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Actas do 7º Encontro de Arqueologia do Algarve Silves - 22, 23 e 24 Outubro 2009 10 Pormenor de Mosaico Romano - Museu Municipal de Faro

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Actas do 7º Encontro de Arqueologia do AlgarveSilves - 22, 23 e 24 Outubro 2009

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LII.

Um silo de Época Moderna na Rua dos Peixeiros (Lagos).

Estudo do conjunto cerâmico

Carlos de Oliveira *

* [email protected] / [email protected]

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ResumoApresenta-se o espólio cerâmico recolhido num silo de época Moderna, localizado na actual rua dos Peixeiros

(Lagos). A amostra é composta por um total de 1578 entradas individuais de inventário, que correspondem a fragmentos ou conjuntos de fragmentos cerâmicos que permitem uma classificação formal ou que, por outras razões, tenham sido considerados relevantes para a caracterização do conjunto. Considerando que as cerâmicas tratadas provêm de um contexto arqueológico secundário, optou-se por uma abordagem analítica dividida em função dos seus atributos técnicos e formais. O conjunto cerâmico recuperado no enchimento do silo é claramente dominado por recipientes da denominada cerâmica comum, totalizando mais de três quartos da amostra. A faiança surge em segundo lugar com 12 % dos indivíduos, seguida pela cerâmica vidrada que representa os restantes 5 % do conjunto. Os escassos fragmentos de porcelana e de cerâmica moldada documentados, não têm sequer peso estatístico.

AbstractWe present the ceramic items founded in a Modern age silo, located in the actual “rua dos peixeiros” (Lagos –

Algarve). The group it’s composed by 1578 individuals entries in the inventory that correspond to fragments witch allows a formal classification. Attending to the fact that the ceramic items come from a secondary archaeological context, we choose an analytical approach that considers the technical and formal attributes. The sample it’s dominated by common ware witch represent over ¾ of the pottery recovered on the silo. The faience comes in second place with 12 % followed by glazed ware that represented the remaining 5 %. The china and the moulded containers fragments don’t have a statistical weight.

Um silo de Época Moderna na Rua dos Peixeiros (Lagos). Estudo do conjunto cerâmico | Carlos de Oliveira

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1. Palavras prévias

As peças aqui apresentadas procedem de um silo escavado no centro histórico de Lagos, mais concretamente na actual rua dos Peixeiros, uma zona localizada dentro do perímetro amuralhado que em época moderna envolvia a cidade, em área relativamente próxima do denominado baluarte

De S. Amaro ou do Paiol (fig.1). A direcção da escavação através dos quais se identificou esta estrutura negativa foi assegurada, pelo então

arqueólogo da autarquia, Dr. Luís Duque, a quem aproveito para agradecer a oportunidade de publicar este conjunto cerâmico. Apesar do elevado número de unidades de recolha (complexos) atribuídos durante o processo de escavação do silo, o arqueólogo responsável pelos trabalhos garante que estes apresentavam características em tudo semelhantes, tratando-se de um único enchimento. Esta situação é também corroborada pelo facto de existirem vários fragmentos recolhidos em diferentes complexos colarem entre si.

2. breve apontamento metodológico

A análise efectuada ao conjunto ponderou propostas teóricas de diversos autores (p.e. Balfet et alli, 1983; Orton et alli, 1997), que se adoptaram conforme a sua pertinência para os materiais em estudo. O conjunto foi dividido em grupos tecnológicos, tendo-se considerado as seguintes categorias: cerâmica vidrada, faiança, porcelana, cerâmica modelada e cerâmica comum. A nomenclatura das várias formas isoladas inspirou-se na proposta de J. Alarcão (1974), que, por afinidade, atribui uma terminologia actual às formas antigas.

Fig. 1 – Localização da rua dos peixeiros.

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A análise das pastas foi efectuada macroscopicamente e considerou apenas os aspectos relativos ao modo cozedura. Com este propósito adoptaram-se as normas definidas M. Picon (2002), que prevêem uma distinção em três grupos: A, B e C. No primeiro a atmosfera de cozedura é redutora durante a fase inicial, enquanto que, a partir do momento em que se suspende a alimentação de combustível e se abre o forno, esta passa rapidamente a oxidante (Idem, Ibidem, 143). Dependendo da argila utilizada, este processo permite a obtenção de recipientes com superfícies de tons claros, sob as quais se pode observar, por vezes, um núcleo de cor mais escura que testemunha a fase inicial da cozedura em ambiente redutor. Todavia, outros fragmentos podem ser integrados no modo B do citado investigador, uma vez que a sua pasta apresenta uma tonalidade escura regular, denunciando uma cozedura e arrefecimento em ambiente redutor, realizada provavelmente em fornos de câmara única. O modo C corresponde a uma de cozedura em ambiente totalmente oxidante, que se mantêm depois na fase de arrefecimento, resultando na obtenção de pastas de coloração homogénea e de tonalidades claras. Este tipo de cozedura foi identificado sobretudo nas faianças, mas também em alguns recipientes vidrados, nomeadamente os alguidares.

A análise estatística efectuada foi inspirada no protocolo celebrado na mesa redonda realizada em Mont Beauvray (Arcelin e Tuffreau-Libre, 1998), onde se preconiza a definição de um número mínimo de indivíduos (nmi). Seguindo os preceitos desta proposta, realizou-se uma separação prévia dos fragmentos em grupos de fabricos, seleccionando-se, posteriormente apenas os exemplares que permitiam uma classificação formal. Dentro desse grupo, o NMI foi estabelecido em função do elemento caracterizador (bordo, fundo, asa) mais abundante que, dentro de cada unidade de recolha e de cada grupo de fabrico, possibilitava o reconhecimento da forma. Convém ainda esclarecer que decomposição estatística só foi aplicada em casos cuja amostra tratada era superior à centena de unidades.

3. Faiança e porcelana

Este tipo de produções integra a baixela cerâmica de mesa e de serviço vulgarizada no decorrer época moderna. Neste contexto histórico,

a porcelana assume um papel de verdadeiro bem de excepção, enquanto que, comparativamente, a faiança surge num segundo plano, sendo valorizada sobretudo pela sua utilidade prática. De todo o conjunto tratado, são de longe os tipos cerâmicos estilisticamente mais requintados e que exigem maior perícia de execução e meios técnicos mais sofisticados. Os fragmentos de faiança aqui apresentados caracterizam-se genericamente por possuírem paredes de espessura média e pastas bem depuradas que variam entre uma cor esbranquiçada e diversos tons na escala de beges. A deficiente qualidade de alguns exemplares é visível nas peças que apresentam o vidrado estalado ou que se encontram em avançado estado de escamação. Não obstante, outras existem que denotam uma execução técnica mais apurada, resultando em vidrados translúcidos e bem aderentes.

A análise das formas é prejudicada pelo grau de fragmentação em que se encontram os materiais. Com efeito, na totalidade do conjunto de faianças apenas em três casos foi possível reconstituir o perfil integral das peças, permitindo assim uma classificação sem reservas. Ainda assim, é possível ensaiar uma distribuição quantitativa das várias formas identificadas, uma vez que o conjunto é relativamente numeroso, sendo composto por 119 fragmentos de bordo, 54 fragmentos de fundo e um número de bojos que ascende quase às duas centenas de unidades. Os pratos são de longe a forma frequente (52 nmi), representando 53 % (24 nmi) do conjunto. A posição seguinte é ocupada pelos recipientes do tipo taça, com 26 % (19 nmi), seguido de perto pelas tigelas, que constituem 19 % da amostra dos fragmentos que permitiram classificação formal. Convém também referir que em 29 fragmentos contabilizados como indivíduos não foi possível determinar uma forma concreta, tendo-se constatado no entanto, que todos os exemplares pertenciam a recipientes de morfologia aberta.

Documentaram-se exemplares com e sem decoração, embora estes últimos sejam relativamente raros. A paleta de cores utilizada é bastante homogénea, sendo dominada pelos diversos tons de azul-cobalto que podem surgir isolados ou combinados. Com efeito, as faianças decoradas a azul sobre branco representam 87 % da amostra, enquanto que aquelas que não receberam qualquer pintura se fixam nos 6%.

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As variações do tom de azul-cobalto dependem de muitas condicionantes começando desde logo pelo tipo de pigmento usado e pelo modo como este é diluído no verniz. Em última análise dependem do modo como é executada a própria pincelada, podendo obter-se uma distribuição mais ou menos uniforme da cor. Na maioria dos exemplares estudados a decoração denota um toque energético resultando numa aparência de aspecto relativamente descuidado. Contudo, embora raras, existem também algumas peças finamente pintadas, como adiante se verá. Outra das cores identificadas é obtida a partir do manganês, resultando em tonalidades “vinhosas” que podem ir desde o violeta claro ao castanho-escuro. A utilização desta cor foi identificada em 6% dos fragmentos analisados, surgindo sempre combinada com motivos pintados de azul e exclusivamente associada à decoração dos pratos.

Os motivos decorativos nem sempre são facilmente perceptíveis, uma vez que grande parte dos recipientes se encontra reduzido à condição de diminutos fragmentos. Não obstante, o elenco decorativo é suficiente para sugerir a homogeneidade cronológica do conjunto, quebrada apenas por dois exemplares de produção mais antiga. Refiro-me concretamente aos fragmentos da denominada faiança majólica apresentados na estampa II (nº 15 e 16). Embora partilhem a mesma nomenclatura genérica, tratam-sede produções geográfica e tecnicamente distintas. A peça nº 15 é revestida de esmalte azul claro que, por sua vez, se encontra coberto por sólido vidrado sobre o qual foi pintada uma banda azul-escuro. Estas características permitem enquadrá-la no âmbito das produções das olarias sevilhanas, que fabricaram cerâmicas deste tipo até ao século XVI. Por outro lado, a peça nº 14 procede, com toda a probabilidade, de uma das várias oficina italianas que, nos séculos XV e XVI produziram baixela de mesa com mesmas característica do exemplar apresentado. Trata-se de um fragmento de bojo revestido por um esmalte azul claro decorado no interior com motivos pintados a branco, amarelo e azul-escuro, a mesma cor utilizada na decoração da superfície exterior. As exíguas dimensões do fragmento em questão não permitem identificar concretamente os motivos aí desenhados. A estes dois exemplares anacrónicos poderíamos juntar também os raros fragmentos que apresentavam vestígios de pintura

dourada, sugerindo a sua inclusão nas produções da área valenciana de Paterna e Manisses, que se prolongam até ao século XVI. A pequena tigela apresentada na estampa II (nº 12) é um bom exemplo da utilização dessa técnica decorativa, sendo visíveis em ambas as superfícies vestígios de pigmento dourado, sem que no entanto se consiga identificar qualquer motivo concreto. Deve ainda acrescentar-se que, no que diz respeito à forma, este recipiente se enquadra perfeitamente nas produções antes referidas.

As peças acima descritas constituem verdadeiras excepções a todos os níveis, sendo os únicos exemplares que se encontram cronologicamente desfasados em relação ao restante conjunto, que pode datar-se genericamente do séc. XVII e XVIII. Por outro lado são também as únicas peças que contrastam com a monotonia da paleta de cores que caracteriza o conjunto deste tipo de produções, habitualmente decoradas apenas a azul e mais raramente a azul e “vinhoso”. Por último, pode dizer-se que se tratam de peças excepcionas também no que respeita à sua procedência, uma vez que, em todo o conjunto, são as únicas que evidenciam uma proveniência internacional.

Como atrás se anotou, o conjunto é constituído exclusivamente por formas utilitárias. Todavia, também existem alguns exemplares que denunciam uma função eminentemente decorativa, em especial os pratos covos de aba. O prato nº 2 (estampa I) é, porventura, o melhor exemplo de uma peça claramente decorativa, uma funcionalidade que é reforçada pelo facto de esta se encontrar gatada em diversas áreas sublinhando a sua natureza extra-utilitária. A decoração da aba é realizada com linhas curvas de tom vinhoso e manchas azuis, que combinadas desenham um motivo fitomórfico à base de folhas. O fundo encontra-se preenchido por um monograma pintado em tom vinhoso e emoldurado por um circulo de linhas da mesma cor em forma de ferraduras sobrepostas, assim como por conjuntos de três folhas contornadas a vinhoso e preenchidas a azul. Lamentavelmente, o anagrama encontra-se truncado, sendo visível apenas a letra M. Esta peça é um importante indicador cronológico pois apresenta bons paralelos com alguns exemplares intactos e já estudados do ponto de vista da história da arte. Neste contexto, importa sublinhar as notáveis similitudes decorativas e formais com uma peça procedente do Convento do Salvador

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(Évora), que Mangucci (s.d.) atribui às produções de meados do séc. XVIII. das oficinas de Lisboa. A análise detalhada da motivo central do exemplar recolhido em Lagos mostra uma provável correspondência com a marca apresentada na obra de J. Queiroz (1987, voll II: p. 81). Com efeito, este anagrama coincide perfeitamente com o desenho pintado no prato quer ao nível da cor, das dimensões e da própria caligrafia. Acresce ainda que na peça estudada o espaço da moldura central não guarda lugar para uma segunda letra separada, mas sim em nexo, com deixa antever a espessura da “perna direita” do M (estampa II, nº 2). Segundo J. Queiroz (Ibidem), esta marca data um fabrico de 1780 produzido numa oficina de Viana do Castelo, fundada por João Araújo e Lima em 1774. Ainda que a correspondência proposta não se confirme parece, no entanto, seguro datar o referido prato da segunda metade do séc. XVIII. Um outro fragmento que também apresenta uma marca pintada em tom vinhoso (estampa II, nº 13) pode ser igualmente atribuído a um prato de funcionalidade meramente estética. A marca encontra-se completa e resume-se à representação da letra A ladeada por dois pontos situados a meia altura e envolvida num motivo que possivelmente definiria a forma de coração estilizado. O prato nº 3 da estampa I, deve também corresponder a um recipiente iminentemente decorativo, apresentando no entanto motivos de temática mais impessoal: aba bordeja por linhas encurvadas e concêntricas, sendo o fundo preenchido por um provável desenho fitomórfico, segundo sugerem as poucas linhas conservadas. A peça nº 17 da estampa 2 pode também incluir-se neste grupo. Trata-se da parte central de um fragmento de fundo, a partir da qual se desenvolviam 17 pétalas, contornadas em tom vinhoso e preenchidas com pintura azul claro.

Ainda a respeito dos pratos convém esclarecer que os exemplares anteriormente analisados constituem um grupo minoritário, sendo que a grande maioria dos recipientes deste tipo formal teria, certamente, uma funcionalidade prática e um uso quotidiano. Todavia, mesmo esses podem ostentar profusas decorações que, chegando mesmo a criar um efeito de exaustão visual, como se pode apreciar nos pratos nº 4 e nº 5 (estampa I). A par destes, existem também exemplares com uma decoração mais sóbria, que por vezes se reduz a uma ou mais bandas horizontais.

Os exemplares classificados como taça são recipientes de morfologia de tendencialmente troncocónica assentes num amplo pé anelar. Os bordos podem ser mais boleados ou mais direitos apresentado por regra uma secção semi-circular, sendo que o diâmetro de abertura varia entre os 20 e os 30 cm. As soluções decorativas adoptadas são idênticas às identificadas nos pratos incidindo, exclusivamente, na superfície interior da peça. Ainda assim, importa esclarecer que se documentaram exemplares profusamente decorados com linhas oblíquas (estampa I, nº 8) e outros com semicírculos concêntricos, ocupando geralmente a totalidade da parede interior. Estão também presentes motivos mais sóbrios, em particular estreitas faixas horizontais pintadas sobre o bordo ou pouco abaixo deste. A peça nº 9 merece um especial destaque pelo curioso motivo decorativo que ostenta: uma espada em forma de cruz, símbolo da ordem de Santiago (estampa 2). São conhecidos paralelos exactos para este motivo em dois fragmentos procedentes de níveis arqueológicos datados dos séculos XVII-XVIII da escavação do Baluarte 2 do Castelo de Palmela (Fernandes e Carvalho, 1998, nº 184 e 185: 214, 231 e 252), uma localidade que chegou a ser sede da ordem religiosa e militar supra referida.

As tigelas caracterizam-se por serem recipientes de pequena dimensão e morfologia hemisférica, com o bordo mais ou menos boleado ou afilado. Apesar de não ter sido identificado qualquer exemplar com o perfil integral pode supor-se, atendendo aos fragmentos de fundo inventariados, que a base conformava um pé anelar. A decoração desenvolve-se mais efusivamente na superfície exterior, onde são muito comuns os motivos compostos por semicírculos concêntricos (p.e. estampa II, nº 11). A superfície interior apresenta por norma uma ou mais faixas horizontais pintadas sobre o bordo ou pouco abaixo deste. O fundo está reservado para motivos simples, nomeadamente linhas espirais. Este tipo de recipientes é relativamente comum em contextos dos séculos XVII e XVIII um pouco por todo o país. Pela proximidade geográfica cumpre aqui destacar os paralelos com os exemplares recolhidos na rua das olarias em Tavira (Maia e Nascimento, 2002).

Identificou-se ainda um fragmento passível de ter pertencido a uma travessa, conforme sugere orientação ondulante do bordo (estampa II, nº 14). Trata-se de um exemplar de fino recorte técnico e decorativo, denotando uma inspiração claramente

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Fig. 2 – Fragmentos de faiança recolhidos no silo da rua dos Peixeiros.

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Fig. 3 – Fragmentos de faiança e de porcelana recolhidos no silo da rua dos Peixeiros.

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oriental, sem outros paralelos neste conjunto. O esmalte é de tom branco muito pálido, revestido por um vidrado lustroso e translúcido, conferindo um aspecto gélido às superfícies. A decoração interna da aba compreende um esquema organizado em cartelas intercaladas por laços de cordão e preenchidas, alternadamente, com flores de bonina e outro motivo que não se pode determinar com total segurança, ainda que seja bastante provável tratar-se de uma folha, dita de “aranhões”, atendendo a um paralelo recuperado na escavação da Praça Cristóvão Colombo, na insular cidade do Funchal (Gomes e Gomes, 1998:330 a 333: fig. 13). De facto, o exemplar supracitado é em tudo igual ao da rua dos peixeiros, inclusive no que concerne à decoração da superfície externa que, em ambas as peças, consiste em finos traços curvados e pequenos elementos de inspiração vegetalista, pintados a azul. Para além da peça açoriana, existem também bons paralelos continentais, nomeadamente nos conjuntos da Casa do Infante (Porto) (Barreira et alli, 1998: fig. 19) e do Mosteiro de São João de Tarouca (Sampaio e Sebastian, 2000:fig. 2, nº1). Uma cronologia do terceiro quartel do séc. XVII é consensualmente aceite pelos diversos autores que estudaram cada uma das peças referidas. Importa ainda referir que todas estas peças ostentavam um motivo zoomórfico no fundo que, por sua vez, se encontrava enquadrado por ramos, flores e outros desenhos de inspiração vegetalista, bem ao gosto chinês. É assim bastante provável que o exemplar agora apresentado ostentasse o mesmo tipo de motivos. Neste contexto, cabe referir que num fragmento de parede de uma outra peça foi identificado o desenho de uma possível ave (estampa II, fig. 18), constituindo o único exemplo de um motivo zoomórfico em todo o conjunto cerâmico analisado.

De um modo geral pode dizer-se que o conjunto de faianças recuperado no Silo denota um fabrico imperfeito e descuidado, um cenário apenas contrariado por algumas excepções já devidamente assinaladas. Com efeito o grosso da baixela reflecte um certo desleixo na decoração que, na maioria dos casos foi executada com pinceladas rápidas de pouco apuramento técnico, utilizando pigmentos de qualidade duvidosa, que se diluem facilmente provocando um aspecto baço. O repertório formal é muito estandardizado e os motivos são por norma repetitivos e esquemáticos, desatacando-se a particular incidência dos semicírculos concêntricos

que adornam indiscriminadamente recipientes das três formas identificadas: pratos, taças e tigelas. A maioria dos fragmentos apresenta uma pasta frágil e com algumas impurezas, revestida com vernizes estaladiços e heterogéneos que nem sempre se encontram uniformemente distribuídos. As características enunciadas enquadram-se bem no que se conhece da faiança setecentista. Com efeito, será preciso esperar pelas últimas décadas do séc. XVIII para se assistir ao ressurgimento da qualidade de fabrico das faianças nacionais, incrementado pelas grandes fábricas entretanto criadas, no âmbito da política pombalina de fomento industrial

Os três fragmentos de porcelana chinesa registados (estampa II, nº 19 a 22) pertencem ao grupo das produções decoradas em azul sobre branco e ostentam motivos vegetalistas. Apenas num deles foi possível apurar a forma, tendo-se verificado que se trata de uma taça de bordo ligeiramente exvertido e pintado no interior. De forma genérica pode dizer-se que as peças apresentada se incluem nas produções chinesas fabricada sob o domínio das dinastias Ming e Ching, abarcando um amplo lapso cronológico, balizado entre finais do século XVI a inícios do século XVIII.

4. Cerâmica comum

Esta categoria cerâmica foi distinguida por exclusão de partes, uma vez que é a única que não se caracteriza por possuir um tipo de revestimento particular, mas antes pela sua ausência. Com efeito, na grande maioria dos casos o tratamento de superfície resume-se a um simples alisamento que, às vezes complementado por uma fina aguada de argila, documentada em diversas tonalidades. Ao nível das pastas, predominam os tons avermelhados e alaranjados, que denotam uma cozedura de modo A. Com efeito, as peças cozidas segundo os preceitos do modo B são, claramente minoritárias cingindo-se a um total de 21 fragmentos num universo que ascende às 877 unidades. Em ambos os casos, verificaram-se algumas variações ao nível da composição, depuração, distribuição e calibre das inclusões presentes na pasta cerâmica. Todavia, é possível caracterizá-las genericamente como pastas relativamente compactas com ocasionais inclusões de cálcites e outros minerais não identificáveis a olho nu.

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O conjunto da cerâmica comum é dominado por loiça de cozinha, em particular pelas frigideiras e pelas panelas que representam, respectivamente, 28 e 20% do total dos fragmentos classificados. A estas formas seguem-se, por ordem decrescente, as taças (13 %), os alguidares (11 %), as tampas (7 %) e os jarros (5 %). As restantes categorias formais: caçoilas, caçarolas, pratos, vasos de noite, potinhos, bilhas e ânforetas, situam-se entre 1 e 3 %. Deve ainda salientar-se que aproximadamente um terço (31 %) da baixela integrada nesta categoria cerâmica pertence a recipientes de morfologia fechada, geralmente associados à armazenagem, transporte e serviços de bens alimentares.

4.1. Alguidares

Trata-se de recipientes de morfologia troncocónica, com bordos espessados no exterior (por vezes semi-circulares) que culminam, geralmente, em lábios pendentes. Os diâmetros de boca situam-se entre os 30 e 50 cm. Na maioria dos casos os acabamentos consistem no simples alisamento da superfície, que por vezes se encontra coberta por uma fina aguada de cor distinta da pasta. É conhecida a serventia destes recipientes em práticas culinárias e higiénicas.

Na esmagadora maioria dos casos não se encontram decorados, havendo no entanto excepções que convém assinalar. Num primeiro caso, a decoração cinge-se ao desenho de uma fina linha ondulante sobre o lábio, que se apresenta ligeiramente pendente (estampa III, nº 23). A respeito deste exemplar, que felizmente podemos reconstituir graficamente o perfil integral, importa ainda destacar o cuidado posto no seu fabrico. De facto, trata-se de um recipiente de pasta compacta e bem depurada, revestida, na superfície exterior, por uma aguada homogénea de tom creme. As paredes interiores mostravam-se cuidadosamente brunidas, uma das mais antigas formas de impermeabilizar cerâmica. Com efeito, este vaso parece ter estado relacionado com actividades de higiene pessoal, nomeadamente abluções. Esta funcionalidade é sugerida, não só pelo tratamento brunido da superfície, mas principalmente pela existência de uma orifício na parte central do fundo que, de certo, funcionaria como escoadouro. Segundo os dados emanados das escavações no castelo de Palmela, o motivo decorativo que este recipiente ostenta é característico do século XVII, substituindo as incisões de linhas

paralelas, comuns na centúria anterior (Fernandes e Carvalho, 1998:213). Identificou-se ainda um outro tipo de decoração habitualmente designada de lábio de folha dupla, que consiste basicamente na união intervalada dos lábios superior e inferior, de modo a obter um aspecto folheado (estampa III, nº 24).

4.2. Frigideiras

Identificaram-se 220 indivíduos classificados como frigideiras, que equivalem a 28 % da amostra de cerâmica comum recuperada no silo. Este exagerado número deve necessariamente ser matizado, através da ponderação estatística de outros elementos definidores desta forma. Refiro-me concretamente às pegas laterais triangulares, identificadas em apenas 43 indivíduos. Na verdade, muitos dos fragmentos incluídos nesta forma não se encontravam dotados de pega, mas o facto de as suas paredes exteriores mostrarem sinais de exposição reiterada ao lume levou-me a considerá-lo frigideiras. Porém, isto não significa, que alguns desses exemplares não possam ter pertencido por exemplo a taças, cuja variedade morfológica se aproxima, em alguns casos, do perfil das próprias frigideiras.

Genericamente pode dizer-se que os exemplares classificados como frigideira correspondem a recipientes abertos de bordo reentrante, por vezes espessado e dotados de pegas laterais triangulares, aplicadas directamente sobre o lábio. Os diâmetros de boca são bastante variáveis podendo alcançar os 30m cm. Contudo a maioria das peças aparentam uma estatura mediana, com uma abertura média situada entre os 18 e os 22 cm. O desenho do perfil apresenta algumas variações, podendo ser mais ou menos aberto, sendo que o bordo é sempre reentrante. Comparativamente com as panelas, as pastas das frigideiras são mais grosseiras, mas com características materiais semelhantes. O simples alisamento é, de longe, o tratamento de superfície mais comum, embora se tenha também identificado um número razoável de exemplares cobertos com aguadas de diversas tonalidades.

Esta forma foi documentada em sítios arqueológicos um pouco por todo o país, marcando presença no repertório de cozinha pelo menos desde o séc. XV e denotando muito poucas alterações desde então. A ampla incidência deste tipo recipientes no registo arqueográfico torna fastidiosa e inconsequente a tarefa de encontrar

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paralelos para as peças estudadas. Contudo, não posso deixar de referir que o estudo apurado de conjuntos diacrónicos deste tipo de recipientes levou à percepção de uma linha de evolutiva que, a partir do séc. XVII, parece caminhar no sentido da redução do tamanho das pegas (Fernandes e Carvalho, 1998, p. 13). Este facto é relevante para a análise dos fragmentos do silo da rua dos Peixeiros, uma vez que os exemplares aí recuperados apresentam, de facto, dimensões modestas.

4.3. Taças, Caçoilas e Caçarolas

Em conjunto, estas três categorias formais representam 13 % da amostra de cerâmica comum. Todavia, deve desde já esclarecer-se que as caçoilas e as caçarolas têm um peso praticamente nulo no conjunto, encontrando-se representadas por um e três indivíduos, respectivamente.

As formas tratadas neste apartado têm em comum o facto de possuírem uma morfologia aberta e desenhos de bordo por vezes semelhantes, facto que pode ter levado a uma classificação errónea de alguns fragmentos mais diminutos, que não deixam antever o desenvolvimento do corpo da peça. De facto, a principal distinção entre estes tipos de recipiente reside, na relação entre a sua altura e o diâmetro de abertura, bem como na presença ou ausência de elementos de suspensão, nem sempre identificáveis, dadas as reduzidas dimensões de alguns dos fragmentos.

O peculiar formato da peça nº 29 (estampa III) levou à sua classificação como caçarola, por analogia a alguns exemplares recolhidos nas escavações do Castelo de Palmela (Fernandes e Carvalho, 1998, nº 123). Trata-se de um recipiente largo e aparentemente baixo, decorado com dois sulcos paralelos e que seria munido de uma asa de que ainda é visível o seu arranque. Embora apresente uma morfologia algo diferente da peça anteriormente descrita, o exemplar nº 30 (estampa III) foi igualmente classificado como caçarola.

As taças aqui estudadas mostram formatos variados, quer ao nível dos bordos quer no que diz respeito à orientação das paredes, que podem ser arqueadas, direitas ou carenadas. Com efeito, este tipo de recipientes pode apresentar perfis diversos (estampa 3): de tendência hemisférica (nº 27) ou esférica (nº 28), carenados (nº 31) e mesmo troncocónicos (nº 33). O único motivo decorativo documentado neste tipo de recipientes são as

caneluras, geralmente situadas um pouco abaixo do bordo.

As características morfométricas deste tipo de recipientes adequam-se a um vasto leque de possíveis utilizações, entre as quais caberia destacar as relacionáveis com a culinária. Neste âmbito, não é difícil imaginar que constituíssem uma vasilha absolutamente multifuncional, podendo ser utilizada na preparação e serviço de refeições, servir como recipiente de consumo individual ou colectivo (por exemplo “saladeiras” e “fruteiras”) ou usado para recolher os desperdícios decorrentes das actividades culinárias, etc…

4.4. Pratos e Tampas

A distinção entre as duas formas enunciadas nem sempre é pacífica, uma vez estas compartem muitas características comuns. Todavia, deve esclarecer-se que todos os exemplares de dimensões modestas, com o bordo ligeiramente exvertido e sem espessamento foram considerados tampas (p.e. estampa III, nº 34 e 35), perfazendo um total de 53 indivíduos, que equivalem a 7 % da cerâmica comum recolhida neste contexto. A designação prato reservou-se para uns escassos cinco fragmentos de bordos espessados interiormente, definindo uma pequena aba e que aparentavam um diâmetro elevado. As pastas são grosseiras, friáveis e pouco depuradas, e a superfície das paredes foi apenas levemente alisada. Não obstante, a existência destes recipientes não significa necessariamente que outros exemplares classificados como tampas não possam ter funcionado como pratos. A este respeito, convém esclarecer que apenas foi identificada um fragmento de pega em forma de “cabeça de alfinete”, um elemento que por norma surge associado às tampas.

4.5. Vasos de Noite

Foram incluídos nesta categoria 11 indivíduos, cuja expressão no conjunto da cerâmica comum não chega a atingir 1 %. A análise deste tipo de vasos é claramente prejudicada pela reduzida dimensão dos fragmentos recuperados, resumindo-se muitas vezes só à zona da aba, como é o caso do exemplar nº 48, apresentado na estampa IV. Segundo os paralelos conhecidos, os vasos de noite (também chamados vasos de serviço) possuíam um corpo alto e de forma cilíndrica.

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Fig. 4 – Fragmentos de cerâmica comum recolhidos no silo da rua dos Peixeiros.

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4.6. Panelas

Sendo um vasilhame intimamente ligado às actividades culinárias, é com naturalidade que se verifica que as panelas estão muito bem representadas no universo de cerâmica comum aqui analisada. Foram contabilizados 215 indivíduos que equivalem a um quinto da totalidade da amostra de cerâmica comum. À semelhança do que sucedeu com as frigideiras este número parece excessivo e não se encontra corroborado pela quantidade de asas inventariadas.

Trata-se de recipientes fechados e dotados de asas verticais, com o colo bem marcado em ambas superfícies a partir do qual se desenvolve um corpo de tendência mais memos globular ou oval. Infelizmente não se registou qualquer exemplar com o perfil completo. Não obstante, os paralelos conhecidos informam que os fundos eram convexos, surgindo marcados por uma carena baixa. A orientação do bordo apresenta algumas variações podendo ser de tendência mais vertical ou mais convexa e de morfologia plana ou boleada (estampa III, nº 25 e 26). As pastas mostram-se relativamente cuidadas, com inclusões de pequeno e médio calibre, predominando os tons alaranjados e avermelhados. Uma outra característica das pastas reside na sua porosidade, indispensável ao cumprimento das funções a que estão destinados a este tipo de recipientes, pois facilita a oxigenação da argila, aumentando assim a resistência da cerâmica ao impacto térmico. Tanto quanto foi possível apurar, os diâmetros variam entre os 14 e os 19 cm.

No que diz respeito à decoração, cumpre assinalar a presença de uma ou duas caneluras, situadas no colo, pouco abaixo do lábio. Identificou-se também um exemplar decorado com linhas oblíquas incisas no colo (estampa IV, nº 36) que se encontrariam associadas a outros motivos (linhas ondulante) desenhados no corpo, conforme sugerem alguns fragmentos de bojos desconexos, mas com as mesmas características de pasta. Esta curiosa peça chama a atenção também pelo facto de não mostrar quaisquer estigmas de acção do fogo, contrastando com a maioria dos recipientes incluídos nesta forma. Este facto pode sugerir que lhe estaria reservada uma funcionalidade distinta daquela cumprida por recipientes formalmente congéneres – possivelmente relacionada com a pequena e média armazenagem –, alertando para a possibilidade de tal se verificar também em relação a outros exemplares, em particular os de maiores dimensões.

4.7. Potinhos

Foram informatizados um total de 32 fragmentos de potinhos: 17 bordos, 15 fundos e um exemplar que conservava o perfil integral (estampa IV, nº 42). A ponderação estatística do nmi desta forma resulta numa expressão de 2% face à totalidade do conjunto da cerâmica comum. De modo genérico, caracterizam-se por possuírem um colo bem marcado, vincando a separação do corpo (em forma globular achatada) em relação ao bordo que, regra geral, se apresenta ligeiramente inclinado. O fundo é em forma de “bolacha”, revelando-se plano, destacado e de reduzido diâmetro, oscilando entre os três e quatro centímetros. Estas humildes dimensões são evidentes também no diâmetro de abertura que não ultrapassa os 9 cm. Conforme informam alguns paralelos conhecidos, este tipo de recipientes era dotado de uma pequena asa vertical, facto que lhes confere uma especial aptidão para o consumo de líquidos.

As pastas são argilosas e razoavelmente depuradas, de cor avermelhada ou alaranjada, tendo sofrido cozeduras oxidantes (modo A). Na maioria dos casos as superfícies são apenas alisadas. Num dos exemplares identificou-se um motivo decorativo brunido, desenhando várias linhas verticais paralelas. Alguns dos fragmentos de bordo apresentavam entre uma e duas caneluras situadas imediatamente abaixo do bordo (estampa IV, nº 43).

As características morfométricas deste tipo de produções levam a considerar a hipótese de puderem tratar-se de imitações de protótipos produzidos em cerâmica modelada, na qual se produziam recipientes bastante apreciados no consumo de bebidas durante os séculos XVII e XVIII.

4.8. Bilhas A denominação de bilha foi atribuída a 21

indivíduos, que equivalem a 3% da amostra de cerâmica comum recuperada no contexto estudado. Também neste caso, a reduzida dimensão dos fragmentos impediu a avaliação da morfologia desenhada pelo corpo. Com efeito, os exemplares assim classificados resumem-se a fragmentos de bordo que apresentam um amplo espessamento externo culminando num lábio largo e direito. Abaixo do espessamento desenvolve-se um amplo colo, cujo diâmetro coincide com o do bocal e que se situa entre os 13 e 15 cm. As pastas apresentam

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uma coloração alaranjada, relativamente bem depurada e cujas superfícies foram regularmente alisadas e em alguns casos revestidas com um fino engobe avermelhado. Cumpre ainda mencionar que alguns fragmentos se encontram decorados com uma canelura realizada no colo (estampa IV, nº 46).

Apesar da parcialidade dos perfis conservados, parece ser possível associar este tipo de recipientes a funcionalidades relacionadas com o transporte e armazenagem de líquidos, nomeadamente de água. Esta utilização é sugerida pelo facto de se tratar de recipientes fechados, assim como por alguns paralelos arqueológicos e, principalmente, etnográficos.

4.9. Ânforas

A expressão estatística deste tipo de contentores no total da cerâmico comum é quase nula, uma vez que esta classificação só foi atribuída a três indivíduos, em dois deles com grandes reservas. Não obstante, em relação ao exemplar nº 45 (estampa IV) não restam dúvidas de que, de facto, se trata de uma ânforeta, uma forma relativamente comum durante a época Moderna, conhecida na bibliografia internacional como “olive oil jars”. O bordo é espessado e relativamente baixo, definindo uma secção em quarto de círculo, com uma concavidade interior que facilitaria o seu enrolhamento. Não se conhece a morfologia do corpo, uma vez que a peça está fracturada ao nível do colo.

O exemplar apresentado oferece notórias semelhanças com algumas das ânforas recolhidas em contextos do séc. XVII, na Praça Cristóvão Colombo no Funchal (Gomes e Gomes, 1998, p. 326, P1/C3 – 7 a P1/C3 – 10), onde, à semelhança do que sucede no conjunto estudado, se encontram associadas a faianças portuguesas, maioritariamente, decoradas em azul-cobalto sobre fundo branco e, mais raramente em vinhoso e azul (Idem, Ibidem).

Ao nível da pasta, a peça da rua dos Peixeiros parece também coincidir com algumas ânforas conhecidas e cuja produção é, geralmente atribuída a centro oleiros andaluzes, em particular da cidade de Sevilha, onde se foram fabricadas pelo menos desde meados do séc. XVI. Assim, cumpre esclarecer que este exemplar foi modelado com pasta homogénea e compacta, com algumas inclusões quartzíticas e micáceas de reduzida dimensão. Foi submetida a uma cozedura em ambiente oxidante/redutor que lhe conferiu uma tonalidade

beije acastanhada, encontrando-se revestida por uma fina camada de engobe de cor creme. No território algarvio foram identificadas ânforas semelhantes em Vilamoura e Portimão (Gomes, 1993, p.51-52). Os exemplares recuperados no naufrágio de S. Pedro de Alcântara (1786, Peniche) mostram também características afins às da peça apresentada (Blot, 2006, fig. 5 e 6) coincidindo, no âmbito cronológico, com a datação de algumas das faianças estudadas neste trabalho. Convém no entanto salientar, que a autora responsável pelo seu estudo lhes atribui uma possível origem peruana (idem, ibidem: 73 a 75).

Por último, importa ainda referir que este tipo de contentores é consensualmente considerado como vasilhame para o transporte de azeite, encontram-se difundidos um pouco por todo o mundo colonial ultramarino.

4.10. Jarros

Esta forma foi reconhecida em 39 indivíduos, que representam 5 % desta categoria cerâmica. Apesar de numerosos, todos exemplares se encontram reduzidos a diminutos fragmentos, dos quais se reproduziu graficamente apenas o que apresentava o perfil mais completo (estampa IV, nº 47). Deve sublinhar-se que todos os fragmentos apresentavam notáveis similitudes, sendo que alguns poderiam mesmo pertencer a uma mesma peça. Caracterizam-se por possuírem bordo boleado, ligeiramente inclinado e espessado, definindo um amplo colo, do qual se conhece apenas uma parte. Presumivelmente, deveriam apresentar um corpo globular ou ovóide. Um outro elemento caracterizador deste tipo de vasilha reside na saliência existente na zona superior do colo, pouco abaixo do início do espessamento do bordo. A sua orientação horizontal dá ideia de se tratar de um cordão plástico aplicado, uma possibilidade que a análise atenta dos fragmentos desmente categoricamente. Esta especificidade técnico – decorativa foi identificada em todos os fragmentos. O diâmetro médio estimado para estas peças pode estabelecer-se entre os oito e os 10 cm

Resta dizer, que a classificação destes exemplares como jarros se ficou a dever, não só à sua aparência geral, mas também ao facto de alguns fragmentos apresentarem “ondulações” ao nível do bordo, sugerindo a existência de uma boca trilobada, uma morfologia geralmente adoptada para funções relacionadas com o serviço de bebidas.

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Fig. 5 – Fragmentos de cerâmica comum, de anforeta e de cerâmica moldada recolhidos no silo da rua dos Peixeiros.

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Fig. 6 – Fragmentos de cerâmica vidrada e de cerâmica esmaltada recolhidos no silo da rua dos Peixeiros.

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5. Cerâmica moldada

Esta categoria cerâmica é completamente residual no contexto estudado, encontrando-se representada apenas por cinco indivíduos, que correspondem a fragmentos muito diminutos. Destes, em apenas três foi possível propor a associação a uma forma concreta, ainda que algumas reservas. O exemplar reproduzido na estampa IV (nº 44) deverá corresponder a uma pequena jarra. Os restantes foram classificados como potinhos, podendo ser também denominados de canecas.

Como é normal nas peças fabricadas a molde a pasta é muito fina, depurada e de tonalidade avermelhada ou alaranjada. Comparativamente com outros conjuntos conhecidos, a cerâmica modelada da rua dos Peixeiros não apresenta uma decoração muito requintada, tendo-se documentado somente algumas caneluras e relevos ondulantes ao nível do colo.

Este tipo de cerâmica é característico dos séculos XVII e XVIII, sendo relativamente consensual a sua associação à corrente artística que passou à história como estilo barroco (Ferreira, 1995). A difusão da cerâmica modelada estendeu-se a todo país tomando contornos de uma autêntica “moda”. Pelo que se sabe, os recipientes de menor dimensão eram utilizados sobretudo no consumo de bebidas.

6. Cerâmica vidrada e esmaltada

Os recipientes revestidos com vidrado constituem 5 % do conjunto cerâmico exumado no enchimento do Silo. As formas identificadas são na maioria dos casos abertas, encontrando-se vidradas exclusivamente na superfície interna, ainda que por vezes o vidrado ao escorrer acabe revestir a zona junto exterior do bordo. As superfícies externas mostram-se são alisadas e, frequentemente cobertas por uma fina aguada de coloração variada, que pode ir desde o esbranquiçado ao avermelhado, passando também por várias escalas de cinzento.

A louça vidrada de chumbo apresenta como cores exclusivas o verde, o castanho e um tom derivado deste último, habitualmente denominado melado. O melado é comum em taças com pastas avermelhadas, enquanto o vidrado verde é mais característico dos alguidares, fabricados tanto com pastas claras, obtidas com cozeduras de

modo C, como com pastas avermelhadas, cozidas segundo os preceitos do modo C de Picon (2002). A cor castanha foi documentada em fragmentos de pratos, taças, caçoilas e tampas, todos modelados com pasta de cor avermelhada e acusando uma cozedura de tipo A.

A forma mais frequente desta categoria tecnológica é de longe o alguidar. Foram contabilizados 19 indivíduos integráveis nessa forma que, na maioria dos casos surgem revestidos com vidrado verde. Com efeito, 15 fragmentos apresentam essa cor, enquanto que os vidrados castanhos e melados servem de cobertura a apenas dois exemplares cada. Os vidrados verdes são bastante variáveis no que diz respeito à cor e à sua qualidade. A este propósito convém esclarecer que, tendo em consideração as características da pasta, o conjunto pode ser dividido em dois grandes grupos: os de pasta bege cozida em modo C e os de pasta avermelhada que sofreram uma cozedura oxidante/redutora, enquadrável no modo. Em termos quantitativos o primeiro grupo está em ligeira desvantagem (8 nmi), uma situação que se inverte no que à qualidade dos fabricos diz respeito. Com efeito, o conjunto minoritário denota um maior apuramento técnico, resultando em recipientes de vidrado bem aderente, cor forte e bem distribuída no interior e ao longo de uma faixa exterior que, regra geral, coincide com o lábio. A superfície externa é engobada por uma solução aguada de coloração creme e de reduzida espessura. Convém referir que este tipo de fabrico é considerado, por alguns autores, como uma importação proveniente das olarias sevilhanas. No segundo grupo a qualidade dos acabamentos e claramente inferior, sendo frequentes os vidrados baços, estalados e pouco aderentes, com cores diluídas mostrando grande variação cromática. Por último, importa referir que, em termos formais, os recipientes integrados nesta categoria tecnológica não diferem grandemente daqueles produzidos em cerâmica comum, deixando antever uma funcionalidade análoga. De facto, em ambos os casos foi possível apurar que os alguidares apresentam uma morfologia troncocónica, com bordo espessado no exterior (por vezes semi-circular), culminando em lábios planos ou pendentes.

Os quatro indivíduos classificados como saladeiras mostram as mesmas formas básicas dos alguidares, distinguindo-se por possuírem dimensões mais modestas e, consequentemente, paredes menos

espessas. Metade do conjunto encontra-se revestida com vidrado de cor verde e a restante parte possui uma coloração castanho-escuro. Deve ainda salientar-se que, ao contrario do que sucede com os alguidares, não de documentaram exemplares de bordo pendente.

As taças são a segunda forma mais representada no conjunto da cerâmica vidrada, tendo-se identificado 15 indivíduos. Tal como se havia verificado em relação aos exemplares de cerâmica comum, uma das principais características desta categoria formal é, paradoxalmente, a variedade de perfis que integra. Deste modo, importa destacar a presença de recipientes de perfil quebrado, hemisférico e troncocónico, com bordos de inclinações diversas, podendo ou não apresentar colo marcado (estampa V, nº 51 a 54). Os exemplares com perfil quebrado, podem apresentar carena baixa ou na zona mesial da peça. Resta ainda referir, que as taças se encontram indiscriminadamente revestidas por vidrados das três cores consideradas na análise deste conjunto.

Os pratos encontram-se escassamente representados, tendo sido contabilizados apenas cinco indivíduos, alguns deles com reservas. Merece destaque um exemplar de consideráveis dimensões revestido com vidrado castanho-escuro (estampa V, nº 50). As exageradas dimensões desta peça afastam-na de uma serventia como recipiente para consumo individual sugerindo, antes a sua integração na baixela de serviço.

Foram também identificados cinco fragmentos de caçoilas com ressalto interior para colocação de tampa, uma forma que, neste conjunto, se encontra reproduzida exclusivamente em cerâmica vidrada de cor castanha. O exemplar que reconstituímos graficamente mostra dimensões relativamente avantajadas para este tipo de recipientes (estampa V, nº 56). Contudo, estas medidas parecem ser confirmadas por uma tampa (estampa V, nº 55) de aspecto absolutamente semelhante à caçoila e cujo diâmetro coincide com a largura da mesma (na zona do ressalto), facto que leva a ponderar a hipótese de formarem conjunto.

As únicas formas fechadas desta categoria tecnológica são os “potinhos” e as jarras, das quais se identificaram dois e um indivíduo, respectivamente, todos eles revestidos com vidrado de cor verde. O fragmento correspondente à jarra é bastante diminuto, mas deixa adivinhar uma boca trilobada. Os “potinhos” apresentam um bordo

boleado de orientação vertical, colo estreito e corpo presumivelmente globular segundo deixa antever o exemplar nº 57, apresentado na estampa V.

Este último parágrafo é dedicado à cerâmica esmaltada de que se identificaram cinco indivíduos. Trata-se de peças lisas, totalmente revestidas com esmalte branco de qualidade variável, por vezes pouco espesso e em avançado estado de escamação. As pastas são depuradas de coloração creme ou esbranquiçada. Este tipo tecnológico vem no seguimento da tradição da loiça dita malagueira, coincidindo até em algumas das formas produzidas. Com efeito, os pratos são também os principais eleitos para receber este tipo de revestimento, tendo-se identificado três indivíduos. Um outro fragmento corresponde a uma pequena taça de bordo pendente (estampa 5 nº 59)

7. Palavras finais

Como ficou demonstrado pelo exposto nos pontos anteriores as cerâmicas estudadas integram diferentes categorias funcionais e tecnológicas. A amostra inclui loiça de mesa, de serviços de cozinha, assim como de armazenamento e transporte (ânforeta), preenchendo um vasto leque de exigências funcionais quotidianas.

Denota-se que o conjunto é bastante homogéneo, sendo constituído em grande parte por material enquadrável nas baixelas cerâmicas dos séculos XVII e XVIII. Todavia, ao nível das faianças foi possível apurar cronologias mais finas e que remetem para ambientes de meados finais do séc. XVIII. Não obstante, foram também identificados materiais mais antigos, concretamente faiança majólica de produção italiana (séc. XV-XVI) e sevilhana (séc. XVI), bem como alguns fragmentos de provável loiça com revestimento dourado, integrável nos fabricos valencianos de Paterna ou Manisses (séc. XIV-XVI). Tal como acontece com o fundo de terra sigillata hispânica (anexo I fot 20), trata-se de fragmentos claramente deslocados do seu contexto original.

8. Bibliografia

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