a tardinha - lei da palmada

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SALVADOR, SÁBADO, 31 DE MAIO DE 2014 4e5 Foi criada uma norma que muda as regras dentro de casa: castigo com palmada pode ser proibido DARLAN CAIRES cidentes acontecem. Um minuto de distração e, pronto, já foi: desobedeceu às regras e acabou fazendo o que nunca pode. Daí, vem o inevitável: as consequências. Ou em forma de castigo ou em forma de palmada. Certo? Não. Acredite: mesmo de leve, dar tapinha não pode. Existe uma lei que proíbe isso. A palmada é uma forma de agressão. Quando um adulto resolve castigar batendo na mão ou no bumbum, ele está praticando um ato de violência. Essa proibição está no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um conjunto de leis que ditam normas com uma única intenção, a de proteger. William Novais, 10, estava brincando de ser fazendeiro. Ao ver um pé de tomates, ele resolveu arrancar os verdes para colocar na sua plantação. A brincadeira foi legal, mas foi interrompida pelo pai do garoto. “Ele me deu uns tapinhas porque arranquei os tomates”, contou. O pai de William queria mostrar a ele que para tirar as frutas precisaria esperar o crescimento delas. Mas esse não foi o melhor jeito de ensinar. “Além de não educar, ele ainda pode repetir o ato de bater”, disse a psicóloga Lilian Britto. Não só bater, mas outras formas de violência, como o bullying ou xingamentos agressivos, interferem na sua personalidade no futuro. “Quem cresce assim pode se tornar alguém agressivo ou dependente de outras pessoas”, explicou Lilian. Problema brasileiro No Brasil, de tanto saber que lições assim existem, elas se tornaram normais. “Precisamos muito dessa lei porque vivemos em um lugar onde castigos físicos e humilhantes são tidos como educativos”, explicou a coordenadora do Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância do ABCD e psicóloga, Lígia Caravieri. Não é porque você não pode receber nenhum ato violento que vai sair por aí fazendo o que quer. Lígia ainda diz que para aprender precisamos experimentar. Mas é necessário controle. “Não pode fazer tudo. Saber quais os limites faz parte do crescer”, disse o advogado na defesa dos direitos humanos da criança e do adolescente Renato Roseno. Consertando a lei Não está escrito com precisão no ECA que palmadas e tapas moderados são proibidos. Por isso, é muito difícil que casos assim sejam levados para julgamento. Para corrigir isso, desde 2003, foi sugerido criar um novo texto para melhorar o que está no ECA, chamando de Lei da Palmada. Na semana passada, um grupo que elabora leis do país, a Comissão da Câmara, disse sim para esse projeto. Para virar lei, ainda falta passar pelo Senado – conjunto de pessoas que analisam e que votam projetos como esse. A apresentadora Xuxa acompanhou o dia da votação. Ela tem envolvimento com esse tema desde 2006, quando se juntou à Rede Não Bata, Eduque. Sua presença causou polêmica porque um dos deputados da mesa se referiu à apresentadora com desprezo. Se não aprendia na escola, levava tapas na mão. Isso era comum no século 19 e início do século 20. Naquela época, estudar não era um direito de todos. Os que iam ao colégio eram vistos como adultos pequenos. Ainda não se tinha descoberto que cada um tem o seu jeito de aprender. Então, pensavam que podiam obedecer a qualquer ordem que lhe fosse pedida. A punição funcionava assim: quem não aprendia era castigado com a palmatória – um objeto de madeira feito para bater na palma da mão. Ficar preso em uma sala escura ou ajoelhar no milho eram outras formas de castigar. Essas técnicas eram adotadas não só pelos colégios, mas pelas famílias da época. “As crianças até aprendiam, mas era tudo na base do medo. Só a partir dos anos 50 é que as escolas e até as famílias começaram a mudar para o que é hoje”, disse a filósofa e professora do Departamento de Educação da UFRJ, Tânia Zagury. Registro novo Em homenagem a um menino chamado Bernardo, a lei mudou de nome. Desde o último dia 21, agora, ela será a Lei Menino Bernardo. A mudança é boa não só pela consideração com o garoto, ela melhora o seu significado. Segundo Maria Tereza Marcílio, diretora da Avante, colocar o nome de uma lei com a palavra “palmada” diminui a sua importância. Trata-se mais do que isso. “Ela fala sobre castigos físicos e formas de humilhação”. Um tapinha sempre dói Palmadas da escola Bernardo Boldrini foi encontrado morto no Rio Grande do Sul após receber uma injeção. O caso tem comovido o país, e, em sua homenagem, deram seu nome à lei. Bernardo não recebeu palmadas. Mas, da mesma forma que acontece com alguém que é castigado com elas, ele foi vítima da violência. Por isso a homenagem. “Mudar o nome da lei para o dele foi um gesto de expor a violência contra crianças. Foi mais uma vítima de adultos”, explicou a assistente oficial da Coordenadoria da Infância e da Juventude, Sandra Gonzaga. Quem é Bernardo? Aziz Acervo da família/ Divulgação A

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Jornal A Tarde: suplemento infantil A Tardinha publicado em 31/05/2014

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Page 1: A Tardinha - Lei da Palmada

SALVADOR, SÁBADO,31 DE MAIO DE 2014 4e5

Foi criada uma norma que mudaas regras dentro de casa: castigocom palmada pode ser proibido

DARLAN CAIRES

cidentes acontecem. Um minutode distração e, pronto, já foi:desobedeceu às regras e

acabou fazendo o que nunca pode. Daí,vem o inevitável: as consequências. Ouem forma de castigo ou em forma depalmada. Certo? Não. Acredite: mesmode leve, dar tapinha não pode.

Existe uma lei que proíbe isso. Apalmada é uma forma de agressão.Quando um adulto resolve castigarbatendo na mão ou no bumbum, eleestá praticando um ato de violência.Essa proibição está no Estatuto daCriança e do Adolescente (ECA), umconjunto de leis que ditam normas comuma única intenção, a de proteger.

William Novais, 10, estava brincandode ser fazendeiro. Ao ver um pé detomates, ele resolveu arrancar osverdes para colocar na sua plantação. Abrincadeira foi legal, mas foiinterrompida pelo pai do garoto. “Eleme deu uns tapinhas porque arranqueios tomates”, contou.

O pai de William queria mostrar a eleque para tirar as frutas precisariaesperar o crescimento delas. Mas essenão foi o melhor jeito de ensinar.“Além de não educar, ele ainda poderepetir o ato de bater”, disse apsicóloga Lilian Britto.

Não só bater, mas outras formas deviolência, como o bullying ouxingamentos agressivos, interferem nasua personalidade no futuro. “Quemcresce assim pode se tornar alguémagressivo ou dependente de outraspessoas”, explicou Lilian.

Problema brasileiroNo Brasil, de tanto saber que liçõesassim existem, elas se tornaramnormais. “Precisamos muito dessa leiporque vivemos em um lugar ondecastigos físicos e humilhantes são tidoscomo educativos”, explicou acoordenadora do Centro Regional deAtenção aos Maus-Tratos na Infânciado ABCD e psicóloga, Lígia Caravieri.

Não é porque você não pode recebernenhum ato violento que vai sair poraí fazendo o que quer. Lígia ainda dizque para aprender precisamosexperimentar. Mas é necessáriocontrole. “Não pode fazer tudo. Saberquais os limites faz parte do crescer”,disse o advogado na defesa dosdireitos humanos da criança e doadolescente Renato Roseno.

Consertando a leiNão está escrito com precisão no ECA quepalmadas e tapas moderados são proibidos.Por isso, é muito difícil que casos assimsejam levados para julgamento. Para corrigirisso, desde 2003, foi sugerido criar um novotexto para melhorar o que está no ECA,chamando de Lei da Palmada.

Na semana passada, um grupo queelabora leis do país, a Comissão da Câmara,disse sim para esse projeto. Para virar lei,ainda falta passar pelo Senado – conjuntode pessoas que analisam e que votamprojetos como esse.

A apresentadora Xuxa acompanhou o diada votação. Ela tem envolvimento com essetema desde 2006, quando se juntou à RedeNão Bata, Eduque. Sua presença causoupolêmica porque um dos deputados da mesase referiu à apresentadora com desprezo.

Se não aprendia na escola, levava tapas na mão. Isso eracomum no século 19 e início do século 20. Naquela época,estudar não era um direito de todos. Os que iam ao colégioeram vistos como adultos pequenos. Ainda não se tinhadescoberto que cada um tem o seu jeito de aprender. Então,pensavam que podiam obedecer a qualquer ordem que lhefosse pedida.

A punição funcionava assim: quem não aprendia eracastigado com a palmatória – um objeto de madeira feitopara bater na palma da mão. Ficar preso em uma sala escuraou ajoelhar no milho eram outras formas de castigar. Essas

técnicas eram adotadas não só pelos colégios, maspelas famílias da época.

“As crianças até aprendiam, masera tudo na base do medo. Só

a partir dos anos 50 é queas escolas e até as famílias

começaram a mudar para oque é hoje”, disse a filósofa e professora do

Departamento de Educação da UFRJ, Tânia Zagury.

Registro novoEm homenagem a um menino chamado

Bernardo, a lei mudou de nome. Desde oúltimo dia 21, agora, ela será a Lei Menino

Bernardo. A mudança é boa não só pelaconsideração com o garoto, ela melhora o seu

significado.Segundo Maria Tereza Marcílio, diretora da

Avante, colocar o nome de uma lei com apalavra “palmada” diminui a sua

importância. Trata-se mais do que isso.“Ela fala sobre castigos físicos e

formas de humilhação”.

Um tapinha sempre dóiPalmadas da escola

Bernardo Boldrini foi encontrado morto no Rio Grandedo Sul após receber uma injeção. O caso tem comovido

o país, e, em sua homenagem, deramseu nome à lei.

Bernardo não recebeupalmadas. Mas, da mesma formaque acontece com alguém que écastigado com elas, ele foivítima da violência. Por isso a

homenagem. “Mudar o nome dalei para o dele foi um gesto de

expor a violência contra crianças.Foi mais uma vítima de adultos”,

explicou a assistente oficial daCoordenadoria da Infância

e da Juventude, SandraGonzaga.

Quem é Bernardo?

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