sedas nunes, aderito. portugal-sociedade dualista em evolução

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A. Sedas Nunes Portugal, sociedade dualista em evolução Como todos os países em vias de desen- volvimento, Portugal é uma sociedade dua- lista, onde ao redor de restritas áreas de economia e sociedade moderna se mantém toda uma vasta zona de economia e sociedade tradicional. Entender este dualismo, na sua estrutura e na sua dinâmica evolutiva, é cap- tar um dos quadros de referência básicos da problemática nacional. O êxodo rural e a emigração, que assumem proporções de «he- morragia social», só dentro de tal esquema podem ser convenientemente situados. Sociólogos e economistas têm sublinhado o dualismo social e económico, característico dos países em vias de desenvolvimento. Têm mostrado, numa palavra, como em tais países, ao redor de áreas ou núcleos «modernizados», subsistem muito mais largas manchas de vida económica e social tradicional. Em Portugal, estudos recentes puseram a claro profundas dissemelhanças regionais de estrutura e desenvolvimento. Mas ainda se não vincou o acentuado dualismo, que também na socie- dade portuguesa está presente. Eis a lacuna que, em pri- meira aproximação ou primeiro esboço, aqui se busca preencher. Tenta-se mostrar, não só que o dualismo existe e em que aspectos captáveis mais se revela, mas também um pouco da sua dinâmica evolutiva e das suas extensas implicações na problemática na- cional. A óptica de análise adoptada é mais propriamente sociológica do que económica. Obedece, contudo, à preocupação de fornecer ao economista conclusões e perspectivas de que ele se possa servir. Não porque se julgue que a Sociologia só vale ou interessa, quando orientada para a Economia, mas porque é para a investigação in- terdisciplinar que se deseja fazer apelo.

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Page 1: Sedas Nunes, Aderito. Portugal-Sociedade Dualista em Evolução

A.Sedas

Nunes

Portugal,sociedade dualistaem evolução

Como todos os países em vias de desen-volvimento, Portugal é uma sociedade dua-lista, onde ao redor de restritas áreas deeconomia e sociedade moderna se mantémtoda uma vasta zona de economia e sociedadetradicional. Entender este dualismo, na suaestrutura e na sua dinâmica evolutiva, é cap-tar um dos quadros de referência básicos daproblemática nacional. O êxodo rural e aemigração, que assumem proporções de «he-morragia social», só dentro de tal esquemapodem ser convenientemente situados.

Sociólogos e economistas têm sublinhado o dualismo social eeconómico, característico dos países em vias de desenvolvimento.Têm mostrado, numa palavra, como em tais países, ao redor deáreas ou núcleos «modernizados», subsistem muito mais largasmanchas de vida económica e social tradicional.

Em Portugal, estudos recentes puseram a claro profundasdissemelhanças regionais de estrutura e desenvolvimento. Masainda se não vincou o acentuado dualismo, que também na socie-dade portuguesa está presente. Eis a lacuna que, em pri-meira aproximação ou primeiro esboço, aqui se busca preencher.Tenta-se mostrar, não só que o dualismo existe e em que aspectoscaptáveis mais se revela, mas também um pouco da sua dinâmicaevolutiva e das suas extensas implicações na problemática na-cional.

A óptica de análise adoptada é mais propriamente sociológicado que económica. Obedece, contudo, à preocupação de fornecer aoeconomista conclusões e perspectivas de que ele se possa servir.Não porque se julgue que a Sociologia só vale ou interessa, quandoorientada para a Economia, mas porque é para a investigação in-terdisciplinar que se deseja fazer apelo.

Page 2: Sedas Nunes, Aderito. Portugal-Sociedade Dualista em Evolução

Haver escolhido tal óptica implicou dificuldades e trabalhosadicionais. Inexistindo em Portugal os estudos sociológicos — masespera-se que a própria leitura deste artigo sugira vantagens quese poderiam deles colher —, houve que recorrer a informações que,sendo estatísticas, estão elaboradas para os fins de outras análi-ses, não correspondendo, portanto, às necessidades do sociólogo,e sendo outras, quase se tiveram de limitar a impressões e dedu-ções «pessoais». Certo é que , para seleccionar e apresentar os da-dos estatísticos que adiante se lerão, foi preciso recolher materialtrês ou quatro vezes mais abundante. Aqui fica um agradecimentocaloroso a quem se prestou, sem reservas, a participar em tão in-grata função, nomeadamente os colegas do Gabinete de Investiga-ções Sociais, Raul da SILVA PEREIRA e Mário CARDOSO DOS SANTOS.

O artigo leva por título «Portugal, sociedade dualista em evo-lução». No entanto, só ao Continente se refere. Na parte final sãomencionadas algumas outras limitações.

1. «Sociedade tradicional» e «sociedade moderna»: sua projecçãono espaço territorial

a) Expansão industrial e estagnação agrícola

São conhecidas as assimetrias sectoriais que têm caracteri-zado o crescimento recente da economia metropolitana portuguesa.

Entre 1953 e 1961, as taxas médias anuais de crescimento doproduto interno bruto, nos diversos sectores de actividade, foramas seguintes 1:

Agricultura, silvicultura e pesca 0,9 %Indústrias extractivas —2,1 %Indústrias transformadoras e construção 7,3 %Electricidade, gás e água 8,4 %Transportes e comunicações 6,1 %Comércio e outros serviços privados 6,3 %

Desde logo ressalta o contraste entre uma agricultura quaseestagnante, que só com extrema lentidão consegue fazer crescero seu produto, e os sectores secundários e terciários em francaexpansão.

Posteriormente àquele período, a indústria, após uma re-tracção em 1962 ocasionada por circunstâncias extra-económi-

i Cfr. V. XAVIER PINTADO, Structure and growth of the PortugueseEconomy, E. F. T. A., 1964, p. 49

1+08

Page 3: Sedas Nunes, Aderito. Portugal-Sociedade Dualista em Evolução

cas, logrou retomar a sua marcha ascendente. Assim, as médiassemestrais dos índices de produção respeitantes às indústrias trans-formadoras apresentam-se do seguinte modo2:

1962:1.° semestre 1232.° semestre 121

1963:1.° semestre 1242.° semestre 128

1964:1.° semestre 135

Estimativas oficiais, recentemente vindas a público, indicam,como taxa anual de crescimento do produto formado em 1963 eprevisto para 1964 no sector «indústrias e construção», a de 7 % 3.Mas as mesmas fontes fazem notar, acerca do sector da «agricul-tura, silvicultura e pesca», que, depois de uma «acentuada expan-são» em 1962, ocasionada por excepcionais condições agrícolas, so-breveio «estacionaridade no último ano», prevendo-se «contracçãoem 1964, não obstante o sensível acréscimo do valor trazido pelapesca» 4. As assimetrias sectoriais de crescimento mantêm-se, por-tanto.

O nítido dualismo económico (agricultura estagnante, indús-tria em expansão), que assim avulta, imediatamente sugere umdualismo mais radical, de ordem sociológica, que é aquele que pro-priamente nos interessa abordar. Porque o crescimento da indús-tria pode, na verdade, ser interpretado como expressão e resultantedo movimento para o progresso de um dado sector da sociedadeportuguesa, e a estagnação da agricultura pode ser encarada comoindicador de bloqueamento no atraso de um outro sector dessamesma sociedade.

6) Economia moderna e economia tradicional

A sugestão de um dualismo sociológico, subjacente e sub-actuante ao dualismo económico mencionado, pode ser aprofun-

2 Cfr. índices mensais da produção industrial da Associação IndustrialPortuguesa, publicados em folha anexa à revista Indústria Portuguesa. Base:1958 = 100.

3 Vd. Relatório da Lei de Meios para 1965.4 Ibidem.

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dada mediante recurso a comparações, não já inter-sectoriais, masinter-regionais.

Assimetrias Económicas Distritais

QUADRO(Percentagens)

Distritos

(D

Continente ...

AveiroBejaBragaBragança .Cast. BrancoCoimbra ...ÉvoraFaroGuarda ....LeiriaLisboaPortalegrePortoSantarém .Setúbal ....V. do CasteloVila Real .Viseu

Populaçãoresidenteem 1960

(2)

100,0

6,33,37,22,83,85,22,33,83,44,9

16,72,3

14,45,64,53,33,95,8

Produtointernobruto

em 1958

(3)

100,0

5,52,85,81,53,23,82,62,81,73,9

30,42,3

16,04,85,91,81,93,3

Produtobruto

industrialem 1958

(4)

100,0

7,70,78,00,22,52,80,71,70,33,1

34,91,2

22,62,68,90,90,50,7

Produtobruto docomércio

e serviçosem 1968

(5)

100,0

3,31,63,41,22,03,71,92,41,52,5

45,91,5

16,33,33,51,61,72,7

Impostosobre

aplicaçãode capitais.

(Capitaismanifes-

tadosem 1961)

(6)

100,0

3,62,13,10,41,61,61,41,00,91,4

59,50,9

13,82,64,10,60,50,9

Impostocomple-mentar.(Rendi-mentosglobais

em 1981)

(7)

100,0

2,10,82,20,21,22,11,51,10,41,3

59,2

1,120,8

1,92,70,40,40,6

CONTES: Para (2): X Recenseamento Geral da População, 1960; para (3), (4). e (5) :M. DE SANTOS LOUREIRO, Assimetrias Espaciais cie Crescimento no ContinentePortuguês; para (6) o (7): Anuário Estatístico das Contribuições e Impostos, 1961.

Tome-se, para este efeito, o quadro n.° 1, onde figuram, empercentagens dos valores respeitantes ao Continente, as partici-pações distritais na população residente, no produto interno bruto,produto bruto industrial, no produto bruto do comércio e dos ser-viços, nos capitais manifestados para os efeitos do imposto sobreaplicação de capitais (secção A) e ainda nos rendimentos globaisdeclarados para os fins do imposto complementar. Tem-se o se-guinte :

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— a 17 % da população (residentes no distrito de Lisboa) cor-respondem 30 % do produto interno bruto, 35 % do produtoindustrial, 46 % do produto formado no comércio e nos ser-viços, 60 % dos capitais manifestados e 59 % dos rendimen-tos declarados;

— a uma população três vezes superior (51 % residentes nosdistritos de Beja, Bragança, Castelo Branco, Coimbra,Évora, Faro, Guarda, Leiria, Portalegre, Santarém, Vianado Castelo, Vila Real e Viseu — ou seja: em 13 dos 18 dis-tritos do Continente) correspondem apenas 36 % do pro-duto global, 18 % do produto industrial, 28 % do produtodo comércio e serviços, 16 % dos capitais manifestados e13 % dos rendimentos declarados.

Mas veja-se também o quadro n.° 2, respeitante às sociedadescomerciais, de todos os ramos de actividade, existentes em 1962,no Continente português. Aí figura a distribuição por distritos, emvalores absolutos e percentagens, do seu número, do seu pessoal(empregados) e das remunerações, contribuições e licenças porelas pagas.

Pois bem:

— aos mesmos 17 % da população, correspondem agora 53 %das sociedades, 48 % dos empregados destas, 62 % das re-munerações pagas e 69 % do montante das contribuições elicenças;

— e aos mesmos 51 % da população cabem tão-somente 19 %das sociedades existentes, 15 % dos empregados, 10 % dasremunerações e 8 % das contribuições e licenças.

Os desníveis inter-distritais de estrutura e desenvolvimento,que aqueles primeiros dados revelam, são tão vincados, que podeparecer supérfluo sobrepor-lhes os que se desvendam através darepartição regional das sociedades. Há, porém, uma perspectiva emque é útil focar este último aspecto. É que a moderna economia demercado pressupõe uma forte proporção de empresas juridicamentesocietárias. Onde este tipo de empresas escasseia ou falta, pode-seestar certo de que subsiste ou predomina uma economia tradicional,k base de pequenos produtores individuais de bens e serviços —uma economia por isso inapta, na sua dimensão e organização aonível da unidade produtiva, para corresponder às exigências datécnica moderna e do desenvolvimento.

Ora, nesta óptica tem interesse, e interesse relevante, desta-car a exígua penetração das formas societárias de empresa numatão ampla mancha territorial do Continente português. Que emcinco distritos o número de sociedades comerciais se confine den-

Ull

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tro dos estreitos limites de 153 e 178; que em mais quatro se situeentre 249 e 408; que em catorze, sobre dezoito, não atinja 900; eque vá afinal concentrar-se, a 53 %, num único distrito, o de Lis-boa — tudo isso não pode deixar de traduzir a persistência e domi-nância, na maior parte do território e da população, de um estilode vida económica recebido do passado e carecente da capacidadede absorver e difundir eficazmente o progresso.

Sociedades Comerciais

QUADRO N.° 2 1962

Distritos

ExistentesPessoal Remunerações

(empregados) ao pessoal

(1000) (1000contos) í

Contribuiçõese licenças pagas

(1000contos)

(DContinente

AveiroBejaBragaBragançaCastelo Branco..CoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarémSetúbalViana do CasteloVila RealViseu

(2)

26 607

1142158821153393742294562178686

14105166

4 282825

1274249169408

(3)

100,0

0,63,10,61,52,8 \1,12,1 \0,7 \2,6

53,00,6 |

16,1 \3,1 |

0,9 |0,6 Ií,5 I

(4)

708,0

37,92,4

39,2

1,111,518,63,9

16,53,3

17,6336,4

2,8159,7

17,730,4

5,21,95,8

(5) (6) (7)I !

100,0 10 815,9 100,0

5A0,35,50,21,62,60,62,30,5 |2,5

47,5

0,422,02,54,30,70,30,8

394,223,5

341,012,7,

120,1;196,844,41

134,131,7|

190,5|6 702,3 j

29,7|1907,2

194,4-372,8'.

63,5;15,9145,5

3,60,23,20,1IA1,80,41,20,31,8

62,00,2

17,01,8

3,40,60,10,4

(8)

3 120,2

73,55,9

46,13,3

23,542,211,939,0

7,240,0

2 146,3

6,1507,0

49,389,910,36,9

12,0

(9)

100,0

2,40,21,50,10,81À0,41,20,21>3

68,80,2

16,21,62,90,30,20,4

FONTE: Estatística das Sociedades, 1962.

Não são, portanto, apenas desníveis distritais de desenvolvi-mento atingido o que importa sublinhar. É, mais exacta ou maiscompletamente, um nítido contraste entre certas zonas minoritá-rias da sociedade, já mais ou menos intensamente integradas nasformas, nas dimensões e nos ritmos da vida económica moderna, e

1*12

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toda uma área social, muito mais vasta, ainda fortemente anco-rada nas formas, nas dimensões e nos ritmos das actividadeseconómicas tradicionais.

c) Civilização moderna e civilização tradicional

A par das disparidades regionais de nível de desenvolvimentoe de forma e estilo de vida económica, sobressaem as desigualda-des de condições sociais.

Em trabalho recente do Centro de Estudos de Economia Agrá-ria da Fundação Calouste Gulbenkian5, este aspecto foi amplae proficientemente tratado, embora dentro das severas limitaçõesimpostas pela escassez da informação estatística e pela ausênciade documentação sociológica, Desnecessário é, por conseguinte, re-tomá-lo neste lugar com a amplitude que, se não fora esse estudo,se justificaria.

Uma vez mais convém, no entanto, fazer ressaltar certos con-trastes. E aí está, para esse efeito, o quadro n.° 3. Nele se alinhamnove indicadores de nível de vida, apontando, para cada um, o seuvalor médio no Continente e os seus valores máximo e mínimo aonível distrital.

Ora, se já olhando aos salários médios na agricultura e na in-dústria são grandes as distâncias que se deparam entre os valoresextremos (assim, por exemplo, o mínimo dos salários médios in-dustriais corresponde apenas a 56 % do máximo), muito maiorestais distâncias se tornam quando se consideram os demais indica-dores. De um extremo ao outro vão diferenças, proporcionalmenteao volume da população, da seguinte ordem: 9 vezes mais mé-dicos, 6 vezes mais beneficiários da Previdência Social, 10 vezesmais alojamentos dotados de condições mínimas de higiene, 12 ve-zes mais receptores de rádio, 13 vezes e meia mais aparelhos tele-fónicos, 29 vezes mais espectadores, um consumo não-industrial deenergia 38 vezes superior.

Evidentemente, em face das já anotadas disparidades econó-micas regionais, a presença de um largo desnível de condições so-ciais seria sempre de prever. Portanto, não surpreende. Todavia, aforça do contraste, conjugada com a exiguidade, não apenas dosvalores mínimos, como também da maior parte dos valores médiosdos indicadores referidos, reveste, do ponto de vista sociológico,um significado que interessa destacar.

5 Eugénio de CASTRO CALDAS e Manuel de SANTOS LOUREIRO, Níveis deDesenvolvimento Agrícola no Continente Português, Lisboa, Centro de Estu-dos de Economia Agrária da Fundação C. Gulbenkian, 1963, 384 p. — Vd. emespecial o capítulo sobre «níveis de bem-estar».

4,13

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Níveis de Vida

QUADRO N.« 3

(1)

(2)

(3)

(4)

(5)

(6)

(7)

(8)

(9)

Indicadores

Salários agrícolas —1961Salários médios masculinos das

diversas profissões (esc.)Salários industriais —1957/59

Médias aritméticas dos saláriosmédios por sectores (esc.)

Previdência Social —1962Beneficiários (e seus familiares)

da acção médico-social, por1000 habitantes

Médicos —1962Por 1000 habitantes

Habitação —1960% de alojamentos com cozinha,

W. C. e casa de banhoConsumo de energia eléctrica (c)

Kwh por habitanteAparelhos telefónicos

Por 1000 habitantesReceptores de rádio

Por 1000 habitantesEspectáculos públicos —1961

Espectadores por 1000 habitantes

Valormáximo

Lisboa: 36,8

39,6 (a)

Porto: 488

Lisboa: 2,7

Lisboa: 51,2

Porto: 191

Lisboa: 116,4

Lisboa: 222,4

Lisboa: 9 559

Médiado

Conti-nente

27,0

32,9

302

0,9

17,8

71

35,7

91,1

3 102

Valormínimo

Évora: 23,4

22,3 (b)

Guarda: 77

Vila Real: 0,3

Bragança: 4,8

Bragança: 5

Bragança: 8,6

Bragança: 18,5

Bragança: 327

(a) Distritos de Lisboa e Setúbal. — (b) Distritos 3a Guarda, Viseu e Beja. — (c)Consumo doméstico, iluminação! pública e tracção.PONTES: Para (I), Mário MURTEIRA, «Aspectos recentes da repartição do rendimento

em Portugal», Análise Social n.° 3; para (2), Odet-e ESTEVES DE CARVALHO,Diferenciações salariais na indústria portuguesa, F.D.M.O., 1964; para (3), Esta-tística da Organização Corporativa e Previdência Social, I.N.E., 1962; para (4),Anuário Estatístico, I.N.Ei, 1962; para (5), X Recenseamento Geral da População,1960, tomo VI; para (6), (7) e (8), E. de CASTRO CALDAS e M. de SANTOSLOUREIRO, Níveis de desenvolvimento agrícola no Continente português, C.E.E.A.,1963; para (9), Estatística da Educação, I.N.E., 1960-1961.

De facto, que, por exemplo, à escala do Continente o consumonão-industrial de energia se fique em 71 kwh por habitante; quenão haja mais de 17,8 % de habitações com cozinha, w.c. e casa debanho; que não se encontrem senão 35,7 telefones particulares por

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1000 habitantes; e que os valores de tais índices desçam até aosmínimos de 5 kwh, 4,8 % e 8,6 por 1000 respectivamente, à escaladistrital; tudo isso, e o mais, inevitavelmente transmite — ao me-nos a quem se haja debruçado sobre análogas estatísticas de outrospaíses6 — a imagem de uma sociedade onde, à margem e aoredor de algumas restritas áreas socialmente privilegiadas, nasquais os diversos elementos utilitários da civilização moderna atin-giram já um grau notável de difusão, perdura e se estende todauma zona social muito mais extensa, imersa em condições de vidae formas de civilização tradicionais.

Sob tal perspectiva, assumem especial relevo os dois pontosque a seguir abordaremos:

— o grau de urbanização das populações, dado que é sobre-tudo nos (e pelos) «meios urbanos» que a civilização mo-derna se propaga;

— a densidade do escol cultural, uma vez que é neste que secontêm os principais agentes propagadores, pela via intelec-tual e pela criação económica, das novas formas de civili-zação.

Quanto ao primeiro ponto, tenha-se presente o quadro n.° 4-Nas colunas 4 e6 , estão inscritas as percentagens de populaçãoresidente em «centros urbanos» e em «zonas rurais», relativamenteà população residente total no Continente e em cada um dos distri-tos. Na coluna 7, apresentam-se, também em percentagens, as par-ticipações distritais na população urbana (isto é: residente em«centros urbanos») do conjunto territorial do Continente.

Por centro urbano há que entender — segundo a definição doInstituto Nacional de Estatística, pressuposta neste quadro — «acapital de distrito e a localidade, qualquer que fosse a sua catego-ria legal (cidade, vila, etc), que, na área urbana demarcada pelaCâmara Municipal respectiva, contasse 10 000 ou mais habitantes».Por zona rural entenda-se «a parte do território não compreeendidanos centros urbanos»7. Ou seja: a distinção entre p urbano e orural é feita segundo um critério misto, a um tempo demográfico(uma certa dimensão populacional mínima) e administrativo (ascapitais de distrito, mesmo não atingindo tal mínimo, são conta-das como centros urbanos). Decerto, o critério adoptado não fa-culta uma demarcação rigorosa, ou tão rigorosa quanto possível,dos limites de urbanização atingidos, no Continente em geral e em

e Vd. sobre este ponto, Raul da SILVA PEREIRA, «Portugal perante os ní-veis sociais europeus», no presente n.e de Análise Social.

7 Definições do X Recenseamento Geral da População, 1960. Anterior-mente, o limite mínimo dos centros urbanos era de 2000 habitantes.

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cada um dos distritos, pelas populações aí residentes. Uma delimi-tação mais correcta só seria possível, no entanto, recorrendo a aná-lises de sociologia urbana, que aliás não deixariam de levantardificuldades e de suscitar dúvidas de classificação8. Na faltaabsoluta de estudos dessa natureza, podem tomar-se os dados doquadro n.° 4 como uma aceitável aproximação.

QUADRO N.° 4

População Urbana e Rural

1960

Distritos

POPULAÇÃO RESIDENTE

Total(1000)

Urbana

1000

Rural

1000

Populaçãourbana

Repartiçãodistrital

(D

Continente

AveiroBejaBragaBragançaCastelo Branco ..CoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarémSetúbalViana do CasteloVila RealViseu

(2)

8 293,0

524,6276,9596,8233,4316,5433,7219,9314,8282,6404,5

1 383,0188,5

1193,4461,7377,2277,7325,4482,4

(3)

1 930,7

41,415,764,28,1

37,957,224,147,0

9,129,5

900,722,8

450,216,4

151,514,323,517,0

(4)

23,3

7,95,7

10,83,5

12,013,211,0U,93,27,3

65,112,137,73,6

40,25,17,23,5

(5)

6 362,3

483,2261,2532,6225,3278,6376,5195,8267,8273,5375,0482,3165,7743,2445,3225,7263,4301,9465,4

(6) (7)

76f7 j 100,0

92,194,389,296,588,086,889,085,196,892,734,987,962,396,459,894,992,896,5

0,83,30,42,03,01,22,40,51,5

46,71,2

0,87,90,71,20,9

FONTE: X Recenseamento Geral da População, 1960.

8 Vd. sobre esta matéria o útil artigo de Gino GERMANI, «Urbanización,Secularización y Desarrollo Económico», na Rev. Mexicana de Sociologia,XXV, n.Q 2, Maio-Agosto de 1963, pp. 625-646.

hl6

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A impressão mais forte que estes dados transmitem (vd. so-bretudo a coluna 6), é a da poderosa dominância da ruralidade emtoda uma área territorial amplamente maioritária. Com efeito,se no distrito de Lisboa, a percentagem de população rural se quedaem 35 %, já nos distritos de Setúbal e do Porto toca ou excede os60 % e em todos os mais se situa acima de 85 %. Em seis distritos,está compreendida entre 85 e 90 %; em cinco, permanece entre 90 e95 %; em quatro, finalmente, vai além deste último limite. Assim, aurbanização aparece como um privilégio de dois ou três distritose de alguns «pontos» dispersos pelo resto do território. Como podeverificar-se na coluna 7, os distritos de Lisboa e Porto absorvem,só por si, 70 % da população urbana total do Continente. Acrescen-tando-lhes o distrito de Setúbal, onde se implantou e cresce a ex-tensão de Lisboa para o sul, têm-se 78 % — quase quatro quintos.O restante quinto (ou algo mais) distribui-se, em pequenas oupequeníssimas parcelas, por todo o país, pontilhando de formaesparsa a vasta panorâmica da ruralidade envolvente9.

Forte concentração urbana em duas restritas zonas; larga dis-persão da restante mancha urbana por cidades e núcleos de modes-tas dimensões: eis um esquema ecológico da sociedade portuguesa,susceptível, sociologicamente, de ser traduzido noutros termos.Tendo presentes as disparidades económicas e sociais antes men-cionadas, poder-se-á, com efeito, dizer: vigorosa polarização doacesso à civilização moderna em áreas privilegiadas, escassez defocos de propagação de tal movimento em todo o resto do território,indiscutível predomínio da civilização tradicional numa área geo-gráfica e social incomparavelmente mais lata que a daquelas zonas.

O segundo ponto acima referido foi a densidade do escol cul-tural. Infelizmente, um dos elementos basilares da informação es-tatística neste campo, aquele que permitiria uma comparação dosníveis de instrução por distritos, está em Portugal desactualizadode 14 anos10 — período durante o qual se sabe, aliás, que umaimportante evolução ocorreu. Dos resultados do Censo da Popula-ção de 1950, algo pode no entanto ser recordado.

Nessa data, havia no Continente 41,2 milhares de indivíduoscom instrução superior, o que representava 10 por 1000 da popu-lação presente maior de 25 anos. Desse total, 24,7 milhares (istoé: 59 %) concentravam-se, porém, nos distritos de Lisboa e Porto,que contavam, assim, respectivamente, com 25 e 12 indivíduos cominstrução superior, por 1000 habitantes maiores de 25 anos. A todo

» Para uma análise mais aprofundada, vd. o artigo de António BARBOSADE ABREU, «Escalonamento urbano do Continente português», neste mesmonúmero de Análise Social.

io Efectivamente, o volume sobre «instrução» do X Recenseamento Ge-ral da População, 1960, que se anunciara sairia junto com o das «idades»,ainda não foi publicado, embora este já o tenha sido.

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o resto do país (ou seja: a 71% da população presente) não ca-biam mais de 41% dos indivíduos com instrução superior (numaproporção de 6 por 1000 dos maiores de 25 anos), menos afinal dosque cabiam só ao distrito de Lisboa (43 %), apesar de este abar-car apenas escassos 16 % da população do Continente. Nas cidadesde Lisboa e Porto, as proporções dos indivíduos com instrução su-perior relativamente aos maiores de 25 anos eram, respectiva-mente, de 32 e 26 por 100011. Também neste aspecto transparece,por conseguinte, o privilégio social de certas áreas, sempre as mes-mas, e a consequente inópia das demais zonas.

Seja, porém, o quadro n.° 5, com mais recentes dados, respei-tantes a um conjunto de categorias estatísticas agrupadas sob adesignação genérica de «escol cultural». Tem, aliás, de reconhecer--se que nem abrange todo esse escol, nem se limita rigorosamentea ele. Uma vez mais se trata, por conseguinte, de uma simples apro-ximação que, apesar de grosseira (e mais grosseira que a ante-rior), parece útil efectuar.

Vejam-se, pois, as densidades comparativamente elevadas quese registam, em todas as categorias, nos distritos de Lisboa ePorto, e principalmente naquele. Vejam-se as distâncias que me-deiam entre as densidades máximas (que correspondem sempre aLisboa) e as mínimas: proporcionalmente à população, 6 vezesmais profissionais liberais, técnicos e equiparadas; 6 vezes maisadvogados; 8 vezes mais directores de empresas e quadros admi-nistrativos superiores; 9 vezes mais médicos; 32 vezes mais enge-nheiros exercendo profissão liberal; e o confronto nem é possívelpara os arquitectos, porque estes quase só existem em Lisboa eno Porto. Mesmo entre Lisboa e o Porto as diferenças são notáveis:sempre proporcionalmente a população, 1,7 vezes mais directoresde empresas e quadros administrativos superiores; 2,2 vezes maismédicos e mais profissionais liberais, técnicos e equiparados; 2,5vezes mais advogados; 2,8 vezes mais arquitectos; 3 vezes maisengenheiros exercendo profissão liberal. No conjunto, o distrito deLisboa, com apenas 17 % da população residente, dispõe de 36 %dos directores de empresas e quadros administrativos superiores,de 41 % dos médicos e advogados, de 42 % dos profissionais libe-rais, técnicos e equiparados, de 61% dos engenheiros exercendoprofissão liberal e de 67% dos arquitectos.

Deste modo, pela sua dotação em escol intelectual, directoriale profissional, as áreas do Continente que nos apareceram antesprivilegiadas sob o triplo aspecto económico, social e urbano (pri-vilegiadas, em suma, no acesso à civilização moderna), aparecem-

n Vale a pena também lembrar que a média dos números de indivíduoscom instrução superior nos onze distritos de Beja, Bragança, Castelo Branco,Évora, Faro, Guarda, Leiria, Portalegre, Setúbal, Viana do Castelo e VilaReal era de 750 apenas.

418

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-nos agora também largamente avantajadas sob o ponto de vista dacapacidade de acolher, procurar, assimilar e difundir as formasmentais e materiais, as concepções, atitudes e realizações do desen-volvimento económico, social e cultural.

Densidade do escol cultural nos distritos, por mil habitantes

QUADRO N.» 5

Distritos

(D

Continente ...

AveiroBejaBragaBragança ....Cast. BrancoCoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegre ...PortoSantarém ....SetúbalV. do CasteloVila Real ....Viseu

Profissio-nais

liberais,técnicos eequipara-

dos em 1900

(2)

5,36

3,432,163,352,992,845,073,632,543,182,22

13,523,186,113,244,242,522,453,10

Directoresde empre-sas e qua-dros admi-nistrativossuperiores

1960

(3)

5,58

5,901,443,512,573,473,683,185,081,764,44

12,073,186,955,415,562,522,152,48

Médicosem1962

(4)

0,89

0,610,360,410,400,371,550,490,370,370,362,740,541,260,470,410,320,310,39

Advogadosem1962

(5)

0,24

0,190,100,150,140,130,230,130,170,140,130,590,170,240,140,100,140,140,14

Arquitec-tos exer-

cendoprofissão

liberalem 1961

(6)

0,04

0,020,000,000,000,000,010,000,00

0,000,17

0,060,000,00

0,00

Engenhei-ros exer-

cendoprofissão

liberalem 1961

(7)

0,27

0,150,040,030,210,050,130,030,040,050,040,960,030,320,080,300,030,030,07

FONTES: Para (2) e (3), o X Recenseamento Geral da População, 1960; para (4) e<5), o Anuário Estatístico, 1%2; para (6) e (7), o Amiário Estatístico das Contri-buições e Impostos, 1961.Nota: Em (2), consideraram-se apenas os homens, a fim de eliminar o efeito ni-

velador do alto número ãe professoras primárias, incluídas na categoria.

d) Forma e grau de implantação da sociedade moderna

Detenhamonos um instante a rever o caminho já percorrido.Começámos por evocar o dualismo económico — expansão indus-

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trial, estagnagão agrícola —, que tem caracterizado o crescimentorecente da economia portuguesa. E logo sugerimos, subjacente esubactuante, um outro dualismo, de índole sociológica: o dualismode um sector social em movimento para o progresso e de um sectorsocial bloqueado no atraso. O que temos vindo a averiguar depois,sempre e só numa perspectiva de análise espacial, está na linhadessa sugestão. Muito desiguais em dimensão física e humana,muito desiguais também quanto ao modo de implantação no espaçogeográfico, uma restrita zona de economia, de condições de vida ede formas de civilização já fortemente impregnadas de elementosmodernos e uma área muito mais ampla onde a economia, as con-dições de vida e as formas de civilização tradicionais permanecemdominantes, foram-se gradualmente revelando.

Digamos, em síntese, que se nos foi impondo a coexistência,no Continente Português, de dois tipos de sociedade: uma socie-dade moderna, cujas mais vultosas implantações se confinam emespaços geograficamente restritos, e uma sociedade tradicional, es-tendida por todo o território e rodeando as grandes concentraçõesou núcleos menores da primeira.

Deste esquema fundamental nos propomos agora partir.Manifestamente, não é possível traçar no mapa rigorosas fron-

teiras entre as duas sociedades. Ainda que se dispusesse de apura-dos instrumentos de observação sociológica e de abundantes recur-sos para os utilizar, o mais que poderia conseguir-se seria umaidentificação de áreas geo-sociais mais ou menos fortemente pene-tradas pela sociedade moderna ou mais ou menos resistentes a talpenetração ou isentas do seu contágio. Porque a sociedade modernacontagia-se, de perto e à distância, a partir dos centros de maiorconcentração, insinua-se de muitos modos na sociedade tradicional,vai avançando por dentro dela. Objectos que o comércio difunde,novas actividades que se instalam ou imitam, imagens e concepçõesque a informação comunica, noções e técnicas que o ensino trans-mite, atitudes e aspirações que pelo contacto se adquirem — tudosão formas de a sociedade moderna se infiltrar na sociedade tra-dicional e de, no interior desta, se expandir, alterando-a. Simples-mente, tal infiltração pode ser apenas superficial ou aprofundar-se,em muito diversos grausi e com muito diferentes matizes, nas es-truturas económicas, sociais e culturais. Como dizer, então, ondecomeça, onde acaba, onde está?

Contentemo-nos, mais uma vez, com meras aproximações gros-seiras — aquelas que a documentação disponível (escassa e inade-quada) nos permite.

Em tudo o que acima nos foi dado ver, os distritos de Lisboae do Porto insistentemente se afirmaram já como os lugares privi-legiados da sociedade moderna estabelecida no Continente. Mesmoassim, vale a pena reunir num único quadro, respeitante a esses

420

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distritos, toda uma série de indicadores demográficos, económicos,sociais e culturais (alguns já antes mencionados, outros aqui refe-ridos pela primeira vez) e tentar, assim, uma visão englobante dasua posição sócio-económica no conjunto do país. É o que se fazno quadro n.° 6, que a bem dizer dispensa comentários.

Na verdade, aos 31 % da população residentes nos dois distri-tos, correspondem, nos 25 indicadores escolhidos, percentagenssituadas, em quatro casos, entre 40 e 50, em sete entre 50 e 60, emnove entre 60 e 70, em três entre 70 e 80 e em dois acima de 80.Comparando, porém, linha a linha, a coluna dos valores respeitan-tes ao distrito de Lisboa com a coluna atinente ao distrito do Porto,encontram-se, em todos os indicadores, excepto um, grandes des-níveis. Simplesmente: a população da cidade de Lisboa representa58 % da população distrital, ao passo que o Porto apenas contém25 % dos residentes no seu distrito. Assim, aqueles desníveis resul-tarão mais de uma forte concentração dos fenómenos mencionadosnas duas grandes urbes e respectivos prolongamentos e zonas ter-ritoriais circundantes, do que de uma acentuada disparidade entre,propriamente, os dois aglomerados-—disparidade que a observa-ção vulgar não parece confirmar, pelo menos tão acentuada. Dospoucos elementos disponíveis à escala dos concelhos é, com efeito,essa a impressão que se recolhe. Por exemplo: tal como no conjuntodos centros urbanos do distrito de Lisboa 12 se localizavam 81 %dos directores de empresas e quadros administrativos superio-res e 87 % das pessoas exercendo uma profissão liberal, técnicose equiparados, residentes em 1960 no distrito, também na cidadedo Porto e seus concelhos limítrofes13 se agrupavam 81 % daque-les e 77 % destas.

Se — como é legítimo supor — muitos outros indicadores nãose acharão menos, ou muito menos, concentrados do que aquelesque acabamos de citar (e veja-se o que se passa com os telefonesparticulares: 72 % do total do Continente estão instalados nas res-tritas áreas da A.P.T. centradas em Lisboa e no Porto), então élícito afirmar que os lugares privilegiados de radicação da socie-dade moderna em Portugal continental são, mais propriamente queos distritos de Lisboa e Porto, os grandes aglomerados urbanosque estes distritos albergam — ou seja: as duas grandes cidades eas suas ramificações urbanas e industriais. De resto, o mais des-prevenido observador, porventura simples passeante, sabe que nãolhe é necessário afastar-se muito de qualquer destas cidades paraencontrar, umas vezes decerto já francamente adulteradas, outrasvezes porém ainda em estado muito puro, condições e formas devida, de trabalho e de cultura que o põem em presença da socie-dade tradicional.

12 Lisboa, Cascais, Moscavlde, Algés, Amadora e Queluz.13 Gondomar, Maia, Matozinhos e Vila Nova de Gaia.

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Posição sócio-económica dos distritos de Lisboa e Portono conjunto do Continente

QUADRO N.° 6

Indicadores demográficos, económicos,culturais e sociais Ano

Lisboa Perto Lisboae Porto

% em relação aos totaisdo Continente

(D

1. População residente2. População urbana

3. Produto interno bruto4. Produto bruto industrial5. Prod. bruto do Com.s e Serviços6. Sociedades comerciais existentes7. Pessoal das sociedades8. Remuneração ao pessoal das sociedades9. Contribuição industrial liquidada (a)...

10. Contribuição pred. urbana liquid. (a)...11. Imposto complementar liquidado (a) ...

12. Prof. liberais, técnicos e equiparados...13. Direct. de empresas e quadros super.14 Indivíduos com instrução superior15. Advogados16. Arquitectos17. Engenheiros (em profissão liberal)18. Médicos

19. Alunos do ensino secundário (b)20. Estudantes universitários (c)21. Editores e livreiros

22. Espectadores23. Receptores de rádio24. Receptores de televisão25. Postos telefónicos particulares (d)26. Beneficiários da Previdência

(2)

19601960

195819581958196219621962196119611961

1960196019501962196119611962

196119511962

(3)

1747

303546534862485267

42364341676141

313149

(4)

1423

162316162217191516

16181615221720

171316

(5)

3170

465862697079676783

58545956897861

484465

19611961196119621962

5037475524

1616181724

6653657248

(a) Percentagens relativas à Metrópole.(b) Segundo os distritos onde estavam matriculados.(c) Segundo os distritos donde eram naturais (dados de um inquérito efectuado

em 1951, junto das Secretarias das Universidades).(d) Consideraram-se apenas a® áreas da concessão da A.P.T. na zona de Lisboa e

na zona do Porto, e não os distritos.

Í22

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Todavia, nao oferece dúvida que os dois distritos consideradossão aqueles onde, não só se destacam as mais amplas e vigorosasimplantações modernas, a grande distância das demais, comotambém mais extensas e profundas se revelariam as suas infiltra-ções na sociedade tradicional, se possível fosse observá-las e iden-tificá-las ao nível local. Poder-se-á formar uma ideia de como,nesta perspectiva, os restantes distritos se situam em face destes ?Eis o que, em plena consciência da elementaridade do processoadoptado, se tentou fazer no quadro n.° 7.

QUADRO N.° 7

Indicadores de dominância do meio rurale agrário

Continente 49,0

Grupo I

Grupo II

Grupo III

Grupo IV

Grupo V

Lisboa 18,2Porto 30,2Setúbal 38,0

Aveiro 51,3Braga 51,6

Coimbra 59,5Faro 64,1Castelo Branco 64,5Leiria 65,4

Viana do Castelo 68,7Santarém 68,9Portalegre 70,8Évora 72,0

Vila Real 75,7Guarda 76,3Viseu 77,0Beja 78,5Bragança 79,4

Indicadores de penetração do meiourbano e industrial

Continente 31,2

Grupo I

Grupo II

Grupo III

Grupo IV

Grupo V

Lisboa 48,1Porto 48,1Setúbal 46,7

Aveiro 36,5Braga 35,8

Castelo Branco 23,2Leiria 21,9Coimbra 21,8Faro 20,6

Santarém 16,3Portalegre 15,8Viana do Castelo 15,6Évora 12,8

Beja 9,7Vila Real 9,5Viseu 8,8Guarda 8,6Bragança 6,9

Tomaram-se, primeiro, para cada distrito, três percentagens:a da população residente em zonas rurais, a da população activacom profissão agrícola e a do produto bruto gerado na agricul-

Page 18: Sedas Nunes, Aderito. Portugal-Sociedade Dualista em Evolução

tura. Calcularam-se as médias simples dessas percentagens — 6chamou-se-lhes «indicadores de dominância do meio rural e agrá-rio». Tomaram-se, depois, também para cada distrito, outras trêspercentagens: a da população residente em centros urbanos, a dapopulação activa com profissão na indústria e a do produto brutoformado neste ramo de actividade. Calcularam-se de novo médiassimples — designando-as como «indicadores de penetração do meiourbano e industrial». Evidentemente, os resultados assim obtidosapenas servem para seriar os distritos segundo os valores, crescen-tes ou decrescentes, de cada um dos indicadores, não para compa-rar, distrito a distrito, os valores por estes indicadores assumidos.Noutros termos: permitem, no quadro final, comparações emcoluna, mas não comparações em linha horizontal.

Pois bem: ordenados por índices crescentes de dominânciarural e agrária e por índices decrescentes de penetração urbanae industrial, os distritos podem facilmente ser classificados emcinco grupos com idêntica composição em ambas as séries (aindaque, dentro dos três últimos grupos, a sequência dos distritos variede uma ordenação para a outra). Parece, por conseguinte, que, semerro intolerável, se podem tomar os grupos de distritos, assim for-mados, como representativos das grandes áreas territoriais a dis-tinguir no Continente, sob o ponto de vista do grau atingido noavanço da sociedade moderna e da persistência da sociedade tradi-cional.

No primeiro grupo, entram os distritos (Lisboa, Porto e Se-túbal) onde maior é o recuo da sociedade tradicional, mais forteo avanço da sociedade moderna. No último, que abarca Trás-os--Montes, a Beira Alta e o Baixo Alentejo, figuram aqueles onde adominância da sociedade tradicional se mostra esmagadora, quaseabsoluta. Entre os dois surgem três grupos sucessivamente menospenetrados (assim parece) de elementos modernos e mais próximosdos modelos tradicionais. Aveiro e Braga (Grupo II) confinamcom o Porto e abrangem com este a área industrial nortenha. EmCastelo Branco, Coimbra, Leiria e Faro (grupo III), o predomíniorural-agrário já não sofre contestação, mas encontram-se implan-tações urbanas e industriais de certo vulto. Enfim, em Viana doCastelo, Santarém, Portalegre e Évora (grupo IV), o peso da socie-dade tradicional acentua-se, até quase tocar nos extremos a queo último grupo chega.

Afinal talvez tivesse bastado atender apenas às percentagensde população activa com profissão na agricultura. Na verdade, afigura da pág. 425, onde elas estão representadas a nível concelhio,resume, na sua vasta mancha verde, nas poucas áreas clareadasdentro desta e nos seus exíguos espaços brancos, muito do que te-mos vindo a tentar dizer. Sob forma visual, mais impressiva, aí serevelam duas sociedades coexistindo: uma, a moderna, fortemente

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POPULAÇÃO ACTIVA NA AGRICULTURA(Em percentagem da população activa totaly por concelhos)

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condensada em duas zonas muito restritas, mas prolongando-seem ramificações e afloramentos dispersos de variável importância;outra, a tradicional, estendida por todo o território e rodeando,envolvente, a primeira. Vistas as coisas assim no mapa, quase sediria que o moderno aparece como um conjunto de rasgões e defuros abertos na imensa manta tradicional.

Mas não convém atribuir a esta imagem, sugestiva embora,mais do que a parte de verdade que em rigor lhe cabe. Porque — jáo notámos —, de perto e à distância, a sociedade moderna é conta-giosa: de muitos modos e por muitas vias penetra na sociedadetradicional. Isso, porém, o mapa não no-lo diz. Eis um ponto aque teremos de retornar adiante.

e) Estagnação económica e declínio demográfico da so-ciedade tradicional

Sociedade tradicional fortemente rural e agrícola; mas agri-cultura estagnada no seu processo de desenvolvimento; logo, socie-dade tradicional economicamente estagnante.

Sociedade moderna acentuadamente urbana, industrial e ter-ciária; mas indústria e serviços em franco processo de cresci-mento; logo, sociedade moderna economicamente em expansão.

Nos seus traços essenciais, o dualismo sociológico, inicial-mente suspeitado por detrás de um dualismo económico já consa-bido, está aqui, é este.

Mas, estagnando, a sociedade tradicional não só pára: perdeterreno, pois que entretanto a outra cresce, potencia-se. Assim,de acordo com os valores calculados pela Divisão de Estudos deEconomia Industrial do LN.I.L, a parte do produto interno brutoimputável ao distrito de Lisboa, subiu, entre 1952 e 1958, de 26,9 %para 30,4 %, num constante aumento ao longo do período consi-derado, enquanto a do Porto se elevava de 15,0 % para 16,0 %,depois de em 1956 ter alcançado 16,7 %. Nos restante distritos,salvo Castelo Branco, as percentagens representativas das corres-pondentes participações no produto sofreram reduções. Especial-mente sensíveis são as «perdas de velocidade» de crescimentoacusadas pelos distritos de Coimbra, Viana do Castelo, Leiria eSantarém 14.

Simplesmente, também em peso demográfico a sociedade tra-dicional retrocede. De facto, tomando por bons os dados dos Cen-sos de 1950 e 1960, apesar das dúvidas que este último suscita, a

14 Cfr. M. de SANTOS LOUREIRO, Assimetrias Espaciais de Crescimentono Continente Português, Col. «Estudos de Economia Industrial», n.s 4, Lis-boa, Instituto Nacional de Investigação Industrial; Vol. I.

420

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população residente no território continental subiu de 7 921,9 milha-res para 8 293,0 milhares, acrescentando-se pois de 371,1 mil indi-víduos. Porém, no mesmo período, a população residente só noscinco distritos abrangidos pelos dois primeiros grupos do quadron.° 7 (ou seja: Lisboa, Porto, Setúbal, Aveiro e Braga) aumentava44S,7 milhares, quer dizer mais 72,6 milhares que o acréscimo con-tinental. Entretanto, por conseguinte, outras populações distritaisse contraíam. Na verdade, nove distritos (metade dos do Conti-nente) viram a sua população diminuir. São eles: Beja, CasteloBranco, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Portalegre, Viana do Cas-telo e Viseu. Nos restantes quatro (Bragança, Leiria, Santarém eVila Real), houve aumentos, mas diminutos: entre 0,3 e 2,2%,quando a percentagem do acréscimo, ao nível continental, foi de4,7%. Nos cinco primeiros distritos citados têm-se: em Lisboa,mais 13,1 %; no Porto, mais 13,3 %; em Setúbal, mais 15,8 %; emAveiro, mais 8,5 %; em Braga, mais 9,2 %.

Transpondo a análise do plano distrital para o concelhio, apu-ra-se que, num total de 273 concelhos, 149 (isto é: 55 %) têm po-pulações decrescentes. O quadro n.° 8 indica os distritos onde selocalizam os concelhos em vias de retracção demográfica. Notem--se aí, em particular, os distritos cujo movimento declinante abran-ge praticamente todo o território, como Beja, Guarda, Portalegre,Castelo Branco, Viana do Castelo e Viseu.

Este movimento, que afecta as áreas de nítida preponderân-cia tradicional, tem uma explicação: a fuga, o abandono — fuga eabandono numa escala sem precedentes15. Mas fugindo, abando-nando terras, lugares, relações, condições de vida e de trabalhoconhecidas e habituais, mostram as gentes que, com muito maisiorte efeito do que no passado, se exerce agora sobre elas um apeioao êxodo. Ora, donde provém este decerto muito mais potente apeloao êxodo, senão da sociedade moderna e do confronto com ela dasociedade tradicional?

Simplesmente, a sociedade moderna, donde o apelo emana,não é apenas a que se incrustou no solo português: é também asociedade moderna estrangeira, a que noutros países se firmou edesenvolveu. O recente incremento da emigração portuguesa para aEuropa industrialI6, não se vê possa ter outro significado ou outraexplicação.

Tudo isto nos leva a tentar averiguar o que possa ser ditoacerca do contacto, por um lado, entre a sociedade portuguesa e a

is Vd. sobre esta matéria o 'artigo de Alberto ALARCÃO, «Êxodo rural eatracção urbana no Continente», publicado neste n.° de Análise Social.

i6 Vd. o artigo de J. C. FERREIRA DE ALMEIDA, «A emigração portuguesapara França: alguns aspecto» quantitativos», incluído neste n.° de AnáliseSocial.

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sociedade internacional; por outro, entre a sociedade tradicionale a sociedade moderna, no interior do país. Pois é através do con-tacto que o apelo se transmite.

Variação da população residente, poi concelhos, entre 1950 e 1960

QUADRO N.« 8

DistritosN.° total

deconcelhos

N.° de conce-lhos onde apopulaçãoaumentou

N.° de conce-lhos onde apopulaçãodiminuiu

(D

Continente

AveiroBejaBragaBragançaCastelo BrancoCoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarémSetúbalViana do CasteloVila RealViseu ,

(2)

273

191413121117131614161415172113101424

(3)

124

16185255819

121

16129284

(4)

149

313579

1288

1372

1419486

20

FONTE: X Recenseamento Gemi da População, 1960.

2. A crescente abertura da sociedade portuguesa à sociedadeinternacional

Não parece duvidoso que os contactos entre a sociedade portu-guesa e o exterior são hoje muito mais intensos do que o eramainda há poucas décadas. Numerosos indicadores revelam, comefeito, um acentuado ritmo de acréscimo desde o fim da II GuerraMundial.

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Considerem-se, em primeiro lugar, 05 movimentos de merca-dorias e pessoas por sobre as fronteiras nacionais. Os índices devolume físico do comércio externo, publicados pela O.N.U., acusama seguinte evolução:

QUADRO N.s 9

Comércio Externo 1938 1948 1958 1962

ImportaçãoExportação

4751

7956

100100

122138

FONTE: Anuário Estatístico da O.N.U.

Em 14 anos (de 1948 a 1962), tem-se, portanto, um aumentode 43 pontos sobre 79 nas importações, e de 82 pontos sobre 56 nasexportações. Tal expansão não assume apenas o aspecto econó-mico que é mais imediatamente apercebido. Tem igualmente o sig-nificado de uma importante ampliação de contactos que, emboracomerciais, põem homens em relação com outros homens e são,portanto, também contactos humanos e sociais.

Idêntico significado revestem as entradas e saídas de passa-geiros pelas fronteiras nacionais. Ora, os passageiros entrados,que foram, em 1947, cerca de 131 mil, atingiram em 1962, 970 mil(acréscimo de 639 %); e os passageiros saídos, que não excederam149 mil naquele ano, subiram a mais de um milhão (1014,4 milha-res) em 1962 (acréscimo de 581 %). Digamos que, em 15 anos, omovimento sextuplicou, «grosso modo».

Tomem-se agora as comunicações pessoais à distância. O vo-lume de correspondência postal trocada entre a Metrópole e o Es-trangeiro elevou-se, só no decénio 1953-1962, de 59,2 milhões de car-tas para 143,9 milhões, registando assim um incremento de 143 %.As encomendas postais subiram de 142,5 milhares, em 1948, a 375milhares em 1962 (163 % de aumento). E as chamadas telefónicasentradas e saídas, de 179,9 milhares naquele ano passaram a 309,6milhares neste último (72 % de acréscimo).

Veja-se ainda o que se tem passado no domínio da informaçãocolectiva gráfica. Em primeiro lugar, os jornais portugueses, prin-cipais veículos de imagens e mensagens gráficas do exterior,acusam, entre a média do período 1950/54 e o ano de 1962, umacréscimo de 88 % no consumo de papel por habitante: de 1,6 para3,0 kgs. Por 1000 habitantes, a sua circulação elevou-se de 62 para81 exemplares. Depois, há os livros que se traduzem: de 1955 a1961, foram, por exemplo, traduzidas e editadas na Metrópole 866obras de língua francesa e 1066 obras de língua inglesa. E há tam-bém os livros, revistas e jornais que se importam. Sem contar os

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muitos que entram à margem de todo e qualquer controlo, e sem sepoder ir a anos mais recuados, por terem variado as classificaçõesalfandegárias, o peso dos livros importados subiu, só entre 1960 e1963, de 25 para 41,3 toneladas (mais 65%), e o dos jornais eoutras publicações periódicas, de 129 para 207 toneladas (mais60 %)'.

Finalmente, atenda-se aos meios de informação colectivaaudio-visuat O número de licenças em vigor na Metrópole parareceptores de rádio tem sofrido a seguinte evolução: 1938 — 81 mi-lhares; 1948 — 179 milhares; 1958 — 689 milhares; 1962 — 1006milhares. Assim, entre 1948 e 1962, subiu 462 %. O número de li-cenças para receptores de televisão era de mil em 1956 e atingiu119 mil em 1963. Quanto ao cinema, importa dizer, antes do mais,que Portugal apresenta uma capitação anual de espectadores par-ticularmente baixa: 2,9 por habitante em 1962, contra, por exem-plo, 7,2 na Argentina, 12,7 na Áustria, 14,8 na Bulgária, 9,6 na Di-namarca, 12,2 em Espanha, 11,8 nos Estados Unidos, 7,5 em Fran-ça, 6,3 na Grécia, 15,1 na Itália, 6,4 na Jugoslávia, 22,6 no Líbano,10,4 no México, 5,9 na Polónia, 8,7 no Reino Unido, 17,7 na UniãoSoviética, 8,4 na Venezuela. Além disso, a frequência de espectadoresde cinema, provavelmente sob o impacto da televisão, tem descido:de 27,9 milhões em 1957 para 25,6 milhões em 1962, na Metrópole17.Ainda assim, não cabe arredar a influência do espectáculo fílmico,como transmissor de imagens e mensagens significativas, domundo externo à sociedade portuguesa. Embora localizada princi-palmente nos grandes aglomerados urbanos (no distrito de Lisboa,a capitação anual de espectadores sobe a 8,2; no de Setúbal, a 5,2)ou atingindo pequenos núcleos sociais disseminados pelo país, talinfluência não pode, onde se exerce e sobre quem se exerce, consi-derar-se despicienda no aspecto de abertura e acesso à visão, e mes-mo à vivência imaginária, de outras sociedades, outras condições devida, outras formas de pensar e de agir. Não se esqueça, comefeito, que a quase totalidade da produção exibida é de origemestrangeira. Simplesmente, essa produção está longe de poder exer-cer um influxo directo e maciço sobre toda a população 18.

17 Aliás, o número de recintos utilizados para espectáculos de cinemaé, em quase todos os distritos, francamente baixo: Lisboa — 89; Porto e Setú-bal— 46 cada; Santarém — 33; Aveiro e Faro — 28 cada; Beja — 21; Évora— 20; Leiria —19; Coimbra —15; Portalegre —12; Braga, Vila Real e Viseu—10 cada; Castelo Branco e Viana do Castelo — 9 cada; Guarda — 8; Bra-gança— 4. FONTE: Anuário Estatístico, 1962.

is São, com efeito, muito baixas as capitações anuais de espectadoresna grande maioria dos distritos: Bragança — 0,3; Guarda e Viseu — 0,4 cada;Vila Real — 0,6; Braga — 0,7; Viana do Castelo — 0,8; Castelo Branco —1,0;Coimbra —1,2 • Beja e Leiria —1,4 cada • Portalegre e Santarém —1,5; Aveiro— 1,6; Évora —1,9; Porto—-3,1 Faro —3,9; Setúbal —5,2; Lisboa —8,2.FONTE: Anuário Estatístico, 1962.

'480

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Eis os indicadores disponíveis e o que eles nos podem dizer.Acerca de outros fenómenos relevantes sob o aspecto aqui focado,não há informação estatística utilizável. Assim é com a difusãodo conhecimento de idiomas estrangeiros, mormente sensível emcamadas jovens de classe média, cuja amplitude no entanto seignora; assim é também com a multiplicação e o provável alonga-mento das permanências de portugueses noutros países, na qualidade de estudantes, bolseiros, técnicos, homens de negócios, par-ticipantes em organismos e reuniões internacionais ou até simplesturistas; assim é ainda com o inegável incremento de relações eligações financeiras e técnicas entre empresas e grupos económi-cos nacionais e estrangeiros.

Seja como for, não pode duvidar-se de que a sociedade portu-guesa está hoje muito mais intensamente posta em presença domundo que a rodeia do que o estava, por exemplo, antes do últimoconflito mundial. Se nos é permitida uma imagem, rasgaram-se-lhemuitas e cada vez mais amplas janelas para o exterior. Por essasaberturas, incessantemente corre um volumoso fluxo de informa-ção económica, social, política, cultural, que é internamente rece-bido, captado, interpretado e em grande parte assimilado. Poucosabemos, é certo, a respeito do modo como esse fluxo se espraiano interior da sociedade portuguesa, como se ramifica pelos váriossectores e camadas da população, que lhes comunica, que efeitosneles tem. Por observação directa e vulgar, sabe-se que o seuimpacto em certos escalões superiores da sociedade e em círculosculturalmente privilegiados é vigoroso e profundo, nomeadamenteentre as gerações jovens ou mais próximas da juventude. Mas tem--se a nítida impressão de que não pára aí, de que a sua penetração(pela imprensa, pela rádio, pela televisão, pela publicidade, pelacomunicação pessoal escrita ou dita) é muito mais lata e constan-temente progride e se adensa em áreas sociais e geográficas diaa dia maiores.

Assim, os horizontes mentais de um número crescente de indi-víduos alargam-se para além das fronteiras políticas. O campo so-cial de referência dos seus comportamentos, ideias, aspirações edecisões abre-se a uma nova dimensão, assume novos elementos eperspectivas. Numa palavra: ocorre como que uma progressivadiluição ou evanescência das fronteiras enquanto limites sociais eculturais — enquanto cintura de um quadro fechado de vida, tra-balho e pensamento da comunidade. Cada vez mais, ou em númerocada vez maior, os indivíduos tendem a agir, pensar, sentir e dese-jar, não já em função apenas de estímulos, imagens, oportunidades,solicitações e concepções internas à sociedade onde nasceram eonde estão, mas também em função de estímulos, imagens, oportu-nidades, solicitações e concepções recebidas do exterior da socie-dade, ou nesse exterior apercebido®, através do contínuo fluxo dainformação.

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E não é ousado presumir, por conhecidas razões psicológicas esociais, que é sobretudo na juventude e nas gerações da maturi-dade jovem que tal evolução se processa. As gerações mais velhas,tendo há muito ultrapassado os «verdes anos» e a fase de indeter-minação e busca de um projecto de vida, que neles se atravessa, etendo também criado ligações e responsabilidades, ou tomado posi-ções, de que não podem desprender-se, estão psicologicamente defi-nidas, estabilizadas, e portanto incomparavelmente mais defendi-das contra a evolução. Fixaram-se — e resistem. Só o embate desituações-limite, de crise aguda (como o foi, há anos, o pânicoprovocado, em certos meios industriais, pela entrada em funciona-mento do Mercado Comum), tem algum poder de as forçar amudanças significativas. Mas também pode levá-las a uma rigidezainda maior.

3. O acréscimo do contacto da «sociedade tradicional» com a «so-ciedade moderna», no interior do Continente

Do mesmo passo que a sociedade nacional se abriu a um cres-cente contacto e influxo do mundo exterior, internamente a socie-dade tradicional tem igualmente vindo a abrir-se a um mais intensocontacto e influxo da sociedade moderna.

Recorramos, uma vez mais, na medida do possível, a indica-dores numéricos.

Analisando a evolução distrital do produto interno terciário(comércio e serviços), nota-se que, entre 1952 e 1958, «a maioriados distritos regista movimentos de evolução quantitativa muitopróximos da média continental» 19, ao contrário do que se verificano sector secundário. Ora, as actividades terciárias são, larga-mente, actividades fomentadoras de contacto social, pela cir-culação de mercadorias, pessoas, valores, ordens, ideias, informa-ções que, em ampla medida, implicam e provocam20. Assim, aquelaverificação, em primeira análise de interesse puramente económico,adquire, se focada de um outro ângulo, significado sociológico im-portante: o de uma expansão, a ritmo aproximadamente equiva-lente em todos os distritos, de um tipo de actividades que, pela suaprópria natureza, incrementam os contactos sociais internos, àescala regional e nacional. E não é inútil acrescentar que, nos seis

19 M. de SANTOS LOUREIRO, AS Assimetrias Espaciais de Crescimento noContinente Português, op. cit., vol. II, p. 128.

20 Pense-se no comércio por grosso e de retalho, na banca, nos seguros,nos transportes, nas comunicações, na administração pública, nas institui-ções de ensino, nos serviços hoteleiros.

482

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anos do período considerado, o produto bruto do «comércio e ser-viços» (excluindo as casas de habitação) se elevou 9e 11,7 para15,4 milhões de contos, a preços constantes, ou seja: cerca de 32 %,e que posteriormente, como já vimos, intensificou ainda o seu ritmode crescimento.

Outros elementos indiciam a notável expansão havida nasactividades promotoras de contacto e comunicação entre as popu-lações, no interior do país.

Sejam, em primeiro lugar, os transportes. O número de auto-móveis ligeiros e pesados, em circulação no Continente, subiu, en-tre 1951 e 1963, de 109,8 milhares para 318 milhares (190 % dede aumento). Por outro lado, os recenseamentos do trânsito rodo-viário denotam um vultoso incremento da circulação nas estradasdo Continente: entre 1950 e 1960, se os acréscimos de mais de 600 %aparecem restritos a certas zonas, já os de 400 a 600 % afectamgrandes extensões de rodovia e os de 100 a 400 % se verificam,praticamente, em todas as principais estradas do Continente21. Noque respeita às carreiras interurbanas de passageiros, o seu desen-volvimento pode avaliar-se pelos seguintes números: 35 milhõesde passageiros transportados e 570 milhões de lugares X km uti-lizados em 1951, e 101 milhões de passageiros (mais 189 %) e1054 milhões de lugares X km utilizados (mais 85 %) em 1963 22.Entretanto, a extensão das estradas servidas aumentou 51 %, en-tre aqueles mesmos anos23, cobrindo em 1963 20 639 kms, deum total de 28 690. Este acréscimo de movimento soma-se ao dotransporte de passageiros em caminho de ferro. Na rede da C. P.,entre 1951 e 1963, o número de passageiros cresceu de 49,9 milhõespara 87,1 milhões (mais 86 %); entre 1952 e 1963, na mesma rede,o número de lugares X km utilizados subiu de 1339,1 milhões para2 154,5 milhões (mais 61 %) 24.

Considerem-se, seguidamente, as comunicações pessoais à dis-tância. Eis alguns dados que dispensam comentário 25:

21 Vd. M. SANTOS LOUREIRO, AS Assimetrias Espaciais de Crescimentono Continente Português, op. cit, vol. I, mapa das págs. 60-61.

22 Em 1963, 72 % da extensão total das estradas nacionais e municipaisdo Continente eram servidos por carreiras interurbanas de passageiros. Pordistritos, as percentagens variavam entre o mínimo de 58 % em Beja e omáximo de 99 % em Leiria.

23 Vd. dados para sucessivos anos e para os diversos distritos em: Es-tatística dos Transporte e do Trânsito —1951 a 1955 e Transportes Ter-restres— Anuário Estatístico, 1953.

24 Atenda-se, no entanto, à poderosa assimetria da intensidade do trá-fego na região marginal Lisboa-Porto e no resto do país. Vd. sobre este pontoo mapa inserto no artigo de António BARBOSA DE ABREU, «Escalonamentourbano do Continente português», publicado neste n.° de Análise Social.

25 F O N T E : Anuário dos C.T.T.t 1962

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QUADRO N.0 10

Meios de comunicação 1938

177547

111218158

150,1

X

1948

200756

158936178

207,2

10 943

1962

N.Q de postos de C. T. TEstações telefónicasPostos telefónicos públicos dos C. T. TPostos telefónicos particulares dos C. T. T.Correspondência postal (milhões)Chamadas interurbanas (milhares):

—. Serviço manual (conversações)—. Serviço automático (unidades de con-

tagem)

73311244 936

136 594

336,2

24 400

49 932

Não se trata aqui de averiguar que relevo possam atribuir aeste desenvolvimento dos transportes e das comunicações os técnicos respectivos, se porventura o compararem ao que se registanoutros países. De um ponto de vista sociológico, apenas nos inte-ressa salientar que esta circulação, sensivelmente aumentada, depessoas, mercadorias e mensagens acarreta um notável incrementode contactos, de informações, de relações, em todo o território. Eassim, tal como sucede na relação entre a sociedade portuguesa e omundo exterior, também a sociedade tradicional é agora muitomais intensamente posta em presença da sociedade moderna. Aaldeia, a vila, a pequena cidade de província, outrora fechada ouquase fechada sobre si, é agora e cada vez mais abordada, invadidamesmo, por objectos, pessoas, relações e informações que nela pro-jectam e incutem a imagem (e o apelo) de outras formas de vida.

Nesta projecção, a rádio e a escola não exercem decerto in-fluência secundária. De facto, como já vimos, o número de licençaspara receptores de T.S.F. tem crescido velozmente por todo o país,sobretudo após o aparecimento do «transistor». No conjunto eram,no Continente, 177 milhares em 1948 e cerca de um milhão em 1962— estando agora muito menos concentradas nos distritos de Lisboae Porto do que antes26. Em onze distritos, encontram-se ritmos deacréscimo que, em treze anos (1948-1961), provocaram entre umasextuplicação e uma decuplicação do número de aparelhos registados27. Parece legítimo falar de uma invasão da sociedade tradicional

26 L i sboa + Porto — 1 9 4 8 : 69 %; — 1 9 6 1 : 53 %.27 Percentagens distritais de acréscimo: Aveiro— 741; Beja— 900;

Braga —641; Bragança —1033; Castelo Branco —642; Coimbra — 446; Évo-ra—*650; Faro —873; Guarda—644; Leiria —654; Lisboa —277; Portalegre— 489; Porto —329; Santarém—-581; Setúbal — 823; Viana do Castelo —733;Vila Real —578; Viseu —497. FONTE: Estatística da Educação.

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pela rádio. Invasão, portanto, pelos seus programas de noticiário, dereportagem, de publicidade, de desporto, de variedades, de músicaligeira — tudo formas de jorrar, sobre a ex-fechada ou quase fe-chada sociedade tradicional, um caudal de informação e sugestãoproveniente da sociedade moderna. De certo modo, pela rádio (emais ainda pela televisão, que em tantos lugares públicos da pro-víncia vai aparecendo), a sociedade moderna torna-se presente nopróprio interior da sociedade tradicional. Este o significado socio-lógico basilar da invasão radiofónica (e televisiva): o ãe uma pre-sença pela participação, que a rádio faculta e provoca, dos indiví-duos e dos grupos num outro «universo» social e cultural, emoutros modos de pensar, de sentir e de viver, em outros factos eoutros valores. Eis uma das formas principais de a sociedade mo-derna contagiar a sociedade antiga, que bem justificaria uma in-vestigação sistemática da sua intensidade e efeitos.

Outra é a difusão do ensino e da escola. Os seguintes dados,respeitantes ao número de estabelecimentos oficiais e particularesde ensino primário e secundário, dão ideia de como tal fenómeno setem processado no Continente28 :

Ensino Primário Continente Lisboa e Porto Outros distritos

1945/46 10290 2 206 80841960/61 16993 3411 13582Aumento 6703 1205 5 498

Ensino liceal

1945/46 290 127 1631960/61 368 134 234Aumento 78 7 71

Ensino técnieo-profissional

1945/46 144 83 611960/61 286 97 189Aumento 142 14 128

Quer dizer: fora dos distritos de Lisboa e Porto, têm-se em1960/61, comparativamente a 1945/46, acréscimos de: 68 % no en-sino primário, 44 % no ensino liceal e 210 % no ensino técnico-pro-fissional. Não se trata de julgar se estes ritmos de expansão do sis-tema educacional são satisfatórios. Todavia, não se pode deixar deobservar que o haver, em 1960-61, apenas um estabelecimento deensino secundário por cada 32 escolas primárias, inevitavelmentecondena a grande massa estudantil a não ultrapassar o nível pri-

28 Os estabelecimentos estão contados tantas vezes quantos os ensinosque ministram. FONTE: Estatística da Educação.

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mário de instrução. De facto, por essa e outras razões que não cabeaqui analisar29, a pirâmide educacional portuguesa aparece brutal-mente estrangulada logo à passagem do primário ao secundário.Assim, em 1960/61, tinham-se, relativamente ao total de alunosinscritos, 77,8 % no primário, 19,4 % no secundário, 0,3 % no mé-dio, 0,4 % no normal e 2,1 % no superior. Acresce que, ao longodos cursos secundários, as desistências dos estudos são muito nu-merosas: como se mostra num recente e importante trabalho doCentro de Estudos de Estatística Económica30, os abandonos antesdo termo normal dos cursos devem andar por 75 %.

Nestas condições, a expansão recente do ensino e da escola noContinente português consiste, basicamente, numa generalização doensino primário e no acesso de um maior número de estudantes,que continuam no entanto a representar uma pequena minoria, aoensino secundário, mormente aos primeiros graus deste. Interes-saria, por conseguinte, analisar o impacto desses dois fenómenossobre a sociedade tradicional. Infelizmente, porém, não há quais-quer análises efectuadas ou em curso, de que possamos socorrer--nos. Apenas se podem formular conjecturas e resumir impressões,como se fez acerca da rádio.

Quanto à generalização do ensino primário, é frequente espe-rar-se dela resultados a que, provavelmente e por si só, não con-duz. De facto, não raro se supõe que, só por se lhes transmitiremos rudimentos da leitura, da escrita e da aritmética, as populaçõesentrarão automaticamente num processo de desenvolvimento local.Mas os poucos estudos feitos sobre o tema não confirmam tal supo-sição. Aprender a ler significa adquirir uma capacidade de acessoà informação e à cultura escritas. Simplesmente, veja-se o que seapurou, por exemplo, em Itália, sociedade sob muitos aspectos aná-loga à portuguesa: «em 1958, o ITAT verificou que 62,9 % das famí-lias rurais nada liam, contra 28,3% nas famílias estranhas ao sectoragrícola. A percentagem apresentava-se, aliás, crescente, desde oschefes-de-empresa que não cultivavam directamente o solo (16,4%),até aos trabalhadores assalariados (71,3 %) ; e o índice de leituraera mais baixo para os livros, seguidos pelas revistas e depois pelosdiários. Na mesma data constatava-se igualmente uma utilizaçãomenor da radiotelevisão pelas populações rurais, assim como umaparticipação mais restrita em espectáculos. Todos os programasde rádio registavam, nos meios rurais, os mais fracos índices deescuta, excepto o jornal falado. Foi talvez tendo presente este últi-

29 vid. o artigo de Ludovico MORGADO CÂNDIDO, «A evolução recente dasestruturas do ensino em Portugal», neste mesmo n.2 de Análise Social.

3 o c . ALVES MARTINS, A. ALVES CAETANO, A. SIMÕES LOPES e L. MOR-GADO CÂNDIDO, Evolução da Estrutura Escolar Portuguesa (Metrópole), C. E.E.E., 1964, p. 105 e segs.

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mo facto que se pôde afirmar que, nos campos, a rádio e a televisãorepresentam uma irrupção directa de toda a técnica, nova na civili-zação, do altifalante e da cultura oral, sem passar pela fase inter-média, representada pela cultura escrita» 31. A aquisição de umadada capacidade não pode, pois, ser identificada com a sua utili-zação. E somos assim conduzidos a uma pergunta a que não sesabe responder: que lêem os rurais portugueses alfabetizados? Nãoé absurdo admitir que, se viesse a efectuar-se em Portugal umainvestigação paralela a que se realizou em Itália, os resultadosseriam paralelos também, ou acaso inferiores.

Decerto, a maior informação, principalmente jornalística, queapesar de tudo será apreendida, não pode, a priori pelo menos, serconsiderada desprezível. Parece, no entanto, que será num outrosentido que a generalização do ensino primário e a alfabetizaçãocrescente poderão conduzir a resultados mais imediatos ou maissensíveis — sentido que é o de uma tendência mais forte à irra-diação da sociedade tradicional. Admite-se aqui uma hipótese: ade que, alfabetizado, o indivíduo se sentirá mais apto e mais esti-mulado a «tentar a sua sorte» fora do meio tradicional, na cidadeou no estrangeiro; por outras palavras, a de ele se tornar maisreceptivo ao apelo da sociedade moderna, que lhe chega por outrasvias. Trata-se, evidentemente, de uma simples hipótese não sujeitaainda a verificação. Mas tem-se a impressão de que não andarámuito afastada da realidade.

A respeito do acesso ao ensino secundário, é certamente maisaventuroso afirmar ou admitir seja o que for, sem prévio estudosistemático dos comportamentos da minoria beneficiada por essemais elevado nível de instrução. Mesmo assim, podem esboçar-semodelos de situações prováveis e, a partir deles, enunciar condiusoes verosímeis.

Hipótese comum a qualquer modelo será a de a aquisição deum nível de instrução post-primário actuar como estimulante; deaspirações a uma promoção social, mormente nos indivíduos origi-nários dos estratos sócio-económicos mais baixos. Mas, face a este«nível de aspiração» reforçado, podem conceber-se dois tipos extre-mos de situações. No primeiro, ter-se-á uma sociedade local perfei-tamente estacionária, onde não há qualquer possibilidade de asnovas aspirações que se formam encontrarem realização; em talsociedade penetram, contudo, muitas imagens e mensagens oriun-das da sociedade moderna; a consequência previsível é uma fortepropensão dos indivíduos, cujo «nível de aspiração» se elevou, para

31 Corrado BARBEEIS, Instruction, culture et revenu dans une colonisationsarãe, dans le cadre de Ia société itálienne, comunicação policopiada ao En-contro Internacional sobre «Formação dos Homens e Desenvolvimento Econó-mico», Madrid, 26-31 Outubro 1964.

Í37

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abandonarem o meio tradicional, emigrando para os centros mo-dernos. No outro extremo, ter-se-á uma sociedade local progre-dindo a um ritmo que lhe permite corresponder inteiramente às no-vas aspiraçõs formadas dentro dela; as imagens e mensagens pro-venientes da sociedade moderna não actuarão, agora, como estímu-los ao êxodo, mas como incentivos a um progresso local mais rá-pido; o meio tradicional é transformado, moderniza-se, mas nãoé abandonado. Entre estes extremos, meramente teóricos, podemimaginar-se muitas situações intermédias, conduzindo a diferentesintensidades e doseamentos dos estímulos a «ficar» e dos estímulosa «partir».

Voltemos, porém, ao caso português. Se aceitarmos — comonão custa aceitar— a hipótese inicial; se, por outro lado, aten-dermos à estagnação que afecta a sociedade tradicional no seu con-junto; e se, por fim, tivermos presente o notável acréscimo verifi-cado nos contactos sociais, na informação e nas relações em todoo território — não se afigura ousado concluir que o acesso de mino-rias crescentes ao ensino secundário deve ir acompanhado por ummovimento de fuga dessas minorias ao meio tradicional. Sobre areal amplitude do movimento, em si mesmo previsível, é que defacto nada sabemos32.

4. O impacto da «sociedade moderna» sobre a «sociedade tradi-cional»

Duas sociedades coexistem no território do Continente portu-guês — mas não duas sociedades isoladas uma da outra. Pelo con-trário, o contacto, a relação, e portanto a interacção, entre elas sãocada vez mais amplos. E daí resulta que a «sociedade moderna»exerce sobre a «sociedade tradicional» um impacto dia a dia maisvigoroso. É de tal impacto que tentaremos, seguidamente, captaralguns aspectos, numa óptica de sociologia do desenvolvimento.

a) A «aspiração» de recursos da «sociedade tradicional»pela «sociedade moderna»

O primeiro aspecto, que mais imediatamente se impõe à obser-vação, é uma aspiração ou sucção de recursos da «sociedade tradi-cional», em benefício da «sociedade moderna». Sem dúvida, está-seaqui em presença de uma constante histórica, e não de uma novi-dade. Nova é, porém, a intensidade do fenómeno.

32 Sabemos, no entanto, alguma coisa, como adiante se verá, acerca dafuga da minoria, ainda muito mais reduzida, que tem acesso ao ensino su-perior.

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Estudando exaustivamente, numa perspectiva demográfica, oêxodo rural e a atracção urbana no Continente, no período quemedeia entre os Censos da População de 1920 e 1960, AlbertoALARCÃO enuncia impressionantes conclusões33. Destaquemos algu-mas. O número de concelhos onde se verifica repulsão populacionalaumentou, entre o decénio 1931-40 e o decénio 1951-60, de 198 para247. Entretanto, o número de concelhos onde se regista atracçãodiminuiu, no mesmo período, de 75 para 26. Destes últimos, 5 per-tencem ao distrito de Lisboa, 8 ao de Setúbal, 4 ao do Porto e 3ao de Aveiro (20 num total de 26). A zona de Lisboa34 absorveu,no intercenso 1951-60, 87 % das atracções líquidas de população,e a do Porto 35 9 %; os outros pontos de atracção não receberam,portanto, mais de 4 %. No período 1951-60, só os distritos de Lis-boa e Setúbal apresentam um excesso de atracções líquidas sobreas repulsões líquidas de população: Lisboa -j- 92,1 milhares; Setú-bal -f- 20,9 milhares. O próprio distrito do Porto, que até ao pe-ríodo 1941-50 teve excedentes de atracções sobre as repulsões,ostenta agora um défice de 46,6 milhares, tendo portanto passadoa ser um distrito mais «repelidor» que «atractivo» de gente. E omais impressionante: o número de rurais entrados em êxodo terásubido de 170 mil em 1931-40, para 310 mil em 1941-50 e 730 milem 1951-60. Ou seja: se os dados censitários são, neste aspecto,fidedignos, mais de um milhão de rurais entrou em êxodo em 20anos, 70 % dos quais só no último intercenso. Extrapolando e admi-tindo que o ritmo de acréscimo do êxodo se tem mantido, poderádizer-se que, nos últimos catorze anos (de 1951 a 1964), pelo me-nos um milhão e trezentos mil rurais terá deixado casas, terras,trabalhos e famílias, em busca de outras oportunidades de vida.A grandeza dos números é tal que se hesita em aceitar a veraci-dade dos dados de base. E no entanto, mesmo com grande erro, aenormidade do fenómeno mantêm-se.

Certas consequências deste movimento são conhecidas, masnão se acham infelizmente documentadas com informação estatís-tica (o que é surpreendente e grave). São a rarificação da ofertade trabalho e a ãesertificação populacional em zonas rurais cujaamplitude se ignora. Informam os jornais que falta mão-de-obranas mais variadas profissões, e não só para os trabalhos do campo,num número sempre crescente de terras e zonas do país. E aoturista ou viajante não é difícil topar localidades em franco declí-nio demográfico, muitas de onde todo ou quase todo o braço mas-

33 vd. o já citado artigo «Êxodo rural e atracção urbana no Continente»,publicado neste número de Anâlisç Social

34 Concelhos de Lisboa, Oeiras, Loures, Sintra, Cascais, V. F. de Xira,Almada, Moita, Barreiro, Montijo, Seixal e Alcochete.

35 Concelhos do Porto, Matozinhos, Maia, Gondomar, Valongo, V. N. deGaia e Espinho.

439

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culino e válido desapareceu. Mas não sabemos, embora urja sabê-lo,quantificar globalmente e à escala regional os factos de cuja pre-sença já não é lícito duvidar.

Outras consequências podem, porém, ser estatisticamente ve-rificadas. Uma é a perda de capacidade produtiva das populaçõesrurais. De facto, se considerarmos a população residente distri-buída por três grupos de idades — de 0 a 14 anos; de 15 a 59; e de60 anos e mais —, têm-se os seguintes resultados36:

Centros urbanos

Total . .0 a 14 anos ...

15 a 59 anos ...60 anos e mais

Zonas rurais

Total0 a 14 anos ...

15 a 59 anos ...60 anos e mais

Milhares

1.930,7441,6

1254,8234,3

6.362,31948,73 664,9

748,7

Percentagens

100236512

100315712

Assim, a proporção de indivíduos em idades de alto teor pro-dutivo (dos 15 aos 59) é francamente superior nos centros urba-nos: 1,86 por cada um dos outros (crianças e velhos), contra ape-nas 1,36 nas zonas rurais. O que significa que, nestas zonas, depau-peradas demograficamente pelo êxodo, uma parte consideravel-mente maior do esforço produtivo da população em idade vigorosaé absorvida pela sustentação dos que ainda não trabalham, dosque já deixaram de trabalhar e dos que, ainda ou já, produzempouco.

Verificados por meios estatísticos podem também ser sinais dedeclínio em numerosos pólos urbanos regionais. Sobre este ponto,baste-nos o seguinte. No Continente, há 36 cidades, 14 das quaisnão atingiam, aliás, em 1960, os 10 000 habitantes. Pois desse total,18 — isto é: metade — dão sinais de evolução estagnante ou decli-nante. Estagnantes, revelam-se 4: Bragança, Guarda, Setúbal eViana do Castelo. Declinantes, mostram-se 14: Abrantes, Eivas,Estremoz, Évora, Faro, Lagos, Lamego, Penafiel, Pinhel, Portale-gre, Portimão, Silves, Tavira e Tomar, tudo cidades que, em Cen-sos da População anteriores ao de 1960, ostentaram, como faz no-tar também Alberto ALARCÃO, efectivos populacionais superiores

30 FONTE: X Recenseamento Geral da População, 1960.

MO

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aos registados neste último37. Quer dizer: já antes mal dotada depólos urbanos, a sociedade tradicional vê ainda a sua situação de-gradar-se neste aspecto. E a zona de Lisboa — única, como vimos,onde agora a atracção populacional supera a repulsão — vai cres-cendo à custa, não apenas dos campos, mas também das outrascidades — pequenas urbes — do Continente.

Estes sinais de declínio de um tão grande número de cidadesde província merece ser fortemente sublinhado. A contracção de-mográfica, ao nível das vilas e aldeias, pode representar o mo-mento de arranque de um processo que leve a uma reordenação,de sinal positivo, das actividades regionais, sob o ponto de vistada sua implantação no espaço geográfico — com a condição, porém,de subsistirem ou surgirem centros urbanos aptos a polarizar evitalizar toda uma região. Na verdade, quando vilas e aldeias per-dem dimensão, só em cidades podem estabelecer-se e desenvolver-seas actividads secundárias e terciárias que as hão-de abastecer dosbens e serviços requeridos pelo progresso material e social. Os pe-quenos aglomerados que, outrora, isto é: dentro dos esquemaseconómicos e sociológicos tradicionais, quase se bastavam a simesmos, tornam-se mais dependentes do exterior e ficam, por con-seguinte, condenados a estiolar, se lhes falta o apoio de um centrourbano em desenvolvimento, ao redor do qual todo o complexo so-cio-económico da região se estruture e organize.

Mas passemos a outro domínio. Ê um facto historicamentereconhecido a tendência do escol intelectual para se adensar nosgrandes núcleos urbanos. Tal adensamento decerto sempre impli-cou, em Portugal como noutros países, uma captação de elementosprovenientes dos meios rurais e das pequenas cidades espalhadaspelo território. Não dispomos de elementos que permitam averi-guar se essa captação é hoje mais intensa ou não do que no pas-sado. Não podemos sequer medir a sua intensidade actual. Pode-mos, no entanto, servindo-nos de algumas indicações fragmentá-rias, formar uma primeira ideia, que apela para um estudo estatís-tico e sociológico inexistente, da importância do fenómeno. As in-formações disponíveis estão condensadas no quadro n.° 11. Refe-rem-se às naturalidades, por distritos (ocasionalmente apuradasnum inquérito de 1950/51), dos estudantes matriculados nas Uni-versidades portuguesas e nascidos no Continente, e às residências,também por distritos, quer dos indivíduos com instrução superiorem 1950, quer dos médicos, advogados e engenheiros em 1962. Ascomparações permitidas por tais dados são extremamente grossei-ras. Nem por isso é menos de notar a sensível deslocação de per-centagens em favor dos distritos de Lisboa e Porto, sobretudo doprimeiro, que se regista ao passar da distribuição distrital dos es-

Artigo citado.

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tudantes à distribuição distrital dos diplomados — deslocação queindicia uma considerável absorção de valores intelectuais proce-dentes de outras regiões. Não é, pois, só ao nível do rural de con-dição modesta, mas também ao nível do escol universitário, que asperdas humanas da «sociedade tradicional», em proveito da «socie-dade moderna», se operam. Por outras palavras: não são apenasforças braçais, são igualmente forças mentais, que esta àquela vaibuscar.

Naturalidade dos estudantes universitários. Residência dos diplomados

QUADRO N.» 11

Distritos

Estudantes universitáriosnaturais do Continente,

por distritos cte naturalidade

Õ ÍH

Á 8

Indivíduos com nível de instru-ção superior, por distritos

de residência

d)

ContinenteLisboaPortoOutros distritos

(2) (3) (4) (5) | (6) (7)

Números absolutos

117443 54814606 736

2 274569358

1347

1279271139869

1402507193702

42 211181566 52417 531

7 3973 00815052 884

1985821288876

(8) (9)

2 2001332

379489

Percentagens

ContinenteLisboaPortoOutros distritos

100311356

100251659

100211168

100361450

100431641

100412039

100411544

100611722

FONTES: Para as colunas 2 a 5: Inquérito junto das secretarias universitárias, inte-grado nos inquéritos preparatórios do I Congresso Nacional da Juventude Univer-versitária Católica, Lisboa, 1953, e publicado no volume Situação UniversitáriaPortuguesa, ed. J.U.C.-J.U.O.F.; para 6: IX Recenseamento Geral da População,1950; para 7 e 8: Anuário EstatisticOj 1962; para 9: Anuário Estatístico das Contri-buições e Impostos, 1961,

Nota: Na coluna 9 estão contados apenas os engenheiros exercendo profissão liberal.

Paralelamente a este afluxo humano, dá-se também um afluxode recursos materiais. Neste campo (o último que desejaríamosabordar), é possível referir mecanismos, mas não se podem por

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ora indicar quantitativos estatisticamente determinados. Limite-mo-nos, portanto, a mencionar alguns daqueles. Em primeiro lugar,aflui à «sociedade moderna» grande parte do produto das rendase outras formas de participação no rendimento da terra, de quebeneficiam proprietários ausentes dos meios rurais. Também aíaflui o rendimento de muitas casas de habitação que, em conse-quência de êxodo, já não são residência dos seus donos e foramalugadas. Depois, há os intermediários comerciais, muitos delesradicados nas grandes aglomerações, os quais logram absorveruma parte importante do valor final dos produtos agrícolas, sujei-tando não raro o produtor a uma quase-extorsão. Há ainda o sis-tema bancário que, com as suas agências na província e as suassedes nas grandes cidades, vai canalizando recursos financeiros,captados um pouco por toda a parte, para as áreas de economia mo-derna, onde o dinheiro mais se movimenta e melhor se investe. Ehá, enfim, as compras e mais despesas que, nos centros urbanosonde o comércio é rico e os serviços prosperam, vão regularmentefazer muitos indivíduos e famílias de mais desafogada posição nasociedade tradicional. A quanto monta tudo isto? Não sabemos38.Decerto, porém, a muito significativos valores39.

b) Atitudes e comportamentos em mutação na «socie-dade tradicional»

Segundo aspecto do impacto da «sociedade moderna» sobre a«sociedade tradicional» é a transmissão daquela a esta de todauma série de estímulos a uma transformação de atitudes e com-portamentos. Mas aqui entramos em pleno num campo onde orecurso a indicadores estatísticos ou a prévias averiguações socio-lógicas, de cunho científico, é de todo inviável. Nada foi até agoraestudado e, portanto, nada mais se pode fazer do que reunir informações dispersas e vulgares, tentando, através delas, uma sistema-tização e uma busca da objectividade descritiva. E, obviamente,apenas para traçar linhas muito gerais.

38 Algumas parcelas poderão, no entanto, ser calculadas com acei-tável aproximação.

39 M. de SANTOS LOUREIRO apresentou, no já citado e valioso estudosobre as assimetrias espaciais de crescimento no Continente português (vol. II,p. 42), uma estimativa, cujo método não explicitou, das participações distri-tais no Rendimento Nacional. Segundo os seus cálculos, caberiam aos dis-tritos de Lisboa e Porto 84 % desse rendimento (Lisboa: 66 %;, Porto: 18 %).Como a participação dos mesmos distritos no produto interno bruto é deapenas 46% (em 1958), ser-se-ia levado a crer, fazendo fé daquela estima-tiva, que Lisboa e Porto funcionam como verdadeiros «sorvedoiros» de rendi-mentos originados no resto do Continente e fora dele. Mas será, na verdade,assim tão amplo o fenómeno?

U8.

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Distinguiremos três níveis sociológicos, como quadro de refe-rência fundamental deste esboço de análise: o das classes campo-nesas e assalariadas, o das classes médias e o das classes superio-res •— níveis que não cuidaremos, aliás, de definir e quantificar40.Em cada um deles podem aperceber-se algumas tendências de evo-lução psicossocial de maior ou menor intensidade e extensão.

No primeiro nível — o das classes camponesas e assalaria-das —, o que desde logo ressalta é um desapego maior (ou maiorfacilidade de desprendimento) do meio tradicional. Isso traduz-se,não só num êxodo muito mais amplo, mas também, e eis o maissignificativo, num desprezo de oportunidades locais de emprego enum abandono de ocupações já exercidas e outrora procuradas. Queesse fenómeno se liga a uma crescente iyxsatisfação manifesta pe-rante as condições e perspectivas profissionais e sociais oferecidaspela sociedade tradicional, não se afigura duvidoso. Ora, é nocarácter «manifesto», ou talvez mais precisamente: activo, da in-satisfação, que parece residir o elemento novo. Pois há uma insa-tisfação encoberta, passiva, que é a resignação e o «fatalismo», edessa tudo indica que, desde há muito, padece o rural português.

Porquê este novo cunho da insatisfação? É lícito pensar queprovém de um alargamento de horizontes mentais para além docírculo socio-económico local — alargamento que leva a aperceber,fora do meio tradicional, o «mundo moderno» (anteriormente sólongínqua, confusa e ocasionalmente vislumbrado), com. muitasdas suas incitações a uma existência menos penosa, com o atrac-tivo da sua própria densidade e intensidade de vida, com a suademonstração de progresso — e também com as suas oportunida-des de melhores ganhos, de ocupações mais contínuas e de traba-lhos menos pesados. Em consequência dessa abertura do campo depercepção social do indivíduo, outras motivações entram em acção,outros quadros psicológicos se formam — motivações e quadrosque vêm sobrepor-se aos tradicionais ou substituir-se a algunsdeles. É todo um processo de «fictícia modernização cultural», quemais propriamente se dirá de «urbanização cultural dos campos» 41,que entra em movimento.

No desenrolar de tal processo, certas transformações motiva-cionais e de estrutura psíquica vão-se manifestando e avolumandoprogressivamente. Destaquemos, em especial: uma libertação demodelos de comportamento tradition-directed, que a muitos impeleao êxodo; a aquisição de uma «consciência de direitos» (de direitosinteriorizados, não já em função das tradições locais, dos «usos e

40 Sobre tal definição e quantificação, algo tentaremos, no entanto, emartigo ulterior.

41 Vã. Trás for mazioni sociali e culturali in Itália e loro riflessi sullascuola, SVIMEZ, Roma, Giuffrè, 1962.

4U

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costumes da terra», mas em referência a padrões urbanos); enfim,c aparecimento da predisposição à reivindicação, na qual se ex-prime, precisamente, aquela nova «consciência de direitos». Estastransformações, e nomeadamente as duas últimas, são, porém,apressadas num condicionalismo de rarefacção demográfica e decarência de mão-de-obra, em virtude do reforço de posição contra-tual dos assalariados, daí resultante.

Em que ponto desta evolução nos encontramos em Portugal?Eis o que se não sabe, nem se pode saber, sem estudo sociológicoprévio. Decerto, porém, não em um único ponto, mas em vários,consoante as regiões. Seja como for, a recente e vigorosa acelera-ção do êxodo rural é significativa de que nos não podemos já si-tuar, pelo menos em largas zonas, nos primórdios do processo. Tor-naremos a este ponto adiante.

No segundo nível — o das classes médias—, é mais árduo,pela via impressionista que somos forçados a seguir, descortinaruma linha evolutiva geral. Sabe-se que, nas classes médias agrí-colas, está difundido um sentimento de «abandono», de desprotec-ção, ou se se prefere: a convicção de serem ignoradas nos seusproblemas, esquecidas nas suas dificuldades, como que entregues«à sua sorte». Por outro lado, aqui e além, surgem indícios do des-pontar de novas atitudes e novos comportamentos, nos quais seexprime, por um lado, a assimilação de esquemas da racionalidadeeconómica moderna, e por outro, uma certa vontade de progresso,de inovação, de busca de novas fórmulas técnicas ou mesmo insti-tucionais. Não andaremos decerto muito longe da objectividade, senesse movimento virmos também um esforço de adaptação às con-dições do mundo moderno, agora mais claramente apercebidas numcampo de visão mais lato, e uma tentativa de reacção a um aban-dono, tradicionalmente ressentido, mas hoje, por contraste com oprogresso visível na sociedade moderna e em face das crescentes di-ficuldades económicas acarretadas pelo êxodo de camponeses, tor-nado menos suportável. Entretanto, nas classes médias não-agríco-las, por vezes engrossadas com ex-agricultores, um movimentoanálogo se desenha, porventura até mais bem sucedido do ponto devista económico. E vão, assim, aparecendo novos géneros de comér-cio, empresas de transportes colectivos, pequenos empreendimentosindustriais que, acrescentados ao esforço dos agricultores maisdinâmicos, impedem a sociedade tradicional de estacionar no abso-luto imobilismo, não podendo porém imprimir-lhe um ritmo de pro-gresso comparável ao da sociedade moderna e impedi-la de fazer,perante esta, figura de estagnada.

Finalmente, no terceiro nível — o das classes superiores —, atradição histórica, em função da qual a sua evolução presente temde ser entendida, não é, como para as classes médias agrícolas, ade uma «situação de abandono» (objectivamente tal ou por elasassim interpretada), mas, pelo contrário, a de uma situação de

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prestígio e poderio incontestados. Simplesmente, tal situação éposta em causa pelo próprio desenvolvimento da sociedade modernaem Portugal42. De facto, na sociedade moderna — urbanizada, in-dustrializada e terciária—, os altos escalões do prestígio socialsão tomados pelas classes superiores urbanas, detentoras do domí-nio ou administração dos grandes negócios e dos altos cargos admi-nistrativos e técnicos do sector público. Por outro lado, as «ideolo-gias» de progresso pela técnica e pela eficácia económica, elabo-radas na sociedade moderna, inexoravelmente desvalorizam as po-sições de supremacia cujo fundamento e cujo símbolo consistem,essencialmente, na posse e conservação de amplos patrimónios fun-diários. Valorizadas são as posições sociais que aparecem vincula-das ao progresso técnico e económico, quer como fruto deste, quercomo seu propulsor — não as que constituem um prolongamentono presente de situações criadas no passado e num outro tipo desociedade. Representativas, por excelência, duma sociedade carac-terizada pela rigidez estrutural e pela transformação lenta, as clas-ses superiores tradicionais vêem, assim, o seu prestígio fatalmentediminuído num mundo que aspira à mobilidade e à transformaçãorápida. Acabam, afinal, por ser vistas como «inibidoras do pro-gresso», encarregando-se certo escol intelectual urbano de explici-tar e reforçar, com argumentos de análise objectiva e de técnica,tal modo de as ver.

Este recuo do seu prestígio social tem vindo a acontecer nasociedade portuguesa — mais notório ou mais acentuado, porém,desde que uma «intelectualidade técnica» se formou, adquirindoaudiência pública, e desde que os temas do desenvolvimento econó-mico e da estagnação agrícola foram por ela tratados e adquiriramdimensão política. Mas não é acompanhado por uma equivalenteperda de poderio 43. De facto, as suas posições na vasta sociedadetradicional permanecem intactas, quando não se reforçam; relaçõesfamiliares e ligações económicas com as classes superiores urba-nas oferecem-lhes valiosos pontos de apoio no sector moderno dasociedade; e a clássica indiferença dos urbanos em face dos rurais,associada à persistência e influência de quadros ideológicos queabsolutizam direitos adquiridos ou idealizam situações tradicionais,contribui para o adiamento de problemas que, se enfrentados, iriamcontender com as suas posições44.

42 Tra ta -se , de resto, de u m fenómeno comum a mui t a s sociedades emvias de desenvolvimento. Vd., por exemplo, Alber to SANCHEZ CRESPO, «Estrat í f i -cación, industr ial ización y cambio político en Amér ica Lat ina», in DesarrolloEconómico, I I , n. s 4, Buenos Aires, Jan . -Mar . 1963, pp . 47-74.

43 vd. , sobre este ponto, o a r t igo de Eugénio de CASTRO CALDAS, «Aspec-tos da resis tência ao desenvolvimento n a Agr icul tura» , publicado nes te n.9 deAnalise Social.

44 Também neste aspecto, o problema não é exclusivamente português.Vd., por exemplo, Jacques LAMBERT, Amérique Latine — Structures Socialeset Institutions Politiques, Paris, P.U.F., col. «Thémis», 1963,, pp. 108 segs.

ue

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Todavia, a sua reacção à sociedade moderna não tem sido só— embora até ao presente, e tanto quanto se pode ver, o seja prin-cipalmente — de recusa e neutralização de ideias e iniciativas di-recta, ou mesmo só indirectamente, julgadas ameaçadoras. Na ver-dade, também entre elas se esboça um movimento, cuja amplitudeé difícil medir, mas que parece por ora minoritário, orientadono sentido, digamos, da salvação pela técnica. E surgem os projec-tos, às vezes quase mitificados, dos planos de rega, da pecuáriaracionalizada, da mecanização, das indústrias agrícolas — tudopensado e desejado sem alteração das estruturas fundiárias e so-ciais estabelecidas. Assim, também nelas o influxo transformadorde atitudes e comportamentos, irradiado pela sociedade moderna,se vai fazendo sentir no seu aspecto dinamizador. É, porém, rece-bido e absorvido num quadro sociológico e ideológico tradicional,que precisamente se pretende manter inalterado nos seus funda-mentos. Uma agricultura modernizada, numa sociedade tradicio-nalista — eis o que se afigura constituir o cerne da ideologia emprogresso no sector mais-dinamizado, e culturalmente mais aberto,das classes superiores tradicionais.

c) Repercussões do êxodo sobre a «sociedade tradicional»

Voltemos ao êxodo rural, sem dúvida o efeito mais salientee vultoso, na dimensão que tem vindo a assumir, do impacto da«sociedade moderna» sobre a «sociedade tradicional». Tentemoscaptar alguns aspectos, ainda não focados, da sua repercussão so-bre esta última, servindo-nos, para esse fim, dos dados sobre aestrutura profissional da população activa agrícola, contidos nosdois últimos Censos da População.

Nos quadros n.os 12 e 13 figura a «composição social da popu-lação activa agrícola», considerada segundo um esquema de trêscategorias (patrões, trabalhadores familiares e assalaridos) 45 eem dois momentos espaçados de dez anos: respectivamente 1950 e1960. «Patrões» são todos os que — proprietários, parceiros ou ren-deiros— têm habitualmente empregados ou assalariados por suaconta. Nos «trabalhadores familiares» agrupam-se os «isolados» —que não têm empregados ou assalariados a trabalhar habitual-mente por sua conta e podem também ser proprietários, parceirosou rendeiros — e ainda as «pessoas de família» e os «não-renume-rados» integrados em explorações agrícolas. Finalmente, os «assa-

45 São as categorias adoptadas no já citado trabalho do Centro de Estu-dos de Economia Agrária, Níveis de Desenvolvimento Agrícola no ContinentePortuguês, da autoria de Eugénio de CASTRO CAÍDAS e Manuel de SANTOSLOUREIRO.

U7

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lariados» abrangem os «empregados» (remunerados ao mês), os«assoldados ao ano», os «assalariados» em sentido restrito (remu-nerados ao dia ou à semana) e os «tarefeiros» (remunerados àtarefa).

Composição social da população activa com profissão agrícolaQUADRO N.« 12 1950

Totais(1000)

(2)

1 409,3

79,483,696,054,865,686,859,369,670,181,090,656,688,7

113,851,863,381,5

120,0

Patrões

1000

(3)

136,5

11,64,1

15,06,34,78,32,45,47,47,89,42,8

12,48,53,05,88,9

12,6

%

(4)

10

155

1612

710

48

1110105

14769

1111

Trabalhadoresfamiliares

1000

Assalariados

1000

(D

Continente

AveiroBejaBragaBragançaCastelo BrancoCoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarém .......SetúbalViana do Castelo...Vila RealViseu

(5)

430,8

35,49,8

41,319,313,733,13,8

21,025,426,017,24,3

35,721,76,0

40,626,250,3

(6)

30

4612433521386

303632198

401912643242

(7)

842,0

29,469,739,729,247,245,553,043,337,347,263,949,540,783,642,816,946,457,0

(8)

60

3983

41

53

72

52

90

62

53

58

71

87

46

74

82

27

57

47

FONTE: E. de CASTRO CALDAS e M. de SANTOS LOUREIRO, Níveis de Desenvol-vimento Agrícola no Contmente Português.

Nas comparações que se façam entre os dois quadros, há queatender à variação introduzida na definição estatística de «popu-lação activa». Em 1950, apenas entravam nesta indivíduos com 12anos ou mais. Em 1960, o limite inferior de idade foi baixado para10 anos. Ê evidente que tal alteração vem acrescer o total da popu-lação activa com profissão agrícola, no Continente e em cada umdos distritos. Mas pode supor-se que tal acréscimo se concentrana categoria dos «trabalhadores familiares» e, mais concretamente,nas subcategorias dos «não-remunerados» e das «pessoas de fa-mília».

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Composição social da população activa com profissão agrícola

QUADRO N.s 13 1960

DistritosTotais(1000)

Patrões

1000

Trabalhadoresfamiliares

1000

Assalariados

1000

(D

Continente

AveiroBejaBragaBragançaCastelo Branco ...CoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarémSetúbalViana do Castelo..Vila RealViseu

(2)

1 286,1

64,877,584,761,564,076,353,562,563,179,276,348,972,394,645,459,486,1

116,3

(3)

75,6

7,32,76,22,84,13,91,44,02,65,24,91,87,25,82,41,45,86,1

(4)

6

1137565364764

1065275

(5)

451,2

33,98,2

49,028,415,229,0

2,920,422,329,716,33,7

35,016,44,0

46,435,555,2

(6)

35

5211584624385

333538218

48179

784147

(7) (8)

759,3 | 59

23,666,629,530,344,743,449,238,138,244,355,143,430,172,439,011,644,855,0

378635497057926161557388427786205248

FONTE: Estatística Agrícola, 1962.

O que primeiro ressalta do confronto entre os dois quadros éa drástica redução da categoria dos «patrões». Eram 136,5 milha-res em 1950; são 75,6 milhares apenas, em 1960 — menos 60,9 mi-lhares. Sofreram, pois, uma quebra de 44 % — não havendo, aliás,um único distrito onde o seu número não baixasse. Por distritos,as percentagens de redução, ordenadas segundo valores decres-centes, são as referidas no quadro n.° 1446.

46 Percentagens calculadas sobre os números insertos no Tomo V, Vo-lume 3.Q, do X Recenseamento Geral da População, 1960, os quais diferemum pouco dos inscritos no quadro n.? 18, provenientes estes da EstatísticaAgrícola, 1962.

U9

Page 44: Sedas Nunes, Aderito. Portugal-Sociedade Dualista em Evolução

Redução das classes patronais agrícolas entre 1950 e 1960

QUADRO N.« 14

Distritos

Viana do Castelo ...GuardaBragaBragançaCoimbraViseuLisboaPortoÉvora

% de redução

75,964,958,755,653,051,647,941,941,7

Distritos

AveiroPortalegreVila RealBejaLeiriaSantarémFaroSetúbalCastelo Branco

°fo <Xe r edução

37,035,734,834,133,331,825,920,012,8

Como se explica tão vultosa contracção das classes patronaisagrícolas? Decerto, um grande número de pequenos patrões, tendoperdido, por força do êxodo, os assalariados que habitualmentemantinham ao seu serviço, transformaram-se em «isolados». Masnão é impossível que uma parte deles tenha também entrado emêxodo, como vai ver-se.

Tome-se, com efeito, o quadro n.° 1547. Aí se vê que, à escalado Continente, contra uma diminuição de 60,4 mil unidades nacategoria dos «patrões», há um aumento de tão-só 6,2 mil unidadesna categoria dos «isolados». Assim, as duas categorias perderam,em conjunto, 54,2 mil unidades. É verdade que, em oito distritos— Viana do Castelo, Braga e Porto; Vila Real, Bragança e Viseu;Leiria e Lisboa —, o número de «isolados» aparece acrescido. Massó em um distrito, o de Bragança, o conjunto formado por «pa-trões» e «isolados» não aparece diminuído.

Quer dizer: o êxodo rural, no intercenso 1950-1960, não atin-giu apenas «assalariados». Envolveu também, no seu movimento,outras categorias da população agrícola: «isolados» e, provavel-mente, «patrões». Ora, convém realçar esta conclusão, porque ésignificativa de que o processo do êxodo já atingiu uma fase avan-çada — aquela em que a «sociedade tradicional» é preterida, nãojá apenas por aqueles que, de entre as classes inferiores e do pontode vista económico, só lhe estavam ligados pelo trabalho, mas igual-mente pelos que nela estavam enraizados pela terra e pelo capital43.

47 os números da coluna respeitante aos «patrões» em 1960 não coinci-dem exactamente com os da correspondente coluna no quadro n.9 IS, pelarazão indicada na nota precedente.

48 Vd. sobre este ponto: Henri MENDRAS, Sociologie Rurale, Cours poly-copié, Institut d'Etudes Politiques de 1'Université de Paris, 1963-1964, pp. 106e segs.

Í50

Page 45: Sedas Nunes, Aderito. Portugal-Sociedade Dualista em Evolução

«Patrões» e «isolados» agrícolas. Variação entre 1950 e 1960

QUADRO N.« 15

Distritos

N.° de «patrões»(Milhares)

Em1950

Em1960

Variação

N.° de «isolados»(Milhares)

I

Em1950

Em1960

Variação

«Isola-dos»

e«Patrões»Variaçãoconjunta

(DContinente

(2) (3)

136,5 | 76,1

AveiroBejaBragaBragançaCastelo BrancoCoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarémSetúbalViana do Castelo...Vila RealViseu

11,64,1

15,06,34,78,32,45,47,47,89,42,8

12,48,53,05,88,9

12,6

7,12,76,22,84,14,21,44,03,55,24,81,77,25,82,41,45,86,0 !

(4)

— 60A

— kfi— IA— 8,8— 3,5— 0,6

3,92,6

ia5,22,70,6kA3,16,6

(5)

268,7

21,36,3

19,611,810,423,2

2,714,717,218,710,73,3

18,615,43,7

24,116,230,9

(6)

274,9

20,85,0

25,615,99,9

20,62,2

14,414,619,810,92,8

19,812,12,6

25,719,033,3

(7)

+ 6,2

— 0,5— 1,3+ 6,0+ 44— 0,5— 2,6— 0,5— 0,3— 2,6+ 1,1r 0,2

— 0,5+ 1,2— 3,3

1)1h 1,6

(8)

— 5-4,2

2,72,80,6ia6,11$1,76,51,5

1,66A6,01,72,80,3

FONTES: IX e X Reòew&eamentos Gtemis da População.

Retomando o confronto entre os quadros n.os 12 e 13, e olhandoagora às colunas dos «assalariados», verifica-se que o número des-tes baixou, no Continente, de 82,7 mil unidades, ou seja: 9,8 %. Sóem dois distritos se deparam aumentos: Bragança: 3,8 %; e Guar-da: 2,4%. É, porém, nos distritos do litoral-Norte (de Aveiro aViana) que as perdas atingem um volume impressionante. O qua-dro n.° 16 evidencia-as. De notar é que o distrito de Viana do Cas-telo, que acusa a mais alta percentagem de contracção do númerode «patrões», apresenta igualmente a mais forte redução do nú-mero de «assalariados». Estranho se mostra o caso de Bragança,onde cresceram a população activa agrícola, os «trabalhadoresfamiliares», os «isolados» e os «assalariados», mas os «patrões»

451

Page 46: Sedas Nunes, Aderito. Portugal-Sociedade Dualista em Evolução

diminuíram... Que se passa aí? B um ponto que deixamos emaberto.

Variação das classes assalariadas agi ícolas entre 1950 e 1960

QUADRO N.° 16

Distritos

Viana do CasteloPortoBragaAveiroLisboaSantarémPortalegreFaroSetúbal

Variações

— 31,3 %— 26,0 %— 25,6%— 20,0 %— 13,7%—13,4 %—12,0 %—12,0 %— 8,9%

Distritos

ÉvoraLeiriaCastelo Branco . . . . .CoimbraBejaViseuVila RealGuardaBragança

Variações

— 7,1 %— 6,1 %— 5,3 %— 4,6%— 4,4 %— 3,5%— 3,4 %+ 2,4 %+ 3,8%

Em 1950, as três categorias de «patrões», «trabalhadores fa-miliares» e «assalariados» representavam, respectivamente, 10%30 % e 60 % da população activa agrícola. Poderia esperar-se,como efeito do êxodo de «assalariados», uma atenuação destecunho vincadamente proletarizaão da ruralidade portuguesa49. Mastal resultado não foi obtido. Ã escala do Continente, aparecem-nosagora 59 % de assalariados; mas como a percentagem do conjunto«patrões e isolados» desceu de 29 % para 27 %, é ao aumento dapercentagem de «pessoas de família e não-remunerados» (efeitoestatístico de se terem contado indivíduos com idades compreen-didas entre os 10 e os 12 anos) que aquela descida de um pontona percentagem de «assalariados» se deve atribuir. Por outro lado,nove distritos — Aveiro, Braga, Bragança, Castelo Branco, Faro,Leiria, Porto, Viana do Cas;elo e Vila Real — apresentam,, em1960, percentagens de «assalariados» inferiores às de 1950 (vd.quadros n.os 12 e 13). Simplesmente, em sete desses distritos, aspercentagens de «patrões e isolados», tomados conjuntamente, oudesceram também (caso de Bragança, Castelo Branco, Leiria,Viana do Castelo e Vila Real) ou mantiveram-se constantes(Aveiro e Faro); e temos a mesma conclusão, já apurada à escalado Continente: a de se tratar de uma «ilusão estatística». Nos

49 Pela mesma época, tinham-se, por exemplo, 14 % de assalariados naBélgica, 17 % na Irlanda, 20 % na Áustria, 26 % na Suíça e 29 % na Itália.Cfr. Eugénio de CASTRO CALDAS;- Modernização da Agricultura, Lisboa, Sá daCosta, 1960, p. 128.

452

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dois distritos restantes (Braga e Porto), houve aumentos dias per-centagens conjuntas de «patrões e isolados», mas inferiores (emcinco pontos quanto a Braga, e em dois quanto ao Porto) às dimi-nuições registadas nas percentagens de «assalariados».

Assim, longe de se ter esbatido, o cunho proletário da rurali-dade nacional aparece agravado. Aliás, o mero confronto dosi qua-dros n.os 12 e 13 logo o diz, sem necessidade de cálculos suplemen-tares, para uma série de distritos — como Beja, Évora, Portalegre,Setúbal e Santarém.

Mas mais explícito e categórico é o resultado que se apurado quadro n.° 17. Aí estão, ordenados por valores crescentes de1950, os coeficientes de «assalariados por patrão» nos vários dis-tritos. E logo se vê que não há um único distrito onde o coeficientenão tenha subido. Na área formada pelo Minho, pela Beira Altae pelos distritos de Bragança e Coimbra, os acréscimos do coefi-ciente variam entre a quase duplicação (Braga) e a quase tripli-cação (Guarda)! Como interpretar estes dados? Pode imediata-mente pensar-se num movimento de concentração das exploraçõesagrícolas. Mas, sem excluir a ocorrência de tal movimento, nomea-damente no Centro e no Sul do país, também pode pensar-se numprocesso de paragem da exploração de muitas propriedades rús-ticas. De facto, quando se atenta em que, no Minho, o número de«assalariados» baixou de 27 %, entre 1950 e 1960, é este segundomovimento o que se afigura verosímil, uma vez que as estru-turas técnicas parecem manter-se praticamente inalteradas.

Var iação do coeficiente de assa lar iados por patrão entre 1950 e 1960

QUADRO N.« 17

Distritos 1950

Aveiro 2,5

Braga j 2,6

Viana do Castelo... | 2,9

Porto | 3,3

Viseu • 4,5i

Bragança j 4,6

Guarda ' 5,0

Vila Real ' 5,2

Coimbra j 5,5

1960.

3,2

4,8

8,3

4,2

9,0

10,8

14,7

7,7

11,1

deacrés-cimo

2 8 %

8 5 %

186 %

2 7 %

100%

135%

194%

4 8 %

102%

Distritos

Leiria

Lisboa

Faro

Santarém

Castelo Branco

Setúbal

Beja

Portalegre

Évora

1950

6,1

6,8

8,0

9,8

10,0

14,0

17,1

17,4

22,1

1960

8,5

11,2

9,5

12,5

10,9

16,3

24,7

24,1

35,1

deacrés-cimo

39%

65%

19%

28%

9%

16%

44%

39%

59%

FONTES: Estatística Agrícola, 1962 « Eugénio de CASTRO CALDAS e Manuel deSANTOS LOUREIRO, Níveis de Desenvolvimento Agrícola YÉO Continente Português.

15$

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No conjunto do território continental e por comparação com1950, havia em 1960, já o dissemos, 54,2 milhares a menos deagricultores responsáveis pela gestão de explorações agrícolas(patrões e isolados). Em muitas zonas, a redução do número dessesagricultores foi, sem dúvida, acompanhada pela cessação da acti-vidade num apreciável sector das explorações agrícolas. E comoasse fenómeno diecerto afectouv predominantemente, pequenas ex-plorações, o coeficiente médio de «assalariados por patrão» ele-vou-se, mesmo quando se não haja ampliado a dimensão das explo-rações mantidas em actividade.

Se à cessação de actividade — cuja extensão se ignora, masque os números indicados sugerem e a observação vulgar confir-ma —, se adicionar a circunstância de muitas propriedades rústi-cas, que aindia em 1950 eram laboradas com o concurso de mão-de--obra assalariada, aparecerem em 1960 adstritas a «isolados» e,portanto, em piores condições de aproveitamento do solo — tem-seuma imagem de regressão agrícola irrecusável. Mas só um inqué-rito agrícola poderia revelar as formas, a amplitude e a projecçãoregional de tal decadência.

Assim, por detrás da estagnação agrícola global, recordadanas primeiras linhas deste artigo, ocultam-se regressões regionaisou zonais, que atingem a «sociedade tradicional» na sua própriabase. E tudo isto se induz de informações estatísticas datadas de1960, quando por outras1 fontes se sabe que a «fuga dos campos»se acelerou a partir de então, orientando-se agora mais decidida-mente para o exterior " e assumindo foros, não já de simples êxodorural, mas de êxodo nacional.

5. Limitações da análise efectuada

Extenso embora e já demasiado carregado, este artigo fica, noentanto, incompleto.

Pala-se nele de «sociedade moderna», opondo-a à «sociedadetradicional». Mas nada se diz sobre o «grau de modernidade» cLessa«sociedade moderna», nem correlativamente sobre o que nelasubsiste e persiste de herança recebida da «sociedade tradicional»donde brotou. E todavia, ter em mente o seu «grau de tradiciona-lidade», presente e activo em atitudes, comportamentos, ideias einstituições, é fundamental para o entendimento da sua dinâmicafuncional e evolutiva (que, em certos aspectos, é de refreamento)e da dinâmica das suas relações e interacções com a «sociedadetradicional».

50 Vd. sobre este ponto o já mencionado artigo de J. C. FERREIRA DEALMEIDA, «A emigração portuguesa para França: alguns aspectos quantitati-vos^ neste n.° de Análise Social, e também: João EVANGELISTA, «Análise dosresultados provisórios do Recenseamento de 1960», relativamente a PortugalContinental, in Revista do Centro de Estudos Demográficos, n.° 14, pp. 61-80.

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Por outro lado, fala-se do impacto da «sociedade moderna»sobre a «sociedade tradicional», mas não do impacto da «sociedademoderna» sobre si mesma, isto é: sobre os indivíduos, os grupos,as instituições, as classes sociais que a integram. Ora, a «sociedademoderna» implantada no Continente português é, mais propria-mente, uma sociedade em processo de modernização cumulativa —sociedade lançada num movimento histórico que a si mesmo seproduz, mas que influxos externos ao país aceleram. Tentar apreen-der a forma, o sentido e o alcance de tal movimento é essencial,porquanto constitui um dos quadros de referência básicos da pro-blemática portuguesa.

Também pouco se disse acerca das influências, que existeme em vários níveis e aspectos, da «sociedade tradicional» sobre a«moderna». O esquema simples em que aquela figura, perante esta,como reservatório de mão-de-obra não-qualificada,, mas dócil, ecomo abastecedora de certos produtos é, na verdade, demasiadosimples. Tivemos, aliás, ocasião de o verificar. E se mais não hou-vesse, bastaria pensar em que com os homens;, desde rurais a in-telectuais, expelidos da «sociedade tradicional» para a «sociedademoderna», vai a cultura de que são portadores (ou seja: vão ati-tudes, comportamentos e concepções tradicionais), para se pres-sentirem outras formas relevantes de influência. De facto, o quehá de «tradicionalidade» no sector moderno da sociedade portu-guesa, seja qual for o nível ou domínio considerado, é incessante-mente reforçado, na sua tendência para manter-se vigente, poressas outras formas de influência do sector tradicional. De talmodo que, no sector moderno, o que se processa é um jogo de me-canismos e tendências modernizantes e de mecanismos e tendên-cias conservadores de formas tradicionais. Nada seria mais instru-tivo e clarificador do que observar e captar esse jogo, por exemplono movimento das ideias, nas estruturas do ensino, nos métodose orgânicas de administração, no funcionamento das instituições.

Finalmente, também não se falou, ou só incidentalmente algose disse, do aspecto «construtivo» — ou renovador, ou vitalizador,como se prefira — do impacto da «sociedade moderna» sobre a«sociedade tradicional». Mas aqui partiu-se de uma ideia que, emrelação a este artigo, é uma ideia prévia: a de que esse aspectonão tem peso comparável ao daqueles que focámos. Demasiadoconcentrado, o sector moderno da sociedade portuguesa criou um«imiverso cultural» próprio, dificilmente permeável à percepçãodos problemas e transformações do meio tradicional que o cir-cunda. E de resto, desse mesmo meio recebeu, e por muito tempoadoptou, a noção de se tratar de um mundo estável, tranquilo,permanentemente idêntico a si próprio e sem necessidade ou ur-gência de prof lindas revisões — um mundo do qual se podia como-damente abstrair, salvo para nele ir colher pão,rendas, mão-de-obrae... sufrágios. Por outro lado, exceptuando as classes superiores

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da lavoura, à «sociedade tradicional» faltaram, e continuam a fal-tar, válidos meios institucionais e pessoais para, no interior mesmodo sector moderno, onde os grandes «pólos de decisão» nacionaisse localizam, formular, transmitir e dar público peso às inquie-tações e perplexidades que a pouco e pouco (e por fim, em cadênciaacelerada) a foram invadindo. Sem dúvida, centrado embora nosseus próprios interesses e no seu próprio desenvolvimento, o sectormoderno procurou, pela via da Adininistração Pública, lançar al-guns estímulos ao sector tradicional, sobretudo talvez por se terdado conta de uma interdependência de problemas e situações.Mas a rigidez e a resistência de certas estruturas1 agrárias nãoconsentiram que de tais iniciativas, quando chegaram a passardo projecto à execução, resultasse o efeito dinamizador desejado.E assim, o influxo renovador da «sociedade moderna» sobre a «so-ciedade tradicional» — limitado já no ponto de arranque e depoisem grande parte anulado ou desviado no ponto de incidência —não pôde exceder estreitos limites de eficácia. Eis o que, parcial-mente, justificará não se lhe ter prestado aqui suficiente atenção— ou antes: ter-se preferido abordar a outra face das coisa®.

6. Conclusão e perspectivas: que atitude tomar?

Aí ficam, pois, mencionadas algumas, ou acaso as principais,limitações de que este artigo padece. Outra, porém, resulta da in-tenção a que foi subordinado. De facto, não se pretendeu equacio-nar problemas, menos ainda propor medidas para os enfrentar.Quis-se apenas ver factos—e, portanto, coligi-los, conjugá-losinterpretá-los, quando e quanto possível. Mas, agora que os factosque se quis ver já aí estão, é lícito querer saber que atitude importaperante eles adoptar — e por tal questão concluir.

Ora, várias atitudes são possíveis. Para melhor as enquadrar,partamos do facto que mais avulta e impressiona: o êxodo, já ru-ral, já nacional.

Nas suas linhas essenciais, o mecanismo do fenómeno facil-mente se apercebe e descreve. Amplamente maioritária em dimen-são geográfica e demográfica, uma «sociedade tradicional» subsisteno Continente português, imóvel nas suas estruturas: basilares equase privada de crescimento económico. As formas de vida, deeconomia e de civilização, que aí predominam, e a estacionaridaiie,que é nela ambiente geral, só a muito poucos facultam oportuni-dades e perspectivas de promoção material e humana, ou seja: desuperação e libertação, no próprio local, das severas condiçõese limitações herdadas do passado. Mas sobre a massa social destemodo bloqueada, projecta-se, num crescendo de intensidade, a«imagem» apetecível de outras oportunidades e perspectivas quea «sociedade moderna», interna ou externa, lhe oferece e que toda

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uma rede de contactos adensados e todo um fluxo de informaçãoincessantemente acrescida lhe transmite. Então a massa, outroraresignada, mas no íntimo sofredora e insatisfeita (e por isso, tra-dicionalmente «fatalista» 51), entra a mover-se: não podendo fugirlocalmente das condições e situações que lhe pesam e a limitam(agora mais do que antes, por mais viva percepção de contrastes),é dos próprios locais que foge.

Assim começa o verdadeiro êxodo, que já não arrasta apenasos que não tinham, nem teriam, lugar e função na economia e nasociedade tradicionais, mas também os que aí estavam fixadose ocupados ou aí se poderiam fixar e ocupar. E o movimento desen-rola-se, cresce, avoiuma-se, segundo um processo cumulativo. Osque partiram são como sondas de prospecção daqueles que ficaram.Pelas cartas que escrevem, pelas encomendas que enviam, pelodinheiro que remetem, pelas casas que mandam reparar ou com-prar, se confirma que a aventura de partir vale bem ser vivida.E também vêm deles chamadas, ajudas, promessas. Logo, por cadaum que já partiu, outros vão; e por cada um que parte, outroshão-de ir. Para além de certo ponto, dá-se a rutura de toda acoesão local. Quebram-se os laços sociais — e a corrente do êxodotorna-se, enfim, avalanche. Pois que, num contexto por demaisrarifieado, a vida social amortece e desagrega-se, a actividade eco-nómica sofre crescente paralisia e nada mais prende ninguém aindacom idade de esperança. Já não importam as oportunidades lo-cais; já nem trabalho nem terra é atractivo ou prisão; já só inte-ressa partir. E os últimos homens válidos, um dia, lá se marcham.Picam velhos, esperando a morte na rotina. E ficam mulheres ecrianças, esperando a sua vez de ir também.

Eis o facto, ou movimento, perante o qual estamos postos. Emque atitude, porém?

Há, primeiro, a atitude daqueles que só aí vislumbram deca-dência, desastre e catástrofe. Mas como não seria assim, quandoé todo o seu quadro social de referência, todo o esquema ideológicosegundo o qual a si mesmos se situam na sociedade e no mundoque é posto em causa? Esboroa-se o sólido chão onde, habituadose seguros, se moviam. Não sabem como adaptar-se ao novo e ins-tável terreno. E reagem pela ansiedade e pelo pânico, não podendoentão ver, na corrente do tempo e dos homens, senão descalabroe ameaças. Seria desumano e injusto esquecer ou desprezar, porcausa de alguns, a perturbação, e mesmo a agonia, dos demais.Não é de esquecimento ou desprezo, mas de amparo e estímulo,num enorme esforço de reconversão de si mesmos e das coisas

51 Vd. sobre este ponto as sugestões contidas no cap. X, «Esquisse deIa personnalité paysanne» do curso de Henri MENDRAS, Sociologie Rurale,1956-57, Institut d'Etudes Politiques de 1'Universitè de Paris, ed. policopiadade «Les Cours de Droit».

Í57

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ao seu redor, que a grande maioria necessita. Mas que isso nãoimplique alinhamento com a sua visão catastrófica dos factos. Poisque, por detrás das dificuldades e dos desastres imediatos e ine-gáveis, é todo um impulso humano ascensional que irrompe vigo-roso. E onde os homens, outrora conformados e passivos, queremagora crescer e, crescendo, quebrar as barreiras da fatalidade, hásempre motivo de encorajamento e de esperança.

Outra é, porém, a atitude daqueles para quem tudo está certo,correcto e conforme às previsões. Não menos ideológica do que aprimeira, esta segunda atitude logra, no entanto, reclamar-se erevestir-se de argumentações «científicas», ganhando assim auto-ridade maior. Eis porque nela nos fixaremos, tomando-a comoobjecto de reflexão terminal.

As razões que invoca, sem dificuldade se explanam. Se olhaao êxodo enquanto movimento interno de pessoas, vê nele umatransferência de forças de trabalho de um sector para outros —da agricultura para a indústria e os serviços. E recorre, então,ou ao exemplo, ou à lógica. Ao exemplo, apontando os países 'de-senvolvidos e lembrando que a população agrícola, depois de aíter sido fortemente maioritária, está hoje reduzida a uma pequenafracção do total. A lógica, arguindo que, se o desenvolvimento seopera por absorção do progresso técnico e este requer, sobre omesmo capital fundiário, menos braços, então a agricultura sópode desenvolver-se expelindo forças cte trabalho — as quais sendo,aliás, absorvidas por sectores de mais alta produtividade, irãoprestar mais eficaz contributo para o crescimento global. Mais:será a própria escassez de mão-de-obra nos campos, provocadapelo êxodo rural, que irá incentivar a tecnicização da agricultura,tornada mais vantajosa e apetecida, uma vez que os salários estãosubindo. E todo este movimento levará por fim a um satisfatórioequilíbrio, que se alcançará quando a agricultura houver atingidoum tal nível de eficiência produtiva, que não mais haverá estímuloque leve os homens a trocá-la por outros sectores de actividade.Mas o êxodo não é só rural: é nacional, quer dizer: é também emi-gração. Olhando-o nestoutro aspecto, novos argumentos surgempara o encarar com optimismo. E diz-se: que os emigrantes vão,mas ficam presos a lugares, tradições e famílias — e, portanto,na sua maior parte, voltarão; que, estando ausentes, reduzem odivisor do rendimento nacional, ao mesmo tempo que, pelas suasremessa?s monetárias, acrescem o dividendo; e que, voltando, tra-zem à economia nacional os proveitos de um «estágio» no exteriore de uma qualificação profissional melhorada.

É uma argumentação construída em alto nível de abstracçãoe de macro-análise. Tentemos, por conseguinte, retomar a questãonoutro plano, mais cerca da micro-análise. Não poderemos, aliás,fazê-lo mais do que em breve anotação.

Comecemos por factos. Estudada em França a evolução com-

458

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parativa, no século XIX e primeiras décadas do século XX, daBretanha e da Garonne, pôde verificar-se ter sido aquela regiãoa que mais acentuado progresso agrícola registou, apesar de super-povoada e meno.s rica em recursos naturais. Favorecida pela na-tureza e irradiando um êxodo rural maciço, a Garonne, não obs-tante, estacionou, dando mesmo, em certas zonas, claros sinais deregressão. De modo que foi a própria pressão demográfica bretã,não aliviada, que forçou a sociedade local, pondo-lhe um problemade sobrevivência, a adoptar inovações técnicas e a lutar contra asadversidades do meio físico52.

Eis um exemplo que se não enquadra nos esquemas da argu-mentação acima exposta e que obriga, a admitir que, ao nível regio-nal e local, outros mecanismos entram, ou podem entrar, em jogo.Indo ao fulcro da questão, o que não é lícito é identificar trans-ferência de população activa, da agricultura para outros sectores,com despovoamento de amplas zonas do território53. De facto,quando se pensa em transferência, tem de pensar-se em excedentestransferíveis de mão-de-obra, isto é: em quantitativos humanosque se podem subtrair aos trabalhos agrícolas, sem desencadearna agricultura um movimento involutivo. Ora, do ponto de vistaestritamente económico, o volume de tais excedentes depende, querdo nível técnico já atingido na agricultura, quer da capacidadeeconómica dos agricultores para responder, pela tecnicização dasexplorações agrícolas, à alta de salários que a transferência pro-voca. Mas, sendo tal capacidade consabidamente baixa (e inelásticaa curto prazo), ao menos no maior número, se a transferência édemasiado rápida ou vultosa, os encargos salariais acrescidos,em lugar de conduzirem à tecnicização, levam à desistência docultivo de certas1 terras ou à inexecução de certas fainas. Sobre-vêm, deste modo, uma quebra de produção e de rendimento, quedeteriora ainda mais a já precária situação económica do agricul-tor. E gera-se um círculo vicioso de regressão que, a partir decerto ponto, determinará abandono de terras e culturas, não jápelos assalariados apenas, mas também pelos próprios patrões.Como se notou no país vizinho, «o subdesenvolvimento de certasregiões, em larga medida resultante 'dle factores exógenos — isto é:da estrutura dualista [da economia nacional] —, converte-se emprocesso endógeno de expulsão e saída dos seus próprios recursose energias, num auto-empobrecimento acelerado de descapitalizaçãodemográfica, económica, laborai e humana, que as estanca irre-

52 o estudo é de J.-B. CHOMBART DE L A U W E e vem citado por HenriMENDRAS, no seu curso de Sociologie Rurale, dado em 1963-64 no Institutode Estudos Polít icos de Paris .

53 Vd. sobre este ponto: Ramon TAMAMES, « L O S movimientos m i g r a t ó r i o sde Ia poblac íón espaôola durante el período 1951-60», in Revista de EconomiaPolítica, Madr id , 1962.

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missivelmente na depressão e transforma esta num fenómeno pra-ticamente irreversível, se hão se altera e corrige substancialmenteo dualismo económico» 54.

Quanto mais tal processo avança, mais favoráveis se tornam ascondições para que se não detenha e, pelo 'contrário, se agrave.Pois que — perdida a fracção mais produtiva e empreendedora dapopulação, diminuídas as necessidades de certos investimentos (emcasas de habitação e serviços comuns, por exemplo), reduzido omercado local e -cerceadas as receitas dos corpos administrativos— é todo um ambiente económico paralisado e paralisante que pro-gressivamente se impõe. Mas também é paralisado e paralisanteo ambiente social. Aqui vale a pena citar, ainda que longamente,um especialista de sociologia dos meios rurais. «A saciedadeilocal], em vez de aproveitar a oportunidade que, para realizaros progressos técnicos e económicos esmerados; pelo economista, apartida de um certo número dos seus lhe oferece, fecha-se sobresi mesma. Pensa que, se os melhores e os mais jovens se vão, é por-que a esperança reside algures, mas não já nela própria. E cada vezmais, dado que são os velhos que ficam, se acentua nela a tendênciapara acreditar que o passado era melhor do que o pode ser o fu-turo, Toios estes mecanismos impedem-na de se adaptar e tirarpartido da vantagem que lhe foi proporcionada; impelem-na, aocontrário, para a esclerose, para o apego às suas formas maistradicionais, para manter ruínas em pé. Recusa-se, numa palavra,à transformação. Considera que o futuro só mal lhe pode trazere que a sobrevivência só pode ser garantida por uma fidelidadeao passado, quer nos diversos aspectos da vida corrente, quer noplano ideológico, dos sistemas <die valores, quer ainda no própriosistema de produção» ™.

Quanto à emigração, três argumentos se invocam, como vimos,para a encarar com optimismo. O primeiro é que os emigrantesvoltarão. Supondo que voltem de facto, não pode esperar-se queregressem em massa às regiões donde partiram; logo, para estas,o facto do despovoamento mantêm-se. Na verdade, calcula-se que,por exemplo, na Grécia, país com problemas e características! nesteaspecto muito semelhantes aos de Portugal, «só 10 a 15 % dosagricultores migrantes retornam às regiões rurais» 56. Por outrolado, a hipótese do retorno é discutível, dado que o regresso dosemigrantes dependerá da prosperidade comparativa de Portugal

54 Carmelo VINAS, «La estructura dualística de Espana y sus posibili-dades de reforma», in La Economia y él Homhre, Centro de Estudos Socialesde Valle de los Caídos, Madrid, 1963.

55 Henri MENDRAS, Curso citado, de 1963-64, p. 40.se Adam A. PAPELASIS, «Les problèmes de Ia main-d'ceuvre de Ia Grèce

dans le cadre de Marche Commun», no vol. colectivo: Problèmes du Dévelop-pemení Economique dans les Pays Méditerranées, publicado por Jean CUI-SKNIER, Paris, Mouton, 1963, p. 322.

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e dos países centro-europeus; e tanto quanto se prevê, as necessi-dades destes países em mão-de-obra estrangeira continuarão a au-mentar. A medida em que o retorno ocorrerá é, pois, uma incóg-nita, havendo, porém, fortes razões para supor que uma grandeparte dos portugueses emigrados na Europa acabará por se fixarfora do paia. O segundo argumento tem dois gumes», dos quaiso mais frequentemente utilizado é o das remessas monetárias. Sim-plesmente, tais remessas diminuirão à medida que os emigrantes,resolvidos a não voltar, se assimilem a outras comunidades e queas suas famílias se lhes juntem. Ora, em Espanha, oremessas é já um facto apurado 57. Finalmente, o terceiro argu-mento é o que refere as vantagens de um «estágio de aperfeiçoa-mento profissional» no estrangeiro. Mas aqui há que ter presenteque é nos trabalhos qualitativamente inferiores que os operáriosportugueses se vão, geralmente, ocupar noutros países — trabalhosonde não adquirem, por conseguinte, formação profissional ele-vada. Melhores postos, só os podem tomar no estrangeiro tra-balhadores que, já em Portugal, eram dos mais qualificados, dosque estavam acima da média, mas que fora do país podem encon-trar condições de trabalho e de remuneração mais favoráveis. Naverdade, começa-se a assistir, sem que se possa medi-la, a umaemigração de mão-de-obra, não já de proveniência directamenterural, mas d,e origem urbana, industrial e terciária — mão-de-obracujo «estágio» de apeifeieoamento se faz no sector moderno dasociedade portuguesa e que só depois emigra, levando consigo van-tagens colhidas no país58.

Já foi provado para a Grécia que o movimento migratório,conjugado com a imobilidade das estruturas agrárias fundamentaise com a expansão da procura interna (provocada pelo crescimentoda indústria e dos serviços), pode vir a ocasionar, e quase certa-mente ocasionará, a médio prazo», falta quantitativa, e não só qua-litativa, de mão-de-obra industrial59. Nada está estudado e pre-visto, neste aspecto, para o caso português. Mas o exemplo alheio,se aproveitado como séria advertência, obriga a não pôr de lado,sem prévia análise e previsão, a possibilidade de uma situaçãoanáloga, que põe em causa as perspectivas futuras do própriosector moderno da sociedade e da economia nacionais.

Em suma: os factos não autorizam decerto uma atitude der-rotista, catastrófica; mas também não consentem um impávido

57 Revista Internacional de Sociologia, n.s 83-84, Madrid, Jul.-Dez.,1963, p. 633.

58 Sobre o conjunto de problemas postos pela emigração, tanto aospaíses emissores como aos países receptores, veja-se o oportuníssimo artigode Charles CAPORALE, «Coúts et profits des migrations internationales», Rev.de VAction Populaire, n.° 184, p. 37 e segs.

59 Vd. o referido artigo de Adam A. PAPELASIS, p. 317, citando os t ra-balhos do Centro de Investigação Económica de Atenas e do Prof. PAPANDREDU.

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e simplista optimismo. No contexto dual da sociedade portuguesa,o que, há pouco ainda, era estagnação e bloqueamento tende a tor-nar-se regressão e degenerescência; e também poderá vir a serrefreado o que por ora é movimento para o progresso. O êxodo —que de rural se faz nacional — é sintoma e prenúncio de situaçõesque podem vir a assumir, para toda a comunidade, aspectos muitodifíceis.

Deve encarar-se o futuro resolutamente; mas não sem inquie-tações— sem graves inquietações. Por demasiado tempo se tempensado o desenvolvimento português em puros termos de cres-cimento. Este é apenas «o aumento sustentado duran:e um oumais períodos longos (...) de um indicador de dimensão, o qualserá, para a nação, o produto global bruto ou líquido em termosreais» 60. Aquele é «a combinação das transformações mentais esociais de uma população, que a tornam apta a fazer crescercumulativa e duràvelmente, o seu produto real global» 6 \ Assim,sob a capa de um crescimento global estatisticamente provado,não pôde ver-se que só muito parcialmente, e muito localizada-mente, a sociedade portuguesa se tem desenvolvido. E mal secomeça a aperceber que um tão restrito desenvolvimento até as pos-sibilidades ou perspectivas futuras do crescimento actualmente emcurso acaba por comprometer.

Baixar do globalismo nivelador às realidades regionais elocais; ampliar o âmbito das análises, para além dos limites es-treitos de um ponto de vista parcial; fazer convergir, no estudodos factos e na determinação dos problemas, diferentes ópticas deinvestigação; aceitar a «revelação» das situações e condições peri-gosas ou incómodas; procurar mesmo, decididamente, essa reve-lação e querer que ela se torne debate esclarecedor e candente —eis alguns dos traços fundamentais da atitude que, fora de quais-quer considerações de optimismo ou derrotismo, parece indispen-sável assumir. Talvez dela se diga que não é menos ideológica doque as outras. Mas não haverá mal em que o seja, se é de umavisão clara, corajosa e franca dos factos que se quer partir, e seé a uma dignificação progressiva da vida humana, em cada ho-mem e em todo ele, que se quer chegar.

60 François PERROUX, «A ideia de progresso perante a Ciência Econó-mica do nosso tempo», tradução, in Análise 8ocial, n.s 2, Abril de 1963, p. 174.

si François PERROUX, «La notion de déveioppement», in UEconomie duXXe Siècle, Paris, P. U. F., 1961, p. 154.

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