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445 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 445-458, set./dez. 2007 A prática educativa como uma atividade de desencontro de sujeitos Rogério Rodrigues Universidade Federal de Itajubá Resumo Os educadores, de modo geral, partem do princípio de que a prática educativa é algo que surge na transmissão de saberes provenientes do encontro entre sujeitos. Entretanto, nas relações que se estabelecem entre os sujeitos, principalmente, naquilo que orbita no campo do uso da palavra, vive-se o que podemos de- nominar como o mal-entendido, pois falamos o que não pensa- mos e escutamos o que não foi dito. No campo educativo, por- tanto, assumimos a convicção profunda de que as relações são de encontro entre sujeitos, mas paradoxalmente e para desespe- ro dos educadores, temos na prática educativa uma atividade de desencontro de sujeitos. Neste artigo, o objetivo é analisar a prá- tica educativa na dinâmica do desencontro de sujeitos. São tais desencontros que de certo modo abrem as fendas no saber pe- dagógico e evidenciam a fragilidade desses saberes educativos. Partimos da perspectiva freudiana anunciada em prefácio do livro de August Aichhorn (1925), em que se inscreve a afirmação de que existem três profissões impossíveis – educar, curar e gover- nar. A nossa hipótese é a de que a prática educativa é a realiza- ção de uma tarefa que exige do educador uma constante desconstrução de seus princípios pedagógicos que coisificam o sujeito/educando – o desamparo de não sabermos educar. Palavras-chave Educação – Educação e Psicanálise – Pedagogia. Correspondência: Rogério Rodrigues Rua Xingú, 365 - Bl. Ypê, apto.32 09060-050 – Santo André – SP e-mail: [email protected]

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A prática educativa como uma atividade dedesencontro de sujeitos

Rogério RodriguesUniversidade Federal de Itajubá

Resumo

Os educadores, de modo geral, partem do princípio de que aprática educativa é algo que surge na transmissão de saberesprovenientes do encontro entre sujeitos. Entretanto, nas relaçõesque se estabelecem entre os sujeitos, principalmente, naquilo queorbita no campo do uso da palavra, vive-se o que podemos de-nominar como o mal-entendido, pois falamos o que não pensa-mos e escutamos o que não foi dito. No campo educativo, por-tanto, assumimos a convicção profunda de que as relações sãode encontro entre sujeitos, mas paradoxalmente e para desespe-ro dos educadores, temos na prática educativa uma atividade dedesencontro de sujeitos. Neste artigo, o objetivo é analisar a prá-tica educativa na dinâmica do desencontro de sujeitos. São taisdesencontros que de certo modo abrem as fendas no saber pe-dagógico e evidenciam a fragilidade desses saberes educativos.Partimos da perspectiva freudiana anunciada em prefácio do livrode August Aichhorn (1925), em que se inscreve a afirmação deque existem três profissões impossíveis – educar, curar e gover-nar. A nossa hipótese é a de que a prática educativa é a realiza-ção de uma tarefa que exige do educador uma constantedesconstrução de seus princípios pedagógicos que coisificam osujeito/educando – o desamparo de não sabermos educar.

Palavras-chave

Educação – Educação e Psicanálise – Pedagogia.

Correspondência:Rogério RodriguesRua Xingú, 365 - Bl. Ypê, apto.3209060-050 – Santo André – SPe-mail: [email protected]

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Educative practice as an activity of disaccordbetween subjects

Rogério RodriguesUniversidade Federal de Itajubá

Abstract

Broadly speaking, educators assume that the educative practice issomething that takes place in the transmission of knowledgesthat emerges out of an encounter between subjects. However, inthe relations established between the subjects, and especially inwhat concerns the field of the use of words, one experienceswhat can be described as a “misunderstanding”, for we say whatwe do not think, and hear what has not been said. In theeducative field we therefore have the profound conviction thatthe relations are of encounter between subjects, when,paradoxically and to the educators’ despair, we actually have anactivity of disaccord between subjects. In this article, we seek toanalyze educative practices in the dynamics of the disaccordbetween subjects. It is this disaccord that in a certain sensereveals the chink in the pedagogical knowledge, and evinces thefragility of these educational knowledges. We assume theFreudian perspective put forward in the preface to the book byAugust Aichhorn (1925), in which we find the statement thatthere are three impossible professions: educating, curing, andgoverning. Our hypothesis is that the educative practice is theaccomplishment of a task that requires from the educators apermanent deconstruction of the pedagogical principles that“thingify” the subject/educated – the desolation of not knowinghow to educate.

Keywords

Education – Education and psychoanalysis – Pedagogy.

Contact:Rogério RodriguesRua Xingú, 365 - Bl. Ypê, apto.3209060-050 – Santo André – SPe-mail: [email protected]

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O mais importante de tudo na preparaçãopara relações íntimas bem-sucedidas na matu-ridade é a experiência de ter recebido afetona infância. Como disse uma de minhas fi-lhas (de treze anos) quando a supervisora doacampamento não conseguiu cuidar dela di-reito: ‘Os pais dela não cuidaram dela direito,e por isso ela não podia cuidar dela mesma,nem consegue agora cuidar de mim’. (BrunoBettelheim).

A crença na educação comoencontro entre sujeitos

Os educadores, de modo geral, partem doprincípio de que a prática educativa ocorre natransmissão de saberes provenientes do encontroentre sujeitos, pois nessa situação consideram quese proporcionam as condições necessárias paraque se estabeleçam as trocas simbólicas entre eles.Por quais motivos deveríamos nos deter na ques-tão do desencontro entre estes para se pensar aprática educativa? Nesse caso, partimos do se-guinte questionamento: será mesmo que os su-jeitos se encontram na prática educativa?

Compreendemos o campo educacionalcomo sendo uma tentativa de relação entre su-jeitos que tem como pressuposto a transmissãode determinados ensinamentos. Os sujeitos narelação têm algo a dizer um para o outro. Con-tudo, paradoxalmente, essa relação acabou porse constituir como um desencontro de sujeitos,pois nada queremos saber sobre o outro da re-lação. Podemos analisar esse fato na práticaeducativa na situação em que a relação entresujeitos é instituída como uma atuação norma-tiva, na qual os pedagogos rigidamente sabem edefinem o que é ser sujeito, principalmente comodevemos proceder para educar o outro. Essessaberes pedagógicos acabam muitas vezes anu-lando o outro, pois se constituem em saberes apriori do encontro e definem a relação educativamesmo que para isso seja preciso recusar a exis-tência do outro. Portanto, a tese pedagógica daatividade educativa como encontro de sujeitoencontra-se destinado ao fracasso, constitui-se

na ilusão, principalmente, na anulação do ou-tro, pois rigidamente fixamos o ser no que acre-ditamos e não reconhecemos que nada sabe-mos em ser sujeitos1. Como isso se observa nocotidiano escolar?

Partimos da suposição de que não pre-cisamos formular uma pesquisa de campo naárea educacional para constatar a crise do su-jeito, pois para aqueles que são professores ealunos que vivem no ambiente educacionalconstatam discordâncias que indicam que anossa idéia de sujeito não correspondem maisàs experiências de relações humanas que rea-lizamos no cotidiano escolar. Algo que não secompreende perante o outro e isso que não seenquadra são tidos como o problema pedagó-gico. Nesse caso, em vez de enfrentarmos a crisedo sujeito, optamos por tentar reformular a teoriaeducacional no sentido de permitir a manutençãoda norma em sala de aula, ou seja, um lugar emque professores e alunos se (des)encontram nasatisfação narcísica com o seu ser sujeito. O fatoé que a opção por esse caminho pedagógicoopera como um mecanismo de defesa para nãoentrarmos em contato com o desespero em nãosaber as verdades sobre o ser, o que, nesse casoespecífico, representará o impossível abandono dascertezas que determinam o método para constituiro sujeito educável.

No campo educativo, estamos mergulha-dos em nossas neuroses de querer educar ooutro em nossa imagem e semelhança, pois emúltima instância, possuímos um amor por umsujeito que de certa forma acreditamos ser.Dessa forma, no outro, no sujeito a ser educa-do, projetamos a idéia de que este deve ser oque somos de melhor no campo do imaginárioe, no caso da Educação, ele deve apreender osaber que nos circunscrevem e que nos fazsujeitos passíveis de sermos educados/adestra-dos. Portanto, o campo educacional encontra-se centrado no fundamento da educação deque educar é algo que está diretamente relaci-

1. Utilizamos este termo, ilusão pedagógica, a partir da idéia desenvolvi-da por Lajonquière (1999) no seu livro intitulado: Infância e ilusão (psico)pedagógicas.

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onado com a modificação do comportamentodo outro – a compulsão em educar2.

Do fundamento da educaçãopara a educação semfundamento: o desencontro dossujeitos na prática educativa

Não podemos deixar de reafirmar quetodos aqueles que praticam a atividade educativapercebem que, em sala de aula, a relação entresujeitos falha e constitui-se no desencontro desujeitos, mais propriamente, numa educação semfundamento. Assim, apontamos para a rupturacom a tese pedagógica de que, na relaçãoeducativa, encontramos o outro, ou seja, nadasabemos a respeito do ser sujeito que se cons-titui no vínculo das relações que estabelecemoscom os outros. Quando muito, temos uma pre-cária idéia do que somos e fomos com o ou-tro. Vivemos completamente alheios aos nossosacontecimentos e, a cada momento, vamosdefinindo regras que são apenas conforto paraos nossos anseios em não saber ser sujeito.Nesse caso, não se pode negar que no campoeducacional vive-se certo contra-senso, ou seja,quanto mais se teoriza nas formulações de te-orias metodológicas de aprendizagem, menosse proporcionam as condições efetivas e, atémesmo, afetivas para o encontro com o outro.Nesse caso, de certo modo, as metodologias deensino dificultam o acesso ao outro. Entretan-to, o senso comum pedagógico insiste em es-tabelecer orientações e as condições para ca-minharmos numa efetiva relação educativa. Issoé um modo de caminharmos em direção à ilu-são do possível encontro com o outro.

Paradoxalmente, o reconhecimento da si-tuação de desencontro entre sujeitos que seriaum contra-senso é que poderia criar as condi-ções de efetivar conexões entre os sujeitos edestituir a ilusão de que sabemos educar. Oseducadores em sala de aula podem analisar queo outro não corresponde ao pressuposto do seusaber pedagógico. As táticas educativas em salade aula se passam como situações das quais

muitas vezes se desconhecem os seus verdadei-ros caminhos. Entretanto, como uma fuga dodesespero em não saber educar e em oposiçãoa essa situação, os debates educativos realizam-se geralmente em torno de detalhes de metodo-logias de ensino e aprendizagem. No entanto,não podemos deixar de considerar que essesdetalhes metodológicos educativos estão tornan-do o sujeito uma coisa, ou seja, o primordial daprática educativa está sendo desconsiderado,pois nessas situações de encontro, deveríamosbuscar “estabelecer imediatamente laços íntimosde genuíno diálogo do que em transmitir umadoutrina” (Zuben, 2004, p. 47).

O encontro com o outro como algo fe-nomênico e a relação é algo que sempre esca-pa. Radicalizando sobre essa relação entre sujei-tos, questionamos se a existência do sujeito nãoseria uma ilusão moderna. Partindo da psicaná-lise, podemos posicionar o sujeito como a ma-nifestação das formações do inconsciente – osintomático retorno do recalcado – e, portanto,um ser em atuação que nada sabe sobre o sersujeito. Estabelecemos algumas verdades provi-sórias do sujeito para que possamos acreditar noque somos, e minimamente estabelecermos re-gras do nosso funcionamento, principalmente,educativos. Nesse aspecto, nas relações entre osujeito e a verdade, poderíamos

[...] dizer que somos obrigados pelo podera produzir a verdade, somos obrigados oucondenados a confessar a verdade ou aencontrá-la. O poder não pára de nos in-terrogar, de indagar, registrar e institucio-nalizar a busca da verdade, profissionaliza-a e a recompensa. [...] Afinal, somos julgados,condenados, classificados, obrigados a desem-penhar tarefas e destinados a um certo modode viver ou morrer em função dos discursosverdadeiros que trazem consigo efeitos especí-ficos de poder. (Foucault, 1990, p. 180)

2. A compulsão em educar seria a realização de uma prática educativaque desconsidera o outro, ou seja, pautado nos fundamentos da educação,o educador de modo obsessivo coloca em ação sua prática educativa comoa realização de atos mecânicos.

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A partir da epígrafe no início do texto,podemos dizer que a formação educativa nointerior da família aponta o motivo para compre-endermos o que impede o sujeito de realizar oencontro com o outro. Nesse caso, concluiríamosque o sujeito é o resultado de experiências sub-jetivas que adquirem no transcorrer de sua vida.Entretanto, como este se educa, pois nada sa-bemos em ser sujeito? Sobre qual tipo de en-contro desejamos efetivar a prática educativa?Seria possível uma prática educativa no de-sencontro de sujeitos? Quando falamos dedesencontro, estamos nos referindo a uma efe-tiva relação entre eu e tu e não algo que gireem torno do eu e isso. Sobre a relação entre eue tu, podemos dizer:

A relação com o Tu é imediata. Entre o Eue o Tu não se interpõe nenhum jogo deconceitos, nenhum esquema, nenhuma fan-tasia; e a própria memória se transforma nomomento em que passa dos detalhes à to-talidade. Entre Eu e Tu não há fim algum,nenhuma avidez ou antecipação; e a pró-pria aspiração se transforma no momentoem que passa do sonho à realidade. Todomeio é obstáculo. Somente na medida emque todos os meios são abolidos, aconteceo encontro. (Buber, 2004, p. 59)

Entretanto, a nosso modo de relacionarpouco se mantém na estrutura entre eu e tu, ouseja, fazemos das relações jogos de conceitos;esquemas; fantasia; detalhes. Enfim, coisificamoso outro única e exclusivamente para que possaatender às nossas necessidades.

[...] a grande melancolia de nosso destino éque cada Tu em nosso mundo deve tornar-seirremediavelmente um Isso. Por mais exclusi-va que tenha sido a sua presença na relaçãoimediata, tão logo esta tenha deixado de atu-ar ou tenha sido impregnada por meios, o Tuse torna um objeto entre objetos, talvez omais nobre, mas ainda um deles, submisso àmedida e à limitação. (Buber, 2004, p. 63)

O hegemônico em Educação é uma re-lação estabelecida a partir da fixação de um dis-curso de verdade sobre o sujeito (coisa), noqual este acaba por definir o encontro com ooutro (coisa). Nesse caso, a prática educativa évivida, predominantemente, na relação entre oeu e isso. Essa relação prevalece e, principalmen-te, funciona pelos motivos pelos quais somoseducados e tratados exclusivamente como coi-sa para sermos mais operacionais e eficientes,contudo, menos vinculados e afetivos em rela-ção ao outro. Podemos educar para a verdadeem ser sujeito a ponto de responder pronta-mente a diversas situações de modo efetivo eprodutivo. O que podemos fazer em termos deeducação sem cairmos na ilusão da existênciade uma verdade que nos lança para a crença noencontro entre sujeitos?

Como já nos referimos anteriormente,partimos da idéia de que nos lançamos para avida a partir das nossas experiências subjetivasacumuladas, e são os pais e educadores queproporcionaram a nossa primeira experiência deenvolvimento com o outro. Partimos da premis-sa de que de certo modo somos e vivemosprovisoriamente a experiência de encontrar ooutro. Isso de certo modo serve de fundamentoe com certa importância para que tenhamos umpequeno ponto de sustentação para comparti-lhar a nossa crença em ser sujeito. Portanto, oparadoxo da nossa existência em ser sujeito éque essa crença de certa forma tem nos propor-cionado as condições de vivermos algo emnossas vidas. Isso serve de base para que seestruture o nosso modo de ser e o tipo derelação com o outro. Entretanto, quem seriaesse outro do nosso encontro, mais propria-mente, do nosso desencontro?

Podemos pensar que o outro primordialdo nosso desencontro é o voltar-se para si quenos deixa perdidos no labirinto do eu. Nessecaso, para que possamos encontrar o outro,não seria oportuno realizar primeiramente cer-to retorno de si a ponto de compreender-se asi mesmo? Portanto, o primeiro sujeito a en-contrar é o nosso eu, pois como encontrar o

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outro se estamos perdidos de nós mesmos?Podemos nos conformar pensando que somen-te nos encontraremos pelo fato de estarmosperdidos de nós mesmos, contudo,

[...] como poderíamos encontrar-nos? Comoo homem pode conhecer-se? É uma coisaobscura e velada, e se a lebre tem sete pe-les, o homem pode tirar sete vezes setentadestas e mesmo assim não poderá dizer:‘este sou o eu real e não uma aparência’.Além disso, mergulhar no poço da própriaexistência é um começo arriscado. Facil-mente produziremos feridas que nenhummédico pode curar. E depois, para que istoseria necessário, quando tudo é testemu-nha do nosso ser? As nossas amizades einimizades, nosso olhar, nosso aperto demão, nossas lembranças, nossos esqueci-mentos, nossos livros e os traços de nossacaneta. Mas eis o meio para realizar o in-terrogatório mais importante. Olhe a jovemalma atrás da própria vida e pergunte-se: oque realmente amou até hoje? O que atraiusua alma, o que dominou e ao mesmo tem-po tornou-a feliz? Coloque à sua frente es-tes venerados objetos e eles, talvez, comseu ser e sua sucessão lhe darão uma lei, alei fundamental de si mesmo. Compare estesobjetos e observe como um completa o ou-tro, o amplia, o supera e o transforma, atéformar uma escada sobre a qual até agoravocê subiu a procura de si mesmo; a suaverdadeira existência, de fato, não está es-condida dentro de você, mas muito acimade você ou daquilo que você considera oseu eu. Os verdadeiros educadores e mestresrevelam o sentido originário e a matériafundamental do ser, aquilo que não se podeabsolutamente educar nem formar, é de difí-cil acesso por estar amarrado, paralisado: osseus educadores não podem ser nada maisque seus libertadores. E este é o segredo detoda formação: esta não dá membros artifi-ciais, nariz de cera, olhos postiços – donsque somente a falsa imagem da educação

pode dar. Esta é a verdadeira liberação, remo-ção de todas as ervas daninhas, lixos e para-sitas que ameaçam as delicadas sementes dasplantas, é transmissão de luz e calor, doce cairde chuva noturna, é imitação e veneração danatureza, quando esta se mostra materna emisericordiosa, e é aperfeiçoamento, quandoprevê os terríveis ataques levando-os ao bem,quando estende um véu sobre as manifesta-ções da sua alma madrasta e da sua tristeloucura. (Nietzsche, 1999, p. 3)

A busca de si mesmo é desesperador e ospedagogos, de certo modo, em suas práticas, nãoreconhecem essa dificuldade e, como formaçãoreativa, fazem da vida dos escolares a exigênciainsuportável de terem que lidar com um encon-tro não desejado em sala de aula e, principal-mente, em nossas vidas3. O outro sinaliza umproblema para ser vivido em termos de experiên-cia humana, na qual, como muita dificuldade,tentamos estabelecer algumas trocas que não sãomuito bem sucedidas – para não dizer que sãoverdadeiros desastres. Essas situações podem serobservadas, principalmente, naquilo que orbitano campo do uso da palavra, pois falamos oque não pensamos e escutamos o que não foidito. Vivemos em nossas relações o embate quedenominamos de mal-entendido – para não di-zermos mal-estar (Freud, 1990a).

As metodologias de práticas educativasconstituem como uma negação do mal-enten-dido na tentativa de driblarmos a nossa impo-tência de termos que lidar com o não-saber oque fazer com o outro, que se encontra naespera de algo que o eduque. Portanto, ascertezas educativas não passam de uma fuga denós mesmos e um modo de não reconhecer afalta na experiência do encontro entre os sujei-tos. Esses sintomas de negação da falta podemser ampliados em nossos núcleos familiares eprofissionais. Principalmente em lugares de baixacirculação de afeto, essas neuroses correspondem

3. A exigência do encontro possui suas táticas de ação e, a cada início deaula, o professor faz a chamada para verificar a presença do aluno e este,quando escuta o seu nome ser chamado, responde, prontamente, presente.

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a sintomas de negação da castração que seinstauram nas estruturas do poder e se tradu-zem em práticas autoritárias, que nas escolas efábricas constituem a autoridade perversa doprofessor/chefe – um modo sublimado do exer-cício da crueldade4.

Nesses casos, apesar de os sujeitos vive-rem próximos um do outro, principalmente noambiente escolar, não conseguem vivenciarexperiências humanas. Apenas realizam as tro-cas simbólicas que permitem o pleno funciona-mento da sociedade de mercado, mas não sereconhecem no âmbito das relações humanas.Portanto, o fato de estarem próximos fisicamen-te uns dos outros não constitui a condição ne-cessária para se realizar o verdadeiro encontro. Oque fazem no máximo é o esboço do paradigmadas relações afetivas hegemônica da classe soci-al à qual pertencem, ou seja, numa sociedade cujaorganização está pautada no capital financeiro, asrelações entre sujeitos são regidas pelo mercadodas coisas e não pela ordem dos afetos humanos.Esses tipos de sujeitos coisificados estão comple-tamente fechados para qualquer tipo de vínculoafetivo. Para dimensionarmos essa falta de possi-bilidade de encontro com o outro, podemos tercomo paradigma a máquina de abraçar deTemple, que a ela recorria quando precisava seracolhida. O seu

[...] mecanismo tinha dois lados de madeirapesados e inclinados, talvez com um metro emeio por um metro cada, prazerosamenteestofados com um enchimento espesso emacio. Eram ligados por dobradiças a umaprancha de base longa e estreita, criandouma calha do tamanho de um corpo e emforma de V. [...] Sua máquina de espremerfuncionou exatamente como esperava, pro-duzindo aquela sensação de tranqüilidade eprazer com que sonhava desde a infância.(Sacks, 1995, p. 269-70)

Queremos pontuar que a recorrência àinvenção de Temple de sua máquina de abra-çar não a qualifique como um sujeito coisificado,

mesmo porque esta não dispunha de qualquertipo de vínculo afetivo com os outros sujeitosem virtude do seu estado sintomático comoautismo. Entretanto, essa máquina aponta parao fato de que vivemos presos em nós mesmose assim queremos ficar. O outro na relação éuma máquina de abraçar que, quando inopor-tuno, esperamos poder desligá-lo. Nesse caso,compreendemos essa máquina como um íconeda nossa impossibilidade de encontrar o outro.Entretanto, quais seriam os motivos dessa nos-sa ilusão em querer encontrar o outro? Empoucas palavras, não queremos ficar a sós comnós mesmos, pois não conseguimos suportar asnossas próprias neuroses – o desamparo dasolidão. Vivemos numa relação de necessidadepelo outro para que este possibilite as condi-ções de projetarmos parte de nosso amor eódio pelo o ser/sujeito que acreditamos existirhabitado em nosso eu.

Partimos da tese de que não sabemossobre os motivos de nossos encontros e, prin-cipalmente, as causas que nos impedem deestabelecermos vínculos verdadeiros com ooutro. Uma relação que seja entre sujeito esujeito e não entre coisa e coisa. Entretanto, oparadoxo encontra-se justamente por não sa-bermos radicalmente ser sujeitos verdadeiros. Oque sabemos fazer resulta na construção danossa sociedade que estabelece um modooperante do encontro sem troca, compromissoou qualquer tipo de responsabilidade pelooutro. Esse modo de vida mobiliza um grandiosomercado de consumo, no qual fenomenicamenteos sujeitos saem para a realização do encontrocom o outro e consomem tudo que lhe é permi-tido para a sua realização. Preparam-se para umencontro que a priori está fadado a sua não-rea-lização, pois necessitam consumir a fim de produzira própria satisfação narcísica e muito menosproduzir o encontro com o outro.

4. Nesse caso, penso o Daniel Gottlieb Moritz Schreber como educador que“era médico ortopedista e pedagogo, autor de cerca de vinte livros sobreginástica, higiene e educação das crianças. Pregava uma doutrina educaci-onal rígida e implacavelmente moralista, que objetivava exercer um controlecompleto sobre todos os aspectos da vida, desde os hábitos de alimentaçãoaté a vida espiritual do futuro cidadão” (Carone, 1995, p. 10-11).

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O consumo desenfreado é um modo delidar com o desespero do vazio que fica quandonão existe troca de relações humanas, ou seja, noencontro, em vez de se estabelecer troca de re-lações humanas, ocorre somente um desencontroe o que resta somente são as trocas de coisasmuitas vezes pouco compreendidas, e esse é omotivo pelo qual no cotidiano as nossas trocas e,até mesmo, as relações humanas mais íntimas sãoregidas por formas contratuais5.

Portanto, no desencontro de sujeitos e noencontro de coisas, os sujeitos, narcisicamente,estão fechados em si mesmo e buscam somentea própria satisfação egóica. Numa aglomeração emque se misturam sujeitos e coisas, chega-se aponto de os sujeitos também serem confundidoscom as coisas. Nesse emaranhado de coisas,poucos estão realmente se encontrando e, prin-cipalmente, compartilhando muito pouco a expe-riência humana em torno do amoródio6.

Não posso deixar de relatar uma situaçãobem determinada da minha infância para pen-sar a questão do encontro de sujeitos, qual seja,a lembrança de que as casas na praia onde pas-sava as minhas férias escolares não possuíammuros para separar um quintal do outro. O quese tinha era apenas uma pequena cerca de ar-bustos que permitia uma visibilidade entre osmoradores das casas e uma adorável sombra. Acerca era apenas para demarcar o terreno eentre seus arbustos tínhamos diversas passa-gens para o quintal do vizinho. Vivíamos umasituação muito peculiar na qual era possívelpassarmos de uma casa para a outra como setodos os quintais fossem unificados e isso per-mitia um modo muito ampliado de convivênciaentre as diversas famílias que ali passavam osseus dias de descansos. Era muito comum opreparo de festas comunitárias que geralmen-te eram programadas para os finais de semana,pois era o momento em que todos estavampresentes. Com essas práticas de festas e ten-do as cercas como um símbolo para a demar-cação do território e não para separar e impe-dir o encontro, tinham-se as condições de umconvívio muito rico em termos de relações hu-

manas: amoródio. Entretanto, hoje nesse mesmolugar, o que encontramos não são mais os arbus-tos que denominamos como cerca viva e simaltos muros de tijolos que impedem que ummorador de uma casa possa ver ou encontrar oseu vizinho ao lado. Podemos pensar que, nocampo da ambivalência das relações humanas, oódio prevaleceu e, nesse caso, passamos de ummodo de convivência da cerca viva trocada porum muro – cerca morta. Resta sabermos os mo-tivos que proporcionaram essas alterações físicasno modo de separar os quintais.

A educação do desencontro:não queremos encontrar o outro

Partimos da hipótese que a emergênciados muros resulta de uma trama das relaçõessubjetivas que instituem a separação entre ossujeitos. Nesse caso, o fenômeno dos muros éapenas um indicativo para definir qual o tipo derelações humanas que se pretende estabelecer e,até mesmo, não se estabelecer entre os sujeitos.No entanto, o que se alterou primeiro, ou seja, fo-ram nossas relações sociais que proporcionaramo crescimento dos muros ou as construções dosmuros que alteraram as nossas relações sociais?

Muros e relações sociais se alteraramnuma trama sem uma regra lógica, mas pode-mos afirmar que um pólo alimentou o outro,proporcionando as condições necessárias parauma sociedade que tem como sintoma o plenoisolamento do sujeito. Portanto, não foram osmuros que vieram e depois deixamos de nosencontrar, mas uma mistura em que um forta-lece o outro. Nesse caso, podemos não sabercomo se dá a somatória dessas forças, massabemos o seu resultado que seria a total faltade afetividade em relação ao outro. Dessemodo, os muros apontam para o que não que-remos saber, ou seja, o impossível encontrar o

5. Não seria por acaso que os contratos de compra e venda, assim comoos casamentos, são todos registrados em cartórios.6. Para a psicanálise, as pulsão de vida e pulsão de morte se direcionamunificadas em direção ao objeto. Portanto, torna-se possível o uso da palavraamoródio quando queremos expressar o trabalho da experiência humana.

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outro. Isso pode ser analisado na seguinte si-tuação em que

[...] numa rua tranqüila de casas antigas ecalçamento de pedras, foi abandonado umHonda Fit ‘com uma cabeça sobre o capô, eos corpos de dois jovens negros, retalhadosa machadadas, no interior do veiculo’. As víti-mas eram ‘moradores da favela CamaristaMeier e teriam sido executados pelo Coman-do Vermelho em razão de dívidas com o trá-fico’. Até aqui o horror é ordinário: há socio-patas e malucos nas fileiras do crime. [...] Areação dos moradores foi tão chocante comoas brutais mutilações. Vários moradores bus-caram seus celulares para fotografar os cor-pos, e os mais jovens riram e fizeram troçados corpos. (Calligaris, 2006, p. 10)

Nesse caso, a atuação do nosso ser des-mascara que o outro não existe e se existe ésomente como objeto de nossa satisfaçãopulsional. Portanto, o outro é uma coisa que nãonos afeta, pois estamos bem protegidos por trásdos nossos muros e das nossas cercas elétricas.A tal fenômeno bizarro da nossa sociedade con-temporânea, denominamos psicose das relaçõeshumanas, ou seja, podemos ser sujeitos plenosem nossas neuroses, mas fechados em nós mes-mos no que diz respeitos às relações que esta-belecemos com o outro. Nesse caso, no encon-tro com o outro, fazemos somente a projeção doeu e, nesse processo, queremos encontrar a re-alização daquilo que nos permita obter a plenasatisfação. Quando por algum motivo estamosimpedidos de projetar o eu em direção ao outro(as vítimas da favela), este não existe e não épassível da nossa compaixão.

O que se pode compreender do resulta-do da psicose das relações humanas é quedeixamos de encontrar o outro e nos perdemosno labirinto narcísico do encontro de si mesmo(Comte-Sponville, 1997). Em algum momentode nossas vidas, perdemos as condições psíqui-cas de estabelecermos algum tipo de experiên-cia subjetiva que seja a compreensão do nos-

so desencontro e, portanto, lançamos o ódiopara qualquer tipo de situação que nos retrateessa situação de não-saber. Para não vivermosessa condição de não-saber, optamos em mo-rar seguros e protegidos em nossas verdades epodemos dizer:

O homem está muito bem defendido de simesmo, da espionagem e do assédio quefaz a si mesmo, e geralmente não enxergamais que seu antemuro. A fortaleza mesmalhe é inacessível e até invisível, a não serque amigos e inimigos façam de traidores eo conduzam para dentro por uma via se-creta. (Nietzsche, 2000, p. 266-267)

Qual seria essa via secreta que podeencaminhar o sujeito para o desencontro e,mais precisamente, quais seriam os lugares emque permaneceu possível a existência desse tipode experiência humana sem despertar o ódiode não sabermos ser sujeito?

Constatamos que em nossa modernidadeo encontro virtual tem se difundido como umamodalidade de comunicação e, até mesmo, deeducação dos sujeitos. Podemos pensar na hi-pótese de que o virtual surge como uma mo-dalidade de encontro de sujeitos surgida como fortalecimento dos muros. Pensamos estarbem defendidos por trás de nossas fortalezas,para não dizer dos teclados. Nesse caso, nãoseria por acaso que assistimos a um aumentodo oferecimento de cursos de ensino a distân-cia que, na perspectiva do nosso entendimen-to, é um modo racionalizado em não reconhe-cer a falência do ensino presencial, pois a tesepedagógica da prática educativa no encontrode sujeitos não mais se coaduna com as exi-gências para a plena escolarização. Vivemos naeducação a dificuldade de construir uma viapara a crise do sujeito e, mais propriamente, oreconhecimento consciente da falência da nos-sa possibilidade de encontro. Entretanto, o queseria exatamente o fortalecimento dos muros eteclados como um sintoma social da nossacontemporaneidade?

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No âmbito da teoria freudiana, muros eteclados constituem uma tentativa de manter averdade do sujeito, um modo de manter fixoem nosso saber educar – a nossa intolerâncianarcisista da pequena diferença perante o ou-tro que não aprende (Freud, 1990a). O fato demuro/teclado impedir o olhar do outro, nãopode deixar de sinalizar que este também im-pede o olhar daquele que é olhado. Assim, omuro/teclado mantém a ordem e a disciplinaescolar, trancafiando e impedindo o olhar e acirculação física do eu e do outro.

A partir dessa situação da hegemonia dosmuros/teclados, indico um sintoma da nossamodernidade, qual seja, empobrecemos as nos-sas relações humanas. Isso acaba por atuaçõesque impedem de fazermos vínculos com ooutro, pois demanda responsabilidade, compar-tilhamento de afetos. Enfim, encontrar o outroexige a troca de experiência humana – o traba-lho para que se amenize o conflito entre o eue o outro.

O outro pode ser o inferno da relação e,portanto, para evitar o conflito, a saída seria arecusa da existência do outro. Para Freud(1990a), a relação com o outro se constitui naincerteza da realização da nossa felicidade.

Nossa possibilidades de felicidade sempresão restringidas por nossa própria constitui-ção. Já a infelicidade é muito menos difícilde experimentar. O sofrimento nos ameaçaa partir de três direções: de nosso própriocorpo, condenado à decadência e à dissolu-ção, e que nem mesmo pode dispensar osofrimento e a ansiedade como sinais deadvertência; do mundo externo, que podevoltar-se contra nós com forças de destrui-ção esmagadoras e impiedosas; e, final-mente, de nossos relacionamentos com osoutros homens. (p. 84-85)

Nesse caso, queremos evitar qualquer tipode contato que possa favorecer qualquer tipo devínculo afetivo mais profundo e, no caso daEducação, o vinculo entre o aluno e o professor.

Passamos a viver numa sociedade em que sepermite apenas vínculos e contatos parciais, poistemos o medo do contato (Canetti, 1995). Paraeste, esse medo é decorrente do fato de que

[...] não há nada que o homem mais temado que o contato com o desconhecido. Elequer ver aquilo que o está tocando; querser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, declassificá-lo. Por toda parte, o homem evitao contato com o que lhe é estranho. (p. 13)

Para se evitar o contato, erguemos murose estes podem ser divididos, basicamente, emdois tipos: os muros físicos e os muros morais.Eles se apresentam na relação inversa, ou seja,quando um cresce, o outro diminui. Assim, ob-servamos sociedades com poucos muros físicos,mas que estabelecem muros morais e outrassociedades nas quais existe grande quantidadede muros físicos e têm-se poucos muros morais.Assim, os muros físicos e morais são uma barreirapara tentar evitar o outro, pois

[...] tal aversão ao contato não nos deixanem quando caminhamos em meio a outraspessoas. A maneira como nos movemos narua, em meio aos muitos transeuntes, ouem restaurantes, trens e ônibus, é ditadapor esse medo. Mesmo quando nos encon-tramos bastante próximo das pessoas; mes-mo quando podemos observá-las bem einspecioná-las, ainda assim evitamos, tantoquanto possível, qualquer contato comelas. (Canetti, 1995, p. 13)

Em nossa sociedade, o que prevalece nasrelações humanas modernas é a tolerância zeropara com o outro. Isso seria uma relação desujeitos sem nenhum tipo de aprofundamentode vínculo de amoródio, ou seja, não existeaparentemente passado ou futuro, o que se temé somente o presente, e este é regido peloprincípio de prazer. Entretanto, o desencontroestá totalmente regido por um passado e umfuturo e a plena negação do presente. Nesse

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caso, no desencontro, nega-se o presente, poiso outro da relação existe somente para satisfa-zer uma ilusão de encontro entre sujeitos. Si-tuamos o sujeito preso ao passado e fixado nopresente, pois repete seu sintoma – o retornodo recalcado. O futuro é uma projeção que estácircunscrita em sua pequena tolerância narcisis-ta da sua verdade sobre o ser sujeito, pois nãoconsegue libertar-se do gozo proporcionadopelo próximo encontro com o sujeito (coisa).

Seria o surgimento dos muros/tecladosuma barreira física de tentar impedir as relaçõeshumanas? Diríamos que é um modo operantede nos mantermos afastados uns dos outros,mas na tentativa de impedir o desagradávelreconhecimento de que se vive uma situaçãode desencontro, formulamos sintomaticamentea ilusória superficialidade com que os sujeitosvivem os encontros e com o qual fazemosnossos vínculos com o outro. Como num castelo,podemos convidar ou não o outro para que en-tre em contato com a nossa privacidade. Contu-do, vivemos numa sociedade em que existe umapelo para que a privacidade seja invadida e queisso seja um direito de todos. Nesse caso, nãopodemos esquecer que programas televisivoscomo Big Brother Brasil (BBB) estabelece elevadosíndices de audiência. Vivemos uma sociedade quepossui uma vontade de saber o que outro faz porde trás de seus muros e, no caso do BBB, maispropriamente das paredes dos quartos e banhei-ros. Diríamos um direito de quase todos, pois aexclusividade de acompanhar por 24 horas asimagens das inúmeras câmeras de vídeos espalha-das por todos os cômodos da casa do BBB, prin-cipalmente quartos e banheiros, são para aquelesque pagam pelo direito a transmissão pela tele-visão por assinatura. Temos assim em nossamodernidade o voyeurismo institucionalizadocomo base de um lucrativo negócio televisivo.

Pautado na teoria freudiana, podemosanalisar que esse desejo de ver e escutar o queacontece por de trás das paredes estaria cir-cunscrito na fantasia sexual da criança em re-lação à vida amorosa de seus pais, ou seja, aquestão para ela é: o que eles fazem trancados

no quarto e por quais motivos eu não possoentrar? Assim, as paredes educam as criançaspara que percebam que o outro nem semprepode ser encontrado, pois é preciso esperar oseu momento para o desencontro. Um núcleofamiliar que circula afeto permite à criança essetempo da espera. No caso da família estruturadana psicose das relações humanas, esta não per-mite à criança sustentar esse tempo de espera eisso proporciona uma ansiedade pela permanên-cia do seu isolamento. Ela passa a ser educadaa conviver com o isolamento e será essa moda-lidade de atuação que repetirá em suas futurasrelações afetivas em seus desencontros e fará detudo para que possa encontrar o outro, mesmoque para tanto precise anular a própria existên-cia. Nesse caso, podemos compreender os for-talecimentos e crescimentos dos muros/tecladoscomo a ampliação desse sintoma, qual seja, abanalização do encontro ou o fortalecimento dapsicose das relações humanas.

Temos como hipótese de trabalho queperdemos a possibilidade do tempo da espera parao desencontro com o outro. O encontro aparececomo um modo de fuga do desespero em cons-tatar que não há nada a encontrar no outro quevenha garantir a verdade em ser sujeito. Para nãonos defrontarmos com essa situação, temos comomodo de conduta social sã, basicamente, duaspossibilidades: a invasão ou o impedimento.

Tendo essas duas possibilidades de con-duta social para pensarmos a questão dodesencontro de sujeitos, seria oportuno anali-sar até que ponto o paradigma do muro/tecla-do serve de referência para fundamentar essatemática e, até que ponto, este serve de modelopara estabelecer o eixo educativo, ou seja, es-taríamos sendo educados para evitarmos ouinvadirmos uns aos outros?

O desencontro entre os sujeitose a questão do fracassoescolar

No âmbito da Educação, não podemosdeixar de citar a escola para analisar essa ques-

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tão, qual seja, a educação tem como base aquestão do encontro entre sujeitos, entretanto, asua prática realiza-se no paradoxo do desen-contro entre os sujeitos. Seria esse o fato de quepor vários aspectos em que muros/teclados sãotão exaltados em seu funcionamento?

Consideramos que os problemas que maisse destacam na escola entre todos são: a falta deaprendizagem e a perda da disciplina no ambi-ente escolar. Esses dois aspectos destacam-sepela identificação imediata daquilo que se deno-mina como fracasso escolar. Entretanto, o queseria o fracasso escolar? Atualmente o sensocomum identifica o problema do fracasso escolarcom os problemas de aprendizagem e a repro-vação do aluno na série escolar em que se en-contra matriculado. As políticas públicas na áreada Educação têm enfrentado esses problemasmodificando – mais propriamente, alterando – oprocesso de avaliação do aluno, ou seja, temosincorporado no sistema de ensino mecanismosque buscam avaliar o aluno na totalidade e issotem sido o argumento facilitador para que osalunos deixem de ser reprovados. Na prática, issotem destituído a reprovação de alunos que nãodominam o saber específico das disciplinas docomponente curricular.

Sobre a questão da avaliação escolar emmeus anos de trabalho em escola pública, presen-ciei o absurdo de um professor de uma matériaespecifica dizer que aluno não tem condições empassar em sua disciplina e os outros professorespresentes votarem pela aprovação do aluno.Toda essa manobra pedagógica tem como fina-lidade diminuir os índices de reprovação. Portan-to, nas escolas, eliminaram os problemas deaprendizagem tirando a própria aprendizagemcomo um elemento primordial da prática educa-tiva, ou seja, o aluno não precisa mais dar provapública que sabe para obter a sua avaliação es-colar. O saber passou a ser considerado como ummuro impeditivo que o aluno tinha que trabalharpara escalar penosamente no sentido obter omérito de passar de ano. O problema escolar éresolvido eliminando-se o próprio problema. Semesses muros, as estatísticas agora indicam que

não temos mais o fracasso escolar. Entretanto, aresultante do paradigma do muro/teclado versuso fracasso escolar vai se apresentar em níveissuperiores, no momento em que aluno ingressano Ensino Médio e não sabe escrever ou fazercontas de dividir e de multiplicar. Temos assimconsolidado um sistema educacional em que ascrianças e os adolescentes não aprendem. Já é omomento de que as práticas educativas tenhamcomo base em seus formuladores teóricos a pos-tura crítica pela qual se pode identificar umacrise na idéia moderna de sujeito, ou seja, quetoda formulação teórica no campo pedagógicopossa se estruturar no impossível educar nodesencontro entre sujeitos7.

Os especialistas em Educação procuram acausa desse problema pedagógico como aqueleque busca a cura para uma doença, qual seja, oprocedimento terapêutico/pedagógico é pautadono diagnóstico e, em seguida, aplica-se o remédio.Para os diagnósticos, são aplicados questionários,entrevistas, visitas, comparações com o objetivo deidentificar os motivos por que os alunos nãoaprendem. Em seguida, é afirmado o melhor cami-nho para a cura, ou seja, os cursos de capacitaçãopara os professores que, de certo modo, nas pa-lavras dos especialistas, são peças centrais quegarantem uma alteração no procedimento didáti-co e, por conseqüência, uma melhora no desem-penho do aluno. Para confirmar o tamanho desseêxito, são aplicadas formas de controle por meiode uma ostensiva avaliação. Esses mecanismosconfirmam que a escola destravou e derrubou osmuros/teclados que impedem a passagem do alu-no e esta passou a funcionar em pleno fluxo parasua passagem na escola. Entretanto, como umcampo de batalha, os alunos passam a exerceroutras táticas de resistência aos novos ensina-mentos praticados na escola, pois sempre se er-guerão novos muros/teclados que devem serderrubados. O que os alunos indicam no proble-ma escolar é que os pedagogos não querem en-trar em contato e que, há muito tempo, o sujeito

7. Não podemos deixar de lembrar que, para Freud (1990b), existem“três profissões impossíveis – educar, curar e governar” (p. 341).

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que eles acreditam existir nas relações educativasnão existe mais e, mais propriamente, o reconhe-cimento do não saber como educar.

Analisamos que o reconhecimento dodesencontro dos sujeitos nas relações educa-tivas seria um passo no sentido de se constituirnuma prática não cega de si mesma, mas maispropriamente em algo condizente com a vidado que ficarmos nos fixando em nossas mani-as pedagógicas do que é ser sujeito. Entretan-to, os pedagogos estão muito bem protegidose não tocam em um só tijolo de seus muros enão abandonam os teclados das altas tecno-logias de ensino, pelo contrário, buscam cadavez mais se fortalecer em suas muralhas/eletrô-nicas do seu saber educar.

Os alunos procuram encontrar nas escolasespaços não ocupados e demarcam os seus terri-tórios em oposição ao avanço inimigo. Temosassim no campo da educação escolar uma batalhapolítica sobre a questão do sujeito. Nossa hipóte-se central de trabalho, para se pensar a práticaeducativa como um desencontro de sujeito – odenominado problema pedagógico –, é um modode a escola reproduzir em seu interior o que ocorrena sociedade: a anulação da diferença pelo não-reconhecimento da própria alteridade.

Neuroticamente os educadores de plantãonão aceitam essa situação de que não há sujeitoidealizado presente na relação educativa, pois decerto modo isso seria destituir-se também o serideal e, principalmente, o seu saber ser sujeito.Portanto, concluímos que toda relação educativainexiste e, paradoxalmente, existe, pois de certomodo podemos ser plenamente educados.

Uma relação crítica no campo educacionalestaria na estrutura de pensamento de que teo-ria/prática educativa não pode se sustentar nos apriori pedagógicos. Todos os problemas discipli-nares dos alunos podem ser dimensionados comouma tentativa de sinalizar sua não-existência nointerior das relações educativas, ou seja, fazem detudo para indicar a sua tênue presença peranteo outro e sua fragilidade em ser sujeito.

A não-compreensão teórica desse fato nointerior das escolas tem como conseqüência a

perda do significado do trabalho educativo e,mais propriamente, as aulas acabaram por setornar um lugar em que não acontecem as cone-xões com a cultura escolar – trocas simbólicas.Entretanto, não se pode deixar de considerar queoutros tipos de conexões, mais propriamente flu-xos, desenrolam-se na escola e esta passa a serum território para outros tipos de ensinamentosque denominamos contracultura.

Pelo fato de tanto o aluno como o pro-fessor perderem o sentido de realizar o traba-lho escolar, o ambiente escolar deixou de pro-porcionar as condições necessárias para que seocorra a prática educativa? Algo ocorre nessecampo de batalha pela existência do sujeitoeducável e, nesse aspecto, estamos nos referin-do diretamente ao campo político, pois se per-mite como resultado dessa luta apenas a exis-tência de um tipo de sujeito e que este sejaprimordialmente produtivo e permita a repro-dução da ordem social vigente. Nesse aspecto,na radicalidade, a prática educativa, como umdesencontro de sujeito, somente proporciona aprodução e reprodução das relações hegemônicasda sociedade da psicose das relações humanas.Entretanto, há algo de bizarro no encontro/desencontro de sujeitos, ou seja, não se entendeo resultado do trabalho educativo. São essesdesencontros que de certo modo abrem as fen-das no saber pedagógico e evidenciam a fragili-dade desses saberes educativos. A negação donão saber educar transparece na parte que tan-ge aos pedagogos, pois tudo aquilo que não estáem seu alcance teórico são denominados comoproblemas educativos e devem ser eliminados –nada se quer saber sobre o não saber das relaçõesentre os sujeitos no desencontro. Contudo, pormais que se faça controle da Educação não sesabe como esta funciona, portanto, uma mánotícia para os pedagogos – não se pode escon-der que entre os sujeitos da prática educativa,estando presentes ou a distância, tem-se odesencontro e, sobre isso, por mais que secontrole e se vigie, nada sabemos sobre os re-sultados das relações humanas – o desamparode não sabermos educar.

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Recebido em 23.10.06

Aprovado em 13.08.07

Rogério Rodrigues, graduado em Educação Física pela UNESP, mestre e doutor em Educação pela UNICAMP, é docenteadjunto da Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI – e desenvolve projeto aprovado pela FAPEMIG intitulado: Clínica dacultura: a educação e a crueldade.