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ENTREVISTA Ricardo Abramovay Por Cláudia Piche Fotos Érico Hiller 64 Ideia Sustentável SETEMBRO 2011

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Entrevista com Ricardo Abramovay para a revista Ideia Sustentável em setembro de 2011.

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ENTREVISTARicardo AbramovayPor Cláudia PicheFotos Érico Hiller

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A era da inovação e do

limiteProfessor titular do Depar-

tamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabi-lidade da Universidade de

São Paulo (FEA/USP), Ricardo Abramovay tem um extenso currículo acadêmico no Brasil e na França. Seu programa de pes-quisa apoia-se, teo ri ca men te, nas princi-pais correntes con tem po râ neas da So cio-lo gia Econômica, com ênfase em quatro temas básicos: biocombustíveis, respon-sabilidade so cial em pre sa rial, microfinan-ças e desenvolvimento ter ri to rial. Não por acaso, todos ligados à sustentabilidade.

O cu rio so é que Abramovay envere-dou por esse caminho justamente por conta de uma certa “revolta” com as Ciên-cias Sociais. “Com exceção da Antropolo-gia Cultural, em todas as outras áreas — So cio lo gia, Psicologia, Economia, Gestão — o conhecimento cien tí fi co se consolida e se legitima à medida que ele se separa e se emancipa da natureza”, diz.

De outro lado, o pesquisador — sem-pre vinculado aos movimentos sociais, em es pe cial ligados ao campo e à agri-cultura fa mi liar — chegou a uma consta-tação. “Sobretudo naqueles com caráter de classe muito marcado, há uma fortís-sima propensão a fazer com que suas causas mais nobres e universais se ames-quinhem e se transformem em reivindi-cações ‘pa ro quiais’, quase corporativas.”

Felizmente, essa decepção o impul-sionou a um novo olhar. “Claro que cada segmento so cial pensa em seu próprio interesse. Mas, ao abordar as coisas sob a ótica da relação entre so cie da de e na-tureza, consegue-se ultrapassar o localis-mo das mobilizações sociais con tem po râ-neas. E isso nos convida ime dia ta men te a colocar as coisas também sob a ótica da relação entre economia e ética.”

O leitor de Ideia Sustentável há de concordar: o ponto de partida não po-deria ser mais instigante para uma longa conversa sobre as reflexões de Abramo-vay, compiladas na entrevista a seguir.

Ideia Sustentável – Como você analisa o movimento contemporâneo em relação à sustentabilidade?Ricardo Abramovay – Trata-se de um movimento com uma característica mui-to importante da qual as pes soas não se dão conta: ele só pode ser bem- sucedido se conseguir se apoiar na interação entre segmentos sociais com interesses opos-tos. Não me refiro a algo como o movi-mento operário, tal como ele existiu no século 19 e na segunda metade do 20, querendo afirmar-se “ganhando dos pa-trões”. E também não significa que os con-flitos sejam suprimidos. Na verdade, os conflitos de natureza distributiva, ci vi li-za cio nal, cultural e ideo ló gi ca estão mui-to mais agudos do que jamais estiveram;

mas não temos a menor chance de equa-cioná- los se o trabalho dos ativistas da sustentabilidade não consistir em colo-car em diá lo go segmentos com interes-ses opostos para que, disso, saia algo di-ferente do que estamos fazendo. Isso é algo muito interessante nesse movimen-to, porque surgirão novos modos de vida, em última análise.

IS – Quais as grandes ten dên cias desse movimento em direção à chamada ‘nova economia verde’?RA – Eu vejo duas grandes ten dên cias e elas se traduzem em duas palavras que estão no eixo da relação entre so cie da de e natureza. A primeira é quase unânime: ‘inovação’. Unânime, mas não tri vial. É ne-cessário redefinir o processo de inovação, porque, durante o século 20, ela foi con-cebida de maneira genérica como a inven-ção, a descoberta de novos processos pro-dutivos e de novos produtos. Sobretudo, a inovação consistia num conjunto de dis-positivos voltados a aumentar a produtivi-dade do trabalho e do capital, o que resul-tava em mais produção e menos custos, portanto mais ganho para as empresas.

No mundo contemporâneo, estamos assistindo a um processo de mudança na natureza da inovação. O mais importan-te, hoje, é aumentar a capacidade de ofe-recer bens e serviços úteis a partir de um uso cada vez menor de matéria, energia

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e bio di ver si da de. Esse é o eixo que po de-ría mos chamar de sistemas de inovação voltados para a sustentabilidade. Um pro-blema sério hoje, no Brasil, é que temos um aumento considerável de publicações cien tí fi cas, com indicadores cada vez me-lhores; temos organizações de pesqui-sa voltadas ao aumento da produtivi-dade, como a Embrapa; mas não temos um sistema na cio nal de inovação para a sustentabilidade, isto é, algo que sinali-ze para o conjunto dos atores econômi-cos que inovar significa produzir a par-tir de novos parâmetros. Essa questão da produtividade dos recursos materiais é absolutamente cru cial. O mesmo se co-loca com relação à energia. O consumo de um norte- americano, por exemplo, é 19 vezes maior que o de um in dia no. Cla-ro que vamos ter de inovar, no seguin-te sentido: como os recursos e a energia não são infinitos, a grande tarefa do sis-tema de inovação vai ser como fazer com que a energia primária — retirada do sis-tema planetário — se transforme em ob-jetos úteis para a vida so cial da maneira mais efi cien te possível. Hoje, esse pro-cesso de conversão é muito ine fi cien te. Inovação significa mudar isso.

IS – E quanto à segunda tendência?RA – A segunda palavra- chave é ‘limi-te’. Por quê? Quan do os economistas es-tudam o crescimento de renda, uma das questões colocadas é: se a renda crescer e os ricos ficarem mais ricos, mas, ainda as-sim, os pobres melhorarem de vida, então não há grandes problemas, porque os po-bres evo luí ram. Portanto, antes, o proble-ma da desigualdade estava colocado num plano ético, numa questão de valor. Mas não de sobrevivência, como agora. Quan-do se aborda a reprodução da so cie da de partindo da premissa de que a base ma-te rial e energética dessa reprodução não é infinita — e nem infinitamente subs ti-tuí vel —, há que se levar em conta as leis da termodinâmica, como aquela segundo a qual não se consegue fazer matéria do nada, a quantidade de matéria e energia é limitada, e cada processo de conversão de matéria e energia em coisas úteis significa uma dissipação, ou seja, perde-se energia no processo. É a chamada ‘entropia’.

Nesse sentido, há três grandes limites colocados hoje de maneira estratégica e que começam a aparecer em documentos internacionais das organizações multilate-rais de desenvolvimento, particularmente das Nações Unidas, mas também em do-cumentos de organizações empresariais.

IS – Quais são esses limites?RA – Primeiro: energia. Não dá para ima-ginar que o consumo humano de energia pode aumentar infinitamente. Não pode! Tem de haver um limite, porque — como já falamos — a ideia de se conseguir infini-tamente extrair energia dos ecossistemas é errada. Gasta-se cada vez mais energia para se obtê-la. Segundo: limite no consu-mo de materiais — de construção, mine-rais metálicos, combustíveis fósseis e bio-mas sa. Hoje, a média está em oito ou nove toneladas por habitante. Achim Steiner — diretor do Pnuma e coor de na dor do Ano In ter na cio nal da Bio di ver si da de (2010) — diz, em um documento da ONU, que te-remos de limitá-lo a algo em torno de seis toneladas por habitante. Em terceiro lugar, teremos de baixar as emissões de carbo-no — passando de 50 gigatoneladas para 10, entre 2011 e 2050 — para que a tem-peratura não suba além dos dois graus centígrados. Imagine o grau de inova-ção necessário para isso! Portanto, se não conseguirmos articular, organicamente, inovação e limite, não adian ta. E não há nenhuma demagogia nessa história!

IS – Somado a isso, ainda tem toda a ques-tão da desigualdade econômica e política entre os paí ses, não?RA – Certamente! E, a meu ver, esse deve ser o eixo da discussão da Rio+20: jun-tar a ideia de economia verde, ou seja, de uma economia cada vez mais poupado-ra de materiais e de energia, com a inser-ção da ética no in te rior do sistema econô-mico, isto é, com a orien ta ção do sistema econômico de forma explícita para a redu-ção da desigualdade. O que não significa igualdade absoluta. Uma das perguntas mais importantes da Ciên cia Política do século 20 foi particularmente formulada por John Rawls, no livro A Teo ria da Justi-ça: “Qual o grau de desigualdade útil para a vida so cial?”. Imaginá-la sem nenhuma

desigualdade caracterizaria quase a total ausência de progresso ma te rial. Então, há que se ter algum grau de desigualdade. A resposta de Rawls é que ele não pode ser elevado ao ponto de retirar daqueles que estão na base da pirâmide a expec-tativa da ascensão so cial, ou seja, é pre-ciso haver uma si tua ção de mobilidade. De certa forma, no mundo contemporâ-neo, houve um sucesso considerável na luta contra a pobreza e a miséria absolu-ta. Desde o final da década de 90, existe, anual men te, um ingresso de 80 ou 90 mi-lhões de pes soas numa espécie de nova classe média mun dial — segundo estu-do da Goldman Sachs — o que não é ir-risório. Pelo contrário, trata-se de um nú-mero significativo, mas são raros os casos em que esse ingresso é acompanhado de redução da desigualdade de renda (o Brasil é um caso ex cep cio nal nesse sen-tido). Na China, tem aumentado a desi-gualdade. Sobretudo nos paí ses ricos, ela cresceu muito nos últimos anos.

Agora, esse tema está colocado em termos inéditos em função da pressão so-bre o uso dos recursos e das con se quên-cias das desigualdades sobre eles. Essa é a grande novidade. E creio que seja um tema cru cial que a Rio+20, as lideranças sociais e empresariais terão de enfrentar nos próximos anos, porque, cada vez mais, o ritmo do declínio no uso dos recursos para evitar si tua ções catastróficas terá de ser mais acelerado. Isso é uma coisa que as pes soas não se dão conta.

IS – Voltando às palavras- chave dessa nova ordem mun dial, como você vê o papel de governos, empresas e consu-midores em relação à inovação e ao li-mite? Quem está inovando em cada um desses setores?RA – Os paí ses nórdicos estão inovando. Há empresas buscando fazer uso susten-tável de recursos, da produção renovável de energia, de in fraes tru tu ra em condi-ções limpas e de uma concepção diferen-te das cidades. A Siemens, por exemplo. O quanto ela consegue, de fato, é difícil dizer, embora seus avanços sejam muito consideráveis. Poucas empresas se deram conta de que produzir bens e serviços vol-tados para a solução dos grandes de sa fios

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civilizacionais abre uma oportunidade de ganho ex traor di ná rio. O problema é que as da velha economia — ou da velha eco-nomia remendada — são ainda fantasti-camente maiores. Então, embora todos reconheçam a importância do tema das mudanças climáticas e da poluição, a in-dústria automobilística, por exemplo, con-tinua produzindo o objeto mais dis fun-cio nal do ponto de vista da mobilidade urbana e das emissões, que é o automó-vel — um objeto energeticamente muito ine fi cien te, porque usa duas toneladas de matéria para transportar 80, 100 quilos.

Porém, mais do que isso, o setor em-pre sa rial e as empresas não foram ca-pazes ainda de formular planos de cres-cimento econômico cujo centro seja o melhor aproveitamento dos recursos materiais energéticos. O parâmetro pelo qual se mede a efi ciên cia da administra-ção pública e das empresas ainda é o da velha economia — o crescimento do PIB e a lucratividade nos balanços. Embora em franca contestação entre alguns dos

mais importantes nomes da Ciên cia Eco-nômica, o peso dessas formas de riqueza convencionais ainda é imenso.

IS – E isso se dá principalmente nos paí ses em desenvolvimento?RA – No caso desses paí ses — particular-mente o Brasil —, ocorre um fenômeno di-fícil de ser enfrentado, que é o po ten cial de crescimento econômico oferecido pela produção de minerais e de commodities. Isso representa uma pressão da geração de renda e de riqueza com base na exaus-tão de recursos minerais e numa econo-mia não fundamentada no conhecimen-to, na inteligência. Vivemos um momento de divisão in ter na cio nal do trabalho em que a América Latina e a África, em par-ticular, exercem uma posição no forne-cimento de ma té rias- primas muito de-terminante da sua própria organização econômica e até ma croe co nô mi ca. Uma das consequências é uma tendência for-tíssima à de sin dus tria li za ção, como está acontecendo no Brasil e na Argentina.

Há, de fato, alguns segmentos tentan-do enxergar à frente, investindo. Os par-ques tecnológicos no Brasil, por exemplo, vão nessa direção. Mas há uma pressão muito forte do que há de mais con ven-cio nal na velha economia, com consequ-ências locais pre da tó rias. A economia da Amazônia, por exemplo, é neo co lo nial: produz energia, mas as populações locais não têm acesso a ela. O mesmo acontece com a produção de mi né rios. Outra ques-tão central é como fazer uso sustentável da bio di ver si da de — a capacidade de criar uma economia ba sea da no conhecimen-to da natureza e não na destruição dela, como tem ocorrido até agora. Quan do analisamos a documentação do Ano In-ter na cio nal da Bio di ver si da de, a primei-ra coisa que vem à cabeça é que o inves-timento na bio di ver si da de vai “bombar”. Na prática, com exceção da cadeia do açaí, um pouco da castanha, a Amazô-nia não tem nem indústria. Nossa capa-cidade de gerar riqueza a partir dos re-cursos naturais naquela re gião é quase

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nula, apesar de todo o po ten cial. Esse é um desafio, sobretudo, para o meio em-pre sa rial. E também para o governamen-tal, pois não há pesquisa na Amazônia à altura da riqueza representada pela bio-di ver si da de. Não há estímulos para ca-pitais de risco. Se essa riqueza tem um po ten cial em pre sa rial, tal como expos-to nos documentos citados acima, é ne-cessário multiplicar as ini cia ti vas e apoiar a multiplicidade delas com pesquisa, fi-nan cia men to de capital de risco, abertu-ra de mercados. Porém, as chances de ga-nho econômico com base na destruição são tão maiores…

IS – Esse seria, portanto, o principal obs-táculo que enfrentamos para motivar a inovação?RA – Creio que sim. E, além disso, deve-mos considerar que todos aqueles que estão ganhando na Amazônia com a ex-ploração de recursos transformados em commodities — carne, soja, mi né rios — têm uma espécie de renda adi cio nal derivada da própria riqueza da re gião com relação à qual deveria haver um tipo de contrapar-tida, que seria o apoio a ini cia ti vas empre-sariais voltadas justamente ao contrário do que vem sendo feito. O caso da carne é o mais escandaloso: dos 73 milhões de

hectares desmatados nos últimos 15 anos na Amazônia, 60 milhões correspondem à pe cuá ria de baixa produtividade, vincula-da a uma das maiores empresas brasilei-ras, com capital nos Estados Unidos — al-tamente exportadora, mas cujos efeitos multiplicadores locais são negativos. Es-sas empresas frigoríficas, e mesmo as de mineração, de ve riam ter uma responsa-bilidade de criar outras dinâmicas. E acho que seria algo muito interessante do pon-to de vista estratégico em pre sa rial. Mas não vejo nenhum movimento nesse sen-tido. Há coisas muito significativas acon-tecendo no que se refere à certificação da carne, à moratória da soja, à ini cia ti-va da Alcoa de criar o consórcio em Ju-riti com participação local, mas elas não chegam a criar um movimento que colo-que o tema central da cria ção de uma eco-nomia do conhecimento de forma mais estratégica para o Brasil.

CP – E como transformar isso, então? Como fazer, sobretudo em relação às em-presas, para que elas mudem esse olhar e passem a inovar efetivamente frente à nova economia e à sustentabilidade?RA – Primeiro é necessário que o que se faz, con ven cio nal men te, fique mais caro. O mundo vai ter de caminhar para isso, colocando preço, de alguma forma, no que hoje não tem — nas emissões de car-bono, nos serviços ambientais. Mas não basta. O gra dua lis mo nessa direção não é su fi cien te. É preciso uma ação e uma ins-piração governamental fortes. Nos paí-ses que estão com a “faca no pescoço”, em termos materiais energéticos, essa ins-piração está muito mais forte do que no Brasil, que não sofre o mesmo problema. Não somos completamente dependentes de carvão e petróleo, como é o caso dos EUA , Índia e China, e dispomos de uma matriz energética própria. Mesmo assim, os chineses estão apoiando ini cia ti vas de cria ção de cidades de carbono zero, com a consultoria do célebre arquiteto ameri-cano William McDonough — autor do li-vro Cradle to Cradle —, levando adian te esse tipo de ini cia ti va. É verdade que a China abre duas usinas a carvão por mês e está se tornando um grande importador do mineral, algo gravíssimo do ponto de

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vista do equilíbrio geo po lí ti co. Mas exis-te, por parte das autoridades chinesas, um trabalho muito consistente de fechar fábricas obsoletas e po luen tes, estimular processos de inovação e orien tar o setor bancário para blo quear o fi nan cia men to a ini cia ti vas altamente emissoras. Então, o governo chinês está dando sinal para a so cie da de e para os em preen de do res a esse respeito. É claro que esse sinal che-ga de maneira imperfeita. Mas, se hoje a China está investindo mais em ener gias alternativas do que qualquer outro país no mundo, isso se deve a uma orien ta ção explícita de governo.

CP – Então você está afirmando que os grandes inspiradores desse movimento têm de ser os governos?RA – Sem dúvida! Não bastam apenas a so cie da de civil e os em pre sá rios. Os go-vernos têm um papel absolutamente cru-cial. O que percebemos no Brasil é que, desse ponto de vista, os temas ligados à manutenção dos serviços ecossistêmicos,

à redução das emissões e a tudo que se refere ao meio am bien te aparecem, até hoje, de maneira episódica e esporádica no discurso como um tema se to rial dos ministros do Meio Am bien te e da Ciên cia e Tecnologia, mas não se ouve nada dos ministros do Desenvolvimento ou da Fa-zenda nesse sentido. Temos uma lei cli-mática sinalizando que serão ne ces sá rias reduções, setor por setor, mas isso não aparece no modo como o governo fala com a so cie da de. Acho isso grave.

IS – E qual o papel das lideranças empre-sariais na mudança de rota?RA – Absolutamente fundamental e a mu-dança é muito recente. Se é que ela exis-te. Quan do analisamos a indústria pesada brasileira, o discurso predominante não é “estou me preparando para, daqui a 40 anos, cortar em 80% as minhas emissões”, ou então “vou estimular processos de ino-vação nos quais a energia tem de ser cara porque ela é escassa e, por isso, vou uti-lizá-la de uma maneira mais proveitosa”.

O discurso ainda é “a energia está cara. Que ro energia barata”. Todo nosso dis-curso em pre sa rial com relação à questão energética está concentrado em inova-ções importantes, sim, como as fontes de energia — no caso, o etanol —, mas não temos um processo sério de mudança na forma de utilização da energia nem pela indústria e muito menos pelo consumi-dor. Então, as lideranças empresariais que se voltam à questão da sustentabilidade, com raras exceções, não me parece que o façam a partir da ótica de uma verdadeira economia verde.

A missão, agora, é produzir usando cada vez menos materiais e energia, e essa é uma responsabilidade não apenas para com os acio nis tas, mas também com o País. Ouço esse discurso de lideranças empresariais no ex te rior, mas muito ra-ramente aqui no Brasil. O próprio reco-nhecimento da importância das mudan-ças climáticas é muito recente. Até 2009, grandes organizações empresariais costu-mavam dizer “esse problema não é com a

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gente”. O documento que a FIESP (Fede-ração das In dús trias do Estado de São Pau-lo) encaminhou, naquele ano, para a dis-cussão em Copenhague (COP15), foi mais ou menos assim: “Já fizemos a lição de casa, agora cabe aos outros, porque já te-mos energia limpa e estamos reduzindo o desmatamento na Amazônia.” Felizmente, o discurso mudou.

IS – Apenas o discurso ou as práticas tam-bém vêm mudando?RA – Estamos vivendo a seguinte contra-dição: do ponto de vista da estratégia em-pre sa rial, quanto mais conseguíssemos tornar a cadeia produtiva clara e melhorá-la estrategicamente para o futuro, es ta ría-mos em melhores condições também no aspecto re pu ta cio nal. Só que os ganhos ime dia tos de uma exploração feita de qualquer jeito são tão grandes que a ten-dência é con ti nuar fazendo o que se sabe, da forma que der. Como mudar isso? Não sei dizer muito bem, mas acredito que há um fator de esperança, porque os riscos reputacionais ligados a comportamentos pre da tó rios são muito altos, sobretudo

em so cie da des democráticas. E as em-presas que não se derem conta disso e tentarem lidar com esse tema de manei-ra cosmética, fazendo greenwashing, am-pliam o risco de seus pró prios acio nis-tas. No entanto, há si tua ções nas quais uma empresa inovadora descobre uma técnica melhor e menos predatória, po-rém, quando se tenta levá-la para o mer-cado, outras empresas dizem que é pre-ciso esperar o governo agir, ”porque está bom desse jeito”. E isso acontece com muita frequência.

IS – E o consumidor? Ele é o “primo po-bre” dessa história ou ainda não se deu conta do seu poder de pressão, se é que ele tem esse poder?RA – O consumidor, sem dúvida, tem um poder destrutivo imenso. Mas, por maior que seja a responsabilidade do consumi-dor — e é bem grande —, devem-se exa-minar as condições em que essa responsa-bilidade é efetivamente exercida. E o que nos conduz, aqui, é uma discussão interes-sante sobre o próprio conceito de liberda-de. Numa so cie da de democrática, todos

são livres. Consumir refrigerante, junk food e outros alimentos que não sejam saudá-veis é uma escolha de cada um. Mas essa é uma imagem de liberdade muito equi-vocada. Amartya Sen (Nobel de Econo-mia em 1998) define o desenvolvimento como “o processo de expansão das liber-dades substantivas dos seres humanos”; e as palavras- chave nessa frase são “liber-dades substantivas”. Liberdade não é au-sência de restrição, como ha bi tual men-te se pensa. Liberdade é a presença de condições que nos permitam fazer esco-lhas compatíveis com uma vida que vale a pena ser vivida. A liberdade vista como ausência de restrições abre um espaço ex traor di na ria men te grande para que os in di ví duos tenham suas escolhas de-terminadas por ins tân cias sobre as quais eles não têm o menor poder e controle. E uma das questões sé rias, hoje, do ponto de vista das lutas socioambientais, é que, quando se faz uma afirmação dessa natu-reza, vá rios segmentos empresariais acu-sam os que fazem tais afirmações de ter uma inspiração totalitária e ser contra as liberdades humanas e de imprensa.

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O papel do consumidor é muito im-portante. Mas a relação entre empresa e consumidor não pode ser vista como uma relação na qual a empresa tenta fazer algo que ela sabe que é ruim, mas deixa para o consumidor decidir. E, se ele não comprar, aí a empresa muda. Essa é a lógica da ve-lha economia. A visão do consumo cons-cien te vem da ideia de cria ção partilhada de valor, ou seja, desde o início, em todas as etapas da cadeia, tem-se a intenção de que aquilo fará bem para as pes soas. Nos casos dos gêneros que preen chem a fan-tasia humana, mas even tual men te podem ser prejudiciais, isso tem de ser muito bem explicitado. Refrigerantes, por exemplo, não podem ser veiculados como alimen-tos de consumo co ti dia no. É irresponsabi-lidade dizer que cabe ao consumidor resis-tir, e então a empresa vai parar de fabricar. Isso é uma ficção! John Kenneth Galbraith escreveu, aos 96 anos, um livrinho maravi-lhoso chamado A Economia da Fraude Ino-cente. A principal fraude inocente é a sobe-rania do consumidor. Uma fraude porque os economistas e os cien tis tas sociais fa-zem com que as pes soas acreditem nisso; e inocente porque os pró prios consumido-res também acreditam. Portanto, o espaço de manipulação é imenso. A esperança é que, mais uma vez, os riscos empresariais nesse comportamento manipulatório são altíssimos. Então, as empresas começam a se dar conta de que os resultados e os da-nos desse comportamento vão lhes cair sobre a cabeça. Simples assim.

IS – Apesar de todo nosso gap edu ca cio-nal, você vê o Brasil com po ten cial para liderar no campo da inovação para a sustentabilidade?RA – Acredito que temos uma si tua ção extremamente pri vi le gia da para exercer um papel muito construtivo de ordem

in ter na cio nal pautado por uma nova re-lação entre a so cie da de e uso dos recur-sos ecossistêmicos, porque essa é a nossa grande riqueza. Quer dizer, é onde temos mais chance de contribuir de maneira ori-ginal para a civilização. Nosso grande de-safio está no uso sustentável da bio di ver-si da de terrestre e aquática. O Brasil tem massa crítica do ponto de vista cien tí fi co para avançar nessa direção, tem lideran-ça em pre sa rial para isso, tem uma com-preen são so cial a respeito da importância da bio di ver si da de e dos serviços ecossis-têmicos cada vez maior e, sobretudo, não está, como é o caso da Índia, China, Áfri-ca do Sul, da União Europeia, EUA , do Ja-pão e Canadá, com a “faca no pescoço” em termos de matriz energética. Portan-to, temos condições de fazer uma tran-sição com pouso sua ve, enquanto, para esses outros paí ses, o risco de uma ater-rissagem catastrófica é imenso, em função da matriz energética. Ao mesmo tempo, outro grande desafio brasileiro é repen-sar as oportunidades de ganhos ligadas às formas convencionais e pre da tó rias de exploração dos recursos, como corri-queiramente sempre aconteceu no cha-mado business as usual. Como eles ainda são muito grandes, não se criou nas eli-tes brasileiras uma coa li zão so cial voltada a fazer da bio di ver si da de, da economia do conhecimento e da natureza a chave da geração de riqueza e de uma so cie da-de melhor. Esse é um desafio que temos pela frente. O segmento em pre sa rial que pensa, concretamente, em gerir seus ne-gó cios nesses termos ainda é minoritário. A grande questão é saber se vamos con-seguir fazer essa transição em tempo. Te-mos tudo para fazer, mas não há nenhum sinal de que vá acontecer. Pode ser que a gente perca o bonde… Mas o cavalo se-lado está passando na nossa frente.

SUSTENTABILIDADE REALA exposição acen tua da da monarquia inglesa nos últimos anos — com o casamento de William e Kate, e filmes como A Rainha (2006) e O Discurso do Rei (2010) — renovou a imagem da Coroa britânica. E, mesmo sem protagonizar os últimos acontecimentos, até o Príncipe Charles aproveitou a oportunidade para revelar ao público uma de suas preo cu pa ções mais nobres: o futuro do planeta. Suas ideias ‘reais’ a esse respeito podem ser conferidas em Harmony – A Revolução da Sustentabilidade, que acaba de desembarcar nas li vra rias brasileiras.

Com enfoque nos pre juí zos causados pelo radical advento da modernidade — que, de certo modo, desprezou conhecimentos an te rio res —, o livro apresenta o resultado de mais de 30 anos de estudos do Príncipe de Gales e suas organizações sobre temas socioambientais. O principal ponto defendido na obra é como o equilíbrio entre as antigas tradições (mais ligadas à natureza) e os métodos modernos de cultivo, engenharia, medi-camentos, entre outros pode representar a chave para salvar o mundo da falência de recursos.

Extremamente ilustrado, Harmony propõe formas de (re)inserir a natureza no co ti dia no (inclusive no de quem vive nas grandes cidades) e de (re)conectar passado e presente para des-vendar o futuro, tal qual fazem as comunidades mais inóspitas, visitadas e citadas por Charles como uma das últimas fontes de conhecimento. Mais do que uma obra inspiradora, o livro é um apelo à mais urgente das revoluções pla ne tá rias: a sustentabilidade. (Fábio Congiu)

Harmony – A Revolução da SustentabilidadePríncipe CharlesEditora Campus/Elsevier, 331 págs.69,90 reais

NA CABECEIR A

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