a politizacao da natureza e o imperativo economico
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
FACULDADE DE ECONOMIA
GREMIMTGrupo de Estudo sobre Economia
Mundial, Integração Regional &
Mercado de Trabalho
“A Politização daNatureza e o
Imperativo Tecnológico”
THEOTÔNIO DOS SANTOS
Textos para discussãoSérie 1 – Nº 7, 2002
Este texto é encontrado também no site da Cátedra e Rede UNESCO – UNU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável – www.reggen.org.br
A POLITIZAÇÃO DA NATUREZA E O IMPERATIVO TECNOLÓGICO*RUA TIRADENTES, 17 - INGÁ, NITERÓI / RJ
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TEXTOS PARA DISCUSSÃO
Se algo carateriza o nosso tempo, é a relativização da importância dos
recursos naturais em função de sua utilização, cada vez mais determinada pelas
possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento da tecnologia. Ao mesmo tempo, a
mudança tecnológica se apóia cada vez mais na sua articulação com a evolução do
conhecimento científico, que a subjuga e transforma-a num campo de sua aplicação. No
espaço econômico e político, os centros de poder coincidem cada vez mais com os
centros de geração de conhecimento científico e de sua aplicação tecnológica.
Trata-se de uma mudança radical do espaço e do tempo histórico. O mundo
do conhecimento, da invenção, da inovação, do planejamento, da organização das
atividades humanas se sobrepõe ao mundo da espontaneidade, da determinação
mecânica e estrita. A é humanidade começa a acreditar que seu poder de transformação
da realidade infinito e depende somente do avanço infinito do conhecimento e dos
meios de sua aplicação.
*Resumo expandido da apresentação feita no Simpósio: O Desafio do
Desenvolvimento Sustentável e a Geografia Política. IGU/UGI/LAGET, Hotel Rio
Othon Palace, 22 a 25 de Novembro de 1995.
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Ela assume, assim, a responsabilidade de construir, criar o futuro. As leis não se
recebem mais dos céus em tábuas e são cada vez mais um resultado do entendimento
humano e do consenso entre as pessoas e os povos. Ainda quando este “consenso” seja,
na prática, muitas vezes uma imposição dos poderosos sobre os submissos,
dependentes, expropriados e/ou explorados.
O conhecimento é a base do poder, já o reconhecia Bacon e grande parte do
pensamento político contemporâneo, desde Maquiavel. Contudo, a expansão e a
organização do processo do conhecimento logrados pela ciência moderna transformam
o ato de conhecer em um processo de trabalho que implica grandes concentrações de
recursos humanos e naturais. E, ao mesmo tempo, transformam a aplicação deste
conhecimento em outro campo de atividade bem definido, planejado e organizado,
segundo a capacidade da sociedade. O Estado, as Companhias Transnacionais, as Redes
das mais distintas composições, e as Universidades e os Centros de Pesquisa são os
agentes deste processo de conhecimento cada vez mais articulado em plano
internacional.
O espaço do conhecimento é hoje universal. Ele é seguramente planetário,
chegando a todos os centros da Terra. É em parte espacial, pois o mundo dos satélites e
das naves espaciais e de uma estação orbital (a MIR) que existe há quase uma década
forma uma realidade compacta integrada ao mundo contemporâneo. Mas ele é também
cósmico, pois as informações enviadas pelas naves espaciais e as observações
astronômicas obtidas por telescópios cada vez mais poderosos alcançaram um grau
de
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acuidade e uma velocidade de informação bastante superiores à nossa capacidade
científica de processá-las.
Perigos até então desconhecidos do espaço sideral nos são hoje conhecidos e
encontramos novas relações e um comércio com o espaço sideral muito mais freqüentes
do que toda teoria pudesse mesmo imaginar. As informações obtidas no espaço sobre a
Terra transformam nossa noção do clima e se inscrevem no cotidiano de nossas vidas
através da expansão das comunicações via satélite. Descobrimos também, por esta via,
as mazelas ecológicas que nos ameaçam, como conseqüência, muitas vezes, de nosso
próprio desenvolvimento tecnológico.
Mas a descoberta e a visualização dos estreitos limites, do dinamismo e dos
precários equilíbrios dentro dos quais funciona a vida terrestre tiveram também um
forte impacto moral e intelectual. Elas aumentaram a responsabilidade da humanidade
sobre sua própria sobrevivência. Ela não só pode destruir a vida na terra através do
holocausto nuclear como também através de um conjunto de crises ecológicas globais
que comprometem a sobrevivência em geral.
A questão ecológica assumiu, assim, um caráter radical que exige do gênero
humano um esforço para administrar sua sobrevivência como espécie e a do planeta
como a única sede conhecida da vida no Universo. Dentro deste contexto macro, as
dimensões dos processos culturais anteriores tornaram-se micro-fenômenos. A questão
da criação de uma civilização planetária que garanta a convivência entre os povos, as
várias civilizações históricas e culturas tornou-se uma tarefa consciente da humanidade.
O fim da Guerra Fria, colocado como tarefa essencial do nosso tempo por uma corajosa
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lideraça do PC Soviético, que chegou à sua autodissolução como bloco mundial, como
Partido e até como União Soviética, abriu caminho para uma nova era planetária.
É neste marco que devemos situar as conferências mundiais realizadas na década
de 90. Em primeiro lugar, a Eco-Rio, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, a
Conferência sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente, que produziu acordos globais
sobre a desertificação, a exploração dos oceanos, as florestas, a biodiversidade (que
vinham agregar-se aos acordos sobre o desarmamento nuclear, a exploração pacífica do
espaço e pela não-proliferação nuclear) e que relacionou o desenvolvimento, a
eliminação da miséria e a qualidade de vida como objetivos comuns e inseparáveis.
Em segundo lugar, a Conferência Mundial sobre a População, realizada no Cairo
em 1994, que reinvindicou a necessidade de um planejamento da ocupação humana
sobre o planeta, uma política de natalidade, de emigração, de convivência entre os
povos.
Em terceiro lugar, a Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento Social,
realizada em Copenhagen, em 1995, que voltou a insistir sobre a eliminação da pobreza,
do desemprego e da exclusão social através de políticas globais de criação de empregos
e de distribuição de renda, assim como de crescente assunção pelos Estados e outras
instituições internacionais e não-governamentais da responsabilidade da promoção
social da população terrestre.
A Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1995,
retomou a problemática do planejamento familiar e populacional, integrando a temática
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da libertação da mulher das formas históricas de dominação e exploração a que foi
submetida e reinvindicando um novo sistema de relações entre os gêneros que garanta à
metade da humanidade igualdade de condições com sua contraparte, e ao mesmo
tempo proteção por sua condição biológica específica.
A próxima conferência sobre o habitat humano, a realizar-se em Istambul,
completará um ciclo de cúpulas que envolveu a participação de governos e instituições
públicas e privadas na definição das linhas básicas das políticas públicas do século XXI.
Falta, contudo, uma conferência muito difícil de realizar-se: aquela que
estabeleça um sentido unificador da espécie humana por sobre suas diversidades
étnicas, onde a noção de humanidade não seja de um ser abstrato supra-étnico, e sim de
uma síntese de diferenças étnicas, culturais e inclusive civilizacionais. A concentração
do milhão de negros em Washington chama a atenção sobre a radicalidade deste
fenômeno, já advertido na guerra civil ioguslava e outros eventos que prenunciam um
aumento da confrontação entre grandes grupos étnicos, religiosos e civilizacionais.
É neste ponto que a noção de desenvolvimento sustentável alcança seu
significado mais amplo. Desenvolvimento significa crescimento econômico equilibrado
e baseado no avanço permanente do conhecimento científico e da eficácia econômica.
Sustentabilidade implica defesa do meio ambiente para que as próximas
gerações possam sobreviver e inclusive incrementar sua qualidade de vida.
Sustentabilidade implica também a eliminação da pobreza e das terríveis desigualdades
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entre as classes sociais, os povos e as regiões do globo para assegurar um
desenvolvimento para todos.
Sustentabilidade implica, além disso, o desenvolvimento de padrões de conduta,
relações sociais e institucionais, de poder e governabilidade mundiais que respeitem as
diferenças étnicas, culturais e civilizacionais, procurando incorporar numa civilização
planetária os aportes de todos os povos a uma convivência planetária pacífica, aprazível
e feliz, com respeito às diferenças.
Esta civilização planetária terá que fundar-se, pois, numa política de incremento
de desenvolvimento global e sustentado da humanidade. Ela terá que incorporar as
potências de conhecimento de vários povos e regiões. As formas de adaptação às
condições ecológicas e históricas que as várias culturas e civilizações desenvolveram
devem ser respeitadas para se produzir um verdadeiro conhecimento universal.
O paradigma científico e cultural da civilização ocidental pretendeu representar
a forma mais abstrata, universal e definitiva de conhecimento. A Razão Universal
pretendeu substituir a dinâmica histórica e concreta do processo de conhecimento.
Envolvida na arrogância de suas conquistas, chegou mesmo a eleger categorias
analíticas e conceitos historicamente limitados, próprios de certos povos e regiões,
como formas finais de conhecimento e modelos para a humanidade. Os limitados
conceitos de tempo e espaço newtonianos, onde a vida, o calor ou a história não tinham
lugar, os conceitos de racionalidade econômica ou (de maneira mais abstrata) de
racionalidade em geral, entendida como adequação dos meios aos fins, que
caracterizaram o despertar da civilização européia, foram transformados em princípios
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universais intocáveis. Num conseqüente processo de afirmação dos instrumentos sobre
os fins, o pragmatismo terminou sendo a forma final de manifestação desta
racionalidade a serviço do poder e da dominação que levou ao abandono da reflexão
teórica e da abstração pura. De fato, os modelos matemáticos (ainda mais pragmáticos
que os tipos ideais de Max Weber) substituem a reflexão teórica e pretendem ser a
forma final da ciência, negando, é claro, o turbilhão de transformações conceituais,
metodológicas e teóricas que o avanço do conhecimento vem produzindo.
Não seria aqui o lugar de fazer uma história desta aventura intelectual que se
expressou no projeto de modernidade e que se confundiu com o eurocentrismo, a
dominação colonial e imperialista e hoje com o processo de globalização centralizado
na tríade Europa, EE.UU. e Japão, ou no máximo no Grupo dos Sete mais um - a
Rússia.
Mas é fato que este processo de modernização hegemonizado pelo capital se
confundiu com o progresso e hoje com o desenvolvimento. Mas ele produziu, de fato,
um sistema mundial onde os poderes centrais dominam zonas periféricas ou
dependentes e onde alguns espaços econômicos ocupam uma posição de semi-periferia.
Este sistema mundial se baseou numa divisão insternacional do trabalho entre
zonas industriais e manufatureiras, de um lado, e produtores de matérias primas,
minerais preciosos e produtos agrícolas, do outro. A elaboração industrial destes
últimos nos países coloniais e dependentes sempre foi a mínima possível. Com esta
limitação material comercial, se estabelece a limitação do desenvolvimento tecnológico
e científico nas zonas coloniais e dependentes. Se na época das colônias tais limitações
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eram ordenadas por lei, nos períodos pós-coloniais continuaram sob a forma de uma
bateria de coações econômicas, restrições ideológicas e doutrinárias que encontraram no
sistema acadêmico e nas instituições internacionais excelentes aliados.
Depois da II Guerra Mundial, e particularmente entre os anos 70 e 90, o Banco
Mundial e o FMI vêm exercendo esta função de limitadores do desenvolvimento das
antigas colônias e países dependentes com extremada perícia e eficiência. Eles
impingem a estes países modelos de gestão econômica altamente restritivos que nenhum
país dominante aceitaria, acompanhados da pressão exercida pelo controle dos meios
internacionais de produção e circulação da riqueza, basicamente da tecnologia e do
conhecimento. E desestimulam a formação nos países dependentes de meios intelectuais
e institucionais que lhes permitam desenvolver suas próprias soluções tecnológicas, em
geral mais adaptadas ao seu ambiente ecológico (geralmente tropical ou subtropical em
oposição aos sistemas temperados e subtemperados onde se desenvolveram as soluções
energéticas, arquitetônicas e tecnológicas aplicadas nos países centrais).
O imperativo tecnológico é, assim, manipulado e condicionado pelas estruturas
de poder mundial. Elas politizam a natureza em função de seus objetivos de poder. E se
servem de enorme acumulação histórica de conhecimentos voltados para sua realidade
ecológica e para a dominação do mundo para privar os demais povos e setores sociais
destes instrumentos de poder.
Mas este comportamento e estas estruturas de dominação confrontam-se hoje
com as dimensões globais do desenvolvimento, com a interligação profunda entre todas
as regiões da Terra. O princípio que pretende ordenar este complexo jogo de interesses
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seria o livre mercado, cuja mão invisível asseguraria a racionalidade e as melhores
condições de assignação dos recursos mundiais.
Contudo, a humanidade não pode confiar num princípio que conduziu até agora
ao aumento da distância entre os grupos sociais, étnicos e nacionais, as classes sociais e
as nações e que ameaça com o caos e a guerra a conservação da espécie humana. O
aumento progressivo do conhecimento puramente instrumental que orienta esta
estrutura de poder e este sistema mundial é mais uma ameaça do que uma solução.
Contra a visão neo-liberal, que confia cegamente nas soluções do livre mercado,
vêm se levantando estas conferências internacionais, os movimentos e as forças sociais
que buscam uma solução pacífica para os conflitos, a desigualdade e as formas sociais
anti-humanas.
Que princípio triunfará? O da ação consciente da humanidade, que busca
subordinar o imperativo tecnológico aos objetivos humanos, submetendo a eles a ação
da mão invisível, que entrega a solução dos problemas humanos a uma ente abstrato e
desconhecido, um mito arcaico disfarçado de deus da modernidade.
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