu zombava como ? ' • muita gente, tornou-se para mim uma impressio-

nante realidade quasi cotidiana. E é de notar-se que as nossas experiências pessoais nos impressio-

' ' nam muito mais do que tudo o que apenas ouvimos ou lemos. (•) Não se trata aqui, como dizia William Crookes, nem de filosofia, nem de religião, senão de um fato. Fato maravilhoso e incomensuravel que

íj! ' está nas bases mesmas de todas as religiões e sobre- * tudo nas do Cristianismo! Quem não sabe que entre

os dons do Espírito Santo de que fala S. Paulo um dos que mais prezavam os primeiros cristãos era o dom da profecia?! E toda a apolegética dos padres da Igreja, antigos e modernos, desde o fecundissimo

" ' Santo Agostinho até Bossuet e o rebelado Lamen- nais, procura os seus principais argumentos na rea- lização do que visionaram, em seus êxtasis, os pro- fetas judeus.

■; Assim foi que, a modo do navegante de que , fala Chesterton, que depois de andar vagando per-

1' dido pelo mundo todo acaba por descobrir como í : uma novidade a ilha da Gran Bretanha donde par-

tira, assim foi que, egresso do fervor cristão, aca- ' - ! bei por volver ao verdadeiro seio da verdadeira

i1 (*) Todo o inundo sabe — ensina o prof, islandês Ha- raldur Niolsson — que nessas matérias o que a gente viveu

Y l por si mesma é, como em todos os outros dominios, o mais I • , decisivo... Podemos aprender muito pelos livros. Mas sô-

mente por experimentações e pesquisas tenazes e variadas ó que possuiremos conhecimentos perfeitos 8obr,e essas

; j questões."

'#! m ■a!,

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ESTUDO SOBBE O ESPIEITUALISMO MODERNO 19

igreja cristã (#), num altíssimo voo que me elevou acima dos farisaismos e literalismos com que os ho- mens deturpam e amesquinham a palavra divina.

E vinguei conciliar o meu pi'ofundo catolicis- mo, rico de sentidos ocultos, com as certezas mais consoladoras que jamais visitaram o coração des- pedaçado dos homens que pensam e meditam... Voltei ao Deus de minha infância, por caminhos imprevistos e nunca imaginados. Quando me jul- gava o mais longe possível de todos as fés e reli- giões, em pleno cepticismo, em pleno materialismo, não fazia mais do que velejar a todo pano para o porto que julgára ter deixado para sempre a fim de me aventurar com melancólica tristeza pelo ocea- no da metafísica...

O maior acontecimento do Sec. XIX: — a irrupção do mundo invisível.

Quando por volta dos meiados do século XIX, em cujo âmbito ainda ressoava a risada irreveren- te de Voltaire, o mundo culto começou a ter notí- cia de que as ações maravilhosas do Novo Testamen- to se estavam reproduzindo um pouco por toda a

(*) Sobre essa espiritualisação das igrejas cristãa leiam-se as conferências de Haraldnr Nielsson: "Minhas Ex- periências Pessoais em Ocultismo" e "A Igreja e as Pes- quisas Psíquicas". O ilustre islandês, professor de teologia de Beykjavik, traduzido em alemão pelo professor D. Ri- chard Hofmann, assim concluiu os seus trabalhos: "Eu sei que conversei com sêres do Além bons e amantíssimos e que muitas dessas horas foram das mais santas de minha vida.,. Oh! Quanto essa grande experiencia quebrou os laços es- treitos dos preconceitos' e do dogmatismo da Igreja que encerravam a minha alma! E quanto se elevaram as minhas concepções de Deus e do Oristol"

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parte, assim na América como na Europa, chegan- do a fascinar o grande Victor Hugo, em seu reti- ro de Jersey, o mais ilustre representante da teo- logia e da filosofia católicas, o padre Ventura de Raulica, num como prefácio á grande obra de Mir- ville "Dos Espíritos e de suas diversas manifesta-v ções", teve a coragem de dizer que daquela como epidemia espiritual, que constituia, máu grado as suas aparências de puerilidade, o maior aconteci- mento do século, saía, 'de fato, a justificação do 1

Evangelho e da Fé, a condenação definitiva de um racionaUsmo enxotado (terrassé) por esses fatos, e por conseqüência a glorificação próxima de todo o passado da verdadeira Igreja, e mesmo dessa idade média tão caluniada, tão desfigurada, tão gratui- tamente dotada de tantas trevas. E manifestava o seu espanto pelo fato de os sábios, na teimosia da sua incredulidade, se recusarem a "regarder ce dont tout le monde peut s'assurer aujourd'hui: Óculos habent et non vident."

Tinha razão o grande monge theatino. Tinha e \ tem razão. Porque as suas palavras, publicadas em 1863, ainda continuam em plena atualidade. Em que pese aos anátemas dos espíritos estreitos e blas- femos, a verdadeira glorificação do fundo vivaz dêsse opulento ocultismo que é o cristianismo cató- lico, para cujo vasto seio confluiram todos os mis- térios iniciáticos da antigüidade, todas as profun- das intuições da cultura oriental, assim como da greco-romana, começou a tomar proporções cada vez mais dominadoras no dia em que a antiquissima magia dos livros bíblicos entrou a irromper pe- , los laboratorios das ciências exatas a fim de esmagar com a evidência solar dos fatos que se não dobram . ás injunções das vaidades a pobre e grosseira cre- dulidade dos que ainda creem na realidade da ma-

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ESTUDO SÔBRE O E8PIRITUALISMO MODERNO 81

teria como única essência, ou como absoluto, á ma- neira de Lucrecio...

A Nova Idade Média, de Berdiaeff, não é um símbolo somente no seio do satanismo russo. Ela é um moto de bandeira de todo o espiritualismo mo- derno. E' a história da irrupção do mundo invisí- vel — que nos rodeia e observa — no pequenino círculo de nossas pobres realidades provisorias. To- dos os progressos humanos são obra de intuição, ou de revelação. Todas as grandes verdades surgiram dêsse plano tão próximo de nós, embora se afigure longínquo aos adormecidos na contemplação de Maya, a poderosa e pérfida Ilusão que nos confina nesta pequenina existência.

v Trata-se, porém, de uma Idade-Média transfi- gurada e purificada, livre para sempre do pesadê- lo da intolerância e dos suplícios da Inquisição. Eli- phas Levi, a-pesar-de considerar um sacrilégio a evocação dos mortos, exagêro em que cáem os ocul- tistas que confundem a evocação-prece com a evoca- ção-ordem, afirmando a sua crença de que estava

■) próxima a ressurreição do cristianismo, cujo reina- ' do na terra só agora se ia iniciar, assim descreveu o

surto da Nova Revelação: "Alguma cousa de extra- nho e de inaudito se passa neste momento no mun- do... Uma crença nova parece querer prender-nos á vida, aniquilando a morte. Para ela a morte não existe mais. A vida presente e a futura, separadas apenas por um véu que os espíritos podem atraves- sar, não são mais do que uma só e mesma vida. Nós estamos rodeados por aqueles que amámos, eles nos vêem, nos tocam, nos fazem sinal, nos escre-

f vem, caminham conosco e suportam a metade dos nossos fardos, ás vezes mesmo a sua mão se torna visivel e palpavel para se unir á nossa. O mila- gre se vulgariza e podemos reproduzi-lo á von-

ft

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de. Não mais lágrimas a correr sobre os túmulos, não mais luto, nem coroas funerárias em memó- ria dos que não são mais, porque,, longe de ter cessado de existir, êles estão mais vivos do que nós." E conclue com profunda tristeza: "Que so- nho divino! Que doce loucura!"

Por que loucura se o autor reconhece a reali- dade das manifestações, que, a seu ver, são explica-

1 das pela pneumática kahbalística de Isaac de Lo- ria (De Revolutionibus animarum)1\

Simplesmente porque Eliphas Levi, que era um padre (A. L. Constant) acreditava, aliás erra- damente, que a nova religião vinha tornar inútil o sacerdocio, como se pôde lêr na página 282 de sua obra "A Ciência dos Espíritos"!

Felizmente essa ressurreição joeirada e puri- ficada do que melhor tinha a alma profunda da Idade-Média não foi uma passageira miragem, como a muitos pareceu, não foi uma simples epi- demia, como dizia Raulica; antes converteu-se numa verdade imponente que só não domina os es- píritos pusilânimes dos que fazem da chamada ]\ ciência oficial um monopólio interesseiro, uma glo- ríola vã e utilitária.

Mas lá um belo dia vem um grande golpe mo- ral e abre os olhos aos cegos, aos indiferentes, aos vaidosos que somos...

Função aperfeiçoadora da Dor

O que nos vale é que a Dor, hoje como outrora, nos desperta e nos descerra os olhos. Ela é o duro escôpro com que Deus nos esculpe e modela as al- * mas. Ela encerra toda a mística da rosa-cruz. Nossa pobre razão não a alcança, nem compreende. Nos- sos sentidos a repelem com violência e terror. Ela,

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porém, nos vem do Além para nosso bem. Victor Hugo exprimiu, com inaudita grandeza esse ignoto da dôr humana, nos seguintes versos:

.. .oh mon Dieul Dans vos cietíx, au ãelà ãe la sphère ães nues, Au fonã ãe cet azur immobile et dormant, Peut-êtrc faites-vous dcs choses inconrmes,

1 Oú la douleur ãe 1'homme entre comme élément.

Mas ninguém melhor do que Paul Bourget, no seu livro Le Sens de la Mort, soube mostrar qual é, á luz do cristianismo, a função da Dôr, do Sofri- mento, como meio de aperfeiçoamento e de purifica- ção das almas.

Pois esse despertar, estimulado pela Dôr au- gusta, adquiriu mais profunda significação depois que entrámos em contacto direto com a alma secre- ta das religiões por meio da Nova Revelação que mais uma vez nos aproximou da Face Divina.

Depois que perdi o meu filhinho, que morreu ^ moço como o Cristo de Deus, sofrendo como êle,

como êle bradando pelo socorro do Pai, foi que comecei a compreender com angustia a alma pro- funda do cristianismo. Toda a minha existência só adquiriu sentido real depois dessa Dôr sem nome. D 'aí em diante é que aprendi a orar, como o ensinou Jesus por ocasião do sermão da montanha.

Auxiliar invisível

Para atingir, porém, essa cumeada, estou certo que tive um auxiliar invisivel, que me acompanha, preserva e protege. Se Deus me der tempo sufi- ciente, talvez ainda escreva todo um livro contan- do por miúdo todas as graças, todos os sinais ine-

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24 ' AMOE IMORTAL

faveis que me aproximaram de meu filhinho depois que ele se foi...

Ernesto Bozzano, em seus convincentes traba- lhos, narra muitos fatos que são semelhantes aos que se passaram comigo. Bastas razões tinha Conan Doyle quando afirmava que toda a taumaturgia do Novo-Testamento se estava novamente realizando em nossos dias, inclusive a maravilha que consti- tuiu o dogma fundamental dos primeiros tempos do cristianismo (*) e que tanto surpreendia os ou- vintes gregos e romanos: — a ressurreição dentre os mortos, a ascensão em corpo espiritual, como chama- va S. Paulo ao linga-sharira. dos hindus, ao corpo su- til ou etéreo dos neo-espiritualistas.

Escada de Jacob

A epidemia espiritual de que falava Ventura de Raulica e que vem num crescendo desde meadcs do século XIX manifestou-se por diversos métodos, que conduziram todos aos mesmos resultados. Se de um lado o mundo invisível entrou a descer até os homens multiplicando os fenômenos físicos e as demonstrações de ordem intelectual e moral, por ou- tro em cestos espíritos de eleição, como Helena Bla- vatsky, Olcott, Annie Besant, Rudolph Steiner,

(*) Não só o cristianismo, mas todas as religiões se ampliam e elevam â luz do ocultismo. Razão tinha Figuier de dizer que entrava com igual respeito 0 o mesmo fervor em todos os templos do mundo. "Fora da nossa Igreja — ensina Paul Gibier — haveria salvação quando conseguis- sem permanecer fóra dela. Mas isso não é possivel, porque ela chama-se o Mundo, e, sob este título, é verdadeiramente universal; é a Igreja de Pan, a Igreja dò Grande Todo." E' de notar que o puro ensinamento de Jesus entra nesíe quadro, ilimitado como o reino do pai celestial.

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ESTUDO SOBEE O EgPIEITUALISMO MODEENO 25

Leadbeater, Tram, e tantos outros, o mundo inte- rior humano é que subia concientemente ás regiões do Além, num como lúcido sonho supranormal. Formou-se uma como escada de Jacob por que vi- nham a nós e iam ao reino espiritual os anjos de Deus, incarnados e desincarnados, ávidos todos de entrar em comunhão com o Espírito Consolador. E as informações dos que descem coincidem per- feitamente com as dos que sobem. Compare-se essa obra prima que é o livro de Elsa Barker Cartas do

( Além-túmulo, ou O outro Lado da Morte, de Lead- beater, com as revelações de Georges Pelham por intermedio de Mme. Piper, com as de Raymond, com as narrativas das mil e uma coletâneas da ul- trafânia moderna e ver-se-á, como já observou Boz- zano em páginas de uma claridade inexcedivel, que todos os exploradores nos trazem observações fun- damentalmente idênticas e muitíssimas vezes ao avêsso do que fôra de esperar se se tratasse de obra de pura imaginação. ,

* O céu de Swendenborg comparado com o além* túmulo do espiritualismp moderno

"São inumeráveis — comenta Trarieux — as comunicações do Além que descrevem a vida que aí levam os Mortos. Se prestarmos ouvido a suas leves vozes, acabamos por ficar ensurdecidoo com a sua sinfonia obsessora. Passeando livremente na aura terrestre, o clarividente confirma as suas narrati- vas. O maior dentre êles, Swendenborg, passou qua- renta anos ocupado nisso e escreveu a proposito cem volumes. E' verdade que ele confunde muitas vezes os desincarnados que somos com as Hierar- quias precedentes. Tal cousa, porém, não infirma de nenhum modo o valor de seu testemunho."

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í 26 AMOK IMOKTAL 'i || rn. Tive ooasiao de aquilatar do acêrto dessa ob- i[ . ' servação do ilustre teósofo, lendo ao mesmo tempo

"As Maravilhas do Céu e do Inferno", de Emma- : nuel Swendenborg e a recente obra de Charles

Drayton Thomaz "A Vida além da Morte com pro- vas", comentada por M. Sage no empolgante opus- culo "A Ascenção Cósmica do Homem". São duas fontes o mais extremadas possível uma da outra. Aquele grande extático nasceu em 1688 e morreu em 1772, tendo escrito as suas revelações do meiado de sua vida em diante. Ao passo que as comunica- ções recebidas pelo reverendo Drayton são atuais. Ha nestas numerosos casos em que as informações

I ultrafânicas são acompanhadas de impressionantes provas de identidade dos comunicantes. De sorte

1 , que são veementes as presunções de veracidade das i ' outras informações não imediatamente verificáveis. ' Pois bem, em suas grandes linhas e mesmo em

alguns singulares detalhes, as narrativas coincidem tanto quanto é natural se aproximem impressões de

; viajantes diversos que visitaram as mesmas regiões, levando-se em conta, está claro, a diferença de ter- minologia e a parte mèramente subjetiva de cada um dos observadores. Assim é que Swendenborg chama a todos os espíritos anjos e demônios, á medida que as mensagens de Drayton e de sua filha Etta não são coloridas dêsse iluminismo sectário. Mas, ao con- trário do que era de esperar das opiniões religio- sas dos informantes, que ambos foram pastores pro- testantes, ha perfeita coincidência no atribuírem ao Além o aspecto de realidade e de solidez do nosso mundo, assim como na aparência dos espíritos, nas suas fôrmas humanas, nas suas sociedades, e em mil outros acessorios de sua existência. E' de no- tar-se que, tendo Swendenborg acreditado no in-

- ferno das tradições religiosas medievais, seria de

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supôr visse êle em seus arroubos os espíritos infer- nais sob as aparências clássicas da demonologia em voga. Entretanto, com grande surpresa mesmo para o vidente, nas regiões que julgava ser a dos conde- nados, só viu sociedades humanas, cujos sofrimen- tos deviam ser morais.

Não desço a maiores precisões porque escrevo para o grande público e ha peculiaridades que só iniciados podem alcançar. Mas chamo a atenção dos que teem alguma cultura oculta para as sin- gulares coincidências que poderão encontrar no es- tudo paralelo dessas duas fontes místicas, para as- sim chamar-lhes.

M. Sage, que estuda o espiritualismo experi- mental com uns toques de cepticismo mal disfarsa- dos, ao terminar o seu interessantíssimo trabalho acima citado, manifesta a sua incredulidade em re- lação á descrição que os comunicantes John e Etta Drayton, pai e irmão de Charles Thomaz Drayton, fazem de uma especie de excursão que teriam fei- to a-fim-de contemplar, na sétima esfera, a Cristo

§ em seu corpo espiritual e em sua glória inefável. Mas precisamente nessa materia é que as descri- ções de Drayton coincidem de maneira singularissi- ma com as de Swendenborg até nas atitudes dos adoradores e na maneira por que se manifesta o Pilho de Deus. Assombrosa também é a identidade de informações sobre o modo de se regerem e governarem as sociedades celestes e sobre as im- pressões dos que lá apoytam logo depois de haverem despido definitivamente, com a morte, a miserável túnica da carne.

Bem sei que se pode objetar que o autor atual podia muito bem conhecer a obra do iluminado da Nova Jerusalem. Sem dúvida. Mas as coincidên- cias de informações são inúmeras e crescem cada

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vez mais. Áo lado delas, ha um rosário interminá- vel de outras provas. Para quem não quer discutir, mas apenas procurar leal e honestamente a verdade, sem nenhum parti pris, todas estas cousas devem ser pesadas maduramente no tribunal do bom senso.

Além disso, não (levemos esquecer que o céu de Swendenborg corresponde exatamente ao^ que os filósofos hindus chamam de devachan. Aí, se- gundo todos os cultores das ciências esotéricas, é imenso o império da imaginação, das crenças anti- gas, dos desejos e aspirações. Por isso é que Eli- phas Levi escreve que quando o homem adormece de seu último sono, cái numa especie de sonho ou de pesadêlo durante os quais vê o paraiso ou o in- ferno em que acreditou durante sua existência mor- tal. E Elsa Barker no seu estupendo livro Letters froni a living dead mam, nos descreve verdadeiras multidões em tomo da imagem, do deus que adora- ram çm vida.

Mas, passado êsse estado como que alucinato- rio, as cousas se esclarecem e precisam de manei- ra a constituírem para todos uma mesma ambiên- cia, o que permite a verificação da. absoluta identi- dade de informações sôbre um sem número de aspectos da vida de além-túmulo.

Se, todavia, para nos certificarmos da exis- tência dêsse Além, assim como de qualquer cousa de aquém-túmulo, começarmos por enveredar pela análise dos dados imediatos da percepção e do va- lor absoluto ou relativo do proprio conhecimento humano, arriscamo-nos muito a patinhar toda a vida num estéril cepticismo. O Além deve ser ad- mitido pelos mesmos motivos fundamentais por que admitimos a existência de um país mais ou me-

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\ V.

ESTUDO SOBRE O ESPIRITUALISMO MODERNO 29

nos longínquo, mas suceptivel de ser percorrido ao menos por alguns viajantes mais audazes...

Já dizia Platão, no Phedon, que devemos to- mar o melhor dos ensinamentos humanos e subir a êle como a um esquife para atravessarmos, não sem perigo, o rio da vida, salvo se pudermos exe^ cutar a mesma travessia mais seguramente, sobre um navio sólido, isto é, sobre algum ensinamento divino.

Aqueles que não tiveram a graça de um conhe- cimento direto teem que louvar-se nos testemunhos dos outros e tomar uma decisão á maneira aconse- lhada por Pascal, ao menos como ato inicial ou ponto de partida...

Aos que se escandalizam ou zombam

Bem sei que esta linguagem, hoje como no tempo em que São Paulo arrostava as facécias dos cultissimos gregos, provoca escândalo no seio dos homens que não sofreram a perda de algum ente

®. querido e por isso não meditaram profundamente sobre o maior problema da nossa efêmera existên- cia. Já quando o grande apóstolo dos gentios fala- va na ressurreição dos mortos replicavam com zom- baria que outro dia o ouviriam. Mas a história dos primeiros tempos do cristianismo está se repe- tindo. (*) E é muito de notar que os que mais se es-

(#) Acerca dessa ressurreição do cristianismo primiti- vo por meio da Nova Revelação muito se tem escrito. Indico, porém, como obras capitais: Região em Utigio, por Dale Owen, e "A Igreja e as pesquisas psíquicas", por H. Niels- son, traduzido por R. Hofmann, prof, da Universidade de Viena, que escreve no prefácio que "as experiências de Niel- son nos levam & certeza de que êste mundo dos sentidos não é senão uma parcela da grande realidade divina, e que depoia

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30 AMOR IMOETAL

candalizam, se derem am severo balanço em suas crenças, verificarão que admitem, por fôrça de tra- dições nunca sujeitas á crítica, coisas imensamen- te mais inverosímeis e mesmo absurdas. Neste par- ticular é curioso ver como as ortodoxias se arrogam o direito de zombar de verdades infinitamente mais consentâneas com a razão do que qualquer das de- turpações absurdas que infligiram aos ensinamentos dos grandes instrutores.

Aqueles a quem parecerem pueris ou dignas de riso as modernas revelações ultrafânicas deve- riam, antes de pronunciar a sua condenação sumá- ria, procurar saber ao certo quais foram os homens que as aceitaram, em suas linhas essenciais, dentro e fora das confissões religiosas.

Neste assunto poder-se-ia escrever, não um li- vro, mas toda uma biblioteca para mostrar que tais concepções foram aceitas pelos espíritos mais altos que ainda apareceram neste mundo sub-lunar — pelos maiores filósofos, desde Platão até "VV. James e Bergson; pelos profetas e santos, desde a Bíblia

* até a Nova Jerusalem, de Swendenborg, ou até o humilde Je siois vivcmt, de Pierre; pelos grandes poetas como Dante e Milton, como Shakespeare, Goethe e Victor Hugo, — os gênios cardeais da Europa sob o ponto de vista esotérico, — por to- dos enfim que representaram as mais perfeitas formas de conciência atingidas pela especie huma- na... Mas, ao invés de percorrer toda a história da civilização assim oriental como ocidental, vou limi- tar-me a algumas observações que mais me impres- sionaram, no meu trato diuturno com certos auto- res prediletos. Semelhantes notas, tomadas a esmo,

de nossa morte nos será dado conhecer muito mais do que essa pequenina parcela."

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ESTUDO SOBRE O ESPIEITUALI8MO MODERNO 31

sem nenhum intuito de coordenação, não deixam de ter o seu sabor especial, levando ás vezes aos espí- ritos abertas de luz que nenhum tratado lograria provocar.

Um grande fisiologista

Esse grande Carlos Richet que morreu ha pouco e que todo mundo conhece como grande fisiologista da estirpe dos Claude Bernard, não era o incrédu- lo que se pretende. Embora os seus meios de conhe-

' cimento tivessem sido apenas os pobres meios de que dispõe a ciência oficial, miserável lâmpada de mineiro em comparação com o sol da clarividência, depois de expôr as razões que tem a fisiologia para negar a continuação do pensamento após o aniqui- lamento do cerebro, escreveu no livro L'Age d'Or, estas linhas pouco conhecidas:

"Ce serait en somme três simple et irre- , futable si des faits de tout autre ordre n'in- .

® tervenaient pas pour compliquer la quéstion. Une réligion nouvelle a apparu dans le

monde, qui, contrairement aux prédications de Boudha, de Saint Paul et de Mahomet, s'appuie, non sur la révélation divine, mais sur un ensemble imposant de faits: c'est le spiritisme."

Richet tem razão de apontar o aspecto experi- mental externo de parte do ocultismo moderno, as- sinalando assim, sem o visar diretamente, o ponto de confluência dessa ciência com a clarividência oculta que levou, por exemplo, uma mulher como ' Helena Blavatsky a afirmar na Doutrina Secreta idéias e princípios sôbre o Espaço-Tempo só desço-

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32 AMOE IMORTAL

bertos mais tarde pela ciência representada pelo gênio de Einstein. Não tem, porém, razão quando afirma que as prégações de Budha, de S. Paulo e de Mahomet não se alicerçavam também sôbre fatos.

' Os fatos em que repousa o espiritualismo moderno já existiam tanto no Oriente como no Ocidente na alvorada das três religiões a que se refere o sábio professor e eram invocados por esses instrutores como cousas de experiência imediata. S. Paulo viu a Jesus na estrada de Damasco e subiu em espírito ao terceiro céu, como mais tarde o fez Swenden- borg numa experiência que durou quarenta anos. O cristianismo dos Atos dos Apóstolos baseou-se sô- bre um grande fato visto por mais de quinhentos discípulos: a materialização ou ressurreição do Mes- tre. Quanto ao budhismo e mahometismo, é também de observar que um e outro tinham as suas raizes na experiência e na ciência dos budhas, dos ioguis, assim como dos derviches e marabuts...

No mesmo engano caiu, pelo seu acento especial • de positiviãade, o diabólico Freud, em sua obra

ultra-mediocre sôbre as religiões intitulada O Fu- r

turo de uma Ilusão. Aí afirma êle que o espiritua- lismo moderno, diversamente das outras religiões que se apoiam no passado, apéla para provas de fáto, com que o sistema religioso muito ganharia quanto á sua credibilidade, mas que tais provas não foram dadas... (#) Pobre Freud! Apesar de ter

(*) Quem quiser conhecer os fatos em que se funda o moderno espiritualismo e tiver pouco tempo para leituras, limite-se ás obras de Bozzano e á obra capital de Aksakof intitulada "Animismo e Espiritismo". Em materia de ocul- tismo propriamente dito leia-se ao menos Rudolf Steiner. Mas a leitura não basta. E' preciso ter experiência pessoal. Esta, porém, em esoterismo, como em todas a» religiões, é acima de tudo obra da graça divina.

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ESTUDO SÔBRE O ESPIRITUALISMO MOPEENO 33

descoberto na subconciência humana alguns dos monstros que se movem em suas profundezas, al- guns dos velhos seres que o iniciado Bulwer Lyton chamou de espectros do humbral, nunca passou de um desses mesquinhos diabos a quem Dmitri Merej- kowsky atribue a direção do sistema de negações que é o chamado comunismo russo.

Mas tornemos ao nosso Richet, que, depois da observação de espanto contida nas linhas acima ci- tadas, escreveu o seguinte:

1 "II ne faut pas dédaigner le spiritisme. II y a peut-être une petite part de veritó dans cette étrange réligion nouvelle, qui s'ef- force à penetrer le mystère des mystères.

Un grand savant, mon cher et illustre ami sir Oliver Lodge, qui a écrit de três beaux ouvrages sur la survie, et qui y croit résolument, a formulé son opinion d 'une ma- nière ingenieuse et profonde, que je vais pro- bablement altérer un peu en I'exposant.

1 1 "Voici, dit-il, une pile électrique qui donne le mouvement. Que les fils soient bri- sés, le mouvement cesse; mais la force de cette pile électrique n'en subsiste pas moins, quoiqu 'on ne puisse rien constater, puisqu'il n'y a plus de fil pour la conduire. De même la force de Pâme ne vas pas s'éteindre quand 1'organe cérebral, — c'cst-à-dire les fils de la pile — par lequel elle s'exprimait est dé- traqué...

Ce ne sont pas seulement les grands sa- vants comme Oliver Lodge, William James, Flammarion, qui ont accepté l'idée d'une vie immortelle, mais encore les poètes. Toute

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34 AMOR IMOBTAL •f

I'ceuvre de notre grande Victor Hugo est plaine de cette croyance à l'imortalité;

, Alors, entre les faits précis evoques par les physiologistes et les faits nuageux évo- qués par les spirites, je demeure presque in- certain.

Mais j'ai confiance en 1'avenir illimité de la science. Qui sait s'il ne sera pas de- montré un jour que la mort du corps n'est pas la mort du moi, que notre vie n'est qu'un passage, que des existences mys^irieuses nous sont réservées par delà 1'espace et le temps, . ces deux foibles idoles de notre impuissance intellectuelle."

Seja dito entre parêntesis que a alusão de Ri- chet ás formas kantianas espa-ço e tempo como não sendo mais que ídolos representa um esforço da in- teligência comum para alcançar o que a Blavatsky > sabia por intuição e Einstein, pelo seu descomunal gênio matemático, isto é, que, se a materia e o mo- vimento não são mais, como ensina Eddington, do que aspectos da curvatura do espaço, este, que não difere fundamentalmente do tempo, é o Pai-Mãe de que, segundo a doutrina secreta, nascem o Espíri- to e a Materia... E eis como três espíritos diver- sissimos, mas todos poderosos, por veredas tão ex- tremadas umas das outras, chegam a final a vis- lumbrar um dos postulados mais profundos da ciência esotérica!

Mas continúa Richet:

"Je ne veux pas insister sur des rêves fumeux, pourtant je ne peux me défendre de quelque espoir."

E acrescenta:

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ESTUDO SOBRE O ESPIBITUALISMO MODERNO 35

V "Peut-lêtre arriverons-nous a Tegarder ' • la vie future comme un phénomène aussi cer-

• tain que I'attraction!"

Mais tarde na Grande Esperance essa intui- ção de que o sábio não lograva desprender-se, apê- sar do envoütement da ciência fisiológica, (*) abriu maiores asas para uma concepção da imortalidade que encheu de aleluias os últimos anos de sua vida terrena... -

Um grande poeta

Victor Hugo não sò cria firmemente na imor- talidade, como observou acima Richet, senão que se servia do processo chamado tiptológico para entrar em comunicação com o mundo invisivel, como se pode ler na obra de Gustave Simon: Les Tables Tournantes de Jersey.

O segundo volume das Contemplations é todo êle uma obra nitidamente esotérico-espiritualista,

\ (*) Um outro grande sábio que reduzia toda respon-

sabilidade humana a fatalidades fisiológicas, Cesar Lom- broso, cm sua obra Eipnotismo e Espiritismo, acabou pondo a paixão ãa verdade e ão fato verificado, como diz êle pró- prio, acima da fé científica. "Depois de toda uma vida — escreve no prefácio — consagrada ao desenvolvimento da psiquiatria e da antropologia criminal... julguei do meu dever coroar minha carreira pelo progresso das idéias lu- tando pela idéia mais contestada e ridiculizada do século." Por aí se vê quanta razão tinha H. Nielsson do escrever: "Todos os que verdadeiramente aprofundaram esse assunto, não em algumas semanas ou mêses, mas em uma série de anos, todos se convenceram da realidade dos fenomenos, e muitos dentre êles da possibilidade de entrar em relação com os sêres inteligentes de um mundo invisivel, e em particular com os nossos queridos mortos."

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36 AMOB IMORTAL

cujas estrofes sublimes, diz Gabriel Trarieux, fa- zem parte, a esse título, do patrimonio da huma- nidade. Quem não conhece estes lindos versos:

Je ãis çpie le tombeau qui sur les morts se feme Ouvre le firmament;

Et que oe gu'ioi bas nous prenons pour le terme Eft le commencement!

E estes outros:

Hermann, reprit alors: Le malheur, o'est la vie. Les morts ne souffrent plus. Us sont heureux! J'envie Lew fosse oil Vherbe pousse, oil s'effeuUlcnt les bois. Car la nuit les caresse aveo ses douces flam/mes; Car le ciel rayonnant calme toutes les âmes Dans tous les tombeaius à la foist

E je ãis: Tads-toil respect au noir iriystère! Les morts gisent oouchês sous nos pieds dans la terre. Les morts, ce sont les cceurs qui t'aimaient autrefois I C'est ton ange expiré! o'est ton père et ta mèret Ne les attristons pas par Vironie amère. '• Comme à travers un rêve, ils entendent not wis.

Edmond Escholier, o lírico autor da " Vida Glo- riosa de Victor Hugo", falando sobre este assunto, escreve: "Nas revelações das mesas, Hugo vê a des- lumbrante confirmação das suas idéias .religiosas. E é nessa convicção que escreve, a 19 de setembro de 1854: "Os sêres que povoam o invisivel e que veem os nossos pensamentos, sabem que ha vinte e

, cinco anos me ocupo dos assuntos que a mesa sus- cita e aprofunda... Esses sêres misteriosos e gran- des que me escutam vêem, quando querem, no meu pensamento, como se vê numa gruta com um archote... Tudo o que eu vira por inteiro ê con- firmado pela mesa, e as meias revelações a mesa as completa." '

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ESTUDO 8ÔBRE O ESPIRITUALISMO MODEENO 37

Um grande apóstolo e artista

Um ontro grande escritor que descreve a .morte exatamente de conformidade com as revelações dos chamados mortos é o assombroso Léon Tolstoi. O suicídio de Anna Karenine é precedido, no famo- so romance, de um sonho premonitorio em que ela vê um mujik benzendo-se, mujik que de fato apa- rece e persigna-se no momento em que a mesma se atira sob as rodas de um carro.,. Mas onde o extraordinário autor do Poder das Trevas pinta a agonia e a morte á maneira neo-espiritualista é quando descreve os últimos momentos de um velho juiz, na novela 'A Morte de Ivan Hitch, e os não menos dolorosos do comerciante Brekhounov na ma- ravilhosa obra prima que é O Amo e o Servo, pas- sagens essas em que o olhar penetrante do grande iniciado, transpondo os humbrais do Além, aí acom- panha os primeiros passos ainda vacilantes dos es-

» pintos que se libertam do pesado involucro do corpo...

® Em ambos êsses trabalhos Tolstoi vê o Além pelo mesmo prisma que Plótino, o grande iniciado neo-platônico. Tanto assim, que o céptico Chestov, no seu livro .ás Revelações dá Morte, aplica á con- cepção do grande apóstolo moderno os versos sau- dosos das Bnneadas: "Fujamos para nossa queri- da pátria... De lá é que viemos e é lá que se en- contra nosso Pai."

Assim falou Zarathustra

Um outro grande escritor, um filósofo no mais alto sentido da palavra, que, apesar de sua obses- são de apresentar-se como Antieristo e anunciador

^ 4

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38 ' , AMOR IMORTAL

da morte de Deus, deve ser, entretanto, considera- do um iniciado que se ignora, é Frederico Nietzsche. Sua teoria da Volta Eterna constitue extraordiná- ria afirmação de uma grande verdade ensinada pelo esoterismo de todos os tempos.

Um dia Zaratustra encontra-se face a face com a Vida, e, tomado de embriaguês dionisíaca, entoa o mais ardente hino que ainda se ouviu.

A Vida, porém, o contempla pensativa e diz- lhe em voz baixa:

"— O' Zaratustra, tu não me és bastante .fiel! Muito falta para que me ames, como o dizes; sei que pensas em brevemente me abandonar.

Ha üm velho, um grande sino, pesado, muito pesado, que anuncia a noite lá em cima, até dentro de tua caverna...

Quando lhe ouves dar horas á meia noite, pensas em me abandonar entre uma hora e meia noite...

Pensas, 6 Zaratustra; sei que me queres muito breve abandonar!

"— Sim, responde-lhe, hesitante, Zaratustra; mas tu o sabes também..." E debruçando-se sô- bre os sei;s cabelos de oiro, segreda-lhe as palavras mágicas de uma profissão de fé... Desabafa-se. Murmura a medo uma esperança vertiginosa que ha muito trás recalcada no fundo do peito. Afir- ma a Volta Eterna de todos os seres, a perpetui- dade do pensamento, a imortalidade da conciência individual...

"— E nós nos olhamos, exclama com a apai- xonada comoção de amante que pela primeira vez abraça a mulher por quem longamente suspirou — e nós nos olhamos, lançamos os olhos para a verde campina, onde passava o frescor da tarde, e chora-

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ESTUDO SOBRE O ESPIEITUALISMO MODERNO 89

nãos juntos... Mas então a vida me era mais cara do que jámais o foi toda a minha sabedoria...",

E canta:

A alegria, é mais profunda que a afliçáo. A dor diz: Passa e acabai Mas toda alegria quer a eternidade. ...quer a profunda eternidadeI

E' impossível lêr-se essa página sem Se sentir quão grande era a fascinaçã que no espírito de Nietzsche exercia a idéia da imortalidade, apesar da cólera sarcástica com que a ela se referia.

Ha nessa teoria ressonâncias do pralaya dos hindus, sístole e diástole do coração de Brahma, a Causa sem Causa... E ha também nela, embora mutilada, a crença na reincarnação ensinada por Jesus quando afirmou que S. João Batista era. Elias que voltara, crença adotada nos Mistérios iniciáti- sos dos cristãos dos primeiros séculos e por gran- des Padres da Igreja, como Origines e S. Clemen- te de Alexandria. Não fôra o concilio de Nicéia, em

q que, apesar da grande maioria de opiniões, domi- naram a final as sugestões de Constantino, que o presidiu, hoje reinaria unanimemente em todo o mundo cristão a verdade que o Oriente sempre teve como um axioma de que o espírito evolve numa roda incessante de vidas sucessivas.

Mas não foi sòmente no anúncio da Volta Eter- na que Nietzsche descobriu, sem o saber, as raizes de uma verdade oculta. A sua teoria do super-ho- r~ «tem é outra tradução imperfeita de uma grande" " lei que rege as diversas esferas da vida daquém e dalém-túmulo. Esses homens-deuses com que êle so-. nhava, sê-lo-emos um dia todos nós, e alguns ha que se revelam tais mesmo no círculo desta vida terrena. Estão nesse número os fundadores de re-

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40 AMOE IMOBTAL

ligiões, os extremamente puros e compassivos, os que passam por nós como anjos, porque não são deste mundo...

Nietzsche foi um paradoxo vivo. Seu aparente ódio furioso ap Cristo parece disfarsar uma fôrma singularíssima de amor inconciente. Porque nin- guém como Zaratustra desprezou com mais veemên- cia o espírito de baixeza e de mesquinhez que é o inverso do verdadeiro cristianismo... Razão tinha o agudo Remy de Gourmont em dizer que S. Fran- cisco de Assis era uma sorte do super-homem nietz- scheano. Muito se iludem aqueles que invocam o nietzschismo como estandarte do Mal. Pouco impor- ta a direção superficial dos discursos da Águia de Sils-Maria. No fundo de seus mitos ressoa a voz de uma profunda iniciação...

O culto de Dionisos, o deus que se agita e sofre, mesmo nos transportes de alegria, encerra também um aspecto da doutrina de Nietzsche em que ha uma como sedimentação da grande lei oculta sobre a função aperfeiçoadora da dôr e da necessidade do sacrificio para que se abram as crisálidas hu- manas.

Mas ainda ha mais. Nietzsche concorreu gran- demente para demoralizar as pretensões absolutas do racionalismo e do dogmatismo científico. Êle via no fato do conhecimento um fato de poder, um golpe de fôrça, um ato de conquista, ou melhor, um mero artificio biológico. Ha na sua atitude uma

^contradição íntima, pois é sempre com a autoridade da razão que se nega a legitimidade dessa mesma razão. Onde, porém, o pensador da Vontade ãe Po- der veiu roçar outra verdade oculta foi no desprê- zo com que se referia á pequenina razão* em oposi- ção a mais poderosos e completos meios de conhe- cimento. Êle sentiu com o seu gênio que o processo

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ESTUDO SOBftE O ESPIRITUALISMO MODERNO 41

raciocinante nem sempre é o mais seguro para se atingir a verdade ou a realidade. Embora tivesse chegado, como Berkeley, a uma sorte de idealismo absoluto que, com a supressão da relação de sujeito a objeto, o conduzia a uma mescla de fenomenalis- , mo e de cepticismo, sua obra toda está cheia de profundos relâmpagos. Sua imaginação como ins- trumento de conhecimento foi muito maior do que seu poder de análise e assim aparece como um gran- de auxiliar dos que afirmam que, além dos proces- sos normais de conhecimento, ha os supranormais, como a intuição, a clarividência, a lucidez mística, — verdade experimental conhecida e praticada por todas as escolas iniciáticas.

Se ha uma cousa que os ocultistaa teem afir- .mado com insistência é que a ciência, a orgulhosa ciência, com os seus métodos de precisão, é acima de tudo um instrumento de poder: "La science — diz Trarieux, o autor de "Cassanãre ou peut-on prédire 1'Avenirf" — de toute evidence, ne vise

. qu 'lift Hut: le pouvoir. Si ce pouvoir sert 1'hom- . me, tant mieux. 8'ü lui est nuisible, tant pis. Elle

® ira son chemin tout de même." E um Adepto ensi- nou: "Estamos tão afastados da vossa ciência ex- perimental quanto Uranus o está da Terra." Já Pló- tino, Pórfiro e Proclus, as grandes figuras da Es- cola de Alexandria, sustentavam que a disposi- ção para o êxtase era condição indispensável ao es- tudo da filosofia. Esse estado que os gnosticos e neo-platônicos chamavam de êxtase é o que Richet chamou de sexto sentido, percepção supranormal cujo órgão é o olho ciclópico dos antigos, a flor de lótus ou o chákra do esoterismo hindú.

Por aí se vê quanto Nietzsche era profundo, no meio das suas contradições. Ser profundo é desco- brir verdades ocultas, por meios extr ■:-normais, os

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42 AMOE IMORTAL

quais teem tomado diversos nomes. Assim Ribot chamou-lhes imaginação criadora; Bergson, intui- ção; Hartmann, in ou subconciênte, e os metapsi- quistas e espiritualistas, lucidez, clarividência, ilu- minação ou ultrafânia meãiúmwica...

E aqui ponho ponto á revista exemplificativa que fiz para mostrar que o espiritualismo, que £oi a alma do presente livro tem a aboná-lo, direta ou indiretamente, as mais nobres figuras da cultura universal. Richet, um fisiologista, afeito ás ciências chamadas exatas; Hugo, um grande poeta; Tolstoi, o apóstolo do mais puro cristianismo e maravilho- so artista, e Nietzsche, o imenso e paradoxal Nietz- sche — todos êles pojaram, sem o visarem conciente- mente, e mesmo sem o confessarem, na terra firme do esoterismo, que é o lado fecundo de todas as reli- giões, filosofias e artfte.

Antes, porém, de terminar esta exposição, tenho de deixar assinalado com o maior destaque um fato de dolorosa previsão que ressái da própria publica- ção das primeiras edições desta obra.

E é que "Amor Imortal", êste livro-sonho de que não me ufano de autor senão na medida em que logrei refletir — humilde mistagogo — uma como poderosa claridade subliminal, de origem téofânica, veio a final a converter-se num documento de sin- gulares premonições, fundamentalmente da mesma natureza de minhas outras antevisões oníricas, — o que espero mostrar no capítulo final deste ensaio, o qual segue em separado e em grifo, para assim melhor se acentuar o seu alcance esoterico, sentido esse que sem dúvida não escapará á meditação dos que sabem como se tecem e planeiam, na luz super- na que nos dirige e envolve, os pobres, os dolorosos destinos humanos...

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"AMOR IMORTAL" £ UM DOCUMENTO DE SINGULARES PREMONIÇÕES

Quantos poemas encantadores são compostos aqui no mundo in- visível e gravados em. seguida nos espíritos receptores dos poe- tas terrestres I

(Da mensagem recebida por Elsa Barker.)

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"Solemnia Verba" v

Quando, ha cerca de vinte anos, escrevi as no- velas que compõem o presente livro e as publiquei sob o título da primeira: "Amor Imortal", pouco co- nhecia eu de experimentalismo místico e de ocul- tismo. Era, entretanto, o que os mestres da ciência esotérica chamam de iniciado inconciente (#). Por- que, sem pretender então fazer mais do que obras de arte ou de pura literatura, penetrei, sabe Deus por que motivos ocultos, na esfera do mundo supra- sensivel.

Comparem-se sobretudo as páginas do romance- poema "Amor Imortal", de " Uma Profissão de Fé"

® e de "Deuses morrem?!" com as revelações sobre a vida dos espíritos feitas por Steiner, Leadbeater, Rivail ou Mme. Esperance, pelo surpreendente Ray- mond, filho desincarnado do grande Oliver Lodge, pelo sábio Ernesto Bozzano, por todos os instrutores, em fim, das cousas relativas ao Além e á crise da, morte, e ver-se-á que, em minhas narrativas e des- crições, a imaginação se convertera, á revelia de minha pequenina razão (para usar da denominação de Nietzsche acima referida) em um verdadeiro

(*) A palavra iniciado é empregada aqui apenas no sentido de pessoa que, por intuições ou pressentimen- tos, vislumbra o mundo invisivel.

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40 AMOR IMORTAL

instrumento de conhecimento, sucesso este cuja pos- sibilidade é, como vimos, de ha muito ensinada pe- los ocultistas.

Assim é que em "Amor Imortal" descrevi os estados de perturbação e ascensão do espirito após a morte de maneira a lembrar algumas das mais co- moventes passagens de Marieta, no livro transcen- dente que tem por título êsse nome, repositorio de informações ultrafânicas que eu absolutamente não conhecia. Quem logo depois da publicação de meu trabalho me chamou a atenção para essa coincidên- cia de concepções, nas grandes linhas gerais, foi o grande poeta Alberto de Oliveira, que me deu a honra de escrever a carta-prefácio onde, evocou as figuras dos grandes iniciados Shelley e Edgard Poe: Licet parva componere magnis.

Em "Deuses morrem? 1" aparece, no final-, saí- do do subconciente do autor, um caso de materiali- zação, á luz, da esposa morta, como os tem regis- trado, com incomensuravel assombro da ciência ofi- cial, êsse maravilhoso descerrar de véus a que se deu o nome grego de metapsíquica.

Hajam vista <is aparições consoladoras de Katie King, de Esteia Livermore e de Raquel Figner.

As páginas de " Uma Profissão de Fé" encerram uma interpretação metafísica da Vida e do Universo semelhante â que perpassa nas dissertações ansiosas da última obra de Charles Bichet: La Grande Es- perance, livro notável em que, como já toquei, o sábio professor depois de toda uma longa existên- cia de pesquisas oientíficas, acaba por colocar a sua grande esperança numa interpretação da morte que a transfigura em maravilhosa passagem do mundo das aparências e ilusões para uma realidade supe- rior e indefinivel.

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AMQB IMOETAL 47

Ma, 'porém, muito mais sob o ponto de vista oculto. Na época em que escrevi a presente obra não havia ainda nascido o meu inolvidavel filho Luis Edgard Nogueira, que, depois de haver con- sagrado os seus brevíssimos dias a um imenso culto da bondade e da compaixão para com os humildes e até para com* os animais, deixou esta vida preparatória no esplendor de seus vinte anos de idade... Ainda não havia nascido e já eu, sob as aparências daquele inconsolavel Lúcio ou do ve- lho rei que ulula de dor pela perda da filha, assim como de outros personagens do livro, assistia-lhe á morte, vendo — ai de mim! — fiom o coração despe- daçado aquela mesma expressão de dor e de resigna- ção com que êle havia de olhar-nos — a mim e a sua mãe — nos seus últimos e angustiosos e lúcidos mo- mentos de agonia, daí a vinte anos, ás nove horas da manhã de 30 de junho de 1930...

Em todas as páginas de Amor Imortal já pai- rava como uma idéia obsessora, que volta a cada momento, a dilacerante preocupação da morte a escolher as suas vítimas entre os que se acham na ' mais radiante quadra da vida. De todos os sêres jovens que nele aparecem nem um sequer logra fu- gir a essa sorte cruel.

A minha grande, a minha inenarravel dor já se manifestára assim quasi um quarto de século antes, nas profundezas da subconciência, donde brotava a criação artística. Desde então já pesava sobre o meu espírito o signo terrível dêsse destino dolo- roso, cheio de infinita saudade...

Oh! meu querido filho, tive horas sombrias como as de Venerando, nas páginas de "Morrer... Acabar..."; desesperei-me como aquele rei louco de "Os sinos misteriosos"; ululei e bradei como o Lúcio do "Amor Imortal", livro que tanto amavas

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48 AMOR IMORTAL

e donde havia de sair o epitáfio que está no teu tú- mulo... (#)

Antes de nascer es, nada menos do que em cinco episódios diversos de composições literários inde- pendentes, sobretudo sob um avatar feminino em que se simbolizava a doçura de tua abna de santo, prefigurei a tua morte, em plena juventude... Des- de então já se projetava no fundo tenebroso de mi- nha alma a antevisão da hora trágica em que vi, — ohl meu Deus! — os teus lindos olhos se voltarem para o Além!. ..

Mas o teu amor transpôs o abismo insondavel e, por meio de tão numerosos quão surpreendentes fenômenos supranormais, conseguiste fazer chegar aos corações de teus pais a certeza de tua sobre- vivência.

Deus te abençoe, meu filhinho! Até breve!

J. A. Nogueira.

(*) Túmulo no ceiiiiterio de 8. Joáo Batista, n.#

10.797, quadra 3. .

Page 56: Amor Imortal - J. A. Nogueira

AMOR IMORTAL

Mas tornar ás, 6 Sol! Como hoje e sempre, altivo, Ver-te-emos amanhã no Oriente, redivivo, Outra vez a correr triunfal o firmamento, Mostrando a quem da morte o pensamento esmaga, Que qual te vais e vens, nada se estrui e apaga

Tudo é renascimento!

Alberto de Ouvkira.

Ha núpcias no céu, onde o amor nasce da união de duas om uma alma. Eis porque no céu dois es- posos não são considerados como dois anjos sepa- rados, mas como um só anjo.

Swendknbobg.

Page 57: Amor Imortal - J. A. Nogueira

DALÉM TÚMULO.

Durante minha rapida incarnação terrena, re- cordo-me, muitas vezes fiz esforços inúteis para traduzir um sem número de pensamentos e emo- ções, que eu daria a vida para fielmente expressa/r.

Só hoje, porém, sinto toda a impotência da linguagem humana — hoje que me propus reve- lar algumas das insonhadas peripécias de minha viagem pelo vale da sombra.

Torturarei, contudo, as palavras, até refleti- ® rem uns longes da verdade, da sublime, da conso-

ladora verdade...

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AI! OBESOEU fiSSE AMOR.

Ai! cresceu êsse amor e com êle crescia em nossos corações o terror da hora fatal que acorria a separar-nos para sempre! As- sim, com o tempo, amar tornou- se uma dor.

, E. Pojs.

O

Page 59: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Chamei-me Édgar, em minha curta vida ter- restre.

Altair foi o nome de minha esposa, da estre- mecida companheira que me foi dada de toda a eter- nidade.

Amarámo-nos através de milhares de formas, até que, um dia, nos achamos — homem e mulher, e logo juntamos de novo os nossos destinos.

Para melhor gozarmos a doce felicidade do , amor, fugimos ao borborinho das cidades e fomos habitar uma casinha risonha e sossegada, a breve distância de pequenina povoação.

Pintar o encanto de nossa vida, aí, nme retiro ajardinado, é redizer a mesmice, sempre nova, de todas as venturas do amor, desde o idílio inconcien-

q te das plantas até... Mas o amor não tem limites. E' eterno como

a essência divina de nossas almas, e toda história de além-túmulo, do infinito — é sempre uma his- tória de amor.

Todas as tardes saíamos a passeio pelos campos e bosques dos arredores, donde regressávamos so- braçando plantas silvestres, begônias e trepadeiras, que plantavamos depois em volta de nossa habi- tação.

Era uma delícia o aformoseamento da graciosa . vivenda. Nessa doce ocupação passavamos horas e«- quecidas. Altair parecia linda fada laboriosa a cor- rer de um lado para outro, ornando de flores um

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56 AMOK IMOBTAL

aposento, corrigindo a posição de um movei, espa- lhando por toda a parte os efeitos mágicos de sua fantasia.

A' frente estava o jardim, um lindo jardim, que fazia as nossas delícias. Alcatifâmo-lo de ave- ludada grama. Plantámos, aqui, ali, pelo meio dos canteiros, encantadoras arvorezinhas copadas e gra- ciosas. As ruas eram cobertas de areia, alvissima areia que mandamos trazer das margens de um re- gato próximo.

Em noites de luar, nada mais aprazível á vista do que essas pequeninas faixas brancas a enreda- rem-se por entre o verde escuro da vegetação. .

A um lado da casa, em face das janelas de nosso quarto, extendia-se pelo campo a fora lonjja fila de palmeiras, que iam subindo por ligeiro pendor até perderem-se, baralhados leques, na coroa de um òuteiro afastado...

Nesse ambiente risonho, um pouco fantástico, boiavam os sonhos e vertigens de nossas almas apai- xonadas.

Ficavamos ás vezes largos momentos a contem- ^ plar, embevecidos, a infinita magia de tudo o que nos rodeava. '

Falavamos baixinho, e a voz, fugindo-nos como por surpresa, soava em torno com acentos extra- nhos, que nos espantavam. Dir-se-ia outra alma, me- lancólica e preocupada, escondida entre as cousas familiares... B salteava-nos então a idéia horrível do efêmero de todas as cousas, imobilizando-nos lí- vidos, tomados de pavor.

Mas logo sorriamos forçadamente, sem falar, temendo quebrar a harmonia de nossa felicidade...

Corria o tempo e cresciam com êle as tristes apreensões que pesavam sobre nós.

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AI! CBESCEU ESSE AMOB. 57

Uma noite de luá, em que, enlaçados, nos deli- ciávamos com a visão fantastica de nosso jardim, todo sombras e palidez, Altair teve ligeiro estreme- cimento — e a idéia sinistra, por tanto tempo recal- cada, explodiu num soluço:

— Pensar que a morte nos ha de separar! Sa- ber que esta vida ha de ter um fim!

Senti um calafrio e estreitei-a com força entre os braços.

— Não fales assim, Altair... Longe de nós as idéias lúgubres! Quem pensa em morrer neste jar- dim, com este luarf! Olha a lua como está delicio- sa... Já se viu cousa mais encantadora? E a ver- dura afogando toda a casa!

Altair com um longo vestido branco, passeava a meu lado, alta, vaporosa, leve, qual sedutora apa- rição.

Estavamos ambos preocupados, embora force- jassemos banir da imaginação as idéias fúnebres que nos assediavam.

Sentámo-nos alguns instantes em um banco tosco, ao fundo do jardm.

Minha esposa, muito pálida, olhava para três rosas enormes, que alvejavam como novelos de luar esquecidos entre a folhagem.

— Estou hoje nervosa e exquisita... disse, des- prendendo-se de meus braços. Este silêncio, esta meia obscuridade, tudo me traz pensamentos tristes!

Quis tranquilizá-la, mas eu também me sentia invadido de extranho e misterioso pavor.

Pensar que a morte nos ha de separar! Esta frase ainda me dobrava dentro da alma, perseguin- do-me com insistência funerea e ameaçadora.

E quedamos, longo tèmpo, silenciosos, vendo

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58 AMOR IMORTAL

subir a lua através do crivo de folhas do caraman- chão...

Um dos cômodos da casa era consagrado aos livros.

Aí se enfleiravam em compridas prateleiras algumas centenas de volumes.

Era a nossa biblioteca. Dois divans fronteiros alongavam-se pelos ta-

petes. A's horas de calma, quando começavam de chir-

riar pelos arredores as cigarras, deixavamos o jar- dim e iamos repousar, deliciando-nos com a leitura saboreada de algum autor favorito.

Quasi sempre era minha esposa quem lia, em voz alta — e eram tão expressivas e cariciosas as modulações que dava ás palavras, que todas as pá- ginas, todos os assuntos me chegavam como que en- voltos em doce melodia.

Altair rehabilitava escritores, elevando á al- tura de criações impecáveis obras que eu julgara defeituosas ou medíocres. o

Aos acentos de sua voz, as dissonâncias afi- navam-se e as imagens surgiam ricas de colorido.

Um dia em que, como de costume, nos dispu- nhamos á leitura diaria, disse-lhe:

— Abre ao acaso um livro e lê algumas pá- ginas. Vejamos o que sai...

Altair agitou no ar uma brochura em que eu não reparara ainda, e, triunfante, leu-lhe o título: Vida Sideral.

— Imagina, Édgar — acrescentou sorrindo — quanta cousa bonita não haverá atrás destas pala- vras... Vida Sideral! Basta o título. Não é pre- ciso mais...

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AI! CRESCEU ESSE AMOlt... 59

— Qual é o autor? perguntei. — Desconhecido, observou, examinando o li-

vro. Ha apenas umas iniciais... — Pouco importa... Abre ao acaso e lê. Sabes

valorizar os escritores que te agradam. Ela, sorrindo, abriu o volume, ao meio, e fez

ação de começar. Semicerrei os olhos, recolhendo-me docemente

a uma visão preparatória de sem-fins indecisos, se- meados de estrelas de oiro a remoinharem em poei- ras luminosas...

A voz de Altair elevou-se, como extranho rou- xinoleio, no silêncio da camara:

Fazia poucas horas que lhe haviam enterrado a filha. O céu estava toldado, ameaçando muita chuva. ' Meu amigo mesmo veiu á porta, e, depois de um abraço

silencioso, introduziu-me na sala de visitas. Fez-me sentar, fechou as janelas e acendeu uma grande

lampada, que parecia incendiar o aposento com sua luz avermelhada.

Lúcio, de preto, os cabelos negros em desordem, desta- cava-se sinistramente no meio da sala, como um vulto de

' ") nanquim envolto em labaredas côr de sangue.

Altair interrompeu a leitura: — Como isto é lugubre, Édgar! Procuremos

página mais alegre... B sorria infantilmente, com a brochura meio

fechada entre os dedos. Pitei-a com deslumbramento. Doirada réstea de

sol, atravessando o sossego do gabinete, ia acender- lhe na cabeleira alta um pequenino íris fulgurante.

— Tens razão, Altair, disse sorrindo. Leiâmos no Cântico dos Cânticos um hino de amor...

— Não, protestou ela com volubilidade. Sou muito precipitada... Deixa-me continuar...

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60 AMOE IMOETAL i

Fora já chovia em cataratas. O vento zunia em tômo da casa, fazendo pensar que

pela encosta acima vinha subindo, aos vagalhões, um dilúvio, que se avizinhasse de minuto para minuto, em crescendo aterrador...

— Náo me conformo, meu amigo I bradava desesperado o moço, apertando a fronte com as mãos... Dize-me, se és capaz... Que foi feito de minha filha?... Onde está? Que fazf Ainda pensaf... Sumiu-se, desapareceu, nunca exis- tiu? I ... Desde a mais tenra infância, tenho lutado para re- solver esse grande enigma... Se eu pudesse iludir-me... Se eu pudesse ter uma fé... Vi-a enterrar... Lá ficou sob um monte de terra... E lembrar-me que ainda ontem conversou comigo I... Era ela mesma, minha filha, quem estava falandof! E agora, meu amigo, agora... que 6 feito delaf...

Deixou-se cair numa cadeira e encostou-se & borda da mesa, em atitude de ânsia infinita... Só movia os gran- des olhos negros, que rolavam como cometas incendiados, chispnndo em atmosfera de um rubro sombrio.

Causava espanto vê-lo, qual espectro desvairado, na- quele ambiente sombrio.

A tempestade recrudescia com violência assustadora. A ventania esfusiava em rajadas furiosas, como se

quisesse desarreigar a colina. Lúcio, levando as mãos á cabeleira revôlta, levantou-se

de um salto e, ejn pé no meio da sala, disse em voz tra- vada de soluços:

— Estavas aqui... Não te lembras como minha filha- Os trovões, que haviam cessado, recomeçaram atroa-

dores, ininterruptos, impossibilitando-me de ouví-lo. ®le, porém, continuou p. mover os lábios, gesticulando com deses- pêro.

A «alinha vermelha dansava-me diante, representando

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AI! CRESCEU ESSE AMOR. 01

incêndio escarlate em cujo fundo se extorcesse o vulto negro de um energúmeno.

Palavras desgarradas feriam-me os ouvidos, como ân- sias supremas de um mundo que se esboroasse — Não vê-la mais... Religiões... Nada... Eternidade ._

Cessaram os trovões. O vento gemia pelos arredores, em assobios dolentes e fatigados.

Estabeleceu-se aos poucos grande calma. Xiucio parára hirto junto da mesa. Levantei-me inquieto.. Êle, porém, fez sinal para que me assentasse, e con-

tinuou : — PerdÔa-me, amigo, este desespêro... Mas minha

filha ha de acabar, desaparecer, transformar-se em terra 1 Que disparatei Que disparate! Conyence-me de que ha alguma cousa depois da morte... Oh I não posso crer no desaparecimento de minha filhai Ela existe em alguma parte... Aquele espírito, aquele coração que ainda on- tem me amava... Ainda estou vendo o seu sorriso desani- mado ... E o olhar apavorado e suplicante que me lançou no momento da agonia I...

Quedou de olhos fitos não sei onde, num ponto in- visível no meio da sala. Seu rosto pálido tornara-se 11- vido, riscado de cabelos rebeldes.

A chuva havia cessado. Ouviu-se um patinhar de pessoas que desciam a encosta resvaladia.

Be repente soou uma voz infantil, clara e estridente: — Olha, mamãe... Daqui é que saiu o entêrro. Es-

tava bonito I Seguiu-se grande silêncio. Lúcio, como emergindo de um mundo longínquo, ex-

clamou : — Se visses o olhar de terror que ela me lançou ao

expirar I Levantei-me, reprimindo o pranto que já me queima-

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62 AMOR ' IMORTAL

va os olhos; aproximei-me dele, tomei-o pelo braço, fi-lo assentar-se, murmurando ao acaso palavras de consolo...

— Precisas de repouso, dizia-lhe. Um calmante... Queres f

— Não viste o seu olhar! repetia êle, em atitude atô- nita de sonâmbulo. Que terror lhe inspirava a morte I Que olhar de medo! E não poder defendê-la, & pobrezinha!

E conservou-se imóvel, rígido, o rosljo voltado para um angulo da sala, semelhando um grande títere de crepe contorcido entre os braços da cadeira e recortando-se ne- gro sôbre o fundo abrasado...

Reinava silêncio tão fúnebre, que eu daria tudo no mundo para ver novamente desencadeada a tempestade de momentos antes.

Abaixei as pálpebras, tomado de calafrio...

Quando alcei os olhos, vi o vulto branco de Eletra, a irmã da morta, em pé, ao lado de Lúcio, as tranças esparzidas em desordem, loiras sôbre o luto do vestido.

Escapou-me uma exclamação de espanto, ao reconhe- cê-la, tão vivamente reproduzia a imagem da falecida.

— Papai! soluçou ela. Lujcio moveu-se lentamente e contemplou-a com. ex-

pressão inominável de terror... Depois, levantando-se de arremêsso: — Minha filha! minha filhinha! vai deitar-te, não

chores... Vai deitar-te, vai... Eletra cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a soluçar. — Ah! se eu pudesse riscar da memória aquele olhar

de medo... exclamava êle apertando as fontes. A pobre- zinha fitou-me com tal pavor! Ai! minha filha, vejo por toda a parte o derradeiro olhar de tua irmã, de minha filhinha! Porque é que me olhas assim, Eletra! Também tu sofres?!... Vejo-vos sofrer, morrer, acabar... E nada posso fazer! Que vale todo o meu saber, todo o meu or-, gulhof! Ai! o olhar daqueles olhos habituados a me fita-

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AI! CRESCEU ESSE AMOK. 63

rem com tanto amor... esse olhar espavorido e suplican.- te... como não vê-lo, meu Deusl

Altair, que vingara ler até este ponto, com a voz trêmula de soluços recalcados, deixou cair

• no regaço a sinistra brochura. Lagrimas reben- taram-lhe como punhos.

E chorando sorria-me embaraçada, inclinan- do o rosto enrubescido, para subtraí-lo á luz co- lorida de um raio de sol que se filtrava pela ja- nela mal cerrada.

Levantei-me e fechei em uma gaveta o livro que a fizera sofrer. E acarinhando-a, como a tí- mida criancinha, levei-a para o jardim.

Estava linda a tarde, e a verdura ondulava com estremecimentos de, muita felicidade...

— Ah! Édgar, disse Altair, debruçando- se-me ao ombro — parece que somos perseguidos pela idéia da morte! Não posso perder de vista

4 a imagem sombria daquele pai inconsolavel com a morte da filha.

— Não penses mais nisso, minha querida, aconselhei. Para que nos havemos de amargurar inutilmente?

— Mas nós temos que morrer, Édgar... in- sistiu apavorada. E depois?...

— Depois... murmurei indeciso. — Ainda haverá amor? interrogou, fitando-

me perturbadoramente, com os grandes olhos hu- midos de pranto.

— Se ha uma outra vida... ia-lhe dizendo... — Se ainda haverá amor, Édgar... corrigiu

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04 AMOR IMOETAL

com vivaeidade. Que importa outra vida sem amor ?

Ao invés de responder-lhe, quedei a olhá-la com arroubo...

Altair, acesa nos fulgores do sol prestes a ocultar-se, surgia gloriosamente entre os massiços verdes dos canteiros...

— Então não ha amor? tornou entre pensa- tiva e risonha.

— Depois da morte... Talvez... Mas quem fala em morte? Não ha morte... Tudo é fantasia, pura ilusão... Não pensemos em semelhantes cousas...

E cingindo-a, conduzí-a pelas ruas brancas do jardim.

Mas o sol sumiu-se de repente, e uma grande sombra caiu sobre nós, fazendo-nos estremecer...

Corriam os meses sem que os sentíssemos per- passar, tal era o encantamento em que vivíamos.

A horrível perspectiva que por vezes vinha ensombrar a tranqüilidade dulcíssima de nossa ^ vida, enxotávamo-la corajosamente da imagina- ção, animando-nos um ao outro, ambos empenha- dos em não volver os olhos para o abismo arre- piador em que desfecharia todo aquele enlevo...

Abstivemo-nos de leituras que pudessem amargar nossa felicidade.

Enchemos de apaixonados arrulhos as cam- pinas e bosques vizinhos.

Fomos a pouco e pouco esquecendo-nos de que havia desesperanças pelo mundo, e um termo para todas as venturas, de sorte que, muitas ve- zes, nos rimos dos passados temores...

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AI! CRESCEU ESSE AMOB... üt>

Um velho, que morava numa choupana, á meia encosta, e nos servia de jardineiro, auxilian- do-nos no amanho das queridas plantas, dava-nos de vez em quando a notícia da morte de alguma pessoa na aldeia próxima. Cada vez que tal acon- tecia, ficavamos longo tempo tristes e apreensivos, como se nos sentíssemos ameaçados em nossa tran- qüilidade.

Mas até essa leve sombra, havia muito desa- parecera; pois um dia que Altair se mostrara do- lorosamente impressionada ao saber do passamen- to de várias pessoas conhecidas, chamei-o de parte e pedí-lhe que nunca mais nos trouxesse seme- lhantes novas.

Chegámos assim a ter a ilusão de uma feli- cidade quasi completa.

Para melhor conservarmos em tomo de nós tão singular quão deleitosa atmosfera, fomos su- primindo todos os sofrimentos que nos rodeavam.

Pobres com quem vizinhássemos não padeciam, mais os tormentos da fome; aos enfermos que se nos deparavam, propiciávamos meios de se trata- rem, e com repetidos dons e liberalidades fazia- mos sorrir de contentes aos campônios que encon- trávamos em nossos passeios bucólicos.

Era uma de nossas maiores delícias — pro- vocar as bênçãos dos desditosos.

Procurávamos ser muito bons, muito compas- sivos e piedosos, surpresos de nos acharmos tão felizes...

As horas, os dias e os meses fugiam, amon- toando-se atrás de nós, num passado vago, impre-

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66 AMOB IMOETAL

ciso, em que se iam diluindo as mais queridas re- miniscências.

— Se pudessemos recomeçar sempre e sem- pre os nossos primeiros momentos de felicidade! dizia Altair cismadora, quando o acaso da conver- sação nos levava a recordar os inefáveis instan- tes dos primeiros dias de amor.

Se pudessemos recomeçar eternamente! pen- sava eu, sem ousar formular uma aspiração ver- tiginosa, que só servia de aumentar a tortura da felicidade...

Ah! quem não conhece nessa primeira exis- tência a imensa tortura de se sentir feliz!

— Mas, Altair, que nos falta? Mais tarde teremos vivas saudades destes momentos, como já as experimentamos de nossos primeiros dias de amor. Aproveitemos os mais doces instantes de nossa vida... Sejamos felizes, infinitamente feli- zes, minha querida... Longe de nós as preocupa- ções, os temores, os suspiros... Sejamos felizes... Aprendamos a ser felizes... Porque a felicidade se aprende, Altair...

— Mas eu sou imensamente feliz, Édgar... B sorrindo, enlaçados, atordoávamo-nos, re-

petindo em todos ós tons a afirmação torturante de que éramos felizes, infinitamente felizes...

Certo dia, de volta da povoação, encontrei-me com um cortejo fúnebre, que subia para o cemi- terio.

Era uma linda manhã, e eu tinha a alma alegre.

— Sabe quem é que levam ali, a enterrar! — Quem? — Sua criada, a Mariana...

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AI! CRESCEU ESSE AMOR.... . 67

Acompanhei com os olhos o saímento, que ia pela rampa acima.

Cerca de uma semana antes, a criada que nos servia, ativa e silenciosa, em nossa ajardinada vi- venda, pedira-nos algum tempo de licença para tratar-se. Precisava de tomar remedios, dizia.

B saíra, prometendo voltar dentro em pouco. Percebi ainda o caixão, muito negro, numa

curva, ao alto. Estuguei o passo, olhando para um grupo de

árvores, que, a cerca de cem metros, parecia de atalaia, em pequena elevação.

Se Altair soubesse... Mariana fora uma silen- ciosa testemunha de nossa vida. Partira para se tratar... Poucos dias... Depois voltaria...

Passei apreensivo á sombra do grupo de ár- vores .

Daí a momentos, avistei a casinha, sorrindo, a breve distância.

Altair esperava-me á porta. — Vim quasi correndo. Não gosto de andar

só... Tenho ás vezes horror á solidão... Vem, senta-te aqui, a meu lado. Preciso de tua com- panhia ...

— Édgar, que fisionomia tão extranha! — Não é nada, Altair, não é nada. E acres-

centei, com um sorriso carinhoso: Era saudade de ti...,

Mas as horas de desalentos e apreensões pas- savam. Retemperávamos a fé, que vacilara, e, deixando de nos atemorizar com o futuro, volvía- mos ao supremo êxtasis do amor...

De novo fazia sol nos grandes olhos pertur- badores de minha esposa.

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68 AMOR IMORTAL

Reverdeciam os canteiros de nosso jardim, desabrochavam, mais belas que nunca, as rosas de nossa roseira, e a casinha se engalanava toda, ofe- recendo aspectos completamente novos...

Uma tarde, havíamos dado um longo passeio pelos arredores, voltei excessivamente fatigado e sentindo fortes dores de cabeça.

Altair, -inquieta, fez-me tomar uma tisana que ela mesma preparara, com plantas medicinais colhidas em nosso pomar.

Sentí-me logo aliviado. Mas, como estivesse abatido, recolhi-me antes da hora habitual. Essa noite, as janelas cerráram-se mais cêdo ao humido luar, que chovia em torno da casa.

Altair sentou-se á beira do leito, meio su- mida na brancura do cortinado, cujas abas des- ciam esvoaçando.

Seus olhos escuros pareciam absorver toda a luz que jorrava de uma gránde lampada, poisada numa mesinha junto á cabeceira.

Contemplei-a largo tempo, silencioso, pre- ocupado com o sombrio mistério daqueles olhos amados.

Por uma extranha associação de idéias, lem- brei-me da estrela Y de Andromeda, deliciando- me com a magica visão de um sol loiro a gravitar ao lado de um sol verde-translúcido.

Altair, tomando-me as mãos, perguntou se queria que me cobrisse mais, se tinha frio...

Não sei que respondi. Yi-a mover-se semelhante a grande asa bran-

ca, e pareceu-me que o cortinado descia de muito alto, cheio de inúmeros olhos espantados, a fais- carem em fitas verdes e doiradas.

Page 73: Amor Imortal - J. A. Nogueira

AI! CBESCEU ESSE AMOR. 69

Depois de uma noite mal dormida, atravessa- da de pesadelos, sentí-me melhor pela manhã. A febre diminuirá, se não desaparecera de todo.

O médico foi ver-me durante o dia. Alguma febre... Cousa ligeira... Tomas-

se tais remedies... E deixou-me quasi são, impaciente por levan-

- tar-me, sentindo mais do que nunca a delícia da vida que levava ao lado de Altair.

Passei o resto do dia a planear lindos pas- seios e excursões alpestres, de que traríamos no- vas orquídeas para o nosso jardim.

A' noite sonhei com palmas verdes e feixes de flores — a decorarem a imagem dulcíssima de minha companheira.

Passaram-se oito dias com intermitências de, febre e melhoras mais ou menos acentuadas.

Altair, que me velava sem descanso, estava extremamente palida e com grandes olheiras vio- láceas, o que lhe dava exquisito encanto.

— Pobrezinha! disse-lhe. Deves repousar, dormir um pouco...

Ela sentou-se á cabeceira, arranjou as almo- fadas, e de repente pôs-se a soluçar como uma criança.

Arregalei os olhos, surpreso... — Que tens, Altair? — Nada... Nervos... — Hoje que estou tão melhor ... Altair sorria-me, enxugando as lagrimas. Tomei-lhe as mãos e apertei-as entre as

minhas. — E's muito nervosa, meu amor... Além

0

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ro AMOB IMOETAL

diaso, não domes desde que adoeci. Confesso que, ha dias, tive mn momento de inexplicável terror. Temi ter que deixar-te... Mas creio que já paa- bou a fase perigosa. E' o que disse o médico, não é? Demais, sinto-me infinitamente melhor... Abre essa janela. Quero ver um pouco de verde...

Altair, sorrindo, já consolada, correu a abrir a janela e foi de novo sentar-se a meu lado.

Olhei para fora com delícia desconhecida. Estava uma tarde encantadora, vista através

da flabelação- das palmeiras, que se alinhavam processionalmente, como se partissem em fila para os cumes afastados, indecisos...

Contemplei-as arrebatado de uma sensação gloriosa, cheio do desejo extranho de acompa- nhá-las, de voar com elas para os topes azulados que se diluiam no céu...

Nisto, vi Altair levantar-se de um ímpeto e • atirar-se de joelhos aòs pés do leito, agarrando-me as mãos com desespero...

Fitei-a muito espantado... Tive a idéia fugaz de que ela enlouquecêra, e

quis abraçá-la... Mas...

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NO ESTREITO ABRAÇO DA SOMBRA

Por fim, como acontece muitas vezes ao homem que dorme (o sono e o mundo do sono são as únicas figurações da Morte), por fim, como acontecia na terra ao homem profundamente adormecido, quan- do um relâmpago de luz o fazia estremecer num meio despertar, deixando-o meio envolto em seus sonhos — da mesma sorte para mim, no estreito abraço da Som- bra, veio essa luz que a6, talvez, tinha o poder de me fazer estre- mecer — a luz do Amor Imortal I

E. Pob.

Page 76: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Achava-me no alto de uma colina, a olhar va- . , gamente para os campos que me rodeavam.

Em baixo, á orla do outeiro, alvejavam as ca- sinhas de uma aldeia.

Além, um plano verde, riscado de trilhos ver- melhos, ia perder-se na linha indistinta do hori- zonte.

O sol descia, velado de núvens, lembrando uma grande moeda de oiro.

Não sei quanto tempo lá estive imóvel, em es- tado de morna inconciência...

Depois segui á esquerda, por um caminho tor- tuoso, ladeado de arvorezinhas e tufos de verdura.

O Via claramente todas as cousas que me esta- vam ao redor, mas sem pensar, sem refletir...

Levado por impulsão mecânica, movía-me a esmo, como se vivesse vida fantástica, uma vida ex- travagante de sonâmbulo.

Ignorava completamente o que me conduzira a tais paragens, assim como o destino que devia levar. j

Nem a mais leve recordação do passado me aflorava á conciência. í

Era como se se me houvera aniquilado subi- •vj tamente a memória . , i

Não me causava, porém, a mínima estranheza 1 tão singular fenômeno. Tinha a sensação de estar

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74 AMOB IMOETAL

passeando como de costume, sem, contudo, relacio- nar passado algum com esse presente.

Sentia-me um homem que passeia, e isso me bastava.

Depois de ter caminhado breve trecho, avistei uma deliciosa vivenda, assente em ligeira elevação,

1 ã curta distância. Era uma casinha azul, decorada de trepadei-

ras, que subiam pelas portas e janelas, quais tor- sos verdes, indo até as cimalhas, donde brotavam

' rebentos caprichosos, imitantes a longas serpentes. Encerrava-a pequenino parque, que era uma

r explosão de verdura, servindo de fundo a duas ou três rosas de tamanho descomunal.

Por detrás das trepadeiras que bordavam as { minúsculas janelas, sorriam vivamente cortinas ro- 1 sadas.

A essa visão súbita, parei apunhalado. Dor profunda e subterrânea atravessou-me a

alma. : Parecia-me que todos os sonhos de minha vida

estavam ocultos atrás daquelas cortinasi Entre quadro tão aprazível e a agonia que "

me dilacerava o coração, havia misteriosa corres- ;; pondência...

Quedei no meio do caminho, a olhar com fixi- , dez extranha... Olhava, cheio de ânsia infinita, como se forcejasse alojar na retina, arrancando-a dali, a casinha azul com toda a sua decoração de verde e róseo.

.{^ Durante alguns momentos o sol, arraiando o 1 horizonte longínquo, banhou-a em vivíssimo oiro. ; Depois... a sombra imensa e o luar.

Só então dei com os olhos num homem que amanhava o jardim, um pouco curvado, a podar

" ' uma roseirinha baixa.

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NO ESTBEITO ABEAÇO DA SOMBEA 7S

Aproximei-me da sebe, e perguntei-lhe quem residia ali.

As palavras que então desferi, pareceram-me soar falso, de modo singular...

O jardineiro nem siquer se voltou. Repeti a pergunta, mas não houve demovê-lo

do trabalho em que tão atentamente se empenhava. Apesar da veemente curiosidade que me do-

minava, desisti de obter respcsta, e, surpreso e agas- tado, pus-me a deacer o outeiro, rumo da povoação, que alvejava lá em baixo apontoada de pequenas luzes trêmulas.

Vaguei muito tempo pelas sinuosas voltas do caminho, vendo crescer a mancha prateada com seus pontos luminosos a tremerem, rarescentes 9 sumidiços.

Árvores desgalhadas e convulsas, sitas á mar- gem da estrada, projetavam pela areia sombras es~ guias e tristes, que se cruzavam sob meus passos.

Entrando em um descampado, vi que meu corpo não produzia sombra, pois chovia-me em tômo, de todos os lados, o lívido luar... -

Nenhum assombro, porém, me causou tal ob- servação, nem senti necessidade de explicar esse fáto.

Avançava cheio de angústia surda, cuja causa se me sonegava de todo.

Tinha o sentimento confuso de que aqueles sí- tios me eram conhecidos e familiares, assim como a aldeia, que se aproximava mais e mais, enluarada e semeada de lumezinhos rubros. Mas nenhuma des- sas cousas poderia eu nomear, nem precisar na me- mória.

Numa curva do caminho deparou-se-me um grupo de pessoas, que vinham das bandas do vila- rejo e conversavam a meia voz.

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76 AMOR IMORTAL

Ao aproximarem-se, fui invadido de extranho temor, e quis dirigir-lhes a palavra.

Mas passaram apressadas, sem atentar em mim, trocando dizeres abafados, como se temessem ser ouvidas.

• A curta distância, percebi fragmentos de fra- " ses, que me fizeram parar aterrado. , . — Êle morreu á tarde...

— Dizem que ela está muito mal, acrescentou outra voz. -

E afastaram-se, sumindo-se numa arqueadura da estrada.

Quedei pasmado, cheio de mal-estar misterioso. Experimentei vago desejo de compreender es-

sas palavras; mas recaí logo na tranqüila incapaci- dade de que estava tomado, e, numa incuriosa ati- tude, pus-me a olhar para as casas brancas, no meio das quais se alteavam os campanarios da igreja.

Assim fiquei muito tempo, parecendo-me ora estar assentado num morouço de seixos, á orla do caminho, ora em pé no alto do outeiro.

Volvi o olhar para a lua, que pairava já no meio do céu, e vi-a mover-se a princípio lenta- mente, depois acelerar o movimento e ir descendo

. sensivelmente para o horizonte. Yoltando-me então para o oriente, observei o

raiar da alvorada. Compreendi que estavâ amanhecendo, e dispu-

< nha-me a partir, quando um choque violento me percutiu dolorosamente o ser...

Os sinos da alêdeia tinham começado de dobrar a finados.

Olhei para os campanarios e vi sair das torre- / zinhas enxames de asas negras... Cousa extranha!

Os olhos usurpavam-me as funções do ouvido, tra-

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NO ESTBEITO ABRAÇO DA SOMBRA - 77

duzindo em visões escuras os sons dolentes dos sinos.

Nisto senti grande necessidade de rever a ca- sinha azul que tanto me impressionara na véspera, e pus-me a voltar lentamente pelo mesmo caminho percorrido durante a noite.

O sol nasceu avermelhado, e, á semelhança do que acontecera com a lua, ví-o avançar ràpidamente pelo céu. E já ardia no zenit, como enorme carvão aceso, quando de uma portela formada pela tortuosa estrada, defrontei a pequena vivenda — muito ani- lada, roseas cortinas em meio ao verdej amento do parque.

Sacudiu-me de novo dolorosissimo abalo. Tal vista sorria-me cruélmente dentro da

alma. E eu sentia desejos de viver na floração da- quele jardim. Assaltavam-me irreprimíveis apetites de enroscar-me com as trepadeiras das janelas até ir roçar com delícia nas dobras das cortinas agi- tadas pela brisa... '

Mas dor profunda e enigmática prendia-me á distância, quedo, ferido de imobilidade, tantalizado em doloroso, em insuportável malogro.

De vez em quando chegavam-me aos ouvidos como lufadas de sons indistintos. E, resumindo eu toda a atenção, parecia-me que a casinha, as corti- nas, a verdura e as rosas vibravam sonòramente, desferindo em côro, um hino luminoso, a que se misturavam, discordantes, notas estranguladas, no- tas que lembravam gemidos e de profundis.

Âs grandes manchas negras comiam aqui, ali, o róseo das janelas e o verde do parque, quais bor- rões de tinta entornados ao acaso.

Seguiu-se visão terrífica, de tal modo apavo- rante, que até hoje não posso evocá-la sem me sen- tir nòvamente retransido de susto.

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78 AMOE IMORTAL

Foi como se toda a casa emergisse subitamente ' de um banho de nanquim...

As grades do parque, a verdura, as rosas, as cortinas — a casinha inteira ofereceu-me de repente a imagem de um moimento de mármore negro, ro- deado de folhas retintas e flores esculpidas em carvão.

Foi um momento de inexplicável terror...

Depois ~á mancha negra moveu-se lentamente, desprendendo-se da casa; alongou-se, projetando-se

j para a frente, como se puxassem para meu lado o manto lutuoso que vestira um instante a peque- nina habitação; dividiu-se em vultos escuros, esti-

í rou-se pela estrada a fora, e avançou para mim em meio de horrível silêncio...

Aproximaram-se lúgubres, e passaram, arque- jando com o pêso de um comprido caixão preto, que levavam de parceria pelas alças...

Era um féretro! Quem terria morrido em lugar tão delicioso

e tão cheio de vida? perguntei-me a mim mesmo, e, ,r>

invadido de misteriosa simpatia, pus-me a acompa- I nhar o caixão, conservando-me discrètamente á dis-

tância. A estrada larga e saibrosa reverberava inten-

l samente os raios do sol, que começava a descam- bar, flamejando, rubro...

i E á medida que o préstito avançava, seme- j' > lhante a um boirão movediço, destacando-se vio- 'i , lentamente no leito esbranquiçado do caminho, eu 'í ia seguindo indeciso, balanceado entre o desejo de t acompanhá-lo e a fascinação que me arrastava para i: , a casinha azul, de róseas cortinas...

Afinal venceu a singular atração que exercia

5 .... . . ■. •

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NO ESTREITO ABRAÇO DA SOMBRA 70

sobre mim aquele morto, e estuguei os passos, até juntar-me ao pequeno cortejo.

Irritou-me, porém, como um insulto, a indife- rença com que fui recebido.

Dos oito ou dez indivíduos que levavam, reve- sando-se, o negro esquife, nem um siquer se dignou de volver os olhos para mim.

Entretanto, embora não pudesse declinar-lhes os nomes ou dizer quem eram, sentia, ao vê-los, que desde muito os conhecia a todos.

Pensei em deixar-me ficar, desistindo de se- guir o saimento. Repugnava-me o papel de mete- diço que ia representando.

Mau grado, porém, os modos descortezes da- quela gente, que parecia apostada em não me ver, achava-me como que amarrado ao ataúde, atraido por força oculta e misteriosa.

Dois homens altos, que iam atrás, conversavam em voz baixa, de sorte que não lhes pude distinguir claramente a voz.

— Ainda ontem, quando fui visitá-lo, achei-o muito melhor, disse um dos que carregavam o

0 caixão. — Foi uma morte inesperada, ajuntou outro.

Causou-me grande tristeza a notícia... Imaginem que êle estava só com a mulher...

— Ela é que está inconsolavel, ponderou um terceiro. Desde que êle expirou, não param os ataques... Tem síncopes, umas sôbre as outras... E o médico que a examinou, disse que é muito pos- sível que venha a morrer numa dessas crises, devi- vido a uma lesão muito grave...

— Esta vida não vale nada! concluiu compun- gido um deles.

— Quando se deixa uma vida de sofrimentos, nada melhor que a morte, filosofou um velho; mas

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80 AMOK IMORTAL

morrer quando se vive rodeado de bem-estar, em plena mocidade, ao lado de tão linda mulher...

— E morrer naquela casa, cujo aspecto tão risonho basta por si só para fazer amar a vidal ajuntei, num ímpeto irreprimível de intervir na conversa.

Com grande assombro meu, ninguém fez o mais leve movimento de atenção.

Senti revolta surda apoderar-se de mim. Foi, porém, um lampejo, e logo recaí em minha

insensibilidade de sonâmbulo. Desembocámos em uma volta da estrada donde

se descortinava toda a aldeia, muito próxima, na baixura.

Apenas surgimos á vista das casas, começaram a dobrar os sinos, compassados e severos.

Ao entrarmos na rua que levava á igreja, no- tei que todo o cortejo se revestia de amargurada solenidade.

Cabeças curiosas assomavam ás janelas, e for- mavam-se pequenos grupos ás portas e esquinas.

Penetrámos no templo aldeão, baixo e obscuro, em cuja nave haviam armado uma éça, recoberta de n

preto, castiçais aos ângulos, e um crucifixo á ca- beceira.

Aí depuseram o caixão, com demasias de cui- dado para não derribarem os círios acesos.

Depois veiu um sacerdote, alto e magro, acom- panhado do acólito, e entrou a murmurar, com in- crível velocidade, as orações dos mortos.

Exibit spiritus ejus... B continuava em sur- dina, no meio do silêncio compungido dos circuns- tantes, enquanto no alto esvoaçavam, gaseando al- voroçadas, algumas andorinhas familiares e afeitas àquela atmosfera sombria e religiosa.

Nisto, como já me acontecera pouco antes, to-

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NO ESTREITO ABEAÇO DA SOMBRA 81

das as percepções visuais se me transmutaram em audição.

O féretro, o padre, os assisténtes redemoinha- ram de envolta com os períodos latinos, como ou- tras tantas endeixas de um hino soturno e dilace- rante, atravessado de terrores de precito e de ge- midos subterrâneos.

Mas no fundo de semelhante ulular de an- gústia extra-terrena havia uma nota clara e risonha cheia de blandícias dulcíssimas, lutando em vão por debelar o supremo horror daquela salmodia de iras divinas.

Era, talvez, a buliçosa garrulice das andori- nhas, que continuavam a chilrear, turbulentas criancinhas aladas...

Salteou-me então saudade imensa de uma cousa vaga, que eu não sabia o que era... saudade que parecia fome ou sede de ventura longínqua e inde- finivel, de ventura que eu possuirá, e a que tinha direito ainda...

E precipitei-me para fora do templo, sequioso de ver a clara luz do céu, cortada de asas de pás- saros, abençoadora e alegre. Afastei-me da povoa-

^ ção e pus-me a subir pela encosta de uma colina que se elevava atrás da igreja. Por mais que procurasse espairecer, embriagando-me com a luz do céu e com o aspecto risonho da verdura, continuava persegui- do pela imagem do féretro, que lá ficara entregue ás apressadas lamentações do ritual.

Entrára-me de tal sorte na alma a idéia amarga da morte, que toda a doçura ambiente não chegava a libertar-me da aflição que a pouco e pouco se fôra apoderando de mim.

Embora me não recordasse de passado algum, nem experimentasse necessidade de explicar o esta- do singular em que me achava, eram contudo vivas

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82 AMOR IMORTAL

e nítidas as últimas impressões, e eu continuava a ter o sentimento obscuro de longa existência pre- terita.

A' medida que ia ladeira acima, sem rumo , certo, rememorava a lúgubre cena da igreja, refle- xionando sobre o mistério do além-túmulo.

Como seria agradavel a vida, se não fosse a horrível perspectiva da morte!

Como seria doce o aspécto do céu e dos cam- pos, se não fora essa visão terrífica do desapareci- mento ! Pensar- que tenho de morrer, que não ha fugir a esse momento decisivo! De que me serve todo o esplendor da vida que me rodeia, se tenho que perder tudo, de um momento para outro!

B saber que o sol continuará a nascer, a res- plandecer, a iluminar o mundo... depois de mim, quando eu não fôr mais!

Estava imerso nesas cogitações, quando vibrou de novo o dobre fúnebre dos sinos.

Voltei-me de arremesso. E ví, a breve distân- cia, o saimento que eu havia deixado...

Olhei surpreso para a frente, e deparou-se-me escancarada a porta do cemiterio...

O féretro! Em minha fuga não fizera mais que precedê-lo, indo, mau grado meu, colocar-me á beira da cova.

Impelido por misteriosa fôrça, penetrei na pe- quena área semeada de cômoros de terra balofa, e, avistando uma excavação recente, cheguei até á orla, onde esperei o préstito, que, minutos depois, asso- mou á porta, dirigindo-se logo para o ponto em que me achava.

Quatro indivíduos, arcados, depuseram o cai- xão bem junto de mim, e afastaram-se respeitosa- fnente, indo agrupar-se á curta distância.

Vinha atrás o padre, tropeçando, fino, especa-

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NO ESTREITO ABEAÇO DA SOMBEA 83

do, com a sobrepeliz muito branca entre o luto ge- ral dos assistentes.

Como sempre, ninguém me prestava atenção, singularidade a que já me afizera.

Como o sacerdote se aproximasse, empuhando um aspersorio gotejante, um dos presentes come- çou a desatar os atilhos que prendiam as tampas do ataúde, ornadas de galões doirados.

Seguiu-se um momento de religioso silêncio, tão profundo, que eu ouvia o ofegar das pessoas que ali estavam, ao redor.

O oficiante, suspenso, interrompera o murmú- rio de seus salmos, e, de híssope levantado, aguar- dava a abertura do caixão, para dar começo á ce- rimônia do asperges.

Desfeito o último laço, cindiu-se a tampa abaú- lada do féretro.

Houve ligeiro movimento de rotação, de lado a Jado, e apareceu o corpo rígido do morto, mãos en- clavinhadas, rosto horrivelmente desmanchado...

Ao vê-lo, desferi um grito horroroso, um urro de pavor. Mas os acentos terríveis de minha voz soa-

1 ram nas plagas de um outro mundo desconhecido e invisível...

Não percebi entre os presentes o menor indício de surpresa.

Quedei aterrado, hirto, a olhar o féretro aberto, sem saber qual a causa do terror que me inspirava a vista daquele cadaver.

Feita a aspersão, cerraram de novo o ataúde e puseram-se a descê-lo á cova, por meio de cordas.

Eu acompanhava tudo o que faziam, com deses- pêro intenso e ao mesmo tempo vago e misterioso.

Parecia haver profunda correspondência entre mim e o corpo que soterravam. O pavor que me do-

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84 AMOR IMOETAL

minava, ao invés de me .afastar dali, mais me pre- dia e amarrava ao morto.

Ao tempo que a terra ia caindo sôbre a caixão, sentia arrancarem-se-me dolorosamente as entranhas.

O padre e os assistentes retiraram-se. Dois coveiros, armados de grandes pás, iam aca-

bando de encher a cova, que não tardou a desapare- cer sob um cômoro de terra.

Depois saíram, instrumentos aos ombros, e fe- charam á chave o portão de ferro.

Como quem crê despertar de um pesadelo e ainda em sonhos já se julga acordado — olhei es- tupefato em derredor... E tratei de sair ás pres- sas daquele lúgubre recinto.

Caminhei até á porta, movendo-me com ex- trema facilidade.

Detíve-me um momento diante da grade... Mas logo me achei do lado de fóra, sem compreen- der como havia passado.

Deitei então a correr por uma estrada averme- lhada, que volteava em torno â colina.

Já não caminhava como dantes. Tinha a sen- sação de estar voando acima do solo, tão expedi- tos e leves me eram os movimentos.

Todas as impressões que tivera, fôram-se amor- tecendo aos poucos, ficando-me apenas o sentimen- to confuso de uma desfilada fantástica de sonâm- bulo.

O risco da estrada foi-se estreitando, àté su- mir-se afogado em relva.

Grandes núvens brancas ameigavam a atmos- fera, esparsas em largas franjas e novelos de ar- minho.

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NO ESTREITO ABBAÇO DA SOMBRA 85

Depois o sol desceu lentamente e mergulhou no oeaso.

Varreu-se o céu. Pontuou-se de estrelas e avan- çou, cintilante e profundo, devorando horizontes, feito uma grande prisão brilhante, adrede armada para me enclausurar...

Arbustos mostruosos cresciam-me em tôrno, abismos escuros cavavam-se-me ao redor, negras fa- chadas surgiam-me á frente... Tudo, porém, pare- cia recuar á medida que me aproximava...

Súbito estaquei. Um sentimento obscuro, mas imenso, fez-me parar, imobilizando-me inetantânea- mente no seio tenebroso da noite.

Não sei quanto tempo estive imerso num como sono profundo, restando-me somente o sentimento nebuloso da existência.

De repente a lua, uma lua coíno nunca vira, cresceu no horizonte, enchendo de luz todo o espa- ço, e veio banhar em vivíssima claridade o parque,

i as rosas, as cortinas da casinha azul — diante da qual me achava...

Salteou-me de novo o mesmo sentimento in- definivel que já me havia inspirado antes o as- pecto daquela vivenda.

Cheguei á grade e pus-me a contemplar, cheio de embevecimento, os massiços dos canteiros e as grandes rosas enluaradas...

Eeparei então num caramanchão, a cuja som- bra se extendia um banco tosco.

Âs cortinas de rósea transparência acusavam luzes no interior da casa.

Revolvia-me dolorosamente a alma a vista de , todas essas cousas. Padecia horrivelmente, sem con-

7

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!■

86 AMOK IMORTAL

preender, contudo o motivo obscuro de minha an- gústia.

Pela primeira vez senti pronunciado desejo de explicação, pela primeira vez forcejei por sacudir de mim a meia inconciência em que me agitava...

Neste ponto pareceu-me ouvir um gemido ou soluço abafado, amortecido...

Yoltei-me inquieto para a frente da casa, cuja porta central abria sobre uma pequenina escada de pedra.

E moveram-se os batentes, dando saída a uma mulher alta, toda de preto, que, pisando o primeiro degrau, ficou momentos imóvel, a olhar vagamente para o céu.

Depois desceu a pouco e pouco, até o meio do parque, e nòvamente parou.

Ao divisar-lhe o rosto, que alvejava rodeado por um véu tSo negro como o resto do vestuário, senti um estremeção, um abalo singular... Fiz grande esforço para me recordar de uma cousa de importância vital para mim... Mas vacilava á borda do conhecimento, sem poder trazê-lo ao ho- rizonte da conciência. E a idéia fugidia rondava-me em torno á memória, sumindo-se caprichosamente, apenas tentava fixá-la.

A moça continuava como uma estatua sobre a areia que separava as orlas escuras dos canteiros. Enorme sombra extendia-se, lateralmente, por uma nesga de saibro, e ia perder-se no verde indeciso da sebe.

De repente agitou os braços no ar, como sa- cudida de frenesi histérico. As mãos espalmada» fulguravam no alto das compridas mangas, descre- vendo linhas extravagantes, enclavinhando-se, des-

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NO ESTEEITO ABKAÇO DA SOMBKA 87

prendendo-se e recaindo lassas, para ■ novamente se erguerem em gestos desvairados.

Era uma cena de convulsões silenciosas, cena horrível de demência ou de dor...

Eu olhava-a atônito. Parecia-me que todo um mundo de reminiscências se revolvia dentro em mim, pirestes a explodir numa grande revelação cujo pres- sentimento me fazia tremer...

Ela avançou vagarosamente, com um movimen- to ondulatorio que deixava perceber o talhe esbelto e flexível do corpo. Dirigiu-se para o caramanchão, lançou-se no banco, em atitude de infinito deses- pero, e, cobrindo o rosto com as mãos, desatou num chôro convulsivo.

— Êdgar! Não te ver mais, Édgar! O som daquela voz estrangulou-me. Imediata-

mente achei-me debaixo do caramanchão, sem saber como nem porque...

— Aqui estou a teu lado, meu amor... Não chores... Eu não te deixarei...

Ao pranto de minha Altair, que sofria, ressur- giu-me instantâneamente todo o nosso passado de

$ amor... — Eis-me aqui, o teu Édgar... Mas a minha voz soava longínqua, num infi-

nito misterioso o intransponível.

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os espíritos dos mortos procuram

ÂS OASÂS EM QUE MORARAM.

Embora não possa explicar as razões de minha convicção, tenho contudo por certo que os espiri- tes dos mortos procuram as casas em que moraram, quando em vida, e que um vago temor que ás vezes sentimos é devido 6. sua presença.

H. Beeches. Stowe.

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Apenas compreendi que havia morrido, tive uma sensação de vertigem e de assombro. Parecia- me que rolava pelo vácuo, caindo em profundos abis- mos escuros.

Espessa bruma cobrira instantaneamente todas as cousas que me rodeavam.

Estive muito tempo tomado de grande terror, em situação tão extranha que cheguei a ter medo de mim mesmo.

Depois fui, a pouco e pouco, voltando á con- ciência e readquirindo certa tranqüilidade.

O nevoeiro foi-se desfazendo, e os objetos emer- giam lentamente das sombras, como um mundo novo que se criasse diante de mim. Era a impressão de quem assiste ao surto longínquo de uma cidade en- volta em neblinas. Os campos e as árvores precisa- ram-se gradualmente,, aproximando-se e rodean- do-me.

Vi o céu limpo de nuvens e a lua quasi no zenit.

Então atravessou-me o sêr indescritível sauda- de, dôr profunda e amarga, e pus-me a chorar si- lenciosamente, vertendo lagrimas invisíveis, lagri- mas de espectro, mas bem dolorosas, bem reais.

Reconheci a casinha azul, ali, diante de mim, a poucos metros. Olhei em torno e vi que me achava no jardim, ao pé do caramanchão.

Mas Altair havia desaparecido, e a casa estava toda fechada.

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92 v AMOB IMORTAL

Considerei-me um instante e, com estupefação, notei que trajava as minhas vestes habituais.

Assaltou-me grande incerteza. — Quem sabe, pensei, se tudo isto não passa

de horrível pesadelo? Não serei vítima de um sonho ?

Comecei a andar de um lado para outro pelas ruas brancas, banhadas de luar.

Reparei, porém, que não fazia ruido nem proje- tava sombra.

De repente ocorreu-me uma idéia: — Se não sou mais que'tun espetro, não poderei modificar a posição dos corpos que me rodeiam.

Avancei para a roseira, donde pendiam as enor- mes rosas, cheias de luar.

Extendi o braço com imensa emoção. Ah! se eu conseguisse colher esta flor... Talvez desper- tasse deste mau sonho...

Senti roçar-me os dedos o veludo das péta- las e, trêmulo, procurei a haste. Quebrei-a fácilmen- te e suspendi no ar a rosa colhida!

Não paira dúvida... Sou vítima dum pesade- lo! E agitei a flor, para me certificar de que era bem real.

Aqui está a flor entre meus dedos... Mas por- que me acho sózinho a esta hora, diante da casa fechada ?

E' que o pesadelo continua, expliquei-me... Mas senti então um arrepio de pavor... Obser-

vara que a flor também não produzia sombra algu- ma, apesar da viva claridade!

Volvi os olhos para a roseira. — Lá estavam as três rosas, como dantes.

Que puerilidade! pensei. Se tudo isto é um so- nho, que valem semelhantes verificações de pesa- dêlof

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OS ESPÍEITOS DOS MORTÜS 93

Tive então a visão nítida de todo o passado — minha vida bucólica em companhia de Altair, meu grande amor, a enfermidade que me prostrara, a janela do quarto aberta diante de mim, a fila de palmeiras, que me solicitavam...

Eis o que é a morte! exclamei interiormente, depois de longa cisma. Eis o que é a morte! — Uma passagem imperceptível, inconciente... Viera de todo inesperada, quanao me julgava quasi são e me aprestava para os prazeres da vida... Todos nos habituamos a imaginar a morte um acontecimento extraordinário, horrível, rodeado de enorme séquito - de fantasmas — um acontecimento assombroso, que requer terrores e solenidades preparatórias...

E ela viera suavemente, no mesmo plano das cousas diarias e familiares!

Compreendi então que quasi todos morrem como eu, sem o saberem, quando menos o esperam...

Lembrei-me de Altair, pouco antes de abrir a janela... de seus soluços, que tanto me espanta- ram ... de sua atitude desesperada diante do lei- to... A pobrezinha havia compreendido o meu fim próximo.,. Estava, talvez, informada pelo mé-

dico ... Quedei longo tempo perdido nestas cogitações

— mas já com a convicção inabalavel de que havia morrido...

Movia-me livremente pelo jardim e em tôrno da casa.

Verifiquei que não ficara totalmente incor- póreo, imaterial; pois persistiam em mim as sensa- ções materiais, embora se fossem adelgaçando, numa sensível metamorfose...

Não tinha a impressão de ter perdido o corpo, de me achar desincamado. Sentia sómente que meu

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94 AMOE IMOKTAL

corpo se subtilizava, tomando-se cada vez mais leve e indeciso.

A imagem habitual de minha pessoa persistia, oferecendo-se-me com as roupagens terrenas. Tudo, porém, parecia saturar-se de uma como transfigura- ção aérea e luminosa.

Aproximando-me da sebe, coberta de trepadei- ras, pensei na penetrabilidade de minha substância, e adiantei-me, mau grado o obstáculo.

Tive a princípio vaga impressão de contacto; mas, como teimasse em caminhar para a frente, essa impressão desvaneceu-se completamente, e vinguei sair, não sem espanto, para fora do jardim.

Expliquei-me então o motivo por que acredita- ra, havia pouco, ter colhido a rosa. O hábito das sensações corporais ainda se não havia desligado dos atos e das idéias que as acompanham, produzindo assim a ilusão de impressões que não existiam mais.

Keinava profundo silêncio. A lua começava a descer para o poente, derra-

mando sempre a sua alvíssima claridade. A casinha, o parque e as árvores pareciam dor-

mir, em imensa quietude, felizes de se abrigarem sob o pluvial branco da luz.

No meio daquela tranqüila lactescência, sentia- , me invadido de um sentimento de paz, de íntima e deliciosa paz. E em doce repouso contemplava sos- segadamente tudo o que me rodeava. ' I

V . '

A morte, esse fantasma horroroso, que amarga ! todos os prazeres da vida — cismava eu — o espe- tro ameaçador que corrompe todas as alegrias hu- manas, a morte, a tremenda morte era aquilo! Uma

I

i*

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OS ESP1BITOS DOS MOBTOS 95

passagem insensível, um atordoamento de sonâm- bulo, e depois a vida, a vida novamente, com uma perspectiva sem fim! Estava livre, livre da morte! Resolvido o enigma torturante! Havia morrido e ainda me sentia pensar, amar, viver!

E' indescritível o extranho assombro que expe- rimentava ao fazer estas considerações. Não ha sen- timento humano que se aproxime dos transportes que me arrebataram, ao ter conciência de que so- brevivia á destruição de meu corpo! Eis o motivo violento que me leva a contar estas cousas — o desejo de comunicar a meus semelhantes que ainda se debatem entre as sombras, uma parcela desta emoção insonhada!

Morrer... dormir... Sonhar talvez! murmu- rámos perplexos e agoniados nessa vida preparató- ria. Morrer... viver! eis a divina expressão da eterna verdade...

Viver... ama/r! sussurrou ao pé de mim uma voz balbuciante e vaga, um como éco de meu pen- samento. .. E eu senti que era a minha Altair quem falava!

® Olhei estupefato e ví-a a meu lado, sorrindo- me inefavelmente!

—• Altair!... Estás aqui a meu lado! Oh! amor.

E extendi os braços incorpóreos para abra- çá-la.

Ela sorriu-me séraficamente, ondulando no es- paço ... Depois senti até o fundo da alma a im- pressão dos seus lábios apaixonados...

Foi um relâmpago... Quando quis me certi- ficar de sua presença, ela havia desaparecido!

Ao ver esvaída a deliciosa visão, apoderou-se de mim intenso desespero.

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AMOE IMOETAL

— Que me vale toda uma eternidade, se estou separado de ti, Altair, por insuperáveis barreiras!

Neste momento ocorreu-me a idéia de que po- dia penetrar no interior da casa, do mesmo modo por que atravessara a sebe. Admirei-me de ainda me não ter lembrado dessa preciosa faculdade, para ir ver minha esposa.

Mal formulei tal desejo, senti que voava atra- vés das paredes da pequena habitação, com a mesma facilidade com que um raio de luz atravessa os cor- pos transparentes.

Achei-me assim dentro da casinha em que eu e Altair desfiáramos as horas intensamente vivi- das do nosso profundo amor.

Flutuei á entrada do quarto, tomado de pun- gentes saudades, sem coragem de transpor o peque- nino espaço que me separava de minha compa- nheira.

Ví sobre a mesa uma brochura que começára- mos a ler; a um canto a cadeirinha baixa em que Altair se assentava para bordar, e pendente do této uma grande borla de fios de sêda e oiro, que aí o puséramos, havia poucos dias.

Esses atestados de nossa tranqüila ventura sur- giam-me dolorosamente do meio da obscuridade, mal debelada pela luz que se coava do interior do quarto, através dos vidros coloridos do alto da porta.

Altair velava. Qual não seria o estado dessa pobre alma es-

tremecida?! E' impossível descrever a agonia que me imobilizava ali, miserável espetro a pairar no ambiente em que vivera e amara...

Ouvia distintamente o tic-tac do relogio da

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OS ESPÍRITOS DOS MORTOS 97

sala, que soava com® um julgamento implacável a reger a dôr misteriosa das cousas adormecidas.

Parecia-me que exércitos de seres indefiniveis, almas sonâmbulas dos objetos, eram trucidados no fundo obscuro daquele silêncio. Os móveis, os qua- dros, as cortinas, toda a casa estava cheia de es- pantosa desolação.

Nos primeiros momentos julguei-me vítima de extranha fantasmagoria. Mas, atentando bem ao re- dor, capacitei-me de que não me iludia. Assistia realmente á revolta, ao soluço inominável, ao deses- pero inconciente das cousas, que se viam privadas da atmosfera de ventura em que tinham vivido até então imersas.

Havia grande dor surda espalhada pelo ar. Altair, a alma divina daquela casa... ai! como

devia padecer Altair! Imaginar que ia vê-la, sem a poder consolar, meu Deus!

Vê-la! Achava-me á porta de nosso quarto... Parecia-me entretanto que infinitas barreiras me separavam para sempre de minha pobre esposa! .

Um terror imenso e misterioso apoderou-se de <9 repente de mim e de tudo o que me rodeava...

Não sei bem o que se passou. Horríveis sons es- tridentes atravessaram como punhais a vida silen- ciosa da casa. Depois abriu-se com estrondo a porta do quarto, e sairam impetuosamente pessoas espan- tadas, que corriam de um lado para outro...

Não ví Altair, nem compreendi o que se déra. Precipitei-me para fora, e, misera alma errática, fui desferir por entre as árvores do parque e dos ar- redores os meus gemidos de espetro...

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VEM DO LÍBÂNO, ESPÔSA MINHA

Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano...

Cantioo ãos Canticoe.

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Vaguei muito tempo a esmo, soluçando com o vento pelo recesso sombrio dos bosques vizinhos. , Parecia-me que fora expulso para sempre do meu lar — expulso irremediavelmente por seres miste- riosos, por potências invisiveis, que experimentas- sem alegria cruél em nos torturar, a mim e a Al- tair. Sentia raiva surda apoderar-se de mim, e era tomado do desejo irrefreável de uivar pelas gar- gantas tortuosas das escarpas... Figurava-me então que aqueles sons eram os meus lamentos de precito, e isso dava horrível expressão ao meu denespêro.

No meio, porém, de todo esse horror, havia uma voz de criança, uma voz fina e cheia de lagrimas, que me chamava de muito longe, da encosta de um outro mundo. Era um lamento e era um hino, a

% crescer de não sei que parte, aproximando-se como uma esperança.

No fundo da treva começou de se desenhar uma fôrma branca, sem contornos definidos, uma espe- cie de nebulosa quasi imperceptível. E o apelo mis- terioso aumentava, chegando-me da linha extrema da planície, semelhante á voz de um ângelus que soasse a muitas léguas de distância.

Pus-me a fitar a mancha indecisa, entre sur- preso e curioso. E ví-a precisar-se, mover-se e apro- ximar-se, a modo de uma névoa de aparência hu- mana, ao mesmo tempo que os sons vagos subiam, cantando, gemendo cousas inefáveis, de uma dolên- v cia enternecida e doce.

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102 AMOR IMORTAL

Depois a imagem branca foi-se definindo, a pouco e pouco, á medida que se aproximava de mim — até oferecer visivel semelhança com uma mulher que pairasse no ar, entre neblinas. De nívea que era, foi-se colorindo e inflamando, ao passo que cresciam e soluçavam cada vez mais perto os gritos de apêlo meigo e doloroso...

Com grande espanto meu, sumiu-se de repente a noite enluarada e as brenhas e os alcantís — o céu e a terra... E achei-me num pequenino espaço

< rosado e luminoso, ao lado de Altair, que sorria, gloriosamente transfigurada!

Atraidos um para o outro por fôrça divina, abraçámo-nos místicamente, como se podem abraçar espíritos, e enlaçados, quais duas notas do mesmo hino, pusemo-nos a entoar uma canção que era ao mesmo tempo colóquio apaixonado e música celes- te. Vibramos no seio maternal dos espaços infini- tos, sentindo o prazer e a glória de misturarmos o nosso ser á vida universal. Falámos, sem palavras e sem signais, numa comunhão espiritual de que na terra não se faz idéia.

Estava em meio a essa incomparavel diviniza- ção, quando um choque de esmagamento pareceu esboroar todo o universo, enchendo-o de trevas, de horrorosas trevas em cujo fundo se perdia, fugindo para muito longe, a cabeleira doirada de minha es- posa ...

Precipitei-me como um relâmpago, a persegui- la através do cáos — e fui achar-me de repente no interior de nosso quarto nupcial, ao pé do leito amado, onde minha doce companheira acabava de despertar de um sonho encantado que tivera...

Compreendi então o mistério de minhas co- municações com Altair.

Era seu espirito que me buscava durante a inér-

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VEM DO LÍBANO, ESPÔSA MINHA 103

eia do corpo, valendo-se dessa meia-morte para vir beijar-me nas regiões misteriosas em que vivem os desincarnados. Havia descoberto uma ponte lan- çada entre mim e o meu amor — o sonho!

Por ela peregrinaria, a buscar-me, sempre que lhe adormecesse o lindo corpo, a alma branca de

, - Altair!

Minha espôsa, imensamente pálida, recostou-se nas almofadas e começou a passear pelo quarto os grandes olhos espantados, como se procurasse alguém.

Havia muita luz a incendiar-lhe a loira cabe- leira revolta sobre a alvura dos lençóis.

Eu adejava, á maneira de leve sopro, entre ás rendas do cortinado, lamentando-me por não po- der tornar visivel a maravilhosa fluidez de meu corpo quasi imaterial. Daria em tal momento toda a minha eternidade para que me fôsse permitido consolar e proteger aquela criatura amada.

Vendo-a chorar desvairada, entrei a bradar- g lhe o nome, com a triste esperança de agitar com a

minha voz de espetro o plúmbeo ar que enchia a câmara. Pobre de mim! Semelhava um homem que, a poder de soluços, quisesse derrubar muralhas de granito.

Minha espôsa agitava-se, tomada de espasmos violentos, em horrivel agonia.

Três vezes tentei enlaçá-la fiom os meus braços invisíveis, três vezes penetrei-lhe através do corpo, colhenão-me ina/ne, como um vento imaginwrio ou sonho vago.

Desesperado, percorri todo o quarto, a pro- curar um meio de socorrê-la. Parecia-me que, afas- tando-me um pouco, readquiriria a soÇdez do or-

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104 AMOR IMORTAL

ganismo. Aumentava essa louca esperança a visão nítida, que conservava, de minha pessoa, de meus membros, até das vestes habituais. Custava-me acre- ditar na fluidez imponderável de um corpo que eu via com todas as aparências da materia compacta.

Malogravam-se, porém, as porfiadas tentativas dè comunicação. Debalde ensaiei mover, lévemente que fosse, as abas do cortinado ou a musselina das janelas. Tudo permanecia inalteravel e surdo aos meus embates fantásticos...

Altair emudecera e ficara imóvel, de olhos lar- gamente abertos. Com uma das mãos extendida le- vantava no ar a renda alvíssima que chovia em torno do leito, na atitude extravagante de um mo- vimento meio começado, mas incapaz de se com- pletar.

Debruçava-se para fora, como se tencionasse sair. Tolhia-a, entretanto, a imobilidade de uma es- tátua.

A camisa desabotoada expunha á luz a alvura , do colo, atravessado de alto a baixo por uma linha saliente, tensa como uma corda prestes a quebrar...

Só se moviam os olhos, os grandes olhos des- vairados, que punham duas cintilaçÕes escuras e in- quietantes no meio daquele dilúvio branco de linhos e de rendas.

Arremessei-me para junto de Altair, extendi- Ihe os braços, suplicante, rojei-me pelos tapetes — chorei, solucei, contorcí-me...

Loucura inútil, dolorosissima...

Quiètámente, sem ruido, abriu-se a porta do quarto, e entrou uma mulher da aldeia, a quem mui- tas vezes prestáramos socorros. Seguiram-na várias outras, em grupo, solícitas, pisando no bico dos pés

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VEM DO LÍBANO,. ESPOSA MINHA 105

e falando em voz baixa, aos cieios. Acercaram-se de Altair e, tomando-a nos braços, deitaram-na com infinitas precauções.

— Não vá repetir-se o ataque de ha pouco, mur- murou uma delas com visivel ansiedade.

— Não... interveiu a outra. Ela está mais cal- . ma... Dormiu algumas horas... Deus nos livre... ajuntou, Deus nos livre... Que susto tivemos...

Estas palavras explicaram-me a cena de pavor que me afugentara da sala, quando pela primeira vez tentara aproximar-se de minha esposa.

Afastado, eu contemplava, do extremo oposto do quarto, os movimentos cautelosos daquele grupo de mulheres, que rodeavam o leito, semelhantes a manchas irregulares que se entornassem ao acaso, das rendas do cortinado á tapeçaria do pavimento.

A grande lampada, poisada numa mesinha ao lado, banhava com sua luz trêmula as alfaias brancas.

Dominava-me sensação de crueza implacável, mixto de terror e de frio.

De repente as manchas começaram a apagar- ®8e, como devoradas por um esplendor misterioso.

Altair levantou-se, sem que ninguém fizesse o mínimo gesto para retê-la. Levantou-se calmamen- te, como de costume, e atravessou o quarto, sorrin- do. Aproximou-se de mim com a meiguice de todos os dias e disse-me um pouco espantada:

— Que tens?! Tão pálido!... Sofres, Éd- gar?! E entre piedosa e radiante, como que trans- figurada de extranho júbilo foi-me conduzindo para fóra.

Vem, Êdgar... Vamos sair... Vamos para longe daqui.

Ouvi vozes longinquas, que diziam:

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106 AMOR IMOETAL

— Ela perdeu os sentidos... Não respira mais... O coração parou...

Mas o quarto, o leito, o cortinado esvoaçante já se diluiam na extrema do horizonte, enquanto o céu gloriosamente iluminado se abria diante da nós...

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NÃO HÂ NADA BRILHANTE

A NÃO SER O CÉU

Não ha nada brilhante a não ser o céu.

O brilho das asas da glória 6 falso e passageiro como as tintas evanescentes da tarde; as flores do amor, da esperança, da beleza desabrocham para o túmulo: não' ha nada brilhante a não ser o céu.

Thomas Moore.

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• Ao luar que momentos antes inundava todas as cousas, havia sucedido a tranqüila cintilação das es- trelas inumeráveis.

"Voámos largo tempo, ^enlaçados; voámos ao acaso, de horizonte em horizonte, sem que Altair reparasse na estranheza desse passeio pelos ares.

Eximíra-se do corpo terrestre, sem o sentir; libertara-se suavemente, sem o mínimo esforço nem a mais pequenina perturbação — de tal sorte que seria impossivel convencê-la de que havia passado por essa cousa que julgamos horrível: a morte...

Vía-ç, com a mesma forma terrena, embora aérizada e luminosa, para assim me explicar.

Nenhum de seus encantos desaparecêra; pelo contrário, ■ transformara-se numa Altair infinita- mente mais bela, incomparavelmente mais seduto-

gra. A alvura mística de sua carne pairava no ar como uma núvem incendiada no fulgor da cabelei- ra esvoaçante. Resplendiam-lhe os olhos feitos de pura luz, saturados de amor e de glória...

De volta de nosso passeio fantástico pelos ar' redores, adejámos, sorrindo, em torno á casinha em que vivêramos; visitámos, uma a uma, as flo- res do jardim; trocámos mil palavras fervorosas, cânticos de êxtasis nupcial rebeldes a toda a des- crição humana.

Depois subimos... Subimos espaço em fora, rumo de uma região misteriosa que nos atraía.

Voávamos através de céus inteiramente novos.

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110 AMOB IMOBTAIi

Com o poder de visão aumentado de modo ma- ravilhoso, descortinávamos as mais profundas ca- madas estelares a avançarem para nós como va- gas refulgentes.

O brilho pontuado das estrelas ia-se mudan- do em faixas fosforecentes, em riscos de todas as cores, que se cruzavam e multiplicavam, á me- dida que crescia a velocidade de nossa ascenção.

Altair olhava espantada e dizia baixinho: — Édgar! vamos despertar... Que sonho!

Onde está nossa casinha, nosso jardim, as flores que plantámos...

Mas uma música misteriosa começou a nos en- volver e embalar no infinito...

E no meio dêsse esplendor, alguma cousa in- visível, uma voz divina, que nos acompanhava atra- vés da imensidade, ia entoando revelações nunca sonhadas:

"Tudo provém do Amor e existe para o Amor — dizia a voz misteriosa. — Sêr é amar... O nada, o não-sêr é simplesmente a negação do Amor. O universo é o Amor em todas as suas manifesta- ções. A materia inerte e inconciente é a primeira tentativa de Amor, é o primeiro gesto do Amor para se realizar... -Todos os seres vivem, todos os seres amam, ainda os que julgais insensiveis, por- que não surpreendeis a vida oculta que os atrai para o Amor Universal... O planeta de que vin- des, ainda era uma nebulosa indistinta e vaga — e já vos amáveis desde toda a eternidade... Re- vestistes todas as formas possíveis nesse pequeno astro, amando-vos sempre, buscando-vos infatiga- velmente, gravitando sem cessar um para o outro... Percorrestes a enorme cadeia dos seres que cha-

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NÂO HA NADA BRILHANTE A NJLO SEE O CEU 111

maveis inanimados, numa longa tentativa para chegardes á alvorada do Amor conciente... Um dia extremecestes á luz! Vosso eterno Amor abri- gara-se no seio da mesma flor! Continuastes a vos aproximar, através das inúmeras formas da Vida que separam a planta do homem... Passeastes o arreból da conciência por todas as series de ani- mais — até que um dia homem e mulher, chegas- tes á luminosa afirmação de vosso Amor..."

Senti um deslumbramento! Lembrei-me, como de uma cousa longínqua e

pequenina, da casinha que habitáramos, do jar- dim, das flores, de nossos passeios pelos campos...

Olhei para Altair, que bem junto de mim sorria transfigurada. Esvoaçava-lhe em torno a cabeleira de oiro, projetando-se, como um clarão, no fundo cintilante do espaço.

Experimentei então a glória e a vertigem de agitar a cabeleira de minha amada no meio da poeira das estréias...

"Todo esse infinito que contemplais — con- tinuava a voz misteriosa — todos esses mundos que turbilhonam ás miríades só existem pelo Amor... Estais percorrendo universos completa- mente desconhecidos... Nunca o olhar terreno poude lobrigar nem siquer um dos astros que en- chem o céu que atravessais neste momento... Os milhões de estrelas da via láctea, as constelações de vosso planeta, todo êsse universo cuja visão vos fazia tremer de assombro, visto daqui, não-passa de uma nebulosa de aparência confusa, quasi im- perceptível... Imaginai que cada um dos pontos

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112 AMOB IMORTAL

que vedes eintilar no espaço é um universo tão grande como o céu cujos astros observáveis de vosso planeta... Reduzi depois todos os universos possiveis a um só ponto no espaço e multiplicai esse ponto até o infinito... Mas todos esses cál- culos não representam mais que um esforço para compreender uma cousa incompreensível, para li- mitar o ilimitado..."

Passávamos diante de um sol de oiro ladeado de outros dois, verde e azul — três pomos trans- lúcidos seguidos de um cortejo de planetas e saté- lites, em que se refletiam mágicamente as mais sur- preendentes combinações de tintas.

Aí o céu escorria luzes e cores. Altair chegou-se para bem perto, de modo a

envolver-me com a cabeleira, que crescia e fulgu- rava...

Pitei-a com arroubo, e ví que ela tomava a coloração e o esplendor dos mundos de que nos aproximavamos.

"Além dêsae infinito — prosseguia a voz — além desses espaços, outros céus se acendem, outros milhões de sóis gravitam... Adiante de um céu ha sempre outro céu, outro universo, outro incomen- suravel..."

Tornei a fitar o rosto de minha amada... Os olhos pareciam estar absorvendo toda a luz si- deral que iluminava o espaço, e a cabeleira crescia, crescia e fulgurava entre nimbos de oiro...

— Altair! bradei aterrado. Altair! Díze-me

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NAO HA NADA BRILHANTE A NÃO SEE O CÉU 113

que és a minha Altair, que ainda me amas... Vol- temos para a nossa casinha.

Altair, porém, não me respondia — Era um esplendor silencioso, uma forma luminosa, uma glória muda e fulgurante...

"Cada uma dessas estréias — continuava a ►- voz misteriosa — cada um desses sóis arrasta con-

sigo um cortejo de planetas e satélites destinados á Vida Conciente. Nesses vivem os sêres que bus- cam as mais sublimes realizações do Amor Uni- versal. Dora avante, sem que percais a conciên- cia a que atingistes, conservando inteira a memó- ria de vosso passado, ides habitá-los todos. Em cada um desses mundos revestireis, uma a uma, todas as formas da Vida Conciente. Amar-vos-eis eternamente, infinitamente, em todas as formas su- periores da Vida e do Amor. Percorrereis os plane- tas e satélites de todos os sóis do infinito, revestin- do sucessivamente todos os avatares possíveis do Amor Universal. Começareis e recomeçareis eter- namente o vosso Amor, que crescerá sempre, sem

' que jámais vingueis sair da primeira Hora Nup- cial..."

— Altair! exclamei, vendo-a esvair-se numa réstea de luz —

— Reincamados, amor, em uma terra nova, volveu minha esposa, sorrindo.

As flores de oiro cantavam em coro — enquan- to se punha o sol azul e surgia, no oriente, a gran- de esmeralda translúcida...

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t MORRER... AO ABAR...

Não nos parecemos ás vezes com esses diabos que Milton re- presenta devorados de tédio, de raiva, de inquietação, de dor e raciocinando ainda sôbre a meta- física no meio de seus tormentosf

VOI/taire.

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TUDO í VAIDADE E AFLIÇÃO

DE ESPIRITO

Vi todas as cousas que se fa- zem debaixo do sol, e eis que tudo é vaidade e aflição de espirito.

Eclesiastes.

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Chamava-se Venerando. Bra um velho de se- tenta anos, que perdera a razão, dizia-se, pelo muito que padecera na vida.

Fora homem de largo saber, e, mau grado o transtorno da inteligência, revelava ainda, em seus intermináveis discursos, preocupações e idéias que lembravam o letrado de outros tempos.

Todo de branco, fronte escampa, calva inci- piente e uma longa barba tão alva como as vestes que usava — eis como aparece a flutuar em minha imaginação, extranho fantasma de neve meio sumi- do entre sombras...

Fui vê-lo duas vezes, e de ambas as visitas guar- dei tal impressão de espanto, que até hoje não posso recordar êsse passado sem profundo e secreto terror.

4

Venerando habitava um casarão silencioso, pa- redes enegrecidas e gretadas, junto ao qual se al- teavam duas árvores colossais, cujos vultos sinis- tros davam a imagem de escuras ameaças estendi- das pelo céu.

Foi por uma tarde angustiosa, de que nunca mais me pude esquecer...

Aproximei-me, tomado de misteriosa inquie- tação.

Aquele sítio apresentava o quer que era de singular e doloroso, que me enchia de amargura.

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120 AMOR IMORTAL

O edifício quasi em ruinas parecia vacilar en- tre os clarões agonizantes do crepúsculo. As jane- las sem vidraças, os portais escalavrados, o pata- mar invadido pela grama — tudo ali atestava de- solação e abandono.

Parei no topo da escada e, espraiando os olhos em torno, contemplei a imensa solidão verde, que se alongava, a perder de vista, para qualquer lado que me voltasse.

O círculo vermelho do sol aflorava o horizon- te, como enorme gota de sangue, e a paisagem in- teira tinha o aspecto e a luz de uma vasta câma- ra ardente.

Mas neste momento chegou á porta Clara, a filha de Venerando...

Clara contava cerca de dezesete anos. Era menina.

Com ser tão jóven, manifestava na compos- tura e nas palavras rara gravidade — uma gra- vidade que forçava á meditação e ao recolhimento. Até o seu sorriso meigo e bruxoleante parecia im- pregnado de tristeza. Toda ela dava a impressão de branca ovelhinha torturada, entezinho frágil e doloroso.

Os lábios finos e trêmulos desenhavam-lhe no rosto imensamente pálido uma curva de sangue vivo.

Os olhos... Que profundo e misterioso era o esplendor daqueles olhos! Dir-se-ia que viviam vida própria, independente do conjunto. Cintila- vam, carregados e silenciosos, como se forcejassem entender a linguagem de um outro planeta...

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TUDO É VAIDADE E AFLIÇAO DE ESPIRITO 121

Foi Clara quem me conduziu ao interior da casa.

Atravessámos um comprido e estreito corre- dor e fomos sair numa vasta sala fracamente ilu- minada por pequenina lâmpada fumegante.

Sentada a um canto achava-se uma dama, que, &o yer-me, se lèvantou penosamente para me re- ceber. Era a mulher de Venerando. Devia orçar pelos cincoenta anos; mas estava tão mirrada e encanecida, que aparentava sessenta.

Saudou-me com o seu ar de desalento e re- signação, e afastou-se quiètamente a retomar o lu- gar que ocupava.

A moça ofereceu-me uma cadeira e foi colo- car-se junto á mesa, num banco tosco que lá havia.

No extremo oposto, á minha frente, havia uma pêndula, cujo mostrador, não sei porque, me fez pensar em enorme pupila branca e sem vida.

Placas negras devoravam, aqui, ali, as pare- des nuas, donde se excodeava a cal escurecida pelo tempo.

Clara tentou conversar. Mas um violento aces- ri so de tosse cortou-lhe a palavra, sacudindo-a du-

rante alguns momentos terriveis. As faces incen- diaram-se congestionadas; as veias da fronte e do pescoço cresceram expulsas,' enòrmemente infladas, e o colo quasi estalou com a sufocação.

A mãe aproximou-se aflita... Levantei-me sobressaltado e, acercando-me da

pálida é enfermiça menina, aconselhei-a a que se agasalhasse bem e tomasse um calmante.

Ela agitou no ar as mãos finas e quasi trans- parentes.

Depois, logo que poude falar: :— Não é nada... já passou... disse, e, arre-

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122 AMOE IMORTAL

gaçando os lábios vermelhos, com expressão que lembrava ao mesmo tempo o quer que fosse de anjo e de cadaver, sorriu — sorriu resignada e in- fantilmente. ..

Era noite. Uma janela aberta, no fundo da sala, deixava

ver confusamente as copas negras das árvores, que se agitavam, como cabeças alucinadas, e o ruido produzido pelo vento chegava até nós trans- formado num coro de soluços e vozes abafadas.

Eu permanecia imóvel, a olhar aterrado para a chama da lâmpada, perguntando-me' se tudo aquilo não passaria de um sonho tenebroso.

O silêncio na casa era tão profundo e impres- sionante, que não me sentia com alento de falar. Tinha receios de que minha voz, elevando-se em se- melhante ambiente, produzisse efeitos terriveis, cuja natureza não poderia explicar. Estava, porém, certo que alguma cousa misteriosa e ameaçadora se preparava no meio das sombras.

De repente vi uma figura branca e indecisa, que avançava, sibilando extranhamente, e logo em seguida distingui uma voz como nunca esperei ouvir •) na vida. Lembrava um silvo estrangulado, um cicio cortante, que viesse do této ou das paredes.

— Papai! — murmurou Clara em tom que me pareceu jubiloso.

Levantei-me confuso, procurando que dizer. Mas o velho, mal me extendeu a mão, entrou

a passear de um extremo a outro da sala, conti- nuando a murmurar, como se desde muito tempo nos conhecêssemos... Falava precipitadamente, a cofiar a longa barba, esboçando um sorriso indefi- nivel, sempre o mesmo, sem princípio nem fim.

Clara olhava-o estática.

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TUDO fi VAIDADE E AFLIÇÃO DE ESPÍEITO 123

"Tudo o que vem á vida, trás consigo o gér- men da destruição — declamava o louco, sem que eu pudesse perceber a que propósito íazia tais considerações. — Tudo o que vem á vida já nasce moribundo. Tudo o que vive agoniza. A vida não é mais do que uma interminável agonia..."

E suas mãos, trementes de cólera, extendiam- - se em todas as direções. Agitavam-se, brandindo

com mais veemência do que se estrangulassem no - ar exércitos invisíveis.

O rosto, porém, contrastando com esses ges- tos exasperados, sorria imperturbavelmente, como se mergulhasse em clara e tranqüila atmosfera, onde não tivessem acésso os desordenados movi- mentos daquela alma agitada.

Desde esse dia a figura irrequieta do velho louco nunca mais se me apagou da lembrança.

Ainda vejo diante de mim seu deslisar inces- sante de um ao outro extremo da comprida sala, o gesticular extravagante e rápido com que acom- panhava tudo o que dizia, e no meio de tão insó- lito desvario a cabeça branca, serena e nobre a fugir como que arrastada num singular turbilhão

^ de neve. Ainda lhe ouço a voz fina e precipitada, carregada de irrevogáveis anátemas. E do fundo indeciso e tenebroso dêsse quadro emergem, tão vi- vos e angustiados como então, os olhos profundos e misteriosos, os olhos espantados da pequenina Clara. Muitas vezes me representei com doloroso assombro a vida aflitiva dessa criança enferma, destinada a passar os seus breves dias entre uma mãe tomada decrépita antes do tempo, á força de sofrer, e um velho pai demente, que, pobre vítima de negra alucinação, não via em tudo o que o ro- deava, mais do que motivos para as mais amargas reflexões.

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Í24 AMOB IMOKTAL

"Cada momento que passa — continuava, apontando para as árvores que se viam confusa- mente pela janela do fundo — cada momento que passa, quantas folhas vê cair, quantos seres extor- cer-se e desaparecer! Tudo o que nos rodeia nos fala da morte lenta e implacavel, do desapareci- mento inelutavel de todas as cousas, de cantos que emudecem, de árvores que tombam, de luzes que se apagam... Podem-se porventura abrir os olhos sem que se veja o longo e doloroso agonizar de tudo o que existe? Pode-se olhar para o quer que seja sem se descobrir o cadaver que espreita do fundo de todos os sêres, que espera soar a sua hora, hora fatal, que avança de minuto para minuto? Um pássaro que canta, uma flor que desabrocha, uma árvore poderosa, que extende os ramos na es- curidão da noite... que cousa é tudo isso senão exceção á morte universal, luta ridícula, revolta cega e pueril contra a lei suprema?... Que é o universo inteiro senão protesto infantil, protesto mesquinho contra o Nada Todo-poderosoí..

Várias vezes tentei dirigir-lhe a palavra. Mas i ^ o velho não me via, não via a ninguém — falava como de si para si, sem pausa, gesticulando e pas- seando de um lado para outro.

Durante uma hora ou mais ví-o passar e re- passar entre mim e a filha, perseguido por fata- lidade inexorável, que o obrigava a maldizer sem cessar de todas as cousas.

Clara conservava-se imóvel e absorta. Pitava-o em atitude que era um mixto de enlêvo e de es- panto...,

Tive a impressão de me achar arrebatado a um mundo extravagante e doloroso, em que som-

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bras dementes praticassem toda uma eternidade sôbre as misérias da vida.

Perguntei-me repetidas vezes se não era um pesadelo tudo aquilo...

Depois deixei-me absorver — entreguei-me sem resistência á fascinação daquele ambiente amargo e louco...

"Insurgir-se contra o Nada, contra a Treva, contra a Noite! exclamava, meneando a nívea ca- beça e mergulhando as mãos trêmulas de velhice nas ondulações da barba — O Nada! Aí está êle oculto, disfarsado, mas sempre presente, no seio mesmo de todas as veleidades da vida... Insinúa- se em todas as cousas, gargalha no fundo de todos os sêres, traça rugas e desenha caveiras nos mais belos rostos... Quando vejo uma criança fresca e rosada, procuro logo as feições disfarsadas do ca- daver que se cria ali dentro, e aguarda maligna- mente o instante propício para lançar a máscara...

A vida é dor, é padecimento, é agonia... Como ' não o havia de ser, se é revolta, insurreição con- tra a ordem suprema? Nem se pode conceber a vida senão como injustiça, protesto, luta, carnifi- cina ... Mostrem-me um sêr que viva, que subsista, sem crimes, sem assassinios, sem holocaustos inces- santes — curvarei a cabeça e confessarei que sou insensato... O único fim da vida é afirmar o po- der soberano da morte, é espalhar ruinas e ca- dáveres ..."

Eu havia semicerrado os olhos, a escutar o murmúrio daquela voz quebradiça, que vertia, inalteravel, apóstrofes e afirmações pungentes.

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Abrí-os com espanto, procurando instintiva- mente um rosto desvairado de dor. Mas Veneran- do esboçava o mesmo sorriso tranqüilo e enigmá- tico ...

Clara, de braços cruzados, acompanhava-o com o olhar brilhante.

A velha havia desaparecido do canto em que se achava. B a lamparina vasquejava, enchendo de fumo o aposento.

/

"Que outía cousa é viver, prosseguia êle, senão levantar monumentos á morte? Viver e padecer são palavras sinônimas... Vejam esta casa, essas janelas desconjuntadas, essas paredes escalavradas... Quantas gerações já passaram por aqui! Quantas pessoas gemeram e expiraram nestes quartos! Aqui nesta mesma sala, neste lugar em que nos acha- mos, quantos entes esperançosos, confiados e for- tes, não se ajuntaram para celebrarem suas ilu- sões e seus amores, como se fossem imortais! Aqui viveram crianças risonhas, moços vigorosos, don- zelas trêmulas e apaixonadas... Aqui antepassa- dos nossos juraram-se amor eterno, prometeram^, se eterna ventura, beijaram-se á sombra de árvo- res que ha muito desapareceram, á luz de um luar que todas as forças do universo não poderiam tor- nar a trazer..."

Venerando parou diante de mim, como se qui- sesse sublinhar o horror do que estava dizendo.

Depois de fitar-me um momento, com o inal- terável sorriso a espraiar-se pela nívea barba on- dulante, voltou-se para a filha, que continuava a contemplá-lo, presa de fascinação irresistível, e,

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num gesto carinhoso, de que não o julgava capaz, passou-lhe a mão ao longo dos cabelos, comprazen- do-se em enrolar entre os dedos compridas madei- xas rebeldes...

Mas foi obra de um instante. Logo retomou o seu vai e vem de mancha branca, a deslisar de um extremo a outro da sala.

"Aqui estamos quatro pessoas neste aposento, por esta noite escura, diante desta pequenina lâmpada — eu, um velho tonto, que tenho visto padecer a todos os que me rodeiam, ha mais de meio século; minha filha, que ainda não compreen- de bem o que se passa e vive a escutar espantada o ruido do vento nas casuarinas vizinhas; minha companheira de infortúnio, e o senhor... disse, voltando-se para mim com certa hesitação, como

■ se só então houvesse percebido a minha presença. — Sabem que estamos aqui a fazer? Padecendo e aguardando a morte..."

n ' • •

Essas palavras foram ditas de modo tão es- tranho, que não pude furtar-me a um movimento de sobressalto.

"A morte é a paz suprema e a solução de to- dos os enigmas... E' a libertação e a tranqüili- dade ... Para que serve a vida, seníío para condu- zir triunfalmente á morte? Qual é o seu sentido, senão o ser caminho para a morte, para a reinte- gração da ordem, do silêncio absoluto, do sono pro- fundo que invade e redime todos os seres ?..."

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Creio que Venerando reparou na expressão entre aflita e compassiva com que eu contemplava sua pobre filha.

• "Essa menina que aí vê — disse, parando de

repente entre nós — essa criança a quem eu e mi- nha companheira infligimos o sêr, quanto não me tem feito lamentar semelhante loucura! Desde o instante de seu nascimento que acompanho a for- mação lenta e dolorosa do cadaver que nela se pre- , para, que ás escondidas se modela, cresce, triunfa e tende a surgir de um momento para outro... Lembro-me, como se a estivesse vendo, da noite ter- rível em que a pobrezinha começou a padecer... Foi uma noite tempestuosa e convulsiva... A mãe chorava e clamava em gritos dilacerantes; a criança vagia desesperadamente, e toda a casa, batida e alagada da chuva, parecia uma morada de pavor... Depois amainou a tempestade, minha mulher sen- tiu-se aliviada e a recemnascida adormeceu. Então penetrei no quarto, pé ante pé, como um crimi- noso devorado de remorsos, e fui contemplar no rosto ainda informe e vermelho da criança o des- pontar insidioso do cadaver... Levantei-a nos bra- " ' ços e beijei-a com imensa piedade... Queria que me perdoasse... Mas sua carne extremecia sobre os meus lábios toda trêmula de mortalidade... Sua pobre inconciência parecia adivinhar que ali se preparava um novo alimento para a dor... Vi-a crescer e amei-a com extremos.., Era uma ino- cente vítima da minha insânia... E nunca mais pude ,'contemplá-la sem me sentir infinitameiite culpado para com ela..."

Havia muito que o grande relogio déra onze horas.

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Pouco aluxniava a luz vermelha e tíbia da lâm- pada.

As casuarinas gemiam mais angnstiosamente em torno da casa.

Um momento a nívea flutuação daquele duen- de singular parou indecisa a um canto escuro, em hesitação silenciosa.

Dir-se-ia que o velho se deixara invadir de terror súbito ante as dolorosas visões que susci- tava.

Clara olhava-o absorta. Empalidecêra espan- tosamente, e a respiração convertêra-se-lhe em di- ficultosa arfagem.

Fiz um movimento para me levantar; maá a voz pequenina e tilintante já havia recomeçado, com uma contumácia de goteira, a desenrolar, pai- nél a painél, a história arrepiante da Dor Uni- versal. .

Todos os generos de suplício desfilaram, um a um, com sacudimentos de tragédia. Todas as agonias humanas vieram sucessivamente pregar o toada da vida e a felicidade do nirvana. Veneran- do inspirava terror e assombro..'. Semelhava uma aparição fatídica, um gênio malévolo, que tentasse transformar aquela sala em horrível cenário de torturas infernais...

Na pêndula, soar am as doze badaladas da meia noite.

O velho parou repentinamente. Seu vulto de neve meneava-se vago, perdia-se indeciso, vaporo- so, como se se desfizesse numa idéia, numa figura incorpórea, numa maldição sinistramente branca...

Clara esgueirou-se em silêncio, deixando-me a sós com êle...

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A lamparina, prestes a apagar-se, enchia de fumo o aposento. O ar lúgubre de tudo o que me rodeava, fazia-me pensar num interior de tiimulo.

Debalde procurei banir da imaginação essa idéia pueril. Sentia-me, mau grado meu, atraves- sado de insólitos temores.

Levantei-me então cheio de supersticioso pavor...

Venerando trouxe uma pequena lanterna e, depois de a ter-acendido, ma ofereceu, para que pu- desse distinguir o caminho através da escuridão da noite.

Ao brotar a chama, precisou-se a imagem leve e trêmula do ancião, com a barba muito alya e es- voaçante, a fronte vasta, o rosto iluminado por sorriso inalteravel, indefinivel...

Acompanhando-me até a porta, remoía á guisa de despedida:

"E' como lhe digo. Neste mundo tudo está en- venenado pela dor — tudo: o amor, a ventura, a beleza... Tudo lembra padecimentos, tudo custa padecimentos..."

Chegámos á porta. Dei-lhe boa noite. Bxtendeu-mc a mão, dizendo:

"Tal qual me vê, tenho sido um dos homens mais infelizes que se podem imaginar... Mais de meio século de desilusões, de desesperos, de revol- tas... Tenho sido imensamente infeliz... Mas, creia-o, não quereria ter sido ditoso... Não! Teria hoje remorso djj ter tido momentos de alegria num mundo em qué^a alegria é tão rara..."

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TUDO Ê VAIDADE E AFLIÇÃO DE ESPÍRITO 131

Afastei-me tropeçando e á distância ainda ouvia no seio da noite, como estribilho fatídico, murmurado por um trasgo impassível, distraído: — "mundo em que a alegria é tão rara..

Nuvens escuras, sopradas pelo vento, rasga- vam, aqui, ali, grandes abertas consteladas.

Para o lado austral, no centro de uma clarei- '' ra emoldurada de novelos espessos, o Cruzeiro do

Sul, em pé, passava o meridiano, em fulguração misteriosa...

E as quatro estrelas da Cruz parecia-me cra- vavam no fundo negro do céu um corpo desfigu- rado, um cadaver branco, meio desmanchado, sa- cudindo-o para a terra em horríveis contorsões...

Quando me deitei, eram duas horas depois da meia noite.

Apaguei a luz e mergulhei a cabeça nas almo- fadas, desejoso de dormir logo, sem imaginações esnervantes.

Mas comecei a ouvir soluços longínquos, como se um coro lúgubre avançasse lentamente, cantan- do e chorando, em direção a minha casa...

Olhei espantado, ao redor de mim. Achava-me sob um céu escuro, pontilhado de

algumas raras estrelas, que ardiam semelhantes a pupilas sinistras e coléricas. !

Em torno extendia-se um plaino circundado de colinas, tudo vestido de extranha vegetação ver- melha.

A' frente, uma fila de coqueiros côr de san- gue balouçavam os cimos rubros e incendiados sob o negror profundo do firmamento.

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Evanescente, indecisa, ondulante — passava e repassava a imagem branca de Venerando, que se multiplicava, surgindo de todos os lados, qual núvenzinha movediça e incansavel.

Depois a abóbada negra desceu, salpmtada de olhos de fogo, apertando a paisagem e devorando todas as cousas...

Seguiu-se um cáos tenebroso de que me ficou conciência quasi nula...

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OS MORTOS SÃO MAIS FELIZES

QUE OS VIVOS

Julgo os mortos mais felizes que os vivos, e mais feliz ainda, aquele que nem chegou a nascer.

Ecclesiastes.

10

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Durante muitos dias, a visão dessa noite não me deixou um momento siquer. Divisava por toda a parte a cabeça encanecida do velho demente, a enorme barba a esvoaçar, semelhante a radiosa faixa de arminho, e seu sorriso imperturbável, sor- riso misterioso e frio, que parecia envolvê-lo todo num doloroso resplendor... Ouvia soar em torno de mim e murmurar-me aos ouvidos, num sopro contínuo, a sua voz fina e penetrante, carregada de maldições... Repetia mentalmente seus longos discursos, como se cada palavra se houvera gra- vado, a ferro candente, em minha memória... Perseguia-me noite e dia a toada singular daque- las declamações em que reminiscências de leituras se casavam por maneira tão insólita ás pessoas e objétos familiares... Por mais que me dissesse a

%iim mesmo que Venerando era um pobre demen- te, cujos disparates a uns provocava riso, a outros compaixão — por mais que mo afirmasse, esfor- çando-me por não evocar mais a cena que presen- ciara, era tudo inútil... Continuava a torturar- me a obsessão das imagens fúnebres, dos desespe- ros e negações...

Uma vez, não me lembro quantos dias já se haviam passado, passeava eu a esmo pelos cam- pos, quando me achei de repente, ao cair das tre- vas, em face do casarão de Venerando.

O céu estava sombrio. Ameaçava muita chuva. Não obstante isso, dirigí-me nervosamente

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para a morada do extravagante mentecapto. Creio que esse homem exercia sobre mim uma especie de fascinação misturada de pavor, o que me atraiu contra a vontade e apesar do mau tempo que se preparava.

Avancei hesitante; mas sem me voltar; percor- ri em poucos momentos grande trato de caminho e fui achar-me, com espanto, á entrada da sinistra habitação, por uma noite tempestuosa, cortada de relâmpagos e trovões.

Lá permaneci não sei quanto tempo indeciso, sem coragem de bater... Mas Venerando veiu ca- sualmente á porta e convidou-me a entrar.

O vento soprava mais rijo e a escuridão cres- cia de momento para momento.

Atravessei tateando o corredor que levava fa sala em que estivera, havia alguns dias. Achei-a deserta, fracamente iluminada por diíbia clarida- de, que parecia provir de um quarto ao fundo, don- de partia leve rumor de vozes abafadas.

Venerando desapareceu a procurar uma luz, deixando-me só durante instantes.

A pêndula marcava secamente os segundos, e o grande círculo do mostrador lembrou-me mais uma vez um olhar branco e frio, a espreitar do meio da obscuridade do aposento.

As vozes continuavam a ciciar indistintas. Prestei ouvidos com inquietação e julguei dis-

cernir fino lamento, um como vagido longínquo e doloroso.

Será a pobrezinha? perguntei-me aterrado. Ou estaria alguma criança a chorar...

Haviam-me contado que Clara ultimamente não se levantava mais...

Nisto brotou um grande clarão do quarto ao lado, e Venerando apareceu á porta, com a Iam-

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08 MORTOS SAO MAIS FELIZES QUE OS VIVOS 137

parina nas mãos. Era o mesmo rosto níveo, as mesmas cãs, a mesma barba alvejante e longa; mas aíigurou-se-me mais pequeno, mais magro e trêmulo. Esboçava o sorriso de sempre; mas as os- cilações avermelhadas da chama produziam-me por vezes a ilusão de um sorriso imóvel, escaveirado, esculpido em ossos.. •

— Como está sua filhinha? perguntei então, •aproveitando o momento de silêncio.

— Melhor, muito melhor. E acrescentou no - mesmo tom: — Vamos cá para dentro. Entre, faça

o favor. Atravessámos vários quartos e saletas. Ele ia

á frente, levando a lâmpada e resmoneando mil sons incompreensíveis. Eu o seguia mudo, esfor- çando-me em vão por perceber o que ia dizendo, como a debulhar palavrinhas gritantes, cujo senti- do se evaporava, mal saiam dos lábios.

Introduziu-me numa pequena câmara, com as paredes, de alto a baixo, guarnecidas de pratelei- ras cheias de livros.

Uma camilha arranjada com cuidado e asseio, coberta de branco, era o único objeto que contras-

^tava com o caráter de biblioteca que oferecia o ^aposento.

Ao lado oposto havia uma mesinha apinhada de livros e cadernos de papel.

Venerando indicou-me uma velha cadeira, úni- co assento que lá se achava, e pôs-se a andar de um lado para outro, sem interromper um momen- to siquer o murmúrio trincolejante com que acom- panhava tudo o que fazia.

Apurei o ouvido e, concentrando a atenção, consegui surpreender o sentido daquele extrava- gante sussurro.

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"Já houve um tempo em que acreditei na justiça divina, dizia com o seu eterno sorriso frio e cortante. Já houve um tempo em que esperei da vida alguma cousa mais que torturas e agonias... ' Mas para logo comecei a admirar-me que ainda houvesse esperanças e ilusões debaixo do sol... Desde que me conheço, só tenho visto morticínios, crueldades, dores e agonias de toda a especie... E dizer-se que ha quem não sinta a hediondez deste mundo, que felizmente vou deixar — miserável enigma, que não resolvi nem desejo resolver..."

Venerando deteve-se um instante, e seu sorri- so inalteravel deu-me a impressão de rictus cada- verico.

Depois continuou a falar; mas o fraco sibilo maquinai de sua voz sossobrava no rumor lamen-

* toso da ventania, que fazia gemer as grandes ca- suarinas da vizinhança e zunia com fúria pelos in- tersticios do fôrro.

Essa noite achei-o muito menos agitado que por ocasião da minha primeira visita. Falava con- tinuamente, como de costume — mas, quer nos dis- cursos, quer nos gestos, revelava calma sinistra, um quê de compassado e profundo, que me enchia de vago pavor.

Pus-me a acompanhá-lo com os olhos, sem perceber-lhe as palavras. Ví-o passear longo tempo entre as filas dos livros, leve, branco, movendo os lábios sempre do mesmo modo, reproduzindo com incrível uniformidade os mesmos movimentos.

Tomei uma tira de papel de sôbre a mesa e entrei a enrolá-la nervosamente nos dedos cris-

. pados. O vento, penetrando pelas frestas da janela

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OS MORTOS SAO MAIS FELIZES QUE OS VIVOS 139

sem vidraça, agitava a chama da lâmpada, oca- sionando intermitências de luz e treva, que faziam oscilar diante de mim a figura irrequieta do estra- nho velhinho.

Da outra extremidade da casa chegavam mur- múrios inquietantes, que por vezes se elevavam como um côro dolente, longínquo...

Certos momentos estabelecia-se um meio si- • lêncio — amainava o vento e cessavam os ruidos.

Então alteava-se cortante, cheia de lâminas afiadas, a voz de Venerárido:

"Não, não ha justiça nem bondade na vida... Não ha piedade... Ha mais de meio século que só vejo misérias e padecimentos... A natureza toda só nos dá o espetáculo de crueldades sem conta... Basta abrir os olhos para ver... Tudo são dores e agonias... Se quisessem provar-me que ha um sêr infinitamente bom e compassivo, . eu responderia que esse sêr desapareceu no pri- meiro segundo de sua existência — pois ser-lhe-ia impossível suportar a vista, embora instantânea, do padecimento universal... Se f ôsse eterno, im- perecivel, seria infinitamente impotente e infini-

^ tamente desgraçado, por ter que presenciar todas ^ as misérias da vida, sem poder extingui-las...

Justiça, bondade, verdade, beleza — tudo isso nunca passou de um sonho mentiroso. São pala- vras, abstrações completamente ignoradas da na- tureza e da vida... Mas a vida como é — cruél, horrível, repugnante — é um mal e uma dor... Não merece a pena de ser vivida... Aprovo o suicídio. E' o único ato de soberania que pode- mos realizar... Não o pratiquei por fraqueza in- confessável ... Ao demais, que muito abreviar uma vida quasi a extinguir-se por si mesma! Em moço acreditei na felicidade... Esperei durante

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muitos anos... Mas o tempo só serviu para me convencer da inutilidade e fealdade da vida... Se eu pudesse com um sopro destruir todo o univer- so, fá-lo-ia sem hesitar... Em todo caso, se não é possível apagar essa luz odiosa, é fácil fechar os olhos — é a mesma cousa..."

Está com a razão completamente transtorna-1

dal pensei com amargura. Venerando quedou um momento voltado para

uma fila de livros a olhá-los maquinalmente. Fóra chovia em torrentes e ventava de novo. Para impedir as oscilações da chama, eu ha-

via, a pouco e pouco, levantado uma trincheira de volumes ao redor da lamparina, de sorte que o vulto branco do ancião ficava meio sumido na

.. sombra. De dentro chegava-me aos ouvidos um vozear

aflito, e parecia-me ouvir ruido de passos por toda a casa.

Venerando continuava:

"Falam em Providência! E' muito mais ra- , zoavel crer que a vida é uma invenção cruél de potências misteriosas, que se comprazem em des- orientar e amargurar as suas criaturas... Não parece que a dor é a razão mesma da existência? Onde quer que haja um ente vivo, aí se acham os padecimentos, as torturas, os mais requintados su- plícios ... Se surge, aqui, ali, no meio dessa ago- nia universal, um sorriso de felicidade e de amor, imediatamente acorrem a suprimi-lo todas as for- ças ocultas da natureza, como se no fundo de seu mistério estivessem a espreitar os gestos de ale- gria que por vezes tentam fazer os pequeninos

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seres feitos para a dor... Os raros prazeres que nos são dados, parecem mais armadilhas secretas preparadas de proposito para nos prenderem no círculo doloroso da vida..."

Neste ponto assomou á porta do quarto a mulher de Venerando.

Cumprimentou-me, com o seu ar tímido de criança, e dirigiu-se ao marido — a filha estava 1

- agitada, febril, com redobrados acéssos de tosse... A coitadinha perguntara por êle, queria vê-lo...

Levantei-me para sair, compreendendo que seria imprudência demorar-me em tal conjuntura. Ela, porém, interveiu:

— Não sáia com esse tempo... Espere passar a chuva...

Venerando havia desaparecido como uma ' sombra.

Perguntei então por Clara. A velhinha apro- ximou-se e disse, com a voz trêmula e intercortada:

—> Não vai bem, não. Está tão fraquinha, que quasi não tem fôrça para tossir... Mas eu

r* não perco a esperança... Para Deus nada é im- ^ possível... Deus ha de ter pena de nós... Quan-

do ela se levantar, havemos de ter muito cui- dado ... •

E pôs-se a contar o que tencionava fazer, de- pois que a filha melhorasse — os passeios que a obrigaria a dar todos os dias pela manhã, a ali- mentação que lhe convinha no estado de debili- dade em que se achava, e outras cousas dêsse genero.

Daí a instantes, Venerando reaparecia, dizen- do que a menina se acalmara e adormecêra.

A mulher esgueirou-se cabisbaixa, silenciosa.

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Ele meio imerso na sombra, para o lado da janela, havia retomado o seu passeio maquinai.

"E' feliz esta minha filha, dizia — morre justamente quando ia começar a compreender..."

Depois, mostrando com um gesto a biblioteca, continuou:

"Vê estes livros? Ha aqui inúmeros volumes de metafísica. Lí-os todos... Sabe que concluí de toda essa leitura? Foi como se houvesse folheado um livro em branco. O problema da imortalidade da alma foi um dos que mais me preocuparam... Durante muitos anos acalentei a aspiração de uma outra vida melhor, de uma vida em que fossem reparadas as terríveis injustiças desta. Mas de- pois fui perdendo esse entusiasmo. Uma cousa horrorosa, em que poucos pensam, começou a aterrar-me, como a perspectiva do inferno, aos crentes... E' que as dores desta vida poderiam continuar na outra... Quem nos assegura que os males deste mundo não se perpetuariam e até n&o se agravariam na existência de além-tumulo, se a houvesse? Não... Já alimentei êsse sonho de imor- talidade. Ninguém mais do que eu, parece, devia ., desejar uma reparação... Hoje, porém, agrada- me mais a idéia do descanso de todas as existên- cias. Morrer... acabar..."

Venerando parou.

Fez-se grande silêncio. Fóra o vento reco- meçou a soprar com fúria. Senti um calafrio per- correr-me da cabeça aos pés. Arregalei muito os olhos para o rosto do velho, que parecia meditar, imóvel, no canto ensombrado.

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OS MOETOS SAO MAIS FELIZES QUE OS VIVOS 143

Mas antes que lhe distinguisse os traços, a janela abriu-se em explosão tempestuosa. Uma rajada de vento penetrou no quarto e apagou a luz, pondo-nos em face da profunda escuridão da noite...

Desferi um grito involuntário, cheio de pavor...

Mas Venerando já havia fechado fortemente as folhas da janela, e, reacendendo a lâmpada, confor- tava-me :

"Não se assuste... O vento me faz destas ás ve- zes... As janelas não fecham bem..."

Pus-me então a olhar para êle, com extranha in- quietação. Era a mesma fisionomia, o mesmo sorri- so que sempre lhe vira; mas estava todo salpicado de gotas brilhantes arremessadas pelo vento. To- mou de uma toalha que se achava aos pés do leito, e entrou a enxugar em silêncio a longa barba es- voaçante.

A' medida que o examinava, sua magreza pa- recia acentuar-se; as feições tornavam-se angulo- sas e de transparência singular, e o sorriso inva- riável lembrava o riso profundo de uma caveira.

A chama da lamparina crepitava ,indecisa, vacilante, como se tentasse desprender-se da hu- mida pevide.

De repente do fundo da casa rompeu tremen- do clamor, horroroso alarido... E quasi in-conti- nenti surgiu á porta uma figura desvairada, ca- belos eriçados, o rosto em esgares:

— Venerando, ela morreu! Não acorda mais! Ela está morta!

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144 AMOR IMORTAL

E a pobre velhinha caiu sem sentidos nos bra- ços de algumas mulheres que a acompanhavam.

Levantei-me aterrado e aproximei-me de Ve- nerando.

Não pude observar-lhe o aspecto; apenas ou- ví-lhe a voz, que me pareceu mais fraca e atenua- da, mas no mesmo timbre:

"Morreu-me nos braços a menina, quando ha pouco saí. Ocultei-o á mãe, dizendo que adormecê- ra... Desejava prolongar-lhe a esperança e evitar ao• senhor essa má impressão..."

Não ouvi mais. Precipitei-me para fóra e achei-me em minha casa, sem me lembrar como afrontara a tempestade, que continuava a rugir...

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OS SINOS MISTERIOSOS v

Procurava» a pura luz... e er- raste miseravelmente nas trévaa com tua sêde de verdade.

Ooethe.

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Ora isto se passou ha muitos séculos, em um país em que os magos haviam adquirido tal poder, que conseguiam alterar o curso das estações e transformar em noite profunda o mais claro dia... Lá ninguém sabia ao certo se o que viam os olhos e percebiam os demais sentidos, eram criações di- vinas ou inconsistentes fantasmas produzidos pela arte sobrenatural que a tudo envolvia numa como invisivel rede de sortilegios... Lá as leis da natu- reza eram constantemente perturbadas pela peri- gosa pronunciação de fórmulas magicas, e os mo- vimentos dos astros obedeciam aos singulares ca- prichos dos que se tinham assenhoreado das pala- vras secretas e onipotentes por cuja virtude se formaram todas as cousas... ^ Esta história dos sinos misteriosos vem rela- tada num velho livro, onde se narram os mais no- táveis prodigios então operados pela magia.

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OS SINOS MISTERIOSOS

XI

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Era um extranho festim o que, em seu soli- tário castelo, dava o velho rei.

Em torno de comprida mesa, que ia de um ao outro extremo da sala, inúmeros convivas, ale-

• gres e ruidosos, fartamente se banqueteavam. As paredes cheias de espelhos, refletiam, mul-

tiplieando-os, os gestos e meneios da risonha socie- dade.

Do alto do této pendiam, como pequeninas constelações baralhadas e incendiadas, riquíssimos candelabros de oiro e prata.

Trocavam-se galanteios e risadas. Elevavam- se taças repletas de vinho espumante, e em todo o circuito cintilavam deslumbrados os olhares dos comensais.

A um ângulo, sôbre grande estrado, cantores e músicos quedavam-se silenciosos, esperando que

alegria geral reclamasse o concurso de suas vozes e instrumentos.

Apesar da muita luz que havia no aposento, sentia-se que o resto do castelo estava mergulhado em trevas e que a noite, fóra, devia ser profunda e temerosa.

A espaços ouviam-se dobrar uns sinos, ao longe.

Eram badaladas agudas e tempestuosas, que mais pareciam gritos de alarme, brados coléricos e desesperados... Dir-se-ia provinham de alguma velha torre em minas, perdida no alto de um cer-

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ro, onde a açoitassem vendavais terríveis e miste- riosos.

Não obstante, era de ver o entusiasmo que acompanhava as numerosas libações. Homens e mulheres sorriam e bebiam, desassombrados e di- vinos, como se lhes fôram tais sons cousas amigas e familiares. Nenhum semblante se turbava, nem diminuía a alacridade festiva da reunião.

Súbita levantou-se uma dama jóven e formo- sa, olhos negros, humidos e rutilantes.

Sorria ,meneando a maravilhosa cabeça, qual branca divindade, que ali estivesse a desabrochar em esplendores de alegria.

Suas vestes eram de alvura deslumbrante e até as flores que lhe ornavam os cabelos escuros pareciam feitas de neve, pequeninos flocos ima- culados a fulgir sob o mágico ■ luar dos grandes lampadarios. O corpo delgado, as mãos quasi traoas- parentes, mãos gloriosas, que esplendiam á seme- lhança de estrelas... toda ela surgia fulgurando, como que envolta em orvalhada trama de raios doirados.

Era uma aparição ao mesmo tempo encanta- dora e singular.

Mal se levantou, fez-se profundo silêncio, e pararam no ar as taças transbordantes.

— Bela idéia tiveste, minha filha —r disse o velho rei, que do topo da mesa presidia ao ban- quete — Bela idéia tiveste, minha filha... Vais cantar uma de tuas canções, para recreares os nos- sos amigos, que vieram fazer-nos companhia neste solitário castelo...

— Levantei-me para sair, meu pai... repli- cou a moça em voz branda e cativante.

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OS SINOS MISTERIOSOS 153

— Sair, minha filha! Se nos deixasses agora, nossos amigos não te perdoariam... Não podemos dispensar a tua presença... Todos te queremos tanto, que nos levantaríamos da mesa, se te fos- ses. .. Teu velho pai seria o primeiro em mandar retirar as taças, apagar as luzes e forrar de luto esta sala.

B o ancião pôs-se a rir, acariciando com pra- zer a longa barba branca.

— Todos deitariamos luto, princesa... con- - firmaram inúmeras vozes entre risonhas e implo-

rativas — Cantai-nos uma de vossas canções. — Daqui a alguns momentos cantarei, meu

pai... Cantarei e revelar-vos-ei em seguida uma descoberta que fiz, uma maravilhosa descoberta...

— Uma descoberta... Sempre has de ser ex- traordinaria. .. Estou certo que nos preparas uma linda surpresa.

Elevaram-se de repente os sons dos instru- mentos ... Elevaram-se como legiões de sêres mis- teriosos que estivessem a chegar de abismos sub-

kterrâneos... Espalharam-se pela sala, quais vozes nnprecatorias destinadas a apertar em círculo má- gico as almas surpresas dos descuidosos convivas. Cada nota que vibrava ou soluçava no ambiente cheio de luz, vinha carregada de sentidos ocultos, de pressentimentos indefiniveis e dolorosos. Eram mil forças tenebrosas a lutarem entre si pela con- quista de um raio de ventura e de calma, de um clarão fugaz prestes aceso, prestes extinto, em es- curidão impenetrável, em cegueiras tontas e aluci- nadas... Eram esforços desesperados) cousas vagas e terríveis, cáos negro, imenso, tumultuoso, sulea- do aqui e ali de palidas résteas de luz, cheio de

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gritos por socorro e palavras baixas, cieiadas a medo... Bra a história nebulosa e agoniada de tudo o que se não pode exprimir e manifestar, de tudo o que geme incompreendido e profundo nas trevas da inconciência, de tudo o que se revolve, imerso em mistérios, dentro da noite que cobre e veste todas as almas... Dir-se-ia que todos os se- res, todas as larvas, todas as possibilidades de exis- tência se agrupavam, com terror, chorando e sus- pirando, nos desvãos ensombrados do extranho so- lar... E acima de toda essa orquestração plangen- te e assustadora, vibrava colérico e ininterrupto, perdido nos cêrros dos arredores, o dobre deses- perado dos sinos misteriosos...

Foram, porém, poucos instantes. Súbito cala- ram-se os instrumentos... Caiu na sala silêncio tão profundo, que todos acreditaram haviam ador- mecido e sonhado semelhantes agonias e terrores...

Ainda não se tinham recobrado do espanto, quando soou uma voz de criança, voz orvalhada e Pura, clara, inteligível, dulcíssima e no entanto longínqua e balbuciante, qual se viera de outro mundo... Subiu, cantando e soluçando, num êx- tasis anjélico... Era um hino límpido e maravi- lhoso, soluço branco e seráfico, através do qual se pressentiam mistérios inefáveis e infinitos — re- velação instantânea da alma universal, da magia suprema das cousas...

Era a princesa que cantava. Em sua voz toda rociada de maviosas lagri-

perpassavam serenas visões, meigas e tran- qüilas, perspectivas mansamente tristes, poentes

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OS SINOS MISTERIOSOS . 15õ

silenciosos e silenciosas madrugadas. Em seus lá- bios vermelhos, que vibravam sobre a alvura ce- gante de dois fios de pérolas, parecia nascer a mais encantadora manhã que ainda se viu, manhã de purpura, trêmula, suave, melifluamente doce...

Era a alvorada de tudo o que ha melodioso e terno e consolador no mundo...

A canção que lhe brotara da perfumada boca, ninguém a conhecia. Nunca fora ouvida balada tão misteriosa, história tão cheia de pranto e ao mesmo tempo tão pacífica e resignada. Narrava os sonhos encantados que povoaram aquelas solidões, a vida ensolada dos que se partiram, as esperanças e sor- risos que entre aquelas mesmas paredes brilharam fugazes momentos, para logo desaparecerem... Con- tava as paixões desvairadas que ali se desenrola- ram em deleitosos incêndios desde muito extintos; os beijos sonoros e róseos de imortalidade que se trocaram â sombra daqueles mesmos reposteiros; todas as ilusões de oiro que sulcaram aquele am- biente — esplêndidas cintilações, que aspiraram um instante a fixar-se por eternidades...

Os convivas imóveis escutavam como fasci- nados.

^ O velho rei, inclinada a cabeça encanecida, procurava ocultar as lagrimas que lhe rolavam até a longa barba. Revivia os tempos risonhos de sua mocidade, as glórias refulgentes que lhe aureo- laram a fronte dominadora, os triunfos e embria- gueses dos dias mais felizes de sua vida... A' semelhança do Eclesiastes, havia gozado todos os bens que se acharam ao alcance de suas mãos. Ne- nhuma cousa viram seus olhos, nem inventou sua imaginação, que se lhe recusasse. Fôra grande, po- deroso, irresistivel...

Mas veiu um dia em que sucessivos desbara-

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tes o obrigaram a encantoar-se naquele castelo so- litário, entre ásperas e intrataveis montanhas.

Apesar da mudança de fortuna ,teria podido julgar-se feliz, pois guardara dos passados esplen- dores, riquezas que lhe permitiam magnificentes ócios e folguedos, e numerosos cortesãos, a quem atraía a tão inhóspitas paragens com o estrondo de seus banquetes incessantes e suntuosos.

Havia, porém, nos arredores, ninguém soube nunca em que lugar preciso, uma cousa importu- na e terrivel, que de comêço lhe causara grande estranheza e acabara por se lhe converter em ver- dadeira obsessão. Era o dobre sinistro de sinos in- visíveis, dobre misterioso e insistente, que paira- va como uma ameaça por sôbre as ameias e tor- reões da velha habitação senhorial.

Não houve meio de que se não valesse o mo- narca para banir de seus dominios aqueles sons intoleráveis.

Prometêra inauditos prêmios e até a mão de sua filha a quem conseguisse descobrir, nas cer- canias, o extranho inimigo, que se comprazia em perturbar, por maneira tão insólita, a paz e a ale- gria de seus velhos dias.

Inúmeros cavaleiros se apresentaram para em- preenderem a extravagante pesquisa. Mal, porém, dobravam a encosta vizinha, desapareciam, e nunca mais voltavam.

Desanimado, o rei procurava afogar em lau- tos festins as apreensões que lhe despertava no espirito tão singular perseguição. A este fim, ro- deara-se de músicos e cantores; aumentara o cír- culo dos convivas habituais, e multiplicara espan- tosamente os enormes lampadarios, de modo a transformar em vivíssimos meios-dias as mais ne- gras e adiantadas horas da noite.

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OS SINOS MISTERIOSOS 137

Eram, porém, baldados todos os esforços. No meio dos mais alegres banquetes, á luz de rutilan- tes candelabros e em companhia de ruidosos co- mensais, quando esboçava o mais descuidoso e fran- co de seus sorrisos — êi-lo imóvel, aterrado, a ou- vir, bem contra a vontade, as misteriosas e impla- cáveis badaladas...

Acreditar-se-ia que um gênio cruél rondava cm tômo, pelos outeiros circunstantes, todo entre- gue ao extraordinário mister de lhe cortar de me- dos e agonias a festiva, estrepitosa existência.

Ao cabo de alguns anos afizera-se ao ritmo fú- nebre do inexplicável prodígio. Resignara-se, im- potente que era para o atalhar. Resolvêra dominar- se, afetar indiferença, impôr silêncio aos nervos sobressaltados, uma vez que o não podia impôr ao invisível campanario das montanhas... E ai de quem em sua presença cometia o desaso de fazer a mais ligeira alusão a semelhantes cousas. Entra- va o monarca em tais cóleras, que extremeciam apavorados os mais íntimos de seus privados e cortesãos.

Mau grado, porém, essa atitude, todos sentiam que o desassocêgo interior crescia, em surda revol-

ta, e que de um momento para outro explodiria mais tremendo que nunca...

Sucedêra que na véspera do festim que des- . crevemos, atravessara a ponte levadiça um velho

peregrino, completamente encanecido, de aspecto tranqüilo e abençoador.

A princesa, como se desde muito o esperasse, foi recebê-lo á portp do castelo. Saudaram-se si-

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lenciosamente e subiram juntos ao alto de uma torre... Ninguém soube o que falaram durante as largas horas que lá estiveram encerrados. O certo é que depois disso a formosa dama aparecê- ra como que iluminada de um esplendor desconhe- cido. ..

— E' com certeza um grande mago... diziam entre si os cortesãos, ao verem o misterioso foras- teiro

A princesa cantava infatigavelmente, arreba- tando os ouvintes a melodiosas regiões extra-terre- nas... Sua voz tinha acentos que surpreendiam, modulações inteiramente novas... Dir-se-ia que mil pássaros extranhos lhe gorgeavam dentro da boca, entoando saudades infindas de velhas florestas en- cantadas, num dulcíssimo concerto maravilhoso, num trêmulo concerto de flautas de ouro... Seu talhe flexivel e airoso elevava-se, qual branca mí- vem, entre os convivas, e á lüz colorida dos lampa- darios destacava-se refulgente, nívea aparição fasci- nadora, toda feita de puras, celestiais melodias...

Desatara-se-lhe no fervor do canto a ampla ca- beleira ... Desatara-se-lhe tumultuosamente, caindo em ondas negras ao longo das espáduas... Era de ver então o violento contraste de suas vestes bran- cas a menearem-se naquela como noite profunda e cintilante...

E os finos lábios, róseas pétalas incansaveis, vi- bravam sem cessar, como se outra ocupação não co- nheceram desde toda a eternidade...

Os grandes espelhos pareciam debruçar-se so- bre os assistentes, a modo de enormes olhos vítreos, impassíveis, para lhes contemplarem as curiosas ati- tudes, multiplicando-os e baralhando-os, em vivís-

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simas cintilações, que relampagueavam... A sala inteira representava vacilar silenciosamente, e a alegre e ruidosa sociedade lembrava um punhado de náufragos a celebrarem, em luxuosa embarcação prestes a sossobrar e perdida no meio do oceano, a derradeira festa fantástica...

E ás notas maviosas da extraordinária canção misturavam-se a espaços os apelos tempestuosos do invisível campanario, sumido ao longe, nos topes das montanhas...

O velho rei meditava tristemente no destino ex- travagante que o levara àquelas paragens. Que não daria ele para afastar de seus dominios o clamor doloroso e terrivel dos sinos fatídicos! Que não faria para se libertar de tão insuportável quão inau- dita perseguição! Oh! dizia entre si, que valem os tesouros que á custa de tantos sacrificios hei ajun- tado! Que valem a opulência de meus festins e a pompa de minha corte! De que serve todo este bri- lho, todo este esplendor, se não consigo espancar a

i noite que envolve o meu rico solar, a noite que pesa em torno de mim, cheia de pavores e gritos de alar- me! Não! E' necessário pôr côbro a tudo isto! Nem mais um momento sofrerei a tortura dêste misté- rio... Revolverei céus e terra, se tanto fôr preci- ^ so... Destruirei estas muralhas, mandarei abater as florestas vizinhas e percorrer, palmo a palmo, todos os arredores... Outeiros e montanhas, fragas e planos, tudo ha de ser examinado pelos meus ho- mens ... Eu mesmo irei acender fócos de luz nas pontas escarpadas, fócos enormes, que alumiem como sóis as imediações de minha habitação... Quero luz

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160 AMOR IMOETAL

por toda a parte... Quero ver tudo claro, tão claro como nunca sonharam ver olhos humanos... Então saberei emudecer para sempre os detestáveis sons que me perseguem!

Estava o rei perdido em tais cogitações, quando a princesa terminou o canto, no meio de largo sus- surro aprobatorio.

Ouviu-se nesse momento o badalar dos sinos, tão distintamente, que pareciam sacudidos por im- petuosa rajada que os trouxesse até ás altas janelas da sala.

Os convivas entreolharam-se espantados. O monarca não poude mais conter-se: — Quem de vós se anima a sair a esta hora?

perguntou em voz autoritaria. Todos quedaram-se silenciosos... — E' possível que entre tantos cavaleiros for-

tes e destemidos não se encontre um para ir ver o que se passa la fóra?! Escusais de levantar-vos, pá- vidas crianças que sois... Irei eu desencantar estes malditos sortilégios... Prestes, trazei-me um gran- de facho... Hei de incendiar essa falsa noite que - por infernal magia se extende em torno de meu castelo...

— Não saireis, senhor — atalhou um dos cor- tesãos, acercando-se do angustiado soberano. — Não saireis... Não podemos consentir que o façais... Seriamos desleais e traidores, se não nos opusésse- mos ... Sabeis, senhor, que estas regiões são cheias. de maleficios e que á noite os arredores são inteira- mente outros do que os que vemos á luz clara do meio dia... E' inexplicável esse fenômeno — mas vem desde tempos imemoriais, e jámais com êle se preocuparam os vossos antecessores... Tal houve,

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OS SINOS MISTERIOSOS 161

dentrè os mais opulentos, que afirmava achar com esse mistério sabor novo em seus festins e maior de- lícia nos gózos da vida... Esobre inútil, perigosa a sortida que intentais... Ao invés de barbacãs e levadiça, só veríeis fossos profundos e insidiosos; ao invés de verdes prados e amenas encostas, abis- mos vertiginosos, vertiginosos al gares, que diríeis atravessarem a terra de meio a meio... Deixemo- nos estar, senhor... Que importa a noite e os lú- gubres sinos que a povoam ? Não somos os primeiros nem seremos os últimos em ouvir lhes os dobres agoi- reiros a desencadearem-se na escuridão... Deixê- mo-los soar... Deixemo-los vibrar e tempestuar em torno de nossas moradas ou acima de nossas cabe- ças. .. Deixemo-los clamar embravecidos... Tanjam, bradem... Pouco importa o furor de sua voz... Soem terríficos, no seio da treva, ou a brandir no espaço como espadas trêmulas de cólera... Não lhes escutemos o estúpido alarido... Fechemo-nos em nossos palacios, acendamos os nossos lampadarios e sentemo-nos á mesa descuidosos e divinos... Que nos importa o clamor doloroso que, la fóra, anda a perder-se na escuridão da noite? Banqueteêmo-nos, senhor, que por si se irá amortecendo tão sinistra

ívtoada... Cerremos os ouvidos e façamos por sorri? \s mais alegres de nossos sorrisos... Não ha outro meio de nos furtarmos á misteriosa tortura que to- dos conhecemos... Ainda ha vinho em vossas ade- gas e ha nesta sala dilúvios de luz...

— E não é razão que padeça e se entristeça quem tem uma filha qual tendes, senhor... ajun- tou outra voz. Basta uma de suas canções para afas- tar completamente os mais negros pressentimentos...

, Todos os olhares se voltaram para a princesa, que sorria com tão ingênua e carinhosa expressão, que o velho rei não poude coibir-se de enviar-lhe o

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mais acolhedor e paternal sorriso que nunca um pai dirigiu a filha extremecida. Se eu te não amasse, minha filha, como te

amo asseguro-te que não padeceria tanto da negra obsessão que me persegue... Se não fôras a minha glória e o meu esplendor, não se me dava que o universo inteiro fôsse governado por gênios som- brios e cruéis, que me rodeassem magos terríveis e exércitos de fantasmas... Mas tu. minha filha... desejava*dar-te um paraiso para o habitares eterna- mente moça e eternamente feliz — e vejo-me força- do a encerrar-te num castelo tenebroso e sitiado de inexplicáveis terrores... Eis o que me atormen- ta e me faz desvairar...

— Tranqüilizai-vos, meu pai... Crêde que só falta para que me sinta perfeitamente feliz, ver-vos livre de vossas tristes preocupações... Oh! como desejo revelar-vos o que se passa lá fora, na madru- gada de oiro que se acende em torno de nossa mo- rada. ..

— Extranha linguagem é a tua, minha filha... Extranha e infantil... Houve nunca madrugadas neste lúgubre castelo ?! Mas fazes bem... E' me- lhor falar em madrugadas... Quem te ensinou mais , esta canção...

— Não é uma canção, meu pai... E' a desco- berta de que vos falei... E' a boa nova que tinha para vos dar... Aí tendes a vosso lado quem vos explicará o mistério dos sinos encantados que vi- bram em torno de nosso palacio...

■ E a princesa apontou para o ancião que havia chegado na véspera e era o xmico a sorrir tranqüilo no meio do espanto geral dos circunstantes... De- pois levantou-se furtivamente e, sem que, a vissem — pois todas as atenções se haviam concentrado no

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OS SINOS MISTERIOSOS 163

singular forasteiro — foi-se afastando lentamente em direção á pesada porta de ferro que avultava negra no extremo da sala...

Só quebrava o silêncio a toada longínqua dos sinos misteriosos.

— Levantai-vos, ordenou o monarca ao enca- necido peregrino, levantai-vos e explicai, se o po- deis, o lúgubre prodígio que ensombra a minha mo- rada. .. Falai...

O velho alçou a fronte e de pé diante do rei, que o encarava entre angustiado e imperioso, disse em vop calma e abençoadora:

— Desejais que vos fale dos sinos que ouvís soar em torno de vosso castelo... Sabei, senhor, que tais sinos misteriosos não se manifestam sómente em vossos domínios... Os sinos que tanto detes- tais, tangem em volta de todas as moradas huma- nas ... Soam nos palacios dos reis, como nas caba- nas dos pobres... Soam no alto das montanhas como nos vales obscuros... Visitam as populosas cidades e as mais humildes aldeias... Povoam o céu e a terra e vibram em todos os planetas... Onde quer que haja vida e conciência — aí surgem em revoa- das, alvoroçados ou sombrios, doces ou lamentosos,

\amoraveis ou desesperadores... Porque os ha de todas as especies, e os sons que despedem não são os mesmos para todos... Uns ouvem-nos pesados e profundos... Outros, leves, sonoros e cantantes... Ha os sinos de bronze e as campainhas de oiro.... Ha os rebates noturnos e terrficos e os alegres re- piques matinais... Ha os dobres subterrâneos e si- nistros e as cadências deleitosas que percorrem o ami... Ha os cânticos festivais e os toques de re- colher, os lúgubres toques de recolher... Escolhei, senhor, os vossos sinos... Habituai-vos a escutá-los com amor — e êles se transformarão em apelos ce-

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lestiais... Afinai os vossos ouvidos — e eles só anunciarão manhãs gloriosas e alvoradas triunfais...

Neste ponto ouviram-se ranger os gonzos da porta... E leves passos apressados soaram pelos compridos e escuros corredores...

Horrível calafrio percorreu todos os convivas, cujos olhares aterrados se volveram para o fundo da sala...

As luzes agitavam-se violentamente, traçando nos grandes espelhos relâmpagos silenciosos e figu- ras extravagantes.

Sentía-se que o resto do castelo estava mergu- lhado em trevas e que a noite fóra devia ser pro- funda e temerosa... V

— Quem ousa armar, dentro de meu palr"io, tais cenas de terror 1 bradou o monarca enfurecido.

— A princesa saiu, senhor!... gemeram os cortesãos.

— Minha filha, ululou o rei, como se o houve- ram apunhalado. Onde está minha filhai! Para onde foií! Falai... Falai...

Era tão desvairada a expressão que acompa- nhara estas palavras, que os convivas imóveis pa- reciam tomados de súbito estupor.

Mais um instante — e o silêncio e o pavor que reinavam, tomar-se-iam mortais... Homens e mu- lheres estavam rígidos, como cadaveres...

O peregrino, porém, de pé, em face do rei, sor- ria imperturbavelmente, á luz dos grand«s lampa- darios, num radiante e misterioso deslumbramento...

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OS SINOS MISTERIOSOS 165

— Onde está minha filha f! repetiu tremenda a voz do monarca.

— Acalmai-vos, senhor — disse o forasteiro, oom o rosto iluminado de um êxtasis maravilhoso — A princesa saiu a respirar o ar dos campos... Foi ouvir de perto os sinos de oiro que la fora soam a alvorada...

— Que me falais em alvoradas! Está lá fóra, dizeis... Quero vê-la imediatamente... Não a dei- xeis sair... Quero vê-la... Corramos em seu encal- ço... Vamos, meus amigos... Levantai-vos... Mos- trai-ma imediatamente...

E como todos permanecessem petrificados, em seus lugares, bradou com extremo furor, precipitan- do-se para a frente:

— Abri as janelas... Escancarai todas as por- tas... Quero vê-la... Quero vê-la imediatamente...

As janelas abriram-se com estrondo... Dir-se- ia que o edifício tremera, abalado até os fundamen- tos... Penetrou na sala horrendo pé de vento, que apagou instantaneamente todas as luzes...

As trevas eram tão densas, quer dentro, quer fóra do castelo, que pareciam palpáveis...

Seguiu-se um pavoroso tumulto — passos pe- ados, portas sacudidas — embates secos como de ncontro a grades de ferro, gemidos e soluços per-

didos na profunda e crescente escuridão... Ao longe, no seio da noite, como se pairassem

no alto de um cêrro batido de misteriosos venda- vais, vibravam os sinos implacaveis, sinistros, terrí- veis, num rebate furioso de cólera e de dor... Vi- bravam, tangiam — desesperadamente...

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UMA PROFISSÃO DE F£

Flor azul, flor que nenhum ho- mem viu e que entretanto enehe o mundo inteiro...

Spielhagen.

Ha templos no céu: aí se pré- gu, aí se ensina, porque os anjos •se aperfeiçoam cada vez mais em inteligência e sabedoria...

SWKNDBNBOKG.

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Logo que me achei homem, livre e só, na pe- quenina área verde em que vivera, fui tomado de singular curiosidade. Perguntei-me um dia se o pedaço de firmamento que cobria o meu lar, era na verdade irmão de outros céus, que se extendem de cimo em cimo, horizontes a fóra... Perguntei- me intrigado se as árvores longínquas eram real- mente da mesma natureza silenciosa e enigmática das que me rodeavam, e se os homens de outras ra- ças tinham a mesma alma insondavel que eu sen- tia viver em mim... E essa interrogação extra- nha cresceu tanto, adquiriu tal intensidade, que fui obrigado a partir...

Atravessei uma madrugada a colina a cuja sombra passara os meus primeiros anos.

Yi o sol doirar outras árvores e outras altu- ras, admirei o esplendor de paragens com que nun-

^a sonhara, e contemplei rostos humanos de todos os matizes.

Largo tempo levei a percorrer a superfície da terra. Visitei as maiores aglomerações de ho- mens, e busquei também as grandes solidões... E estas — cousa singular — deixaram me por ve- zes na alma um murmúrio confuso, que nunca senti nas mais populosas cidades...

Mas das longas viagens que fiz, nenhuma re- cordação me ficou mais viva e extraordinaria, do

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170 AMOE IMORTAL

que a de uma tarde em que, atravessando aciden- tada região, coberta de florestas, perdi o caminho e internei-me por uma vereda tortuosa... Nao quero, porém, antecipar os acontecimentos.

Á visão que então tive, apoderou-se de tal sorte de minha alma, que chegou quasi a abolir de todo a memória dos fatos que a precederam. Guardei-a como única reminiscência importante de minhas peregrinações. Conservo-a presente, clara ■« luminosa, como se fôra de ha um instante apenas.

Viajava eu a cavalo, em direção a uma cidade onde contava pernoitar.

Já havia percorrido muitas léguas. Estava exhausto e picava com fúria o animal, para ver so chegava ao termo antes da noite.

Em torno de mim ostentava-se a mais bela ve- getação que ainda se imaginou. Eram árvores co- padas e floridas, de várias especies e tamanhos, semeadas ou agrupadas, de espaços a espaços, por moles pendores, que mais pareciam mantos acol- choados, esplêndidos mantos verdes... Soprava branda viração, e nos altos cumes afastados havia incêndios coloridos, nuvens que enrubesciam e des- coravam, caprichosas e irrequietas... O sol descia velado, dando muita luz, sem impedir contudo o doce frescor da atmosfera.

Apesar da fadiga, fui-me sentindo invadido de delicioso enleio, de um torpor que me embala- va, como se braços amorosos se extendessem no ar ambiente e me amparassem o corpo e a alma...

Pús-me a olhar com embevecimento para as frondes rendilhadas, que se recortavam no céu, joeirando uma poeira azul, salpicada de inúmeros

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UMA PB0FISSÂ.0 DE FE 171

pontos de oiro... Pús-me a olhar com transporte, dizendo entre mim:

— Como é doce a vida! Como é grande o pra- zer de respirar! Se fosse possível prolongar a mo- cidade, recuar indefinidamente a velhice e abolir a morte.

Nisto o animal estacou abruptamente e fitou as orelhas. Dir-se-ia que alguma cousa horrível lhe surgira á frente. Depois, de um ímpeto, fez uma reviravolta que quasi me lançou da sela, e, dei- xando o trilho, atirou-se a galopar pela campina fóra...

Em breves instantes dobvou a curva de um • outeirinho proximo, e internou-se comigo num bos-

que profundo e ensombrado, matagal espesso, que oferecia extraordinaria semelhança com as flores- tas de minha terra natal.

Por mais que colhesse as rédeas, não consegui retê-lo. Meteu-se por estreitíssima vereda, que se rasgava confusamente entre árvores frondosas e colossais. Largou, mau grado os obstáculos, numa desfilada vertiginosa, durante a qual tive a im- pressão de subir e descer em várias direções, como

rv arrebatado por irresistivel pé de vento... 3 Vi uma nuvem doirada fugir-me ante os olhos

— e fui arremessado violentamente para o ar... Mas ao cair, ao invés do choque que esperava, pareceu-me rolar num despenhadeiro de paina...

Estive algum tempo imóvel, como para me certificar aos poucos de que ainda estava em vida.

— Foi o que lhe valeu... exclamou uma voz a breve distância. Se não fosse o ter caído nesses tufos de grama, machucava-se com certeza...

Olhei ao redor. Aproximava-se um grupo de homens e mulheres. >

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172 AMOR IMORTAL

Levantei-me um pouco espantado de me achar sem a mínima lesão.

— Escapei de morrer, disse sorrindo. — Ele fala em morrer com- um ar de quem

não tem fé... gaseiou uma voz feminina, voz dul- císsima, que tinha a melodia misteriosa dos peque- ninos regatos.

Ao ouvir tais palavras, arregalei os olhos e passei as mãos pelo rosto, para me assegurar de que não estava sonhando.

— Onde estou? perguntei surpreso... — Não se assuste... Não foi nada... E rodearam-me com visivel interêsse. Eram

todos moços e belos, de uma beleza primaveríl que me encheu de muda admiração.

Trajavam a modo de camponeses. As rapari- gas carregavam braçadas de flores, e riam muito, meneando as cabecinhas irrequietas.

Contemplei-os, encantado. Pascinavam-me... Havia nos olhares festivos que me lançavam, cin- tilações claras e entretanto misteriosas, brilhos al- voroçados e ao mesmo tempo singularmente pro- fundos, raios de oiro que parecia estarem chegando das mais remotas constelações...

— Vamos... disseram a uma voz. E' só do- ' brar a encosta e estamos na povoação...

Acompanhei-os silenciosamente, como se aca- basse de ouvir um chamamento celeste.

Era quasi sol posto quando atingimos o alto da colina.

Olhavam-me e sorriam, sem falar, e eu sentia a alma cheia de flores...

E'-me impossível explicar o que se passava... Dir-se-ia que em torno a mim tudo se espirituali- zava. .. A terra, as árvores e o céu deitavam até o âmago de meu ser, e eu me projetava e incarnava

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UMA PBOKTSSAO DE PB 173

em todos os sêres... Era um fluxo e refluxo em que o pensamento e o universo se atavam e desata- vam num ritmo infinitamente doce e mavioso...

— Lá está a nossa povoação, disseram, apon- tando-me a planície.

— Maa são nuvens brancas entre a verdura! exclamei.

— Vamos descer... De mais perto verá me- lhor.

Descemos a encosta, e a aldeia se precisou... Inúmeras linhas mergulhavam claras e risonhas nos grandes massiços dos pomares. Algumas sur- giam dentre jardins incendiados de rosas, e outras velavam-se quasi por inteiro na densa ramaria.

Bem no meio do povoado destacava-se a igreja. A tôrre branca subia para o céu, afinando-se aos poucos até transformar-se numa agulha dé neve...

— Hoje temos festa... disse uma das moças. Vamos ouvir o sermão que vai fazer o nosso páro- co... Venha conosco.

Avançámos pela relva... Todos pareciam ab- sorvidos pelo silencioso pôr-de-sol.

— Olhe a tôrre... exclamou a voz semelhan- te á dos pequeninos regatos.

. Fiquei extático. Era um torso alvissimo, um indescritível torso feminino, imerso na gloria do crepúsculo e todo semeado de vivíssimos resplen- dores...

— Mas não era um templo que ali estava! disse surpreso.

— Pois é o templo, afirmaram»a uma moços e moças. Vamos ouvir o sermão... Venha conosco...

Pura embriagues dos olhos! Lá estava a tôrre como meneando-se no azul, refulgente á semelhança de uma grande nuvem abrasada...

A' medida que atravessámos as ruazinhas ata-

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petadas de relva, abriam-se afl portas dos jardins, e novos grupos jovens e risonhos se nos ajuntavam.

Maravilhava-me a atitude festival e ao mesmo tempo recolhida de todos os pares. Pareciam usar, entre si, de uma linguagem singular, que consistia em fitarem-se mudamente, como perdidos em quieta meditação.

Começava a cair a noite, quando chegámos ao templo.

Ao transpor o limiar, fui tomado de um des- lumbramento de que as palavras humanas não po- dem dar idéia.

Do této pendiam inúmeros candelabros de oiro luminoso e translúcido, em que se engastavam lâm- padas de todas as cores.

Imagine-se um incêndio de pedras preciosas — chamas verdes, azues e escarlates; topázios, safiras e esmeraldas... Imaginem-se diamantes acesos... todas as flores metamorfoseadas em estréias — e ter-se-á uma imagem talvez da visão que se me ofe- receu, ao penetrar no recinto do templo.

As paredes extremes e brancas refletiam, quais;- espelhos mágicos, o fulgor das luzes rutilantes.

Olhei estupefato, sem compreender como o pe- queno edifício apresentava, no interior, o aspeto de uma basílica fabulosa.

A nave estava repleta. Era um oceano de cabe- ças, que se elevavam atentas, envoltas em claridade...

Ao fundo, em pé, no alto de um estrado, estava um ancião — serena e doce figura, que parecia pai- rar, como um floco de neve, por sôbre a multidão fascinada!

Com grande surpresa, verifiquei que em todo

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TJMA PROFISSÃO DE PÉ 175

o templo não havia altar, nem imagem alguma alu- siva a qualquer culto que fôsse.

Lembrei-me de pedir explicações aos jovens que me acompanharam. Ví-os, porqm, tão recolhidos e estáticos, que não me animei a falar-lhes.

Então soou no amplo recinto a voz do pároco... A assembléia extremeceu... Extremeceu silencio- samente, qual sem número de fantasmas, que se criassem ali, na trama multicolor da luz...

— "Meus filhos e meus irmãos..." As vestes brancas do extranho sacerdote agita-

ram-se num gesto de abraço. Os candelabros de oiro rutilaram mais vivamente, e as frontes ergueram- se, como para receberem um grande beijo invisivel...

"Para que a vida vos seja o prazer, o trans- porte a que sois destinados; para que sintais toda a vossa divindade, é necessário que experimenteis a

' plenitude do êxtasis... Todas as vossas faculdades são instrumentos de Vida, instrumentos de prazer, de transporte, de entusiasmo... E' preciso que a Vida seja integral... E' preciso que todo o vosso

(\ ser se agite e extremeça, que vibrem todos os senti- dos e fulgurem todas as luzes..."

E a sua voz parecia prolongar-se num como ruido de franças agitadas pelo vento — parecia propagar-se pelo espaço a fóra e suspirar mil cou- sas vagas e maravilhosas... Depois subia á manei- ra de uma vaga que chegasse de muito longe — subia num crescendo vertiginoso, e espraiava-se, qual chuva de pérolas irisadas — espraiava-se sonora- mente á luz trêmula dos incontáveis lampadarios...

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176 AMOB IMORTAL

"Não í:a nada pequeno... Tudo é Vida... No princípio era Vida, e a Vida era Divindade... A Vida, porém, não teve origem, pois da Vida provêem todas as couaas... E a Vida era o Es- pirito. E o Espirito criou a materia e inventou a carne... E a carne foi a sua mais viva e colo- rida representação — a mais fremente e bela ma- nifestação da Alma Universal..."

Hoíive um momento de silêncio. Olhei ao re- dor, e pareceu-me que os seios femininos palpita- vam á luz, semelhantes a auroras de nácar. O am- biente saturou-se de capitoso perfume, e as múl- tiplas cintilaçõeõs derramaram os mais puros de seus raios...

"Não creiais, meus filhos e meus irmãos, que a materia tenha realidade independente da que ■ lhe concede o nosso espirito... Não blasfemeis da divindade de vosso corpo... Não blasfemeis da espiritualidade de vossa carne... Lembrai-vos que o sangue de vossas veias e os estos de vossos co- rações são feitos da substância inefável de vossas/ almas, da Alma Universal... Contrista imensamen-" mente ver que ha sêres tão fracos e afastados de si mesmos, que não conseguem levantar o véu de ■ Maia que oculta o esplendor das cousas... Fazem- se escravos de seus proprios artifícios, deitam-se com desalento á margem do espetáculo que insti- tuíram, choram, e desesperam de achar o segredo do mundo que criaram... Outros mais insofridos arremetem furiosamente com as aparências, cor- rem sôfregos empós das visões que seus proprios olhos projetam no espaço... Perseguem com exa-

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UMA PROFISSÃO DE FÊ 177

mes tenazes — o fantasma radiante das represen- taçqes divinas... Dão-noa o espetáculo extrava- gante de alucinados a fazer esforços inauditos para apalparem e decomporem os seus sonhos... Mas não está longe o dia em que todos sentirão o uni- verso vacilar e esva'ir-se como uma nuvem, deixan- do ver o segredo de sua natureza ideal. Então to- dos compreenderão que o fim da Vida é a contem- plação, o deslumbramento, o êxtasis... O universo inteiro é a eterna expressão do êxtasis divino... Tudo o que há, é obra do espírito — luz e sombra, beleza e treva — até a conciência, até o senti- mento de personalidade, até o puro sentimento da existência... Quando uma parcela da Alma Universal não aprova a sua obra, quando uma inteligência, do fundo de seu inconcebível arbí- trio — que escapa a todas as leis por ela mes- ma inventadas — renega o seu ato, lamenta o seu gesto criador, e renuncia a todo e qualquer espe- táculo possível, a toda e qualquer possibilidade de existência — então esse espirito, transposto o li- mite que êle mesmo impôs á sua criação: a morte, cairá na grande inconciência, no tranqüilo nirva- na por que suspirou... (•) Quando, porém, sabe

ín amar a Vida Conciente e dela formar a mais alta Concepção possível, a mais bela, radiosa e divina —

a mais agradavel, a que encerre a maior soma de alegria, de prazer, de êxtasis — então a morte não é mais do que uma correção ao quadro, um aper- feiçoamento das imagens, uma pincelada transfigu- radora, que vai iluminar a tela e coroar a obra...

(*) Muito apôs a publicação dessas pá^nas vim a des- cobrir nos livros csotericos alusões á possibilidade do ani- quilamento por meio do misterioso íogo aoônico (Shiva) na Oitava Esfera, cousa mencionada com terror pelos ini- ciados ...

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178 AMOR IMOETAL

Que digo! O aperfeiçoamento é indefinido, é eter- no... As grandes almas não recuam ante a verti- gem do infinito... As grandes almas são imortais..

A voz do prégador havia adquirido uma am- plitude assombrosa. Dir-se-ia um trovão a resolver- se em dulcíssimas sonoridades.

Os candelabros de oiro fulgiam intensamen- te, maravilhosamente, como se emanassem de sor- tilégios coloridos... A multidão suspensa e silen- ciosa fazia pensar em uma assembléia factícia, criada pelas combinações caprichosas da luz.

"E' uma loucura imaginar que os paraisos são os mesmos para todos, què todas as unidades espirituais são iguais c terão igual destino... Cada um cria os seus paraisos, e cada existência não é mais do que um clarão no esplendor sem limites da Vida Ascendente... O poder de conceber, de imaginar, de crer e de esperar — eis a medida por que se talham os céus e donde emergem as su- premas realidades das aparências inefáveis... As parcelas da Vida sobem e descem num vertiginoso redemoinho da treva para a luz e da luz para a treva, segundo a força criadora de que são dota- das, segundo o maior ou menor prazer que as ar- rebata ... As imaginações incolores e fracas só criam espetáculos sombrios e indecisos, só prepa- ram imortalidades deseseperadoras, monótonas e sem brilho... E' que dificilmente suportam o ful- gor da Conciência — raio de sol que atravessam num relâmpago, incapazes que são de pairarem

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UMA PROFISSÃO DE FE 179

indefinidamente nas claras regiões em que a Vida contempla e ama suas próprias evoluções... Dei- xemos os fracos esvairem-se aniquilados ante a Sublime Claridade... Deixêmo-los irem-se ofusca- dos para a dor ou para o nirvana... Nós, meus fi- lhos e meus irmãos, pronunciemos a grande afir- mação nupcial... Amemos a Vida, a Vida Con- ciênte e luminosa... Amêmo-la sem desfalecimen- tos em todos os avatares que criarmos... Cada existência seja para nós um esplendor preparató- rio, anunciador de outro esplendor sempre maior... Lembrai-vos que o que chamamos hoje realidade — céu e terra, luzes e cores, amor e êxtasis — é o espetáculo que preparámos e sonhámos no fundo de nossa existência passada... (*) Lembrai-vos que as aspirações de agora serão a realidade dft ama- nhã, que os pressentimentos indivisíveis que nos despertam para a beleza, são os reflexos misterio- sos do mundo superior que se cria dentro em nós e que de um momento para outro desabrochará em uma nova existência... Quanto mais bela e amada for a existência atual, quanto mais afirmada e radiosa e feliz — tanto mais esplendente será a de amanhã, pois cada existência que se acende no uni- verso é feita do melhor e do mais luminoso da fekistência passada — cada avatar que se desen- rola no infinito, é tramado no esplendor do avatar que o precedeu... O vosso paraiso de amanhã será

(*) A tooria aí exposta corresponde ao Karma dos Hindús: "Nossos desejos, pensamentos e ações forjam os nossos destinos futuros, da mesma sorte que nossas vidas atuais são o resultado rigoroso de nossos desejos, de nossos atos passados. O mal gera a dor, e o bem, a alegria, fato verificável e capital que indica que a justiça governa o mundo, mau grado as aparências contrárias." (Tbabteux, Ocultismo.)

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o que mais belo e divino houver em vosso ser... Para as almas nobres a morte é sempre uma trans- figuração celestial... Quereis ser imortais ? Ima- ginai-vos imortais, e o sereis. Quereis a felicidade e a beleza? Imaginai-vos belos e felizes. Quereis a Vida Eterna? Imaginai-vos eternos — A reali-. dade é obra do pensamento e do desejo..

Ao pronunciar êle tais palavras, todas as ca- beças apareceram rodeadas de halos fulgurantes. Despediam raios tão vivos, que me perguntei es- pantado se as luminárias do této não teriam bai- xado instantaneamente...

"Não acrediteis, meus filhos e meus irmãos, que a Vida esconda ciosamente o seu segredo... Não humilheis vossa inteligência até declará-la es- crava das aparências... Se ha enigma, é que nós mesmos o instituímos para dar interesse ao espe- táculo em que nos desdobramos. Quereis resolver o Enigma? Não se trata de resolvê-lo. Trata-se de suprimí-lo, como artificio de que não temos neces- sidade nas regiões mais altas de nossa inteligên- cia. Basta que o conservemos como um aparelho maravilhoso, tão maravilhoso, que, ainda quandf ^ o dominamos das culminâncias de nossa razão, sen- timos a sua irresistível magia. Que havemos de re- solver? Se o proprio desejo de solução é livre cria- ção nossa! Se o porquê, o donde, o como, o espaço, o tempo e o infinito — fomos nós, a Alma Univer- sal — que os inventámos, para nos intrigarmos a nós mesmos!... Ah! meus filhos e meus irmãos, tenhamos a fôrça de nos sentirmos deuses!"

Era tão grande o fulgor, que eu não distin- guia mais as cintilações de cima das de baixo. Pa- recia que um formoso arco-íris, de que todos os ou-

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UMA PROFISSÃO DE FB 181

tros são tíbias imagens, se enrolara de repente no recinto do templo...

Então assaltou-me um desejo extranho de so- luçar, de bradar á face do céu uma interrogação dilacerante, que eu sentia morder-me o peito como uma víbora:

"E a Dor! Como suprimir a Dorl"

Não sei se a exprimi. Lêmbro-me que tinha os lábios trêmulos e convulsos...

"Quando padecerdes, meus filhos e meus ir- mãos, lembrai-vos que a Dor é Vida pelo mesmo título que o prazer... Lembrai-vos que o prazer só é possível como contraste — e a vossa Dor se transmutará em prazer... Se ao peso de vossa Dor opuserdes o peso de vossa beleza — a Dor resolver-se-á em Prazer..." (•)

Ao fulgor irisado que enchia o templo, suce- deu uma claridade lunar...

Todas as lâmpadas brilhavam uniformemente brancas.

Distingui os jóvens que me haviam acompa- nhado. Ví-lhes o sorriso extático, e reparei que e^da um tinha nas mãos uma enorme flor azul — singular miniatura do firmamento... Maior, po- rém, foi o meu assombro — quando me achei de posse de uma dessas extranhas flores, sem com- preender por que mistério viera até mim...

(*) A metafísica baseada; no puro estétismo cara a Jules de Gaultier (Les Baísons de L'IdSalisme) só satisfaz o espírito se se identificar a beleza com a bondade, ou, melhor, com a Justiça, que, na linda frase de Shelley, é. a hut do amor.

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Uni então a minha voz a todas as> outras, que, a um aceno do pároco, se haviam elevado em côro:

"Confessamos que só existe e só pode existir o Espirito Universal, de que somos pequeninas parcelas. Confessamos que todas as cousas, desde a maravilhosa flor que temos entre as mãos até os • ' mais remotos sistemas estelares, não passam de re- presentações do Espirito, representações tão per- feitas que instintivamente somos levados a atri- buir-lhes realidade independente do Espirito, rea- lidade e verdade que só existem como condições necessarias do poderoso espetáculo que Alma Uni- versal se dá a si mesma. Embora a força das apa- rências seja tal, que neste momento mesmo nos sin- tamos absorvidos fcor sua invencível fascinação, julgâmo-las e protestamos julgá-las sempre puras criações do Pensamento, única realidade absoluta, única verdade imediata e incontestável, princípio e fim, causa e essência da Vida, que amamos e de- sejamos prolongar indefinidamente, tornando-a cada vez mais bela e deslumbrante. Confessamos que a morte só existe para as parcelas espirituais desejosas de entrarem na grande Inconciência, de que inutilmente se desprenderam. Prometemos ter der sem cessar para as regiões mais claras e luminosas do Ser Inefável que abranje todas as possibilidades- de existência, todos os pensamen- tos concientes e inconcientes. Prometemos formar da Vida e do Universo a concepção mais bela e harmoniosa possível... Prometemos criar a maior soma de beleza de que nos sentirmos capazes, nesta existência e em todos os degraus sem fim da Di- vina Ascensão para a Luz e para o Esplendor."

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UMA PROFISSÃO DE FE 1S3

Ao soarem as últimas palavras da profissão de fé, o templo transformou-se...

As paredes, de brancas que eram, adquiriram de repente tons singulares de um verde translú- cido, e cindiram-se em linhas tortuosas...

O této tomou-se escuro. Os candelabros er- gueram-se lento e lento, as lâmpadas subiram a

t pouco e pouco para o céu, e o semearam de pontos brilliantes...

As colunas lançaram ramificações espessas, v como imimeros braços verdes de todas as dimen-

sões ... E a multidão perdeu-se confusamente na frondosa ramaria...

Olhei para o alto do estrado onde estava o prègador, e não vi úiais que uma núvenzinha muito afastada, perdida na fimbria extrema do horizonte.

Quis apertar nas mãos a extranha flor azul, mas só senti o contacto de meus dedos gelados.

Cobrei então conciência de meu estado. Acha- va-me de bruços á orla de um pequenino regato, a fitar alucinadamente a múrmura corrente, onde se refletia pelos interstícios da folhagem a trêmu- la claridade do céu constelado e puro...

Levantei-me de um ímpeto, e dei alguns pas- sos vacilantes, sentindo por todo o corpo dores atrozes. Extendi os braços com desespero, e pus- me a soluçar infantilmente... Depois saí por en-

^ tre os massiços, á procura de uma habitação onde passar a noite... Sfas só encontrei por toda a parte as grandes árvores silenciosas e pesadas de flores — e lá nas profundezas do espaço, a poeira reful- gente das estrelas longínquas e impassíveis...

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DEUSES MORREM?!

O' céu acima de mim, céu claro, céu profundo, abismo de luz! Em te contemplando, estremeço de de- sejos divinos.

Odeio as núvens que passam, êsses gatos selvagens que andam de rôjo: roubam-nos a ambos o que temos em comum — a imen- sa e infinita afirmação das cou- sas.

Eu te abençôo e afirmo sem- pre, contanto que estejas em lôr- no de mim, côu claro, abismo de luz!

Para êsse efeito lutei durante muito tempo — fui um lutador a fim de um dia ter as mãos li- vres para abençoar.

Assim falou Zaratustra.

Justamente as cousas maravi- lhosas é que são verdadeiras!

, Elsa Barker.

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MORRERAM JOVENS

Os mortais superiores aos outros por sua virtude deveram á bene- volência dos deuses o favor de so- frer jovens a lei do destino: já o disse e o repetirei, depois de ren- der homenagem a esta bela pala- vra de Menandro: "Os deuses fa- zem morrer jovens aqueles que são por êles amados." (Plütarco, Con: olação a Apolonio.)

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Era um povoado pequenino e sossegado. A verdura que o envolvia, chegava quasi a sumí-lo no meio dos grandes massiços. Flexuosas colinas o rodeavam, cortadas de regatos e matizadas de flores, entremeios de veludo na vasta e esplên- dida bordadura das florestas silenciosas. Até as ruas e praças, vestiam-nas altos tapetes de grama e a hera trepava pelas portas e janelas, em extra- nhissimo açambarcamento que nenhuns obstáculos parecia encontrar.

O viajante que acertava de atravessar tais pa- ragens, passada a primeira impressão de curiosi- dade e assombro, deixava-se aos poucos dominar pela misteriosa fascinação daquela vida exuberan-

te; quedava-se enleiado, a contemplar o como a luz "Açintilava através da folhagem e o céu se coava e

ondulava no voluptuoso extremecer da ramaria. Quedava-se absorto, perdido em flutuações de so- nho, sentindo irem-se-lhe os olhos, ao acaso, no ba- ralhamento luminoso e brando de cousas assim amoraveis e encantadoras. Não se surpreendera então, se visse surgir á sua frente homens e mu- lheres viçosos como os arvoredos, envoltos de azul, aos casais, a sonhar e a sorrir de formosos e feli- zes, dentro da luz suavíssima que, naqueles sítios, a tudo banhava e como que aureolava de maravi- lhosos esplendores. Não se surpreendera; antes,

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imaginara estar vendo os naturais habitantes de tão encantadas regiões.

Tal, porém, não se dava. Homens e mulheres que lá se podiam ver, nada diferiam dos demais aldeões. Empregavam o tempo em pequeninos tra- balhos, que passavam despercebidos no seio de tão opulenta natureza. Ás tardes reuniam-se, em gru- pos, aqui, ali, á frente das casinhas. Pairavam, riam, contendiam uns com os outros. Certos dias festivos, punham as melhores vestes, e iam, aos bandos, assistir ás cerimônias religiosas que se ce- lebravam no velho templo quasi em ruinas. Eram simples e rudes como todos os campônios.

Para as bandas do poente extendia-se um como quintalinho, extremado e só, na lombada do outei- ro. Concentrava-se ali, entre quatro muros tisna- dos do tempo, a mais luxuriante vegetação que nos

, arredores se pudesse encontrar, nem admirar. Pa- recia ser a um tempo pomar e jardim, tão variados e floridos eram os arvoredos, nesse ponto. Não fo- ram as cruzes que se deixavam entrever meio afo- gadas na folhagem, e não acudiria nenhuma idéia fúnebre a quem o visse de longe. O cemiterio, como tudo o mais, nesses formosos sitios, só des- pertava pensamentos de vida, deliciosas imagenr» de amor e felicidade... Aquele ondular das rama- das, batidas do vento, aquele trinar festivo dos pássaros, á luz de um céu tão próximo e tão doce, aquele como baloiçarem-se as cousas no azul e es- tarem quasi não quasi tocando o infinito — tudo convidava ás exaltações do amor e da vida.

A' orla de uma das mais belas colinas circun- jacentes, em lado oposto á povoação, elevava-se en- tre grossas árvores seculares vetusto casarão de as- peto singular. A constructura forte e agigantada, a vastidão dos aposentos, os artesões do této, os la-

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MOBRERAM JOVENS 191

vores das cimalhas, como o elegante torneio das escadas, as varandas, os balaustres, o miradoiro — tudo revelava bem os vestígios que de sua pas- sagem ali haviam deixado imaginações capricho- sas e requintadas.

Era fama entre os camponeses que o havia habitado um jóven casal, dois sêres estranhos so- bre os quais corriam as lendas mais desencontra- das e extravagantes.

Êle chamara-se Henrique; ela, Tereza. Raro apareciam no povoado, e quando o faziam, era para atravessá-lo como que de esfusiada, ligeiros, abstratos, longínquos a despeito de tudo... Passa- vam a modo de visões, rumo das florestas circun- vizinhas. De quando em quando eram vistos sur- gir e sumirem-se como por encanto na coroa dos outeiros mais afastados. E contavam deles as his- tórias mais inverosímeis e fantasticas. Eram contu- do unânimes em atribuir-lhes, a ambos, beleza ex- traordinaria, e tal poder de fascinação, que, ao pas- sarem, arrastavam após si todos os olhares, o quer que era de esplendorosamente divino ou diabólico que subjugava os ânimos, movendo-os a admiração misturada de terror.

1 Havia, porém, um aldeão que conhecia melhor que os demais toda a história dos dois jóvens. Servíra-os como criado e até o fim lhes fizera com- panhia. Essa história simples e impressionante, contava-a êle com evidentes sinais de amor e dedi- cação aos singulares personagens com os quais con- vivera. Ei-la reconstituída de acordo, não só com o que lembrava ao bom do velho, sinão também com uns velhos manuscritos que me vieram ás mãos, como mais ao diante explicarei. *

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Henrique e Teresa, como andassem a passear por montes e vales o grande fulgor de sua encanta- da mocidade, acertaram de penetrar certo dia nas intricadas verêdas das florestas vizinhas ao po- voado. E tão encantados ficaram com a beleza da- quelas paragens, que lá se deixaram ficar, com grande.jassombro de toda a aldeia.

— Eram duas crianças... dizia com amorosa complacência o velho camponês, a cada episódio da vida singular de seus amos...

Lá compraram largos trátos de terra. Dentro de poucos dias inúmeros opfcrarips trabalhavam ativamente na construção do extranho palacio. Co- lunas nunca vistas elevaram-se á porfia, no meio das árvores colossais. Altos muros extenderam á sombra das ramagens seus lanços de pedra. Surgi- ram escadas de mármore; semearam-se aqui, ali, no vasto parque, grandes tufos de verdura; arre- dondaram-se alvíssimos tanques, donde repuxavam lindos esguichos, finos lamentos transparentes a frechar o espaço em deleitosa e adormentadora ca- , dência... Disséreis caprichos de fadas que se hou- ' vessem deliberado a erguer no meio de tão majes- toso verdejar da terra a sua morada de eleição.

Acabada a obra, dados os últimos retoques, Henrique e Tereza entraram para o fantástico solar.

Fôram-se os operários, aquietou-se a gente da aldeia... E um grande silêncio se fez em tôrno dos dois singulares jovens. -.

f ' No interior do edifício era de ver a exquisita

e luxuosa decoração que dava a cada apartamento

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.

MOEEEEAM JOVENS 103

feição particular. Espessos reposteiros vedavam que a luz do dia entrasse demasiado viva — joeira- vam-na, e, por assim dizer, espiritualizavam-na, fa- zendo reinar lá dentro o quer que fosse da atmos- fera religiosa das catedrais. Macios e ricos tapetes cobriam o pavimento, por toda a parte, de sorte que nunca se ouviam rumores de passos na vastidão meditativa das salas.

Havia, porém, um espaçoso salão que contras- tava com os demais pelo risonho e leve de seu as- peto. Era guarnecido de finos estofos que mais pareciam pequeninas nesgas do claro firmamento. Tenuissimas cortinas baloiçavam-se ás janelas, re- gistrando os mais imperceptíveis estremecimentos da brisa. Dir-se-ia um constante semear pelo apo- sento de beijos orvalhados, róseos, trêmulos de toda a felicidade das manhãs naqueles formosos sitios. Essa parte da casa era a mais freqüentada por eles, que aí passavam horas e horas em deliciosos colo- quios... ,

Assim viviam, de corpo e alma entregues ao íncomparavel deslumbramento de se amarem cada vez mais, de vingarem enlaçados as mais altas cul-

Nminâncias a que é dado atingir a conciência da vida... Amavam-se em todas as cousas — pois tudo se aureolava do seu esplendor, tudo entrava sorrin- do para dentro de seu sonho, tudo palpitava e vi- brava de infinitos mistérios em tôrno de seus pas-

' sos... Se jámais houve na terra seres que mere- cessem habitá-la, sêres que lhe adivinhassem o sentido e a soubessem aformosear e divinizar, certo Henrique e Tereza foram dos mais nobres e feli- zes que se podem imaginar. #

Viviam profunda e harmoniosamente... Vi-

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194 AMOR IMORTAL

viam — amavam-se, que entre amor e vida nenhu- ma diferença existe...

Quando um dia Teresa, que enfermára havia meses, se partiu desta vida, mau grado os desespe- rados esforços feitos para salva-la. Foi por uma tarde clara e suave, a tempo que no campanario da aldeia cantavam ângelus enternecidamente azues, e o sol se punha num como brando incêndio de florçs... Expirou tão quieta e silenciosa, que vê-la morta devia de causar indescritível espanto... Morreu, sem que se agitasse uma pena nem emude- cesse um trinado na copa das árvores... Morreu e foi enterrada no pequenino cemiterio da encosta.

Foram-se embora os parentes que tinham acorrido a assistir-lhe os derradeiros momentos. A mãe de Henrique demorou-se mais, com o fim de o levar consigo. Baldaram-se, porém, todos os esfor- ços para o tirar dali.

Henrique, afinal, ficou só. Como eu pedisse uma vez ao velho criado me

contasse fiélmente o que dissera e fizera Henrique logo após a morte da esposa, disse-me ele, em voz travada:

— Foi uma noite horrorosa! Havia muitos dias, í que minha ama estava agonizante, sem sentidos.. .l

Meu senhor nunca acreditou que fôsse caso de morte...

— Mas onde estava êle, no momento da ago- nia? — perguntei.

— Sentado á beira do leito... Quando viu que minha ama não se mexia mais, deitou-a de lado, com muito cuidado... ajeitou-lhe a cabeça na almofada, agasalhon-a bem, como se receasse que'ela sentisse frio, e saiu do quarto sem falar com pessoa alguma...

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* "f

MOBRERAM JOVENS

A mãe dele, pobre velhinha, que havia chegado não sei de que terra muito distante, procurou conso- la-lo e leva-lo comsigo. Mas meu senhor não quis que lhe falassem nisso... Começou a andar pela casa muito calado e de cabeça baixa... Depois foi sentar-se a uma janela do outro lado da casa, e lá ficou sozinho até tarde... Forrámos de luto uma sala... Minha ama foi depositada num es- trado, ao centro... Os parentes e criados chora- vam. .. Até hoje sinto um aperto no coração, só de pensar nisso... Ali pela volta da meia noite, meu senhor apareceu ao pé da porta que dá para o salão onde estava a falecida...«Ah! nunca me hei de esque- cer do que ví essa noite... Êle queria entrar a toda a força... Mas os parentes entenderam que o não de- viam permitir... Meu amo falou cousas extravagan- tes, debateu-se, deu risadas... Vendo então que era impossível detê-lo, afastaram-se todos... E êíe en- trou ... Caminhou de mansinho para o estrado em que estava depositada a uma. Esteve não sei quanto tempo a considerar pasmado a companheira mor- ta. .. Depois ajoelhou-se, e dizem que passou o resto da noite a beijar-lhe o rosto e as mãos... Quàndo pela manhã, chegou o cortejo que a ia enterrar, foi preciso arrancá-la de seus braços...

^jÊle, porém, não relutou tanto quanto era de es- perar... Estava como espantado de a ver sair fechada num caixão... E assim ficou de olhos parados, longo tempo — até que lhe deu de cor- rer pela sala, nem que estivesse furioso... Corria e gritava que o podiam matar, mas que lhe dis- sessem antes onde a tinham escondido... Então

, todos os que haviam ficado em casa o rodeámos e segurámos...

Aqui o pobre velho não poude conter as la- grimas e pôs-se a dizer em voz estrangulada:

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196 AMOB IMORTAIj

— Eram duas crianças, meus amos... Eram duas crianças... E' o que eram... Duas crianças...

E apontava para a encosta fronteira, como se esperasse vê-los surgir dentre a verde folhagem entremeada, aqui, ali, de pequeninas cruzes de madeira...

Henrique poucos mêses sobreviveu ,a sua es- pôsa.

Os primeiros dias passou-os encerrado em um quarta Para que se resolvesse a tomar algum ali- mento, foi necessário que o criado ameaçasse não o deixar só, um momento siquer.

Ao cabo, porém, de certo tempo, entrou a dar longos passeios pelos arredores, visitando diversas vezes por dia o pequenino cemiterio onde fora se- pultada a companheira.

Uma tarde, Henrique ao voltar de uma des- sas excursões, mostrou-se subitamente transforma- do. Atravessou a aldeia saudando a todos os que encontrava. Chegou a casa animado e expansivo. Mandou chamar o jardineiro e recomendou-lhe que colhesse braçadas de flores e as levasse á câmara em que morrera a espôsa.

Os que o amavam, não o puderam ouvir sem chorar de compadecidos.

Desde então continuou a mostrar a mesma alegria sinistra.

A maior parte do tempo ficava encerrado no escritorio. Ouvia-se largas horas o ruido da pena a correr infatigavel sobre o papel.

Um dia Henrique chamou o velho criado ao seu quarto. Fê-lo assentar-se á beira do leito, don- de quasi não se levantava mais, e disse:

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MOBRERAM JOVENS 197

— Sabes que fui muito feliz, não o sabes? — Muito... balbuciou o campônio. — Pois crê, amigo, que nunca fui tão feliz

como agora... Até me sinto sem forças para ta- manha felicidade... Mas é um segredo... Não o posso revelar a ninguém... Quero que tragas a casa bem enfeitada... Muda as flores nas jarras... E' preciso que estejam sempre frescas e humidas... Todo dia, ao anoitecer, acende as luzes... Gosto das salas bem iluminadas... Acende também lu- zes no jardim... Não te esqueças de dispor todas as cousas, como se esperasses a cada momento a volta de tua ama... Vai, confio no teu zêlo...

Henrique reclinou a cabeça e dormiu tran- qüilamente a morte mais suave que ainda se viu.

Henrique ficou na mesma sepultura de Tere- za, ao ângulo dos muros, debaixo de frondosa ár- vore cuja ramada bracejava para fóra, como a sau- dar os campos, os outeiros e os cumes longínquos por onde tanta vez andaram juntos.

O velho criado, porém, não se ausentou. Quis permanecer sob o této amigo onde viveram as suas crianças, como lhes chamava, a Henrique e Tere-

Lá ainda está cheio de anos e de saudades. Como eu lhe perguntasse uma vez se não viera

a saber o que Henrique tanto escrevia pouco antes de morrer, levantou-se trêmulo de velhice e foi re- mexer num velho baú.

— São cousas de louco... disse, mostrando- me uns maços de papel. Ficaram esquecidos aí para um canto... Mas o meu menino já andava doente quando escreveu isto... Tenho uma filha que as- sim como assim lê um bocadinho... Foi quem me andou decifrando o que aqui está escrito... Puro

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198 AMOB IMORTAL

delírio, meu senhor... Eram duas crianças, meus amos... Duas crianças...

E pôs-se a enxugar os olhos, cambaleando.

Emprestou-me os papéis. Li-os com assombro. Depois copiei-os todos. Ei-los aí vão. O primeiro manuscrito data dos tempos em que Henrique e Tereza chegaram para a aldeia. E' a história inte- rior de suas almas e encerra a descrição de um dos passeios habituais que tanto impressionaram a imaginação simples dos campônios. Os outros qua- tro foram escritos nos últimos dias de vida. Re- presentam fases diversas de uma mesma dolorosa iniciação nos mistérios da morte e da ressurreição.

Para melhor os descriminar, dei a cada um deles um título, tirado dentre as próprias frases de Henrique.

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ONDE ACABA O SONHO E COMEÇA A

REALIDADE?

Aprouve ao Ser Supremo que a inserção do Céu no homem se faça assim...

SWENDENBOM.

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Tereza caminhava á minha frènte, correndo de um lado para outro, colhendo aqui uma flor, ali um lindo ramo de folhas recortadas, voltando-se a cada momento para me apontar uma árvore estra- nha, á distância, ou um pico indeciso a embeber-se no céu. Estava iluminada, risonha, feliz, no meio de toda aquela explosão de luz e de verdura...

Eu seguía-a encantado e pensava comigo meámo que minha amada parecia ser a alma da paisagem que nos rodeava. Esbelta e leve, surgia naquele delicioso quadro como a causa e a justifi- cação suprema do esplendor e da beleza do mun- do... Que seria o mundo sem ela? perguntava-me. E não conseguia compreender a natureza sem a sua doce imagem a coroar e a abençoar todas as cou- sas. Era-me impossível conceber a existência sem o seu sorriso, sem o seu amor. Irritava-me, como um

^absurdo, a idéia de que, longe de nós e de nossa wntura, pudesse haver luz e árvores e céus límpi- dos e azues... Tereza era a única razão de ser de tudo aquilo — florestas, campos, flores e monta- nhas. Tudo existia por ela e para ela. Sóis, núvens doiradas e tranqüilas sombras aprazíveis — tudo era ela. Acompanhava-a em cortejo maravilhoso — extendia-se e projetava-se diante de seus passos como um clarão de seus olhos, uma estrada real para seus pés, uma auréola para envolvê-la. Atrás de nós, á medida que ela se afastava e alongava, a tapeçaria enrolava-se e desaparecia no vácuo — o mundo

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202 AMOR IMOBTAli

fechava-se enigmático, sem sentido... O azul do céu e o verde das matas acabavam onde acabava o raio do seu olhar e de sua vida. Tudo pairava sus- penso sobre o nada como vagas de fogo que vol- vessem para ela e não existissem sinão para des- fraldar-lhe em torno os seus carinhos de oiro e de esmeralda. O universo inteiro não era mais do que uma tenda azul e verde para abrigar o amor de Tereza, uma tenda movediça e aérea, acesa no in- finito e na treva — para repouso e glória de mi- nha amada...

O sol caía a pino sobre nós. A folhagem das árvores que bordavam o caminho, não bastava a defender-nos do calor.

Entrámos então no mais espêsso do bosque. Era uma longa, interminável vereda tapetada de relva, ladeada de árvores enormes, que se enlaça- vam, bem alto, extendendo por sôbre nossas cabe- ças a trama luminosa de seus ramos. De todos os lados alteavam-se grossos troncos revestidos de mus- gos, e dansavam no ar punhados de lianas, caindo das copas em rolos extravagantes, em vastas redes dilaceradas. Havia pelo této emaranhado abertas irregulares, que lembravam incêndios multicolores, e adivinhavam-se, no fundo, pedaços de azul, nes gas longinquas por onde passavam ás vezes fu- cos de núvens refulgentes. Esvoaçavam diante de nós grandes borboletas, do tamanho de mãos espal- madas, e ao longe subia pelo espaço o estrídulo quente das cigarras, fazendo pensar em chocalhos brilhantes, em minúsculos sinos invisíveis a vibrar dentro da luz vermelha do meio dia.

Eu e Tereza caminhavamos em silêncio, respi- rando com delícia toda aquela vida exuberante e cariciosa...

— Já reparaste, Tereza, que as cigarras não

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ONDE ACABA O SONHO. 208

cantam todas no mesmo tom? Escuta... Ouve essa que parece estar mais perto... São gritos pu ge- midos de ensaio sacudidos com frenesi...

Púnhamos-nos a escutar... E o canto transforma-se de repente num

lindo furor, numa maravilhosa exasperação e mor- ria em delirante espasmo de oiro...

— Que beleza! exclamou ela, batendo as pal- mas com entusiasmo. Como é agradavel passar aqui estas horas de sol.

E parou toda incendiada e risonlia, propondo que nos sentássemos um pouco para descansar. Depois, ajeitando o vestido branco, recostou-se so- bre um macio tufo de grama, e, voltando-se para mim, disse:

— Estás tão silencioso! Andámos muito. O cansaço põe .a gente taciturna, não é ? Senta-te aqui perto.

Sentei-me sorrindo. Tereza, passando-me as finas mãos pelos ca-

belos molhados, observou: —Como te fatigaste! • — E Tereza? — Um pouquinho, volveu ela. Mas põe a ca-

. beça aqui... Descansa... Eu te arranjo uma al- ^piofada...

E rindo muito me puxou para si, fazepdo-me repousar a cabeça no seu regaço.

Cerrei os olhos doloridos, fustigados pela crua luz do meio dia. Deixei-me ficar instantes imóvel, ferido de um deslumbramento que me prostrava. Depois soabrí-os e contemplei com indizivel prazer o rosto iluminado de minha amada, seu sorriso colorido e a cúpula verde salpicada de uma poeira doirada... E tornei a fechá-los invadido de extra- nho torpor.

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204 AMOR IMORÍAL

Senti durante algum tempo a carícia de suas pequeninas mãos brancas e leves a moverem-se como sombras luminosas sôbre minhas pálpebras cerradas...

Nisto, porém, absorveu-me a atenção uma cousa impressionante e singular. Pareceu-me que a forte claridade do dia baixara instantaneamen- te, transformando-se num crepúsculo de sangue.

Extremeci, aterrado, e julguei levantar^me como num pesadêlo.

— Tereza 1 Que é feito de Tereza I exclamei aturdido.

Tereza havia desaparecido... As árvores e as folhas sêcas eram alumiadas por uma como agua vermelha, que chovia silenciosamente em torno de mim... Todas as cousas estavam trêmulas e deso- ladas. ..

Dei àlguns passos tonteando qual um ébrio. Devei as mãos aos cabelos empastados, e estes sai- ram-me entre os dedos, desprenderam-se aos pu- nhados, sem que eu sentisse mais do que um terror convulsivo. .

Pus-me a espreitar por entre os ramos sangue- jantes.

Ah! Lá está ela, meu Deus! .'l Atirei-me de um ímpeto ao monte de folhas

sêcas e entrei a desenterrar o corpo humido, bran- co e rígido da minha Tereza. A cabeça estava meio sepultada na relva amarelecida, e no seu lindo ros- to, pálido e inerte, passeavam formigas, até por entre os longos cílios cheios de terra...

Desferi um grito dilacerante e despertei num grande extremeção, todo horrorizado com o pesa- delo que tivera.

— Que tremor é esse? perguntou ela sorrin-

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ONDE ACABA O SONHO. SOS

do, com o seu semblante de criança muito anima- do e como que rodeado de auréola radiosa.

— Que pesadelo, Terezal Via-te extendida, hirta, coberta de folhas sêcas...

Tereza fitou-me enternecida e volveu com sorriso bruxoleante:

— Julgavas que eu fosse imortal? Olhei-a espantado, achando-lhe um ar pro-

fundo e doloroso. — Sabes que mais, Tereza? Vamo-nos daqui.

Estes bosques, estas árvores não me pressagiam nada de bom. Tudo aqui tem o quer que seja de misterioso e ameaçador que me faz mal aos ner- vos. Voltemos para nossa casa... Lá sim... Es- tamos no alto... Ha muita luz e sortilegios ama- veis... Quisemos — não foi assim, querida? — morar num país de encantamentos, no seio de uma natureza sujeita aos nossos caprichos, entre árvores que se dobrassem ao nosso aceno e flores que se abrissem para nos ver passar... Quisemos ser os criadores do nosso universo... Descobrimos no amor o segredo das palavras que criam, ilu- minam, transformam... Tudo isso quisemos e o realizámos no esplendor de nossa casa... Mas

fcaqui, nestas sombras, estamos á mercê de potên- cias malévolas... Vamo-nos daqui, Tereza... Vol- temos para nossa casa...

Extendí-lhe a mão, Ela levantou-se sorrin- do. .. E partimos...

Era no alto da montanha a nossa casa. Eu e minha amada escolhêramos de propo-

sito aquele sítio. Era uma vasta habitação assente no tôpo da

montanha. Rodeavam-na árvores copadas, árvo- res enormes, cheias de passaros...

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208 AMOR IMORTAL

Tereza nunca se mostrara tão contente, tão risonha e feliz como depois que para lá nos mu- dáramos. Lembrava, não sei bem porque, uma criancinha turbulenta que se achasse de posse de um brinquedo muito desejado, de um brinquedo singular e perigoso... Seus olhos adquiriram um fulgor estranho, que dantes não lhes conhecia. Cintilavam com a violência de relâmpagos, re- lâmpagos negros que sorrissem... Seu corpo del- gado era extremamente flexível, mas de uma fle- xibilidade de aço... E tremia ás vezes como a lâmina brilhante de uma espada...

— Vamos subir á torre? disse Tereza ao atra- vessarmos o limiar.

— Que idéia! Não te sentes fatigada? — Quero descansar lá em cima... Porque

evitas com tanto empenho as mais belas partes da nossa habitação?

— Não sei, Tereza... E' um pressentimento... — Leva-me... E oferecia-se palpitante, luminosa, toda ro-

sada de extranha exaltação... ; Tomei-a nos braços como si fora trêmula

criancinha, e subi por entre as sombras da con- tornada e longa escadaria. ,

Quando chegámos á torre, abraçámo-nos to- mados de vertigem.

— E' perigoso olhar para baixo, Tereza. Fi- quemos aqui no centro, para só vermos o céu, nada mais que o céu... Sentemo-nos aqui.

— Não, volveu minha amada. Porque não havemos de chegar ao peitoril?

E sorria muito córada, procurando soltar-se de meus braços.

— Tem cuidado, Tereza... Vamos descansar

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ONDE ACABA O SONHO... ' 207

um momento... E não olhes para fóra... Essa janela abre para uma baixura tal, que as maiores árvores, lá no fundo, parecem ter as dimensões de um punho... Depois — sopra aqui um vento glacial, um vento impetuoso... Olha como se agi- ta furiosamente a cortina...

Ela desatou num riso nervoso. — E' deslumbrante o que fizemos... Quem

no mundo acreditaria que houvesse dois entes como nós? disse e pôs-se a rir e a dansar diante de mim, sacudindo com volúpia a farta cabeleira escura.

— E' verdade, querida... A pesada lentidão das làgartas nunca ha de perdoar ás borboletas os seus gostos irrequietos e vivos. Lá em baixo — todos são lagartas... Vivem e morrem lagartas...

— E como morrem as borboletas? perguntou toda desfeita num grande riso de oiro.

— Eu creio que as borboletas não morrem... E' perigoso olhar para baixo, Tereza. Fiquemos aqui no centro, para só vermos o céu, o céu puro de núvens...

E abracei-a e beijei-a — enquanto através das transparentes, róseas cortinas se adivinhava o azul

k incendiado... ^ Tereza sorriu e pôs-se a dansar como embria-

gada. De repente parou e disse: — Que perigo ha em debruçar-se a gente

para ver?... Não é bem solida a casa? O para- peito não está firme?

Contemplei-a com transporte. Tereza estava encantadora. Toda ela sorria e fascinava...

O grande recinto inundara-se de luz. As pa- redes brancas e nuas pareciam feitas de núvens fulgurantes, e o céu em chamas entornaya-se até

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208 AMOR IMOETAL

nós em vagas irisadas... Encapelava-se silencio- samente, escorrendo azul e fogo... B as róseas cortinas remoinhavam com fúria, quais enormes labaredas batidas pelo vento.

Minha companheira chegou-se para bem perto de mim e, como fizesse ação de a enlaçar, levou-me aos lábios os pequeninos dedos finos e leves, num gesto proibitivo e caricioso a um tempo.

— Vem... Vamos ver a paisagem...

— Ainda não, Tereza... disse, fazendo-a sentar-se a meu lado. Ouve primeiro uma histó- ria... Recósta-te aqui.,. Deixa abraçar-te e ador- mecer-te... Cerra os olhos para que a luz não lhes faça mal. Deita-te aqui e escuta... Eu conheço os segredos desta casa e posso afirmar que estamos num palacio encantado... A nossa casa é um palacio encantado... um vasto palacio encantado...

Tereza levantou-se de um ímpeto e entrou a rir, com um movimento ondulatorio que acentua- va divinamente as linhas harmoniosas de seu cor- po. Ria com tanta vontade e com tanta graça, que eu também me pus em pé e, abraçando-a, de- satei com ela num riso doirado, num grande riso claro e sadio...

— Mas continúa a história do palacio encan ' tado...

— Estamos num palacio encantado... Tudo aqui é obra de sortilegios... Nós somos os mági- cos... Fizemos o céu, as estrelas, o sol e a lua... Construímos esta casa e essas janelas e os campos e os horizontes...

— Então tudo é fantástico ? atalhou ela sor- rindo.

— Mas que importa, amor, que o espetáculo e os espectadores sejam ou não fantasmas? O que

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ONDE ACABA O SONHO. 200

importa é a visão, o enlevo, a liberdade, a Vida... E' o amor, o prazer, o ar puro, a dansa do corpo e da alma... E' a ascensão, a ligeireza, o vôo tonto e luminoso de horizonte em horizonte... Quando ha luz em nossas veias e espaços em nos- sos olhos; quando sabemos correr, saltar, sorrir e amar — então podemos ter sempre á flor dos lá- bios esta pergunta doirada: Que importa que se- jam ou não ilusórias as perspectivas da Vida? O que importa é a Vida! Amêmo-nos, Tereza...

E abracei-a e beijei-a — enquanto através das transparentes, róseas cortinas se adivinhava o azul incendiado...

/ » — Ha inúmeras janelas nesta casa. Ha ja-

nelas de todos os tamanhos e de todas as cores. Umas abrem ípara terras de esmeraldas... Ou- tras, para céus profundos e cintilantes... E ou- tras, para infinitos sombrios e misteriosos... Ha também as que dizem para os areais desertos e inclementes; as que levam ás alturas tempestuo- sas e aos grandes mares escumantes... Ha de tudo em nossa casa, Tereza... Escolhe, amor, o que quiseres... Nós somos mágicos... E a nossa casa

fJt um palacio encantado, um vasto palacio encan- \jpdo...

Tereza sorriu e debruçou-se-me ao ombro como extática. Depois, sacudindo de si toda he- sitação, num gesto violento e senhorial, dirigiu-se ao para-peito que nos defrontava... E chegámos ao peitoril.

A princípio não vimos mais do que um como imenso relâmpago de oiro que se houvesse des- dobrado sobre a face do mundo e pairasse trêmu- lo e deslumbrante...

Cerrámos os olhos. Mas continuávamos a ver

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210 AMOR IMORTAL

um enorme clarão, que crescia maravilhosamen- te... A luz penetrava-nos através da epiderme, coava-se pelas veias — saturava-nos o corpo e a alma...

Era uma transubstanciação nunca sonhada... Nossa carne parecia encher-se de luz, conver-

ter-se em luz, vibrar dentro da luz... Todos os nossos membros entraram a viver de uma vida intensa e gloriosa, e a mais pequenina parcela de nosso sêr reunia em si, o esplendor e a felicidade de um mundo inteiro Dir-se-ia que cada átomo de nosso corpo se tornara infinitamente sensivel e que cada célula estava transformada num radian- te, infinitésimo sistema solar. (*) E sentiamo-nos grandes, luminosos e felizes, como se fôssemos a sensibilidade, a vida e a conciência de todo um universo, de milhões e milhões de astros coloridos a revolutearem vertiginosamente dentro em nós — para nosso prazer...

Quando abrimos os olhos, fitámo-nos estupe- fatos.

Tereza estava transfigurada. Seu rosto era um incêndio harmonioso, um esplendor sereno e soberano, e seus olhos brilhavam como céus...

Achavamo-nos num sítio maravilhoso, entre' enormes árvores carregadas de flores. Era umú vereda matizada, que mais parecia um intérmino jardim bordado de florestas. A casa havia desa- parecido. Em tôrno de nós sorria e cantava o ar-

(*) Alusão & grande lei esoterica da analogia uni- versal: "O que existe no alto é como o que existe em baixo, e o que existe em baixo é como o que existe no alto." A ciência moderna obteve brilhante confirmação dessa verda- de descobrindo dentro do átomo o sistema solar aí apontado de ha muito pelos ocultistas.

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ONDE ACABA O SONHO. 311

voredo, a folhagem translúcida, radiante, cheia de passaros invisíveis, de maviosos gorgeios que ine- briavam ...

Envolvia-nos tão viva claridade e ao mesmo tempo tão doce e imaculada, que tínhamos a sen- sação de nadar no éter, a infinita distância de to- das as sombras, de tudo o que escurece e entris- tece a vida...

Tereza caminhava a meu lado como uma di- vindade antiga — ligeira, risonha, voluptuosa e pura. Toda a beleza do céu e da terra parecia exprimir-se nas ondulações cristalinas de seus membros. Reunia á fragilidade graciosa de uma deusa o quer que era de vigoroso e forte e domi- nador que a transfigurava... Seria impossível e disparatado pensar então em separar a carne do espirito, a alma do corpo... Ao admirá-la, todas essas distinções perdiam o valor e a significação. O menor de seus gestos parecia realizar-se per- feito e soberano acima de todos os mundos, longe de todas as normas e de todas as prisões... Seu olhar fulgia, criando e divinizando todas as cousas...

Uma branda e cariciosa viração agitava sô- Are o céu azul a verde ramaria das árvores e vi- È^a bafejar-nos as faces e revolver-nos os cabelos trêmulos, na luz doirada.

Andámos tontos e deslumbrados pelo cami- nho a fóra, como deuses recem-nascidos que en- saiassem as asas num primeiro estremecimento de oiro...

Havia tanto azul em tôrno, tanto espaço e tanta vida a chamar-nos! Cada passo que dava- mos, cada beijo que trocavamos, saía imaculado, completamente novo, do infinito em que desabro-

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212 AMOB IMORTAL

cbaramos... Soava-nos ao redor uma música nun- ca ouvida, uma música feita de êxtasis e de si- lêncios inefáveis... E no meio de todo esse amor .— a sensação do vôo, do vôo interior, do vôo livre e vertiginoso no ar puro...

Gaminhavamos pelo alto de extraordinarias montanhas.

O céu azul, semeado de núvens ardentes, ex- tendia-se em torno de nós tão profundo e miste- rioso, que extremeciamos ao contemplá-lo.

Gaminhavamos vacilantes como criancinhas que ensaiam os primeiros passos.

A nossos pés desenrolavam-se as campinas e as florestas, as cousas verdes e indecisas...

Incendiavam-se ao longe, imensamente afas- tados, os mais extranhos horizontes.

E á medida que avançavamos, dir-se-ia que toda a paisagem se ia transformando como por encanto.

As árvores, o solo verdejante, as núvens, o céu e a terra — tudo se resolvia em música, numa deliciosa música que nos embalava... Aos gor- geios dos passaros ajuntava-se o suspiro da ara- gem e o menear voluptuoso da folhagem... Tud' era música... Ouvia-se palpitar sonoramente o coração das cousas...

No meio, porém, de toda essa maravilhosa embria- gues, pressentiamos os esforços subterrâneos de uma afirmação transfiguradora, de uma alta e divina afirmação, que subia — trêmula vertigem — por entre desmaios e estremecimentos, através da imensidade azul de nossas almas.,.

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ONDE ACABA O SONHO. 213

Éramos então tomados de uma exaltação glo- riosa, de um desejo violento de subir aos mais altos píncaros, de nos agitarmos á luz quente do meio dia e embebermo-nos para sempre no céu...

Tudo obedecia ao nosso aceno e á magia de nossos deslumbramentos. Turbilhões de rosas e dulcissimas núvens perfumadas, planícies de es- meralda e montanhas movediças como vagas, vo- zes de oiro e sinos encantados — tudo surgia aos apelos de nossa imaginação... O mundo inteiro era nosso, trabalhado pelo nosso desejo... Criá- vamo-lo, governávamo-lo... Impúnhamos a todas as cousas os moldes de nossa vontade e a fulgu- ração do nosso amor...

<— Pensar, Tereza, que já padecemos! Pen- sar que já trememos de pavor!

— Estavamos (sepultados e ressuscitámos... — Ressuscitámos, amor, e criámos univer-

sos... Julgávamo-nos frágeis e pequeninos — e somos deuses, Tereza... Não sentes que somos deuses, Tereza 1

— Somos deuses I — Somos deuses! E os ecos de nossas vozes cantaram longamen-

te pelo espaço: — Somos deuses!

^ — Somos deuses! *

Palmas gigantescas, maravilhosas palmas cur- vavam-se sobre nossas cabeças e mergulhavam-nos em verde, num delicioso verde salpicado de oiro... O dia esplêndido desenrolava em torno de nós, colinas abaixo, o seu fausto de luz... E o céu estava tão perto, que nos deitava até o cora- ção... Tínhamos o coração cheio d« azul, choio de amor... Sufocávamo-nos no azul, dissolviamo-

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214 AMOR IMORTAL

nos no sangue do azul, nas grandes veias lumino- sas que palpitam entre o céu e a terra...

Yoltei-me para minha amada e beijei a ver- melha floração de seus lábios divinos... Depois tomei-lhe as mãos finas e brancas e contemplei-a cóm assombro. Dir-se-ia que aquele pequenino sêr estava todo orvalhado e trêmulo... Puxei-a para bem perto de mim, enlacei-lhe o corpinho flexivel e escutei-lhe o ofego e as rápidas pulsações. Ela sorria, e seus olhos profundos e doces — olhos em- briagados, tontos, perdidos — oscilavam humidos, sem governo, á direita e á esquerda, estrábicos de vertigem...

Apertei-a em meus braços... Mas estremeci de espanto... Parecia-me que tinha aprisionado uma avezinha espantadiça... Sentia-lhe o tremor convulsivo dos membros cristalinos e ouvia pulsar precipitadamente o seu pobre coração...

Os olhos de Tereza cresceram desvairados. Seus braços alongaram-se, brancos como nuvens. Todo o seu corpo vibrava e cantava...

De repente extremeceu, tomada de inexprimivel terror, e, fitando-me as largas pupilas cheias de azul, disse espantada:

— Deuses morrem, amorf! Pois deuses mor- rem t!

Contemplei-a apavorado... Alagada em suor frio agonizava, inânime, como um passarinho que, tendo quebrado o vôo de encontro a uma muralha, cái, de asas colhidas, de asas dilaceradas... Ago- nizava qual tenra criancinha que ainda não tivesse vivido... E as suas largas pupilas moribundas fi- tavam-me interrogativamente...

Despertei hirto, crispado de terror, incapaz do menor movimento.

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ONDE ACABA O SONHO. 215

Com grande esforço, porém, soabrí a medo as pálpebras pesadas. E contemplei — oh! redenção! — o rosto iluminado de minha esposa, seu sorriso colorido e a cúpula verde semeada de uma poeira doirada...

Senti durante algum tempo a carícia de suas pequeninas mãos brancas e leves a moverem-se como sombras luminosas sobre o meu rosto contraído...

Depois, passando-me os dedos finos e róseos pe- los cabelos molhados, disse sorrindo:

— Que sonho tiveste ?! Tremias tanto, que es- tive quasi a acordar-te...

— Não imaginas, Tereza, que longa alucina- ção foi esse sonho! Yí-te duas vezes morta... Yí-te semelhante a uma deusa antiga... Yí-te... Mas contar-te-ei depois o esplendor e o horror de meu sonho... E que nitidez espantosa! Um momento em que a dor se havia tornado insuportável, sonhei que despertava — levantei-me, contei-te o pesadelo e, tomando-te pelas mãos, voltei contigo para nossa casa... Era uma casa extraordinaria, armada nas núvens...

Detive-me perplexo. — Continúa, disse Tereza. Conta-me todo o

sonho... — Mas como posso estar certo que acabou o

swnho e começou a realidade? Teresa pôs-se a rir. E nos seus olhos profundos e brilhantes, que

fulgiam por sôbre minha cabeça, julguei descobrir misteriosas alusões ao Amor Imortal...

Até aqui o primeiro manuscrito de Henrique. Dir-se-ia que o que estava para acontecer, já exis- tia obscuramente no fundo de sua conciência, che-

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216 AMOB IMORTAL

gando a delinear-se nos contornos imprecisos dos sonhos. (*) Entretanto essas linhas foram escritas nas horas mais claras e azues de sua vida.

Mas é chegado o momento de assistirmos aos últimos esplêndidos clarões dessa alma toda de luz...

(*) Foi justamente o que se deu comigo, nas singu- ■( lares premonições de que êste livro é documento, como assi-

nalei no prefácio, na parte em que me referi ao prematuro faJecimcnto de meu amado filhinho Luis Edgard.

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ERA UMA SOMBRA TRÊMULA

E DESGRAÇADA ..

Que lugar é este em que me acho, sem agua, sem ar, profun- do, insondavel, sombrio como » mais sombria noite, onde erram homens miseravelmente? (Escri- ba Ani, ãe um papirus egípcio ãe ha quatro mil anos.)

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Seria impossível descrever o silêncio extranho que reinava na casa. Parecia-me que tudo em der- redor entrava aos poucos em profunda meditação.

A luz mortiça da tarde filtrava-se a custo atra- vés de sombrios estofos, que caiam dos humbrais das portas e janelas como se foram escuras, avermelha- das e espessas torrentes.

De quando em quando aproximava-se de mim um vulto meio curvado, que me perguntava, solí- cito, pela saúde, e insistia para que tomasse não sei que alimento. Depois afastava-se, para reaparecer dentro de pouco, entre os pesados reposteiros, imó- vel e amedrontado, mas resoluto a arrancar-me de meu sonho doloroso. Semelhava uma mulher enru- gada e encanecida, dirigindo-me em voz entrecorta- da, quasi soluçante, um sem número de súplicas que eu não conseguia compreender. Chamava-me filho e quedava longo tempo a meu lado, em atitude de \

^lesalento ou de ansiedade. Outras vezes eram figuras palidas, de grandes

olhos espantados, a deslisar pelos veludos da tape- çaria, ou a espreitarem-me curiosamente dentre as dobras roçagantes dos amplos cortinados.

Via-os a todos, quais fantasmas apostados a atrairem-me para um mundo pequenino e desolado, que me causava insuperável horror.

Em vão davam-me nomes ternos e pretendiam ser a minha familia. Sentia-me viver a milhares de léguas, tão longe de todos êles, que suas vozes me

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220 AMÔR IMORTAL

chegavam como perdidas no estrondo de muitas aguas.

Lembra-me que percorri, a passos vacilantes, diversos apartamentos desta vasta habitação. Con- templei, um a um, os grandes quadros das paredes, e fui sentar-me, feito um sonâmbulo, em frente a uma das janelas, que dá para a floresta.

Aí estive espaço de não sei quantas eternida- des absorto, a escutar ainda a voz dulcíssima que tantas vezes soara, trêmula e caridosa, naquele am- biente" sossegado.

Depois levantei-me tonteando, e passei a ou- tro aposento.

Estavam acesas as luzes. Consultei o relogio. Passava de meia noite.

Causou-me extranheza tantas velas a arder, em hora tão avançada.

Volvi os olhos em torno, a ver se percebia o motivo de tão insólita iluminação.

Dei éntão com a porta que abria para o salão azul recoberta de veludo preto e guarnecida de re- posteiro igualmente negro, através do qual se adi- vinhavam muitas chamas de um. rubro carregado e soturno.

Yí-me de repente á bôca de uma caverna cheia, de escuridade e terror, em cujo fundo estrepitavam' levadas subterrâneas... Por estreitas ladeiras hu- midas e resvaladias, desciam em procissão, empu- nhando círios agonizantes, pequeninos vultos inde- cisos, sumidos de angústia e de velhice...

Depois ouvi um soluço estrangulado, que me fez entrar em violenta cólera. Tive a sensação de que intentavam desfeiar ignòbilmente uma cousa bela e encantadora, na qual ninguém tinha o direito de tocar. Afigurou-se-me descobrir horrivel cilada, que,

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EBA UMA SOMBRA 221

de invejosos e implaeaveis, me amavam inimigos te- merosos e dissimulados.

Debalde tentaria pintar as inúmeras emoções desencontradas e loucas que então experimentei. Foram instantes tenebrosos que fujo de recordar.

Fui recolhendo a pouco e pouco as idéias es- parsas e desgarradas, como quem se prepara para fazer dificultosissima operação de cálculo. Em meio, porém, desse esforço, veio divertir-me a atenção um ruido surdo e ameaçador, semelhante ao que produz o vento na folhagem, ao aproximar-se de medonha tempestade.

Levantei a cabeça, e logo tudo cessou como por encanto.

Figuras indecisas passavam e repassavam á mi- nha frente, olhando-me de fugida, á semelhança de pessoas apressadas.

Os reposteiros e cortinas, com seu incarnado escuro e avelhentado, punham em lugubre desta- que a porta lutuosa, que avultava ali, a poucos passos, como se abrira para a noite profunda, á borda de um abismo tenebroso... Fazia-me verti- gem olhar para aquele sinistro retângulo de nan- quim. Parecia-me que, se dele me aproximasse, iria xair para todo o sempre através do cáos...

Os lumezinhos, que transpareciam vagamente, lembravam estrelas longinquas e rubras, gotas de sangue acesas no vácuo e meio sepultadas na espes- sura das trevas.

Estive largo tempo a considerar na extrava- gância de semelhante decoração.

Ao cabo, foi-se apoderando de mim tal senti- mento de solidão e abandono, que senti vontade de chorar como uma criança.

— Por que razão Tereza não vem sentar-se a meu lado ? perguntava-me quasi em pranto, Foi sem-

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222 AMOB IMOBTAL

pre tão carinhosa! Não saberá acaso que ainda não pude repousar, que ando a cabecear pela casa toda... Certo que estou muito doente... Porque não vem procurar-me... Tereza...

Julguei vê-la descer do azul, vestida de noiva... Aproximou-se num relâmpago e esvaiu-se entre as cortinas, para reaparecer e novamente sumir-se, num como vapor irisado.

Esfreguei os olhos com frenesi. Queria sacudir de vez o torpor e dolorosa alucinação de que estava possuído.

Levantei-me e olhei fixamente para o pedaço de pano preto que flutuava á porta do salão. Olhei pasmado e imóvel.. < Olhei atônito e aterrado...

Arrepiaram-se-me os cabelos... E comecei a suspeitar que Tereza estava atrás daquele extranho reposteiro...

Tereza tinha singulares caprichos! Era fanta- siosa, e até raiavam em desvario suas imaginações. Falava com meias palavras, cheias de reticências, fitando-me intensamente, como se me quisesse re- volver a alma, atravessá-la toda da luz profunda que lhe irradiava dos olhos... Tereza era singular e fantasiosa...

Que prepararia ela naquela noite horrorosa? Que teria ido fazer no terrífico salão í

Sentia-a oculta atrás do negro estofo' da porta...

Aproximei-me lentamente, lentamente... O pano de nanquim ondulava, como batido de leve, muito de leve pelo vento... Tornava-se de um ne- gro duro de contemplar, de uma pretidão repelen- te, horrivel... Parecia-me coberto de asperosida- des, que me feriam de longe, sem ser preciso to- car-lhes ...

Os vultos sinistros rodearam-me aos poucos...

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ERA tTMA SOMBRA 223

Queriam prender-me, cortar-me o passo... Agita- vam-se em torno de mim, ciciavam, roçavam-me, agarravam-me as mãos...

Que tinham eles que ver comigo? Debatí-me, enxotei-os, um a um, libertei-me de tão contumaz perseguição... Vi-os afastarem-se medrosamente...

— Deixá-lo... Talvez lhe faça bem... Não alcancei o que tencionavam insinuar com

tais palavras as sinistras figuras de pesadelo... Enxotei-as... Fiquei só...

O pano nefasto crescia para mim... Crescia qual um terror vivo... Tirava por mim, num rit- mo fatal, que se exprimia em pulsações subterrâ- neas... O coração batia-me pesado, sufocante, pro- fundo.

E eu avançava lentamente, lentamente, como nmR sombra trêmula e desgraçada, pressentindo a poucos passos o pavor inaudito, a dor... oh! a dor suprema de não encontrar a minha Tereza...

Mas Tereza nunca me inspirou terror! pen- sei...

Que me quer essa velhinha que se foi colocar á entrada, rente com o pano?

— Não tentes a Deus, meu filho... Deixa-a escansar...

Quedei um instante hirto, a olhar... Depois desatei a rir de minha mãe... — Descansar... minha mãe... Que quer isso

dizer, minha mão? E' preciso viver, pois não é? Tereza sabe viver... Perguntai a Tereza, minha mãe, perguntai-lhe se não é preciso viver... Va- mos ... Deixai-me correr essa cortina... Ah... ah... ah... Sempre hão de ter fantasias... Te- reza sabe que é prociso viver... Vós, minha mãe, não percebeis o que eu quero dizer... Vós não co-

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224 AMOR IMORTAL

nheceis Tereza, nem nunca a podereis conhecer... Tereza sabe como é preciso viver...

Dei alguns passos, recuando para o meio da sala... Recuei ás tontas, a pairar e a rir...

A sala escurecêra aos poucos. Muitas velas es- tavam accesas. Espalhara-se no ambiente um forte cheiro de incenso.

Minha mãe aproximou-se de mim e quis afas- tar-me dali.

— Não, minha mãe... Não... Tereza é que sabe viver...

— Não tentes a Deus, meu filho... Não fales assim ein tua santa esposa, meu filho...

— Santa! minha mãe... E' extranho que as- sim lhe chameis, minha mãe! Dizei antes divina, amantissima, formosa, encantadora...

— Deus te perdoe, meu filho... disçe afas- tando-se um pouco e como a soluçar. Deus te per- doe. .. Santa e bem-aventurada é que devias di- zer.

Onde achar palavras que pintem o terror que a súbitas caiu sobre mim, ao ouvir-lhe esta última ' frase!

Minha mãe estava imóvel diante de mim. Al- çou lentamente, lentamente, o braço, e apontou para

> a porta do salão: // — Vai, meu filho... Mas não tentes a Deus..."

E' preciso orar, meu filho... Compreendi... — Horror! bradei com todaa as fôrças da

alma. Não quero que isto seja real . .. Não quero... E precipitei-me para a porta, e corri a odiosa

cortina...

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DEIXA-ME SENTIR-TE ETERNA.

Um dia, cerca da hora nona, elevou-se em mim... uma pode- rosa. imaginação. E julguei ver Beatriz... como antigamente... (Dante, Fida Nova.)

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Causava assombro o que se estava passando diante de nós. Eram passados tão curtos momen- tos que saíramos de nossa casa, e não reconhecia- mos nenhum dos sitios familiares dos arredores. As campinas e os morros, as ondulações do terreno, as árvores amigas e amadas, tudo estava tão mudado e tão extranho, que nos olhavamos com espanto vi- zinho da loucura.

Caminhámos assim calados alguns breves ins-, tantes que nos pareceram eternidades. Corremos até o alto de um outeiro que nunca víramos, e, ao surgirmos na verde coroa, parámos ansiosos, espe- rando que cessasse a vertigem...

Tereza voltou-se para mim e, tonteando num deslumbramento, olhos enormes, olhos profundos, a fitarem-me, exclamou, amparando-se-me ao ombro:

— Henrique! Onde estamos, Henrique! Nos- sa casa devia estar ali, a poucos passas... Não faz

"^eia hora que a deixámos! A tão pouca distância, é SSncrivel que se não possam mais ver as casas, os tétos, a torre da igreja... Mas tudo isto é absur- do... Creio que estou enlouquecendo, Henrique!

Seu talhe flexível e doce parecia vergar como batido de rajada silenciosa que a fizesse extremecer.

Tudo aquilo era tão louco, tão de sonho, tão inaudito!...

— Não ê nada, meu amor... disse eu, force- jando dar ás palavras um tom de segurança e tran- qüilidade que estava longe de sentir. Não é nada,

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228 AMOB IMORTAL

Tereza... Nós é que ás vezes nos tornamos crian- ças e experimentamos como que uma volta das an- tigas imaginações... Em crianças, acreditamos piamente no maravilhoso... Tudo então são histó- rias maravilhosas... Isto não passa de breve res- surreição de nossas almas de crianças... Cuidemos de rir... Ligeira embriagues... Ha de passar... Chega-te a mim, meu amor...

Abraçámo-nos vacilantes, quasi a despenhar da eminência em que nos achavamos... Estava- mos,- não ha duvidar, embriagados, vertiginosamen- te embriagados...

— Que passaros são aqueles, Henrique? Nun- ca se viram passaros assim enormes e com essa ati- tude. (*) Dir-se-ia que estão meditando...

* — Pala baixo, amor... Espreitam-nos dentre a folhagem...

— Quem f! — Essas aves... Serão bem aves ? Não lhes

percebo as fôrmas... Mas sinto que estão a mi- rar-nos ...

Tereza quedou-se imóvel, encolhida, toda trê- mula e convulsa. Cerrou e abriu os grandes olhos luminosos, muitas vezes... Depois deixou pender a cabeça, e, roçando contra o meu o formosíssimo rosto, aceso em delirante transporte:

— Que medrosa que sou, Henrique.^. Abra- ça-me. .. Não percamos tempo em olhar para se- melhantes sêres... Certo, estamos sonhando...

Sairamos de casa havia meia hora, se tanto. Dobráramos a curva da colina, á tardinha, quasi

(*) AngeK appareniiarum sunt volatiles cceli- ■ ■ (Dogma cabaJistico apud Pistoejus e Euphas.)

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DEIXA-ME SENTIB-TE ETERNA... 229

sol-posto.... Senão quando, eis-nos ás tontas, numa paragem inteiramente desconhecida. Debalde olhá- mos em torno. Tudo — campos e florestas de um pais fantástico e extravagante! Era o sobrenatu- ral, o incrível, o disparatado a entrar-nos de súbito pela vida a dentro, a invadir-nos de improviso, a nos dominar e aterrar como a duas criancinhas...

Tereza estreitou-me nos braços e murmurou- me sobre os lábios palavras desgarradas, palavras deliradas... Depois volveu com terror:

— E agora, Henrique! A noite não tarda... Que havemos de fazer? Voltar... Para onde? Nos- sa casa sumiu-se... Sós e perdidos, exatamente como nos contos... "

E de um ímpeto, nervosamente, acrescentou' em cólera:

— Mas é absurdo... W ridículo... E' pre- ciso lutar contra a alucinação...

Eu olhava atônito, hirto, sombrio... O sol ia mergulhar no verde longínquo da

vasta solidão. Os grandes seres misteriosos, passaros ou cha-

cais, espreitavam-nos, imóveis, do fundo escuro da (folhagem...

E' preciso lutar contra a alucinação! Esta frase ficou soando dentro em mim, á semelhança de um aviso salvador, mas inútil. Onde colher forças para essa luta tremenda que eu não via bem como encetar ? Lutar contra uma alucinação que nos possuía a ambos! Depois, seria em verdade uma alucinação, ou antes uma realidade nova e singular, manifestação de potestades ocultas e mis- teriosas ?

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230 AMOB IMOKTAL

Os limites do possível parecia recuarem dian- te de mim, á medida que considerava na estranhe- za de nossa situação...

Saíramos de casa havia poucos minutos... Durante o dia Tereza estivera a cantar umas ve- lhas copias melancólicas e apaixonadas. Em segui- da, convidara-me a passear um pouco. Amavamos visitar as árvores copadas, que nos acenavam de longe, meio sumidas na curva flexuosa dos outei- ros proximos.

Partiramos alegres. Estava tão linda a tarde, tão cariciosa a viração, tão perfumado o ar, que nos sentíamos leves como plumas soltas ao vento, radiantes e infantis, ágeis e estouvados que nem crianças correndo aos brincos preferidos.

Minha companheira falou-me do passado, re- memorando histórias que, em menina, ouvira á yelha ama, junto á lareira, pela calada da noite.

Contei-lhe também cousas doces e mansas, cheias de saudades e de amor.

Primeiro que dobrássemos a portela da estra- da, parámos a olhar com enlevo as casinhas bran- cas quasi escondidas nos arvoredos.

Tereza levou as mãos aos olhos, em sobrecéu, para ver melhor.

— A felicidade, Tereza, só existe na solidar E' preciso que as almas se abracem em silêncrfí', para se sentirem viver profundo, como em surdi- na... A vida da alma é feita de silêncios, de dul- cissimos e misteriosos silêncios, que só se podem sa- borear na solidão...

Ela fitava-me sorrindo, como a achar infinita graça pueril no que lhe ia eu dizendo.

Corei, embaraçado. Tereza ensinava-me a vi- ver, e eu teimava em armar frases que me davam a ilusão de significarem alguma cousa. Cingí-lhe en-

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DEIXA-ME SENTIR-TE ETEBNA. 281

tão o busto esbelto, e juntos dobrámos a curva do caminho...

Mas as colinas e as árvores de todos os dias lá não estavam mais nos seus lugares. A paisagem era inteiramente outra. A' nossa frente coleava formoso outeiro, que lembrava cúpula verde e ma- cia de algum extranho templo subterrâneo. Ao re- dor, de todos os lados, gigantescas florestas rama- Ibavam, recortando-se caprichosamente sôbre um céu multicolor, semeado de nuvens inflamadas e espessas.

O sol descia, tocando já o horizonte, e a cinta negra das árvores representava .aproximar-se, quais se viessem a receber-nos, á maneira de fantasmas graves e pensativos.

Fizemos ação de retroceder. Mas atrás como de todos os demais lados, ao invés do caminho, das casas, dos sítios conhecidos, só havia verdura, um oceano intérmino de verdura...

E' preciso lutar contra a alucinação I Bati com os pés no chão, como para me certificar da solidez da terra; passei as mãos pelos olhos, e acabei des- ferindo uma risada forçada ,risada sinistra, que

pareceu partir, não de mim, mas do fundo da folhagem...

— Tereza! Não estarei enlouquecendo! Onde está o caminho por onde viemos? Que é feito da curva da estrada? Tereza! Somos perseguidos! E' uma emboscada... Transtornaram-me a razão... Vê se enxergas alguma casa... Não divisas a torre do campanario?

— Nada, Henrique... Tudo aqui é desconhe- cido ... Só vejo árvores sombrias... No fundo; en- tre as folhas, ha inúmeros olhos penetrantes... São

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enormes e cintilam como carbúunculos incendia- dos ...

— Imagina, Tereza, que, livres desta fantas- magoria, vamos aos nossos conhecidos e lhes dize- mos : Uma tarde, como saíssemos a passear, na pri- meira curva da estrada, a poucos passos de nossa casa, achámo-nos subitamente transportados a uma região desconhecida, entre bosques gigantescos, po- voados de olhos misteriosos, que nos espreitavam, dentre a folhagem... Imagina o que não pensa- riam de nós...

— Rir-se-iam ou nos chamariam loucos, dis- se Tereza, em voz sumida. ,

— No entanto essa cousa inaudita, que, conta- da, provocaria o riso ou a piedade, é uma realida- de tão real como toda a nossa vida passada... Não compreendo nem posso compreender como isto se deu e o que significa... Mas ha, neste mundo, tanta cousa que não se compreende... Quem so- mos para compreender o que se passa em torno de nós?... Se nem ao menos nos conhecemos bem a nós mesmos... Imaginemos, pequeninos seres que somos, imaginemos uma mosca a lamentar-se por não alcançar o motivo por que não consegue voar livremente através de um vidro... Eis o papel que representamos. Quem nos assegura qu' não fomos capturados e aprisionados por seres pií- derosos e terríveis que se divertem á nossa custa, exatamente como as crianças que armam aos pas- saros ou prendem e matam os insetos?...

— Não digas isso, Henrique... Pensemos an- tes que dominamos os elementos, que os transfor- mamos e afeiçoamos ao sabor de nossa imaginação...

Tereza sorria, cOmo para sublinhar encantado- ramente o que dissera. Eu, porém, sejitia-lhe bem as palpitações e extremecimentos...

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DEIXA-ME SENTIR-TE ETERNA... 233

Então apoderou-se de mim uma como cólera tenebrosa.

— Vem, amor... Pica bem junto de mim... Dá-me o teu braço, Tereza... Reveste-te de cora-, gem... Vamos abrir passagem através da rama- ria... Demais, não ha ramaria, não ha florestas aqui... Tudo isto está em nossa imaginação... Avancemos sem temor, antes que caia a noite... Nossa casa está perto... Lá havemos de rir da aventura... Ânimo! Isto são histórias de crian- ças... Estamos delirando... E' absurdo! Não vês que esses sêres que estão a espreitar-nos não teem formas ?... Está claro que não existem... Na ter- ra não há animais que se pareçam com êles... São pesadelos... Depressa... Vamo-nos daqui, antes que anoiteça.

Tereza abriu os braços e apèrtou-me contra o seio tremente:

— Não te assustes, Henrique... Iremos jun- tos, iremos... Depois, que nos importa tudo isso? Beija-me e abraça-me... Deixá-los espreitar... São espiões... Desprezo-os... Entre as rendas do cor- tinado ou ao céu sereno, que importa?... Não te- nhas medò aos pesadelos... Olha-me, Henrique... Pois não somos felizes?

X — Ah! que avisada és, Tereza... Não perca- mos tempo com semelhantes sêres... Ignoramos o caminho, o rumo a seguir... Que importa? Não estás a meu lado? E's o tudo para mim... Deixê- mo-los estar... Não se mexem... São pesadelos pintados... Como somos1 felizes!

Já a metade do disco solar se engolfara no cimo das árvores... Iluminavam a paisagem.os úl- timos clarões avermelhados. Grandes sombras iam caindo e extendendo-se em tôrno de nós.

Tereza sorria nervosamente. Tjnha os lábios

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ardentes e os olhos retorcidos de tremor e de ver- tigem...

— Ao cabo, de que serve procurar uma casa que talvez nunca existiu, Henrique í

E Tereza pareceu-me tão deslumbradora, que cheguei a aceitar como natural e plausivel a idéia de que não existia casa, nem povoado, nem passado algum — mas só aquela tarde fantástica, aquela clareira verdejante, aquele momento — eternida- de, e Tereza acima de tudo...

-Sentei-me na grama, ao lado de minha ama- da, e, tomando-lhe as mãos, beijei-as com transpor- te. Que me importava passado e futuro? Que me importava o extranho e misterioso das cousas? Não era feliz, supremamente feliz, nos braços de minha companheira? Quem me déra então mil enigmas infinitamente mais terríveis e assustadores, para esquecê-los, um a um, com inefável, divina volú- pia, nos olhos profundos de Tereza, na branca ver- tigem do amor de Tereza... Quem me déra um universo mais cégo, mais sem sentido e sem razão de ser, do que toda a incrivel extranheza daquela tarde, para o lançar aos pés de minha amada...

— Melhor assim, Tereza... Basta o teu amor... Não percamos tempo em buscar caminhos que não existem, uma casa e um passado que sem ti nada podem significar, cujo único valor estava em ar darem associados a tua imagem... Basta que es- tejas em meus braços... Melhor assim, Tereza... Valerás por tudo o mais... Serás o alfa e o óme- ga, o presente eterno e divino...

E a luz do crepúsculo ia baixando sensivel- mente. De roda, para onde quer que se olhasse, eram tons confusos tirantes a verde, a um verde que crescia e ameaçava substituir-se ás demais cô-

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DEIXA-ME SENTIR-TE ETERNA. 235 «

res... Até que principiei a ver o céu e a terra como que através de uma grande esmeralda...

Tereza estreitava-se a mim, atônita do que via, e repetia a meia voz:

— E' preciso lutar contra a alucinação, Hen- rique. .. Pensa em mim, no como te amo e te per- tenço ...

— Só a ti vejo, Tereza, só a ti contemplo em todas as cousas... E' que ás vezes me assalta um vago receio da noite que vem chegando...

Tereza não respondeu. Fez-se grande silêncio... E achámo-nos abraçados dentro de um maravilhoso luar de oiro...

Do fundo da folhagem continuavam a esprei- tar-nos os seres misteriosos, os terríveis olhares pe- netrantes, que não nos desfitavam um momento si- quer.

Sem embargo de tão temerosos espectadores, nunca de memória humana, viveu ninguém instan- tes tão divinos como os que então vivi. Tereza era um infinito de amor. De seus olhos provinha a luz doirada que iluminava o espaço; de seu corpo — branca e trêmula vertigem — o fulgor das estréia* inumeráveis, o mavioso extender-se da via láctea,

^odo o calmo abençoar do céu constelado e puro... — Fiquemos aqui, Tereza... Oxalá nunca pas-

se este momento... Deixa-me estreitar-te ao peito e sentir-te eterna, a palpitar sôbre o meu coração...

Então invadiu-nos a ambos uma como rajada de terror... Os olhos de linces aproximaram-se, enormes, dilatados, sombrios... As folhas crepita- vam, na escuridão. As trevas espessavam-se, como por encanto, amontoando-se, quais negros estofos, em tôrno do corpo escultural de minha doce es-

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posa, sumindo-o q'uasi em lutuosas ondulações. Ouvi zumbidos extravagantes e uma voz apagada, fina e sinistra, que parecia sepultada no centro da terra:

— "Não tentes a Deus, meu filho. Tereza, em lugar de aproximar-se, afastou-se

violentamente, como se se fosse elevar nos ares... Fiquei extático, a contemplá-la, com um senti-

mento dificil de explicar. Era curiosidade, espanto e arroubo, tudo juntamente. x

—- Que fazes, Henrique ? perguntou ela em voz misteriosa que me sobressaltou.

— Considero, amor, como toda te resolves em luz — luz os olhos, luz os cabelos, luz as mãos, luz os seios, luz o corpo inteiro, o corpo e a alma que nele transborda... Tereza! Que fulgor te incendeia, Tereza! Porque cresces e te agitas como enorme la- bareda !... Tereza! Tereza!

Tereza dissipava-se no espaço, vibrava no éter, brilhava e sorria em derredor — semelhante a um vapor luminoso que se incorporasse em todas as cousas, as impregnasse de divindade e se integras- se aos poucos na vaga e muda natureza...

.— Tereza! Tereza!. Só os écos respondiam, muito ao longe, numa

toada confusa. A escuridão crescia. E em tôrno, do fundo est-

ouro da folhagem, os grandes olhos misteriosos, olhos de demônios ou de linces, continuavam a espreitar...

Deitei a correr, como louco, através das árvo- res, tropeçando, caindo, levantando-me, clamando e chorando: ,

— Tereza! Tereza! Tereza havia desaparecido... Os sêres miste-

riosos, vultos sinistros que ma haviam roubado, vi- nham todos em meu encalço.

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DEIXA-ME SENTIR-TE ETERNA... 237

' Parei aterrado. Rodearam-me em silêncio. Che- garam, um a um, e formaram um círculo em tôrno de mim.

— Matai-me, se quiserdes... Mas deixai-me ver minha esposa...

Houve entre eles ligeiro sussurro. Pareciam de- liberar entre si o que deveriam fazer.

Agarrei-me á vaga esperança de os enternecer, e entrei a suplicar:

— Restituí-me minha pobre companheira... Ela nunca vos desagradou, quem quer que sejais... O amor — queríamo-lo assim com todos os terrores da noite e do mistério... Queríamo-lo grande e di- vino ... Queríamo-lo mais forte que a morte... Res- tituí-me minha amada.... Ela sabia viver... Não sejais cruéis... Entregai-ma nos meus braços... v

Deixai-me ao menos procurá-la entre estas árvores... Onde a escondestes ?...

— Não tentes a Deus, meu filho... Aqui não ha árvores, nem noite, nem terrores — mas o estra- do vasio em que esteve depositado o corpo de tua santa esposa...

— Mãe! clamei. Que foi feito de Tereza ?! — Passaste a noite de joelhos junto dela, meu

filho... — Mãe! Onde está Tereza?! Minha mãe cobriu o rosto com as mãos... E

todas as pessoas de casa, que me rodeavam, puse- ram-se a soluçar alto...

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JÁ OIÇO A VOZ DE MINHA AMADA

Os aêres que perdem a vida não morrem em realidade no sen- (tádo absoluto da palavra, yias continuam a viver com toda a sua oonciênoia em outras regiões do universo. Nada no universo é criação, mas tudo 6 reprodução por materialização. Toda irradia- ção pode ser a causa de uma condensação de materia, isto 6, de uma materialização.

Gboeges Lakhousky.

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Tereza morreu! Como estas duas idéias se re- pelem uma á outra! Por mais que insistisse, não conseguiria associá-las. Pronunciei muitas vezes es- tas palavras, pronunciei-as sem as compreender. Era como se dissesse que a Vida morreu. São sílabas sem sentido que se ajuntam e se separam em grande nu- vem escura. Obscurecem-se-me no espirito, até per- derem todo o valor. Debatem-se instantes e desapa- recem submersas em explosões de luz...

Lembro-me entretanto que já significaram al- guma cousa para mim. Lembro-me que já as senti unidas, infernalmente ligadas, como um sol de oiro a um pedaço de treva.

Após uma noite de delirantes emoções, vi uma encosta batida de sol e ainda tremente do orvalho matutino, por onde subia em forma de cordão negro um préstito fúnebre... Falaram em Tereza e rom- peram a chorar — os que me rodearam...

Fugi á horrorosa visão. Corri a encerrar-me mim quarto. Estive não sei se momentos, se séculos, a olhar para a desolação das paredes. Passaram as horas e os dias ,sem que eu pudesse me dar conta a mim mesmo do que fazia e dizia. Vi retirarem-se os parentés. Vi partir minha velha mãe. Vi o sol nascer e se pôr muitas vezes, morno, desbotado, frio.,. Contei uma a uma as sombras que caiam ao entar- decer, como se dessa operação dependesse a estabi- lidade do universo...

A's vezes disparava num pranto convulsivo,

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242 AMOE IMOBTAIi

sem perceber no entanto o que me fazia chorar. B punha-me a escutar com espanto o ritmo extranho de meus soluços...

Outras vezes, eram contrações de riso espasmó- dico... Prorrompia em movimentos desvairados e entrava a repetir sózinho, infatigàvelmente, uma pa- lavra ou um retalho de frase sem sentido.

Quando comecei a dizer de mim para mim que Tereza não existia mais, que nunca mais a tornaria a ver... oh! como pintar o desespêro, a dor, a ago- nia sem nome que me penetrou na alma! Meses e meses passei a percorrer ás tontas a casa deserta, os desertos arredores — a rever as pègadas de mi- nha amada, os recantos mais cheios de sua imagem, as árvores que mais íntimas confidencias receberam do nosso amor... oh! esse tempo horrível, não o quero recordar...

Tereza muito amára a Vida. Votava-lhe culto intenso e profundo. Queria-a bela e caprichosa, mis- teriosa 6 fulgurante, sempre digna de amor e de bênçãos a despeito de tudo... Tereza muito amára a Vida.

Blasfemar da Vida fora para ela o maior dos crimes — crime por maneira horrendo, que nem si-,., quer o podia conceber. Tereza muito amara a Vidp7

E eis que minha Tereza se partira! Cheguei então a blasfemar da Vida! Ah! como

eu estava longe de lhe conhecer os inefáveis misté- rios, os supremos recursos espantosos, os arcanos augustos e altíssimos!

Blasfemei da Vida! A meus olhos, a Vida per- dera todo o encanto, despira-se de todo o brilho, de tudo o que a faz desejável e bela... Não mais a po- deria abençoar, privada que estava de seu único sen- tido para mim — o amor de minha amada!

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JA OIÇO A VOZ DE MINHA AMADA 248

E o mundo me parecia lúgubre e cego, uma como imensa fatalidade tenebrosa e má, a revolver- se eternamente no silêncio dos espaços...

Blasfemei da Vida! Para que eu viesse a sen- tir-lhe ainda a vertiginosa embriaguês, houvera mis- tér que minha esposa vivesse... Apelar, porém, para uma existência problemática e indecisa, num além inacessivel — jamais o faria. Nenhum conso- lo me fôra a esperança de um dia abraçar, no vá- cuo, a sombra de minha companheira, recordação apenas de grande amor extinto, resto imponderá- vel de sonhos apagados... Semelhantes visões, es- fumadas e longínquas, não resistiam, um instante que fôsse, ao fulgor vivido e quente do amor de Tereza. Tereza diluida no além, submersa em nu- vens. .. oh !> como tudo isso contrastava com a imagem radiante de minha amada!

Queria vê-la a meu lado qual a conhecera e amára — toda sorrisos e frêmitos de alegria. Que- ria-a terrena e deslumbrante, inundada de sol, a ex- tender-me os braços dentre a verde folhagem... Queria-a trêmula de amor e de vida, a acenar-me . sob o céu azul... Queria-a corpo e alma... Que- , ria-a divina... Que é uma alma, sem o esplendor de um corpo f

Cheguei então a blasfemar da Vida! A Vida, porém, triunfou da minha dor e do meu desespê- ro... Triunfou gloriosamente, sem que até hoje eu tenha compreendido siquer a primeira palavra do mistério inaudito. Tremo de assombro ao escrever estas linhas. Desfaleço á só idéia de procurar ex- pressões para dizer o que se passou. Tonteio de fra- se em frase, como ébrio de deslumbramento, ébrio de felicidade e de amor... Oh! que me sinto outra

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244 . AMOR IMORTAL I

vez um deus, nos braços de minha eterna compa- nheira !

Não compreendo por que vias secretas e prodi- giosas ela se desprendeu da noite profunda. Não compreendo, nem nunca o poderei compreender... Há, porém, em nosso ser uma faculdade oculta, es- tranha e altíssima, que ultrapassa todo o poder de compreensão e é incomparavelmente superior a to- dos os raciocínios... Não lhe conheço nome, nem sei se jámais alguém a nomeou. Sinto-a, contudo, dentro em mim. Sinto-a profunda e como subter- ijànèà, carregada de possibilidades tais, q|ue, se viessem á luz, destruiriam num sopro as frágeis construções de nossa razão, arrasariam o que até aqui tem servido de base ás regras do pensar, in- verteriam e aniquilariam toda a lójica humana...

A's vezes faz-se um grande e inefável silêncio em nosso sêr, abre-se dentro em nós como um verti- ginoso abismo, em cujo fundo de trevas passa num relâmpago o maravilhoso segredo da Vida... Sentí- mo-lo passar e estremecemos... Nunca sonharaifaos semelhante esplendor... Mas ei-lo que se foi, e acha- mo-nos de novo, ainda pasmados e trêmulos, á luz tíbia e bruxoleante da conciência!

Certo, em face de nossas faculdades habituais, o que aqui tento dizer parece um delirar confuse' e extravagante — Minha esposa morreu... Min! a esposa extinguiu-se... E, a despeito de tudo, mi- nha esposa vive.

Que importa, porém, proteste e se espante o vulgar discorrer dos homens? Essa é a verdade, é a minha verdade. Estremeço-a. Não a daria por to- dos os tesouros do universo.

Não escreverei mais hoje sobre a prodigiosa, a imensa, a infinita ventura em que vivo... Já oiço

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JA OIÇO A VOZ DE MINHA AMADA 245

a voz de minha amada, que se aproxima. Já respiro no ar o aroma de seu corpo. Vem toda orvalhada de mistério... Cobre-lhe o rosto um véu de lumi- nosa trama... E sôa-lhe em torno a música das esferas... Oh! vida! Oh! amor!

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SOMOS DEUSES! jV'.'W(h-

Acabo de olhar-te nos olhos, 6 Vida...

Assim falava Zaratustra.

Ela criava em tôrno uma at- mosfera de vida. Seus olhos pa- reciam tornar o próprio ar mais brilhante. Êles eram tão doces, tão belos, e tão cheios de tudo o que podemos imaginar dos céos... sua presença subjugava a tal pon- to, que não terieis achado que fosse idolatria lançar-se a gente de joelhos diante dela. (Descri- ção feita por William Crookes da aparição materializada de Katie Bang.)

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Enquanto minha esposa dorme, oculta nas dobras de não sei que velário imenso e misterioso, vou tentar dar a espessura da palavra ás cousas indiziveis que me vêem sucedendo. Procurarei re- cordar aqui a tarde maravilhosa em que meu amor ressurgiu á luz do dia, o momento divino em que minha companheira me veio enxugar as lagrimas, t dizendo: "Ví a tua dor e acorri pressurosa a con- solar-te e reerguer-te..." Servirão estas linhas de ponto de partida aos meus sonhos deliciosos... Lendo-as, enganárei a impaciência com que aguar- do todo dia a visita de minha esposa. Meditando- as, purificar-me-ei para recebê-la. Talvez que, á força dé a adorar no silêncio de minha alma, me torne cada vez mais digno de a ver e amar...

Eram passados muitos meses que Tereza me deixara. Minha dor, não ha dizê-la neste mundo, tão imensa era, tão insuportável "e acima de todo o \horrivel que se possa experimentar, nem imagi- Tiar... Estava feito uma cousa muda e fatal, que antiga impulsão obrigava a percorrer, da manhã á noite, os sitios mais cheios do amor de outrora. Não sei se padecia — sentia-me respirar e andar. Andava por vales e colinas, bosques a dentro, des- cendo, subindo, parando — andava ás tontas, como a recordar...

Foi por uma tarde radiante de sol e do tri- nar festivo da passarada. No céu divinamente azul esgarçavam-se grandes nuvens refulgentes, que

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250 AMOR IMOETAL

mais pareciam cabeleiras incendiadas, soltas ao aca- so. Dir-se-ia que invisíveis e poderosas entidades percorriam de meio a meio o espaço iluminado, sa- turando-© dos mais esquisitos perfumes. (*) A na- tureza inteira representava preparar-se para a cele- bração de algum mistério espantoso, em que o seu curso ordinário devera interromper-se diante de mais alta e augusta lei da existência universal.

Parei no alto de um outeiro, a pouco distân- cia do lugar onde pela última vez vira Tereza en- cantadoramente rosada do esplendor do sol poente.

Sentei-me numa pedra, e pus-me a olhar para as árvores mais próximas. Eram três ou quatro árvores copadas, a cuja sombra muita vez eu ha- via repousado ao lado de minha inseparavel com- panheira. E comecei-lhes a achar o mesmo aspecto de quando nos abrigavam outrora, ás horas de cal- ma, nos tempos mais encantados de nossa vida. Pareciam chamar-me brandamente com o leve agi- tar da basta ramagem. Acenavam-me com as fo- lhas, em gestos silenciosos de verde felicidade. Di- ziam-me o quer que era de mavioso e consolador. Falavam-me. Abençoavam-me.

Considerei-as atônito. Depois rompi a soluçar. Havia tanto que não chorava!

Lembrei-me de Tereza. Ví-a, diante de minr tão vivamente, que tive ímpetos de atirar-me ao chão, gritando e gemendo de saudades. Quisera espremer contra a terra o coração dilacerado... Oh Tereza! Oh minha esposa!

(*) "Nunea lhe aconteceu sentir de súbito um per- fume suave, sem saber a que atribuí-lo 1 Talvez alguém que o amou estivesse espargindo sobre sua cabeça pétalas de flores inviziveis. O amor é mais forte do que a morte." (Cartas do Além. E. Barker.)

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SOMOS DEUSES I 251

Ví-a entre as árvores, a cabeça lèyemente der- reada, a contemplar-me toda compaixão e amor. E sorria tristemente, como no aguada de me achar tão desolado...

Mas a visão persistia! Não era sòmente pura evocação do amor passado. Era mais do que ima- gem ... Era Tereza que me fitava!

Ví-a cada vez mais nítido, cada vez mais claro... Ví-a — oh! portento! — avançar para mim, e pa- rar, a pequena distância, de sentida e piedosa:

— Henrique! Era a sua voz melíflua e trêmula! Era o seu

porte, o seu olhar, as suas vestes... Era ela! Olhava-me... A luz do sol caia-lhe em cheio

na esplêndida cabeleira. A sombra de seu corpo ia morrer indecisa na folhagem... E o céu e a terra estavam inundados da sua presença!

Olhava-me nos olhos, e seu olhar de luz descia até o fundo de minha alma. Que profundo, que absorvente e fascinador estava o seu olhar! Pene- trava-me o sêr, revolvia-o, enchia-o de claridade...

Quedei imóvel, dentro de um êxtasis glorio- so, a olhar fixamente para o róseo esplendor da- quele rosto... Era o rosto de minha Tereza!

Ela fitava-me, como sentida e maguada de me Rachar tão desolado! Pitava-me, imóvel, a pouco»

passos, toda banhada de sol... E a sua sombra ia morrer confusamente na folhagem...

— Henrique! Porque não corres a abraçar- me e beijar-me?! Ha tanto tempo que não nos vemos!

^ Tereza! bradei. É cobri os olho» com as mãos, e pus-me a soluçar desesperadamente. — Es- tou só e desvairado! Enlouqueci... São os primei- ros sintomas da loucura.... Não era de esperar ou-

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252 AMOE IMORTAL

tra cousa... Tanto padeci, que seria de admirar que isto nao acontecesse • ■ •

E entrei a soluçar tão alto, que me detive es- pantado. Parecia que um côro de soluços me ro- deava. .. Calei-me aterrado. Horrorizava-me pen- par que estava perdendo a razão... Calei-me e en- colh,í-me todo, como uma criança amedrontada...

Olhei em roda. Tereza havia desaparecido! Levantei-me então vacilante, e dirigi-me para

as árvores. Nisto, porém, ouvi um ruido entre a f olhagem... E Tereza nòvamente surgiu 1

— Pelo nosso amor, Henrique... Pelo nosso amor, não te assústes... Eu não te queria espan- tar... Meditei longo tempo sobre o modo de con- vencer-te. .. Sabia que não havias de crer nos teus proprios olhos... Tinha previsto que não resisti- rias á comoção... Mas eu te amo, Henrique... Es- perei que o nosso amor te désse forças para acei- tares o tremendo mistério, para o aceitares, Henri- que, mau grado a tua razão... Procurei-te á luz do sol, para mais depressa te convencer, para mais fàcilmente te reduzir á grande realidade... Per- doa-me, Henrique... Foi o amor que me trouxe... O amor vive acima da razão... Tua razão me re- pele para a sombra e para o nada... Mas teu amor, Henrique — o nosso amor — me chama para a luz... O amor é mais forte do que a morte... Não me rejeites, Henrique... Não obedeças á ti- rania da razão... Deixa falar o amor... Vem, apálpa-me. Aqui estou qual me amaste. Sou eu mes- ma, a tua esposa, a tua amada... Vê como me agi- to á luz do sol e a minha sombra se extende pela grama... Escuta o ruido que faço na folhagem... Vem abraçar-me — e sentirás palpitar sobre o teu o jneu coração... Vem a mim, Henrique... Não te assombres... Cala os teus raciocínios... Que vale

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SOMOS DEUSES! 25S

raciocinar, quando se ama? Depende de ti, Henri- que, guardares-me a teu lado, prenderes-me para sempre a tua vida... Oh! não me lances de ti, não me faças voltar para a noite.. . Guarda-me, Hen- rique, sobre o teu coração... Que tardas, amor ?... Imagina que estou á borda de um abismo e um gesto teu pode precipitar-me para sempre...

As sombras das árvores caiam mais longas pela encosta afora. A luz do sol era de oiro vivo e trêmulo. Minha esposa parecia estremecer, con- vulsa de mêdo, e extendia-me ansiosamente as mãos, as pequeninas mãos cortadas de veias azues... Não havia duvidar — eram as mãos de Tereza, 0 corpo, a voz, o esplendor de Tereza...

Corri para ela e tomei-a nos braços. Sentei- me na relva e estreitei-a contra o coração.

— Oh! meu amor! disse chorando. Que me importa a razão, sem ti? Descansa nos meus bra- ços, que nunca te hei de perguntar o mistério in- concebível que te trouxe novamente á vida... Po- brezinha! Tão pequenina e frágil, a lutar com as forças tenebrosas do além...

Tereza fitou-me, chorando e rindo ao mesmo tempo:

— Não me fales em além, Henrique... Nem ser se ha além... Sei sómente que ha o nosso amor...

— Dizes bem, Tereza... O que chamamos rea- 1 idade e verdade nada tem que ver com a Vida e com o Amor... A certeza é um repouso e nada mais... Tais sombras não podem quebrar o ritmo da Vida... Basta que vivamos... Que nos impor- ta o segredo da Vida? Morreste. Ví-te morta. Que importa isso? Foi uma verdade. Não o é mais. Verdades, a Vida as dá, a Vida as tira — bem ha ja

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254 AMOR IMORTAL

a Vida. Mas que estou eu a ponderar, amor, quan- do te tenho a meu ladol

— E' que a despeito do que dizes, queres sa- ber por que vias ocultas tornei aos teus braços... Crês que não me sentirás bem tua — até não o adivinhares, Henrique... Entretanto...

Aqui Tereza levantou-se. Estava serena e bri- lhante, estava divina, envolta na luz do crepús- culo ... Quedou imóvel, enquanto eu a fitava com assombro . . . ri

O sol se pôs. As sombras cresceram. Aparece- ram no céu as primeiras estrelas.

Então minha amada reclinou-se sobre meu peito e murmurou num suspiro:

— Não te direi, Henrique, o meu segredo... Não to direi nunca — porque o meu mistério é o meu maior encanto... Quero que repitas hoje, den- tro da noite, o que dizias outrora á luz do sol...

Beijei-a com transporte e exclamei: — Somos deuses! Somos deuses! E o espaço pareceu iluminar-se de uma alvo-

rada desconhecida...

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PRELÚDIO DO AMOR IMORTÂL

... o amor que move o aol e as outras estrelas.

Dantb, Divina Comedia.

... o ar que se respira é o amor, que se move sobre os ventos e so- bre as vagas, pondo a terra em harmonia com tudo o que nôs sen- timos acima dela.

Shelley, Prometeu Libortado.

Page 235: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Essas linhas que aí ficaram, a julgarmos pela narrativa do velho camponês, foram escritas pou- cos momentos antes de se cerrarem para sempre aqueles olhos tão ávidos de luz e de beleza.

Uma tarde, tendo saido do escritorio, onde passava horas encerrado, Henrique dirigiu-se a passos vacilantes para o quarto em que morrera a esposa, e, aproximando-se do leito, abriu o branco velário desde muito fechado, como se esperasse en- contrá-la qual a contemplara em seus extásis, toda risonha e luminosa, para a vida e para a alegria. ,.

Sorriu de indizivel felicidade — e recostou-se para descansar.

Mandou renovar as flores das jarras, enfeitar a casa, acender as luzes, que já começava a cair a noite...

Depois reclinou tranqüilamente a cabeça e cer- rou os olhos, de tão deslumbrados que os tinha...

E eis como Henrique e Tereza realizaram, pela comunhão de duas existências que se unem para sempre, um oomo prelúdio terreno do Amor Imortal...

Page 236: Amor Imortal - J. A. Nogueira

ÍNDICE

Page 237: Amor Imortal - J. A. Nogueira

ÍNDICE

Prefácio da Editora'

Alguns juízos da crítica

Dedicatória

Estudo sôbre o Espiritualismo Moderna

"Solemnia verba"

Amor Imortal

"Dalém túmulo .. > Ail cresceu êsse amor - No estreito abraço da Sombra Os espíritos dos mortos procuram as casas em

^ que moraram Vem do Líbano, epôsa minha Não ha nada brilhante a não ser o céu

Morrer... Acabar Tudo é vaidade e aflição do espírito Os mortos são mais felizes que os vivos..

Os Sinos Misteriosos Oa Sinos Misteriosos

Uma profissão de ft

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262 AMOK IMORTAL \

Deuses Morrem? I t - Morreram jovens

Onde acaba o sonho e começa a realidade ? .., Era uma sombra trêmula e desgraçada ... Deixa-me sentir-te eterna

' Já oiço a voz de minha amada ... Somos deuses I Prelúdio do Amor Imortal

Page 239: Amor Imortal - J. A. Nogueira

WMMM

JOSÉ BURIííACH Lf -pi y a - Extraordinária novela

1 •L* mediúnica, que atesta não ~ apenas a maravilha do fenô-

>'f ^•>' 1 meno espiritista. coom as suas l0íí íi possibilidades latitudinárias,

tm " , 3 ' & «fS > - J de expressão e beleza. ■ J ''*€ Tf j "LÍDIA" 6 o depoimento

ÉWflSfoiS&r1*^ atualizado de um. Espírito que ^ ^ ^ ^i aJ viveu tempos heróicos do Ú?'"';' w*1 _i /t.'iii'i '' 'ÍP® Cristianismo cristão ou apos-

tolar. '' 11" L «tjFiffiií' <4* V ^ <• <<< M -A- história dos seus amO- è' ' /tj* I'es> a caminhar intrêpidamen-

F » ^ te para o circo romano, cheia « *1 , *2 de lances emocionais, é o que í jwll?' W&Êt ' '3 fôrma a tela artística, bem de- ■ 1 lineada na técnica, e ao mes- '' K ''i mc) temP0 pródiga de ensina- fj I'ilil jfe ^ .. mentos doutrinários.

^ ) No fim do volume, o lei- W í£ àWL ' tor encontra o sumário das K Ia kJm ffi Éi ihyn sessões que prolongaram e am-

, j/SOb !m WBíBr St m JR, Jal. bientaram a captação da obra, ú-u-xw; ^ - d® sorte ^ fe hab

iilitam a

fixar a ua origem, transcon- dentalmente edificante e consoladora. — Broch. 5$000. — Enca- dernado 7$000.

MEMÓRIAS DE UMA ALMA E' a historia romantizada de uma autêntica inoarnação na

terra, Ê o próprio personagem que vem biografar-se por via mediú-

hija, e oferecer ao leitor extraordinarias páginas de pura beleza emocional.

Através das narrativas simplesmente encadeadas, sem artifi- cies de ficção literária, os atores se enrontram e se repelem natu- ralmente, por darem de conjunto' a razão das próvas coletivas, tanto quanto da Justiça Divina, que as determina e aciona.

Paixões bem humanas, impulsos incoerciveis, amor e ódio, crime e perdão, aí se caraterizam e deixam no leitor a grata im- pressão de uma leitura não apenas diversiva mas instrutiva.

Isto sem falar da fonte originária, como atestado inconfun- divel da extensão e capacidade dos fenômenos mediúnicos, em nos darem obras dêste teor' artístico e filosófico-doutrinario.

Volume brochado 5$000 — encadernado 7$000

Page 240: Amor Imortal - J. A. Nogueira

NO LIMIAR DO ETÉREO

Este o titulo de um interessantíssimo volume em que o Sr. Artur Findlay resumiu as experiências a que durante muitos anos teve ensejo de proceder, no campo do Espiritismo, ou do psi- quismo, para usar de uma palavra que sôa melhor ao ouvido dos cientistas.

Foram de tal natureza essas experiências e se rèalizarám sob tão rigoroso contrôle, que levaram o Senhor Findlay do mais com- pleto cepticismo á crença inabalavel na sobrevivência do sêr o nr. realidade de um outro plano de existência, onde aqueles que pas- saram pela terra e a que chamamos mortos, continuam a viver em condições semelhantes, sob vários aspectos, ás do viver terreno.

O fenômeno da V<üz Direta, porventura o mais probante de todos os'que se produzem no campo do espiritualismo experimen- tal, foi o com que êle mais se ocupou, tendo levado suas pesqui- zas a um ponto ainda não atingido antes por nenhum outro inves- tigador, porquanto dado lhe foi obter minudentes informações acêrca do mecanismo desse fenômeno, isto é, do modo por que procedem os Espíritos para falar diretamente aos homens, sem que o médium articule o mais ligeiro som.

Não é sómente isso, porém, o que imprime excecional valor ao volume de ARTUR FINDLAY e o torna de interêsse máximo para quantos sinceramente desejam conhecer a verdade que se contém na fenomcnologia espírita e se mostrem capazes de apre- ciá-la com imparcialidade e não sob o guante de idéias preconce- bidas, nem com os antolhos dos preconceitos sectaristas.

Realça-lhe a excelência o estudo aprofundado que nos dois primeiros capítulos o autor faz dessa coisa a que se chama Éter,, para chegar á demonstração de que não ha no universo es- paço algum que não se ache pleno dêle e de que sôbre êle a atuar por toda parte está o que denominamos Mente. Esse estudo o con- duziu a fazer sentir de modo claro e insofismável que isso a qv se dá o nome de matéria, dotada de solidez, de impenetrabilid^cie, etc., não existe, porque tudo é apenas uma questão de ordeji do vibrações, pelo que as coisas, no mundo etéreo, dão aos que o ha- bitam sensação idêntica á que nos proporcionam as do nosso mundo.

Em suma, NO LIMIAR DO ETÉREO é uma obra de cuja importância não se pode dizer em meia dúzia de linhas, mas que ressaltam esplendidamente a todos aqueles que tenham olhos de ver, para meditar com inteligência o assunto que ela versa, o mais relevante de todos os que no momento atual possam preocupar os verdadeiros pensadores.

Broch. 6(000 — Ene., 8$000

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A. WYLM

ROSÁRIO DE CORAL

O autor deste livro, Dr. A. Wylm, médico e neurologista, apresentá-nos, em fina tes- situra romântico-literária, um caso sensacional de duas criaturas que se apro- ximain, se conhecem e se apaixonam em sonho, gra- ças ao achado eventual de um colar abençoado polo Papa.

Homem de ciência, vê-se que o autor colima, principalmente, a tése cien- tífica, esfrolando todas as hipóteses materialistas, mas sem descuidar da par- te sentimenal, conduzida com muita habilidade e fulgurância imaginativas, de maneira à prender o lei- tor, da primeira á última página.

De resto, ha uma in- teressante questão intercor- rentemente esboçada neste livro, qual a da política clerical da França, após a , quóda do 2.° império.

Esta só circunstância bastaria para encarecer a leitura da ^obra como de plena atualidade no Brasil, em face da anquilosto-

i. iase católica, que ora nos ameaça os fóros da mais sagrada dasíí liberdades, — a da conciência.

As personagens são nítidas, vivas, bem estudadas e movimen- tadas num ambiente de humaníssima realidade.

O ROSÁRIO DE OORAL é, em suma, um romance psíquieo únioo no seu gênero.

Broch. 4$000 — Ene. 6$000. — Porte mais 500 rs. por volume.

Os pedidos devem ser feitos por meio de chégue, vale postal, carta registrada ou ordem ao Administrador da Livraria da Federação.

Avenida Passos, SO — Bio de Janeiro.

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HERCULANUM

0$ livros do Conde de Hochester, todos de fonte mediúnica, constituem um easo único na literatura espirita, assíís copiosa.

Vasados nos moldes clássicos da escola romântica do último quartel do século XIX, êles tiveram sucessivamente uma consagração de repetidas edições, que se espalharam, traduzidas em várias linguas.

Entre nós quem não conhece a "VINGANÇA DO JUDEU"? E contudo, êste não é sinão um anél da luminosa cadciú que

liga um grupo de almas, através do vários estágios na Terra. De sorte que, além do ensino doutrinário, tem o Imtor o pano-

rama histórico-social de uma época. Em "FABAO DE MERNÊFTA", por exemplo, é o velho

Egito que nos fala das suas múmias, dos seus mistérios, das suas pirâmides-. Na "VINGANÇA DO JUDEU", surge-nos o quadro da sociedade européia com a chaga da sua civilização de precon- ceitos de raça, classe ou fortuna.

E assim, em "HERCULANUM", vamos encontrar o cenário da Roma dos Césares na plenitude da sua hegemonia política, mas, também já minada pelo evangelismo cristão. Ocaso <lo Jú- piter, aurora de Cristo1 Embate fragoroso de duas civilizações — tumulo e berço. Uma que se precipita do capitólio, outra que sóbe das catacumbas.

Há páginas de colorido vivo e de emotividade extraordinária, quais sejam as que traçam' a vesuviana catástrofe quo soterrou as duas lindas cidades mediterrâneas para um sono de vinte séculos.

Na catequese cristã, o leitor de "HERCULiANUM" encontra um sabor especial, aproximando o comparando analogias concer- nentes á um Idealismo substancial e único.

E êsse sabor se refina quando encontra nessas páginas os mesmos personagens das outras obras de Rochester, para lhes fazer a psicologia e vêr quanto é dificil a ressurreição do espirito na

i trama das vidas sucessivas. Edição e tradução caprichadas.

* , Broch. 8(000 — Ene. 10*000 ,

Oa pedidos devem ser feitos por meio de cheque, vale postal, caria registrada ou ordem ao Administrador ãa Livraria ria Fe- deração — AVENIDA PASSOS SO — Mio de Janeiro.

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JULIO CESAR LEAL

A CASA DE DEUS

(Romance);

Os leitores dêste livro apreciarão um in- teressante trabalho. Sejam êles ateus, materia- listas, positivistas ou espiritualistas, hão de re- conhecer, ao lerem o presente fruto de sctafc lucubrações, que, assim como os que teem bona órgãos visuais vêem ao longe, muito ao longe, o que outros mal enxergam, assim também os que teem o espirito iluminado pelo esplendor

da verdade penetram nos fenômenos, d© uni* verso, nas causas primárias e conseqüentes da natureza e conhecem, tão perfeitamente como aqueles, tudo quanto a inteligência concebe.

E' necessário abrir horizontes novos ás vis- tas do espírito; rasgar o tênue véu que nos oculta as maravilhas da criação 'r viajar no es- paço infinito dos mundos e do éter á seme- lhança dos errantes luminosos, que não en- contram paralelos em sua marcha vertiginosa

se infinita.

* Br. 4|000 — ene. 6$000

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A BARQUEIRA DO JÚCAR

Primorosa novela. Breve, mas sumamente empolgante é esta novela mediúnica, onde os episódica, urdindo um en- trecho de intensa dramaticidade, se entrelaçam por forma tão surpreendente, que o seu desfêeho não pode o leitor imaginar qual venha a ser, mesmo quando já bem proximo dele se ache.

A Sarqueira âo Júcar 6 uma donzela que, mantendo absoluta a pureza de suit alma, entre inimigos conluiados para perdê-la, serve de instrumento â ação do Espirito de seu proprio pai, empenhado, de sua parte, em arrancar ao "inferno" de uma canciência atribulada a criatura que mais cara lhe fôra na terra e que mais lhe ferira e amargurara o coração, e em subtrair ás garras da mais abjeta materia- lidade, fazendo-as passar pelo "inferno" dos remorsos que geram o arrependimento salvador, outras criaturas, sócias daquela.

Assim, pela sua substância e pela sua finalidade, esta novela é uma notável obra de educação moral, ao mesmo tempo que, levantando um pouco do véu que nos encobre o Além, projeta um raio de luz da verdade sôbre os efeitos inelutaveis das nossa* ações terrenas, boas ou más. Trad, de Guillon Ribeiro.

Broch. 5|000 — Ene. 71000

'/ •

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,— Bio de Janeiro.

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DANIEL SUAKEZ ARTAZU'

MARIETA (Marieta e Estréia)

,, •* Dahi w-Su/i'nCzAfmiii

Muito recomendamos este primoroso livro, o qual nos ensina, como manter serena a inteligên-

cia quando o coração é despedaçado1, e a dominar com a ra-

Aoi^Aj oe DuAJ ExycNciAj zão as mais afliti. vas situações com o fim de converter o martírio em gôzo, de evitar o desalento, por maior que seja a desgraça; pois, com- parando-o, se cons- tata que ha outros que sofrem mais. Ensina a gravar em nossa conciência a necessidade do in- fortúnio íece b i d o com resignação para se alcançar a felici- dade com glória, e,

finalmente, a focalizar a realidade da vida. E' o ,ensino moral que se desprende das páginas deste precioso livro intitulado Marieta.

Br. 6$000— Ene. 8$000

8

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• fc •.

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COLEÇÃO BOMANTICA ANTOINETTE BOTTRDIN

MEMÓRIAS DA LOUCURA Livro de alto relêvo doutrinário, quiçá único em sua feiçâç

literária. ANTOINETTE BOURDIN, espírito ágil quão fecundo, romanceando um caso de ob- sessão por divulgar preciosos ensinamentos que a prática es- pírita vem confirmando, pro- duziu uma obra sem similar no gênero.

A provação coletiva de toda uma família, dcsdobra-

> se das famosas e poéticas margens do lago de Constan- ça para Marselha.

São quadros e costumes dos meiadós do século passa- do, hoje algo diluidos nas bru- mas do tempo, mas por isso mesmo de sabor histórico e perfumados da poesia do pas- sado. Em ser a protagonista noiva de engenheiro e irmã de médico, jogam êstes com o cabedal científico de suas es- pecialidades, para melhor re- alçar a inanidade da ciência

materialista em face das enfermidades da alma. Os ascendentes da prova que começam inopinos pela morte trágica de uma mãe, pela trombose cerebral e paralisia de um pai, para culminarem na loucura da filha, dão ensejo a páginas fortemente emotivas e > instrutivas.

f|| Assim, igualmente, realidades e conquistas posteriores como , ^ o vapor, a eletricidade, a navegação aérea, lá se encontram vir- -

tualmento esboçadas por intuição. E o magnetismo universal tratado em especializações flu^ii-

cas de carácter prático, também oferece cabedal precioso á eluci- dação do assunto. E tudo isso entretecido e irisado num estilo magnífico de simplicidade.

A tradução é de M. Quintão, que já nos deu do mesmo autor o Entre Dois Mundos, que teve a melhor aceitação.

Broch. 4|000 — Ene. 6$000 '

Os pedidos devem ser feitos por meio cheque, vale postal, carta registrada ou ordem ao Administrador da Livraria da Fe- . deração Espirita Brasileira, Avenãa Passos 30 — Rio de Janeiro.

Porte de SOO réis por volume ■

Page 247: Amor Imortal - J. A. Nogueira
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COLEÇÃO XOMANTICA ANALIA SOLER

FRAGMENTOS DAS MEMÓRIAS DO

PADRE GERMANO

Tradução de ,

M . Q U I N T Ã O

Obra altamente filosófica, ins- trutiva e moral. São excer- tos, espécie de contos, lances anedótieoa de uma vida espi- ritual, que falam á alma pela beleza da descrição e pela profundeza dos ensinamentos.

Espécie de contas de um rosário, os capítulos do livro, depois de desfilados um a um, apresntam-nos a bio- grafia de um justo, cheia das peripécias da jornada hu- mana .

Broch. 6$000 —r Ene. 8$000

MANUEL ARX.0

O CLAUSTRO E' um romance realista, que grava a côres impressionantes,

cênas da vida eclesiástica. O leitor principia a interessar-se pela obra logo ás primeiras

páginas, de uma realidade empolgante, e que representa fátos ver- dadeiros, narrados com a severidade de quem castiga e cqjn o primor de quem burila.

O Claustro, só por si, seria bastante para dar nome a MA- NUEL ARAO, o qual soube fugir a todas as convenções, de modo a não fugir á verdade; libertou-se de preconceitos para ser um escritor fiél e conseguiu o prodígio de juntar fatos vividos com o encanto da» narrativas de fantasia.

Broch. 4$000 — Ene. 6$000 Os peãiãos devem ser feitos por meio de chegue, vale postal,

carta registrada ou ordem ao Administrador da Livraria ãa Fe- deração Espírita Brasileira, Avenida Passos, SO — Mio de Janeiro.

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LEON DENIS O PROBLEMA DO SER, DO DESTINO

E DA DOR Uma das mais perfeitas

obras de Denis. Nesta, o MÉ problema do Ser, do Desti-

no e da Dôr, é ventilado com clareza, demonstrando o apreciado escritor e após- tolo a sua tese com provas irrefragaveis e uma docu- mentação vastíssima. No li- vro não se sabe o que mais admirar, se a concisão da lójica, a beleza do estilo, a profundidade doé conceitos, ou a farta mésse dos docu- mentos expostos. A doutri-

ítriTlim f\rklfc na espiritista tem nesse UBIIN E DaI/UR. trabalho uma de suas mais PU brilhantes jóias.

Preço (papel assetina- do) broch. 8$000 — enca- dernado 10$000.

bB™oE toDÔk

UptTiwfe- rAn^EipWU BnalUrs te, tvasiq* pí««*v ** no tra JJ^*WO =—— «ura.

ELIAS SAUVAGB MIRETA

Elias Sauvage nos revela neste romance a superiori- dade dos sentimentos de duaa criaturas perfeitamente puras, que se amaram e confundiram seus sentimentos espiritua- listas desde o primeiro instante em que se encontraram, ven- cendo mais tarde o reacionarismo de uma criatura extre- mamente materialista. o Romance cheio de cenas sentimentais, em estilo fluen- te; nele ver-se-á que não ha penalidades eternas e que na justiça divina ha muita misericórdia.

O autor, com essa obra, lança a mãos cheias a mais püra semente da nossa verdadeira doutrina.

Broch. 4$000 — Ene. 6$000

Os pedidos devem ser feitos por meio ãe chegue, vale postal carta registrada ou ordem ao Administrador da Li- vraria da Federação Espírita Brasileira, Avenida Passos, 30 — Mo de Janeiro.

Porte de B00 réis por volume.

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COLEÇÃO ROMÂNTICA

PAUL BODIES

A GRANJA DO SILÊNCIO (Tradução de GUILLON RIBEIRO)

, O simples fato de ter sido prefaciado por GABRIEL DE- LANNE, que, depois de LEON DENIS, foi o mais destacado con- tinuador da obra de ALAN KARDEC, a cujos trabalhos deu, sob

alguns dos seus principais

EffCffflWSd tempo só fará mais e mais inegável dêste romance pre-

^ ^nlll ' ^ ^ C0in0 ^le 'a'a

"Estou absolutamente

lÍfp jf Í*11 ja do Silêncio encantará, os

^ ^ a l11®' tecimentos relatados, donde resulta um magnífico apa-

nliatlo da doutrina Espirita, e, muito particularmente, do ensina das vida sucessivas, apanhado que se gravará na memória de todos os leitores." u

Esta apreciação, bastante valiosa pela sua procedência, dis- pensa quaesquer outros eneômios que recomendem ao aprêço dos leitores brasileiros A Granja âo Silêncio, cuja publicação em fran- cês alcançou êxito não inferior ao de Seinearnaâo, do Dr. Lucien Graux, que, entro nós, é, no seu gênero, uma das obras mais og- timadas e procuradas. Broch. 4$000 — Ene. 6$000

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Page 251: Amor Imortal - J. A. Nogueira

NA SOMBRA E NA LUZ

DO CALVARIO AO INFINITO

REDENÇÃO

Oonstituem ±r6a. novelas1 de subido valor literário, terapera- * das no, cadinho mediúnico

"/ X >>~ /VgCT©n'|JucC

»/ / /*/

pelo gênio imortal dé * »

"iPTOR HUGO , «>

« mersê das faculdades

senhofita ZliDA GAMA

I (emotividade e maior ensina- monto, decalcadas na lei da

[WI1 | | TqjP um signo de eternidade, um

'ril esperança, que transcendem Hn/TlB I !n n i rt B 85 "'iserias' terrenas para \fi.\QM li I 1 v j j I W os planos cterais, onde se

iWMMHnMli KSaEw^SBmlifl conjugam e completam os

' J Kl 1 Fatalidade de nasciraen- oitnjtOTMíwfmuf» lllllllpÉisliljll | to, preconceitos de raça, , m 6dios inatos, catástrofes po- •-

lllllUUnllIlll lítioas, tudo isso que faz o tormento e a ilusória felici- •dade do mundo, perpassa nesta obra, cujos personagens vivem, na trama da ficção, como padrões indeléveis, inconfundíveis.

% Mas, a melhor apologia destas obras é o seu número de edi- ções exgotadâs. *

REDENÇÃO Novela mediúnica

Heloísa consorciando-se ao rico*astelão Gastão Dusmenil, dele se separa devido á perseguição de um hindú' de nome Ariel, servo de absoluta confiança do seu esposo.

Ariel, não podendo conter o seu amor por Heloísa, ê sendo pressentido na intenção de ^latar seu amo, fala-lhe de um dogma

Page 252: Amor Imortal - J. A. Nogueira

do Oriente sôère as .translnigiações das almas bu díi metempsicose, que ainda sèrá reconhecida por toda a humanidade terrena e que

. s6 êle explica lúcidajnente; pois que-o amôr .e o 6dio se radtóam nas alihas, por muitos sâculps ás vezes, até quç este seja por aquele suplantado. «

'O hindú confessa que jamai^ se táíido extinguido as Recor- dações da eternidade ttanscorrida, reconhece em Heloisa, sua es- posa, riaviai,. quand^ em vida, jnterior fôra-' ména^ça de Persé-

' polis l-' , . . Após a morte trágica d%. Ariel, fíastão procura reconciliar-se

* com a eápôSa, 6scla«s<téndo-se então serem vitimas de acerba pro-, vação. . . . ''i."..- ^ ^

NA SOMBRA SÁ E NA- LUZ

' , A* pena rútila do* seu inspirador, o grande Vitor Hugo, aí traceja páginas de íuperior humanismo, por demonstrar a justiça Divina; mercê das Vidas sucessivas, que na esponja do tempo e eo travo das provas humanas, "íunde to<|os os ódios e preconceitos _de raças, de povos, de famílias. _ , *

Agora que parece reacender-se a velha hostilidade franco-ger- mânica, ameaçando a paz do mundo, a leitura de Na Sombra p na Luz rasga ao nosso Espírito um clarão de benéficas esperanças e consolações. » ! ''

Neste romance ha lances de .grande emotividade e alta psico- logia, que indicam à técnica perfeita e a maravilhosa facundia dò - s*eu genial inspirador: ' '

Ha panoramas do mundo sideral,1 de uma beleza e sabor inédi- • tos. Impecável no que se refere á feição doutrinária, é, finalmente

um livro que deleita ç instrue, deixando-nos nalma emoções e qua- dros imperecíveis. r I

DO CAL VARIO ÁO INFINITO feroch. 8$000 ene. 10$000 j NA SOMBRA E NÃ LUZ t " 6$000 " SÍOOOV^ REDENÇÃO ' ! "" 6|000 "> 8#000*

Porte 1$000.

•' Os pedido* devem ser feitos por meio de cheque, vale postal carta registrada ou ordem ao, Administrador da Livraria da Fe- deração— AVENIDA- PASSOS 30 Bio de.Janeiro.

> Porte de SOO réis poç volume.

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Page 253: Amor Imortal - J. A. Nogueira

OBRAS DO AUTOR

"SONHO DE SCIPIÂO", de Cieero, trad, e eomentariu (exgotado).

"PAIS DE OUEO E< ESMERALDA", romance sociológico brasileiro.

"SONHO DE GIGANTEestudos nacionais.

" ORGANIZAÇÃO DA DEMOCRAClf REPRESENTA- . TIVA".

"ASPECTOS DE UM IDEAL JURÍDICO".

Page 254: Amor Imortal - J. A. Nogueira

AMOR IMORTAL

Narrativas de uma dolorosa iniciação nos mistérios da morte e do além.

*

Page 255: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Fernando de Lacerda

DO PAÍS DA LUZ

Os quatro volumes são constituídos por mensagens de célebres escritores, inclusive dos principes da literatura portuguesa, desde An- tonio Vieira e Almeida Garret a Latino Coe- lho, Oliveira Martins, João de Deus, Eça de Queiroz.

Em cada uma dessas mensagens ha a de- monstração posi- tiva da sua autentici- dade, pelo flagrante do estilo inconfundível que foi o traço carate- ristico de cada um des- ses escritores.

Mesmo sem adotar as idéias espiritas, ne- nhum leitor desses vo- lumes deixará de sen- tir-se penetrado da força convincente, da evidência dessas mani- festações, testemunho e prova de que o Espi- rito prossegue a vida inteligente e interrom- pida na Terra.

4 VOLUMES

Obra completa

Ènc 20$000

Page 256: Amor Imortal - J. A. Nogueira

Coleção Romantica ■mi mu mui J. A. Nogueira — Amor Imortal br. 6|000 Vitor Hugo — Na Sombra e na Luz br. 6$000

— Redenção br. 6$000 — Do Calvario ao Infinito ... br. 8$000

Suarez Artazu — Marieta br. 6$000 Arruda Lanza — Espírito das Trevas br. 6|()00

— Beijo da Morta br. 4|()00 Antoinette Bonrdin — Meçiorias da Loucura br. 4|000 A. Wiim — Rosário de Coral br. 4$000 Paul Bodier — A Granja do Silencio br. 4$()00 Manoel Arão —O Claustro br. 4$0()0 José Sunrinaeh — Memórias de uma Alma . br. 5$000

— Lidia br. 5$00ü Elias Souvage — Mireta br. 4$000 P. Colavida — Barqueira do Jucar br. 5$000 Amalia Soler — Memórias do Padre Ger-

mano br. G$000 Antonio Lima — Caminho do Abismo br. 4$000

— Senda de Espinhos br. 4$0()0 — Estrada de Damasco br. 4$000

Lueien Glaus: — Reincarnado br. 5$000 J. W. Rochester :— Vingança do Judsu br. 8$000

— Herculanum br. 8$000 Dr. Carlos Imbassahy — Os Menezes br. 4$000 Dra. Amelia Cardia — Visionários br. 4$000 Julio Cesar Leal — Casa de Deus br. 4|000

O volume em ótima encadernação mais 2$000

Os pedidos d ovem ser feitos por vieio de cheque, vale

postal, carta registrada ou ordem ao Administrador da

LIVRARIA EDITORA DA FEDERAÇÃO

Avenida Passos, 30 Rio de Janeiro

Porte $500 rs. por volume.