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A PROMESSA

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XXI I I – A Mudança

Chegavam estoirados ou partidos. Dias e semanas em cima de machos e bestas.

Avessos a quezílias e a políticas. Tendo Deus, a natureza, a terra e a sua gente

como razão de vida.

As noites eram vividas entre o dormir desperto, de olho mal cerrado e o indicador

no gatilho ou o punhal bem agarrado. As refeições mal-alinhavadas em horários

mal-cosidos. Os calos dos pés podiam doer e os ossos estalar, mas nenhum animal

podia sentir dor ou ter fome ou sede, fosse cão ou de carga. Homens pouco

interessavam. A vida é um nada e tendo saúde, com uma côdea e um pontapé todos

se criam e criavam.

Nos anos vinte do Século XIX, a Praça de Loriga, que começava ao lado do forno e

da prisão, onde depois foi a loja e casa do bom e saudoso Senhor Orestes, estendia-

se até às portas do Vinhô e nela vários mercadores, ‘cartagenos’ da terra ou

‘barroqueiros’ de fora, descansavam, vendiam, contratavam, combinavam

‘andanças’ futuras e faziam contas à vida. Os mais estafados, descalçavam-se e

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punham os pés em ferida nas levadas, agora compostas, que rodeiam a rua que

desce.

Quando as caravanas chegavam, os cães iam na frente, adiantados muitos metros,

mais sôfregos de água ou ração e a miudagem divertia-se a brincar, acarinhar ou a

assustar os cães-da-Serra. Ainda hoje, em Loriga, quando um rapaz pede aos pais

para ir ao café, alguém se lembra de dizer que ele vai “correr os cães”, como sinal

de vadiagem.

A 27 de Maio de 1823, D. Miguel fez uma birra valente, apoiado na sombra pela

rainha Carlota Joaquina, no que ficou para a história com o nome de Vila-

Francada. D. João inseguro como sempre, naquilo que deveria ser um contra-

golpe, acabou por abolir a Constituição de 1822, entregar o comando do exército a

D. Miguel e nomear um novo executivo, por isso a vitória de D. João foi de Pirro.

Abolida a Constituição e dada a necessidade de uma Lei fundamental, em 18 de

Junho do mesmo ano, criou-se uma Junta para criar uma nova Constituição,

presidida pelo Marquês de Palmela, mas apesar de a junta ter muitos elementos

conservadores, não singrou, por culpa de manobras de bastidores de absolutistas.

O país, mais uma vez, vivia mais de comentários aos comentários do que de obras e

feitos. O que se fazia, resumia-se a destruir a obras dos que queriam fazer. Por

alguma razão, a última palavra do mais famosa obra de Camões é ‘inveja’.

Em 19 de Junho de 1823, criou-se uma outra Junta para examinar todos os

decretos das Cortes Vintintas e se os referidos decretos estavam de acordo com o

Direito. Os resultados apareceram perto do Natal e só se safou o decreto que criou

o Banco de Lisboa. Vá se lá saber porquê…

Esse ano foi bom para o milho e ele cresceu imenso em Loriga, acompanhado de

muros, ‘cômbaros’, que hoje são fundamentais na imagem da vila.

Ao contrário de Alvoco da Serra, mais agrícola, terra por excelência de pastores

mais dada a cabradas, ovelhas e bois, Loriga era boa nos acabamentos. Tinha as

melhores cerzideiras de Portugal, sem exagero. Mas as courelas ou eram

demasiado pequenas ou as que valiam a pena, eram de meia dúzia ou de menos.

Todos os que saíram de Loriga, para o Porto, Vila do Conde, o Brasil, o Alentejo,

mandavam dinheiro e procuravam levar para lá os que mais amavam. Adoravam

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na mesma Loriga, mas conheciam as limitações geográficas e sociais do vale.

Alvoco da Serra sempre foi mais democrática, mas Loriga é livre pela sua natureza

revolucionária e contra-corrente. Há algo tão serrano nos serranos que nem os

serranos entendem muitas vezes o que de forte e valente lhes corre no sangue e na

água das suas ribeiras e levadas.

Em 16 de Outubro de 1823, D. Miguel tentou outro golpe de Estado, que o exército

ajudou, mas que a polícia frustrou.

As coisas foram-se passando e o rei foi cedendo aqui e ali, para se manter no poder

e quase todos terem a sensação de que se tratava de um fantoche num palco em

que não dominava os atilhos e as muitas cenas.

A 4 de Janeiro de 1824, o rei colocou um ponto final da vigência da Carta

Constitucional de 1822 e a ordem jurídica do Antigo Regime voltou em força, com

todas as personagens do antigamente e respectivas mordomias. O rei tentou

entreter as coisas e atrapalhar o melhor do pouco que podia, dizendo a tudo,

‘Talvez!’. Foi preciso a Abrilada para que, assustado e mal amparado, D. João

decidisse convocar para Junho a reunião dos três estados do reino.

Em Fevereiro, apesar de tantas cedências, o Marquês de Loulé, amigo e confidente

de D. João VI, foi assassinado em Salvaterra. O Conde de Subserra e o Duque de

Palmela foram perseguidos. Era necessário matá-los, mas ambos escaparam.

Na Abrilada, os opositores de D. João VI e em conluio com D. Miguel, inventaram

a história de que o rei e a família real iam ser mortos pela Maçonaria, mas

prenderam os conselheiros do monarca e sequestraram-no no Palácio da

Bemposta. Nessa altura, o embaixador de Inglaterra, neto de uma portuguesa e

falante de português, apercebeu-se da mentira, reuniu gente e conseguiu um

heróico resgaste do rei, digno do melhor filme de aventuras. O rei ficou refugiado

num navio britânico que se encontrava no Tejo e dali, os aliados do rei

conseguiram de forma incrível e corajosa tomar o país. O rei acabaria por

decretar o exílio de D. Miguel em Viena de Áustria e intimar a rainha Carlota

Joaquina a sair de Portugal. D. Miguel partiu em Maio, mais humilhado do que o

pior dos bandidos. Por sinal, muitos dos que cuspiram na sua cara, eram os que

antes lhe haviam jurado lealdade até à morte, mas também os gatos têm sete vidas

e até São Pedro negou conhecer Cristo.

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Foram dias muito complicados para os mercadores, pois eles, nada queriam com a

política e só queriam chegar sãos e salvos a casa. Pese embora tudo isso, o Major, o

Zé da Cabeça e Sebastião ajudaram várias vezes as tropas do rei contra algumas

escaramuças miguelistas. Loriga continuava conservadora e miguelista.

O medo ou a insustentável insegurança do rei, fizeram com que apesar de tudo,

tendesse para as pretensões dos que antes haviam sonhado com a sua morte. Em

Junho, o rei convocou as cortes à maneira antiga, com os três estados, nobreza,

clero e povo. Havia tanta divisão, mesmo dentro destes estados, que as cortes não

se reuniram nem em 1824, nem em 1825 e, muito menos, em 1826, quando o rei

morreu. O rei morreu isolado. Odiado pelos inimigos, abandonado pelos amigos

que se sentiram por este, traídos. Numa palavra, era um homem fraco e cheio de

medos, fruto de uma educação cheia de cerimónias e de cuidados anacrónicos,

onde os santos e os diabos ditavam as missas e os deveres diários, onde só a música

aliviava da realidade e fazia sonhar com a irrealidade que se pretendia viver.

Em 26 de Outubro de 1824, houve uma nova tentativa para que o rei abdicasse e a

humilhação da rainha cessasse com uma preferível regência do reino por esta. A

Fábrica da Vista Alegre, em Ílhavo, surgiu nesse mês pelas mãos de José Ferreira

Pinto Basto que inicialmente se dedicou apenas ao vidro. Almeida Garrett

publicou a obra “Camões”.

A pequena Aurora sempre engraçou com o Zé da Cabeça, mas de nada servia. O

Zé era muito namoradeiro. Estava-lhe no sangue paterno e apesar de se dizer que

homem que passasse os vinte cinco anos já não casava, o rapaz pouco ligava.

Depois com palavras, risos e sorrisos, Aurora lá conseguiu alguma atenção.

Quando o Zé tentou apartá-la pela pequena estatura, a moça disse-lhe que as

mulheres querem-se como as sardinhas. Toda a gente a avisou que era perigoso

envolver-se com aquele homem de olhos azuis e tez escura, que vestia de preto.

Que pouco ou nada se sabia dele. Mas Aurora não ligava. Não eram as más-línguas

que a feriam, mas o desprezo dele, por ela.

Foi só por provocação, implicação e apoucamento é que o Zé começou a reparar na

moça que quase tinha dez anos a menos do que ele. Sentia-se velho para ela e um

criminoso se se tentasse.

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Não era por mal, mas ele não lhe achava graça. E por isso, Aurora foi provocando

até ser vista e desejada. Foi crescendo também. E de tanto ser provocado e

reparado, o Zé começou a só ter olhos para a Aurora “Deida”.

Foi com Aurora que o Zé da Cabeça casou num Domingo de chuva grossa, na

igreja de Santa Maria Maior de Loriga, quando o Adro e a igreja eram de outro

formato e o reitor já era outro, Sebastião Mendes de Brito, nascido em Loriga e

depois sepultado sob os degraus que agora levam ao altar.

Os negócios portugueses no Brasil foram piorando a olhos-vistos e só o

reconhecimento necessário da independência do Brasil, em 15 de Novembro de

1825, é que permitiu que muitos negócios lusos não fossem nacionalizados e os seus

donos mortos ou deportados. Mesmo assim, os portugueses imigravam às centenas

para o Brasil e por Portugal, as mentes bem-pensantes sonhavam por um rei igual

ao Imperador D. Pedro, esquecendo que, dos filhos de D. João VI, este tinha sido o

primeiro a trair o pai. Nem tudo foi mal, pois os que viveram afastados da política,

singraram. A medicina em Portugal evoluiu maravilhosamente, com médicos que

eram muito superiores aos de toda a Europa e que eram requisitados por todas as

cabeças reinantes. A cirurgia teve uma evolução espectacular, dando os

professores de Lisboa, Coimbra e Porto, aulas aos médicos de Oxford, Amsterdão,

Paris, Roma e Moscovo.

Francisca Luiz de Monteiro já vivia na Casa da Nogueira, quando finalmente foi

mãe e um filho vingou, em 13 de Abril de 1826. D. Francisca já tinha tido vários

desmanchos. Os de Loriga atribuíam o facto a algum sangue judeu da mãe; os de

Alvoco da Serra, ao facto de em Loriga todos serem filhos de primos. Ao certo,

ninguém sabia, mas várias mulheres passaram pelo mesmo.

No caso de D. Francisca não era pela higiene. Foram muitas as rezas. Olhos em

louça e ferraduras, pendurados ou pregadas nas portas, para darem sorte e

espantarem o mau-olhado. Mistelas e preparados para fortalecer o sangue. Sal

espalhado à porta. Laurinda preparou muito de tudo. E na noite em que foi mãe, a

cabeça de um galo foi entalada no cimo da porta do quarto. Sebastião estava no

Porto, quando o primeiro filho nasceu. D. Francisca pariu rodeada de mulheres,

com Laurinda a chefiar. Parecia que ia tudo correr bem, até aflita, Laurinda viu-

se obrigada a chamar o Dr. Rodrigo. João Augusto nasceu sem chorar e muito lhe

bateram até que chorou. Uma moeda de prata foi deitada na bacia do primeiro

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banho. A coisa pareceu muito estranha e o miúdo foi baptizado a correr, pois não

fosse morrer rapidamente. Depois do baptismo, houve a ordem da mãe, para que

pusessem na boca da criança umas pedras de sal e assim foi feito. Era um bebé

demasiado sossegado e aquilo fazia suspeitar de que algo de errado fosse. Depois

não quis de mamar e o pânico instalou-se na mãe. Cuidava que duraria pouco se

mal se alimentasse.

O Senhor padre Manuel Rocha chegou a rezar rosários e a celebrar missa pela

saúde do menino, mas foi o mel da rainha de uma colmeia trazido pelo Senhor

Manuel Luís, entregue nas mãos de Laurinda, lá na Cruzinha d’Aventosa, que fez

com que o apetite voltasse. No mesmo dia, em que Sebastião se assomou na

Malhada do Chão da Cetra e um neto do Serrão, que guardava um rebanho dos

Brito, lhe disse que era pai.

Transfigurado e mais parvo do que miúdos em noite de foguetada na festa da

Nossa Senhora da Guia, Sebastião cavalgou rapidamente para casa, esquecendo a

brigada, as bestas de carga e toda a lã que trazia.

Nunca cuidou que fosse assim que ficasse a saber que era pai. Queria uma menina,

mas estava muito feliz pelo rapaz, ao ponto de mandar matar um porco e comê-lo

com os vizinhos. O porco era animal mal querido e até impuro para D. Francisca.

Acresceu o facto de D. Francisca não querer sair da cama durante trinta dias, não

permitindo que Sebastião se aproximasse ou na cama repousasse, para que

Sebastião deixa-se a casa e voltasse zangado e sozinho para Loriga. Era coisa que

não entendia e que chocava com a sua maneira de ser.