a. sedas nunes para a reforma da universidade: um

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IDEIAS E FACTOS A. Sedas Nunes Para a reforma da Universidade: um importante debate em França 1. O Colóquio de Caen sobre o Ensino Superior e a Investigação Científica Durante três dias de 11 a 13 de Novembro findo —, cerca de 300 professores, investigadores, industriais e dirigentes sindi- calistas franceses reuniram-se em Caen, sob a presidência do De- legado-Geral para a Investigação Científica e Técnica de França, num Colóquio sobre o Ensino Superior e a Investigação Científica. Esta reunião, rematada pela aprovação de um amplo conjunto de recomendações que os observadores classificam de «revolucio- nárias», teve grande repercussão naquele país e parece destinada a assinalar um momento crítico na história da Universidade fran- cesa. Como o fez notar um comentador 1, «pela primeira vez, cien- tistas universitários propuseram reformas fundamentais das es- truturas em que trabalham, e as grandes linhas das reformas por eles preconizadas têm probabilidades não despiciendas de vir a ser adoptadas pelas autoridades». Os debates travaram-se ao redor de um certo número de tex- tos introdutórios, preparados por grupos de trabalho constituídos um ano antes, e incidiram sobre os seguintes grandes temas: — as estruturas e finalidades das Universidades; — a investigação fundamental; — as ligações entre a investigação universitária e a indústria; — a investigação médica; 1 Jean-Louis LAVALLARD, en Le Monde, 15 de Novembro de 1966.

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IDEIAS E FACTOS

A. SedasNunes

Para a reformada Universidade:um importante debateem França

1. O Colóquio de Caen sobre o Ensino Superior e a InvestigaçãoCientífica

Durante três dias — de 11 a 13 de Novembro findo —, cercade 300 professores, investigadores, industriais e dirigentes sindi-calistas franceses reuniram-se em Caen, sob a presidência do De-legado-Geral para a Investigação Científica e Técnica de França,num Colóquio sobre o Ensino Superior e a Investigação Científica.Esta reunião, rematada pela aprovação de um amplo conjuntode recomendações que os observadores classificam de «revolucio-nárias», teve grande repercussão naquele país e parece destinadaa assinalar um momento crítico na história da Universidade fran-cesa. Como o fez notar um comentador 1, «pela primeira vez, cien-tistas universitários propuseram reformas fundamentais das es-truturas em que trabalham, e as grandes linhas das reformas poreles preconizadas têm probabilidades não despiciendas de vir aser adoptadas pelas autoridades».

Os debates travaram-se ao redor de um certo número de tex-tos introdutórios, preparados por grupos de trabalho constituídosum ano antes, e incidiram sobre os seguintes grandes temas:

— as estruturas e finalidades das Universidades;— a investigação fundamental;— as ligações entre a investigação universitária e a indústria;— a investigação médica;

1 Jean-Louis LAVALLARD, en Le Monde, 15 de Novembro de 1966.

— o ensino secundário;— a formação do pessoal docente.

O âmbito da discussão foi limitado às Ciências Exactas e Na-turais, com exclusão, por conseguinte, do Direito, das Letras, dasCiências Económicas e das Ciências Humanas. Todavia, na sessãode encerramento, o director da Faculdade de Letras e Ciências Hu-manas de Caen solicitou ao Ministro da Educação Nacional, queestava presente e pronunciou o discurso de clausura, a criação deuma comissão encarregada de estudar, para as Letras e CiêmciasHumanas, reformas análogas às que haviam sido debatidas e re-comendadas pelo Colóquio.

Tentaremos seguidamente, com base nos relatos da Imprensae no texto dos votos finais 2, dar uma visão de conjunto, quer dasfundamentais directrizes de pensamento que orientaram os traba-lhos desta importante reunião, quer das principais soluções nelaapontadas para certos problemas básicos.

2. Directrizes fundamentais do pensamento elaborado no Co-lóquio

Princípio comum a todos os participantes no Colóquio pareceter sido o de a Universidade moderna ser e dever ser uma «Univer-sidade de massa». Logo na sessão inaugural se afirmou3 que «épreciso aceitar o ensino superior de massa como um facto que,globalmente, é benéfico. Dentro de vinte ou trinta anos, metadede cada classe de idade deverá prosseguir os seus estudos paraalém do ensino secundário. Este facto não corresponde a um ca-pricho dos jovens ou de seus pais, mas às necessidades de sobre-vivência de um grande país moderno». No decorrer dos debates,o mesmo pensamento apareceu firmemente consagrado, tanto narecusa categórica ao numerus clausus, como na afirmação do di-reito de todos os estudantes, aptos para efectuar estudos superio-res, a encontrar lugar na Universidade renovada. Deste modo,situando-se no polo oposto ao daqueles que encaram o crescimentoespectacular das populações universitárias com um factor dedegradação das próprias Universidades e que, por isso, desejariammante-las acessíveis apenas a um escol de privilegiados (identi-ficando, assim, a ideia de Universidade com a de uma Universi-

2 Vd. Le Monde dos dias 12, 13-14, 15 e 16 de Novembro de 1966. O textodos votos foi-nos comunicado, de Paris, pelo Dr. Alfredo de SOUSA, membrodo Gabinete de Investigações Sociais.

3 As declarações a seguir citadas são de Pierre MENDÈS-FRANCE que,por ter presidido a um precedente Colóquio, efectuado em 1956, foi convidadoa usar da palavra, em primeiro lugar, na reunião a que nos referimos1 aqui.

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dade de élite, tradicional), os participantes no Colóquio admitiramabertamente que a entrada em massa dos estudantes no ensinosuperior constitui um factor positivo, ao qual importa que a Uni-versidade se adapte.

Outra ideia fundamental do Colóquio foi a de que, posta pe-rante os problemas de escolarização e enquadramento de uma po-pulação estudantil muito volumosa e em incessante expansão, paraa qual não foi pensada ou preparada, a Universidade, tal comose apresenta, carece de reformas radicais nas suas estruturas. «Es-sas estruturas —foi dito no Colóquio e provocou geral assenti-mento —, apesar de se encontrarem já fortemente abaladas, con-tinuam a ser profundamente nefastas». E terá sido neste capítulo,como adiante se verá, que as propostas do Colóquio se revelarammais claramente revolucionárias, procurando fórmulas largamenteopostas às da actual organização universitária francesa, herdadade Napoleão e baseada nas Faculdades e nas cátedras, como uni-dades autónomas. O Colóquio rebelou-se, deste modo, frontalmentecontra um modelo de Universidade que, tendo sido primeiramenteinstituído em França, veio a ser depois adoptado por muitos outrospaíses, entre os quais Portugal.

Terceira directriz básica do Colóquio foi, sem dúvida, a de queé indispensável associar estreitamente o ensino e a investigação.Parece ter sido o Prof. Jacques MONOT, prémio Nobel, quem maisvigorosamente denunciou, durante os trabalhos, «a ideia falsa eperigosa que consistiria em pretender separar o ensino da inves-tigação». Mas a sua posição identificava-se tão seguramente coma da generalidade dos presentes que estes souberam aplicá-la, sis-tematicamente, à discussão e à elaboração de ideias acerca detodos os problemas abordados no Colóquio. Com efeito, não foi sóno traçado das novas estruturas propostas para a Universidade,mas também, por exemplo, nas soluções indicadas para a formaçãopedagógica do pessoal docente (em todos os níveis de ensino)ou mesmo para a programação e organização dos estudos secun-dários, que a preocupação de ligar intimamente o ensino à inves-tigação, ou à preparação para a investigação, constantemente trans-pareceu.

Simplesmente: se a Universidade tem de transformar-se, éafinal porque, à sua volta, a própria sociedade profundamente seestá transformando e se quer transformar (daí, precisamente, comouma das consequências desse processo global de mudança, o cres-cente afluxo de estudantes ao ensino superior). É, pois, não sópara uma massa estudantil em acelerado crescimento, mas tambémpara uma sociedade em mudança rápida, que a Universidade donosso tempo carece de ser repensada. Neste último aspecto, todaa metodologia tradicional do ensino superior (em especial a sua

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pedagogia) se vai revelando inadequada, uma vez que se orientapara a transmissão a um receptor passivo —o aluno— de umsaber já adquirido e feito. Numa sociedade afectada por mudan-ças constantes em todos os domínios da vida, da técnica, das ideias,da cultura, o que mais importa é, pelo contrário, que o estudantedesenvolva, através de uma relação pedagógica onde figure comoelemento participante e activo, a sua capacidade de criar, de in-ventar, de se libertar do já construído e recebido, de se adaptara um mundo incessantemente a fazer-se e a refazer-se: um mundoonde todo o dado de todo conhecimento, competência ou situaçãopode vir a ser posto em causa ou a mudar. Fortemente alertado paraesta nova problemática do ensino, o Colóquio de Caen insistiu comvigor na importância fulcral dos problemas pedagógicos, abor-dando-os nomeadamente sob o ângulo da «formação do pessoal do-cente». No relatório introdutivo a este último tema, lia-se, porexemplo, o seguinte: «Nos Estados-Unidos e, em menor grau, naUnião Soviética, as autoridades já compreenderam que, em socie-dades em tão rápida mutação, os próprios processos de transmis-são do saber devem ser objecto de investigações sistemáticas e in-tensivas. (...) O campo destas investigações é imenso. Devem, efec-tivamente, incidir sobre os métodos da transmissão, sobre os con-teúdos, sobre as aquisições realmente feitas pelos estudantes, sobrea comunicação que se efectua entre o professor e o aluno, etc, eainda sobre o valor propriamente educativo do ensino, sobre asestruturas dos estabelecimentos educacionais e sobre a sua missãosócio-cultural». Algumas das propostas que, em matéria pedagó-gica, este relatório formulava e que o Colóquio veio a aprovar,serão adiante mencionadas.

Finalmente —negando-se à «tentação bem natural que seexperimenta de cortar a Universidade das outras ordens de ensino,para melhor assegurar a sua independência» tentação contra aqual o reitor de Caen havia prevenido os membros do Colóquio, aodar-lhes as boas-vindas—, os participantes nesta reunião julga-ram necessário abordar e pensar os problemas da Universidade emconjunto com os dos outros graus de ensino. E foi assim que esten-deram a análise e os debates a questões atinentes, não só ao ensinosecundário, mas até ao ensino primário, focadas na sua interde-pendência com as do ensino superior.

Em suma e em esquema, eis por conseguinte, tais como sepodem captar através da informação de momento disponível, asgrandes linhas, ou directrizes, do pensamento expresso em Caen:

a) aceitação e aprovação inequívocas do facto de a Univer-sidade moderna ser uma «Universidade de massa», desti-

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nada a acolher populações estudantis em acelerada ex-pansão;

b) afirmação vigorosa de que o modelo napoleónico de estru-turação das Universidades, que actualmente subsiste emFrança e em muitos outros países, como Portugal, carecede ser substituído por um modelo diferente;

c) não menos vigorosa afirmação de que o ensino, e não sóao nível superior, deve ser estreitamente associado à inves-tigação e/ou à preparação para a investigação;

d) forte insistência na necessidade de remodelar profunda-mente a pedagogia, de formar pedagogicamente o pessoaldocente e de incentivar as investigações pedagógicas;

e) acentuada preocupação de ligar os problemas da Universi-dade aos dos outros graus de ensino e de os repensar eequacionar em conjunto.

Como já dissemos, indicaremos seguidamente as grandes li-nhas das soluções apontadas no Colóquio para um certo número deproblemas básicos. Cingir-nos-emos, no entanto, a problemas direc-tamente respeitantes à Universidade — primeiro aos problemas doseu estatuto, das suas estruturas e do seu funcionamento; depois,aos problemas do recrutamento dos corpos discente e docente, daformação dos professores e da irradiação da Universidade sobrea vida social.

3. Estatuto, estruturas e funcionamento das Universidades

Logo o primeiro dos votos finais aprovados no Colóquio pedea «criação, a título experimental, no quadro da planificação nacio-nal, de universidades públicas autónomas, concorrenciais, diversifi-cadas, não dispondo de qualquer monopólio sobre uma área geográ-fica, não compreendendo nenhuma Faculdade, a fim de se tornarpossível a diversificação e o agrupamento original das disciplinas».De facto, o que, neste aspecto, resultou dos trabalhos de Caenfoi a imagem de um novo tipo de Universidades a criar — Universi-dades tão distintas das que actualmente existem em França (istoé: tão contrárias ao modelo (napoleónico de Universidade) que, du-rante os debates, frequentemente se preferiu designá-las pela ex-pressão «conjuntos de ensino e de investigação» (ou «conjuntosuniversitários »).

Para essas novas Universidades, desejou o Colóquio que sejadefinido «um estatuto de estabelecimento público de carácter cien-tífico e técnico», destinado a «assegurar-lhes uma maleabilidadede funcionamento análoga à dos estabelecimentos de natureza

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comercial e industrial» (voto final n.° 2). Parece, pois, que osparticipantes na reunião se inspiraram no modelo francês de admi-nistração autónoma das empresas do Estado, votando por que eleseja estendido à administração das Universidades.

Estas Universidades remodeladas destinar-se-iam, porém, aacolher um número limitado de alunos. Num dos votos finais, pediu--se, com efeito, a «limitação dos efectivos de cada Universidadea uma cifra razoável (20 000 alunos no máximo)»; e no decorrerdos debates apontou-se, para os diversos ramos das Ciências Exac-tas e Naturais, o limite global superior de 8000 estudantes.

A fim de corresponder à incessante expansão das populaçõesuniversitárias, haveria, portanto, que sucessivamente criar novasUniversidades, de modo a não ser excedida a lotação prevista paracada uma delas. Desta sorte, numa mesma cidade ou região, poderiahaver vários «conjuntos universitários» a concorrer entre si. Osvotos finais referem-se, expressamente, à «criação de uma quin-zena de Universidades distintas na região parisiense e de váriasUniversidades em cada uma das principais metrópoles de equilí-brio» (voto n.° 4). Já vimos, por outro lado, como o primeiro dessesvotos destaca o carácter «concorrencial» a imprimir às novas Uni-versidades, intuito que de resto se prende com a «autonomia» ea «maleabilidade de funcionamento» que se pretende lhes sejamconcedidas.

A finalidade dos «conjuntos universitários» que viriam substi-tuir-se às Universidades actuais seria dupla: o ensino e ainvestigação. Para poder efectivamente prosseguir a realizaçãodessa dupla finalidade, cada «conjunto universitário» seria cons-tituído, não por Faculdades, mas, de um lado, por departamentosde ensino, e do outro, por institutos de investigação (podendo, ade-mais, abranger outros organismos especializados, quer de ensino,quer de investigação). As Faculdades desapareceriam, portanto, ecom elas as barreiras inter-Faculdades: designadamente, «os. pro-fessores de Faculdade transformar-se-iam em professores de Uni-versidade» (voto n.° 3).

Simultaneamente, o regime das cátedras autónomas, de acordocom o qual a responsabilidade e a orientação do ensino de cadadisciplina cabem exclusivamente ao respectivo professor, seriaabolido. Todo o pessoal docente de um dado ramo seria reunidonum mesmo departamento de ensino e, desta forma, «a plena res-ponsabilidade do ensino de cada disciplina incumbiria ao depar-tamento correspondente» (voto n.° 5).

Além de aprovar, como dissemos, a criação, «a título expe-rimental», de Universidades estruturadas segundo o novo modelo,o Colóquio votou ainda pela «articulação, desde já, das Faculdadesactualmente existentes, em departamentos de ensino e institutos

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de investigação dotados de presidentes eleitos por um tempo limi-tado» (voto n.° 5). Convém frisar este último ponto — o de a elei-ção dos directores de departamentos (e institutos) se dever fazerpara mandatos de duração limitada—, porque através dele serevela a preocupação, insistentemente manifestada no Colóquio,de impedir o «feudalismo da cátedra», ao qual se quereria pôrtermo, de renascer sob a forma de uma nova e pior situação «feu-dal»: a de um director de departamento (ou instituto) indefinida-mente instalado no seu posto. Afigura-se legítimo pensar que certosinconvenientes, neste aspecto, de muitas Universidades departa-mentais anglo-saxónicas terão estado presentes no espírito dos par-ticipantes na reunião de Caen — e que, por isso mesmo, procura-ram evitá-los.

Cada Universidade seria dirigida, num primeiro escalão, porum «senado universitário», emanado dos respectivos departamen-tos e institutos. Num segundo nível, haveria um «conselho de admi-nistração», presidido pelo «presidente eleito da Universidade» (commandato de duração limitada) e constituído, em partes iguais, pormembros daquele senado e por personalidades exteriores à Uni-versidade. A coordenação entre as diversas Universidades de umamesmo «academia» (sendo a «academia» a área geográfica decada uma das Universidades actuais) caberia a um «reitor». Nãoparece que o Colóquio haja recusado o regime, vigente em França,de nomeação ministerial desta última entidade.

As novas Universidades apresentar-se-iam «diversificadas»(voto n.° 1), quer dizer: poderiam diferir umas das outras, tantopelos elencos de disciplinas ensinadas, como pelos cursos organi-zados e diplomas concedidos, como ainda pelo próprio nível dosestudos que se poderiam nelas efectuar. Seria, com efeito, aosórgãos directivos (presidente, conselho de administração e senado)de cada Universidade que caberia, a todo o tempo, tomar decisõesacerca desses três aspectos do correspondente ensino — com «auto-nomia» e em «concorrência» com as outras Universidades. Destemodo, em vez de Faculdades mais ou menos uniformes, com cursos(e programas de cursos) idênticos ou quase idênticos e, de qual-quer maneira, rigidamente definidos, ter-se-ia uma actividade pe-dagógica diversificada e maleável, exercida segundo esquemas facil-mente reformáveis e, por conseguinte, incessantemente susceptí-vel de adaptações à variabilidade das circunstâncias, das solicita-ções e das necessidades.

Neste último aspecto, é nítido o intuito de, sem abandonar aqualidade estadual, própria das Universidades de tipo napoleónico,assumir o dinamismo característico das Universidades privadase competitivas norte-americanas. Evidentemente, na medida emque as Universidades se poderiam diversificar quanto ao próprio

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nível em que certos estudos nelas se efectuariam, poderia haverlugar para sequências de estudos inter-Universidades: em determi-nadas especialidades, um mesmo estudante começaria os seus es-tudos numa dada Universidade e viria a completá-los noutra (comoé corrente, por exemplo, nas Universidades alemãs).

4. Recrutamento dos estudantes; recrutamento e formação dopessoal docente; irradiação social da Universidade

Quem poderia ser estudante e quem poderia ser professor nasnovas Universidades?

Quanto ao primeiro destes pontos, embora não tenha sidoemitido pelo Colóquio nenhum voto final, prevaleceu, segundo pa-rece, a opinião de que toda a Universidade deverá ter o direito deverificar e julgar a aptidão, para seguir os ensinos nela ministra-dos, dos candidatos à inscrição nos seus cursos. Um diploma defim de curso — liceal, de primeiro ciclo de estudos superiores, ououtro qualquer — deverá, segundo essa opinião, ser consideradoapenas como atestação de que os estudos por ele sancionados foramefectuados com êxito pelo respectivo titular. Não dará, por con-seguinte, direito, sem explícito reconhecimento de aptidão, a pros-seguir estudos num grau mais elevado. Neste aspecto, o pensa-mento que predominou no Colóquio veio confirmar recentes ten-dências restritivas da legislação universitária francesa, se bemque rejeitando, como já vimos, toda a propensão, que nelas por-ventura se oculte, para o «numerus clausus».

Pelo contrário, no que respeita ao pessoal docente, o Colóquiooptou claramente por uma via de liberalização, emitindo por una-nimidade o seguinte voto (n.° 6): «nomeação dos professores uni-versitários apenas em função do valor dos interessados e indepen-dentemente dos seus títulos». E quase poderá dizer-se ser esta amais desassombrada de todas as posições que assumiu. De facto,a maioria dos presentes era, decerto, constituída por professoresde Universidade, portadores de títulos académicos. Que eles pró-prios tenham vindo publicamente declarar que, para ser profes-sor, o valor pessoal (isto é o curriculum) conta tanto mais que ostítulos académicos que até os pode dispensar — eis o que, atendendoàs tradições, se não pode deixar de considerar «revolucionário».Foi, na verdade, uma autêntica revolução de atitudes que, nestecampo, veio à luz.

Uma tal mutação poderia, aliás, pressentir-se em decisões, ul-timamente tomadas por Universidades francesas, de recorrer a«professores associados» — categoria há muito prevista na legis-lação universitária de França, mas só agora utilizada. Ê, por exem-plo, nessa qualidade que Pierre MASSÉ, ex-Comissário do Plano,

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que não ostenta qualquer título académico, mas cuja alta compe-tência científica e técnica está acima de toda a dúvida, exercepresentemente funções de professor na Sorbonne. Aliás, o próprioColóquio de Caen veio afirmar (voto n.° 6) que «se deveria fazerum chamamento mais amplo a professores associados, alguns dosquais deveriam beneficiar de contratos de duração não limitada».E bem se compreende que, em face da amplitude e profundidadedas transformações por que as Universidades, a vida científica ea vida económico-social estão passando em nossos dias (ou pelasquais terão, tarde ou cedo, de passar) se haja pensado que a rigi-dez académica dos métodos tradicionais de recrutamento dos pro-fessores universitários não pode indefinidamente manter-se.

Porém, do mesmo passo que assim tendia a alargar a malhados critérios selectivos dos professores universitários, o Colóquiofez-lhes novas exigências. Contra uma minoria defensora do prin-cípio de que a um professor de Universidade nada mais se devepedir do que competência científica, o Colóquio pugnou, em votofinal (o n.° 14), pela «necessidade de repensar os sistemas de for-mação do pessoal docente, em todos os graus», insistindo em queo professor «deve receber uma formação, não apenas académica,mas também psico-pedagógica e profissional» e acrescentando: «aactualização dos seus conhecimentos e dos seus métodos deve cons-tituir obrigação. A realização destes objectivos exige, principal-mente, a criação de institutos interdisciplinares de estudos peda-gógicos, dependentes das Universidades, e o desenvolvimento daspesquisas sobre a educação, às quais devem ser atribuídos recursosimportantes».

Este voto condensa as recomendações do texto introdutivo quehavia sido preparado pelo grupo de trabalho presidido pelo Prof.Jean CAPELLE 4 e do qual fora relator o jornalista BertrandGIROD DE L'AIN, geralmente reputado em França como o melhor es-pecialista dos problemas da educação nacional. Nesse documento,propunha-se a adopção de um certo número de medidas e orienta-ções de política pedagógica, designadamente as seguintes:

a) Criação de um conselho de investigação pedagógica, ondese reuniriam os representantes dos diversos organismos e servi-ços interessados nas investigações sobre educação e ao qual incum-biria, designadamente, propor temas de pesquisa e suscitar emu-lação entre os diversos núcleos de investigadores;

b) Reconhecimento pelo governo da investigação pedagógicacomo uma das actividades prioritárias de investigação, o que im-plicaria a outorga, à pesquisa educacional, de fundos muito maisamplos do que os actuais;

4 Autor de UEcole de demain reste à faire, P.U.F., Paris, 1966.

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c) Criação, no Ministério da Educação Nacional, de um Ser-viço de Pedagogia, independente das Direcções-Gerais e encarre-gado de definir orientações, acompanhar experiências em curso,atribuir créditos e efectuar contratos de investigação;

d) Criação de um Instituto Nacional das Ciências da Educa-ção, porventura análogo ao I. N. E. D. (Institut National des Etu-des Démographiques);

e) Criação, em cada Universidade, de um Instituto Universi-tário de Pedagogia, dotado de autoridade sobre um certo númerode estabelecimentos escolares experimentais e constituído parauma dupla finalidade: prosseguimento de investigações e forma-ção psico-pedagógica dos futuros professores;

f) Estimulação das investigações e vocações no campo da Pe-dagogia, mediante abertura de carreiras nas Universidades aos in-vestigadores das questões pedagógicas (actualmente, no conjuntodas Universidades francesas, existe apenas uma cátedra de Peda-gogia) ;

g) Criação de um doutoramento de 3.° ciclo em Ciências daEducação, sancionado por um aumento de remuneração em todosos graus de ensino 5.

O Colóquio aprovou por unanimidade, após alguns retoquesde pormenor, o relatório de B. GiROD DE L'AIN, O que dá bem a me-dida da importância primordial, nele reconhecida, aos problemasde pedagogia, O papel decisivo — tanto na investigação, como naformação psico-pedagógica dos professores do ensino secundárioe superior — foi atribuído aos Institutos de Pedagogia (vide, su-pra, alínea e), a criar na dependência de cada Universidade.

Aliás, naquele relatório, distinguiam-se, dentro da formaçãopsico-pedagógica, três componentes fundamentais:

l.a Psicologia e sociologia da educação: estudo da infância,da adolescência e do desenvolvimento da personalidade; dos pro-cessos de aprendizagem; da relação professor-aluno; dos fins e mé-todos da educação; da história da educação e dos sistemas educa-cionais comparados; da organização do ensino; e dos serviços deorientação escolar;

2.a Pedagogia de cada disciplina, nos diferentes níveis em quepossa ser ensinada;

3.a Técnicas pedagógicas: dinâmica dos grupos e condução dereuniões; técnicas de observação e experimentação sobre gruposescolares; métodos de avaliação das capacidades e dos conheci-mentos adquiridos; controlo dos resultados do ensino; meios audio--visuais; etc.

5 Nas Universidades francesas, há dois graus de doutoramento: o dou-toramento «de 3.° ciclo» (correspondendo o 1.° ciclo à propedêutica e o 2.° cicloà licenciatura) e o doutoramento «de Estado».

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Nesta caracterização (que consta do relatório aprovado) dastrês componentes referidas, avulta claramente a intenção de pro-curar uma nova pedagogia — intenção que corresponde, como jásalientámos, a uma tomada de consciência da sociedade modernacomo sociedade em mudança rápida, mas que reflecte igualmentea preocupação de incrementar a eficiência (ou produtividade) doensino, mediante recurso a novos modos de ensinar.

Na mesma linha de atenção às consequências, para o ensino,das transformações em curso na sociedade e na cultura, deve igual-mente situar-se o último dos votos emitidos em Caen (n.° 15):«A missão — evidente — da educação permanente, complementonecessário de toda a educação, deverá inscrever-se num dispositivoglobal e orientar o conjunto do ensino superior. A promoção dotrabalho, a actualização dos conhecimentos, a reconversão, a acçãosobre os meios socio-culturais e todas as acções já comuns a todosos tipos de estudantes de todas as idades deverão utilizar os di-versos meios de ensino à distância (ensino por correspondência,ensino audio-visual, ensino programado, ensino electrónico) e tam-bém os meios extra-universitários (casasde cultura, museus, etc.).A educação permanente, que abate as barreiras e mobiliza os ho-mens dentro e fora da Universidade, constitui uma necessidadenacional».

Com efeito, num mundo onde o saber já feito e as qualifica-ções profissionais e científicas em certo momento adquiridas estãopermanentemente a desactualizar-se e a desadaptar-se, por forçadas mutações que continuamente se introduzem na cultura, nastécnicas e na vida económica, a educação (mormente a educaçãouniversitária) terá de tornar-se permanente, isto é: terá de vir aexercer-se sobre o indivíduo, não apenas durante um período limi-tado da sua juventude, mas ao longo de toda a sua vida activa.Simplesmente :um ensino universitário permanente exige uma Uni-versidade irradiante — uma Universidade que ensine dentro dosseus muros e fora deles, em contacto directo e à distância, portodos os meios eficazes de comunicação e não apenas pelo ensinooral; e não só os jovens estudantes que até ela venham, mas tam-bém os adultos diplomados que ela mesma vá procurar nos seusmeios de vida e de trabalho.

Seja-nos permitido comentar, a propósito deste último ponto,que basta tê-lo presente para poder entender que a imagem habi-tual do que é e deve ser uma Universidade carece, numa visãoprospectiva, de ser totalmente modificada. No passado (e atéagora) a Universidade formava o indivíduo, em certa idade, deuma vez por todas, para toda a vida. No futuro (e deveria ser desde

já) terá de re-formárlo contínua ou ciclicamente, porque as for-mações válidas para toda uma vida estão inexoravelmente conde-nadas a desaparecer.

5- Conclusão

Apesar da escassez da informação por ora disponível, o examedas ideias debatidas e dos votos expressos em Caen poderia alon-gar-se muito mais, até porque —vimo-lo— o Colóquio abordouvárias outras questões basilares. Mas fique-nos apenas o que iáaí está, pois que bastante já é para muita reflexão.

Decerto, uma tal reflexão poderá ser liminarmente evitadamediante recurso a argumentos expeditos—como o de que nãosão nossos os problemas franceses ou, o que significaria mais oumenos o mesmo, que os problemas postos às Universidades, emPortugal, são distintos dos que se põem às Universidades, emFrança. Na linha de argumentos deste género, muito significativoparecerá, designadamente, que em Caen se haja apontado, como«cifra razoável» da população estudantil de uma Universidade, ade 20 000 alunos. No conjunto das quatro Universidades e dasoutras Escolas de ensino superior (civil e militar) do nosso país,não havia, com efeito, no ano lectivo de 1964-65, mais de uns es-cassos 32 000 alunos.

Evidentemente, não há identidade de problemas; mas até essadiferença é de meditar, porquanto pode exprimir um atraso nosso(não será que deveríamos ter mais estudantes nos cursos superio-res?). E também é óbvio que não há obrigatoriedade de soluçõesidênticas: pode-se mesmo duvidar, ou discordar, em princípioou na sua aplicação ao caso português, de algumas queo Colóquio adoptou. Mas, por um lado, o que este ano se disse —em relatórios reitorais e orações de sapiência —, na abertura dasUniversidades portuguesas, obriga a reconhecer que há nestas umacrise que progride; por outro lado, o exemplo de iniciativa, deimaginação, de sentido das responsabilidades e de crítica criadora,dado em Caen, é em si mesmo irrecusável; e por fim, como já anteso havia demonstrado em Inglaterra o famoso relatório ROBBINS, asquestões que aí se debateram são indiscutivelmente fundamentais;de tal modo que, onde quer que haja Universidades, elas acaba-xão — queira-se ou não — por se pôr e impor, forçando a umareinvenção da própria ideia de Universidade.

De resto, como não seria necessário refazer e reinventar a Uni-versidade, quando, sob os nossos olhos e à nossa volta, é todo o

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