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A PROMESSA

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A PROMESSA

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IX – Nem tramoucos, nem atramoucados

Entre os dias 15 e 28 de Agosto de 1810, a alma de Portugal palpitou

pelo Cerco à Praça-Forte de Almeida, segura pelo Coronel Cox e atacada

pelo VI Corpo de Exército, chefiado pelo Marechal Ney. O povo português

quebrava o Bloqueio Continental a Inglaterra, decretado por Napoleão,

em todas as praias para cima da Ericeira, de noite ou de dia. De

Matosinhos até à fronteira com Espanha, mandavam os portugueses e

nem os ingleses se atreviam a pedir algo que não fosse vontade da

nossa gente. Tal gozo e humilhação dos franceses, irritou sobremaneira

Napoleão. Tinham falhado duas invasões de exércitos disciplinados e

admiráveis face a um povo que não se rendia, nem nas esquinas. Sejam

grandes a fome e a guerra, os portugueses trazem a liberdade no

sangue e, os piores momentos da nossa história, estão ligados ao

abandono dessa liberdade.

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Almeida significava muito mais do que a muralha erguida nas Guerras

da Restauração. Era importante, para que Massena avançasse até Lisboa,

não deixar nenhum foco de resistência militar para trás e que

posteriormente cortasse todo o tipo de comunicações, aniquilando os

franceses pelo isolamento.

Para a história, ficaram 4700 guerreiros frente a 14000 atacantes que

apenas ganharam uma batalha por erro de distribuição de explosivos e

a sua segurança. Mais uma vez, não houve honra ou valentia na vitória

dos franceses.

Se o Mundo não era a melhor das coisas para os portugueses, em 1810,

por Espanha sagrava o mesmo ou pior. Mas os espanhóis faziam tudo com

mais barulho e sangue… Nos finais de Setembro, os espanhóis reuniram

as Cortes pela primeira vez em Cádiz para estabelecerem uma

constituição que só seria aprovada dois anos depois. Mas até mesmo

essa constituição durou apenas dois anos e por isso seria apelidada

de ‘La Pepa’, a cova…

Eram tempos do catano. Em que ter uma candeia ou ter o que calçar,

eram sinais exteriores de riqueza. O Natal de 1810, em Loriga e noutras

terras da Serra da Estrela foi muito diferente do resto de Portugal.

Pela sua importância estratégica, desde o Viriato, passando pelo ‘Mil

Diabos de Loriga’, Loriga é excelente local de protecção e de refúgio

para quem fuja de qualquer mal maior. No coração da Serra da Estrela,

Loriga está protegida pelas ribeiras do Cortiçor, da Nave e de São

Bento e pelas Portelas do Cabrum e do Aarão. Por baixo, a vila de

Loriga é protegida pela boa gente de Casal do Rei, que sempre protegeu

Loriga, até com a própria vida, quando os franceses saquearam Arganil

e alguns decidiram subir o Alva. E o mesmo aconteceu no tempo em que

os Poetas e os Brandões tomaram sua a nossa Serra. O Natal em Loriga é

sempre especial, porque é costume beirão reunir à volta da fogueira,

depois da celebração da Missa do Galo. Na Beira, dão-lhe vários nomes,

mas em Loriga sempre se chamou ‘a fogueira’. Em 1810, foram muitas as

famílias dos distritos da Guarda, de Viseu e de Coimbra que se

esconderam nas Serras da Estrela e do Açor, durante as invasões

francesas e algumas por lá ganharam raízes, como por exemplo, um ramo

aparentado dos Paes do Amaral de Mangualde, os Mendes, dos quais a

figura mais notável seria, um século depois, o industrial Augusto Luís

Mendes, o Senhor da Redondinha. Para além de várias famílias, umas

mais endinheiradas do que outras, apareceram indivíduos solitários,

uns mais honestos do que outros e que ali constituíram família com

moças da terra ou que, após o reboliço das invasões, partiram sem

deixar rasto. Já o mesmo tinha acontecido no tempo do ‘Mil Diabos de

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Loriga’. Um desses homens foi o “Bispo” que rapidamente foi ‘adoptado’

por todos, como mais um loriguense, pela sua honestidade, solidariedade

e estima a todos. Pouco tempo depois, levou para a Serra, a esposa,

Matilde.

Não há certezas na vida. A única certeza é a incerteza e, foi com os

habituais receios dessa, que o “Bispo” foi o primeiro a chegar a Madrid,

quando o Senhor Manuel Luís decidiu ir buscar a afilhada a Madrid.

O “Bispo” esteve uma dezena de anos com o Senhor Manuel Luís. Nasceu

em Seia e logo em criança começou a acompanhar D. Mendonça Arrais. Era

criado para tudo e muitas vezes, tanto era o carinho do Senhor Bispo

da Guarda e de Pinhel e o facto de o “Bispo” ser igualzinho ao próprio

pai, que as más-línguas, desconhecendo o progenitor e as semelhanças,

por vezes afirmavam ser a criança filho de D. Mendonça Arrais. Mas,

todos sabiam a força da palavra dada do Bispo e a sua infinita

frontalidade e honestidade. Foi casto desde que abraçou a Igreja e se

tivesse tido filhos ou envolvido com alguma mulher, seria o primeiro a

dizê-lo a todos e a abandonar o ofício.

Mas, como eu escrevia, de criança a homem, o tempo passou num instante,

e entre tantas missas celebradas e orações rezadas, a fé acabou por

entrar e o criado de D. Mendonça Arrais foi ordenado padre. E dele se

falou sempre que seria sucessor do bispo da Guarda e de Pinhel. As

coisas encaminhavam-se muito bem para isso, até que numa ida a

Trancoso, o jovem padre sentiu uma enorme atração por uma viúva pouco

mais velha que ele. Penitenciou-se e rezou dias a fio, mas a rapariga

não lhe saiu do sentido e ele muitas vezes a procurou ver, sem lhe

confessar ou deixar escapar algum sentimento. Um dia, depois de tanto

sofrimento interior, confessou o que lhe ia na alma a D. Mendonça

Arrais que, quase segundo pai, lhe pediu para tentar ter certezas, mas

que o apoiaria qualquer que fosse a sua vontade. Resumindo: o rapaz

ficou com a jovem viúva, mas o clero, com excepção de D. Mendonça

Arrais, não lhe perdoou e o mesmo aconteceu à moça que até teve de

abandonar Trancoso, devido aos insultos e ofensas de que era alvo. A

Igreja perdoa mais depressa as ovelhas que na fraqueza criam cabritos

fora do rebanho do que as ovelhas que deixam o rebanho para se

misturarem no Mundo. O casal viveu durante essa dezena de anos em

Loriga, refugiados de tudo pelo simples facto de serem sinceros e

francos com todos. Mas, continuemos.

Um quarto de hora mais tarde, entraram em Madrid, o Manel da “Dos

Anjos” e o António “do Adro”, mais caídos que o Senhor em dias de Semana

Santa. Barbas de oito dias e bolhas nos pés.

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Meia hora depois, entrou então em Madrid, o resto da comitiva. Não foi

fácil dar de caras com o colégio onde crescera a menina Francisca, mas

lá chegaram e foram bem recebidos. A directora do colégio, uma freira

francesa, manteve-se renitente em mostrar a menina e a entregá-la ao

Senhor Manuel Luís, até que viu nos olhos da menina e do padrinho uma

ligação tão forte como a que une o musgo ao granito, em dias de chuva

grossa com ribeiras a espirrar courelas.

O ar abafado e a terra cor de tijolo das ruas madrilenas não ajudaram

à boa disposição e ao ânimo dos serranos. A comitiva ainda esteve dois

dias alojada numa pensão, mas depressa quis voltar para não serem

descobertos por franceses ou apanhados e vendidos a estes, pelos

espanhóis. Todos regressaram pelo mesmo caminho, que foram marcando

com fio de lá atado em pinheiros e outras árvores. Procurando não se

afastarem muito dos cursos de água e espaçando-se por grupos de três

homens que se contactavam por um assobio curto, imitando o melro, de

meia em meia hora. Se algum perigo surgisse, dois dos três homens

procurariam proteger o terceiro que fugindo imitaria na fuga, o uivo

de um lobo.

Os alforges normalmente tinham uma sertã ou frigideira, duas ou três

chouriças de carne, chá de cidreira, verbasco para deitar em qualquer

ribeiro e colher trutas ou outro peixe, biscoitos e flocos de milho ou

aveia que eram cozinhados com água do chá num caldeiro de cobre,

pertença de cada grupo de homens, sendo que servia de primeira

refeição do dia. Em terras mais conhecidas e sossegadas, os mercadores

conseguiam ovos e faziam uma bola de chouriça com um pouco de salsa

ou de alecrim que colhiam do chão. Procuravam o mínimo contacto

possível, pois não eram bem vistos desde o tempo da ‘Peste Negra’. É mais

fácil simpatizar com um salteador e um bandoleiro, que roubam a quem

passa e gastam os tostões na terra, do que aturar um mercador que vai

de viagem e ainda leva algum dinheiro pelas mantas e os tecidos que

vendeu às mulheres da vila. Entre os mercadores muito sangue se

misturava. Havia sangue directo de lusitanos, fenícios, do norte de

África, judeu, árabe, galego, espanhol e até francês. Foram ficando

palavras como ‘planquim’ e ‘São Ginez’, entre outras. Gente que largou

um pouco a sua cultura e raízes e que começaram a ter uma cultura

própria e um pouco errante, mas não errada. Eram vistos como

ambiciosos e invejados por terem algum dinheiro, cavalos, mulas e

viverem calçados. Se alguns mercadores judeus existiam em Loriga, eles

depressa disfarçaram os costumes e se misturaram com a cultura

dominante e católica. No comer, depois da pobre desgraçada da Branca

Pereira, moradora do Fundão, filha do mercador de Portalegre Pereira

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Bravo, viúva e mãe de onze, tão católica como Santa Ana, ter sido

condenada pela Inquisição, em meados do século XVIII e enviada para

Angola, por três anos e lá ter morrido de saudade, os mercadores de

Loriga e de Alvoco da Serra passaram a carregar com eles chouriças

que eram feitas na Cabeça e bem apregoadas e vendidas por toda a

Serra e que faziam do mais fiel dos judeus, um católico beato. O

presunto da Cabeça também era famoso, mas esse nunca o levaram para

lado nenhum. Depois, em Loriga e em Alvoco da Serra, começaram a fazer

as chouriças ao gosto das suas gentes, sendo que na chouriça de Loriga

abunda mais a carne do que a gordura.

Os homens cuidaram voltar depressa. As roupas finas da menina

atraíam a atenção e quanto mais depressa sentissem o barulho das

águas corridas da Serra, melhor. Não havia medo, mas a insegurança não

agradava a ninguém. Ninguém ainda tinha esquecido os dias negros

quando, um ano antes, uma comitiva de mercadores de Loriga tinha sido

surpreendida por uma alcateia esfomeada, depois dos colossais Penedos

de Góis. Os homens e os animais foram violentamente atacados e o

sangue foi marcando o xisto até que conseguiram abrigo na aldeia de

Aigra Velha e lá, com a ajuda dos habitantes, sarar as feridas e

enterrar os que não resistiram aos lobos. Parecia que o Diabo tinha

andado à solta, mesmo estando longe o dia de São Bartolomeu.

A menina Francisca, de pele quase tão branca como o algodão que

vestia, era uma princesa nos modos e no trajar. Cresceu sem mãe e

afastada do pai, um mercador que gastou o que podia, tentando dar à

filha o Mundo que nunca teve. Assim sendo, depressa foi colocada num

rico e católico colégio de Madrid, esperando o pai assegurar um futuro

diferente, mas como certezas ninguém as tem, o mesmo Mundo mudou e a

menina voltou a Alvoco da Serra. As diferenças culturais e económicas

com o resto da população eram enormes e só a inteligência e a

humildade, transformaram rapidamente a jocosamente apelidada de

“Menina do Mimo” em “Cepa Rija”. Depressa deixou as finas meias e

passou, ela mesmo, a tricotar as suas meias de lã. Na missa e nas ruas

era um burburinho sobre a menina. Que seria assim ou assado, mas que

seria uma menina mimada que não daria em nada. A conversa era tanta

sobre a menina Francisca que rapidamente até o padre teve que mandar

calar a conversa na missa de Sábado à noite. Em Loriga, dizia-se o

mesmo e Sebastião, com apenas dez anos e uma curiosidade típica da

idade, sonhava conhecer a menina de quem tanto falavam.

Sobre sebastião, diziam que ia partir cedo e que não tinha corpo para

ser alguém, mesmo sendo alto. Diziam que se ficasse, só se fosse

guardar gado para a Serra ou que só serviria para fazer recados.

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Era um miúdo endiabrado, que só guardava sossego quando ajudava na

celebração da missa, mas nem o padre o haveria de querer para

sacristão. Assustava com tanta fé, pois, sempre que passava no adro,

entrava na igreja e não saía sem umas tantas Avé-Marias e outros

tantos Padre-Nossos. Tinha apenas dez anos na IIIª Invasão e acordava

todos os dias cheio de vontade de tudo. Andava descalço todo o ano,

como a maioria, mas ao contrário de todos, não estimava o corpo. Pisava,

de propósito, vides, silvas e urtigas. No Inverno, tomava banho ‘de

inqueiro’, nu, nos poços das ribeiras. E no Verão, andava bem

agasalhado.

Prestava-se a tudo, mesmo que não lhe dessem meio-tostão ou uma côdea

de pão. Não levava nada a mal e mesmo quando se zangava, esquecia

rapidamente tudo. Irritava a sua boa disposição. Os outros miúdos da

mesma idade - os que não haviam partido já -, falavam em ir para o

Brasil e das maravilhas que os esperavam, apesar dos bichos, monstros

e dragões que lá moravam e do tio ou do primo rico de Manaus.

Sebastião queria ser mercador, mas nenhum mercador o queria para moço

de mulas. Parecia demasiado travesso e ganhara a alcunha de

“atramoucado”. As mães dos outros miúdos não o queriam como companhia

dos seus, mas gostavam de ter tido filhos assim, pois tudo o que

juntava dava à mãe. O padrasto pouco lhe ligara e a mãe era agora mãe

de outro bebé, que ele amava com devoção. Ia muitas vezes esperar a

gente que vinha de Alvoco da Serra, poucos metros acima da agora

chamada fonte dos azeiteiros. Queria saber tudo sobre a lã e todos os

pormenores dessa vida. Muitas vezes, fugia de manhã e voltava bem de

noite. Nesses dias, esforçava-se por ir às praças de São Romão e até

chegou a ir a Gouveia. Queria saber tudo sobre a lã, as mantas, os

cobertores, o surrobeco e o burel. Queria saber fazer teares de pau, mas

não queria ser tecelão. Urdir, sem ser urdideiro. Azeitar, sem ser

azeiteiro. Pisoar, sem ser pisoeiro. Queria, apenas, saber tudo. Como

queria ser mercador, tentou saber tudo sobre eles.

Enquanto os outros miúdos iam para a praça rir e brincar, Sebastião ir

ver, ao pormenor, tudo o que lá se passava. A forma como era colocada a

sela nos machos e os alforges nos bichos e nas mulas. O tipo de

alimentação dos mercadores e das bestas. Os modos como falavam, os

patrões e os empregados. Que papéis trocavam e os preços nas lãs, nas

varas, em fardos ou já trabalhadas. Queria saber tudo e por isso, subiu

várias vezes à Serra para saber até da boca dos pastores, que ovelhas

seriam as melhores e como as distinguir pelo cheiro e pelo leite.

Obrigara o próprio padre a ensinar-lhe a escrever, fazer contas e

latim, com a desculpa de querer perceber o que se dizia na celebração

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das missas. O padre era renitente e só com a sua substituição pelo

padre Costa, em 1813, é que este ensinou tudo o que sabia a Sebastião.

Essa lição foi interrompida por algum tempo, porque o padre Costa

integrou uma das milícias populares para expulsar os franceses de

Portugal e que depois ficou conhecido pelo ‘Liberal’, numa terra de

Miguelistas, causando-lhe algumas discussões violentas e muitas

missas abandonadas barulhentamente a meio.

Foram fundamentalmente três os padres que marcaram o século XIX na

Igreja de Santa Maria Maior de Loriga. Ao padre Costa que era valente,

ausente e mais de obras do que de pregações, seguiu-se o padre

Sebastião Brito, filho da terra, muito amado e que morreu na noite de

Natal. Com amor e a pedido, a gente de Loriga enterrou-o na igreja, onde

agora estão os degraus a seguir ao altar. Depois dos anos sessenta, do

século XIX, o padre Matias, natural da Vide, marcaria a população pela

enorme paciência, coragem e determinação nas histórias da Nossa

Senhora da Guia e na reconstrução da igreja de Santa Maria Maior de

Loriga, após o sismo de Novembro de 1882.

Um dia, depois de pensar que já sabia muito de teoria, tentou a prática.

Das cem moedas que juntou, em vários anos, escondeu cinquenta por de

trás de uma pedra e a outra metade, enfiou-a num saco de tecido.

Arranjou sacos de ráfia e galgou a São Romão. Comprou lã sem mulas.

Carregou e arrastou o máximo que aguentava e parou mais de cinquenta

vezes pelo caminho, até vender a lã em Alvoco da Serra e por lá

espalhar que já tinha vendido o triplo, a melhor preço, no Paúl. Nesse

dia, do ano de 1812, o lucro rendeu bem e do lucro deu parte à mãe e

guardou parte para o mano. Nos dias seguintes, procurou treinar a

corrida e o andar. Pisava silvas para tornar o peito do pé mais rijo do

que solas e com as urtigas curava as feridas. Nesse treino, foram

várias as vezes que, por sorte, não ficou de vez a boiar no Poço Forte.

Entretanto, a menina Francisca ia tomando conta da casa e do pai, em

Alvoco da Serra. O dinheiro ia sendo cada vez menos. O pai não sentia

nada do pescoço para baixo e várias vezes pediu ao Senhor Manuel Luís

que lhe pusesse a almofada por cima e lhe acabasse com a vida. O

compadre ignorou-o sempre e, sempre que o ouvia, apontava os olhos ao

Céu e persignava-se.

Na primeira semana de 1811, já Pina de Aragão estava refugiado na

agora denominada ‘Casa dos Ingleses’. Os dias eram gelados e ele

raramente ia a Loriga ou a Alvoco da Serra. Quando lhe perguntavam o

nome, respondia apenas com o nome próprio. Evitava ao máximo o

contacto e depressa ganhou fama como sendo um homem capaz de ter

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feito tudo e coisa nenhuma. Um dia, por altura do almoço, a menina

Francisca bateu-lhe à porta. A reacção foi de espanto e de surpresa.

Pina de Aragão estranhou tamanha educação e firmeza num corpo tão

frágil. A menina tinha contactos, machos, mulas e precisava de pôr de

pé o negócio do pai. Morreria de fome se não o fizesse. Pina de Aragão

não aceitou. Temia ser descoberto em qualquer estrada e de morrer sem

culpa e sem honra. Nunca fizera mal a ninguém, mas era procurado pelo

apelido que tinha. Todos os seus tinham resistido aos franceses e essa

valentia era invejada por nobres cobardes e súbditos miseráveis. À

menina prometeu treinar alguém, mas nunca substituir o pai nas

andanças pelo país. Tinha filhos e ainda queria conhecer os netos.

Nunca fora mercador, mas sim militar ao serviço de uma rainha demente

que abandonou o país, quando nunca nenhum outro monarca tinha

fugido.

Os dias foram passando e as noites foram ficando mais escuras, até que

um dia, à porta da menina, Sebastião bateu. Tinha o físico e o discurso

correcto para ser mandado embora e assim o fez a menina Francisca.

Três horas depois, batia à porta da casa da menina, Pina de Aragão.

Sebastião tinha-o convencido a falar com a menina. As palavras

prolongaram-se e, ao ver o dinheiro a minguar e nada a melhorar,

Francisca arriscou, depois de Pina Aragão ter prometido treinar o

miúdo. E assim o fez no dia seguinte.