a pele negra como aporte mnemÔnico de identidades no sÉc. xx: uma anÁlise do lugar e dos lugares...

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A PELE NEGRA COMO APORTE MNEMÔNICO DE IDENTIDADES NO SÉC. XX: UMA ANÁLISE DO LUGAR E DOS LUGARES DE NEGRO EM IMAGENS DIDÁTICAS Túlio Henrique Pereira 1 Resumo: A partir de um campo interdisciplinar possibilitado pela memória, em convergência com a história das mentalidades e dos postulados da História Nova, foi possível acionar, através da observação e análise de corpus literário, imagético e midiático, as práticas e memórias do negro brasileiro no cotidiano dos séculos XIX e parte do XX. A pele e as sensibilidades do negro servem, portanto, como referências para o estudo de uma sociedade que identificou e determinou papéis sociais, primeiro por princípios da religião católica cristã e, posteriormente, pela repersonalização e epidermização do sujeito determinado por uma identidade com referência de sua condição de escravo, e de sua posição de inferioridade ao longo da história do Império até a instauração da República no Brasil. Palavras-chave: Memória, História, Identidade Negra, Literatura, Iconografia. OS LAÇOS EM TORNO DAS QUESTÕES HISTÓRICAS E TEÓRICO- METODOLÓGICAS SOBRE NEGROS É a partir de um olhar, a priori, antropológico, que se delineiam os conceitos acerca do negro neste estudo. Estudo que também se baseia na teoria da História Nova e se pauta na amplitude da análise histórica e, fundamentalmente, nas questões em torno das memórias. Dentro desta visão, não há a preocupação, embora respeitando questões metodológicas, em restringir-se a um conceito único sobre o negro no Brasil, especificamente na Bahia, que se encerre em si, pois se entende a memória como dispositivos e variações sistemáticas manifestadas dialeticamente e, com isso, permitir o dialogismo dos conceitos e sua aplicabilidade de acordo com os períodos retratados e os objetos que são colocados em análise. 1 Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB/Fapesb). E-mail: [email protected].

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A partir de um campo interdisciplinar possibilitado pela memória, em convergência com a história das mentalidades e dos postulados da História Nova, foi possível acionar, através da observação e análise de corpus literário, imagético e midiático, as práticas e memórias do negro brasileiro no cotidiano dos séculos XIX e parte do XX. A pele e as sensibilidades do negro servem, portanto, como referências para o estudo de uma sociedade que identificou e determinou papéis sociais, primeiro por princípios da religião católica cristã e, posteriormente, pela repersonalização e epidermização do sujeito determinado por uma identidade com referência de sua condição de escravo, e de sua posição de inferioridade ao longo da história do Império até a instauração da República no Brasil.

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Page 1: A PELE NEGRA COMO APORTE MNEMÔNICO DE IDENTIDADES NO SÉC. XX: UMA ANÁLISE DO LUGAR E DOS LUGARES DE NEGRO EM IMAGENS DIDÁTICAS

A PELE NEGRA COMO APORTE MNEMÔNICO DE IDENTIDADES NO SÉC.

XX: UMA ANÁLISE DO LUGAR E DOS LUGARES DE NEGRO EM

IMAGENS DIDÁTICAS

Túlio Henrique Pereira1

Resumo: A partir de um campo interdisciplinar possibilitado pela memória, em

convergência com a história das mentalidades e dos postulados da História Nova, foi

possível acionar, através da observação e análise de corpus literário, imagético e

midiático, as práticas e memórias do negro brasileiro no cotidiano dos séculos XIX e

parte do XX. A pele e as sensibilidades do negro servem, portanto, como referências

para o estudo de uma sociedade que identificou e determinou papéis sociais, primeiro

por princípios da religião católica cristã e, posteriormente, pela repersonalização e

epidermização do sujeito determinado por uma identidade com referência de sua

condição de escravo, e de sua posição de inferioridade ao longo da história do Império

até a instauração da República no Brasil.

Palavras-chave: Memória, História, Identidade Negra, Literatura, Iconografia.

OS LAÇOS EM TORNO DAS QUESTÕES HISTÓRICAS E TEÓRICO-

METODOLÓGICAS SOBRE NEGROS

É a partir de um olhar, a priori, antropológico, que se delineiam os conceitos

acerca do negro neste estudo. Estudo que também se baseia na teoria da História Nova e

se pauta na amplitude da análise histórica e, fundamentalmente, nas questões em torno

das memórias. Dentro desta visão, não há a preocupação, embora respeitando questões

metodológicas, em restringir-se a um conceito único sobre o negro no Brasil,

especificamente na Bahia, que se encerre em si, pois se entende a memória como

dispositivos e variações sistemáticas manifestadas dialeticamente e, com isso, permitir o

dialogismo dos conceitos e sua aplicabilidade de acordo com os períodos retratados e os

objetos que são colocados em análise.

1 Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

(UESB/Fapesb). E-mail: [email protected].

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O negro brasileiro, visto por muitos como uma minoria, não participou

ativamente das representações da historiografia nacional, a não ser como o símbolo do

escravo subserviente, de modo que suas referências simbólicas não alcançaram a

imagem e um lugar edificante para as gerações pertencentes ao regime independente e

republicano no País. Esse acontecimento se deve, senão pelo “fato de que quase todos

os relatos históricos foram feitos por brancos, os quais, muitas vezes, sustentavam as

versões que lhe interessavam” (ERMAKOFF, 2004, p. 14), ao menos pela incorporação

dos sujeitos negros na aceitação de uma identidade corporal e mental, entendida como

inferior e, por isso, marginal à condição de civilidade, atribuída e determinada pelo

gobinismo e darwinismo social surgidos na Europa no século XIX2.

Foi, talvez, por essas razões, em consonância com as análises da questão racial

na esfera macro dos estudos acerca da questão negra que, ao atribuir mais de três

séculos de apagamento e difusão de conceitos identitários equivocados sobre o sujeito

negro, que muitos incorrem no pensamento de Nina Rodrigues (RODRIGUES,

1932/2008)3; ele um médico legista brasileiro, que embora maranhense trabalhou muito

tempo na Bahia. Também foi um dos principais antropólogos, estudioso da cultura

africana, difusor do darwinismo no País, afirmou em relação à

raça negra [na Bahia], que fundamentou com seu suor a argamassa de

nossa nação e independência, não apenas predominava em números em

relação a brancos e índios como já preparava, diluída na miscigenação,

o predomínio que lhe caberia na direção do futuro povo. Ela possui

legitimamente o direito de ser devidamente reconhecida (RODRIGUES,

2008, p. 28).

A partir dos equívocos em que incorreram os livros didáticos do século XX que

traziam a discussão sobre raça e condição humana no século XIX, não se pode esquecer

que teoricamente, paralelo à inexorabilidade educacional, foram várias as contribuições

em prol da visibilidade histórica dos sujeitos negros no Brasil nas ciências humanas e,

2 Conde Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882). No século XIX, Gobineau publicou sua principal obra

“Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” (1858). Nela ele nos apresentou a tese que legitimaria a

superioridade inata das raças brancas e suas variações sobre todas as outras não-brancas (BUONICORE,

2005). Considera-se também que as concepções em torno de uma ideia de inferioridade do negro, assim

como o seu caráter assassino foram influenciadas principalmente pelas ideias difundidas por Lombroso,

que acreditava que, pela análise de determinadas características somáticas seria possível antever os

sujeitos que se voltariam para o crime. Entretanto para Darwin a expressão “concorrência vital” não

possuía conotação ideológica, portanto, o melhor e mais apto não significava ser o melhor em si, mas

aquele que encontrasse meios favoráveis para sua sobrevivência (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p.

62). 3 O livro teve sua primeira editoração póstuma à morte do autor em 1932, entretanto foi escrito entre o

período de 1890 até 1905, aproximadamente.

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também, nos estudos encabeçados pela medicina acerca do tema nos séculos

supracitados. Contudo, são estudos que se basearam em características específicas e,

muitas vezes, responsáveis por unificar a compreensão étnica do que seria ser negro, a

partir de determinantes biológicas, religiosidade, folclore, determinantes culturais do

espetáculo dos ritos negros e dos estudos de reminiscências territoriais quilombolas,

propondo certos resgates e impondo uma identidade africana, muitas vezes,

desconhecida pelo próprio negro brasileiro, que se constituiu, não apenas de uma

miscigenação étnica estabelecida, compulsoriamente, com o europeu e o nativo

nacional, mas, também, pela pluralidade étnica da África.

E por mais que essas abordagens, restritas aos seus simbolismos e ritos, resultem

em amplas e ricas fontes de pesquisa, continuam sendo muitos os desafios para esse

estudo, sobretudo, a história recente sobre os negros brasileiros, vê-se atrofiada aquilo

que Santos (2002) considerou a condição negra como objeto, numa visão distanciada, e

o negro como sujeito, numa atitude compromissada. Esses estudos, incluindo o ensaio

Casa Grande & Senzala, de Freyre (1933/2004) servem para compreensão de conceitos

como hibridismo racial, miscigenação e estruturalismo social e raça4. Porém, em sua

maioria, entende-se, neste estudo, que os autores, com exceção de Gilberto Freyre com

sua análise metodológica na linha da história cultural, estabeleceram uma ideia de

dominação e assujeitamento baseados nas teorias darwinistas reminiscentes de estudos,

em torno da antropologia física e antropometria, sem a inserção das sensibilidades e da

memória do negro, tratando-o meramente como um objeto de valor histórico

marginalizado, e, porque não, folclórico5.

Utiliza-se a obra literária para relatar e analisar as representações mnemônicas

das identidades negras no País, por se considerar a literatura nacional um marco

4 A produção de saberes em torno da causa negra esteve muito ligada aos movimentos nacionalistas

incorporados a partir da década de 1989 no Brasil até a inserção de uma nova ordem promulgada no novo

século. A principal obra de Gilberto Freyre “Casa Grande & Senzala”, editada pela primeira vez em 1933

é parte inerente de uma ideia de socialismo compartilhada por parte da população brasileira, ávida pelo

direito comum e ao mesmo tempo político de seus sujeitos, assim como pela venda de uma imagem

corporificada as questões de igualdade racial e de valorização dos patrimônios nacionais, como a fauna e

a flora para o exterior. 5 Como exemplo desses autores tem-se Freyre (1933/2004) ao mostrar em sua obra que muitos estudos

em torno dos negros no Brasil se limitavam as questões acerca da escravidão e das relações patriarcais

determinada pelo branco. A exemplo desses estudos tem-se Brookshaw (1983) ao explicar a abolição no

Brasil como um fenômeno puramente de interesse capital e exemplificar a relação senhor – escravo em

torno de considerações fetichistas; também, Nina Rodrigues (2008) ao propor em seus estudos um

método no qual se determina a partir da observação e da comparação o comportamento e as habilidades

dos africanos no Brasil; assim como Rabassa (1965) ao discorrer em suas pesquisas sobre a mobilidade e

a liberdade atribuída aos escravos, bem como de uma convivência amena na relação senhor – escravo ao

compará-la com outros países da América e Europa. E, também, Arthur Ramos (1943) por falar sobre

padrões culturais de dominação, entre outros.

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sociocultural no século XIX, elevada pela transição do Império para a República, pelos

movimentos abolicionistas encabeçados por escritores, jornalistas, artistas negros e

mestiços forros, muitos deles desconhecidos pelo grande público, e outra boa parte

utilizada como mote e inspiração para romances6. Sendo assim, a obra literária é tomada

como a expressão da individualidade de seus autores, em manifestação social e coletiva

de suas ideologias e necessidade de denúncia de acontecimentos sócio-históricos de

uma sociedade que se configurava.

Acredita-se nesse estudo que Adolfo Caminha (1895/2001) foi um dos primeiros

autores a inserir o negro, em um romance nacional, no centro de sua narrativa, de forma

que não se tratava de um mestiço, ou de um porta-voz de pele branca e sangue negro,

como foi proposto em A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães (1875/2005).

O cenário do romance de Caminha (1895/2001), ao contrário da representação

bucólica e escravocrata do ambiente rural no Brasil de Guimarães (1875/2005), é a

Marinha Nacional e a cidade do Rio de Janeiro, segundo uma ordem física e política,

representada pelo poder militar, de uma população que testemunhava a transitoriedade e

o estabelecimento de seus novos valores.

O Rio de Janeiro, portanto, na amplitude de seu território, diferente do território

baiano, foi descrito pela literatura, iniciada de uma incursão intertextual, na qual a vida

e a obra de seu autor se entrecruzavam, promovendo o diálogo entre os fatos e as

memórias. A escolha do Rio de Janeiro se deveu, inicialmente, à seleção da obra de

Caminha (1895/2001) e, em seguida, a de Lima Barreto (BARRETO, 1989/1992),

recorrendo ao seu status de capital entre os séculos XVIII e XIX, principalmente, por se

tornar a sede do Vice-reino português, ou seja, o lugar onde o amálgama colonial

determinou o cotidiano e a posição de seus sujeitos, seja pela presença da sede da Corte

Portuguesa, a partir de 1808, seja pelo avanço das culturas da cana-de-açúcar, da

pecuária ou até mesmo pela sua reputação de segundo maior porto de entrada da mão-

de-obra escrava no território imperial. Efetivamente, a relevância das obras propõe,

comparativamente, olhares sobre a presença do negro em Salvador e no Rio de Janeiro,

e vincula-se ao fato de ser o Rio de Janeiro a capital do Império Colonial7 até 1822 e a

sede da decadência política do seu regime, o processo de Independência e, no decorrer

6 Algumas das personalidades negras a compor o imaginário da luta étnico-racial no Brasil foram:

Machado de Assis (1839-1908), Francisca da Silva de Oliveira ou Chica da Silva (c. 1732-1796), Juliano

Moreira (1873-1933), responsável por discordar de Nina Rodrigues quanto à suposta contribuição

negativa dos negros na miscigenação brasileira, e o mais antigo e mítico Zumbi dos Palmares (1625-

1695) 7 Antes da República houve o regime Imperial, com Imperador, por pouco tempo português e, depois, por

Imperador brasileiro.

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do século XIX, pelo advento da República, justificada pelo fato de terem sido, ambas,

capitais, portos e também territórios escravagistas.

Foi nesse contexto que o personagem Amaro, da obra de Caminha (1895/2001),

se tornou homem escravizado devido à cor escura de sua pele, condição social e

mentalidade e, também, por suas afeições, que o levaram a questionar todas as regras e

se rebelar contra a ordem hierarquizante que se estabelecia, há muito, à sua volta, como

o regime escravocrata e os limites oferecidos às populações negras e mestiças. Portanto,

o desejo de abordar, principalmente, o campo das sensibilidades e memórias do negro e

seus matizes, se deu graças a todas essas percepções do citado romance.

O LUGAR E OS LUGARES DOS NEGROS EM IMAGENS DIDÁTICAS

No Brasil, o eurocentrismo, com suas origens na Europa a partir do século XVIII,

tomou proporções mais complexas, a fim de definir identidades e demarcar posições

sociais, que hierarquizavam de modo sociocultural os sujeitos de acordo com suas

origens e etnia. Para Mattoso (1980), o escravismo no Brasil introduziu no negro a

dúvida sobre sua imortalidade, conforme era proposto o discurso religioso da época, e

anulou o exercício do negro de ter vontade própria.

Depois, as duras etapas da reconquista de uma personalidade adaptada,

com mais ou menos êxito, às limitações da sociedade de adoção, corpo

social de dupla estrutura, no qual coexistem de modo original as

comunidades negra e branca. A sociedade brasileira em nada se parece

às suas vizinhas, também escravistas, das Antilhas e do sul dos Estados

Unidos (MATTOSO, 1990, 12).

O exemplo da gravura, a seguir, representa as três matrizes étnico-raciais (Ilust.

1), que formaram a população nacional brasileira, classificadas pelos etnógrafos do

século XIX, a exemplo de Rodrigues (1932/2008), pautados nas teorias deterministas e

redefinidas pelos estudos de Freyre (2004, p. 80-81): “a partir de 1532, a colonização

portuguesa do Brasil [...] caracteriza-se pelo domínio quase exclusivo da família rural

ou semi-rural [...] constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América”.

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Este acontecimento histórico apenas reiterou o arcabouço fenomenológico que

passou a definir a identidade hierárquica no Brasil, desde os primórdios do século XVI,

no qual se teve, sob influência portuguesa, a utilização de africanos para o trabalho no

eito e o abandono ou extermínio dos ameríndios, por serem considerados preguiçosos e

inconstantes8.

Segundo Depestre (1980, p. 3), há, em torno dessa memória fatual, “a base

eurocêntrica a postular como direito divino a identidade do conceito tipicamente

colonial de “branco” e o de ser humano universal”, todavia considera-se, em caráter de

correção ao conceito do direito divino, que este era tomado exclusivamente pelos reis da

Idade Antiga e Média. Portanto, neste estudo, compreende-se esse direito como uma

reivindicação hierárquica da estrutura social, colocado no centro da gravura, em que se

encontra o personagem caracterizado como o português, ladeado pela representação do

negro à sua direita e do ameríndio à sua esquerda, ambos em segundo plano.

A gravura, retirada de um livro didático de história, do já referido autor Hermida

(1958), direcionado a crianças do então ensino primário, reforçava o imaginário

coletivo, que se baseou na imagem do negro e do ameríndio, enquanto representações

de exotismo, selvageria com fenótipos grotescos, estigmas servis e até animalescos,

8 Em Debret (1968, p. 58-59) essa inconstância do índio brasileiro se dava por uma questão de

necessidade, quando alguns grupos, especialmente os domadores de cavalos “eram obrigados a variar de

pastagens quando estas se mostravam incapazes de sustentá-los”.

Fig. 1 – As três raças.

Fonte: (HERMIDA, 1958, p. 2)

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endossando a ideia de centralidade aos descendentes do hemisfério Norte e

marginalidade aos componentes dos grupos não-brancos. Essa observação é mais latente

quando, a partir de uma análise iconológica, observa-se a justaposição das mãos do

português, dadas aos dois, para que eles as tomassem em sinal de benevolência

recíproca e, nas palavras do próprio Freyre (1933/2004), num símbolo de harmonia

entre as raças. No mais, embora a tentativa possa ter sido a simulação de uma ciranda de

roda, a disposição em que estão figurados o negro, o branco e o ameríndio leva à

possibilidade de que ambos estivessem sobre um pódio olímpico, atestando suas

conquistas.

A protuberância excessiva do nariz e dos lábios, a extensão das orelhas, os pés

descalços, as leves sombras, contornando os braços e as bochechas, a exemplo de

sujeira, as roupas com remendos, o colete de pano remendado igual às calças, assim

como as correntes a formar o libambo9, sobreposto ao corpo do negro são, em seu

conjunto, a personificação unificada de um estereótipo utilizado pelo mundo branco e

por suas populações híbridas e emergentes na história do Brasil. Esse estereótipo foi

retomado insistentemente, ao longo do tempo pela historiografia das Américas, para

mitificar mnemonicamente os descendentes de africanos, com suas variações étnicas, de

forma pejorativa e exterior a compreensão de civilidade concebida pelas leis e ética

brancas.

Esta consciência racial, imposta pelos brancos, partindo da hierarquização social

exclusivamente promovida pela colonização, permite endossar o pensamento de

Depestre (1980, p. 12) ao dizer:

A colonização roubou assim, aos africanos deportados para a América,

seu passado, sua história, sua confiança elementar neles mesmos, suas

lendas, seu sistema familiar, suas crenças, sua arte. Mesmo a beleza de

sua pele foi transformada em fonte permanente de frustração, em

obstáculo intransponível entre a situação genérica que lhes foi fabricada

com todas as peças e sua realização na história e na sociedade. A

reificação e a alienação transbordavam da trama econômica e social do

trabalho servil para penetrar pelos poros do negro até às estruturas

viscerais de sua personalidade feita em pedaços. Esta apavorante

9 Libambo s. m. Bras. tem origem no quimbundo lubambo, ou seja, corrente. Segundo as descrições

destes objetos realizadas por (BILIER, 1997), trata-se de toda espécie de corrente que prendia o escravo.

No Brasil, esse instrumento serviu para prender o pescoço do escravo numa argola de ferro, da qual saía

uma haste longa, também de ferro, colocada para cima, ultrapassando o nível da cabeça do mesmo. A

haste mantinha um chocalho, que alertava se o escravo tentasse fugir. Outra forma de libambo, com

pontas retorcidas, se prendia em galhos de árvores do mato, dificultando a fuga do escravo (MATTOSO,

1990).

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pressão desculturalizante é responsável pela medíocre opinião que os

homens e as mulheres das Áfricas e das Américas “de cor”, durante

muito tempo, tiveram de seus corpos, de seus sentimentos e de sua

identidade, na história das civilizações (DEPESTRE, 1980, p. 12 grifos

do autor).

Pautados por uma memória que se calcificou e prendeu o sujeito a uma estrutura

social que o identificou enquanto sujeito, levou o outro a conceber a ideia de centro

essencial do eu em sua totalidade de consciência, ação e razão, conforme propuseram as

bases conceituais do Iluminismo. Esse sujeito, ainda que aparentemente imóvel, foi

marcado por suas práticas e pelo diálogo contínuo com os mundos culturais que o

exteriorizou e o conectou, enquanto agente de seu próprio caráter, estabelecendo sua

política, a pluralização ou unificação identitária.

O negro, entretanto, significado pelo mundo de concepção branca, encontrava-se

dogmatizado em seu próprio juízo, sujeitado externamente por um fenômeno que, mais

adiante, foi destacado como introjeção.

No Brasil, o efeito da estrutura social, erguida pela colonização, herdou um

sentimento de genuinidade étnicorracial à sociedade baiana do século XIX, resistindo

principalmente na memória dos sujeitos que se classificam como brancos. Evidenciando

uma política hierarquizante mais sólida, e excludente que a ocorrida durante o período

português na Bahia. A pequena elite social branca, em busca do seu status de

dominação tentou estabelecer a sua diferenciação em relação ao mestiço, ameríndio e

negro, buscando insistentemente raízes do hemisfério Norte ou descendências europeias

para valorização sanguínea e distinção social das miscibilidades instauradas.

Segundo Freyre (1933/2004, p. 70), os resultados mais diversos da miscigenação

portuguesa criaram “figuras com ar escandinavo e negróide”, fazendo com que a

formação da sociedade brasileira sofresse, não apenas de uma mistura historicamente

formada pela colonização, mas também, de antagonismos que a transcenderam,

colocando em controvérsia o desejo de isenção híbrida, seja do lado africano ou

aparentemente branco. “É certo que através de muito maior miscibilidade que os outros

europeus: as sociedades coloniais de formação portuguesa têm sido todas híbridas, umas

mais, outras menos” (FREYRE, 2004, p. 73).

O exemplo abaixo retirado da tela do pintor italiano Andrea Mantegna (1431-

1506) representa a deusa da mitologia Minerva expulsando os Vícios do Jardim da

Virtude (1502).

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O exposto permite o acesso a uma memória que reitera a ideia de bestialidade

atribuída ao negro neste contexto europeu, cristão e mitológico.

Vê-se no recorte a representação de um personagem de pele escura e corpo

formado por uma cabeça de símio e partes inferiores com membros humanos. Na parte

esquerda é de fácil percepção a presença de um seio e a ausência deste na parte direita

do busto. O ventre é detalhadamente masculinizado e a ausência de um dos seios leva a

pensar que se trate de um hermafrodita. Na composição geral da tela anexa, têm-se

inúmeros elementos sendo expulsos do paraíso por Minerva com a ajuda de anjos alados

e outras figuras mitológicas, assim como de inúmeros vícios representados por uma

diversidade de personagens. Mas, o percurso desta pequena análise se concentra,

portanto, no único elemento simiesco que, segundo Salmazo (1996/2004) se trata do

ódio imortal representado na figura do personagem simiesco, localizado na parte

inferior do centro da tela dentro do lago, carregando sobre os ombros, as sementes do

mal e do mal extremo.

A religião cristã católica, praticada por muitos descendentes do hemisfério

Norte, serviu para nivelar o grau de desenvolvimento e/ou capacidade de assimilação

dos povos. Para os europeus, a possibilidade de apreensão da ideologia monoteísta do

catolicismo atestava ao homem o controle que este exercia sobre sua sensualidade, ou

seja, seus impulsos. Os africanos, em sua maioria, contemplavam religiões animistas,

Fig. 2 Andrea Mantegna (1431-1506). Minerve chassant les Vices de Jardin

de la Vertu (1502). Fotografia nossa. Museu do Louvre, Paris, França. 2011

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embora na visão de Rodrigues (1932/2008) fossem animistas, ou preferiam ritos

naturais que lhes apresentavam crentes de suas sensualidades e gozos, muitas vezes

voltados à natureza de seus corpos e à própria fauna e flora terrestres. Querino (1938, p.

60) ao considerar que “o africano é espírita de natureza e, como tal, provoca

invocações”, generalizou os africanos a partir uma única prática religiosa, entretanto,

Arthur Ramos, em nota na mesma edição, ponderou a afirmação do autor e acrescentou

que a prática do espiritismo entre parte do povo negro-brasileiro, foi resultado de um

sincretismo secundário no Brasil.

Segundo Querino (1938, p. 47), no Brasil, a resistência da conversão era

característica mais presente nos negros transplantados da África que nos índios, pois

considerou:

O africano já trazia a seita religiosa de sua terra; aqui era obrigado, por

lei, a adoptar a religião catholica. Habituado naquella e obrigado por

esta, ficou com duas crenças. Encontrou no Brasil a superstição,

consequencia fatal aos povos em sua infancia. Facil lhe foi acceitar para

cada moléstia ou acto da vida um santo protector [...] Dest’arte não teve

o africano difficuldade em encontrar uma como semelhança entre as

divindades do culto catholico e os idolos do seu feiticismo, conforme o

poder milagroso de cada um (sic)

Para Vernant (1986, p. 55), a igreja utilizou da imagem de seus ritos para tomar

como pagão qualquer deus que se aproximasse do homem comum, e que não tinha a

divindade determinada pelos seus próprios padrões de acordo com sua própria natureza

construída, “assim a Igreja chama esses deuses de falsos deuses, em exaltação aos seus

próprios deuses”. O personagem simiesco representado por Mantegna (1431-1506)

remete à memória que exemplifica essa ideia mítica do homem selvagem de religião

pagã, senão simplesmente selvagem.

A PELE NEGRA COMO APORTE MNEMÔNICO DE IDENTIDADES NO SÉC. XX

Em todo o processo histórico brasileiro, implantou-se um amálgama social da

opacidade, responsável pela unificação de identidades negras, muito diferentes de suas

ascendências e que, assim, se tornaram desconhecidas pela maioria de seus

descendentes biológicos.

A forma com que os herdeiros negros são vistos no mundo brasileiro, a partir do

século XX, se distancia largamente das inúmeras possibilidades étnico-identitárias

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apresentadas por Nina Rodrigues (RODRIGUES, 1932/2008). Segundo o etnógrafo, o

quadro de raças africanas, transplantadas para o Brasil, excede aos relatos documentais

dos quais poucos pesquisadores mantêm sob sua guarda, bem como as deduções sobre

suas etnias e registros perdidos sem que fossem estudados ou reconhecidos.

A população negra, antes da declaração oficial da abolição escravista de maio de

1888, não era considerada como componente da sociedade brasileira, mas, sim, como

coisa, propriedade do senhor, e, por isso, relacionada entre os bens, embora contasse

como mão-de-obra forçada e, portanto, como componente da população, visto que não

havia trabalhadores suficientes para os trabalhos da época (FLEXOR, 2006). O status

de membro da sociedade era exclusivo dos portugueses ou estrangeiros europeus. E

mesmo depois da abolição, a população negra e mestiça, fruto da miscibilidade

portuguesa com as etnias africanas e ameríndias, continuaram sendo tratadas como

coisa. A nacionalidade oficial foi estendida a todos os nascidos no Brasil e aos que, por

muitos anos, decidiram se manter nas terras conquistadas.

O negro brasileiro, responsável durante séculos pelo eito nas lavouras de cana-

de-açúcar, cacau, café, pela lida com o gado, transportes, e até mesmo pelas

responsabilidades domésticas na casa dos senhores de engenho e de suas sinhás, foi

tomado como um sujeito moroso pela literatura a partir da etnografia do século XIX até

a primeira metade do XX10

. Sua possível incapacidade de evoluir, ou assimilar o

modelo branco de civilização, foi constantemente colocada em pauta nos livros de

estudo, iconografias, literatura e nas anotações dos viajantes como o etnógrafo Pierre

Verger (1902-1996), o fotógrafo Augusto Stahl (1828-1877), o fotógrafo teuto-

brasileiro Alberto Henschel (1827-1882), e o pintor francês J. B. Debret (1768-1848).

As experiências construídas ao longo dos séculos XIX e XX por esses

personagens-autores remontam às memórias dos corpos dos deuses inferindo nos

homens através da religião Cristã, o caráter do Sagrado, identificado entre e nos sujeitos

comuns, num sentido hegeliano, o “polimorfismo” do corpo de Cristo significativo de

um tipo de existência na qual coexista o ser-em-si-e-por-si que se identifica com a

existência-por-e-no-outro (MOINGT, 1986).

10

Veja o exemplo estereotipado das personagens Saci, Tia Anastácia e Tio Barnabé do livro “Viagem ao

céu e Saci” (1956), do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948); o ex-escravo Raimundo de “Iaiá

Garcia” (1878) de Machado de Assis (1839-1908), que após a liberdade preferiu continuar prestando os

mesmos serviços ao seu senhor, assim como o personagem Anastácio, ex-escravo que continuou ajudando

o patrão sem grande consideração, de “O triste fim de Policarpo Quaresma” (1915), de Lima Barreto

(1881-1922), e o personagem mestiço, acusado de ser mentiroso e mole, em razão do sangue africano,

Mané Candieiro, do mesmo livro.

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É, portanto, desta significação do Sagrado “ao meditar sobre a encarnação que

Hegel fará da conjunção do amor e da morte o princípio constitutivo da pessoa como

transposta de si em direção ao outro e do retorno a si por identificação no outro”

(MOINGT, 1986, p. 80, tradução nossa),11

que se estabelece o elo entre o passado e o

presente, bem como da concepção de civilidade europeia onde, a partir das concepções

de Shoupenhauer (2005), foi possível pensar o sujeito que se reconhece enquanto sujeito

no mundo que ele representa para si. E é da mesma forma que se percebe a ordem e a

dissociação de uma cultura como a europeia, de outra, como a africana. Deste modo, é

possível refletir acerca da supervalorização dada ao homem europeu e sua cultura no

Brasil dos séculos XIX e XX, em detrimento da opacidade da cultura africana, cujos

representantes transplantados para o território do Brasil foram significativos em

número, mas que, no entanto, não significavam a dignidade do corpo oficial cristão.12

Tem-se, a partir de então, o reconhecimento do europeu para consigo e a

dissociação deste para com qualquer outro povo que não faça parte do seu corpo. E este

corpo, conforme Moingt (1986), é visto como uma noção possível de ser interpretada

como categoria histórica dentro do imaginário que trata de decifrar no interior de uma

cultura particular definindo as funções que ela assume e as formas que ela reveste; neste

estudo, se consistem na pele seus matizes e suas sensibilidades.

São as representações, tomadas no século XX como coletivas, que chamam

atenção para o modo com o qual foi construído o corpo negro partindo da sua

epidermização e, sua identidade, unificada e inerente a seus atributos físicos, à sua

condição escrava e de subserviência. Fazendo-se necessário, ao menos, uma breve

observação iconográfica de alguns modelos de negro inscritos no cenário brasileiro da

Bahia do século XX, após a instauração da República.

11

No texto original de Moingt (1989, p. 80) lê-se : “...Et c’est em méditant l’incarnation que Hegel fera

de la conjonction de l’amour et de la mort le principe constitutif de la personne comme sortie de soi vers

l’autre et retour en soi par l’identification à l’autre.” 12

O discurso religioso acerca do corpo divino contribuiu para que se fizesse a relação do elemento

humano que se reconhece em si através do outro, ou se distancia de si a partir da dissociação que é feita

do outro. Ao utilizar o exemplo do sagrado tem-se de um lado a divinização do Deus Cristão e o

paganismo, atribuído pela civilização cristã, aos deuses africanos. Conforme Moingt (1989) a Igreja

utiliza da imagem de seus ritos para tomar como pagão qualquer Deus que se aproxime do homem

comum, e que não tenha a divindade determinada pelos seus próprios padrões de acordo com sua própria

natureza. Assim a Igreja chama esses deuses de falsos deuses em exaltação aos seus próprios deuses.

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Vê-se à esquerda da iconografia Tudo sellado, retirada da capa do jornal A coisa

de 1900, a imagem de uma negra adulta comerciante com em companhia de jovem

negro. O jornal, cujo objetivo é tratar assuntos sérios do cotidiano baiano, com pitadas

de humor, parece pretender a representação crítica do lugar do negro e do nordestino,

figura central da imagem, perante a política instaurada no País. É possível analisar de

maneira bastante genérica, que o político é representado por uma fotografia e, estaria

distante da realidade destes brasileiros, que mesmo diante dos novos ares da República

do Brasil se veem basicamente nos mesmos lugares de antes. A figura de número quatro

Apresentações reforça o lugar do negro no Brasil republicano, identificado ao fundo

pela imagem de um senhor negro descalço, denominado como Zé povo segurando ao

alto com os braços hasteados o que seria a cabeça de um político. Na mesma imagem

encontra-se a representação em destaque dos federalistas e à esquerda do que se tratava

da concentração, ou seja, a imagem de jovens homens brancos.

A Tia tatá é representada na última imagem e, também, tem o estereótipo da

personagem Anastácia do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), uma

senhora negra descalça sentada na calçada com um tabuleiro, possivelmente uma

comerciante. Esta é uma das poucas evidências em que o negro é representado sozinho

na capa deste veículo, suas representações são sempre em planos inferiores dando a

ideia de marginalidade, senão, a representação negativa de uma memória de escravidão

e de morte, conforme os dois próximos exemplos abaixo.

Fig. 3: Tudo é selado.

Coisa, (A) 12 out. 1900, p. 1

Fig. 4: Apresentações.

Coisa, (A) 22 jul. 1900, p. 1

Fig. 5: Tia Tatá.

Coisa, (A) 8 abr. 1900, p.

1

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A peste negra é possível notar a pigmentação escura do crânio em representação

a peste bubônica. Na parte superior da imagem a pergunta “então, posso entrar?”,

remetendo novamente ao lema editorial da publicação, é impossível não unir os

elementos da cor negra da caveira ao torpor social da década de 1900, em que negros

disputavam lugares na sociedade baiana, considerando que estavam livres e dependiam

de novos modos de sobrevivência e sociabilidades. E, em 13 de maio, a segunda e

última evidência de um ícone negro na capa do jornal, tem-se a remissiva de sua

condição escrava, embora com as algemas rompidas para lembrar o dia em que houve

oficialmente a abolição da escravidão no Brasil. Os glifos inseridos na imagem, a dizer

o ponto de interrogação em substituição da cabeça do personagem, traz a tona a dúvida

sobre os caminhos dos negros e, mais uma vez, descalço à exemplo de todos os outros

negros representados pelo A Coisa, este caminha sem direção.

Conclui-se, porém que, embora miticamente, a estrutura social moderna da

Primeira República no Brasil possa não ter assumido o negro em sua concepção

humana, sendo ele, em constantes oportunidades, representado ou assimilado à morte, a

subserviência, a sujeira, pobreza e descaso conforme as iconografias apresentadas. Esta

estrutura o integrou em caráter externo, ou seja, a partir do outro, responsável por lhe

oferecer um lugar naquela sociedade que começava a seguir um ideal de modernização.

O outro, o mesmo responsável pela escravização do negro, também se responsabilizou

por sua liberdade e, seguidamente, foi o responsável pelo seu descaso social e pela

manutenção de uma identidade equivocada à seu respeito (FREYRE, 2003).

Fig. 6: Peste negra.

Coisa, (A) 10 jun. 1900, p. 1

Fig. 7: 13 de maio.

Coisa, (A) 13 mai. 1900, p. 1

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