agências de emprego

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AGÊNCIAS DE EMPREGO. Princípio da não mercantilização do trabalho. Atividade de recrutamento destinada a terceiro. Custo da atividade de recrutamento suportada indevidamente pelo trabalhador. Alberto Emiliano de Oliveira Neto 1 A atividade de recrutamento realizada por agências de emprego, quando custeada pelo trabalhador, constitui grave violação ao princípio da não mercantilização do trabalho além de indevido gravame ao trabalhador que assume o encargo financeiro por serviço prestado em benefício do empregador. Por assumir os riscos da atividade econômica (CLT, artigo 2º), é de responsabilidade do empregador o processo de recrutamento e seleção dos trabalhadores. Em razão de seu valor social o trabalho é objeto de tutela especial por normas de ordem pública, isto significando que a liberdade de contratar, nesta matéria, é restrita, não sendo autorizado aos particulares negociar o conteúdo mínimo “indisponível” dos direitos trabalhistas, assim entendido como aquele que, de acordo com princípios constitucionais e a legislação própria, preserve a condição humana do trabalhador. Quer dizer, o Estado limita a autonomia da vontade para 1 Procurador do Trabalho. Mestre em Direito pela PUC-SP. 1

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Page 1: Agências de emprego

AGÊNCIAS DE EMPREGO. Princípio da não mercantilização do trabalho.

Atividade de recrutamento destinada a terceiro. Custo da atividade de

recrutamento suportada indevidamente pelo trabalhador.

Alberto Emiliano de Oliveira Neto1

A atividade de recrutamento realizada por agências de emprego,

quando custeada pelo trabalhador, constitui grave violação ao princípio da não

mercantilização do trabalho além de indevido gravame ao trabalhador que assume o

encargo financeiro por serviço prestado em benefício do empregador. Por assumir

os riscos da atividade econômica (CLT, artigo 2º), é de responsabilidade do

empregador o processo de recrutamento e seleção dos trabalhadores.

Em razão de seu valor social o trabalho é objeto de tutela especial

por normas de ordem pública, isto significando que a liberdade de contratar, nesta

matéria, é restrita, não sendo autorizado aos particulares negociar o conteúdo

mínimo “indisponível” dos direitos trabalhistas, assim entendido como aquele que, de

acordo com princípios constitucionais e a legislação própria, preserve a condição

humana do trabalhador. Quer dizer, o Estado limita a autonomia da vontade para

preservar o princípio da dignidade da pessoa humana do trabalhador.

O direito social ao trabalho é incompatível com condutas que

dificultem o acesso pelo trabalhador ao mercado de trabalho. O trabalhador não

pode ser onerado economicamente para exercer dessa garantia constitucional (CF,

artigo 6º).

O Tratado de Versalhes, documento que é o marco da

internacionalização do Direito do Trabalho, estabeleceu em seu art. 427 o princípio

fundamental segundo o qual “o trabalho não há de ser considerado como

mercadoria ou artigo de comércio”. Este postulado foi incorporado posteriormente

1 Procurador do Trabalho. Mestre em Direito pela PUC-SP.

1

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pela Organização Internacional do Trabalho através da Declaração da Filadélfia,

cujo anexo estabelece:

A Conferência reafirma os princípios fundamentais sobre os quais repousa a Organização, principalmente os seguintes:a) o trabalho não é uma mercadoria;

O postulado acima mencionado significa que o trabalho não pode

ser tratado como um bem meramente econômico. Isto é, há de ser observado um

conteúdo mínimo de limitações à alienação do trabalho, na medida em que se

reconhece que as transações entre o capitalista e o trabalhador não podem afastar

padrões mínimos que assegurem a dignidade da pessoa humana.

Além de integrar o ordenamento jurídico pátrio como norma

supralegal, o princípio da não mercantilização do trabalho foi plenamente

incorporado pela Constituição de 1988. A Carta Magna prescreve que a República

Federativa do Brasil tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, estabelecendo, no seu Título II,

Capítulo II, os direitos sociais, dentre os quais se destacam os direitos dos

trabalhadores urbanos e rurais, merecendo relevo o direito à relação de emprego.

Por seu turno, a Ordem Econômica e Financeira, no Título VII, fundada na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, possui como princípio a busca

do pleno emprego (CF, artigos 1º, incisos III e IV, 7º, caput e inciso I, e 170, caput e

inciso VIII).

A ordem jurídica vigente, portanto, repele a possibilidade de se

admitir como mercadoria, bem comerciável, moeda de troca para aquisição de

produtos e/ou serviços o valor social trabalho, cujo conteúdo se conecta com a

dignidade da pessoa humana. E isso sob pena de restar ferida esta última quando

aquele valor social é inserido como mercadoria, moeda de troca. Não custa lembrar,

que a ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-

estar e a justiça social (CF, artigo 193).

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Page 3: Agências de emprego

Muitas agências de emprego auferem seus lucros recrutamento e

selecionado trabalhadores que serão contratados por empresas, sendo que aos

trabalhadores é imposto o custo de tal operação. Os trabalhadores que se

submetem a esta condição, certamente premidos pela necessidade urgente e muitas

vezes desesperadora de subsistência, estão se vendo obrigados a onerar-se

economicamente para poder exercer um direito social constitucionalmente

assegurado.

Portanto, a comercializando do “trabalho alheio” se choca

frontalmente com todos os princípios constitucionais acima referidos, em especial o

de proteção à dignidade do trabalhador e do trabalho como valor social. Ao admitir-

se como lícita tal conduta, estar-se-ia permitindo, por via indireta, repassar ao

empregado os custos do processo de recrutamento e seleção de trabalhadores,

certamente inerentes à atividade econômica e, portanto, a ser suportados pelo

empregador e jamais pelo trabalhador.

Analogicamente, as empresas de trabalho temporário (Lei n.

6.019/74, artigo 18) não podem impor valores a seus empregados para encaminhá-

los ao mercado de trabalho:

Art. 18 - É vedado à empresa do trabalho temporário cobrar do trabalhador qualquer importância, mesmo a título de mediação, podendo apenas efetuar os descontos previstos em Lei.

A esse respeito, merece destaque a Convenção 181 da OIT que

regula a atividade das agências privadas de emprego, cujo artigo 7º estabelece:

Artigo 7º 1 — As agências de emprego privadas não devem impor aos trabalhadores, directa ou indirectamente, no todo ou em parte, o pagamento de honorários ou outros encargos.

A Convenção n. 181 da OIT representa, pois, efetivação do princípio

da não mercantilização do trabalho. Fica patente também que é vedada a imposição

“indireta” de encargos ou honorários.

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Page 4: Agências de emprego

Observe-se que não se pretende impedir ou extinguir a atividade

econômica de empresas que prestam serviços de recrutamento, preparação,

treinamento, encaminhamento ao mercado de trabalho, headhunter, etc., mas

apenas disciplinar tal atividade aos princípios constitucionais e à ordem jurídica

trabalhista. Obviamente as agências poderão continuar a exercer sua atividade,

mas atribuindo o custo do serviço ao empregador, responsável pelos custos do

recrutamento, como preconiza a OIT.

Alerta-se que a não ratificação da Convenção n. 181 da OIT pelo

Governo Brasileiro não atua como obstáculo à sua aplicação como fonte subsidiária

do direito do trabalho, em virtude da possibilidade de aplicação do direito comparado

na esteira do vazio legislativo, conforme autoriza claramente o art. 8º da CLT:

Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

A aplicação das convenções da OIT pela Justiça do Trabalho na

hipótese de vazio legislativo, com fundamento no art. 8º. da CLT, é entendimento

respaldado pela 1ª. Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho,

realizada em 23.11.2007:

3. FONTES DO DIREITO – NORMAS INTERNACIONAIS. I – FONTES DO DIREITO DO TRABALHO. DIREITO COMPARADO. CONVENÇÕES DA OIT NÃO RATIFICADAS PELO BRASIL. O Direito Comparado, segundo o art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, é fonte subsidiária do Direito do Trabalho. Assim, as Convenções da Organização Internacional do Trabalho não ratificadas pelo Brasil podem ser aplicadas como fontes do direito do trabalho, caso não haja norma de direito interno pátrio regulando a matéria. II – FONTES DO DIREITO DO TRABALHO. DIREITO COMPARADO. CONVENÇÕES E RECOMENDAÇÕES DA OIT. O uso das normas internacionais, emanadas da Organização Internacional do Trabalho, constitui-se em importante ferramenta de efetivação do Direito Social e não se restringe à aplicação direta das Convenções ratificadas pelo país. As demais normas da OIT, como as Convenções não ratificadas e as Recomendações, assim como os relatórios dos seus peritos, devem servir como fonte de interpretação da lei nacional e como referência a reforçar decisões judiciais baseadas na legislação doméstica.

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Page 5: Agências de emprego

Da mesma forma, cumpre ressaltar que a Declaração da OIT sobre

os princípios e direitos fundamentais no trabalho e seu seguimento, adotada durante

a Conferência Internacional do Trabalho na octogésima sexta reunião datada de

18/06/98, em seu artigo 1º, estabelece que ao incorporar-se livremente à OIT, todos

os Membros aceitaram os princípios e direitos enunciados em sua Constituição e na

Declaração de Filadélfia, e se comprometeram a esforçar-se para atingir os objetivos

gerais da Organização com o melhor de seus recursos e de acordo com suas

condições específicas; bem com que, ainda que não tenham ratificado as

Convenções, têm um compromisso derivado do simples fato de pertencer à

Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade

com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto

dessas Convenções.

Em conclusão, denuncia-se a violação aos direitos fundamentais do

trabalhador a conduta praticada por agências de emprego que impõem os custos do

recrutamento ao trabalhador. Tal conduta, como demonstrado, viola o princípio da

não mercantilização do trabalho, bem como o princípio da dignidade da pessoa

humana, razão pela qual deve ser refutada pelos operadores do direito.

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