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1 Jesus Herrero Edição revista em 2013 edição ebook disponível A Pedagogia Vital de Sebastião da Gama

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Bem haja o metodólogo por esta ideia do diário. A gente assim pode olhar para trás e ver a vida — tempo enchido com coração em lugar de com fórmulas. SEBASTIÃO DA GAMA, Diário, Ática, Lisboa, 1962, p. 122. É claro que a aula foi mais animada, mais completa e mais feliz do que se pode depreender da leitura destas notas.( Ibidem, p.47) Isto é quase um diário íntimo, e se digo quase, é porque, apesar de tudo, sei muito bem que outros, que não só eu, o vão ler e isso, que não obsta a que sejam sinceras todas as minhas palavras e verdadeiras todas estas histórias, me impede de contar certas coisas que terei pudor de contar sejam a quem for. ( Ibidem, p. 7.) «O Diário é, sem dúvida, um dos mais impressionantes documentos humanos escri- tos em Portugal na primeira metade do século XX — documento sobre a maneira como concebia o ensino e a vida de alguém para quem dar uma aula mal se distinguia de criar um poema.» L.F. LINDLEY CINTRA, Dicionário de Literatura, Ed. Figueir- inhas, Porto, 1973, 1

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Jesus HerreroA Pedagogia Vital de Sebastião da Gama

Bem haja o metodólogo por esta ideia do diário. A gente assim pode olhar para trás e ver a vida — tempo enchido com coração em lugar de com fórmulas. SEBASTIÃO DA GAMA, Diário, Ática, Lisboa, 1962, p. 122.É claro que a aula foi mais animada, mais completa e mais feliz do que se pode depreender da leitura destas notas.( Ibidem, p.47)Isto é quase um diário íntimo, e se digo quase, é porque, apesar de tudo, sei muito bem que outros, que não só eu, o vão ler e isso, que não obsta a que sejam sinceras todas as minhas palavras e verdadeiras todas estas histórias, me impede de contar certas coisas que terei pudor de contar sejam a quem for. ( Ibidem, p. 7.)«O Diário é, sem dúvida, um dos mais impressionantes documentos humanos escri-tos em Portugal na primeira metade do século XX — documento sobre a maneira como concebia o ensino e a vida de alguém para quem dar uma aula mal se distinguia de criar um poema.» L.F. LINDLEY CINTRA, Dicionário de Literatura, Ed. Figueir-inhas, Porto, 1973, 1° volume, p. 362.«O Diário que Sebastião da Gama nos deixou — complemento precioso dos seus liv-ros de versos — !cará nas letras portuguesas como testemunho singular de frescura espiritual, de humanismo interior, de humanismo vivo...«Neste Diário perpassa o espírito de Virgílio Couto, o metodólogo sem preconceitos que trouxe ao ensino, pela irradiante acção pessoal e por meia dúzia de ideias claras e vividas, uma aragem renovadora...«Todos os professores deviam ler o Diário de Sebastião da Gama. E alguns haverá que não lhe chamem ironicamente um ‘professor-poeta’, alguns haverá convencidos de que sem sensibilidade e sem idealismo de poeta é que não vale a pena ser professor de Português, como Sebastião. O livro cheio de sugestões didácticas é um estímulo precioso. E a sua e!cácia pedagógica bem poderia exceder o âmbito da escola.»JACINTO DO PRADO COELHO, Problemática da História Literária, Ed. Ática, Lis-boa, 1961, pp. 229-232.«Professor e poeta, mostra este documento como eram duas faces da mesma !siono-mia espiritual, como se integravam na realidade concreta duma singularíssima alma, como em toda a minha longa vida de professor me não foi dado conhecer outra.»HERNÂNI CIDADE, Prefácio do Diário, Ed. Ática, p. 9.

Edição revista em 2013edição ebookdisponível

A Pedagogia Vital de Sebastião da Gama

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A PEDAGOGIA

VITAL

DE

SEBASTIÃO DA

GAMA O Diário à luz da Psico-Pedagogia

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ApresentaçãoEducar é oferecer-se como modelo.

Educar é respeitar o seu próprio modelo.

João dos Santos

O aparecimento da 3ª edição seria motivo suficiente para recomendar vivamente a professores e pais este livro de Jesús Herrero sobre a Pedagogia vital de Sebastião da Gama. Mas existem obviamente outros.

Além de este livro constituir a primeira abordagem do Diário, segundo o prisma da pedagogia filosófica, foi valisado por uma grande pedagoga, Matilde Rosa Araújo, amiga de juventude de Sebastião, escritora especializada na infância e poetisa que, em carta ao autor, afirma sem reticências, estar perante «um livro que entende, com poesia de verdadeiro educador, tudo quanto Sebastião foi através do Diário. E ele foi muito.»

Por outro lado, dado o valor teórico do livro em relação à aprendizagem do curso pedagógico, o Ministério de Educação incluiu-o, junto ao Diário de Sebastião, na bibliografia obrigatória para o curso do Magistério Primário.

Das críticas que, no seu dia, foram aparecendo em diversos órgãos de informação, merecem ser lembradas:

A crítica de Mário Castrim (Suplemento literário do Diário de Lisboa,28-3-1985), que diz, interpelando: «Os problemas pedagógicos podem ocupar-nos com o interesse de um romance? Podemos começar um livro sobre questões escolares e ir por aí fora quase sem respirar mergulhados no enredo? Podemos. Experimentem ler Pedagogia de Sebastião da Gama.» E acaba dizendo: «Considero que ele deve ser lido por todos: todos os

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professores, todos os alunos, todos os educadores, todos os educandos. Se, para Sebastião da Gama, o segredo é amar, é bom que todos conheçam a chave. O livro de Jesús Herrero ajuda poderosamente a encontrá-la.»

A crítica de António Valdemar (Diário de Notícias,15.4.1982), aquando da 1ª edição, pois o crítico, tratando de enquadrar este livro junto dos outros dois livros de Jesus Herrero, Miguel Torga, Poeta Ibérico (Arcádia, 1979) e O Pensamento Sócio-Político de Ortega y Gasset (Edições Brotéria, 1982), dirá que «o mesmo objectivo de compreensão, através do espaço da cultura, embora voltado para os domínios educativos, subjaz no estudo Pedagogia de Sebastião da Gama (...) assim a par de um estudo de investigação o autor dá-nos acesso a uma obra que é uma afirmação de humanismo e que mantém, como judiciosamente reconhece, 'a frescura de um jardim intacto, a espontaneidade de um rosto de criança(..,), o calor de um sol de meio dia'.»

Por sua vez, Álvaro Salema (Colóquio. Letras, nº Setembro-Outubro, 1987) dirá: «Acentua Jesus Herrero que a pedagogia de Sebastião da Gama se fundamenta na filosofia da razão vital e histórica, tal como a entendeu Ortega, e aponta as regras de ouro dessa pedagogia centrada no aluno, praticada como acto de amor do professor para com o discípulo. (...) Livro sugestivo para educadores e pais, o estudo de J.H. abre-se também em expressões atraentes para os que conhecem e admiram a poesia de Sebastião como uma das mais belas criações líricas portuguesas deste século.»

A professora Mª Teresa Pimenta (Revista Paideia - Educação, Outubro, 1985), acerca do mesmo livro, diz: «O autor do presente ensaio desvenda-nos a concepção da Pedagogia de que decorrem os processos educativos de Sebastião da Gama (...) Numa época como a nossa, em que a multiplicidade de técnicas ao serviço da instrução e da educação, imersas na rapidez tumultuosa do viver quotidiano e cultural, nos levam à satisfação ilusória dos programas cumpridos ou dos projectos conseguidos, com a sua aplicação, é importante que alguém nos venha lembrar que, para lá da utilização das

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técnicas, é a educação essencial que conta e que depende da concretização de uma certa maneira de pensar e realizar a vida.»

CARTA DE MATILDE ROSA ARAÚJO AO AUTOR

Ao escritor Jesús Herrero

Venho agradecer-lhe a «Pedagogia de Sebastião da Gama». Não sei se foi só a Editora que me enviou o livro (a ela agradeço também). Mas de qualquer modo, tenho de agradecer ao Escritor que se encantou tão lucidamente pela obra pedagógica que foi a vida de Sebastião.

É um livro que entende, com poesia de verdadeiro educador, tudo quanto o Sebastião foi através do «Diário». E ele foi muito.

Eu fui muito amiga do Sebastião e sinto, talvez saiba mesmo, que o Sebastião ficaria contente com o seu livro.

Aqui fica o meu obrigada.

Com as saudações fraternas de grata admiração.

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PrólogoUma das surpresas mais gratas, do ponto de vista educativo, que

o leitor do Diário de Sebastião da Gama pode ter, é a certeira apresentação da realidade pedagógica, através da relevância e prioridade que o aluno tem na prática escolar do professor - estagiário.

Desde Rousseau, tornou-se lugar-comum transferir o fundamento da estrutura científica da teoria pedagógica, do saber e do mestre para o discípulo. Contudo, esse princípio teórico raramente é praticado pelos professores escolares. Daí que escasseiem os verdadeiros pedagogos e professores, isto é, os mestres. Ora, no Diário de Sebastião, esta prática aparece espontaneamente, clara e eficiente, e por isso, o Diário é o espelho fiel de uma pedagogia centrada no aluno. Com efeito, sendo Sebastião «uma alma comunicativa, boa, sem refolhos, uma alma exemplar» no dizer de Jacinto do Prado Coelho (O Diário, p.229) a sua prática pedagógica foi um acto consciente da vontade do seu autor com sensibilidade de poeta.

Sabe-se que ser poeta, para Gama, «é estar encantado ou desencantado e contá- lo com palavras que pareçam música» (Ibidem, p.97) e, para todos os mais, é procurar apaixonadamente um interlocutor em que transbordar todo o rio da sua intimidade pessoal e acabar por encontrá-lo, ainda que anónimo Por isso, poesia é, no dizer do prémio Nobel Vicente Aleixandre, comunicação, ou como quer Gerardo Diego, comunhão, ou segundo a reflexão do filósofo Ortega «sueto metafísico e libertação da onerosa seriedade da vida» ou ainda, «a maneira de estar sozinho», como Fernando Pessoa a sentia, quer dizer, solidão que não rejeita a companhia, sempre e quando não dilui a fecundidade interior.

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Neste sentido, Ruy Belo poderá afirmar que «a obra do poeta é afinal o resultado de um acto de generosidade, revelador do mundo e da sua alma, libertador do gozo e deleite para o espírito dos homens» (Na senda da Poesia, União Gráfica,Lisboa, 1969, p.193) e Watt Whitman corroborará que todo o livro de poesia é sempre muito mais que um simples livro, é nada menos que um troço de humanidade. «Isto não é um livro», dirá Whitman dos seus. «Quem tocar nele, toca num homem.»

Assim, não estranha que Jacinto do Prado Coelho nos assegure que Sebastião escreveu as páginas do Diário «para si próprio, e também para alguns amigos, em primeiro lugar o professor metodólogo. que teve a ideia.» (Ibidem, p.229)

A sensibilidade poética teria sido, pois, a bússola que encaminhou o poeta da Arrábida, aquando professor - estagiário, para situar o problema escolar nos devidos termos. Tal como intuiu o poeta António Machado, igualmente professor liceal em diversas províncias de Espanha, também para Gama é a criança quem faz o mestre e não o contrário. Por isso, o Diário resulta na máscara feliz que os alunos fizeram da alma delicada do professor de Português e Francês na Escola Comercial Veiga Beirão de Lisboa.

Ao deixar-se fazer pelos seus alunos, Sebastião não esquece o princípio da economia de ensino (ou a consciência dos limites da Pedagogia), que Ortega tão justamente defende para todo o afazer pedagógico, e que consiste em considerar as capacidades aquisitivas dos adolescentes alunos e as suas necessidades vitais. Com efeito, Gama, vigilante, doseará sempre o saber e procurará multiplicar-se em propostas de felicidade afectiva, na própria relação pedagógica.

Sebastião sabe que a felicidade é um impossível, mas um impossível necessário para incitar o psiquismo a determinar, em cada caso concreto, a aceitação gozosa do destino pessoal, ou seja, o mundo, as circunstâncias que rodeiam a pessoa e, ao mesmo tempo, a tirar partido das possibilidades e impossibilidades de cada situação.

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Estando o Diário tão próximo das fontes da vida humana, ele é um produto da «razão vital», cheio de frescura e actualidade permanentes. Tal como outros livros aparentemente simples e infantis, mas de grande densidade espiritual, como Platero y yo, de Juan Ramón Jiménez, Le Petit Prince, de Saint-Exupéry, o Diário de Sebastião contém o aroma capaz de inebriar toda a espécie de leitores, jovens e adultos de qualquer época, dado que encerra a grande revelação universal, o afazer essencial de toda e qualquer vida humana individual: a descoberta jovial da relação interindividual e a arte do incitamento ao saber. Não o saber abstracto e utópico, mas o saber necessário e concreto. O saber que Gama transmite, apesar das directrizes da época em que actua e escreve (1948-50), é um saber de necessidades urgentes que fazem sentir a vida como um espaço de criatividade permanente e um projecto de felicidade.

Neste sentido, a sua didáctica será sobretudo uma prática do despertar do desejo duma felicidade concreta, muito mais do que o afã do saber abstracto. Como poeta, Sebastião está predisposto a superar o preconceito intelectualista do saber pelo saber em que costumam sossobrar, com demasiada frequência, pedagogos que se dizem professores, e coloca a vida no cerne da sua pedagogia. Para ele, «a arte é amor, manifestação exuberante de uma personalidade que dá um nome novo aos homens», como diz Ruy Belo (Ibidem, p.196).

Na realidade, Sebastião fez da sua vida a sua melhor obra de arte, convencido como estava de que a verdadeira forma de cultura era a cultura da convivência. Porque via na convivência o ápice do universo, cuidava-a como se se tratasse da melhor obra de arte, como cuidava dos seus versos. Será precisamente com a vara mágica da sua arte que assinalará a amorosa harmonia das coisas e das pessoas. Assim cantará:

Que alegria mereço, ou que pomar,

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se os não justificar,

Poesia,

A tua vara mágica?

Bem sei: antes de ti foi a Mulher,

foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água... Mas tu é que disseste e os apontaste:

— Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. E logo foram graça, aparição, presença, sinal...

(«Viesses tu, Poesia», in Pelo Sonho é que vamos).

A mulher, a flor, o fruto, a água aparecem vinculados à sua vida, devido ao poder da vara mágica da sua poesia que encontra a conexão misteriosa de todas as coisas, pois, como genuína arte, a poesia é integradora de todos os elementos que compõem a vida humana e histórica.

No entanto, estamos longe de afirmar a exemplaridade de todos e quaisquer aspectos, quer da teoria quer da prática pedagógicas de Sebastião. Afirmá-lo seria uma insensatez e prestaríamos um mau serviço ao poeta - pedagogo da Arrábida e à ciência da educação. Não pretendemos elevar à categoria de dogma aquilo que não passa de puro acontecer histórico, por conseguinte, superável. Em pedagogia, aliás como em todo o acontecer humano, a época seguinte constata o fracasso da época anterior. Assim como é absurdo falar de uma filosofia perene, também o é, talvez mais ainda, falar na perenidade de qualquer pedagogia.

Todo o quefazer humano, técnico ou prático, está submerso no fluxo histórico do perecível. Se no exercício das nossas vidas temos consciência do términus a quo donde partimos e que vamos abandonando, não temos nunca a sensação do conseguido e da chegada a um terminus ad quem. O sentimento da insatisfação acompanha todas as nossas acções humanas quando elas são autênticas, quer dizer, quando o homem se sente responsável daquilo que intenta fazer. Pois bem, é este sentimento que impregna

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as páginas todas do Diário, como o cheiro das violetas se espraia num jardim.

Se queremos ser justos, temos de nos abeirar de Sebastião, como de um modelo da pedagogia essencial e vital, de um incitador de humanidade, com a noção de que algumas das suas opções didácticas poderão estar superadas. Se «a consciência histórica de si mesmo consiste em ver-se como erro e assim pôr-se na verdade e salvar-se», como diz Ortega, o pedagogo Gama deverá ser superado, mas a sua mensagem torna-se indiscutível e plenamente actual, por isso mesmo insuperável, porque se baseia em valores vitais definitivos, como a maneira de suscitar a relação interpessoal, afectiva e educativa, e o modo de potenciar as capacidades de doação alegre e cordial dos alunos.

Na realidade, este aspecto de qualquer pedagogia essencial brotava em Gama do seu fundo insubornável de homem autêntico, responsável, fiel à sua íntima vocação de pedagogo. Em Sebastião, vocação e profissão coincidiam na mais rigorosa identidade de projectos. Segundo o valioso testemunho de Jacinto do Prado Coelho, «vida e poesia, ser homem e ser professor eram uma só coisa em Sebastião.» (Ibidem, p.229) E porque o seu verdadeiro si mesmo abraçou toda a ordem afectiva e mental da sua vida, a sua pedagogia coincidiu com a plenitude da vida. Por isso, todos os seus actos pedagógicos acabam sendo poesia, quer dizer, integração da vida plena junto a todas as vidas que se aproximavam dele. Eis porque o Diário, narração que contém a alma do seu afazer pedagógico e biográfico, mantém o viço do primeiro dia, a frescura de um jardim intacto, a espontaneidade dum rosto de criança, a alegria dum ribeiro, enfim, o calor de um sol de meio-dia.

«Dos melhores não temos de aprender apenas pelo que disseram, mas pelo que viveram, pobres homens como nós, e que, como nós, esbracejaram no eterno naufrágio do viver, diz Ortega.» (Obras.Completas- V, p.450) Pois bem, o Diário de Sebastião aí está, oferecendo-se a todos que queiram aprender da escrita biográfica de um homem que procurou manter, com

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dignidade e autenticidade, o peso do seu corpo frágil no glorioso naufrágio que foi a sua vida. E porque de uma vida autêntica se trata, o Diário permanece uma lição actual de pedagogia que nos interpela a todos, mostrando que, para falar com as crianças e os adolescentes, ao jeito deles, é preciso ter alma e estilo de poeta.

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IntroduçãoGaston Mialaret afirma ser muito difícil encontrar reunidos,

num mesmo autor, um educador teórico, um educador prático e um educador investigador, acrescentando à guisa de explicação, que «os caminhos que conduzem a estes três estádios têm, em geral, muito pouca coisa em comum, não sendo fácil portanto, estabelecer re l a ç õ e s e n t re c a d a u m d o s re p re s e n t a n t e s d e s t a s categorias.» (Introducción a la Pedagogia, Oikos-Tau, Barcelona, 1971, p. 138)

Contudo, Mialaret acha difícil encontrar estes três estádios reunidos num homem, embora pedagogo, por causa da sua noção de investigação pedagógica. Para ele, a investigação que responde às exigências dos métodos científicos, que ganha em rigor e objectividade e tem a amplitude indispensável a todas as investigações humanas, para fazer face a todas as fontes de variabilidade, como são as situações pedagógicas, é apenas a investigação laboratorial, investigação apoiada em material electrónico, como os ordenadores «onde se podem tratar com audácia os problemas mais difíceis da investigação pedagógica, porque para ele, investigar em pedagogia consiste no esforço para medir os factos pedagógicos, estudar as condições e determinar as leis.» (Ibidem, 152-153)

Perante tamanha exigência laboratorial, é caso de nos perguntarmos: exigirá a realidade pedagógica, para a sua compreensão, uma investigação ao nível das técnicas de laboratórios? Não se poderá alcançar o estatuto de pedagogo enquanto não se for investigador de laboratório?

Vale a pena lembrar a sábia e crítica advertência de Delfim Santos quando diz: «A pedagogia encontra-se em crise de enfartamento, proveniente da quantidade imensa de materiais que penetram no seu pseudo - âmbito, e também por isso em crise de

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desconhecimento da sua finalidade. É certo que alguns aspectos da pedagogia experimental podem ter valor como auxiliares na compreensão do problema, mas infelizmente o que quase sempre se encontra é a transposição dos meios em fins, que já não podem ser os da pedagogia. Ao ler certos livros expressivos de determinadas tendências, o pedagogo deveria ser embriologista, neurologista, heredologista, fisiologista, matemático, sociólogo, psicólogo e tuti quanti para, ao fim e ao cabo, realmente não poder ser nada.» E acrescenta: «A pedagogia não é uma ciência exacta como qualquer outra referente ao homem: pode ser uma ciência rigorosa, e sê-lo-á quando não pretender atingir verdades gerais mas, pelo contrário, v e r d a d e s h u m a n a s e , s e p o s s í v e l , d e m a s i a d o humanas.» (Fundamentação Existencial em Pedagogia, Livros Horizonte, Lisboa, 1946, pp.19-24)

Com efeito, o que interessa é dar prioridade à descoberta de realidades acerca do homem, encarado de uma forma específica, em situação pedagógica, «o homem em formação, ou em trânsito de um estado para o outro», como diz Delfim Santos. E «esta especificação da pedagogia só por si invalida certos processos que imobilizam o homem artificialmente, esquematizam o que vive em constante progressão. Por este motivo, e por muitos outros, a pedagogia nunca poderá ser uma ciência exacta, e o critério que apenas considerava digno de ser chamado científico o que pudesse ser formulariamente traduzido em relações quantitativas é uma enormidade e uma violência.» (Ibidem, p.21)

Face às exigências de Mialaret na formulação da pedagogia, do «uso de matrizes, gráficos e teorias de conjuntos que os modelos teóricos implicam», Delfim Santos insiste na captação do homem vivo em trânsito principalmente através do maior contacto possível, em actos de compreensão, e não em operações mecânicas que a substituam.

A tendência que defende as investigações laboratoriais em pedagogia, corre o risco de centrar o problema da realidade pedagógica — o homem em formação — em termos naturalistas,

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como se o homem fosse uma res (coisa), segundo a tradição aristotélica retomada por Descartes, ao definir o homem como res cogitans (coisa pensante), res extensa (coisa extensa), derivando daí a sua ambiguidade, visto que, na ontologia tradicional, a palavra res, coisa, é sinónimo de natureza, realidade física. Ora nós hoje sabemos que o homem não é natureza, mas tem história e portanto, como diz Ortega, «a razão física não nos pode dizer nada de claro sobre o homem. Isto quer dizer simplesmente que devemos, com todo o radicalismo, deixar de tratar o humano à maneira física e naturalista. Em vez disso, devemos tomá-lo na sua espontaneidade, tal como o vemos e tal como ele se nos apresenta.» ( VI, p. 23)

Segundo isto, impõe-se um tipo novo de razão para captar compreensivamente o homem: a razão histórica. A vida histórica do homem é puro acontecimento que acontece a cada qual e em cada qual não é senão acontecimento. E a razão que pode captar este acontecimento humano, com toda a sua variação substancial, não será outra que a razão histórica, razão que fluidifica os factos, que agarra o sentido humano dos acontecimentos e interpreta os dados humanos a partir deles próprios. Aqui radica o verdadeiro problema da realidade pedagógica: compreender o homem no seu afazer comportamental e evolutivo.

À medida que uma ciência se torna num verdadeiro conhecimento, os métodos ou técnicas diminuem de valor, sendo menor o seu papel no corpo científico. Com efeito, as técnicas que fornecem preciosos elementos coadjuvantes da ciência, quedam-se aquém da própria ciência que, por sua vez, começa onde as técnicas acabam, quer dizer, na teoria que é o instrumento de avaliação dos dados que fornecem as técnicas. E aqui reside o âmago do problema científico, tanto em Pedagogia como nas restantes ciências, desde a Física até à Economia: na interpretação dos dados, que em pedagogia são constituídos por comportamentos pedagógicos.

Os dados que as técnicas pedagógicas nos fornecem são sintomas ou manifestações da realidade e são dados a alguém para

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algo. Este algo é a sua interpretação e esse alguém é o pedagogo, não o investigador propriamente dito. Da união de ambos brotará a realidade pedagógica. A este respeito, é bom saber que a ciência não é erudição, mas teoria. A laboriosidade de um erudito começa a ser ciência quando mobiliza os factos e os saberes para uma teoria. Para isto, é necessário ter um grande talento combinatório, composto de doses equilibradas de rigor e de audácia.

Isto faz-nos perguntar: não será extremamente importante que se reúnam os três estádios, o teórico, o prático e o investigador, no momento supremo da realização pedagógica, quer dizer, que o pedagogo coincida, em certo modo, com o teórico, o prático e o investigador? Claro que, para que isto aconteça na prática escolar, não podemos exigir que a investigação seja laboratorial, tão-só que seja uma investigação eficaz, embora forçosamente simples e fundada na observação do homem em formação, tomando o comportamento humano na sua espontaneidade, tal como o vemos e tal como ele se nos apresenta na realidade quotidiana (da escola ou da família, por exemplo).

Pois bem, o Diário de Sebastião leva-nos precisamente para essa experiência: mostra-nos Sebastião como sujeito em que se realizam os três estádios pedagógicos: um conjunto de ideias educativas, uma constante observação dos seus alunos e uma prática didáctica intuitiva e certeira. E faz-nos apreciar Sebastião como um caso de autenticidade vocacional, de honestidade profissional e de exemplaridade pedagógica. Por isso, o Diário é um manual educativo cuja leitura será salutar para todos aqueles que se dedicam à causa da educação, quer na escola, quer na família.

Pensando de novo em Delfim Santos e na sua advertência de que, exceptuando algumas realizações, sem dúvida notáveis, das escolas novas americanas, «a escola e os velhos processos continuam a ser os únicos em uso e abuso; o professor fala, o aluno ouve, e o aproveitamento verifica-se quando o aluno fala e faz ouvir ao professor o que ele já tinha dito», não podemos deixar de

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considerar, nesta linha normativa, o Diário de Sebastião como um verdadeiro poema pedagógico.

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FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DA

PEDAGOGIA VITAL DE SEBASTIÃO

DA GAMA

1. INTRODUÇÃO BIOGRÁFICA

Deixa ser o meu gesto uma grinalda nos teus cabelos. Vida!

Deixa que o meu olhar enflore teus olhos

(«O segredo é amar», in O segredo é Amar).

Nas capelas todas os sinos todos

toquem...

Que digam a minha Alegria,

(Eu não preciso dizê-la:

ai! a mim, sinos, basta-me vivê-la.)

(«Alegria», in Serra-Mãe.)

De minha vida não sei senão que sou feliz. Lá o que fui ou fiz,

antes de ser o que sou, ai!, tudo me PASSOU:

só sei que sou feliz.

(«Claridade», in Serra-Mãe).

Porque, com o passar do tempo, a figura de Sebastião se vai tornando figura histórica, autor pretérito, para as novas gerações de educadores, torna-se conveniente e necessário dar razão da sua pessoa histórica, ainda que de modo sucinto, para melhor apreendermos a sua exemplaridade de educador.

Com efeito, Sebastião está presente e vivo na escrita do seu Diário e dos seus poemas, assim como estava presente perante os seus alunos e condiscípulos. Só há uma diferença de instalação:

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junto destes, a sua presença realiza-se por meio da cultura da oralidade, enquanto connosco, os seus leitores, ela realiza-se por meio da cultura da literalidade. Duas formas de cultura, frente a frente, com características diferentes, mas ambas com a função de depósito da memória: aquela, por intermédio da palavra ouvida e esta, através da palavra escrita. Enquanto a cultura da oralidade está sujeita à efémera temporalidade imediata da palavra, sujeita ao tempo imediato da vida, às pulsações da vida, a cultura da literalidade transforma a palavra da temporalidade imediata em signo que permanece, fixo, no papel. Liberta a linguagem da sua originária sujeição ao corpo e à vida, adquire, com a escrita, uma nova forma de corporeidade. Temos pois, junto ao Sebastião falante de um dia, que a temporalidade nos roubou, o Sebastião autor de todos os dias, que a escrita salvou para gozo de todo e qualquer leitor.

A escrita é criadora de um espaço independente do som da palavra e fixa o tempo num novo recipiente da memória. A estas diferenças da forma de instalação de Sebastião, na palavra, nos ouvintes de ontem e na escrita, nos leitores de hoje, temos de acrescentar algo que importa notar: que, em ambos os casos, se trata de preservar a memória, a qual se institui na subjectividade da consciência, sendo portanto, algo interior Precisamente, do diálogo connosco, emerge o pensamento para lá da palavra ouvida e da escrita. Pensar não é ler letras ou prender-se à arbitrariedade do que nos dizem, mas provocar um discurso interior em que se plasma a continuidade da consciência como memória. No nosso caso, a memória de Sebastião como educador.

Como leitores do Diário, para sermos memória da sua experiência, necessitamos de um diálogo prévio para nos constituirmos como leitores seus. Esse diálogo é o que cada consciência estabelece consigo, através do exercício da própria vida. A consciência do leitor transforma-se assim, em autor que se escreve a si mesmo, com a experiência de outrém. Assim, o leitor do Diário, para o ser verdadeiramente, deve ser memória da sua própria experiência de vida. A recepção da experiência de outrém

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depende da nossa receptividade. Dificilmente seremos bons leitores do Diário de Sebastião, se não formos bons receptores da nossa própria experiência, isto é, se não formos autores de nós. Estabelecemos o diálogo com os outros na medida em que soubermos dialogar com a nossa própria vida, pois a nossa vida individual é a realidade radical.

Na verdade, a única linguagem que verdadeiramente fala é a linguagem interior. O importante é nós conseguirmos essa memória onde fecundar a palavra que vem de fora. As palavras serão apenas ecos se não as transformamos em vozes. Transformar os ecos em vozes é obra do intérprete de um texto. O intérprete empresta a sua voz ao silêncio da escrita. Provocar sentidos e determinar significados é a função do leitor. Sem a presença dum leitor o Diário não passaria de uma coisa, um objecto inexpressivo, uma realidade sem substância. Só assim, o Diário se tornará semente de outras palavras como Sócrates assegura a Fedro quando lhe diz que são as palavras com fundamento, portadoras de outras palavras, que transportam a semente imortal que dá a felicidade a quem a possuir no grau mais alto possível ao homem.

E, na realidade, o Diário é uma semente imortal duma prática educativa para quem a acolher na terra fértil da sua memória biográfica. Como obra artística, encerra em si a chave interpretativa de si própria, pois constitui a reacção de um coração visionário perante a vida, como aventura individual e como drama colectivo.

Isto que dizemos para o Diário, o tema do nosso estudo, deverá ser tido em conta a respeito da obra poética de Sebastião, dado que ele era estruturalmente um poeta. Ele não concebia a poesia como um jogo puramente estético, cuja finalidade será a de provocar um gozo íntimo. Ele concebia-a como uma força divina, transformadora do ânimo, forjadora de ideais, educadora do intelecto e encantadora do sentimento, que impulsiona para a frente, e que pinta o mundo e a vida com uma nova cor, dando ao futuro um sentido pleno de esperança. Na sua teoria estética, ele afirma, quase religiosamente, que a poesia era sobretudo uma

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dádiva recebida do Alto, reservando para Deus a autoria dos textos que escrevia. Para ele, o verso não era um molde, mas um rito, o rito de uma invocação que fazia descer a Poesia por obra e graça de uma inspiração divina. Daí, o respeito sacro pela inspiração, que «o levava quase a não alterar os rascunhos dos seus versos», como Maria de Lourdes Belchior nos diz.

Uns dos seus maiores momentos poéticos acontecem no Diário, não propriamente em forma de verso, mas como acontecimento ritual, quando o poeta dialoga com a criança, o mestre com o aluno, o homem com o adolescente, quando entram em comunhão a poesia e a vida. Porque a vida não é senão um processo de relações, a arte poética não almeja mais do que abranger essa totalidade das relações humanas por meio dessa «espécie de laço, armado pela manha do Poeta», na própria expressão de Sebastião, para que a Poesia aconteça e com ela o milagre da comunhão universal.

Enquanto, no seu tempo, havia poetas para quem a arte era uma sub-rogação da vida, para ele, pelo contrário, acontecia verdadeiramente, em plenitude, no seio da própria vida, ao compreender e conexionar a diversidade dos aspectos das coisas, do mundo, das pessoas, através da convivialidade com outras idades, da confraternização com outras gerações, dinamizando-as e libertando-as de todas as heranças, que não deixam de ser limitadoras por muita glória que possuam. Por isso, a sua arte vital se fez pedagogia, pedagogia de libertação através da criatividade individual, porque a vida é sempre individual, a de Ludovico, a do Manuel, a do Fosco, a do Romão, vidas individuais e concretas que estão presentes na sua vida de professor-estagiário e no seu Diário. E estas personagens, e todos quantos foram sensíveis ao seu apelo afectivo, foram libertando-se da vulgaridade e penetrando no recinto selectivo da autenticidade através do sonho da felicidade. Para Sebastião, a poesia e a arte, em geral, coincidiam com o humano vital e concreto; a vida dos adolescentes com nomes próprios, com a vida ascensional dos seus alunos, dos discípulos, dos amigos.

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«Diz-me o que sentes do homem, e dir-te-ei que arte cultivas», adverte Ortega. O que Sebastião sentia do homem em geral, revelou-o em cada um dos seus alunos em particular. Todos eram seus amigos, colegas de aventuras, instrumentos humanos de transformação da sociedade, possibilidades de um futuro melhor, sinais da vida perpétua em constante crescimento. Por isso, a arte que cultivou derrama-se em luz, fogo, alegria, confiança, expectativa e felicidade. A sua arte é arte do conforto, da esperança, do sonho verdadeiro, da comunhão felicitária, da liberdade criadora, da claridade racional e do contentamento vital. Abra-se onde se quiser a ânfora de perfumes poéticos, que é o Diário, e sentiremos o cheiro a violetas e rosas, a alfazema e rosmaninho e respiraremos o ar puro das cumeadas e a paz profunda dos vales por onde deslizam infinitos rios de cristalinas águas, que reflectem as altas nuvens viageiras da aventura, os rostos amigos que sorriem leves, o voo inquieto dos pássaros arrebatados pelo frenesi da alegria do poeta: é pelo sonho que vamos, como reza um dos seus poemas.

Tudo isto Sebastião vivia-o nos homens concretos da sua circunstância de educador. E nós, aqui, podemos pela sua voz perguntarmo-nos: como é que o viram, a este homem, os outros homens da sua geração, qual a recordação que dele guardaram os seus amigos já falecidos e os seus discípulos ainda vivos. Porque Sebastião não era alta torre de marfim isolada. Era campo aberto ao pé da sua serra-mãe, que pretendia servir a todos de cabo de boa esperança, como reflectem os títulos dos seus livros de poemas.

Sebastião teve condiscípulos que figuram entre os melhores artistas da palavra das letras portuguesas e eles têm falado recordando tudo aquilo que Sebastião era e continua sendo, porque se certamente terá havido educadores da sua têmpera, ninguém derramou a sua experiência como ele o fez no Diário.

Vejamos alguns testemunhos:

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Assim traça David Mourão Ferreira, na sua Antologia de Textos de Escritores do Século XX (Portugal, A Terra e o Homem, Gulbenkian, 1980, p.437)), o perfil do autor do Diário:

«Licenciado em Filologia Românica e professor do ensino técnico, em cuja renovação pedagógica exerceu uma breve mas profunda e ainda hoje duradoura influência, Sebastião Artur Cardoso da Gama, nascido em Vila Nogueira de Azeitão, a 10 de Abril de 1924, viria a falecer precocemente em Lisboa, a 7 de fevereiro de 1952, depois de haver publicado três livros de poesia Serra-Mãe (1945), Cabo da Boa Esperança (1947) e Campo Aberto (1951) — que logo o creditaram como um dos valores mais puros do nosso lirismo contemporâneo; e as obras suas que postumamente apareceram — Pelo sonho é que vamos (1953), Diário (1958), Itinerário paralelo (1967), O segredo é amar (1969) -mais não vieram que confirmar, quer em verso, quer em prosa, as raras qualidades humanas e poéticas deste homem simples, entusiástico e exuberante que era, na vida, uma espécie de 'Santo António de nicho popular', mas que na obra revelava, afinal de contas, insuspeitados tesouros de excelente preparação humanística. Tão atento ao mundo exterior como aos movimentos da própria alma, imbuído de um cristianismo actuante em que mais se privilegiava a Graça do que prevalecia o Pecado, Sebastião — que passou na Arrábida a maior parte da sua existência — deixaria algumas páginas inesquecíveis acerca dessa montanha bordejada pelo mar, a que Frei Agostinho da Cruz chamou 'Serra das estrelas tão vizinha'.»

Por sua vez, diz o professor Luís Filipe Lindley Cintra: «Conheci-o no Verão de 1942, candidato à admissão na Faculdade de Letras. Tinha ele então 18 anos. Impressionavam, desde o primeiro contacto, a sua espontaneidade, a sua franqueza, a vivacidade e a pureza do seu olhar, e também a sede de convivência, de comunicação, que o levava a entrar rapidamente em contacto com todos os que o rodeavam. Havia de observar depois, na Faculdade, como essas primeiras impressões tinham fixado aspectos constantes e profundos da sua personalidade.

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Aquele solitário habitante do Portinho da Arrábida, 'perfeito amador' da Serra e da sua solidão, sentia uma necessidade imperiosa de se aproximar dos outros homens, quando se encontrava entre eles. Fazia-o sem nenhuma espécie de reserva: abrindo-se, dando-se a eles numa entrega total. Assim se manteve sempre: por maiores que tenham sido as desilusões, nunca pôde nem quis abandonar esta atitude, a única em que poderia estar sem constrangimento.» (Prólogo de Serra-Mãe, Atica, 1968, pp. 9-10)

Maria de Lourdes Belchior recorda (Jornal de Letras, Artes e Ideias, 13 de Abril de 1982) que Sebastião, que morreu com 27 anos, era um moço exuberante, extrovertido, generoso, tinha um sorriso de criança e uma alma grande. Cedo marcado pela dor, vivia como se o tempo fosse todo seu, sem recear os seus limites. Sebastião foi poeta na vida e na arte. As suas cartas são testemunho de como, em certas horas, a dor e uma quase revolta perante a Morte pressentida o faziam sofrer. Mas acabava sempre por render-se ao mistério da Fé e aos secretos desígnios de Deus.

Matilde Rosa Araújo, também amiga de Sebastião, escreve (Jornal de Letras, 13 de Abril de 1982): «Lembrar Sebastião é lembrar a rara presença frontal e luminosa de um homem perante a vida. E frontal e luminosa apesar do seu corpo desde criança enfrentar a morte.

«E nunca ele se queixou, nunca ele se lamentou. Nem gostava que o lamentassem: todo ele era uma dádiva sã de amor pelos outros que de si próprio se esquecia. Foi o companheiro autêntico que tudo entregava à vida como um verdadeiro irmão. Sebastião estava sempre presente, pela intuição do amor e pelo conhecimento, atento, às nossas dores e às nossas alegrias. Ele era o companheiro comungante e discreto com que todos podíamos contar: solidário, tolerante, sabendo escutar, tendo o respeito de calar e a ousadia do dizer quando julgava que o dizer era necessário.

«E só assim se compreende como Sebastião, desde que começou a ensinar, foi um raro, autêntico professor. E foi professor com alegria vivendo o drama terrível de jovem que a doença condena.»

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Matilde Rosa Araújo teria dito anteriormente (Prólogo de O segredo é Amar, Atica, 1974, p. X) : «Tudo quanto Sebastião escrevia eram gotas do seu sangue generoso e vivo, força de uma vida que, afinal, nunca foi doente.

«Cada página sua é vida — vida que ele sabia breve e que quis dar inteira como se nos entregasse fraternalmente o próprio Amor...

«A sua clara alegria era a transparência do homem sofredor e Sebastião, numa carta de Estremoz, explica-a:

«Se me querem ver contente, é darem-me um sábado de Estremoz. Não que eu seja triste nos mais dias. O que eu amo e quanto bendigo, pelo contrário, este precioso bem de existir!

Dores, desgostos, bofetadas? Disso é feito o bem... Que coragem teria eu de ser feliz se na base de tudo, e a dar sabor e pureza à impura alegria, não tivesse bofetadas, desgostos, dores?»

A sua alegria (e quem ainda o poderá julgar liricamente cego?) foi a alegria consciente de quem sabe que a vida só é vida quando actuante na responsabilidade maravilhosa, e tão raras vezes maravilhada, de nos sabermos vivos, de olhos, ouvidos e coração abertos. Campo Aberto foi bem um título à sua imagem. Sou vivo! Vivo! Quantas vezes, desde criança (como lhe fica bem esta palavra próximo do nome!), foi um corpo doente, com o silêncio dos séculos da morte em impiedosa ameaça?

«E perante este silêncio futuro, perante a ameaça, ele frui a vida com dignidade, a sanidade de quem está presente em corpo inteiro, sem os complexos dos que por ela se sentem logrados mesmo que sejam acompanhados pela fé autêntica. E sem pressa.» (Campo aberto, Atica, pp. X-XI)

Não podemos deixar de evocar os testemunhos entusiastas, inúmeras vezes patenteados, dos que foram seus discípulos.

O autor deste estudo, durante uma homenagem a Sebastião, na Escola Secundária de S. Julião de Setúbal, em 9 de Fevereiro de 1983, aniversário da sua morte, ouviu directamente da boca do

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Ludovico, aquele «estudante muito inteligente e aplicado e bom companheiro» do Diário, que se era gente, isso devia-se a que o homem exemplar, irradiante de simpatia criadora, que era Sebastião, penetrara na sua vida adolescente na hora certa, despertando nele o amor à vida, autêntica e responsável. Por isso guardava a sua lembrança indelevelmente, dado que a marca da presença dele imprimia carácter:-

Gabriel, o rapazinho que escreveu uma comédia linda que os colegas ouviram com tanto gosto e que Sebastião elogia no Diário, hoje convertido em economista, disse:

«Numa época em que o poder dos pais e dos docentes era indiscutível, um professor que nos tratava como companheiros, camaradas, amigos; que brincava connosco no pátio; que nos levava ao cinema e nos convidava para sua casa, trazia uma diferença abismal aos nossos hábitos. Ele próprio talvez não se apercebesse da revolução que provocava no ensino, a não ser pela animosidade que despertava nos colegas.» (Público-Magazine, Lisboa, 9.2. 92) Um seu depoimento, escrito a pedido do autor, em 1999, exprime o sentimento comum aos alunos de Sebastião dizendo:

«Hoje, que já estou perto dos 64 anos de idade e que, por força da minha actividade de economista exercida em Lisboa, tenho acompanhado a evolução moral, social, económica, política e tecnológica do país e do Mundo, estou cada vez mais convicto de que a actuação de Sebastião da Gama como Professor, de quem fui aluno há 50 anos na Escola Veiga Beirão, não era pré-determinada nem era movida por interesses pessoais, materiais ou sociais, mas era antes uma actuação natural que brotava da sua sensibilidade de jovem, idealista e poeta e que (talvez felizmente) não teve tempo de ser corrompida pelos males que atacam a vida moderna, abrindo chagas cuja cura não se vislumbra no horizonte do nosso tempo.

Os ensinamentos de Sebastião valem hoje, e valem muito, como referência de um conjunto de valores que devem ser preservados, desenvolvidos e transmitidos às gerações futuras, mas depois de adaptados aos condicionalismos da vida actual, de modo que os

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jovens de hoje os aceitem, tal como os jovens de ontem os aceitaram. Haverá por aí algum Sebastião da Gama capaz de fazer isso?»

Nicolau Pereira da Claudina, que o teve como professor na Escola Comercial e Industrial de Setúbal, reconhece que Sebastião o modificou completamente: de aluno rebelde, repetente, passou a ser um dos melhores da turma. «Até tentei imitá-lo: de boininha ao lado e cachecol traçado como ele, fiz uns sonetos para o jornal escolar e ganhei a alcunha de poeta.» (Ibidem)

O que estes alunos afirmam, repetem-no o Fosco, o Manuel, o Artur, o Romão e, certamente, todos os outros discípulos que não tiveram a felicidade de aparecer em letra de forma no Diário, mas que o professor poeta gravara no seu coração.

Por fim, não podia faltar o testemunho, senão directo, sim implícito da sua mulher, Joana Luísa, A Companheira, do belo poema, assim intitulado, onde ele diz:

Não te busquei, não te pedi: vieste.

E desde que eu nasci houve mil coisas que a meus olhos se deram com igual simplicidade: o Sol, a manhã de hoje essa flor que é tão grácil que a não quero, o milagre das fontes pelo Estio... Vieste (O Sol veio também, a flor, a manhã de hoje, as águas...). Alegria, mas calada alegria, mas serena, entendimento puro, natural

encontro, natural como a chegada

do Sol, da flor, das águas, da manhã,

de ti, que eu não buscara nem pedira.

E o Amor? E o Amor? E o Amor?

—: Vieste

(«A Companheira», in Campo Aberto.»)

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Do seu namoro e do seu casamento, vem ela oferecer generosamente ao público, as primícias do mais belo testemunho de amor e de amizade: o Manual do Bom Amador, tal como Sebastião queria que fosse a correspondência trocada com ela e na qual ela confessa estar «registado o que ela era em toda a sua integridade.» (25) Só há um tema nunca abordado nessas cartas: a doença. «Fizemos um pacto de silêncio», recorda Joana Luísa. «A tal ponto que a morte dele foi uma surpresa para mim...»

Sebastião morreu no dia 27 de Fevereiro de 1952, com 27 anos, e Joana Luísa já sabia que ele teria pouco tempo de vida quando se casaram, não havia nove meses. Do espólio do marido, publicou dois volumes de poesia, outros dois de prosa. Das 727 cartas guardadas por Joana Luísa, 83 cartas dirigidas a ela foram editadas pelas Edições Ática, em 1994, sendo quatro de 1943 e 79 do ano seguinte. É o primeiro dos cinco volumes programados que reunirão as cartas de Sebastião da Gama para a sua futura mulher e para os amigos.

Queremos pensar que, assim como Joana Luísa com essas 727 cartas, a ela dirigidas, se sente a «pessoa mais rica do mundo», pois que possui um tesouro que mais ninguém tem, como confessa, também todos quantos seguem o seu sulco humano de educador e de poeta, terão nestas cartas do Bom Amador; mais um motivo para amar a vida e fazer dela uma cultura de amor.

Como diz Maria de Lourdes Belchior (Prólogo de Cartas-I, Atica, 1994,p.1994): «As cartas de Sebastião da Gama para a noiva são um testemunho de vida. O poeta vive na demanda constante da Poesia e faz da sua vida Poesia. Ama os homens e a Natureza; é um solitário e um homem de convivência; é presa de angústias interiores que são a sua noite escura, e derrama uma ternura franciscana, feita de alegria e espontaneidade, por sobre as criaturas.»

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2. FILOSOFIA E PEDAGOGIA

Diz Ortega que «a pedagogia é a aplicação aos problemas educativos de uma maneira de pensar e sentir sobre o mundo, digamos de uma filosofia» (III,p. 131).

Desta asserção podemos inferir que, em relação à acção pedagógica, a filosofia ocupa o lugar de fundamentação: diz-me o que pensas acerca do mundo e acerca de ti mesmo e dir-te-ei como educas. Seguindo esta linha de pensamento, pôde interpelar os pais desta forma um tanto ou quanto dramática:

«Reparai nos vossos filhos que entregais a um educador: estais a colocar o vosso ouro nas mãos de um ourives cuja arte desconheceis. Que ideia acerca do homem terá o homem que vai humanizar os vossos filhos? Qualquer que seja, será indelével a marca que deixa neles.» (I, p.510)

Mas será assim que se passam as coisas? Será que a pedagogia de um professor normal, médio, tem subjacente, como assegura Ortega, uma filosofia? Ou melhor: será que em todo e qualquer professor existe um secreto filósofo? Era bom que assim fosse. Mas infelizmente, a maior parte dos professores funcionam, não como pedagogos, mas como instrutores apenas de conhecimentos mais ou menos científicos ou técnicos, abstractos e desconexos, na sua maior parte.

Para fazermos uma breve reflexão acerca das relações Filosofia-Pedagogia, coloquemo-nos na situação do professor ideal: o educador que longe de se contentar com a especialidade que tem — a história, a biologia, a matemática, ou outra — procura ter o conhecimento radical e total acerca das exigências que tem a vida própria, a vida de cada qual, a minha vida. Na nossa circunstância ibérica, a instância à qual nos habituámos a recorrer, para saber a que nos ater acerca das coisas face aos problemas que a vida nos

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coloca, costuma ser, quando não são outras mágicas e limitativas, a ciência.

As ciências são conjuntos de proposições pensadas de um modo formal, com carácter intelectual rigoroso, cujo conteúdo é, precisamente, o consistir em ideias verdadeiras e em princípios demonstráveis, embora para a imensa maioria das pessoas, alheias à especialidade de cada ciência, funcionem como «crenças», em sentido orteguiano, ideias em que estamos e somos antes de nos ocuparmos em pensar. As ciências, enquanto ciências, bastam-se e são autónomas, como autónomas são as diferentes formas do saber do homem: daí, as ciências não precisarem de nenhuma espécie de complemento.

No entanto, isto não deixa de se verificar, se pretendemos elevar a ciência à categoria de conhecimento, quer dizer, se a considerarmos do ponto de vista das exigências totais que tem a vida de cada um na dimensão que chamamos «saber». Com efeito, nesta perspectiva as ciências como saber são insuficientes e esta insuficiência afecta a função que elas têm nas nossas vidas. Se compararmos o pensamento filosófico com o científico, este resulta limitado em relação à àquele. Um pensamento é filosofia quando abrange o Universo na sua integridade, e ainda, quando busca a unidade integradora do homem. O pensamento científico divide essa integridade do nosso mundo vital, do homem integral, e isolando uma porção, faz dela questão.

As ciências, como todas as técnicas, são particularidades do pensamento filosófico e, na medida em que são restrições da curiosidade inicial que é o pensamento filosófico são, segundo Ortega, «relativas cegueiras.» Por isso, segundo este pensador, não basta que um homem domine uma ciência para que arvore um ar de senhor. «O cientista não tem ideias claras a respeito de todas as várias facetas de sua vida.» (VI, p.325)É que a verdade científica é incompleta, parcial, não se apoia em si mesma, não é radical. Precisa de se integrar noutras verdades que sejam completas e verdadeiramente últimas. O homem que existe em cada cientista

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exige uma verdade integral, quer dizer, uma filosofia. As ciências são auto-suficientes: elas são efectiva e plenamente o que são, enquanto tais, mas não me são suficientes a mim, para eu saber a que ater-me a respeito das coisas e, portanto, para viver. Necessito de algo mais.

O pedagogo, hoje em dia, porque tem ao seu dispôr várias ciências que lhe proporcionam muitos elementos práticos e técnicos para o seu afazer, corre o risco de pôr de lado a reflexão filosófica por ser inútil frente aos problemas pontuais que a sua tarefa educativa lhe vai colocando. Ora isso pode levar ao perigoso esvaziamento do afazer pedagógico do educador, na medida em que implica a perda da sua liberdade pessoal de homem, pois quando não tem uma séria preparação filosófica, o educador cai facilmente na tentação da fé no aspecto pragmático da ciência e vive no dogmatismo intelectual.

Contudo, nada é tão necessário ao professor como a independência do espírito. Mas esta independência espiritual, em forma de libertação íntima de todas as ligações dogmáticas, só pode ser alcançada pela filosofia, pois a filosofia antes de ser um sistema de doutrinas cristalizadas, é uma doutrina de libertação pessoal perante tudo aquilo que herdamos historicamente e que experimentamos afectivamente ao viver.

A filosofia liberta-nos das «ideias», dos dogmatismos dos grupos sociais que nos atraem com uma alienadora segurança afectiva. Ela coloca-nos naquela atitude do espírito humano, verdadeira, que consiste em assumir a vida humana integralmente na sua condição radical, quer dizer, como fenómeno do ser humano em permanente risco, na sua indigência e dependência natural, em desafio jovial e desportivo, sem resistências nem falsificações. Suprimir qualquer destes aspectos «perigosos» da vida humana, seria o mesmo que tirar-lhe a sua consciência.

É por isso que Platão afirma no Sofista, com toda a razão, que a filosofia é a ciência dos homens livres, nobres e desportistas. Livres perante todas as armadilhas que, em nome da segurança afectiva, o

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poder costuma propagar. Com efeito, a filosofia não demonstra a verdade com a vida — apanágio da religião existencial — analisando sim, a verdade para se viver autenticamente.

Enquanto a ciência busca o princípio de segurança, a filosofia tem como função buscar a segurança do princípio, de um novo centro, no constante chamar de atenção para o que importa e que constantemente nós, os homens, esquecemos. Daí que a filosofia critique a vida convencional, alicerçada em ilusões, fazendo-as contrastar com a realidade radical que é a própria vida humana individual.

Deste modo, consideramos que é indispensável ao educador a reflexão filosófica. E não apenas como complemento do seu estatuto científico, mas como libertação do seu espírito em face a qualquer situação de dependência dogmática e alienadora.

Entre as muitas filosofias que existem, há uma que agarra a vida humana pela raiz, assume o ofício de viver como primordial e tem em linha de conta a interdisciplinaridade das ciências humanas. É uma filosofia que não é uma metafísica abstracta, mas que propõe «esse algo indispensável para a humanidade», de que fala Dilthey. É uma filosofia nascida na península, nela pensada a partir da latinidade e escrita numa língua românica, com palavras comuns, que reune todas aquelas características. É a filosofia da Razão Vital de Ortega, filósofo nascido em Madrid, em 1883, que escreveu em Lisboa, entre os anos 1942 e 1945, o livro mais profundo da sua vida, onde está exposta toda a sua filosofia: A Ideia de Princípio em Leibniz.

Esta filosofia não é um corpo estranho na mente portuguesa, pelo contrário. Disso temos a certeza ao compulsar o Diário de Sebastião, em que está latente o essencial desta filosofia da Vida, de que ele nos dá conta, orteguianamente, por meio da razão vital e narrativa da qual o seu Diário é um exemplo lídimo.

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3. A FILOSOFIA DA RAZÃO VITAL E HISTÓRICA

Ortega opera uma viragem completa na filosofia ocidental quando coloca na Vida Humana Pessoal a realidade radical, raiz de toda e qualquer outra realidade, fundamento de uma nova metafísica, baseada não no «ser», mas no «viver». Este ponto de partida vai separá-lo tanto do realismo substancialista grego como do racionalismo idealista moderno.

Não se limita a mostrar que a realidade primária não é nem as coisas nem eu, mas um acontecimento: a minha vida, a vida de cada qual, a vida humana. Toda outra realidade que não seja a da minha vida é uma realidade secundária, virtual, interior à minha vida e que tem nesta a sua raiz e a sua fonte. Por vida humana, não se refere ao fenómeno biológico, mas antes ao acontecimento histórico, ao afazer dramático do viver que se faz e se desfaz em cada momento. Porque o homem não é um ser natural, apesar de ter um corpo natural: é histórico.

Esta condição histórica do homem condiciona a própria razão e a ideia do conhecimento e da verdade.

Viver é uma criação constante, um projecto em liberdade forçada que tem de se justificar inexoravelmente. Neste sentido, conhecer não é mais do que um aspecto próprio do viver. O homem não pensa sem mais nem menos, mas porque se vê perdido num elemento estranho, o mundo, e precisa de se orientar.

Assim resulta que a razão é apenas uma função da vida. Viver é já entender; a forma primária e radical da intelecção é o afazer vital humano. A razão é a própria vida humana e esta funciona como órgão da compreensão. Conseguimos entender algo quando o referimos à totalidade da vida individual. Isto significa «razão vital». Esta razão vital é histórica, pois o homem só é inteligível dentro da história em que se fez e se faz. Esta razão vital e histórica trata de

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ver como se faz cada facto humano, através da narração que funciona como uma forma de razão. Este seria um método para compreender a realidade radical que é a vida individual: Método da Razão Vital e Histórica e Narrativa.

Quando esta filosofia da realidade radical se refere ao homem em transição, no seu processo psicogenético, exigirá à pedagogia uma atitude de respeito pelas peculiaridades de cada narração individual e humana, além duma potenciação de todas as possibilidades psíquicas. Assim, perante esta tarefa ambígua, a que chamamos «estudar» e que forma parte da pedagogia tradicional, Ortega coloca-se criticamente. Para ele, não há «congruência entre o triste afazer humano que é estudar e o admirável afazer humano que é o verdadeiro saber, pois enquanto este responde a necessidades efectivamente sentidas, aquele introduz na mente um corpo estranho.» Para entender verdadeiramente uma ciência é preciso sentir autenticamente a sua necessidade. Como o estudar é uma obrigatoriedade imposta, uma necessidade social (a de conservar o saber acumulado historicamente, por exemplo), não pessoal, constitui um verdadeiro problema do ponto de vista do desenvolvimento psicogenético do ser humano, pelo que a filosofia da razão vital e histórica optará por privilegiar, principalmente na fase elementar da educação, as funções essenciais da vida individual.

Estas funções essenciais da vida estariam presididas por aquilo a que Ortega chama «ímpetos originários da psique», como a coragem e a curiosidade, o amor e o ódio, a agilidade mental, o afã de gozo e de triunfo, a confiança em si e no mundo da sua imaginação. Ao motivar estes ímpetos psíquicos, estamos a tratar de edificar um homem como possibilidade de futuro e de criatividade, porque o que urge é educar não para a vida já feita, mas para a vida criadora. Há que educar para uma tonalidade ascendente da vitalidade psíquica, para produzir o maior número de homens perfeitos e a isto chega-se, educando a criança segundo um padrão de puerilidade, pois o homem mais conseguido não é aquele que foi menos criança, mas aquele que, ao chegar aos trinta anos, encontra

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acumulados no seu coração os mais esplêndidos tesouros da infância.

A estas funções psíquicas, Ortega acrescenta duas dimensões da personalidade: a autenticidade e a sociabilidade.

A autenticidade diz respeito à realização plena de cada vida individual. Cada ser humano é uma forma de viver e de existir diferente. Esta realidade é tão importante e tão frágil que a sua preservação exige autenticidade, ou seja, a descoberta de si mesmo, a fidelidade à sua vocação pessoal, ao imperativo ontológico do «ter de ser» em detrimento do imperativo moral do «dever ser» de qualquer proselitismo social de grupo de poder.

A dimensão da sociabilidade diz respeito à nossa relação com os outros seres humanos; somos indivíduos da humanidade até por razões biológicas. Esta dimensão social relaciona-se principalmente com a integração cultural, por meio do trabalho criador e gratificante, quer ao nível das funções psíquicas quer ao nível das necessidades sociais.

Estas notas teórico - pedagógicas da filosofia da razão vital e histórica são plenamente assumidas por Sebastião quando, verdadeiro artista, integrador da vida psíquica individual, coloca o amor no centro do seu afazer pedagógico. Com efeito, o amor é o verdadeiro símbolo da harmonia do universo e, como integrador de todas as capacidades psíquicas, é o seu responsável directo sobretudo nos períodos da infância e da adolescência. A dimensão afectiva é decisiva nas primeiras etapas da vida individual. O amor, nestas etapas, torna-se quase no único órgão da compreensão da vida humana. Compreendemos a vida amorosamente, em conexão íntima, universal e convivencial. Sendo vivenciada a vida como amor, torna-se em âmbito de gozo, de plenitude, de festa e de felicidade. Eis as três constantes da pedagogia do Diário: o segredo é amar, a aula é uma festa, o que eu quero principalmente é que os rapazes vivam felizes.

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Não existe nenhum reforço psíquico, integrador das potencialidades, como o amor, nenhum outro caminho da autenticidade individual e nenhuma outra prática para realizar a convivência social. Sebastião ao agarrar a vida pela dimensão essencial do amor, tornou-se num eloquente exaltador da própria vida, ele que desde criança teve que enfrentar a morte no seu corpo. A este respeito pode dizer Matilde Rosa Araújo que «cada página sua é vida, vida que ele sabia breve e que quis dar inteira como se nos entregasse finalmente o próprio Amor.»

Como artista outorgou aos poetas a gloriosa missão de exaltar a Vida. Dirá assim: Cabe aos poetas mostrar a grandeza da vida. Mas terá mesmo grandeza, a vida? Onde reside essa grandeza? Não será fora dela, como muitos pensam. Se a vida tiver grandeza, ela tem de estar nela mesma. Trata-se de uma nova orientação da cultura. Trata-se de consagrar a vida, fazendo dela um princípio e um direito, porque embora possa parecer estranho nunca se tentou fazer dela um princípio. Tem-se vivido para a religião, para a ciência, para a moral, para a economia; até se tem vivido para servir a arte ou o prazer; o que nunca se intentou foi viver deliberadamente a vida. Por sorte, isto sempre se foi fazendo, melhor ou pior, mas indeliberadamente; assim que o homem se apercebia de que o estava fazendo, logo se envergonhava e sentia um estranho remorso.

Era então algo extraordinário pensar o homem a partir da vida propriamente dita. Daí que todas as visões que dominaram a prática educativa o tenham falseado, umas vezes por excesso, outras por defeito Impunha-se, assim, pensar o tema do homem a partir da vida propriamente dita, olhando-a, não de soslaio, como era uso, mas de caras, convertendo-a em objecto de investigação e conhecimento, deitando mão da técnica do distanciamento, como o pintor diante da sua tela, a fim de poder fazer salientar a perspectiva.

Mas de que vida falamos? Da minha, da tua, da vida de Sebastião, da vida em concreto, vida situada, vida singular. Com

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efeito, para ele, a grandeza da vida reside na potência de amor que ela é, nessa conexão universal que nela pode acontecer e que se manifesta como convivência, como comunhão, como gozo de uma alegria aberta e como expressão do imaginário por meio do desejo criador. Sebastião, como todos os grandes artistas da palavra poética, desde Platão até ao poeta anónimo que lateja em todos nós, tem uma filosofia vital do amor unificador e integrador. Diz assim: Tenho para mim que o Amor é religião e namoro, alma e carne, Céu e Terra, instinto porque somos animais — e ascese porque podemos ser santos. Tenho para mim, logo a seguir, que o Amor perfeito não admite que o cindamos porque é uno; que o vejamos de dois lados, porque só tem um lado. Quando num copo se misturou água com vinho, é inegável que se pôs lá vinho e se pôs também água. Mas vão lá agora distingui-los!... A metáfora é tosca, mas no Amor é assim. (Lugar de Bocage na nossa poesia de Amor» in O segredo é amar, p. 94)

Eis o amante e o poeta unidos na arte integradora do amor. Ora quem vive a vida como um acontecimento de amor, faz da sua razão vivente um órgão da compreensão amorosa de onde se vê tudo harmonicamente constituído, convivencialmente estabelecido, felicitariamente construído. Eis porque Sebastião, situado como educador de adolescentes, não podia deixar de fazer da sua tarefa pedagógica senão um impulso de festa e de felicidade, porque o amor tonifica o psiquismo para viver com vitalidade dinâmica e criadora. Cantor exaltado da Vida, o Sebastião educador, porque sentiu na vida a força do amor como uma realidade viva, cedo encontrou uma mulher que esteve sempre ao seu lado como companheira, como amada, amor real que lhe abriu as portas a todas as outras formas de amor, como a amizade, como dom de si mesmo junto dos outros, como dádiva que é gozo, esperança, sonho e até dor, porque viver é sempre drama, algo que nos acontece de bom, de maravilhoso, mas também algo de terrível, de angustioso e de mortal. A morte acontece na vida, brota dela mesma como seu fruto, a morte não destrói a vida, apenas a suspende e porque a vida é indestrutível para quem a viveu como acontecimento de amor,

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de conexão, e o amor por ser uno não acaba, imortaliza-se no sonho, no desejo dos outros que nos seguem, no eco de uma palavra, no perfume de uma flor. Por isso, Sebastião podia cantar:

Chorem os outros. Morte, a dolorida meia hora final.

P'ra mim, que bom saber até ao fim a que é que sabe a Vidal...

(«Romântico», in Serra-Mãe).

E como a vida sabia a amor, uno e integrador, a morte recuava.

E é que a morte não constituía uma fatalidade para Sebastião, mas antes um prémio. Assim no-lo diz, numa carta a Matilde Rosa Araújo: Quando a morte vier, diz-lhe que não: diz-lhe que és moça e não cumpriste ainda.., ainda não a mereces. Não mereces a morte ainda, Matilde. Que é que nós fizemos? A que boca demos pão?... Ver Nápoles e morrer, dizem. Fazer alguma coisa e morrer, devemos dizer nós, gente nova. (Jornal de Letras, o.c.p.8)

E bem sabemos como para Sebastião fazer alguma coisa é pura e simplesmente «amar». «Tens muito que fazer? Não, tenho muito que amar». Eis a norma eterna para Sebastião, o projecto radical para ser, o programa vital para viver. Eis a pupila que vê e compreende a vida como o que é, na sua radicalidade, na sua imortalidade, na sua capacidade estruturante de toda e qualquer personalidade. Amor vitalizador, amor realizador, amor socializador da pessoa. Ruy Belo captou este segredo da razão vital de Sebastião ao afirmar que a «generosidade de Sebastião, a sua dedicação a uma mensagem de amor, é prévia a uma obra onde aparece transfigurada. Não é que não haja nele sede de criação. O que não é, é absorvente a ponto de comprometer uma alma... A poesia acontece-lhe na devida sazão. como os frutos acontecem na árvore.» (o.c. p. 197)

Com efeito, na trajectória biográfica de Sebastião tudo aconteceu na devida altura, como um fruto natural, desde o amor até à morte, passando pela dor, pela comunhão, pela amizade, pela poesia, pela comunicação educativa. Ele está todo inteiro em cada

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acto vital. O que diz respeito à sua poesia. poderia ter dito, até da sua própria morte:

Viesses tu, Poesia e o mais estava certo. Viesses no deserto, viesses na tristeza, viesses com a Morte...

(«Viesses tu, Poesia», in Pelo sonho é que vamos.)

A cada verso nasço...

É cada verso o meu primeiro grito à Vida...

(«A cada verso nasço...», in Serra-Mãe.)

Por possuir esta vitalidade ascensional de nascer em cada verso dos seus actos, dos seus afazeres, é que a pedagogia de Sebastião da Gama, narrada no Diário, emerge fresca, original, viçosa, como se estivesse ela própria a nascer, viva como o primeiro dia do mundo. Na realidade, desde que o homem se assumiu como indivíduo social, vai nascendo continuamente esse acontecimento de relacionação interindividual entre dois próximos, entre o adulto e a criança, símbolo do primeiro dia da criação, sinal do primeiro acontecimento de amor, dádiva de um deus cósmico que perpassa com o seu sonho todas as criaturas do mundo. Sebastião, pedagogo do Diário, o primeiro menino adulto a crer que educar é sinónimo de fazer crescer por dentro, pela força do desejo e do amor. Sebastião, o criador da narração mais bela de qualquer literatura porque nela nos dá conta do milagre permanente da criação em que um homem e um menino comungam nos mesmos sentimentos de festa, de amor e de felicidade. Tão mítica a felicidade, tão utópica esta aspiração e, no entanto, tão necessária e tão real, tão resplandescente por obra e graça de alguém que acreditou no amor e apostou nele todas as cartas do seu baralho vital e biográfico.

Porque, se bem repararmos, o Diário, que é o registador da filosofia educativa do amor convivencial e eficiente, funciona como um exemplar raro do que Ortega propõe como forma própria da razão vital e histórica que é a razão narrativa. O único modo de ser da vida é viver; e o único modo de falar dela, na sua concepção real, é contá-la. A narração é a forma da apresentação ou

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manifestação da vida humana, na sua articulação interna, na sua conexão vivente.

Ora para que um relato possua «sentido», é mister que nele estejam presentes os ingredientes da vida, na sua complexidade efectiva e dinâmica; se assim não for, não se entende; e a narração que emerge de uma fidelidade ao próprio ritmo vital situa esses ingredientes no seu lugar verdadeiro e fá-los funcionar autenticamente. No Diário estão presentes todos os ingredientes da vida no momento do acontecimento educativo: um mestre, as crianças, os sentimentos, os programas escolares impostos, o ritmo vital de cada indivíduo, os projectos vitais de todos, as surpresas de cada pessoa, as suas contradições, as suas limitações, os ritmos sociais da época concreta, da circunstância lisboeta duma determinada escola. Por ser narrativa fiel e poética ao mesmo tempo, é que o Diário nos dá conta, de forma insuperável, do «mundo» humano, do acontecer educativo numa aula de um professor, de uma escola, numa data de Portugal contemporâneo.

Este modo de dizer, em forma de Diário, é o «genus dicendi» que melhor responde à forma da razão narrativa para agarrar o acontecimento vital do afazer educativo. Em lugar de se formularem enunciados teóricos, engarçados em raciocínios de estrutura mais ou menos lógicos, descreve-se uma situação em forma de drama, com personagens e cenário, e narra-se. Esta narração é, pois, a estrutura formal desse dizer, cujo propósito é rigorosamente cognoscitivo. E dizemos cognoscitivo, porque sendo o Diário um livro poético, não é um livro de mera literatura ou monólogo interior, mas um livro de pensamento que se dá como literatura e que resulta filosofia pedagógica ou diálogo socrático com seus alunos, pois Gama não pretende ofuscá-los com o seu saber mas convencê-los com a sua amizade.

Precisamente porque o seu pensamento é honesto, tem um sentido dialéctico que exige colaboração, a dos seus alunos. Por isso, a Pedagogia Vital de Sebastião não se encaixa em nenhuma escola académica, mas visa a «Escola ideal» de que fala Ortega e que

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«seria um instituto que tivesse podido permanecer idêntico desde os tempos mais primitivos do passado e perdurasse invariável nos tempos mais avançados do futuro, porque o que ela tem de educar é imutável em qualidade e conteúdo; só é aperfeiçoável em intensidade.» O verdadeiramente urgente «não é educar para a vida já feita, mas para a vida criadora.»( II, p.279)

É na intensidade das três dimensões da pessoa: vitalidade, sociabilidade e autenticidade, como fundamento para a vida criadora, que mais insiste Gama, se soubermos penetrar na densidade do Diário como texto especulativo que é, não abstracto. Dizemos especulativo, pois é um texto espelho (speculum), onde se reflecte o aspecto mais importante da teoria da vida, como produto da mente de Sebastião, sempre ligado ao estilo da sua vida, da qual emerge, e que representa a melodia do seu destino pessoal. Porque o Diário funciona assim, ele exige uma tarefa interpretativa mais apurada que uma qualquer obra abstracta de pedagogia. Ora, estas características do Diário confirmam a ideia de que, de todos os objectos do mundo que o homem cria, a escrita é aquele que exprime com mais intensidade o sentido da realidade da vida humana...

Com efeito, o Diário de Sebastião contém uma multiplicidade de pontos de vista ou perspectivas, qual pupila que se desloca sucessivamente, segundo as exigências do relato, ao longo dos diferentes ingredientes que nele intervêm; quer dizer, em vez de focar o número onde acontece o drama pedagógico narrado como uma coisa em si, fixa e inerte, vive-o como um mundo humano, como um horizonte mutável e elástico, definido pelo seu centro vital, o ponto de vista diferente em cada caso. Esta multiplicidade de pontos de vista procede dos estados de alma do pedagogo poeta e dos estados cambiantes das personagens que integram o relato, já que é no centro da sua vida afectiva que Sebastião encontra as personagens com quem convive, com quem dialoga e que ama. Esta razão narrativa é o fruto duma razão vivente; é do viver em festa de amizade que emergem os elementos descritivos das situações e das personagens do drama em que acontece o afazer educativo. O

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conjunto desses elementos fluidificam a realidade educativa, através dos factos e das próprias palavras do relato, porque a realidade educativa brota no seu estado originário.

Eis porque o Diário nos patenteia o acontecimento pedagógico no próprio momento do seu nascer. Sebastião diz-nos que «nasce em cada verso»; mas também nasce em cada acto de comunicação interpessoal porque o converte em poema onde grita pela vida essencial, para que a vida dê o máximo de si própria. Não terá a vida como fim o desejar mais vida, vida mais plena, vida ascendente, vida estruturante do homem integral?

O Diário é, na realidade, o poema pedagógico mais belo que jamais se escreveu em Portugal, é um dos relatos mais vivificantes do homem português com que a história da educação em Portugal pode contar. Em jeito de narração, a razão vital de um pequeno filósofo de grande coração, mostra-nos os caminhos por onde o amor avança estruturando indivíduos, edificando pessoas por meio de palavras que ajudam a pensar e de desejos que ajudam a realizar a nossa condição itinerante por meio do sonho, porque, como diz Gama, o poeta:

Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não frutos,

pelo sonho é que vamos. Basta a fé no que temos. Basta a esperança naquilo que talvez não teremos.

Basta que a alma demos,

com a mesma alegria,

ao que desconhecemos

e ao que é do dia-a-dia. Chegamos? Não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos.

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(«Pelo sonho é que vamos», in Pelo sonho é que vamos).

Ensinar e Ser é norma do professor. Ser para poder ensinar e ensinar para chegar a ser. Ser é ir. Ser é realizar. «A vida é um gerúndio e não um particípio: um faciendum e não um factum. A vida é um quefazer» (VI, p.33), dirá Ortega. «Caminante, no hay camino/ se hace camino al andar», dirá outro pedagogo, António Machado.

Se nos deixarmos guiar pelo sonho, a realidade nunca será pobre, não passará de um pretexto para ir mais longe, como diz Ruy Belo.

O quefazer do mistério educativo do homem em trânsito é sempre ir mais longe. Por isso, educar é uma arte, porque a educação não se conforma com a obra a meias.

Daí que o educador deve ser, antes de mais nada, o entusiasta de todos os momentos, porque em todos eles acontece o milagre do nascimento de um homem, por obra e graça do nosso amor.

Este é o segredo do Diário de Sebastião da Gama, poema pedagógico, poema de uma vida como Diário que é.

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Teoria educativaJulgamos não exagerar ao afirmar que o Diário de Sebastião,

da primeira à última página, tem como dominante a necessidade vital de que o educador faça coincidir o seu ensino com a dinâmica do integral desenvolvimento psíquico do educando, orientado para a vida, vida que se quer feliz. Fazendo suas as palavras do metodólogo, afirmará logo de início: «O que eu quero principalmente é que os rapazes vivam felizes». (O Diário, p.31)

Como poeta, o seu sentido estético do viver leva-o a ser especialista em vidas alheias, pedagogo do amor convivencial. Quando se interroga pelo seu quefazer de professor, só encontra uma resposta: amar.

Tens muito que fazer?..., pergunta-se socraticamente.

Não, tenho muito que amar. Responde-se a si próprio, acrescentando:

Não entendo ser professor de outra maneira. (Ibidem, p. 127)

Noutra ocasião, acusando a recepção da carta de um colega, em que este dizia «Ensinar é Amar», junta este comentário: «Estamos todos de acordo e ainda bem, neste ponto». (Ibidem, p.80)

Para este jovem professor-estagiário, o amor não é apenas uma palavra, um belo programa teórico, ideal, ele é o acontecimento soberano da vida humana, centro de toda e qualquer teoria educativa. Em Sebastião da Gama, a educação é mais uma arte do que uma ciência, pois consiste na tentativa de estabelecer a harmonia de todas as coisas do universo dentro de cada indivíduo. Cada coisa — e o homem também — é uma suma de relações. E só a arte é capaz de as adivinhar e reunir.

As ciências buscam as relações das coisas, mas, ao contrário da arte, não as conseguem integrar num feixe. Aliás, evocando Ortega, poderíamos acrescentar que é precisamente desta tragédia da

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ciência que nasce a arte. Enquanto aquela rompe a unidade da vida entre natureza e espírito, esta funde-os novamente. O que verdadeiramente importa é fazer ver e sentir que um indíviduo, coisa ou pessoa, é o resultado de todo o resto do mundo: é a totalidade das relações. É este o significado que Gama dá à palavra amor

O poeta Sebastião da Gama cedo intui esta verdade e, por isso, faz dela o eixo do seu sistema educativo na escola. A educação tem que integrar o indivíduo dentro da totalidade do mundo. Neste sentido, ele próprio sentirá a necessidade de se mostrar como um feixe de relações afectivas nas suas relações convivenciais com os alunos. Assim a definição de professor que encontrou no seu metodólogo, e com a qual coincide plenamente, é: «Ser professor é dar-se». Esta é a melhor forma de revelar aos outros aquilo que pensamos acerca da convivência harmoniosa e universal.

Assente nesta ideia, interpretará os aspectos negativos que todos temos por falta desse princípio unificador e perfectivo da pessoa. Por isso, quando alguém, à sua volta aborda o tema «rapazes maus», ele reagirá de maneira peremptória e crítica, dizendo:

Não há rapazes maus. Há falta de boa vontade, de amor, da nossa parte.

e acrescenta, cheio de mágoa:Quantos (Deus me perdoe!) não terei eu já abandonado? (Ibidem, p. 171)

No fundo, o segredo das inadaptações das vidas radica na falta de boa vontade. Gama tem o testemunho de muitos dos seus alunos. É paradigmático o testemunho de Souto, que lhe escrevia nestes termos:

Senhor Dr., talvez seja um pouco desconfiado mas, como muito bem observa, eu sou assim porque sou, e só muito dificilmente me poderia corrigir É claro que sou assim, não porque se traga já talhada do ventre materno a maneira como iremos encarar a vida. Essa atitude para mim, depende antes de tantos factores, por vezes julgados insignificantes, que no entanto têm a força, a influência

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necessária para ditar uma conduta. Uma infância infeliz, com privações ou que não se pode expandir com brincadeiras próprias da idade, devido a doença, e que obrigou a criança a arrastar com a incompreensão, a inconsciência dos companheiros; um mau ambiente familiar, quando já homem, um desgosto de amor (porque eu, apesar de tudo, acredito no amor), um desejar de coisas que nos tardam e vemos quase impossíveis, etc., tudo isto pode azedar o carácter da pessoa, não contando, já se vê, com as lombrigas, as bilioses e mais distúrbios glandulares, que devem ser o factor principal dos estados emocionais depressivos (...) (Ibidem, p. 205)

Por serem tão negativas as consequências da falta de boa vontade, da carência afectiva, do vazio de uma presença que se precisa, o professor Sebastião fará todo o possível para que se manifeste a sua vontade decidida em prol dos alunos, sob a forma de relação de amor e de amizade. Aliás, é deste comportamento cordial que Gama fará depender o seu título de professor. Ser professor é fazer amigos entre os alunos. Visitá-los será para ele um motivo de satisfação. Conta assim:

Fui a Setúbal visitar os meus alunos. Não quero alongar-me em contar como isso é bom para mim — eram dúzias e dúzias de amigos a saudarem-me, era eu a sentir-me peixinho na água porque a minha água é o Amor. ( Ibidem, p. 130)

Todos os momentos são oportunos para este professor cordial iniciar os seus alunos na prática activa do amor, por meio de atitudes e palavras. O caso do tribunal improvisado entre os alunos na aula é exemplo disto. Servindo-se da defesa feita por um deles, diz-nos:

Aproveitei a eloquente defesa do Romão, baseada sobre a ausência de más intenções da parte do réu sobre a sua mocidade exuberante, que tem o dever e o direito de cantar, para lhes dar uma lição de Amor. Dêmos o Coração, sobretudo àqueles que erraram; a esses não os condenemos logo: busquemos antes, pelo Amor, que é compreensão, antes de mais nada, trazê-los ao bom caminho. Um homem que está na cadeia pode ser um homem bom

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- vítima de uma hora má, de uma leitura perigosa, de um companheiro vil; está na cadeia mas é nosso irmão: amemo-lo porque pode ser que assim se regenere. E amemo-lo (não esqueçamos) de igual para igual — por fraternidade pura, não por dó, porque o dó pressupõe superioridade e pode magoar. (Ibidem, p.166)

Gama sabe como o amor é uma realidade decisiva no período da adolescência, integradora da personalidade em processo evolutivo. Por isso procurará subordinar-lhe as suas aulas que, para ele, não são mais que meros pretextos para conviver.

Um pretexto para estar e conviver com os rapazes alegremente e sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de urna coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando. (Ibidem, p. 31)

Conviver, eis a palavra-chave, palavra - programa e projecto educativo do homem Sebastião, professor e poeta. Ele está convencido de que todo o verdadeiro viver é conviver; é apoiar-se mutuamente, é suportar-se, tolerar-se, alimentar-se, fecundar-se e potenciar-se reciprocamente. Há uma convivência intrínseca à vida individual: a convivência que implica viver em sociedade, viver atido a outras vidas. Esta é a convivência que se impõe desde fora de nós. Mas há outra convivência que se procura desde dentro de nós e que diz respeito à solidão individual.

A vida individual é intransferível, na medida em que cada um executa o seu viver, por isso a vida é solidão radical. Mas, por outro lado, há uma necessidade, um procurar indiscutível de companhia, de sociedade, de convivência. Aparece aqui o sentimento do amor como tentativa de união de duas solidões, segundo o dizer de Ortega. Sebastião atém-se a este tipo de convivência na sua relação com os alunos, e daí, para ele, estes serem não apenas alunos, mas amigos.

Ora, para que tal convivência aconteça verdadeiramente, é necessária uma condição: a lealdade. Lealdade dos alunos para com

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o professor e lealdade de uns para os outros. Gama não pode ser mais explícito a este respeito no segundo dia de aulas do estágio:

Pedi, mais que tudo, uma coisa que eu costumo pedir aos meus alunos: lealdade. Lealdade para comigo, e lealdade de cada um para cada outro. Lealdade que não se limita a não enganar o professor ou o companheiro: lealdade activa, que nos leva, por exemplo, a contar abertamente os nossos pontos fracos ou a rir só quando temos vontade (e então rir mesmo, porque não é lealdade deixar então de rir) ou a não ajudar falsamente o companheiro. (Ibidem, p. 32)

De como era exigente acerca desta condição necessária para a verdadeira convivência mestre-aluno, dá-nos conta o relato deste caso concreto:

Estive em Coimbra, a fazer exames. Para eles se entreterem, encomendei-lhes uma redacção sujeita ao tema: «O professor faltou». O resultado só foi desanimador na medida em que eu peço sinceridade. Se é certo que eles gostam de Português e desamam Noções do Comércio, não é menos certo que é quase anormal o rapaz não ficar felicíssimo quando o professor falta; ora na maioria declararam-se pesarosos, tristes, pensativos, desgostosos, aborrecidos. Não desanimo, porém; eles não têm a culpa e com jeitinho levá-los-ei a dizerem com franqueza o que querem e o que pensam. (Ibidem, p. 57)

A lealdade, para este educador, é a medida da espontaneidade e da sinceridade relacional. É assim uma lealdade activa, que implica abertura da alma, expansão dos sentimentos, ou seja, um verdadeiro convívio afectivo. A afectividade é a dimensão que domina na adolescência, por isso, um amigo verdadeiro terá que a favorecer e terá que a usar para se introduzir no mundo do adolescente. A felicidade que Gama procura e quer edificar nas suas aulas passa pelo campo do afectivo. Para ajudar os adolescentes há que partir de dentro deles próprios, pautando-se pela coerência da sua vida afectiva, pois as expressões dos sentidos têm a sua lógica interna,relacionam-se todos com os significados que adquirem nas

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situações em que são vividos. Ortega usa uma fórmula muito apropriada para indicar essa relacionação: «Eu sou eu e a minha circunstância», quer dizer que o nosso eu pessoal (primeiro Eu) é o resultado das relações de um outro «eu» (o segundo), que dialoga com a circunstância plural, interna e externa, de cada sujeito.

Para Gama, pois, a convivência na escola fundamenta-se na lealdade activa. Deste modo, não poderá deixar de corroborar a sentença de Artur, o rapazinho vivo, «sempre pronto a falar e a ter razão», quando disse a propósito de um seu colega que falou no elevador de Santa Justa «que não interessa o que se vê, interessa o que nos impressiona.» E o que tinha impressionado os seus sentidos era «um ar fresco e um piar alegre de um pintassilgo.» (Ibidem, p.38) E é destas duas sensações que falará na sua redacção, que o professor tinha intitulado assim: «Da varanda da nossa aula».

Com efeito, Gama quer fazer sentir aos alunos que o que importa numa redacção é escrever a partir de tudo aquilo que toca a cada um. O sentimento é sempre um bom ponto de partida para redigir. Em realidade «ver» não é retratar as coisas, mas senti-las desde dentro de cada um, interpretá-las, pois as coisas coexistem connosco e «são» na medida em que «são» connosco.

Gama serve-se do próprio ensino do Português para fomentar a vida afectiva dos rapazes. Que os fracos se motivem para se tornar fortes. Diz assim:

Passou-se a aula... a ensinar português a partir do que estava errado. Mansamente, alegremente...

O objectivo não era encontrar o erro e dar a respectiva palmatoada; era começar afazer o que eu quero fazer (e fiz em Setúbal com bons resultados): levar os fracos ao nível próximo - possível dos fortes. Disse-lhes isto na primeira aula, por estas palavras que troquei em miúdos: Não quero ursos. Não se entenda que não admito ursos. Talvez, por causa das confusões, seja melhor pôr assim a coisa: Só quero ursos. (Ibidem, p.39)

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Por respeito pela vida afectiva dos rapazes, Gama tratou sempre de evitar o menor traumatismo e todo e qualquer gesto de autoritarismo. Face às atitudes repressivas de alguns professores, que pretendem impor-se aos alunos não com a verdade que, aliás, ignoram, mas com as mentiras de uma erudição aparente que usam mais para se defender do que para ensinar, Gama afirmará peremptoriamente:

Por mim, nego-me a impor-me desta maneira medrosa e desonesta e será, como tem sido, sempre sem vergonha que direi que não sei. Se não houver este ano há para o outro ou para de aqui a cinco o aluno que compreende que o professor não é um livro aberto. «O meu melhor professor foi um professor de Inglês que não sabia nada de Inglês» — disse o meu metodólogo; ora quem o julgou o campeão dos professores creio eu que não foi o metodólogo; foi o aluno do Liceu. (Ibidem, pp. 52-53)

Este respeito pela sensibilidade do aluno levá-lo-á ao ponto de suprimir a tinta vermelha nas suas correcções e evitará até os riscos nos cadernos escolares. E isto, porque segundo ele nos diz:

A tinta vermelha lembra-me sangue a escorrer das feridas — e pode dar-se o mesmo, se não em todos os alunos, ao menos em alguns... (Ibidem, p 118)

Um risco pode equivaler a uma reguada. E na alma, que é onde dói mais ,- eles não sabem protestar talvez nem mesmo intimamente eles protestem; mas lá no fundo deles qualquer coisa se desequilibra: ou então acham isso natural — o que é muito pior Muito pior.

(Ponho em relevo muito pior porque há muita gente para quem o facto de aos alunos não doerem certas coisas e até serem eles a exigi-las leva ao convencimento de que se lhes deve dar isso mesmo, o que os deforma e os habitua mal. Se eles o pedem, não é por tendência inata: é por hereditariedade — deixem-me explicar por esta palavra os vícios escolares que passam, por culpa dos professores, de geração em geração. É por hereditariedade que alunos meus em Setúbal vieram reclamar contra o meu atrevimento

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de lhes não passar diariamente, isto no terceiro ano de Francês, tantas páginas de Gramática. É por hereditariedade que copiam — o professor vigia-os de modo a que eles cheguem ao convencimento de que é natural copiar etc, e tal). (Ibidem, pp. 119-120)

Educar é todo o contrário da repressão e da deformação psicológica. É libertar as forças interiores, é reforçar as potencialidades psíquicas. Por isso, Gama tem a preocupação de despertar nos rapazes toda a espécie de sentimentos, desde a coragem à confiança em si mesmos. Como sabe que os rapazes gostam de «novidade e de coisas vivas», fará com que eles se encontrem com o mundo das coisas vivas, através de contos e lendas. A este propósito conta, com grande satisfação, o caso de Rupertito, dizendo:

O metodólogo chamara-me para eu ver uns cadernos do Dr. Xavier Roberto (o Rupertito, como ele, num carinho bem merecido, lhe chama). Maravilhosa coisa! Ele eram águias romanas, com RRR escritos no peito, a lutarem com águias lusitanas, marcadas a LLL; ele era uma pobre Dona Constança a servir de pau-de-cabeleira à mísera e mesquinha (e que linda aguarela não eram os seus vestidos!), os cavaleiros terríveis a degolarem os mouros, cavalos desvairados, pesadas portas a defenderem castelos verdadeiramente medievais. Uma ou outra palavra elucidava, dava luz ao painel. E a história surgia então como eu a quero — perdoai-me, doutores! — apaixonante, poética, susceptível de ser inventada por uma cabeça de onze anos. Fez-me lembrar a comédia sobre a morte de Inês, escrita, ensaiada, representada e realizada por garotitos da minha escola, em que a certa altura aparece um filho da traída Constança afazer esta queixa: «Ó Mãe, olhe que o pai está a beijar a Dona Inês!» Nestes primeiros tempos o que interessa é fazer os miúdos terem a sensação de que é gente viva, de carne e osso, aquela de que falam os compêndios. E verem-lhe o retrato feito por eles próprios é começar a acreditar que eles estão vestidos (manchas de sangue nas fatiotas...) e degolam mouros e arrombam castelos. Se não for assim, talvez eles não se interessem. (Ibidem, pp.119-120)

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Entre as leituras motivadoras dos sentimentos põe num lugar de primazia Os Lusíadas. Não é a história de Portugal aquilo que mais atrai Gama no poema de Camões, mas o mundo de sentimentos que bule nele e que contagia quem o lê. Depois de falar das lendas, dos medos, que ilustra com o «Monstrengo» e do modo como os Portugueses, a golpes de audácia, foram destruindo essa teia, apresenta Os Lusíadas como «o poema do orgulho do homem e da confiança em si, nas suas forças, na independência que o homem finalmente adquire.» (51) Ainda mais. O poema de Camões é apresentado como «a carta de emancipação do homem». Diz assim:

Mostrei-lhes que é este livro a carta de emancipação do Homem — que o Homem, vencendo o mar, vencera o medo, ganhara o atrevimento necessário para, finalmente e novamente, caminhar por seu pé — e que de tudo isso é reflexo ou de tudo isso é expressão Os Lusíadas. Apontei-lhes Baco a insinuar a Júpiter o perigo de baixarem eles a homens, enquanto os homens subiriam a deuses...

Fechada a página na estrofe d'Os Lusíadas: «Dá sinal a trombeta castelhana...» Leu-se, percebeu-se e combinou-se que no próximo dia se leria todo o episódio da batalha de Aljubarrota. Para aquecer o sangue a esta gente. (Ibidem,pp.53-54)

E depois da entusiasmada leitura da batalha, da fala de Nuno Álvares, da fala do Rei e da retirada dos Castelhanos, Gama faz estes breves comentários:

Que humano este Camões, que se move de piedade pelas mães, as noivas, as irmãs, as esposas dos castelhanos mortos!; e como, até para avultar o esforço dos nossos, vinca bem o valor dos inimigos: o sinal da trombeta, «horrendo, fero, ingente e temeroso»; e a queda da bandeira, «sublime bandeira castelhana». ( Ibidem, p. 329)

Se considerarmos que Os Lusíadas são para Portugal uma espécie de chave interpretativa da sua existência como Povo, podemos valorizar na sua justa medida a leitura que o poeta-pedagogo faz dele, quando destaca, não os aspectos históricos do poema, mas os míticos e psicológicos. É que a Gama interessa o

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palpitar do homem mais do que outro tipo de estrutura histórica, porque ser homem e viver como tal é, na sua acepção, o máximo que se pode ser. Daí que o seu afazer pedagógico esteja identificado com a humanização do homem. Para isso, nada melhor do que «deixar os miúdos de olhos abertos a beber a aventura», como ele diz plasticamente. Com este fim, salta de Os Lusíadas à Nau Catrineta, que tem muito que contar e a outros romances cheios de aventuras como D. Beltrão, Bela Infanta, A Noiva Arraiana, e outros deste teor. Acerca deles dirá o poeta:

Isto é dramático, isto é misterioso, isto é lírico, isto é para se ouvir, «ouvide agora, senhores, uma história de pasmar». Já vinquei bem que os rapazes (melhor, vincaram eles) são sinceros. Estiveram atentos, tanto à leitura como à desfibração que eu depois fazia de cada um dos romances... Eu não sei ler um romance sem o «ver» nem sem ver as pessoas ao ouvirem-no, ansiosas, inquietas, interessadas. (Ibidem, pp.192-193)

Este desejo de manter viva a atenção dos seus ouvintes é algo de que ele sempre necessitou ao comunicar-se através do mundo das aventuras. Aliás, ele guarda uma excelente recordação dessas leituras que, por volta dos seus doze anos, impulsionaram a sua vitalidade psíquica de adolescente para os mais nobres sentimentos. A este respeito, lembra os relatos do «Texas-Jack» ao verificar que tinham aparecido na «Biblioteca Girante» que se estava a foi mar na escola e faz estes comentários:

Parece-me que já apareceram «Texas-Jacks». Ora a lei condena o «Texas-Jack», talvez com razão. Mas eu não tenho coragem e só se o nosso metodólogo de todo o desaconselhar, é que darei ao «Texas-Jack» ordem de despejo. É que o «Texas-Jack» é dos melhores amigos da minha infância. Aprendi a ler no «Texas-Jack»; não comecei a fumar por causa do «Texas-Jack».

Eu tinha doze, treze anos e era um diabo. Nessa altura, ainda na minha aldeia me chamavam «o Chinês», porque eu era um chinês escrito e pintado. Já tinha escrito os primeiros versos — uma História de Portugal — porque isso foi aos dez anos. Os alunos do

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50 ano eram já homens e metiam-se comigo, porque eu era espevitado e refilão; em paga, dava-lhes eu pontapés nas canelas. Passaram-me então o primeiro «Texas-Jack» — e com que entusiasmo eu li as suas aventuras de salvador dos aflitos, com que ternura amei o «Tornado», seu cavalo, e chorei a morte heróica de «Tumper»! Onde havia uma injustiça a punii; um necessitado a socorrer, lá aparecia o «Texas-Jack» e a sua infalível carabina. O português era talvez mau — mas eu li oitenta «Texas-Jack» e posso gabar-me de escrever sem erros... (Ibidem,pp. 108-110)

Por todos estes comentários, podemos deduzir que Gama se manifestará contra uma certa educação tradicional que tratava de adaptar a criança ao meio, tirando assim à criança e ao adolescente a frondosidade do desejo que é o motor da actividade espiritual nessa etapa da vida; pelo contrário, entende que é necessário adaptar o meio à criança. Para isso se orienta com o mundo mítico das lendas.

O educador não deve converter as crianças em instrumentos eficazes para as formas transitórias da vida social. Na idade escolar tem que dar prioridade ao desenvolvimento da vitalidade psíquica. Neste sentido, certos mitos de nobres imagens fantásticas actuam nos adolescentes como espécie de «hormonas psíquicas» e provocam as correntes induzidas dos sentimentos que alimentam o impulso vital.

É necessário desenvolver nos adolescentes o processo da sua incipiente juvenilidade. Qualquer diminuição desta força vital perturba o processo normal do ser humano em crescimento. O melhor processo para se conseguirem homens perfeitos, não consiste em adaptar o adolescente ao ideal do homem maduro, mas sim em o educar segundo um padrão de juvenilidade; com efeito. o homem mais perfeito não é aquele que foi menos adolescente, mas pelo contrário, aquele que ao chegar aos trinta anos, encontra acumulado no seu coração o mais esplêndido tesouro de vitalidade psíquica, de puerícia.

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Dentro da sua orientação para desenvolver a tonalidade ascendente da vitalidade psíquica, surge a ideia de fomentar nos rapazes o amor para com os animais, amor cheio de curiosidade pelo secreto maravilhoso das suas vidas. Para tal não escolhe um autor científico, mas antes um escritor de relatos poéticos. Trindade Coelho será o mentor incomparável nesta empresa, já que ninguém como ele sabe entusiasmar os pequenos. Diz-nos assim:

... estive a ler os Prelúdios de Festa, do Trindade Coelho. Isso encheu a aula, e encheu-a de alegria, de atenção e de gargalhadas. O Trindade Coelho é um Mestre; é um autor a incluir nas antologias das escolas, para ensinar a ser simples, e bom, e limpo de todo o mal. A bondade com que ele nos faz rir do Zé Fagote! A leveza de tintas, a ternura das suas paisagenzinhas! E, depois, o seu amor à Ruça, à Choca, ao Sultão.

Quando vou ler Trindade Coelho, é já com a certeza de que terei uma casa à cunha... (Ibidem, p.87)

Sendo os animais naturezas simples, com um modo geral e permanente de se comportarem, podem servir de uma certa orientação ao homem, embora este seja complexo e variável. A este respeito diz Julián Marías: «Os animais das fábulas são os primeiros casos, anteriores às possíveis e mais complexas personagens. São os primeiros tipos que os escritores podem manejar duma maneira muito simples, desde logo inteligíveis; na fábula, assim que aparece um animal, o ouvinte ou o leitor ficam automaticamente orientados: já sabem de que se trata, qual o esquema de conduta (a raposa é astuta, o pavão-real é vaidoso, o leão é magnânimo, a formiga é trabalhadora, etc.)» (Três visiones de la vida humana, Salvat, Madrid,p.20)

Por um acto de coerência e de justiça educativa, Sebastião da Gama evitará aquilo a que chama «a degradação do animal, dentro do domínio vocabular da injúria». Assim, com admirável sentido pedagógico chamará a atenção para a contradição em que, neste campo, os adultos caem muitas vezes. Neste afazer pedagógico de

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reabilitação do animal, os seus amigos, os poetas, ser-lhe-ão um precioso auxílio.

Gama interessa-se por todos os meios susceptíveis de fomentar a vida afectiva dos alunos, porque sabe que a maior parte das pessoas que se dizem adultas vive reprimida, vítima de repressões sociais, envolta nos tópicos tradicionais e nos infinitos medos que o poder institucional semeia entre as gentes. E, ao não poder manifestar-se espontaneamente, fica enterrada toda a riqueza interior. Na expansão da espontaneidade individual, também os poetas têm muito a ensinar, dada a maneira sincera e espontânea de falarem de tudo e de se manifestarem liricamente. Diz assim:

... é fora de dúvida que a maior parte de nós, Portugueses, temos cá dentro um impulso que nos levaria afazer tudo o que fazem os Poetas, se não fosse um receio de parecer menos viril. A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão, é maricas; se se enternece, é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia o sexo; se vai a qualquer parte para passear e ver o mundo, faz constar que foi em viagem de negócios. Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos, ou maricas, ou fracos, ou lúbricos, ou estroinas. E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas.

Ó Portugueses, é tempo de torcer o pescoço ao respeito humano. Olhai que nós somos bons e talvez seja verdade que somos Poetas — e isso não deve ser desprezado, mas antes manifestado. Começai a ser sinceros, deixai de ser irónicos, e vereis como tudo corre melhor e a vida tem outro sabor! (Ibidem, pp.95-96)

Na realidade, aqui Gama não está exigindo outra coisa senão um direito muito simples da pessoa humana: o direito aos sentimentos, o direito a viver da alma, direito socialmente reivindicado precisamente pelos espíritos românticos da Europa. Nada mais justo e educativo para Portugal: não há maior tragédia para um povo de sentimentais, de poetas, como o português, do que

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não poder viver a partir das raízes da personalidade autêntica. E um povo de gentes inautênticas é um povo falsificado e, portanto, anulado na sua força motriz. Evitar este risco, é o que pretende a educação pela afectividade do poeta professor. Um povo de poetas necessita de um espaço psicológico onde se manifestar.

Para este fim, nada mais apropriado do que orientar a vida social como vida convivencial e não competitiva. Um povo em que as pessoas se admiram é um povo que se entreajuda mutuamente. É um povo que funciona bem, porque a exemplaridade de uns motiva a docilidade de outros e este mecanismo auto-regulador assegura o rendimento de todos. Por isso, Gama fomenta a admiração mútua entre os alunos, levando-os a escutarem-se. Escreve:

Sempre que possa, lerei trechos aos rapazes. Eles pedem, gostam de ouvir o que os companheiros escreveram e é mais estimulante isto do que a competição, a luta pelo primeiro lugar Em vez da concorrência, haverá a admiração, o entusiasmo, o amor pelo que fazem os que vivem e trabalham connosco. (Ibidem, p.85)

Precisamente porque prefere a admiração à competição, criticará os «quadros de honra» tão frequentes na tradição dos centros escolares:

... o amor pelo que fazem os que vivem e trabalham connosco. Este é o quadro de honra que eu aprovo; o outro é uma espécie de plataforma de eléctrico já cheia: os lugares serão disputados a murro e empurrão. E os que ficam em terra olham com azedume os que vão no carro, o que é contra a lei, tão esquecida e tão bela, do amor da contínua dádiva. (Ibidem)

Já que a sua teoria educativa usa a exemplaridade pessoal para ajudar a conseguir o maior número de homens vitalmente perfeitos, entre os seus alunos, Sebastião terá em conta, antes de mais, a sua própria exemplaridade como professor. Está convencido de que não se pode exigir exemplaridade e docilidade entre os alunos se não se for capaz de irradiar essa tal exemplaridade. Não é em vão que o professor na escola vai funcionar como um modelo de identificação,

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substituto ou complementar daquele que normalmente é o pai dentro do seio da família, com a vantagem de não ir provocar o sentimento ambivalente da rivalidade afectiva que, segundo o esquema freudiano do complexo de Édipo, o pai produz.

Tendo em conta estas ideias, Gama exigirá à profissão de professor que esteja à altura da sua missão educativa e exemplar. O professorado, para ele, está na categoria do vocacional, não na categoria de uma simples profissão. «Ensinar e ser. Antes de tudo, ser», afirma peremptoriamente. Por aqui, podemos verificar como este professor-estagiário coloca a profissão de professor no plano vocacional, como uma exigência de ser, mais do que de ter. Pode-se ter muitos conhecimentos e não se ser professor. Este é o grande risco do professorado. Este é o perigo que ameaça os alunos: ter por professor alguém que não é, embora ensine. Como entende o educador Sebastião da Gama este ser do professor? Um ser como vida, como acção, como afazer. Diz assim:

Ensinar e ser Antes de tudo, ser A vida do professor deve ser (tanto quanto possível, pobres de nós!) luminosa e branca. Mais que não ser ignorante, importa não ser mau, nem desonesto, nem impuro... tanto quanto possível, pobres de nós! (Ibidem, p.86)

Se a vida é sempre ética (não podemos ocupar-nos num afazer qualquer, mas temos de nos ocupar precisamente naquele que temos de fazer, sob pena de nos falsificarmos a nós próprios), poder-se-ia dizer que a vida do professor o é em sumo grau, porque do seu próprio afazer autêntico está dependente directamente o afazer do aluno, o seu equilíbrio emocional, até o seu destino existencial. Eis a importância de que se reveste que o professor o seja por vocação e não por simples profissão. Porque o professor que não faz da sua ocupação profissional um afazer de perfeição pessoal, dificilmente poderá exigir perfeição e autenticidade ao aluno, não poderá constituir-se em exemplo de vida.

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Pelo que diz respeito a Sebastião, contamos com o testemunho valioso do professor Jacinto do Prado Coelho, que nos garante a feliz e total coincidência no professor poeta, entre o ser e o afazer pedagógico. Assim, Gama não terá dificuldade em exigir um ser de «vida luminosa e branca», quer dizer, que seja transparente e evite a mais pequena maldade, desonestidade e impureza. Só pode ser luminoso quem irradia autenticidade, só vale a pena ser transparente a quem possa deixar transparecer a bondade.

E isto não se consegue no professorado senão quando houver o máximo de coincidência entre profissão e vocação. Dizemos isto, porque sabemos que a vocação pessoal e a profissão social não coincidem, no seu radical sentido. A vocação é todo um programa integral e individual de existência. A vocação coincide com o eu, com aquilo que, em cada instante, cada indivíduo sente que tem de ser no instante seguinte e após este, numa perspectiva temporal, ou seja, coincide com o seu projecto vital, se se tratar de um eu autêntico e não de um eu inteiramente colectivizado e despersonalizado e que se identifica com o homem frustrado. A vocação exige, pois, fidelidade à voz interior que, do fundo insubornável, chama a ser quem tem de ser, independentemente das modas e modos impostos pelos sistemas e instituições vigentes da época. Rigorosamente falando, a vocação é um chamamento ao mais universal e único do homem, pertence à esfera radical da pessoa, da sua necessidade vital; é uma proposta em forma de imposição, que nasce e morre com a pessoa e da fidelidade para com ela depende nada mais do que a felicidade, no sentido que Goethe lhe dá, quando diz que a maior felicidade dos humanos é a personalidade.

As profissões, pelo contrário, pertencem à esfera das necessidades sociais. Quase todos os deveres e ocupações que constituem o eu normativo da imensa maioria, são deveres morais-profissionais. Pré-existem ao indivíduo, são-lhe impostos do exterior, independentemente das necessidades pessoais. Pode acontecer que alguma faceta da profissão seja afim das preferências pessoais, mas não coincide nunca com as verdadeiras necessidades vitais. Por isso,

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persistirá sempre uma luta surda ou declarada entre o fazer profissional como socializado que é, pré-estabelecido, coisificado e a consciência do ser como um que fazer de autenticidade. Por isso, as duas atitudes são linhas paralelas que jamais se encontram na raiz da personalidade.

Ora, Sebastião que sabia desta ambiguidade entre vocação e profissão, fez tudo para realizar a sua profissão social com o máximo de vocação pessoal. Por isso, sempre se esforçou por a exercer com toda a dignidade e perfeição possíveis. Apesar de saber que lhe faltavam «muitas qualidades» como ele mesmo diz, também não pôde deixar de reconhecer que tinha algumas, «graças às quais não é desonestamente que eu sou professor». Sabe que o que mais importa é pôr a render as qualidades que tem.

Assim o reconhece com humilde e patética sinceridade: «O que me absolve é que tenho o bom propósito de ir melhorando e de chegar um dia (se o espírito se não acovardar com o tempo...) em que serei quase um bom professor; é justamente nesse dia que morrerei: quando for quase um bom professor.»(Ibidem, p.68-69)

Entre as qualidades que o ajudarão na sua profissão, há duas estruturantes da sua personalidade: o entusiasmo vital que tem pela educação dos adolescentes e a sua constante e inquebrantável aspiração à felicidade, fundada numa grande confiança na vida. Por isso, o seu afazer profissional parecia brotar espontaneamente do fundo da sua personalidade, podendo assim afirmar acerca do ensino, que o que é preciso ensinar é a ser feliz e «não que os adjectivos concordam em género e número com os substantivos». A este respeito, conta-nos como, por duas vezes, o fizeram sentir-se feliz da maneira mais simples:

Calcule que estive, neste dia, todo o dia feliz, só porque um pobre homem fora gentil comigo e num quartel um soldadito, em vez de repreender-me por eu ter passado num sítio proibido, sorrindo-se apontava, num gesto cheio de caridade, o caminho lícito. Tão pouco e tão simples, e a gente recusa-se afazê-lo para ser feliz.

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E remata esta consideração com os versos de António de Sousa:

Felicidade! Afinal

fôssemos nós naturais e limpos de todo o mal, não era preciso mais (Ibidem, p.86)

Isto é, para Gama, o que verdadeiramente importa na profissão de professor, porque os alunos absorvem tudo o que vêem e sentem à sua volta. A etapa da adolescência é um período de predomínio da afectividade, coincidente com o viver confiando nos outros — não existe ainda a desilusão, existe ainda a esperança em tudo e em todos. Eis porque o abuso desta confiança constitui um pecado de lesa-adolescência.

Gama exultará de alegria, ao verificar que um dos seus colegas pensa tal e qual como ele acerca da vida de confiança nos alunos. Recorda uma manhã em que ficou com o coração «à flor da pele», ouvindo um dos seus colegas: «Os nossos iguais são os mocinhos. Nós procuramos como companhia mais agradável esses que ainda acreditam, que só acreditam.» E comenta assim:

Que mais precisa ele de dizer para me ter a seu lado? Aqui está uma coisa que eu gostava de ouvir a todos os professores, em vez de ouvir justamente o contrário, como não é raro. «Mande-os passear» «Não merecem nada.» «O quê? Você ainda acredita na amizade deles?» E até obscenidades acerca dos alunos... Por isso me apeteceu abraçar aquele examinador...

Obrigado por tudo Senhor Professor! Conte comigo, que, apesar das minhas fracas posses (depois de o ouvir mais me convenci de que muito me falta), tenho, como o senhor e tantos que Deus veja, «a coragem de afirmar contra tudo e contra todos, a verdade de que nos julgamos possuídos.» (Ibidem, pp.153-154)

Deste modo, para Gama, o centro do problema pedagógico na escola, não se coloca ao nível dos conhecimentos intelectuais, do saber mas no desenvolvimento das capacidades da personalidade. Diz explicitamente:

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Cada vez me apetece menos classificar os rapazes, dar-lhes notas pelo que eles sabem. Eu não quero (ou dispenso) que eles metam coisas na cabeça; não é para isso que eu dou aulas. O saber — diz o povo — não ocupa lugar; pois muito bem; que eles saibam, mas que o saber não ocupe lugar porque o que vale, o que importa (e para isso pode o saber contribuir e só contribuir) é que eles se desenvolvam, que eles cresçam que eles saibam «resolver», que eles possam perceber. (Ibidem, p.216)

Assim como a respeito de si como professor nos diz que o que importa é «antes de tudo ser» mais do que ensinar, dir-nos-á acerca do aluno algo parecido. Ele dispensa que os rapazes encham a cabeça de coisas: «Não é para isso que dou aulas», diz-nos. Que o saber ocupe ou não lugar, segundo o rifão do povo, é coisa de somenos importância. O que verdadeiramente conta é acudir às necessidades primordiais e urgentes do homem em formação; necessidades que Gama descreve certeiramente por meio de verbos activos e dinâmicos. O que importa e para o que se deve contribuir é para que eles «se desenvolvam, cresçam, saibam 'resolver' e possam perceber». Desenvolver-se, crescer, resolver, perceber, eis os quatro verbos da teoria pedagógica de Sebastião.

Como podemos verificar, trata-se de uma pedagogia dinâmica e integral da personalidade. Educar é assumir a realidade educativa, o homem em formação, como uma realidade ascendente, integral e dinâmica; é desenvolver e fazer crescer as possibilidades humanas do homem para que possa saber «resolver» e perceber. Em realidade, esses quatro verbos resumem-se nos dois últimos: resolver e perceber, isto é, desenvolver as capacidades para saber «resolver» e crescer nas possibilidades de percepção.

Estes dois verbos, «resolver» e perceber, referem-se às duas dimensões essenciais da pessoa: a dimensão cognitiva e a dimensão afectiva. As duas dimensões psicológicas por meio das quais o homem coexiste com as coisas. Ambas com um valor social de «resolver» e de perceber ou valorizar.

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Para já, estes dois verbos implicam uma filosofia concreta da vida humana, ou melhor, uma teoria da vida pessoal. Se é necessário «saber resolver», isso significa que viver é uma tarefa problemática. Com efeito, a vida não nos é dada feita, mas temos de a fazer. E cada qual a sua, porque ninguém pode fazer a vida por nós.

Esta vida a fazer, consiste em lidar com as coisas, com o outro, com o desconhecido, diferente do meu eu e no entanto elemento essencial no diálogo com a circunstância, porque viver é coexistir. Nem as coisas são sem mim, nem eu sou sem as coisas. Eu e as coisas coexistimos, dialogamos, somos. Esta coexistência é um afazer problemático, porque nós, os homens, desconhecemos a realidade das coisas com as quais somos.

Por isso temos que as descobrir. Neste descobrimento das coisas, do mundo, radica a empresa do viver do homem, empresa em busca da verdade dos outros com os quais o homem é. Ensinar a saber a que ater-nos acerca das coisas é ensinar a resolver o problema primário da vida e, ao mesmo tempo, ensinar a resolver todos os outros problemas secundários. Aqui reside precisamente a tarefa educativa ao nível cognitivo. Aprendizagem dos instrumentos para resolver os problemas da vida de cada qual. Instrumentos cognitivos teóricos, para poder fazer face à prática de viver, de conviver, de coexistir.

Mas como não há verdadeiro conhecimento humano sem a consequente valoração das coisas - problemas, o homem precisa de perceber, como diz muito bem Sebastião. O homem não existe porque pensa, segundo o ditado de Descartes, mas pelo contrário, pensa porque existe, ou melhor, vive. Pois bem, entre as funções que o homem tem que resolver para viver, além de pensar racionalmente, tem de perceber afectivamente, quer dizer, necessita de «dar valor» às coisas por intermédio do sentimento de agrado ou desagrado.

Percebemos com as nossas ideias e valorizamos com os nossos sentimentos, de acordo com os afectos que surgem em nós, através

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do contacto social. Vivemos de uma cultura concreta, a partir dela pensamos e sentimos. somos. Eis porque a tarefa da educação escolar é fazer com que estas duas dimensões da pessoa alcancem uma tonalidade ascendente e rica. Ela não consiste em dar soluções, fórmulas, tópicos ou em decorar catecismos, mas em proporcionar oportunidades que possibilitem a cada um atingir aquele grau de elevação que permita a maneira mais eficaz de coexistir, para assim se caminhar na procura da felicidade. Com efeito. todos vivemos para alcançar uma coexistência feliz com as coisas e as pessoas. E isto não se improvisa; prepara-se todos os dias.

Quando Sebastião, depois de uma aula, verifica que contribuiu, de algum modo, para o desenvolvimento e crescimento destas duas dimensões psicológicas da personalidade dos alunos, não pode deixar de exclamar com entusiasmo, como aconteceu no fim duma aula, no dia 25 de Maio:

A aula de hoje foi feita à base do exercício e foi uma aula feliz. Houve interesse, «aprendeu-se». Agradeci-lhes terem sido honestos e pessoais: mostrei-lhes'que tinham sabido ler a Nau Catrineta e que ver que tinham sabido ler a Nau Catrineta fora a única preocupação do exercício; depois tratei demoradamente cada alínea, falando eu o menos possível, salientando e dando a máxima importância a tudo que eles tinham visto melhor que eu. Eles estavam a ouvir-se, por isso a aula foi serena como nunca.

A alínea de exposição teórica do romance era a única para que importava ter coisas na cabeça, pois mostrei-lhes que o facto de terem patenteado poucos ou muitos conhecimentos me interessava menos que a maneira de resolver a questão. E que eles a resolveram bem e que eles resolveram o exercício em boa linguagem e que eles são gente muito fina. (Ibidem, pp.217-218)

Pôr em prática esta teoria educativa será a sua grande tarefa de professor - estagiário. Para isso, procurará descobrir os caminhos que permitam a sua concretização. A observação dos alunos é um dos meios de que se serve, pois do que se trata não é tanto de ensinar coisas, mas antes de orientar as potencialidades individuais

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para que cada aluno saiba «resolver» e possa perceber o seu afazer de autenticidade pessoal. Ajudar cada rapaz, partindo de dentro dele próprio.

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Observação

psicológica A observação atenta e contínua dos alunos é uma condição

elementar e imprescindível para se desenvolver uma prática educativa eficiente.

Sebastião teve consciência desta necessidade, como podemos verificar através dos relatos acerca dos seus alunos.

Observações que, embora não sejam sistemáticas e quantificadas, nem por isso deixam de se apresentar como exemplares desde o ponto de vista psicológico, sobretudo por aquilo que elas possuem de preocupação psicoafectiva, revelando amizade, solicitude, doação, amor. Em realidade, só por meio do amor, por simpatia e empada se observa bem. Compreende-se o que se ama, porque o conhecimento compreensivo das pessoas exige adivinhação e esta só acontece na esfera do afectivo.

Para uma observação eficaz, os psicólogos consideram que o número de alunos de uma aula não deve ir além de 25. E recomendam ainda que o professor tem de se manter numa atitude crítica, para não se deixar levar pelo subjectivismo.

Sabemos que não eram mais de 30, os alunos nas aulas da Escola Veiga Beirão. Quanto à atitude autocrítica de Sebastião, temos os seus muitos testemunhos. Está sempre disposto a aprender com as suas limitações e fracassos, pois o bom propósito de ir melhorando forma parte da sua prática educativa, junto de todos e também para consigo mesmo. Aliás, está convicto de que o mal absoluto não existe, que apenas é aparente e que tudo pode acabar em bem, se nós estivermos abertos à bondade de tudo. Assim confessa:

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Faz-me tanto mal e tanto bem dar uma aula má! Eu não sou tão confiante como pareço: tenho sempre medo de perder, julgo sempre que nada valho antes de fazer as coisas. Quando saio de uma aula a dizer a todos: «Que linda aula que eu dei!» ou de um exame a gritar: «Fiz um exame estupendo» —parecerá isso vaidade e não é afinal senão uma alegria enorme e irreprimível por ter verificado que, afinal, não sou tão pobre como julgara. Preciso de ir para a cabeça do toiro — preciso de agir, para acreditar que posso agir. Ninguém dá pelos meus receios, pela minha cobardia, porque eu só manifesto o meu contentamento pelas minhas vitórias — e é assim que em vez de me chamarem tímido me chamam (provavelmente e não me importa) vaidoso. (Ibidem, pp. 129-130)

Depois de uma aula dada, o seu optimismo brota espontaneamente:

Hoje sim senhor! A aula foi uma coisa alegre, vibrante, harmoniosa. Principalmente harmonia — entendendo-se por harmonia justamente o que deve entender-se: comunhão perfeita de nós todos. Às vezes tenho a sensação de que o mundo começou de novo. De que houve uma noite nossa, minha, anterior a mim — anterior àquele que estou sendo e que está nu em pêlo e vê tudo pela primeira vez. Como se tivesse havido uma purificação, a gente tivesse passado por uma frágua e saísse beleza, plenitude, indecisão. Isto parece, e é mesmo, um exagero de convertido, mas embora pareça mentira ou demasiado infantil, uma aula má para mim como que anula tudo o que houve para trás de possivelmente bom; fica a ser o ponto final de uma série, que em vez de resgatar o ponto final é anulada, unicolorida por ele. O homem sempre é um bicho muito esquisito. ( Ibidem, pp.137-138)

Dado que o pedagogo se conhece a fundo, está preparado para conhecer os seus alunos. Para este conhecimento, é de grande ajuda a organização das aulas segundo o estilo educativo em que a criança age, cria e até conduz a acção pedagógica. Em realidade, as próprias aulas são utilizadas por Gama como pretextos para que se manifeste uma convivência espontânea e alegre, onde cada um se

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exprima como é. Ele próprio é quem no-lo diz, comentando as palavras do seu metodólogo:

... vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente...

Acrescentando esta nota importantíssima:

... lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser... (Ibidem,p. 31)

Para que isso aconteça, nada mais pedagógico do que a maneira como o professor sabe estar com os alunos. Desde o primeiro dia do estágio, Gama entra na aula com uma disposição de amizade e de camaradagem. Diz aos seus alunos:

Não sou, junto de vós, mais do que um camarada um bocadinho mais velho. Sei coisas que vocês não sabem, do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou já esqueci. Estou aqui para ensinar umas e aprender outras. Ensinar, não: falar delas. Aqui e no pátio e na rua e no vapor e no comboio e no jardim e onde quer que nos encontremos.

Não acabei sem lhes fazer notar que «a aula é nossa». Que a todos cabe o direito de falar desde que fale um de cada vez e não corte a palavra ao que está com ela. (Ibidem, pp.32-33)

Neste contexto, a camaradagem não tem uma conotação de igualitarismo demagógico, mas um sentido profundo e cordial de co-responsabilidade: a aula será aquilo que todos queiram que ela seja. Por isso, a programação dos trabalhos das aulas começará por ser obra de todos. Acerca disto, Sebastião lembra:

Chamou-me o metodólogo para me propor alguns trabalhos. Aceitas? Não aceitas? Dá-me liberdade plena e eu em geral aceito, porque são cheios de interesse; mas ponho a condição sine qua non; se os rapazes aceitarem também. (Ibidem,p.61)

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Para Gama, não há nada como pôr os rapazes à vontade para que aconteça o milagre da criatividade e da alegria da aula. Observa a este respeito cheio de contentamento:

Ora os rapazes são de se lhes tirar o chapéu. São vivos, são alegres, são inteligentes e alguns até são bonitos e ninguém tem nada com isso. Merece a pena estar com eles — e merece a pena, sobretudo, deixá-los falar porque descobrem imensas coisas que nós já não somos capazes de descobrir ( Ibidem)

Neste ambiente de à vontade, não haverá dificuldade alguma para transformar as aulas numa festa, na qual os alunos se sentirão felizes e se esquecerão de pensar no «lá fora, na rua». É tal a sua obssesão em fazer da aula uma festa que chega a propor a mudança de nome da aula. Diz: «Porque não passará a definir-se como festa, nos dicionários, a palavra aula?» (Ibidem, p.79)

Depois de preparado este contexto felicitário, o poeta emprestará os olhos de ver ao estagiário, para que veja e observe os alunos. Ver, para Gama, é algo mais do que considerar os alunos com os olhos. Ver é compreender, interpretar, adivinhar e mais ainda, deixar-se contagiar e transformar. Só observa bem quem vê desta forma. Um dia, o poeta Miguel Torga, de visita à Arrábida, dir-lhe-ia que para receber a poesia era necessário «ter as mãos puras». Pois bem, Gama, parafraseando o poeta transmontano, dirá:

«Também para ser professor é preciso ter as mãos purificadas», pois «a toda a hora temos de tocar em flores. A toda a hora a Poesia nos visita.» (Ibidem, p. 146)

Só com este conceito acerca dos alunos se pode fazer uma verdadeira observação: só com as mãos purificadas se podem tocar as flores, só com a alma benevolente se pode penetrar nas almas dos adolescentes, só com simpatia se adivinha o mundo dos rapazes em crescimento.

Além do seu olhar purificado pela amizade e pela camaradagem, Gama tinha também a particularidade de ser

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professor de Português, disciplina que, segundo diz, «é a que mais serve para descobrir a personalidade do aluno, que mais serve para estar em intimidade com o aluno.» ( Ibidem, p.112)

Vejamos alguns relatos que nos dão conta do seu olhar sobre os rapazes, de como «tocava em flores», como descobria a personalidade dos seus alunos, de cada um em particular, como os ajudava nas suas dificuldades, enfim, como observava finamente e psicologicamente os seus amigos alunos.

Fosco

Um dos alunos que maior atenção lhe merece é o Fosco. Descreve-o numa ocasião em que, com mágoa, se vê na obrigação de o expulsar da aula, embora com a perfeita noção de que o fazia para bem do aluno. Diz:

Hoje, um pouco para conseguir finalmente sossego, outro pouco para que eles acreditassem finalmente na minha palavra (antes dissera: «Dou-vos a palavra de honra que é a última vez que vos peço silêncio!») a certa altura pedi ao Fosco, muito calmamente, que saísse. O Fosco saiu, mas eu é que o trago atravessado na garganta. O Fosco é uma espécie de ardina: vivo, endiabrado, sem-cerimonioso, tagarela; bom rapaz, e de quem se pode obter tão bons resultados como dos outros. Mas é preciso interessá-lo; por exemplo: pedir-lhe todos os dias que leia, que esteja em destaque — o que não pode ser porque eles são trinta. Creio mesmo ser este o único processo. ( Ibidem, pp. 132-133)

Comparando esta expulsão com uma outra feita no ano anterior, em Setúbal, que lhe havia provocado «um desgosto do coração», constata com certa satisfação que, desta vez, o tal desgosto não se fazia sentir sobremaneira; contudo, acrescenta esta autocrítica:

... o Fosco saiu, porque fez barulho — e fez barulho porque a aula não lhe interessou — e não lhe interessou «talvez», porque ela não tinha interesse nenhum — e quem devia ir para a rua era eu. (Ibidem, p. 133)

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Com efeito, Sebastião sente o comportamento indisciplinado de Fosco como um sintoma do seu próprio fracasso como professor, naquele momento, pelo que se obrigará a dar mais atenção à norma psicológica dos centros de interesse para motivar os seus alunos e evitar assim as faltas de atenção:

O facto de fazer as aulas principalmente à base de fotografias e de comentários deles a propósito do que foram vendo (e pequenas palestras, sugestões novas, documentos trazidos por eles...) deve evitar que eu me julgue na necessidade de dar ao Fosco ordem de saída. (Ibidem, p.135)

Não deixa de anotar a reacção positiva que verificou em Fosco:

O Fosco não vinha magoado, como eu esperava, nem refilão: vinha humilde e bom. Pediu-me que doravante lhe desse o lugar a meu lado; e que veria como ele iria ser outro homem. Prometi-lhe o lugar e comecei logo na aula de Francês a tarefa que se me impõe: fazer que o Fosco fale com o Professor todos os dias. (Ibidem, p. 138)

O seu interesse por Fosco leva-o a uma medida psicopedagógica, quando verifica que nem sempre as palavras pacientes e compreensivas resultam. Sobre ele envia uma carta ao pai de Fosco, quando este resolve, sem mais, abandonar o curso, e precisamente «na altura em que começara a caminhar bem». Descreve-nos a situação da forma seguinte:

O Fosco não apareceu. Que desistira — contaram eles. Pois que o Fosco apareça cá, que o Fosco venha despedir-se de nós. E no dia seguinte...

Eis o Fosco, todo cor de papagaio, a entrar pela porta dentro.

Mas lá ficar é que não foi com ele. Garantiu-me com o seu ar sério de às vezes, que não senhor, embora concordasse com todas as objecções que lhe pus. Deu-me um abraço de despedida, deixou-me, para eu escrever ao pai, a sua direcção, e lá se foi no seu fatinho verde.

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À noite, e depois de ter consultado o metodólogo (mais uma vez ficou assente entre nós que o professor de Português serve para isso mesmo) mandei uma carta ao pai do Fosco. Para adiantar caminho, contava-lhe que o pequeno ia abandonar o curso precisamente na altura em que começara a encarreirar bem. (Ibidem, pp. 313-314)

A volta de Fosco à escola é vivida com grande emoção pelo grupo todo. Parece que a carta que Sebastião escrevera ao pai de Fosco tinha conseguido um efeito salutar no ânimo do rapaz. A descrição irrompe com a força de um hino de alegria:

«O Fosco voltou; o Fosco voltou!» —foi o grito com que a rapaziada me recebeu na Costa do Castelo, 27. E voltara mesmo. Trazia uma carta do pai, que finalmente convencera o mocinho. Nem que a aula de hoje não valesse de nada, já este dia seria para mim um grande dia; dei, de contente e de grato, um abraço ao Fosco e pedi a todos que in mente lhe dessem um também, porque a turma estava em festa. (Ibidem)

Os mais nobres sentimentos haviam fecundado toda a personalidade de Fosco, como se pode verificar pelo relato escrito das férias e do qual Gama nos dá conta e que nós transcrevemos por inteiro, dado o seu interesse afectivo, quer a respeito do próprio Fosco quer acerca de Sebastião:

E só à noite é que li esta espécie de testamento do Fosco — que ele me entregara («uma redacção de férias...») no dia em que fora despedir-se:

«Redacção de PortuguêsAs minhas férias

Nos primeiros dias de férias saía de manhã e entrava à hora do almoço. Saía depois do almoço e entrava à noite.

Certo dia minha mãe insistiu em que eu fosse estudar — e eu respondi-lhe: -- Eu quero é ir trabalhar

Não sentia vocação nenhuma para estudar nem nunca senti.

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Tudo o que hoje sei é de ouvido, pois só num livro eu pegara. Era o de Português. Não que eu adorasse a disciplina de Português, mas sim para lhe ler as histórias...

Em vez de fazer um pouco de sacrifício em estudar não o fazia. E até sentia raiva na Escola, a alguns colegas, e até aos professores.

Sinto-me envergonhado em ver os meus colegas instruídos e eu que não passo dum simples ignorante. Sim, eu que com o mal pagava o bem. Via os outros colegas estudarem, eis a razão porque odiava alguns colegas. O Ludovico foi para mim o melhor camarada, porque estuda e não tenta ser mais que os outros.

Odiava os Professores porque me davam bons conselhos e eu tomava-os como inimigos. Mesmo agora, que ainda estou a tempo de me tornar um bom aluno, não quero seguir os bons conselhos, estou saturado de estudar Tenho a agradecer ao Sr. Dr. Sebastião da Gama sobre os bons conselhos que além (sic) já meus pais mo tinham dito, dava acerca de o meu futuro e tenho a pedir desculpa de não ter sido um aluno exemplar no sossego e de não ter cumprido os seus conselhos e, ainda pode ser que... não digo o resto porque não quero ficar mal perante a minha promessa. Sem mais, cumprimentos aos meus colegas, e para o Sr. Dr. Sebastião da Gama um abraço deste seu aluno que sempre o respeitará e que nos havemos de tratar como dentro das aulas, onde falávamos como se fôssemos sempre colegas, deste fiel aluno.

(Assina)A. Fosco

Lx. 28-12-1949»

E acrescenta estes post scriptum:

Desculpe em ir mal escrita e redigida, pois foi feita à pressa porque não queria pensar mais no assunto.

Até breve

Nunca me esquecerei da sua (V. Exa) irmandade para comigo.

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Peço por favor de se conservar imóvel esta redacção. Nem colegas nem Professores.

Obrigado»

(Ibidem, pp.315-317)

Sebastião pedirá a colaboração dos colegas de turma para ajudarem o Fosco. Na adolescência, o grupo tem um grande poder de captação de domínio sobre os indivíduos. O adolescente costuma estar preso aos ditames do grupo. Por isso, Sebastião confia que o caso Fosco venha a ser resolvido por todos. Será uma acção da dinâmica de grupo, uma acção psicopedagógica para todos. Diz-lhes o seguinte:

... o Fosco, que também vai por bom caminho, é que ainda não dominou de todo o seu demónio interior. Ora é preciso no caso de o Fosco não ter forças para resistir-se, que vocês, na aula, lhe toquem o braço, no pátio lhe digam em vosso, em nosso nome, duas palavras de amizade e conselho. E também os que não têm querido trabalhar precisam de amparo; que se unam todos, para se salvarem todos. (Ibidem, p.341)

E acabou por combinar com eles que seria uma ofensa para todos, se lhe chegava à Arrábida a notícia de que o Fosco voltara à antiga.

Afinal, parece ser que o Fosco conseguiu «dominar o seu demónio interior» e pode dar ao seu professor boas notícias. Pelo menos é isto que Sebastião diz:

Raro é o dia em que não chega uma carta ou um postal. E bem dizia eu, aí para trás, que este mesinho foi o melhor mês: a turma continua afinada, na sua, como sublinha o Gabriel, «marcha triunfal do silêncio e no bom comportamento»; do Artur e do Fosco as notícias que me dão são sempre de contentar Vaidoso que sou, leio as mal notadas regras e fico a pensar que sempre é verdade que estou ainda na aula, que estou ainda neles. ( Ibidem, p. 342)

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ManuelSebastião não é um professor que observa apenas como um

espectador distante. Pelo contrário, é um observador comprometido pela dedicação e amizade, na difícil caminhada para o desenvolvimento dos rapazes. Neste aspecto. o caso do Manuel é exemplar. A sua atenção e a sua dedicação não podem ser mais afectivas e profundas. Conta-nos a sua acção pedagógica para animar o aluno desamparado e que, por carência afectiva, tinha descido de nível nos estudos e no comportamento. Faz-nos o seguinte relato:

Ontem estive em Setúbal. O Manuel, meu aluno o ano passado, a quem eu não desamparei desde que soube que descera de nível do último período de 47-48 para o primeiro de 48-49, e me escreveu quatro vezes para a Veiga Beirão a queixar-se que estava «à beira de um abismo» (que era a falta de vontade), vem confirmar coisas que eu disse a propósito de ladrões. Se se tem castigado o Manuel, ou se tem abandonado o Manuel ao seu castigo, o Manuel era um Homem ao Mar As más tendências que há dois anos fizeram dele um péssimo aluno e que o ano passado persistiram de tal modo no primeiro período que por duas vezes foi suspenso, teriam vingado abertamente. Amparando-o, aconselhando-o, obtendo do meu Director (o melhor Director do mundo, não desfazendo) que o absolvesse da segunda suspensão, levei-o, e levou-se ele próprio, principalmente, a ser o melhor da turma — 18 em Português, no 3° período. E este ano, pelo mesmo processo, subiu ele de 12 valores e de mau comportamento para bom comportamento com 16 valores. (Ibidem, p. 170)

E acrescenta esta nota que revela a sua atenção aos comportamentos de cada aluno e conhecimento que tinha de todos. Diz assim:

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Uma das coisas que terão valido ao Manuel foi ele ter sentido junto de si a presença do Ludovico. Logo que ele me escreveu, convidei o Ludovico a escrever-se com ele; e embora a correspondência não tenha sido intensa, o facto de trocar impressões e travar amizade com um rapaz que ele sabia bom aluno, há-de tê-lo estimulado. (Ibidem, p. 171)

E é que Ludovico, para o poeta Sebastião da Gama, era um rapaz com uma qualidade especial, que ele muito estimava e com quem tinha afinidades electivas, como veremos a seguir.

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Ludovico Com efeito, no caso do Ludovico, Gama sentir-se-á mais

envolvido em virtude daquilo a que poderíamos, com Carl Rogers, chamar «empatia», derivada da predominância da sensibilidade estética em ambos. Acontecia que Ludovico mostrava uma clara simpatia pela poesia e isto, para o poeta da Arrábida, era uma porta aberta na alma do aluno. Sebastião põe de relevo este aspecto poetizante de Ludovico ao contar como, numa aula dedicada ao comentário de alguns poemas e à leitura de versos «à base de redacção que os rapazes trouxessem», Ludovico fora capaz de a salvar brilhantemente da frouxidão e do desinteresse em que caíra. Relata-o assim:

Quem me salvou da falência foi o Ludovico. Que bonitas palavras, que admiração e que compreensão ele mostrou no trechozinho que foi ler a seguir! Com este Ludovico acontece-me uma coisa: é que eu, que tenho de acreditar que são eles que fazem tudo o que fazem em casa, fico embaraçado. E foi o que me aconteceu: depois da leitura, convidei os colegas a dar as palmas que tinham na vontade e louvei-o muito; no fim da aula fui falar com ele ao ouvido: não lhe mostrando que desconfiava (porque afinal não desconfio), convidei-o a dizer-me que houvera qualquer sugestão alheia —fosse de leituras que fizera, fosse oral — mas ele garantiu-me que não e de uma maneira que me convenceu e alegrou. (Ibidem, pp. 102-103)

Sebastião acreditou na inspiração do Ludovico falando do poeta, apesar de verificar que dizia coisas importantes demais para a sua idade. E assim transcreve as suas congeminações com uma certa ironia e simpatia, dizendo:

O Ludovico é oportunista: «O poeta é considerado nesta época prosaica como um ser triste e infeliz, porque é incompreendido pela humanidade actual. A intuição do poeta patenteia-lhe um mundo

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mais vasto, descobrir em todas as coisas que o rodeiam, desde o átomo ao Universo, uma vida intensa e bela, faculdade que daqui a milénios será de toda a Humanidade!» (Ibidem)

E confirma a sua compreensão pelo poeta com grande satisfação:

O Ludovico compreende o Poeta! «E porque ele vive já numa época dum futuro longínquo, distanciado da maioria dos homens normais, o poeta é considerado como um lunático, quando ele está, indiscutivelmente, mais próximo da realidade.» (Ibidem)

Remata estas considerações do aluno com estas suas palavras de

poeta melancólico e sereno:

E é assim, dissemos nós depois: os homens positivos, os que se arrogam o privilégio de estar de mãos dadas com a realidade, puseram medalhas ao peito do herói, sem notarem que estava triste; viram passar a menina gorda e nem se voltaram, porque era uma pobre menina gorducha e feia...( Ibidem)

Para completar o perfil, Sebastião transcreve o retrato de Ludovico feito pelo Fragata, escrito num papelito que, à saída do Francês, lhe meteu na algibeira e que Sebastião começou a ler passando pela Rua do Ouro, na Baixa lisboeta:

É um estudante muito inteligente e aplicado e um bom companheiro o Ludovico. Todos da turma o estimam, e ele na verdade merece-o. Percebe tudo no ar e tem uma memória surpreendente. Aprende tudo muito bem e parece que para ele o estudo é um brinquedo.

É o primeiro em Português, em Cálculo Mental, em Ciências e em Francês. O ano passado ficou em primeiro no exame, e este ano será também o primeiro, porque nenhum é capa: de lhe tirar o lugar

Não há um só dos seus companheiros que lhe não reconheça superioridade. Ajuda a todos os colegas quanto pode, e nunca se

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atreve a dizer que não. É um bom exemplar o companheiro Ludovico.

E exclama cheio de comoção:

Que coisa tão bonita! Que cinco minutos tão agradáveis de aula, e tão proveitosos, eles nos proporcionaram a todos! (Ibidem, pp. 135-136)

A sua estima pelo Ludovico chega ao ponto de lhe pedir o parecer crítico sobre os comportamentos didácticos das suas aulas, num dos dias em que recebeu a sua visita na Arrábida, durante as férias. Diz assim:

Num dos dias em que o Ludovico estava comigo, pedi-lhe que francamente me dissesse se havia alguma coisa que nas minhas aulas lhe desagradasse ou nelas faltasse. Instado e posto à vontade, considerou que só achava que eu devia insistir um bocadinho mais em certas coisas da gramática. «Não que eu goste de gramáticas; mas sempre faz falta por causa das outras línguas.» (Ibidem, pp.162-163)

Contudo, Gama não deixa de lhe apontar alguns defeitos, como não podia deixar de ser, ou a sua observação não seria completa. Diz a este respeito:

O Ludovico veio e leu o «Jesus Ladrão». Leu regularmente; há que levá-lo a ser mais simples: também a ler é superlativante (passe o termo). Lê com pompa, como certos oradores discursam...

A citada pompa do Ludovico voltou a aparecer, quando expôs o que lera. Aquilo continuava a ser literário; via-se o trecho por detrás de cada palavra que dizia. Tenho de insistir com ele no sentido de desbastar o que me parece estar errado — tenho a impressão de que esse erro não é dele ou não todo dele: alguém o encaminhou assim; alguém que escreve nos jornais, não desfazendo. (Ibidem, pp.41-42)

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Romão Outras vezes a sua observação do aluno será um tanto ou

quanto irónica; mas mesmo assim, como que a brincar, dá-nos os traços psicológicos do perfil do aluno. É o caso do Romão, «o poeta da aula», como simpaticamente se lhe dirige:

Ainda não disse que tenho um Poeta na turma. É o Romão. Faz o possível por «parecer» Poeta, pela maneira como se senta, pelo tom de voz e até pelo reclamo falado que de si faz: assina o «Poeta»; acha naturalíssimo que eu lhe chame «Ó Poeta» e diz aos outros que se não devem admirar de que haja Poetas que escrevem prosa: «Eu também sou Poeta e faço muitas redacções.» Tenho-lhe dito que é preciso ser Poeta principalmente por dentro; ele deve sabê-lo e é muito capaz de sê-lo: o que escreve traz o selo tão nítido que o rapazinho talvez não se tenha enganado a seu respeito. Imaginação, boa escolha de palavras e uma gramática pavorosamente à Gomes Leal; pontuação não é com ele: a sua prosa (assinada assim: «o Poeta prosador») é parente do verso do Aragon.

Pois o Romão quis ler Uma Corrida em Salvaterra e eu invejei a leitura de que foi capaz. Ouvi-o com gosto, se não com entusiasmo... improvisa um discurso tão correctamente conduzido, tão bonito e tão rico de frases felizes, que parecia preparado. Mas não era: o Poeta estava a falar. E o Poeta tinha o coração nas mãos (já sei porque é que ele põe as mãos num gesto que eu a princípio não percebia). (Ibidem,pp.58-59)

Noutra página do Diário mostra-nos com certa complacência a arte poetizante de Romão, transcrevendo uns versos dedicados a uma dama e dizendo:

Ora atrevam-se lá a dizer que o Romão não é Poeta. (Ibidem, p.137)

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E remata a transcrição com uma breve nota que mostra carinho e ao mesmo tempo vontade de que os versos do seu aluno fiquem unidos para sempre à sua prosa de professor-escritor. Diz:

(A cópia está conforme, a não ser em cinco is que eu não me atrevi a deixar sem pontos...) (Ibidem)

Conquanto Sebastião fale de Romão com uma certa ironia, quando se trata de o ajudar nalgum momento dramático da sua vida, dá-lhe todo o seu apoio incondicional. O relato que se segue é daqueles relatos exemplares que contêm a suficiente densidade espiritual para fazer dos seus protagonistas modelos de amizade. Por parte do aluno, há uma confiança sem limites e por parte do professor uma dedicação pedagógica plena. Escreve no dia 28 de Janeiro assim:

Tanta coisa para lembrar, tão pouca para escrever. No caderno de Romão deixei este sinal: «Hoje foi um grande dia.» Palavras para mim e para ele, só para ele e para mim.

Alto das escadinhas. Desta vez não estava a Ermelinda a dar-me, sorridente e mimosa, os bons-dias. Tive pena. Os trabalhadores escavavam entre os destroços. O Romão olhava-os e confiava-me: — «Estou a ver o que me espera.» Estava triste e misterioso. Dei-lhe o braço e trouxe-o. — «Vou perder o ano. Olhe isto.» Era uma nota de um professor, que o acusava de não estudar e de não ter o caderno em dia. E acrescentava ainda mais que do começo do período parecera ter melhores ideias. O professor tinha razão e até foi bom não se ter lembrado de resolver com o Romão o que estava a tentar resolver com o Pai. É que o Romão temeu a zanga e a pancada. E caiu em si. Conviemos os dois em que era uma pena nunca arrancar ele as notas a que tem direito a sua sensibilidade e a sua inteligência... O Romão chorava e tinha para mim o coração aberto como nunca. Solução final: eu vou pedir ao dito professor que desista de recorrer ao Pai; e dizer-lhe que o Romão fica sob minha fiança. Entretanto, trar-me-á o seu caderno de Português (nem dinheiro tinha para comprá-lo e punha num só todas as disciplinas) para que eu escreva nele coisas que animem o Pai, o

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animem a ele e evitem desastres futuros. Tenho a certeza de que o Romão me não deixará ficar mal. (Ibidem, pp.337-339)

A confiança de Sebastião nos seus alunos não tem brechas. Funciona como uma força espiritual que une e espera, porque os conhece profundamente. Na realidade, a verdadeira confiança alimenta-se da esperança e esta do conhecimento. E o professor, fazendo sentir aos alunos a sua esperança neles, está motivando a responsabilidade individual, o seu crescimento espiritual.

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BarradasHá observações carregadas de empatia convivencial como

aquelas que aparecem no relato sobre o Barradas. Observar à distância não serve a um verdadeiro pedagogo. O que importa é «empatizar» com os alunos, pois é aí que acontece o verdadeiro milagre do conhecimento profundo e da compreensão plena. Gama é naturalmente amigo dos seus alunos, sem paternalismo, com simpatia e com verdade. De tudo isto é um exemplo o relato sobre o Barradas. O poeta conta-o de uma maneira viva:

Largo do Carmo, duas e meia da tarde. «Que é do Barrada-s? Porque diabo tem o Barradas faltado? — «O Barradas parece que anda desnorteado. Também já faltou a Geografia e a Francês. Coisas de namoro que acabou e o deixaram assim...» — «Mas onde está ele? Digam-me, que isso é que é servi-lo. Digam-me tudo.» — «Está ali numa taberna a jogar aos bonecos. Está lá sempre. Parece que anda maluco: calcule que vendeu o livro de Geografia por 7$50 para no outro dia comprá-lo novo por 20$00. Anda maluco.»

O caso era mais grave do que se me afigurava. Fui até à taberna de onde vinha já a sair o Barradas. Fiz-me encontrado. — «Estava a ver o jogo.» — «E por que é que tens faltado?» — «Por causa de não ter o caderno em dia.» Mentira, Barradas. Eu peço o caderno raramente e não ralho nunca por isso: só lamento. Anda cá.» Travei-lhe o braço e fomos conversando até ao elevador de Santa Justa. Fiz-lhe ver o perigo em que andava. A boa hora em que estava ainda em evitá-lo. O natural é uma pessoa perder a cabeça — e o natural que também é ver isso a tempo e reagir, e a redução a zero de uns dias passados mal passados, desde que o presente, por vontade nossa, seja limpo. E mais: — «Tu, Barradas, alegraste-me a mim, a teus pais, a ti próprio no segundo período; foste um homenzinho; tiveste, por meu lado, 17 valores em Francês e 17 em Português, mas não é isso que vale porque podia ser injusto; podias valer isso mesmo e eu não tê-lo visto e ter-te dado

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10; o que vale é a satisfação que tu sentiste por teres cumprido. Se amanhã fizeres um exame de consciência, que resposta te dará ela a esta pergunta: eu tenho procedido bem? Como devo a mim próprio e aos que acreditam em mim? Ouve, Barradas: eu não te peço que me faças confissões; só tenho pena que tenhas mentido a um professor que não mente —pelo menos não mente aos alunos. Se quiseres e quando quiseres, quando precisares, abre-te comigo; procura-me, escreve-me, como queiras; não vejas em mim uma pessoa mais velha— aliás, pouco mais velho

sou do que tu. E adeus. Tenho confiança em ti e tenho a certeza de que estes dias desnorteados depressa serão esquecidos.»

O Barradas tinha lágrimas nos olhos. Eu falara-lhe com uma voz pequenina, que não ralhou nunca. Disse-lhe que tenho confiança nele e tenho mesmo. O Amor converte os pecadores, quanto mais o Barradas, que é um rapazinho manso e bom! (Ibidem, pp. 197-199)

Isto é certamente a melhor psicoterapia que um professor pode usar com os alunos: amor, confiança, paciência, três constantes na pedagogia de Sebastião. Estas três atitudes produzem o milagre: ressuscitam no rapaz a vitalidade psíquica de modo a readquirir a vontade de viver, resolvendo os problemas que a própria vida coloca a cada um. Contudo, este professor, que não pára de observar os rapazes e de os motivar, sente por vezes pena de não poder conviver mais com eles, pois está convencido de que só com o contacto permanente é que se chega ao conhecimento e ao verdadeiro amor convivencial. Assim dirá:

Tenho pena de não ter mais convivência individual com eles — trazer um por um a minha casa, estar cada dia com um deles, a falar a ouvi-lo falar, a vê-lo por dentro. (Ibidem, p.120)

E remata este sentimento com um grito de admiração pelos alunos e de alegria pela sua sorte:

Que rapazes estupendos! Que sorte grande me caiu nas mãos! (Ibidem)

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Não há limites de tempo para o amor neste professor para quem viver é conviver e a convivência é o instrumento supremo da observação, do conhecimento e do amor. Todas as técnicas psicológicas que não se fundamentam na convivência empática com o aluno parecerão a este pedagogo fórmulas vazias de conteúdo. Os testes psicométricos nunca poderão suprir a carência de relação convivencial. Sebastão escolheu o melhor processo através de uma natural intuição, por isso as suas observações são tão significativas.

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Tadeu Um exemplo concreto de como exercitava a confiança no aluno

de maneira plena é o caso do Tadeu. Sebastião estava farto de ouvir o costumado: «Cuidado com o aluno!» Cuidado este que nas bocas de muitos dos seus colegas significava pé atrás, desconfiança, medo perante o aluno. Sebastião, pelo contrário, pensa que «se o campo é bom e se a semente é bem lançada, até uma inicial vontade de enganar a contraria, agindo no espírito do aluno a nossa fé. E depois há o ficar ou não ficar tranquila a nossa consciência. E acrescenta peremptoriamente: «Antes ser levado do que arriscar-me a ser cruel, a ofender, a estragar.» E acaba dando a essa fatídica frase «Cuidado com o aluno!» um significado completamente diferente do habitual. «Cuidado com o aluno!» no sentido de cuidar do aluno com confiança e sem temor nem desconfiança. Relata-nos a cena com Tadeu assim:

O Tadeu chegou-se junto de mim e disse numa voz nervosa, cortada de soluços: — «Fui eu.»

Mansamente falei-lhe. — «Com certeza?» — «Não, senhor! Mas eles dizem que fui eu e eu aceito: não quero que a turma inteira seja castigada.»

Beijei-o. Falei demoradamente com ele, com a ternura que ele merecia. À saída da aula vi a Gumersinda, uma das raparigas com que falo e que estimo aqui na Escola, e disse-lhe: — «Aperte a mão a este menino, que é um homem.» Ela também o beijou (já é uma mulherzinha e ele tem doze anos).

No pátio disse aos moços:

— «Não foi o Tadeu.»

Para muitos deles o professor foi levado... (Ibidem, p. 200)

Para Sebastião, não tem importância «ser levado», o que importa é confiar, entregar-se ao aluno para lhe mostrar que ele é

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gente e que está acima de qualquer suspeita, porque é amado como amigo. Confiar no aluno é uma lei inviolável na pedagogia de Sebastião. Um dia qualquer, o aluno mentiroso sentirá dentro de si uma nova força para abandonar a mentira e assumir com coragem a verdade, a sinceridade, o amor convivencial e responsável. E essa força dever-se-á a que alguém confiou nele muito antes dele próprio confiar em si.

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ArturEste aluno fará sentir a Sebastião como os rapazes são

desconcertantes, apresentando-se improvisadamente de uma forma original, diferente do costume. Os homens não são coisas estáticas, mas pessoas mutáveis, a quem temos de dar possibilidades de vida e de movimento para que se mostrem por fora como são por dentro. Este é o relato do pasmo do nosso poeta perante o Artur:

O Doutor Juiz, que era o Artur, só houve um momento em que perdeu a compostura: foi quando o entusiasmo dos advogados ameaçou perturbar a paz daquela audiência.

(101) op. cit., p. 200.

— «Parece uma discussão de varinas» — atirou ele, desta vez com a sua costumada voz garota.

Eu estava pasmado com o Artur porque o Artur é dos que estão calados só quando estão a falar (costumo eu dizer, tomando por falar, falar a sério sobre as coisas da lição). O Artur é uma espécie de Pescaria Filho — menos espirituoso, menos rápido talvez; a graça dele está mais na maneira de dizer as coisas do que nas coisas; além disso, o Pescaria Filho (o Pescaria Pai é o irmão mais velho) é mais fino. Foi o Pescaria Filho que a propósito dos amores de Ulisses com a deusa teve esta saída: — «O gajo era descarado»; e foi também ele que interpretou assim o verso de Afonso Lopes Vieira: «Os olhos do lobo chamejavam.» — «Isso era o lobo a piscar o olho... a piscar o olho às lobas.»

Admirei-me do Artur, porque não falou senão quando a sua missão de Juiz o obrigava. A certa altura não pude esconder mais o meu espanto. Vai ele e responde, cônscio da sua importância: — «Estou a pesar os argumentos dos advogados, para depois poder lavrar a sentença...»

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«Balão, balão, balão.» — O Juiz tocara, com gesto e voz, a campainha de impor silêncio. E a seguir leu o libelo:

«É acusado Lobo Vilão de ter morto à dentada junto de um ribeiro o Sr Cordeiro de Lambranque, de 6 meses de idade, morador em Curral de Baixo, Casal da Bicharada, porta 3. Que ali fora beber água. Este tribunal aqui se reuniu para averiguar o crime.» (Ibidem, pp. 207-208)

Este rapazinho que o preocupara ao longo do estágio devido ao seu mau comportamento, acabará por o compensar gratamente. Diz assim:

...o Artur tem-se portado como gente grande e fez por completo esquecer o que fora: dou-vos a minha palavra de honra de que não tive ainda, no segundo período, razão de queixa dele. (Ibidem, pp. 341-342)

E lembra a simpática despedida do Artur.

Foi então que Artur se levantou com uma seriedade mil vezes diferente da seriedade de comédia que ele às vezes compõe, se despediu de mim. Que bonitas, que simples, comovidas, que sinceras palavras! Um abraço ao Artur. (Ibidem)

Mais uma despedida do Artur, desta vez florida:

Um grande, um lindíssimo ramo de cravos. O Artur a trazê-los, com estas palavras: «Para si e para a sua Joaninha.» Uma catadupa de obrigados — gaguejados e lacrimosos. (Ibidem)

Também do Artur, como do Fosco, as notícias que lhe dão são sempre de contentar.

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AragãoAcontece frequentemente Gama receber lições admiráveis dos

seus alunos, como no caso de Aragão. Nem sempre ensinar, mas também aprender deles. Este é aliás o segredo do autêntico professor. Assim foi a «lição» que Gama recebeu do Aragão:

Hoje vai haver um exercício. Falei com o Aragão dois dias antes — foi comigo à Avenida. Este Aragão é do melhor que eu conheço — inteligente e distinto; está ali alguém de quem eu direi mais tarde: — «É meu aluno.» — (Eu não tenho ex-alunos), ora tendo eu dito que gosto de ver, nos exercícios, variedade de soluções, o Aragão a certa altura propõe: — «E o Senhor também aprende connosco, não é verdade? Nós mostramos-lhe coisas que o Senhor não via ou não via assim!» É isso mesmo Aragão. E bem hajas por teres percebido que entre o ensinar e o aprender há tão pouca diferença que os dois conceitos se exprimem em francês pela mesma palavra. (Ibidem, pp. 120-121)

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GabrielSebastião sabe muito bem que os exercícios não decidem a

classificação intelectual de um aluno. Um exercício é apenas um episódio na biografia escolar de um aluno, por isso tem uma importância relativa quando se trata de valorizar com exactidão matemática os alunos, pois em todo o problema de vida a exactidão é o mais inexacto. Sendo isto assim, a avaliação deverá ser feita, não por um acto isolado, mas pelo conjunto das atitudes ao longo do ano. Isto sucede com vários alunos, entre eles com o Gabriel, com a nota do período anterior às férias da Páscoa:

Ao Gabriel dei 16, apesar de ter 11,5 no exercício. Aquele 11,5 significava pouco ou nada junto de tudo o que eu já sabia do Gabriel. (Ibidem, p. 158)

Gabriel tinha alguns dotes que Sebastião apreciava especialmente, como a sua maneira de recriar um «José das Domas» de Júlio Dinis. digna de um palco, a que se juntava a sua arte de ler e de contar e, ainda, se possível, a de ter escrito uma linda «comédia». Sendo isto muito importante do ponto de vista escolar, era-o muito mais do ponto de vista da personalidade humana, o facto de o Gabriel ter sabido demonstrar estar à altura de uma circunstância delicada e complicada, o que relevava no pequeno Gabriel um sentido soberano do viver, cuidando da convivência como se de uma obra de arte se tratasse. Assim o relata Sebastião:

— Estive em Coimbra, a fazer exames. Para eles se entreterem, encomendei-lhes urna redacção sujeita ao tema: «O professor faltou». O resultado só foi desanimador na medida em que eu peço sinceridade. (...) ora na maioria declararam-se pesarosos, tristes, pensativos, desgostosos, aborrecidos. Não desanimo, porém; eles não têm a culpa e com jeitinho levá-los-ei a dizerem com franqueza o que querem e o que pensam.

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De notável, houve o Gabriel, que teve a habilidade de me pôr ao corrente do que sentiam, sem dizer a sua opinião pessoal: fez uma engraçada cena de teatro, em que uns aclamam, outros aborrecem a falta do professor: (Ibidem, p. 57)

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AugustoSe há alguma faceta da vida humana que Sebastião preza é

sentir gozo estético frente ao mistério da realidade e de o expressar poeticamente. Se nele esta faceta era uma vivência, vê-la nos outros era uma alegria. Daí a sua empatia pelo Augusto, «o rapazinho de mais boa vontade» que tinha na turma, pois quase não se passava um dia sem que ele lhe trouxesse uma redacção e até, na «Semana da Poesia», quis contribuir com uma série de quadras que merecem a honra de figurar nas páginas do Diário. E não apenas as quadras, mas todo um romance em verso que ele lhe entregou no Largo do Carmo, inspirado nos romances lidos nas aulas como a «Nau Catrineta» ou «A Noiva Arraiana», se pode encontrar. transcrito, no Diário. Acerca disto, Sebastião não se inibe de manifestar a sua satisfação ao verificar que:

(...) tão atentos estiveram os moços e tão interessados que entenderam o romance por dentro e por fora: eis porque começo a escrever a página de hoje com a alegria de quem não trabalhou em vão. (Ibidem, p.195)

A este poeta «oficial» da turma, que tem a honra de estar presente no Diário, confiará Sebastião nada menos que o segredo da sua alma: a sua própria poesia, por ocasião da sua estada de três dias na Arrábida, com o professor. Os resultados não puderam ser mais positivos. Diz, referindo-se à nova série de versos do Augusto:

Há coisas patuscas, nesta segunda série de versos de férias; patuscas e melhores que as anteriores, o que acusa que lhe fizeram bem os livros de versos que eu lhe emprestei. Dei ao mocinho o «Cabo da Boa Esperança».

E, na sequência, transcreve a epígrafe que coloca nos seus versos, a conselho de Sebastião:

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«Que me importa que não gostem dos meus versos, que se riam deles (por serem ridículos) se é a rir que se passa a vida?» (Ibidem, p. 247)

E Sebastião transcreve o poema que Augusto intitula como ele próprio intitulara o seu, «O Poeta», e que também divide em duas partes. Por aqui se podia verificar que o mocinho ia tomando o gosto de se parecer com o mestre, o que é a suprema norma da sedução da exemplaridade: a docilidade ao exemplo. Claro que a fidelidade do rapaz ao poeta não podia servir de pretexto para ser infiel a si próprio, à sua circunstância de escolar, que era o que sucedia com frequência e a respeito de que Gama não pôde deixar de dizer:

Estou perdido com o Augusto. Apito-lhe que é preciso trabalhar e o moço como que já não sabe: por tudo e por nada, versos que te valham. (Ibidem, p. 327)

Dorido com esta infidelidade do rapaz para consigo mesmo, Sebastião procura reconduzi-lo a si mesmo, para a sua verdade, por meio do dever, quer dizer do trabalho do «caderno diário»:

Mas eu não tenho culpa. Eu não tenho culpa. Amanhã vou zangar-me com ele, que, desde que me meteu na cabeça que era Poeta, faz gazetilhas («Um astucioso ladrão de nome Laureano Vieira» — e depois versalhada) em vez de caderno diário. O que vale é que de vez em quando aparece disto, em que eu não ponho Devolvido e que talvez leia na aula. (Ibidem)

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VascoTal como ao Gabriel, Sebastião também decidiu subir, ao

Vasco, a nota de Francês, apesar do 8 que ele tivera no exercício:

Fui ter com ele e disse-lhe: — «Eu sei que vales mais do que aquilo que mostraste no exercício. Mas foi quase a única indicação que me deste: trabalhaste pouco. Como, no entanto, confio em ti, vou emprestar-te valores. O que aparecer na pauta é mais do que terá merecido o teu trabalho e tenho a certeza que o teu terceiro período vai justificar essa nota, ultrapassá-la até. (Ibidem, p.158)

Eis como Sebastião usa os trunfos que o professor tem para edificar a autoconfiança nos alunos. É um empréstimo com juros altos: a dignidade que cada um deve a si próprio e a lealdade para com quem lhe concede esse capital de amor e confiança.

E, curiosamente, o Vasco soube usar o empréstimo de amor e confiança, aplicando-o ao seu próprio rendimento. Sebastião dirá a este respeito:

Nota final: O Vasco tem cumprido; tem falado todos os dias, tem sido o mais vivo de todos. E se eu lhe tenho dado um 8? (Ibidem, p.189)

Sebastião acertou ao administrar o caudal das notas para dignificar o fundo insubornável do Vasco e incitá-lo a interessar-se. Disto dá conta no curso seguinte, ao inaugurá-lo com uma secção nova, «Para uma Morfologia», que, segundo diz, agradou a muitos e da qual o Vasco foi o porta-voz:

... com os olhos aos pulinhos, disse no fim espontaneamente: «Gostei muito disto.» Ainda não apareceu nenhuma redacção sobre o tema proposto no primeiro dia — «Se fosse eu a dar aulas...» mas a do Vasco, já sei qual será uma das alíneas. (Ibidem, p.243)

A partir dessa cura da vontade por meio da confiança. o Vasco está pronto a mostrar o seu interesse nas aulas, o que acontecerá

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aquando da leitura do «Ladino», do Miguel Torga, cujo comentário do professor, será secundado por ele com os olhos bem abertos e atirando uma frase lapidar, cheia de conteúdo e significado, que o leva a lembrar-se, com grande alegria, da sua primeira lição: «É a cor das palavras!» (Ibidem, p. 246) O interesse nunca mais faltará ao Vasco. Sebastião reconhece-o deste modo:

Mais uma vez o Vasco, rebelde quando se trata de escrever, foi dos mais apurados na interpretação e dos mais prontos na palavra. (Ibidem, p. 273)

Curas espirituais por meio da confiança, costumam ter resultados perenes como as folhas dos ciprestes que crescem e vivem na eterna primavera.

A estes alunos observados e descritos com pinceladas mais fortes, poderíamos acrescentar outros, descritos com traços talvez mais leves, mas não menos coloridos como os que se referem a Américo, a Fragata. a Luís Filipe, a Rogério, a Pedro, a Reinaldo, a Albano, a Acácio, a Manuel Calvinho e a muitos outros que estão presentes em letras de forma no coração do seu professor que é o Diário.

Ora bem, na sequência desta fusão da relação orientada pelo amor e da observação psicológica, podemos prever uma didáctica escolar eficiente. É sobre ela que nos vamos debruçar a seguir. (Ibidem, p. 64)

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Didáctica escolarEm qualquer didáctica o problema preliminar é a própria

relação pedagógica entre aluno e professor ao nível da linguagem. Gama assim o pensa. Trata-se antes de mais nada de uma questão de honestidade do professor consigo mesmo e depois duma certa eficácia junto dos alunos.

Sebastião tinha a consciência tanto das suas limitações pessoais como também das suas qualidades: «...sinto que me faltam muitas qualidades; sabe-me a pouco, cá dentro, tudo quanto faço», dizia mas, por outro lado, sabe que tem «algumas qualidades, graças às quais não é desonestamente que sou professor». (Ibidem, p. 68) Uma das limitações que encontra em si diz respeito precisamente à sua linguagem. Conta-nos porquê:

Está provado que não nasci para falar a doutores. Um dos meus professores viu direito quando, no meu exame de admissão ao estágio, lamentou que a minha linguagem nem sempre fosse a mais conveniente. O princípio do mal está em mim, que sou saloio por dentro; saloio, não: cabreiro. E depois deu asas a isto o facto de eu me ter feito homem entre os camponeses e pescadores e ter tido sempre o cuidado de falar com eles, para estarmos todos à vontade. Ao par do que aí fica, acontece que venho de lavradores, jardineiros e comerciantes; tudo gente de cepa honrada mas agreste. O que não quer dizer que a cepa seja de não dar flor; tenho um primo que guarda ovelhas e as beija e as trata como a suas irmãs: um São Francisco em bruto. (Ibidem, pp. 50-51)

E se realmente sabe que não nasceu para falar a doutores, por outro lado, tem a certeza de que é entendido ao pé dos simples. Mas junto dos rapazes será entendido? Como não está seguro, pergunta ao metodólogo. Diz-nos:

Perguntei-lhe se devia falar caro ou acessível, porque «serei sempre - diferente deles». Isto de ser «diferente deles» vem lembrar

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outro assunto sobre que falamos. — O do professor que sente a necessidade de se impor ao aluno pelo alardeamento de uma vastidão e complicação de conhecimento com que o amachuca. (Ibidem, p.52

«Falar acessível» será a melhor maneira de ser luminoso e transparente diante dos seus alunos. «Ser diferente» dos alunos não significará contudo distanciamento, mas apenas uma forma especial de serviço junto deles. Sebastião quer que isto fique muito claro, mesmo quando alguma vez tenha que usar a reguada embora contra a sua vontade. Nesse momento não se pode pôr em dúvida a sua amizade. «Não há entre vocês um só que duvide que eu sou seu amigo», dirá numa altura dessas. O dever de servir orientando e rectificando os comportamentos dos alunos é uma exigência do seu amor por eles.

Ao nível da didáctica, uma das primeiras medidas a corrigir no sistema tradicional vigente nas escolas, será acabar com o que ele chama «o terror da chamada». A sua estratégia seria a seguinte:

Chamei o Ludovico para o ouvir ler Chamei à moderna ou à minha moda, claro está. Até seria bom banir a palavra, que tem ainda, para muita gente, o sentido de «tortura». Quando cheguei a Setúbal, quis acabar com o que fica bem chamado «o terror da chamada», é esse terror que leva a criança a faltar à aula, a inventar uma desculpa, a tremer perante o professor Ora em Setúbal, como aqui, deu-se o contrário: há a ânsia, a exigência e a alegria da chamada. Reclamam, querem vir junto de mim todos os dias, impacientam-se. Em Setúbal, de princípio, perguntava: «É para nota?» (E havia medo numa voz.) «Não. É para aprender.» Pois sim, senhor, para aprender é que é: para eu aprender para estarmos mais perto um do outro; para partirmos a aula ao meio: pataca a mim, pataca a ti. (Ibidem, pp.40-41)

Além de suprimir as medidas de traumatização infantil, Sebastião reforça a personalidade dos alunos por meio de tácticas positivas, como por exemplo a de chamar cada aluno pelo seu nome

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próprio, para que todos sintam a importância de cada um. A este respeito evoca uma sua ida a um orfanato:

... fui ao Orfanato falar com o meu amigo Manuel Calvinho, meu aluno nocturno de Francês. Perguntei: — «O Calvinho está?» — «O 12, não é?» — «Não: o Calvinho. Então não basta não ter Pai nem Mãe, ainda lhe chamam um número?» (Ibidem, p. 122)

A participação activa dos alunos nas aulas era uma das condições mais decisivas para fazer das aulas uma festa participada. Em realidade são precisamente os rapazes «que sabem o que querem». Ao mesmo tempo esta participação activa nas aulas era outra das muitas oportunidades para que se manifestassem espontaneamente e dissessem o que pensavam acerca dos diversos assuntos. Essas oportunidades revestiam às vezes formas teatrais. Ele relata-nos gozosamente uma delas:

O Júlio Dinis parece que fez de propósito para as Leituras esta página deliciosa: omite-se os comentários do narrador e pronto. — Aí temos o Fosco e o Gabriel, por exemplo, a criarem um João da Esquina e um José das Dornas dignos de um palco. Aquilo é teatro puro — mas os moços acharam graça à representação de A Carrimónia e por tudo e por nada querem festa; já não se contentam com o que lá está: querem improvisar cozinhar a seu modo um novo João da Esquina e um novo José das Dornas. E cozinharam mesmo, pois então:— Macacos! Um macacão, um macacão tenho eu na minha frente — e o Fosco, tolhido de reumatismo, arrastava a perna. (Ibidem, p.228)

Outras vezes, manifestar-se-ão lendo os seus próprios versos, como no caso do Augusto que leu uma série de quadras, para contribuir para a Semana da Poesia. Sebastião comenta a seguir a récita do Augusto:

A lição foi deles, por isso deixo os versos como a cepa os deu. E ainda porque foi deles a lição, dou agora a palavra ao Carlos Costa: «Deixou-me muito aborrecido, porque é uma coisa muito morta.» Aqui é que eu não tolerei; convidei toda a gente a desmenti-lo,

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tanto mais que ele opunha, ao mortiço da Poesia, a fábula, «coisa mais engraçada, mais distraída». Provámos-lhe que não. E à saciedade, porque eu li com gana um poema futebolesco de António Botto e os versos do Romão, cheios de vivacidade e alegria, «Festa na Aldeia». (Ibidem, p.105)

O pensamento de Gama, acerca da participação dos alunos nas aulas, foi sempre muito bem claro. Desde o início do estágio deixou patente o seu pensamento, quando disse:

Sempre que possa, lerei trechos dos rapazes. Eles pedem, gostam de ouvir o que os companheiros escreveram e é mais estimulante isto do que a competição, a luta pelo primeiro lugar ( Ibidem, p. 85)

Como não podia deixar de acontecer num educador com imaginação poética, uma das suas preocupações constantes será inventar centros de interesse: motivar os alunos desde dentro deles próprios e assim romper o nevoeiro da monotonia que por vezes envolve as aulas. Afirma:

... obrigarei a minha pobre imaginação a inventar centros de interesse para eles. Um seria a festa escolar; com o maior empenho fariam o respectivo cartaz, mas para isso, para lhes aguçar o espírito publicitário, em primeiro lugar há que fazer a festa.(Ibidem, p.63)

Para Sebastião, «ser um bom professor consiste em adivinhar a maneira de levar todos os alunos a estarem interessados; a não se lembrarem de que lá fora é melhor», por isso quando os alunos estão desatentos nas aulas, tem de se buscar a responsabilidade de tal facto numa carência didáctica do professor mais do que na simples «maldade» dos alunos. Uma pedagogia séria, fundamentada no conhecimento psicológico do adolescente, não pode cair no engano de pretender explicar o insucesso escolar em geral ou de uma aula em particular pela culpabilização «cómoda» do aluno; tem de examinar criticamente todos os comportamentos não só didácticos como os extra-escolares.

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O professor Sebastião, a propósito das aulas más, dirá sem rodeios nem panos quentes:

... (Aulas más são aulas que os rapazes não querem ouvir.) Mas então —poderia eu defender-me — que culpa temos nós de os rapazes serem barulhentos, desinquietos e desatentos? É verdade que às vezes a culpa não é nossa: é toda deles, a quem mais apetecia estar na rua que na escola. Mas para isso justamente é que serve o bom professor — e o meu drama resulta de que a mim só me interessa ser bom professor. (Ibidem, p. 131)

E já sabemos o que entende por «ser um bom professor». Em não ser um repetidor de «saberes», mas um «formador» de pessoas, um suscitador de aventuras espirituais. Por isso, a começar por si mesmo, exigir-se-á um grande esforço de imaginação:

O bem é eu começar à procura de coisas que os possam interessar. É eu tentar ultrapassar-me. Mas acontece outra desgraça, porque eu tenho pouca imaginação e ao professor é indispensável imaginação.(Ibidem, p. 134)

E acrescenta, em jeito de resignação, mas não como claudicação, umas palavras em inglês de um escritor amigo:

Paciência! «God, who denies us peace, must give us patience» — diz o meu amigo James Philip. ( Ibidem)

Apesar desta confissão, nós sabemos que os comportamentos didácticos do professor Sebastião provam o contrário, ou não seria o poeta que era. Claro que também sabemos que são sempre os poetas, e os artistas em geral, quem mais sentem as limitações face a um ideal altíssimo e quem mais insatisfeitos ficam com os seus próprios actos. Como professor de Português, Sebastião centrará o seu interesse didáctico na aprendizagem da leitura. Na sua opinião, ler era algo importantíssimo. Ler bem, obviamente. Não uma leitura material e mecânica, mas espiritual e compreensiva. Ler, pondo em relevo o significante e o significado de cada signo verbal da escrita. Ler, interpretando o texto através da voz, dos gestos, porque o texto é completado pelo leitor em cada leitura. Este

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é o método melhor, segundo Gama, para chegar a amar a escrita, cada parte dela, até cada palavra. Assim diz:

O que interessa mais que tudo é ensinar a ler: Ler sem que passe despercebido o mais importante — e às vezes é pormenor que parece uma coisinha de nada. Ler, despindo cada palavra, cada frase, auscultando cada entoação de voz para perceber até ao fundo a beleza ou o tamanho do que se lê. É também de interesse primário levar os rapazes a amar as palavras — mostrar como são cheias de belezas, outras como são engraçadas, outras como são doces. Ora para amar as palavras e para, a seguir, amar a leitura, é aconselhável, como diria La Palice, não fazer desamar as palavras, nem fazer desamar a leitura. Que amor terá uma criança por uma palavra que afez suar, levar descomposturas, levar reguadas? Nunca Eugénio de Castro chegaria a encontrar cheia de beleza a palavra «Gomil», se os seus velhos mestres de Português, como soldados bêbedos, lhe tivessem violentado a virgindade. Felizmente que, adormecida como a Bela do Bosque, não caiu nas garras de nenhum gramaticão que a desfibrasse e lhe chamasse substantivo concreto (Santo Deus!), que faz o plural em is e concorda em género e número com o adjectivo que o qualifica. Talvez os rapazes de há vinte anos estejam convencidos que «as armas» com que Os Lusíadas começa são armas de fogo e que «os barões» são descendentes dos barões de farsa do Camilo: mas dirão tintim por tintim o género, o número, a classe das duas palavras. O que fazem a um homem depois de morto! (Ibidem, pp.90-92)

Sebastião tem um sentido personalista da arte e está convencido de que todo o artista literário cria a partir da sua intimidade pessoal, porque a pessoa é o arco que dispara a flecha e, portanto, cada obra é um troço de vida de um homem que se exprime nela. Há que ter, pois em conta esta realidade quando entramos em contacto com ela. Sebastião está longe de pensar que o texto chega e sobra. Na criação literária busca incansável o seu criador.

Afirma-o através deste relato:

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Convidei o Pedro a ler e a conversar comigo. Dei-lhe um pequenino trecho — Não quero, de Guerra Junqueiro. O pequeno leu razoavelmente e mostrou compreensão muito clara do que estivera a ler Saber ler é ver como ele viu, a importância que tem no trecho o facto de o narrador apertar a mão ao rapazinho e o facto de ele o ter reconhecido passado muito tempo; é compreender o motivo da negativa do pequeno honesto ser tão enérgica e o motivo por que o outro se retira envergonhado; é achar natural um sorrir quando mais tarde se encontram, e o outro baixar os olhos. (Ibidem, p.92)

As técnicas da leitura que usa são as vulgares, mas nem por isso menos eficazes: ouvir um texto bem lido e depois lê-lo por sua vez, porque «desde que a gente leia bem e isso acontece-me às vezes — e só leio quando isso me acontece — é que eles aprendem a ler. E perdem, com o nosso exemplo, o acanhamento que os leva a não ler 'pão, pão, queijo, queijo'.» (Ibidem, p. 64) Sempre a exemplaridade funciona na pedagogia de Sebastião como mecanismo de aperfeiçoamento da personalidade do adolescente. Entre os trechos de leitura, Sebastião mostra preferência pelos diálogos, porque neles o aluno expressa com mais espontaneidade a sua intimidade por ter perdido a vergonha que o discurso provoca nele. Sebastião fala pela sua experiência de professor. Diz assim:

O trecho dialogado é um bom campo para aprender a ler O mocinho que, num trecho vulgar, não é capaz ou tem vergonha de ler com naturalidade o discurso directo, aqui sente-se actor e aspira ao aplauso da plateia. Faz voz de menina (sacrifício supremo, mas feito com prazer) se tanto for necessário. (Ibidem, p.128)

O interesse em motivar a leitura nos alunos, leva Sebastião a convidar os próprios alunos a serem eles mesmos os autores de diálogo, até de peças de teatro para serem representadas na aula. Conta-nos acerca do «estratagema» de que se serviu:

Já que eles gostam de ler teatro, mas têm mostrado pouco interesse em escrevê-lo eles próprios, vou subtilmente obrigá-los a serem finalmente autores: bastará, tenho a certeza, anunciar que as

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peças escritas serão representadas na aula. Para lhes abrir o apetite, poderei até levar à cena a que o Gabriel escreveu. (Ibidem, p. 129)

Sebastião, como poeta, sabe que as melhores poesias acontecem de improviso; como professor, tem a experiência de que as melhores aulas de Português também «acontecem», não se podendo pretender levar uma aula preparada tintim por tintim até ao fim; pelo menos é o que sucede com ele.

Confessa-o com toda a sinceridade:

Eu sempre me senti um infeliz plagiador, quando dizia num exame oral coisa que dissera no escrito; ou dizia no ,final coisas que dissera no de frequência. O mesmo me acontece agora quando, contente com uma lição que dei, tento repeti-la noutra turma; o que era bonito fez-se horrível, eu sinto-me réu e a aula é uma espécie de caricatura. Por outro lado, tenho verificado que as melhores aulas da minha curta vida surgiram de repente, por causa de uma palavra, por causa de uma insignificância em que eu não pensara antes. Falei nisto ao metodólogo. Apoiou-me no que costumo fazer, que é não levar, em Português, a aula preparada tintim por tintim e concluiu que a lição de Português acontece. (Ibidem, pp. 49-50)

E acontece porque sendo as aulas de Sebastião actos de vida autêntica, elas aconteciam em Sebastião e nos seus alunos, pois a vida quando o é verdadeiramente, é sempre res dramatica, drama que nos acontece porque a vida é um acontecer contínuo, é o que fazemos, não um factum, mas um faciendum, um quefazer. A vida como realidade dinâmica que é, dinamiza tudo o que nela vai embarcado, as pessoas e as coisas, e neste caso o «Português».

Esta didáctica da improvisação de uma aula, quando o professor é um poeta do cariz de Sebastião, em vez de ser um risco, transforma-se numa bela oportunidade para fazer trabalhar a imaginação e a espontaneidade criadora.

A Gramática é uma das tarefas mais maçadoras, difíceis e, ao mesmo tempo, imperiosas para um professor de Português. É

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enfadonha porque requer um trabalho de abstracção que pouco ou nada suscita a atenção dos adolescentes. É difícil porque se se insiste demasiado nela corre-se o risco de provocar nos alunos a fobia da leitura e até de matar a espontaneidade num possível escritor em germe. A este respeito, Azorín aconselhava: «Reservemos o estudo da gramática para quando já não precisamos da gramática. É a altura em que já não nos pode fazer mal... o que se deve pretender é não contrariar o livre desenvolvimento da centelha criadora por considerações de forma.» (El artista y el estilo, Aguilar, Madrid, 1945, p.101) Contudo ela não deixa de ser necessária pelo menos de uma maneira elementar.

Sebastião, como escritor e poeta, cedo se apercebeu de que a gramática era uma espada de dois gumes. É sintomática a lembrança que tem da gramática na sua infância. Diz:

Olho para o passado e vejo a Gramática. A Gramática. A Gramática.

Eu nem sei como aprendi a gostar de ler. Talvez por uma predisposição interior, uma fatalidade. Deve ser, sim: porque os meus companheiros não liam e estou quase certo de que não lêem. (Ibidem, p. 110)

Estava convencido de que o facto de muitos dos seus colegas não terem adquirido o gosto pela leitura se devia à presença enfadonha e maçadora da gramática na escola. Aliás evoca a experiência por que passara quando indignado com a liberdade de imprensa que permitira a publicação dum livro como o que estava a ler — O Marquês da Bacalhoa — cheio das mais torpes e repugnantes aleivosias acerca de uma mulher, o deixa cair das mãos, comentando:

Os outros também fechavam os livros (ou não chegavam a abri-los...) mas era por causa da Gramática. Porque é que não se ensina a Gramática já sistematizada, senão depois de os escolares poderem já ver o que ela é e sobretudo de já gostarem das palavras? A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de

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anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género,' o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática. (Ibidem, pp. 111-112)

E termina com este conselho preciso e prático:

A Gramática, nos primeiros anos, dê-se com conta, peso e medida. Como auxiliar, recurso para as dúvidas que surgem. (Ibidem, p.112)

Dado que a Gramática é imprescindível, impõe-se a maneira mais eficaz e agradável de a ensinar. Parece que Sebastião só ensinava gramática quando se sentia tão bem disposto que a poderia dar em ritmo de dança. Assim resultava uma aula meio-cantada, e a hora passava depressa, conforme nos diz. É necessário encontrar o segredo para que os alunos prestem atenção à lição de gramática e o segredo, segundo Sebastião, é o seguinte:

... basta que a gente não lhes fale de coisas abstractas, de que eles não vêem a utilidade imediata, e que faça a aula brincando. (Ibidem, p.186)

Os seus alunos aprenderão, pois, a gramática de uma forma activa: lendo, escrevendo, falando. Se a gramática brota da língua popular, se é algo vivo, torna-se necessário fazer viver a língua por meio de actos vitais, porque, no dizer de Sebastião:

A língua não é um relógio: é uma árvore; arranjam-se as peçazinhas diferentes, combinam-se de acordo com o plano geral e pronto — aí está um relógio pronto a roubar-nos o tempo; mas com uma árvore — fia de outro modo; ninguém, nenhum senhor botânico se atreveu a dizer: enterre-se uma raiz, pegue-se num tronco, abram-se-lhe ramos, enfeitem-nos de folhas, percorram-na de seiva; não, senhor: nascida a árvore, olhou-se para ela e reparou-se como era composta. O mesmo, insisto, se dá com a língua. (Ibidem, p.291)

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O acto de ler, para a aprendizagem da gramática, levará Gama às vezes aos jornais, por tudo aquilo que de bom e de mau pode significar o jornalismo em relação à gramática. A esta operação de ler os jornais criticamente chamará intencionalmente «rusga». Diz-nos que o aconselhava por ter visto nos jornais muitas vezes «os mais graves pontapés na Gramática» e para começar contou-lhes a «rusga» que ele fizera no último Verão. Diz:

Na primeira página de um jornal, a encabeçar uma fotografia em que determinada planta parecia um chapéu de senhora, este letreiro: «Não é um chapéu, mas cura a tuberculose.» — De onde se conclui — não é verdade? — que os chapéus curam a tuberculose. Ibidem,p.245)

Como professor de Português, Sebastião tratará sempre de inventar novas formas didácticas para tornar agradável e eficaz a aprendizagem da língua pátria. Ele sabe, por experiência própria, que a língua materna é o melhor veículo de convivência humana que qualquer sociedade possui. Fará finca-pé nisso a que chamava «policiar a nossa linguagem», quer dizer:

... falarmos entre nós como se estivéssemos na aula, ou diante de senhoras, ou junto da nossa família. E por duas razões: a primeira, e mais importante, é que devemos ser elegantes, asseados espiritualmente; a segunda é que o hábito de falar usando com frequência palavras menos próprias nos levará afazer o mesmo diante de gente mais velha ou diante de senhoras, já por distracção, já por fatalidade, como é o caso de certas interjeições. (Ibidem, pp.160-161)

É necessário, pois, evitar o desequilíbrio da convivência por causa da linguagem pouco conveniente e oportuna. Isto que aparentemente poderia implicar uma certa coacção à espontaneidade dos rapazes, tem a vantagem de lhes ensinar a regra de ouro da convivência humana: não falar aos outros da maneira que não queremos que nos falem a nós. Gama não podia deixar de fazer sentir que a convivência implica um certo serviço e submissão

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para bem de todos, para manter a harmonia nas relações humanas. Esta é a parte positiva dos usos sociais.

Para fomentar as suas relações afectivas com os alunos, o professor de Português inventará uma forma de correcção dos exercícios literários. Diz-nos:

Inventei uma nova maneira de correcção: a cada trabalho aponho uma folha de papel onde vou anotando o que não está bem, e como e por quê isso ficará bem. São observações que dizem respeito à ortografia, à morfologia, à sintaxe, à lógica interior dos textos; é uma lição ao vivo que eles guardarão nos seus cadernos, que os mais interessados lerão de vez em quando e que traz no fim uma apreciação que não poupa o elogio, porque o elogio anima e encoraja. (Ibidem, p.185)

O pedagogo Sebastião aproveita todas as oportunidades que lhe oferece o professor de Português para afirmar a personalidade dos adolescentes por meio do elogio. Ele sabe que «há quem não concorde com o elogio, quem o guarde para os considerandos, desde o princípio dos séculos, os melhores alunos». No entanto, ele sabe por experiência própria que o elogio tem o condão de reforçar as tendências positivas da pessoa humana, de a impulsionar para fins sempre mais elevados e dignos. Desta experiência até apresenta o parecer duma mocinha, a Gumersinda:

Dizia ela, a propósito de uma estagiária, sua antiga professora, que ela é «psicóloga» (espremia-se toda, a pobre, para pronunciar bem a palavra!), que fazia o possível por descobrir o que à aluna importava. — «Agora Fulana, a nossa actual professora de Português... É uma pessoa que nunca nos dá um elogio.»

Como eles sabem que é preciso ser psicólogo e que é preciso dar elogios! Fale a gente, sem ser de longe ou do alto, com os rapazes e as raparigas, faça-se a gente seu confidente, e aprenderá muita, muitíssima coisa. (Ibidem, p.203)

Quando se vê na situação de ter de chamar os rapazes à ordem, prefere apelar para os bons sentimentos a recorrer às humilhações.

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Calhou que estando doente durante um mês, ao ser substituído por uma colega, as aulas tornaram-se durante esse tempo em «pândega» para os alunos. Tal estado de coisas teve como consequência «uma superabundância de negativas e todo um quadro de professores indignados». Posteriormente, Gama intervém por meio destas palavras interpelantes:

— Não há entre vocês um só — creio eu — que duvide de que eu sou seu amigo. E pensava eu que a minha amizade fosse paga com amizade também. Afinal, bastou voltar costas para ver que me enganava: a uma pessoa tão minha amiga, que me fez o favor de trabalhar por todo o tempo em que estive doente, tratam-na vocês o mais incorrectamente, o mais malcriadamente que pode ser. Essa má-criação e essa incorrecção são tanto mais graves quanto é certo que foram cometidas para com uma senhora. Vêem todos, portanto, que razões tenho eu para estar magoado e desiludido. Vejamos agora os resultados escolares da vossa turbulência: uma porção de negativas e a turma desconsiderada no conceito dos professores. Sendo vocês uma turma em que todos nós e os que dirigem a escola e o Senhor Director-Geral e até o Ministro têm os olhos postos — visto que é a primeira no País que está a executar a nova reforma — a situação torna-se mais crítica: do mesmo modo que o bom comportamento escolar é notado mais atentamente na nossa turma, também o é mais atentamente o mau comportamento e a péssima classificação... é preciso que cada um pergunte à sua consciência se eu tenho ou não tenho razão... Cumpre-vos então pensar que o vosso bom nome está ainda a tempo de ser resgatado: que ainda não está completamente «queimado»(...) Avante, pois! Eu disse ao senhor metodólogo, há dias, que vocês iriam ser a melhor turma da Escola. Disse-o e junto de vós o mantenho; porque tenho a certeza de que todos se esforçarão por uma atitude nova, que faça a todos esquecer o que foi o período que Deus tenha. Combinado? (Ibidem, pp.309-311)

Como professor oficial, Sebastião também estava submetido à lei das classificações dos rapazes, geralmente quantitativas. Porém, ele cumprirá com este requisito da lei escolar de uma forma muito

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humana e particular. Para já, seguia duas normas na correcção das redacções de Português: ler tudo o que os alunos escrevem e proceder a correcções individuais, gastando nisso tantas aulas quanto fossem necessárias. Vendo que a expressão aritmética das classificações — as notas — tinham um impacto desanimador junto dos alunos, substituía-a muitas vezes por expressões qualitativas. Queria a todo o custo que os rapazes se apercebessem de que o que interessava era informação qualitativa. Diz-nos:

Gostava que os mocinhos não ligassem importância de valoração quantitativa às notas: que as tomassem como símbolos, não como prémios: que para eles a nota não fosse um lugar sentado no eléctrico. Que dissessem: «Que me importa ter tido dez valores, se eu valho dezoito?» Ou então «de que me serve ter tido dezoito, se eu valho dez?» O que interessa para a nossa saúde, para o nosso desenvolvimento físico, é crescer (por exemplo); não é poder dizer aos outros: «Sabes? Tenho um metro e setenta de altura.» Mas é evidente que isto há-de custar, se é que não é quase impossível. Pois se nós os grandes, os que temos estas teorias.. .Cala-te boca! (Ibidem, p.183)

Precisamente porque as coisas estavam bastante confusas a este respeito, Gama dialoga com os alunos, acerca das notas, deste modo:

— Eu sei (disse ao Vasco) que vales mais do que aquilo que mostraste no exercício. Mas foi quase a única indicação que me deste: trabalhaste pouco. Como, no entanto, confio em ti, vou emprestar-te valores. O que aparecer na pauta é mais do que terá merecido o teu trabalho — e tenho a certeza que o teu terceiro período vai justificar essa nota, ultrapassá-la até. (Ibidem, p. 158)

Para Sebastião a nota deve funcionar como motivação psicológica e não como um número de arquivo. No entanto, sempre que podia, evitava a classificação aritmética, deitando mão da expressão qualitativa por meio da qual o aluno sempre se sente mais compreendido e estimado.

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Entre os comportamentos didácticos que a imaginação de Sebastião improvisou com resultados muito positivos, houve dois a que ele chamou, respectivamente, a «Semana do Animal» e a «Semana da Poesia». Com a «Semana do Animal», pretendia reforçar os bons sentimentos dos rapazes através da estima pelos animais. Com a «Semana da Poesia», queria encaminhá-los para o apreço da arte, em geral, e da poesia em particular.

Para orientar a «Semana do Animal», escolherá trechos sobre animais que motivem os bons sentimentos para com os próprios animais. Diz assim:

Com cuidado, escolhi então oito trechozinhos que não levassem a ler mais do que o tempo da aula. Neles se verificavam modos vários de olhar para os bichos — verificava-se, antes de tudo, amor pelos bichos...

Aqui vai o programa...

A Cigarra e a Formiga Mário Pederneiras

Mãe Trindade Coelho

Em Casa Alheia João Grave

Noite Perdida António Feijó

A Moleirinha Guerra Junqueiro

A Choca Trindade Coelho

Conversa de Bichos Raúl Brandão

Cabra, Carneiro e Cevado João de Deus

Como se vê, eu quis principalmente dar-lhes animais vivos, pô-los a amar o rouxinol, a cabra, a galinha, a cigarra...

A «Semana do Animal» entrara com o pé direito, porque toda a gente saía da aula como da festa (eles contentes; eu contente e cansado...). ( Ibidem, pp.65-67)

Querendo fazer notar a vivacidade dos animais nos narradores portugueses, comparou-os com os dos contos infantis, onde «não é

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ainda o animal verdadeiro que aparece — tem a mesma realidade que a fada e o papão, pertence como eles ao, chamo-lhe eu assim: 'Maravilhoso infantil' ... Estes sim (os autores portugueses) dão-nos animais que respiram! A Ruça e a Choca não são gente nem são símbolos: são uma cabra chamada Ruça e uma galinha chamada Choca. O Gabriel disse até que 'a Ruça não fala'». E acrescenta cheio de satisfação: «Aquilo é que lhes falava ao coração; era demasiado tarde para gostarem do 'Gato das Botas' ,» (Ibidem, pp. 72-73)

Aproveitando esta oportunidade em que os rapazes «sentiam» o animal, Sebastião vai propor uma coisa que ele vinha aguardando e que reputava de grande importância para manter a fidelidade aos animais e o amor por todos eles e verificar as contradições dos homens na sua linguagem tocante aos animais. Conta assim:

Já em Setúbal falei nisso: é a degradação do animal, dentro do domínio vocabular da injúria. Um dos mil campos em que esta «pobre coisa chamada homem» se contradiz. Pois nós que nos servimos do animal, o tratamos com familiaridade, o homenageamos pela literatura, o fazemos símbolo de fidelidade (se é o cão), de nobreza (se é o cavalo), não descemos ao paradoxo de fazer significar com a palavra «cão» tudo que puder ser de patife para cima, com a palavra «burro» o homem estúpido? O cão já não é o símbolo da fidelidade, porque o capricho do homem (ou a sua insuficiência de linguagem, exacerlzada pela sua ingratidão natural) o passa a dar como símbolo da canalhice. (Ibidem, p. 73)

E neste momento, o poeta que é Sebastião reivindica, para todos os seus colegas de ofício estético, o mérito pedagógico que têm, sendo diferentes dos homens vulgares, a respeito dos animais, ou melhor, da linguagem que usam sobre os animais Sebastião afirma:

O que nos vale aqui, meus amigos, são os Poetas, que se opõem a esta degradação do animal, fazendo precisamente o contrário: sublimando. Pois que fez Trindade Coelho? E que fez o Guerra Junqueiro com o burrico que aparece n 'A Moleirinha? E por isso

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mesmo (não é verdade, ó Romão?) é que eles são Poetas: porque sublimam, porque fazem de um nabo uma rosa, em vez de fazerem de uma rosa um nabo. Põem beleza e amor na vida e obrigam os outros a vê-los onde eles não eram capazes de descortinar (pobres cegos!) senão desamor e fealdade. Quem será capaz de chamar «burro» a um homem que seja alarve, se se lembrar do burriquito de A Moleirinha? (Ibidem, p.73-74)

Assim, sempre que possível, o poeta Sebastião far-lhes-á sentir a presença viva e real de algum animal. Conta-nos o seguinte relato acerca dum pintassilgo:

Pertinho da sala 19 mora um pintassilgo (ou pássaro que o valha...). Volta não volta lá se põe ele a cantar e é um gosto ouvi-lo: há alegria, há ternura na sua cantiga. Por importante ou urgente que seja o que estou dizendo, é muito mais importante ou urgente ouvir o pintassilgo: quebro, mal o oiço, ou a frase ou a palavra ao meio. Todos escutam. E o Américo, que tem uns olhos profundos e marotos, ou o Poeta ou qualquer outro, diz logo: «Por isso é que eu não gosto da Formiga.» (Ibidem, p.76)

Esta observação nasceu do julgamento da Formiga e do elogio da Cigarra, que constituíram o corpo de uma aula. Consequentemente, Sebastião faz o seguinte comentário:

Que me perdoem «os amplos e maçudos livros morais de exemplos e de estudos». Eu não posso admitir que seja louvada junto de crianças a crueldade, a ironia ruim e sem coração de Dona Formiga. E não admito também que se chame inútil à Cigarra — quando a Cigarra vive para alegrar os outros. (Ibidem, p.76)

Também lhes ensina que os animais não são simples máquinas como muitos sábios chegaram a pensar. Descartes, por exemplo. Sebastião corrigirá o filósofo francês, dizendo:

Longe vai o tempo em que os homens mais sábios acreditavam piamente que o animal funcionava como uma máquina — e se não importavam de lhe bater, porque não eram gemidos o que ouviam então: seria antes ar que saía do seu corpo, como de uma buzina.

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Foi Descartes quem, no século XVII, lançou este pregão. E foi tido isto com certeza ao século XIX. Estudos sérios provaram então o crasso erro de Descartes. Estudiosos como Roehles dedicaram-se mesmo a demonstrar a rudimentar inteligência de certos animais: Kiihler provou como o chimpazé era capaz de resolver certos problemas (os caixotes, as varas...). Não é preciso, de resto, ser sábio para perceber que o animal não é uma máquina; quem não tem ou não teve, como eu, um cãozinho que o vá esperar à saída da Escola? Quem não reparou como um gatinho novo ou um cachorrinho se assemelham, nas brincadeiras, às crianças humanas?

Há uma vasta literatura que nos informa que entre o homem e os bichos pode haver uma amizade profunda. O nosso tão conhecido e admirado Trindade Coelho fala-nos do carinho, da pieguice comovente do Sr Tomé pelo Sultão, o burro. Havemos de ler aqui esse conto. Mas de quem quero hoje falar-vos é de Axel Munthe, que nos seus livros: Livro de S. Michel e Homens e Bichos, nos dá a mais linda lição de fraternidade — de amor pelos nossos irmãos homens e pelos nossos irmãos bichos. (Ibidem, p.191)

Assim, a «Semana do Animal» acabou em odor de amizade, tal como convinha a poeta, amigo dos seus alunos.

A «Semana da Poesia» será para o poeta professor qualquer coisa como a «sua» semana. Sebastião nunca escondeu a sua condição de poeta. Ser poeta constituía para ele um dom que deve tornar-se dádiva gratuita. Além de escrever versos, Sebastião fazia poesia por meio da comunicação humana. Poesia para Sebastião era, como os para os gregos, a forma suprema da paideia, da educação. Poesia era como que uma pedagogia de felicidade, pois o sentimento poético transforma tudo quanto toca em beleza, em emoção. Di-lo eloquentemente Sebastião:

O Poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade... E diz assim: «É preciso saber olhar...» E pode ser em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos... E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por

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detrás... E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que olhou desvanecida para o filho pequenino, um bocadinho de Sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante... E pega no braço dos homens que estavam tristes... E escreveu uns versos que começam desta maneira:

«O segredo é amar...» (Ibidem, p.94)

Esta nova forma de sentir o mundo que nos rodeia é um ver activo que interpreta vendo e vê interpretando. Isto é saber olhar. «Olhar» que constitui, sem dúvida, uma verdadeira forma de conhecimento, como a ciência, como a filosofia, como a religião, em suma, aquilo a que Platão chamou com palavra divina: «Ideias». Com efeito, pela Poesia interpretamos a realidade de uma forma maravilhosa, pressentindo um mundo que está por detrás das aparências que o envolvem, tratando de adivinhar o mistério da própria criação das coisas. Ela faz entrar as coisas numa espécie de remoinho, numa dança espontânea, no dizer de Ortega, e assim submetidas a esse dinamismo virtual, elas adquirem um novo sentido. (VI, p.247)

É o sentido, aliás, daquilo a que chamamos genericamente arte. A arte é uma actividade espiritual que liberta as coisas da sua vulgaridade e empresta aos homens olhos novos para ver de uma forma original o Mundo.

Esta forma de ver o Mundo que muitos poderiam pensar que não passa de uma brincadeira intranscendente, é para Sebastião, como para os grandes sensitivos da história, uma necessidade vital. Pela arte, o homem exprime aquilo que a humanidade não pode exprimir de outra forma. O homem leva dentro de si um problema heróico, trágico: o conhecimento de si próprio e do mundo que o rodeia. Pois bem, o conhecimento que a arte fornece é nada menos que o do Mundo como totalidade das relações das coisas, da harmonia que existe em todas elas. A arte é assim o conhecimento humano que vê o Mundo com amor, como um centro de relações harmónicas e belas. Sebastião, como poeta, vive intensamente esta

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realidade: ele não conhece o Mundo por um simples conhecer as coisas, mas sim porque se sente unido a tudo de uma maneira profunda. Por isso, a sua teoria educativa, nascendo do sentimento poético, confunde-se com uma teoria de amor. «O segredo de tudo é amar», repete várias vezes.

Platão costumava dizer que o amor é um divino arquitecto que desceu ao Mundo para que tudo no universo viva em conexão. O ódio atomiza o Universo; o amor integra-o. Ora bem, para descobrir este amor na harmonia das relações é preciso, como repete Sebastião, «saber olhar» como fazem os poetas que «fazem de um nabo uma rosa, em vez de fazerem de uma rosa um nabo. Põem beleza e amor na vida e obrigam os outros a vê-los onde eles não eram capazes de descortinar (...) senão desamor e fealdade.»

Por isso, os artistas são os esforçados da compreensão do Mundo, os suscitadores do amor porque põem tudo em conexão harmónica.

Sebastião pode dizer que por tudo isto fez a «Semana da Poesia». Diz explicitamente:

Por tudo isto e porque de pequenino é que se torce o pepino. Por falta das antologias escolares, ou pela só presença de maus poetas, é que os rapazes chegam a homens com uma má vontade à Poesia ou uma ignorância dela que confrangem um cristão. É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno — não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, como para que olhem o mundo através da janela da Poesia, para que beijem tudo, graças a Deus, para que saibam olhar, para que reparem nas flores e nas ovelhas. Isto é que se quer que eles façam, sem respeito humano, pela vida fora. ( Ibidem, pp.94-95)

Porém, não se trata de impingir versos a torto e a direito aos alunos. O poeta Sebastião sabe que motivar não consiste em tornar enfadonha uma actividade em torno à beleza, como é a Poesia, mas apenas em encaminhar os rapazes a viverem conscientemente um

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sentimento poético que forma parte do inconsciente colectivo do povo português. Por isso insiste mais uma vez:

Quero abrir-lhes a janela da Poesia, para que não se dê tempo a que também entre neles o respeito humano. Ouvindo ou lendo versos, verão logo de princípio que é natural um homem amar as flores — e amar as flores com naturalidade.

E para começar esta sensibilização poética preencheu uma aula com versos lidos por ele próprio. Escolheu os versos mais simples, de preferência descritivos, de compreensão mais fácil.

«Em quase todos a nota dominante era o encantamento — ser Poeta, tinha eu pensado dizer-lhes — é estar encantado ou desencantado e contá-lo com palavras que pareçam música. E a todos os impunha a beleza formal, a que eu olhei também: as coisas boas têm de ser ditas com bons modos e esta aula era uma primeira oferta que eu gostava que fosse aceitada.» (Ibidem, p. 97)

Não era a primeira vez que Sebastião abordava o tema da Poesia. Noutras aulas, expusera já algo daquilo que forma a estrutura formal da poesia: o uso das comparações e, sobretudo, o mundo imaginário a que a poesia faz referência directamente. A «comparação» que é corrente na linguagem e que à força de ser usada se torna vulgar e perde beleza, é reinventada na Poesia. Diz, a este respeito, Sebastião: «A comparação na Poesia tem de ser nova, recém-descoberta e bela.» (Ibidem, p. 47)

Entre um pouco de teoria e muita prática, Sebastião confidencia-nos:

Devagarinho, sem pressas, irão eles, comigo, achando aqui uma imagem, ali uma palavra, acolá um acontecimento que só podem ser da Poesia. E um belo dia acontece que lêem A Moleirinha com os olhos deslumbrados e torcem o nariz a um mau poeta.

Foram até lá sem dar por isso. (Ibidem, p. 44)

Assim, um poeta pedagogo foi encaminhando os seus alunos para a descoberta desse mistério que é a Poesia, mistério de

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palavras, mistério de imagens, mistério de mundos novos que acontecem na vida quotidiana de todos os homens e em que poucos reparam.

Chegado ao fim da «Semana da Poesia», Sebastião teve a satisfação de verificar que a Poesia os havia educado na sinceridade, na espontaneidade, na beleza, na harmonia, no amor e no imaginário. Para o poeta de Serra-Mãe, Cabo de Boa Esperança, Campo Aberto e Itinerário Paralelo, a poesia traz sempre uma mensagem de amor e com amor a felicidade, porque a Poesia é uma aprendizagem de amor e o amor uma aprendizagem da felicidade.

Por último, numa didáctica elementar pensamos que não deve faltar o comportamento que se aproxima do velho método de Sócrates: o método do diálogo. Além disso, estamos convencidos de que socratizar o ensino é a melhor conduta pedagógica para suscitar uma personalidade crítica e livre. O método socrático tem duas fases que, segundo uma terminologia grega se chamam «ironia» e «maiêutica». Na primeira criticam-se as ideias herdadas e assumidas como crenças ao longo dos primeiros anos de vida. Estas ideias-crenças, segundo Ortega, são aquelas ideias em que nos encontramos, que estão connosco, ainda mesmo antes que nos ocupemos em pensar. Na segunda fase, tratamos de construir ideias novas, próprias: ideias-ocorrências, segundo a terminologia do filósofo madrileno, porque as produzimos, as sustentamos, propagamos, combatemos em sua defesa e chegamos ao ponto de sermos capazes de morrer por elas. (V, pp. 384-385)

Com efeito, a «ironia» (em grego, interrogação) introduz no espírito a dúvida que é a origem de todo o conhecimento. «A dúvida é a matriz palpitante da verdade», diz Ortega.(VIII, p- 315) Com a «maiêutica» (em grego, engendrar) descobrimos o mundo das nossas ideias pessoais. Os homens que conseguem alcançar uma identidade pessoal autêntica costumam passar por estes três estádios: a fé, a dúvida e a filosofia pessoal. Como diz Ortega acerca dos três estádios: «Na fé, está-se, na dúvida, cai-se, e com a filosofia, sai-se dela para o Universo.» (VIII,p. 285) Universo pessoal,

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descoberto por meio do esforço; universo da nossa verdade, a única que nos serve para chegarmos a ser aquilo que temos de ser, sob pena de não sermos nós e, portanto, nada que valha a pena.

Neste sentido, Ortega afirma que o «vigor intelectual de um homem, como de uma ciência, mede-se pela dose de cepticismo, de dúvida, que é capaz de digerir, de assimilar e não da confiança ingénua de quem nunca experimentou vacilações». Aqui, céptico significa «desconfiado», «suspicaz», «quem olha com cautela em redor de si», atitude específica do pensamento moderno e que representa o homem com vida mais rica e completa do que o simples crente. Por vezes, pensa-se que o céptico não acredita em nada. Antes pelo contrário. O céptico diferencia-se do crente porque este acredita numa coisa só e aquele em muitas, em quase todas. E esta multidão de crenças, no dizer de Ortega, travando-se umas às outras, tornam a alma flexível e deleitável. (IV, p.101) Segundo isto, a didáctica socrática seria uma didáctica dialéctica: pergunta - resposta, crença — ideia; fé — filosofia; verdade de sentido comum — verdade científica, enfim, pessoa coisificada (o crente vulgar de qualquer instituição social) e a pessoa autêntica, liberta (o dissidente de todo e qualquer grupo social).

No que se refere à didáctica de Sebastião, para já, podemos dizer que toda ela está mareada por um espírito de ironia e de maiêutica, porquanto que estabelece como pedagogia essencial da escola a pedagogia da felicidade. Nada de mais contestatário se tivermos em conta as normas institucionais que vigoraram na sociedade a que pertencia Sebastião.

O que menos poderiam ter dito da sua teoria educativa e dos seus métodos, é que eram coisas de poeta. Contudo, só os que sabem olhar como os poetas, usando as palavras de Sebastião, adivinham, libertam-se dos tópicos, geram ideias novas, enfim encontram a identidade pessoal, a sua autenticidade. O que eu quero principalmente é que vivam felizes, escreve Sebastião, no primeiro dia do estágio, confirmando a orientação certeira do metodólogo. Ora esta felicidade estará dependente da capacidade

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de diálogo interior do aluno, da sua criatividade, da sua libertação pessoal. Se a poesia para Sebastião é busca da originalidade na linguagem, também a educação o deve ser.

Um exemplo, entre tantos, de como Sebastião orientava a sua didáctica para a desmistificação dos tópicos sociais é a crítica que faz ao cliché moralizante de Dona Formiga corno trabalhadora e de Dona Cigarra como inútil e as conclusões a que chega juntamente com os seus alunos através duma poesia de Mário Pederneiras em que se distancia dos pontos de vista tradicionais do fabulista francês La Fontaine. Conta-nos este processo de análise e de crítica dos conceitos tradicionais:

Pegámos na poesia de Mário Pederneiras e fomos anotando as diferenças que entre ela e a fábula vulgar existem. E a propósito disto é que aconteceu a lição de Português. Foi assim que vimos como a apresentação da Formiga («Dona Formiga/ pertence à classe das senhoras sérias,/ tem cuidado da casa e do alimento,/ não fala muito, muito pouco briga»/ etc.) pode ser considerada uma descrição objectiva, mas também pode ser considerada um elogio, se quem a ler tiver o mesmo génio que a Formiga; ainda uma censura, e é aqui o caso, como se depreende da sequência dos versos.

Começamos a reparar que esta fábula é diferente quando vimos o Poeta chamar «amplos e maçudos» aos livros de moral e dizer que «a Cigarra, coitadinha, morre». Além disso, a fábula vulgar limita-se a contar a história: conta de antemão com o consentimento do leitor ao conceito em que é tida a formiga e ao conceito em que é tida a cigarra. Aqui, não: é depois de deixar por terra esses conceitos (e assim a descrição da Formiga pode quase sempre ser considerada irónica), que o Poeta conta a história. Esta, até à fala da Cigarra, é igual à vulgar; mas aqui começa, com a maior simplicidade, a ser diferente: «Honestamente, disse que cantava.» Neste advérbio vai a defesa e o elogio da Cigarra, do mesmo modo que a condenação da Formiga está na estrofe seguinte: «Pois a malvada,/ sem dó da mísera mendiga,/ quase morta de fome e já

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sem voz,/ numa ironia desumana e atroz,/ mandou que ela dançasse...».

Agora falo eu: que se louve o espírito de ordem e de trabalho da Formiga, está bem; mas que se louve a sua desumanidade, a crueldade da sua recusa, o requinte da sua maldade, isso é imoral e pouco pedagógico. O Mário Pederneiras tem razão. Os meus moços acharam que nem devemos trabalhar só, nem devemos apenas brincar; que a Cigarra não é inútil, como não é inútil o Beethoven nem o João de Deus, nem o pintassilgo do nosso vizinho. «Por isso é que eu não gosto da formiga.» (Ibidem, pp.77-79)

A este juízo crítico acerca do conteúdo da fábula, Gama acrescentará outro acerca do próprio La Fontaine, dizendo:

— La Fontaine, muito provavelmente, nada sabia da vida íntima da formiga. Que é trabalhadora, podia verificá-lo facilmente; que é cruel, é que não. Hoje é que já há interessantíssimos trabalhos sobre a vida dos insectos — morreu há dias Maurice de Maeterlinck, que é, neste domínio, um nome afixar e a amar Ora La Fontaine, não querendo mais, como é característica da fábula, que falar de homens que a um tempo são trabalhadores e cruéis, passou automaticamente carta de crueldade à Formiga. Nós hoje (Mário Pederneiras é um exemplo bem frisante) vemos na formiga um animalzinho cruel e egoísta. A culpa é de La Fontaine. Talvez a formiga não seja assim — é preciso ir junto dela, observar-lhe a vida e reabilitá-la, se ela o merecer. (Ibidem, pp.201-202)

Uma das muitas tentativas «irónicas» na sua didáctica escolar é o tribunal que ele improvisa na aula para que o grupo julgue alguns dos seus componentes tidos por culpados de uma falta determinada.

Aconteceu no caso de Fosco, ser denunciado por um contínuo, como irrequieto. Em vez de exercer a justiça, Sebastião da Gama remete-a para a turma a fim de despertar nos rapazes o sentido da responsabilidade de uma crítica justa. Igualmente possui toda a riqueza do método socrático a proposta de julgamento por parte

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dos alunos, do lobo e do cordeiro da fábula de La Fontaine que o juiz (o Artur) apresenta assim em jeito de libelo:

É acusado Lobo Vilão de ter morto à dentada junto de um ribeiro o Sr Cordeiro de Lambran que, de 6 meses de idade. Morador em Curral de Baixo, Casal da Bicharada, porta 3. Que ali fora beber água. Este tribunal aqui se reuniu para averiguar o crime. (Ibidem,pp. 207-208)

O advogado defensor será o Romão, o advogado da acusação o Fosco e o Gabriel encarnará o lobo-réu. Esta situação resultará profundamente dialogal, dialéctica e socrática. Cada um falou a partir de si mesmo, desde o seu ponto de vista, desde a sua sinceridade pessoal. Assim um caso tópico resulta num problema muito sério quando visto duma perspectiva pessoal de rapazes que começam a dar-se conta de que os actos dos animais, um tanto ou quanto antropomorfizados, não podem ser julgados mecanicamente porque existem variáveis que há que ter em conta, se não queremos viver com um pensamento mecânico e inercial. Foram tão sagazes e pessoais as considerações dos rapazes segundo consta pelo testemunho do próprio Gama que este, maravilhado pelas respostas dos seus alunos não quis acrescentar nada ao diálogo sob pena de o deformar. E assim acaba dizendo:

Tocara a campainha. Meti no saco algumas considerações que pensara fazer. E ainda bem que não houve tempo para elas: que pálidas ficariam ao pé do colorido que tinham dado à aula aqueles rapazinhos sagazes. (Ibidem, p. 209)

E remata com este juízo do metodólogo que tanto diz a favor dos dois pedagogos da Escola Veiga Beirão, juízo tantas vezes repetido, nem por isso mesmo menos válido e significativo para conhecer a alma dos pedagogos:

— «É gente muito.fina» — costuma dizer o metodólogo. (Ibidem)

Pois bem, a afinar a alma dos rapazes por meio da sagacidade crítica, da espontaneidade sentimental e da responsabilidade

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convivencial tendeu toda a didáctica de Sebastião. Com efeito, só quando os rapazes conseguem a sua própria identidade pessoal por meio da libertação interior e exterior, a didáctica cumpre o seu mister.

Sebastião, professor-estagiário da Escola Veiga Beirão, de Lisboa, além de um excelso poeta pedagogo intuitivo e sagaz acabou sendo um verdadeiro «sócrates» da ironia criadora e da felicidade convivencial.

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REGRAS DE OURO DA

PEDAGOGIA VITAL DE

SEBASTIÃO DA GAMA

«Uma obra (literária) de categoria tem de ser tomada como Jericó.

Em amplos círculos, os nossos pensamentos e as nossas emoções vão estreitando-a lentamente, atirando para o ar sons de ideais trombetas.»

(ORTEGA Y GASSET)

O assédio pedagógico a que temos submetido o Diário de Sebastião da Gama circulando em torno dele, deslizando em espiral desde a teoria com aspecto abstracto até à didáctica de aspecto mais concreto passando pela observação da vida dos seus alunos com nomes próprios, tem deparado com uma compreensão completa dos grandes problemas essenciais que a vida coloca todos os dias à prática educativa.

Ao circular à volta dos problemas pela mão de Sebastião verificamos que todos eles estão constituídos por uma série de articulações que Ortega, por sua vez, denomina série dialéctica, que não tem nada que ver com a dialéctica famosa de Hegel, fruto da razão pura e do logicismo mental, mas que se refere aos factos mentais que se produzem em qualquer tentativa de pensar a realidade. Com efeito, qualquer coisa apresenta-se sob um primeiro aspecto que nos leva a um segundo, este a outro e assim sucessivamente.

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Este pensar dialéctico, segundo Ortega, significa que cada passo mental que damos nos obriga a dar um novo passo; não qualquer um, por capricho mental, mas outro passo determinado, porque aquilo que nós vemos num primeiro momento, revela-nos novo aspecto. É a própria realidade que orienta os nossos passos, no caso concreto o ser humano como processo psicogenético do aluno.

Esta realidade dinâmica e vital será o nosso guia em relação à pedagogia vital de Sebastião da Gama. O pensamento dialéctico que descobrimos na pedagogia de Sebastião é mobilizado por uma dialéctica real: a vida humana. É esta realidade concreta que empurra o pensamento, obrigando-o a coincidir com ela. O adolescente é a realidade concreta que empurra o pensamento. Sendo isto assim brotam do Diário de Sebastião, como dum manancial, uma série de articulações que constituem verdadeiras regras de ouro da prática educativa essencial. E articulam-se umas com as outras ao jeito dos famosos estádios de Piaget, onde o novo estádio não suprime o anterior, mas antes o conserva. Assim, a maturidade pessoal como meta da prática educativa supõe uma pedagogia de integração psíquica e relacional.

Deste modo, no nosso caso concreto, veremos como o segundo termo de cada regra passa a constituir-se como o primeiro da regra seguinte, desenvolvendo-se em espiral à maneira de melodia dramática. A realidade afectiva, dinâmica e transformadora, mestre - aluno, pessoa - pedagogia, constituirão os dois pólos de atracção da dialéctica real da pedagogia de Sebastião.

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REGRA PRIMEIRA: Mestre-

aluno,uma verdadeira relação

interindividual«Os métodos, por si sós, não trazem nada de definitivo porque

tudo se joga a nível da relação de um mestre que possui um certo equilíbrio pulsional e uma história em grupo de crianças.» (Michel Richard)

«O que é importante em educação não é apenas o que o educador diz ou faz, mas o que ele é e o que pode inconscientemente sentir, e que qualquer método pedagógico vale o que valer aquele que o aplica.»(Georges Mauco)

Parece que todos os grandes pedagogos, quaisquer que sejam as críticas que se possam fazer às suas justificações teóricas, mostraram possuir uma capacidade excepcional de contacto com as crianças. Muitas vezes, porém, apesar dos seus êxitos não souberam definir os fundamentos conceptuais e filosóficos adequados, chegando ao ponto de os terem ignorado ou desestimado na sua acção real junto das crianças, ainda que, bem vistas as coisas, «todo o facto é já uma teoria», como pretendia Goethe.

Com efeito, a escola é primordialmente uma instituição educacional de relação com o outro, do mestre com o aluno. Por isso, a escola é um factor de socialização da criança muito antes de ser o depósito de conhecimentos que há que despejar sobre a criança. Para além disto, as características da escola consistem em estabelecer a transmissão permanente do saber numa relação mestre - aluno.

A importância desta relação não pode deixar de sobressair aos nossos olhos se pensarmos na tragédia que a Pedagogia em si mesma encerra, como tão bem salienta Ortega: «a falsidade do acto

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de estudar». Entre os objectivos da Pedagogia, está a regulamentação do acto de estudar. Ora, em «nenhum acto da vida é tão constante, habitual e tolerada a falsificação como no ensino», afirma Ortega. (IV, p.552)

Na realidade, estudar é um quefazer que não responde às necessidades individuais e autênticas de cada pessoa em particular. Neste sentido, o estudo não ajuda à estruturação da personalidade, pois o homem só é propriamente aquilo que é autenticamente, e é autenticamente quando aquilo que é e faz, o é e o faz por íntima e inexorável necessidade. Ser homem não é ser, ou fazer, qualquer coisa, mas sim fazer precisamente o que necessitamos para «chegar a ser aquilo que temos de ser», segundo reza o imperativo da autenticidade de Píndaro. E o quefazer de estudar não é sentido como necessidade vital, mas como um dever imposto socialmente, portanto, artificial, inautêntico.

O estudante, de um modo geral, ao estudar faz algo de que não tem necessidade psicológica, pois estuda coisas que outros inventaram por necessidades vitais próprias, mas que a ele pouco ou nada dizem. No entanto, o acto de estudar justifica-se pela estrutura histórica do homem: o homem é um herdeiro, é alguém que tem de dar conta do saber que herda dos seus antepassados e que utiliza de diversas formas, como por exemplo a técnica. A não fazer isto, o homem poderia sucumbir.

«Se uma geração deixasse de estudar, a humanidade actual, nas suas nove décimas partes, morreria fulminantemente. O número dos homens que hoje vivem, só pode subsistir por meio da técnica superior do aproveitamento do planeta que as ciências tornam possível. As técnicas podem ser ensinadas mecanicamente. Mas as técnicas vivem do saber e se este não se pode ensinar, chegará um dia em que as técnicas também sucumbirão», diz Ortega.

Eis porque o acto de estudar, e consequentemente o de ensinar, resulta problemático, pois é simultaneamente, um acto necessário e inútil. Contradição permanente que a pedagogia deve ter sempre presente pelo que podemos deduzir que a arte de ser professor não

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pode radicar primária e fundamentalmente em ensinar uma ciência mas sim em ensinar a necessidade dessa ciência.

A tarefa pedagógica é uma prática de relações interindividuais mestre-aluno, é um problema de motivação psicológica, é uma acção pedagógica mais do que uma instrução. Nenhum professor poderá sê-lo minimamente, se não tiver em conta os mecanismos psicológicos para suscitar a necessidade vital do saber, necessidade que se integra na necessidade íntima de ser aquilo que intimamente se sente que se tem de ser.

É pois na relação mestre - aluno que radica a chave do problema escolar, como problema psicopedagógico da criança, pois há que ter em conta que na relação está subjacente uma actividade psicológica intensa e constante que vai do desenvolvimento afectivo e intelectual da criança à reforma dos métodos didácticos e melhor funcionamento da instituição escolar. Aliás, é precisamente porque o nó do problema se situa a esse nível, que entre os pedagogos se contam alguns dos melhores especialistas da psicologia da infância: Claparède, Bovet, Descouedre, R. Osterrieht, Piaget, entre outros.

Na educação tradicional, o recurso à autoridade era a coluna vertebral da relação mestre - aluno. O termo «autoridade» deriva do verbo augeo, homónimo de um termo grego que significa produzir, fazer, nascer. No entanto, tradicionalmente, a autoridade pouco teve que ver com essa obra de criação. Teve muito mais a ver com o poder de um saber que o mestre transmitia ao aluno, como se esse saber coincidisse com a verdade. O mestre funcionava como delegado da sociedade, sentindo-se na obrigação de ser um fiel transmissor dos padrões culturais e vigências sociais para conseguir a adaptação da criança à sociedade. Por isso, a palavra magistral não era criticável. No capítulo da relação mestre - aluno viveu-se assim muito tempo da ilusão de que o mestre, pelo facto de possuir o saber e de o repartir, detinha a verdade.

Sebastião da Gama, neste caso concreto da relação com os alunos, mostra uma grande capacidade de relação com os adolescentes, que se deve talvez, à sensibilidade da sua alma de

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poeta e ao seu talante bondoso e compreensivo. Não confundia autoridade e coacção, ou liberdade com deixar fazer tudo. A autoridade era para ele uma força psicológica interior que se impunha por si mesma. Essa força psicológica baseava-se na maturidade afectiva da sua personalidade, realizada na aceitação do seu destino dramático, em todas as circunstâncias adversas da sua vida. Intuiu muito cedo que o professor tinha que ser cada vez menos o magister que se apoiava na passividade submissa do aluno; em vez disso, procurou ser cada vez mais o incitador que se dirige à actividade pessoal do aluno.

A única autoridade que quis exercer foi a da exemplaridade que decorre da acção de uma minoria selecta, qualitativa portanto, e a docilidade a esse exemplo por parte da massa. Só articulada deste modo, pode a sociedade funcionar. Assim não se coibia de exercer uma certa sedução no sentido original de conduzir a si (se ducere), convencer, levar à razão, que não é a sua, evidentemente, mas a razão que cada um descobre. Por isso certo pedagogo não teve pejo em afirmar que o bom educador «é um Dom Juan a quem basta aparecer aos temos olhares infantis para cativar as almas e render as vontades.» (Manuel Garcia Morente, Escritos pedagógicos, Austral, Madrid, p.126) O que interessa é o comportamento relacional mais do que os conteúdos que se transmitem. Portanto, o mestre é um sedutor que, se age com honestidade, desbloqueia a personalidade dos alunos, orientando-os para a descoberta dos seus pontos de vista pessoais. Não é a «verdade» do mestre que conta mas a Verdade tal como António Machado aconselha no seu cantar.

Tu verdad? No, la Verdad y ven conmigo a buscarla.La tuya guárdatela.

Claro que para poder ter este comportamento impõe-se ater-se àquele outro comportamento a que o mesmo poeta alude nessa outra cantiga:

Para dialogar,

Preguntad,

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primero; después... escuchad.

O bom professor tem de aguilhoar a passividade do aluno e saber esperar o momento para a sua própria actividade pessoal. Era o que Sebastião fazia quando dizia aos seus alunos: Vocês sabem coisas que eu não sei.

Verificamos que Sebastião condenou sempre esse mecanismo negativo de defesa que certos professores usam para se imporem aos seus alunos através de uma falsa erudição que encobre a sua ignorância. Pelo contrário, ele não tem por inconveniente que formulem críticas à sua didáctica, como quando o Ludovico indica que entende que se «devia insistir um bocadinho mais em certas coisas da gramática. (...) por causa das outras línguas».

O seu conceito de autoridade leva-o a ficar-se pela sugestão. Assim, por exemplo, «os alunos — seus camaradas mais novos — não são obrigados a mais disciplina do que a que livremente queiram impor-se, segundo a medida do interesse que o professor saiba despertar-lhes». Isto pareceria a muitos dos seus colegas excessivamente «libertário», por isso Hernâni Cidade não deixa de reconhecer que muitos dos seus conceitos acerca do bom professor estão longe de obter a adesão de grande número dos seus colegas. E toma como exemplo o caso concreto da desatenção nas aulas que para a maioria dos professores é culpa dos alunos quando para Gama é precisamente o contrário: As aulas más são as aulas que os rapazes não querem ouvir Para ele, a habilidade do bom professor, está em «adivinhar a maneira de levar todos os alunos a estar interessados; a não se lembrarem de que lá fora é melhor». (Ibidem, p.131)

Nas suas relações com os alunos, Sebastião foi suficientemente honesto para reconhecer por onde costuma começar a falha na relação mestre - aluno. Nunca se quis iludir; reconheceu sempre a responsabilidade do professor. Sabia que a maioria dos manuais do ensino primário pareciam apostados em reforçar na criança, de uma forma insidiosa, a crendice e submissão à omnipotência do

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adulto, tal como depois veio a ser posto em evidência por Maria de Fátima Bivar no livro Ensino Primário e Ideologia.

A sua estrutura pessoal não se compadecia com alguma atitude repressiva. O «estudantinho atarracado e risonho, de olhos crepitantes e leais, expressivos duma alegria que se adivinhava emanada do mais fundo de uma alma equilibrada e clara, enamorada da vida, à qual parecia nada pedir senão que se deixasse amar em sua natural beleza e intrínseca bondade», segundo a descrição de Hernâni Cidade, seu professor na Faculdade de Letras de Lisboa, não podia nem queria aparecer sendo um mestre carrancudo. Além disso, era doente e parecia desde muito cedo condenado a viver vida breve, «como relâmpago na cerração». (Prefácio do Diário, p. 9) Dir-se-ia que isso aumentava nele o desejo de se dar inteiramente, o que era, aliás, o prazer supremo da sua alma.

É nesta disposição de alma que o estagiário entra na sua primeira aula. E a lição com que inicia o seu curso de professor de Português é o primeiro passo do convívio fraternal que vai estabelecer com os seus alunos.

Dir-lhes-á:

Não sou, junto de vós, mais do que um camarada um bocadinho mais velho. Sei coisas que vocês não sabem, do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou que já esqueci. Estou aqui para ensinar umas e aprender outras. Ensinar, não. Falar delas. Aqui e no pátio e na rua e no vapor e no comboio e no jardim e onde quer que nos encontremos.

Não acabei sem lhes fazer notar que a aula é nossa Que a todos cabe o direito de falar, desde que fale um de cada vez e não corte a palavra ao que está com ela. (Ibidem, p. 32)

A estas palavras iniciais, Hernâni Cidade faz o seguinte comentário: «Não pensemos que se trate de tópico da retórica das apresentações, porque é o sincero propósito que pelo decorrer da sua breve actividade docente se vai efectivando. A cada passo o

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surpreendemos a mostrar nos alunos iniciativas, capacidades, talentos de que tira, não o orgulho de mestre que a tudo isto suscite, mas o íntimo prazer de irmão mais velho que dos irmãozitos gaba as espontâneas aptidões.» (Ibidem. P.16)

Devido talvez à debilidade de doente e à natural bonomia que se reuniam na sua alma equilibrada e clara, o certo é que Sebastião estabeleceu com os seus alunos as mais espontâneas, gratificantes e pedagógicas relações. Reafirmou a ideia tradicional de que é na relação mestre-aluno que radica a essência da pedagogia escolar, pois foi a partir dessa relação que exerceu o seu mister de professor com a habilidade didáctica de um técnico de promoção intelectual e com todo o calor humano da afectividade de um amigo em quem o aluno confia e se apoia, quer dizer, com a «autoridade sedutora» do mestre.

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REGRA SEGUNDA: Da relação

interindividual à descoberta

pessoal do aluno«A finalidade da Pedagogia está no próprio homem, no esforço

que lhe oferece para encontrar a sua própria forma. Não interessa construir homens, como pretendia a pedagogia mecanicista, mas descobrir homens.» (Delfim Santos)

«Toda a vida de um indivíduo não é outra coisa senão o processo de dar à luz a si mesmo.» (Erich Fromm)

Se a pedagogia começa por centrar o problema da verdadeira relação interindividual na relação mestre - aluno, é porque tem como finalidade provocar não apenas um processo relacional do indivíduo, mas o desenvolvimento psicogenético integral da pessoa. Daí que a importância dessa relação mestre - aluno. não se decida apenas no plano consciente mas também no inconsciente: o educador age não apenas por aquilo que diz e faz, mas ainda por aquilo que é através dos dois planos da personalidade. Por conseguinte, antes de se preocupar em ensinar, terá de estar atento a ser, pois sabe que é nesta relação que vai surgir a verdadeira prática educativa.

Se a educação fosse um mero assunto de aprendizagem de conhecimentos, a questão pedagógica não teria a complexidade que tem. A este respeito. Delfim Santos diz: «O jovem é tão rico de plásticas virtualidades que, com mau ou bom ensino, aprenderia, melhor ou pior, o que os outros pretendem que ele saiba.» (Ibidem, p. 134)

Porém o que é certo, é que não é aí que reside o problema educativo. Se assim fosse, a educação seria uma questão de técnicas de aprendizagem e os professores, uns técnicos na matéria. No

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entanto, não consiste essencialmente nisso, mas em intervir com êxito no processo psicogenético da pessoa em formação.

«Se notarmos que o educando é um ser vivo em plena transitividade para algo que pode valer como aspiração, mas que, como tal, é imprevisível, e ainda que vivendo convive e convivendo aprende, e aprendendo encontra-se e perde-se, enriquece-se e empobrece-se, realiza-se parcialmente e diminui-se na integralidade da pessoa, o problema atinge um acume dramático que, por si só, justifica sem excesso o pessimismo daqueles que, por vocação confiada e generosa dedicação, se sentiram chamados ao difícil papel de educadores», anota Delfim Santos. (Ibidem, p.135)

Trata-se, na realidade, de descobrir a verdadeira personalidade, aquilo a que Ortega chama o imperativo de autenticidade, reportando-se ao princípio de Píndaro que dizia: «Advém aquilo que és.» Quer dizer, procura revelar essa imagem que está como que em negativo dentro de ti, sendo fiel ao teu destino pessoal. Esse imperativo de autenticidade não se conforma com nenhum imperativo moral do «dever ser», mas com o imperativo ontológico do «ter de ser». O homem só deve ser aquilo que pode ser e só pode ser aquilo que se inclui dentro das condições do que «é». Encontrar esta forma será um afazer de invenção, de busca, de imaginação; é verdadeiramente um processo psicogenético.

A vida pessoal é, com efeito, um projecto de futuro em liberdade para ser, ou pelo menos intentar ser o que se queira, pois se por um lado sempre algo se nos propõe pela sociedade, também por outro podemos ou não repudiá-lo, optando por aquilo que pensamos que temos de ser. Somos livres à força já que não temos outro remédio do que buscar esse ser que temos de «ser», sob pena de sermos falsificados, alienados, desorientados e perdidos. Ortega diz, sugestivamente, que o homem é «o romancista de si mesmo», dando a entender que conseguir ser «si mesmo» é uma árdua tarefa da imaginação humana. É que o homem não recebe a vida feita, mas por fazer, pois a vida é-lhe dada vazia, por isso não tem outra solução que buscar a sua mesmidade (e não a sua identidade), quer

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dizer ser si mesmo, pois o homem não é coisa, por isso não pode ter identidade, mas pessoa que acontece e se faz livre e imprevisivelmente. A forma dramática da vida pessoal é argumental e o argumento requer memória e antecipação: algo que não cabe no ser das coisas, em nada que seja propriamente natural.

A este respeito Julián Marías diz: «A última razão da insegurança da vida humana reside na condição intrinsecamente problemática da vida humana. Não tem identidade mas pela sua vez consiste em mesmidade: eu sou eu mesmo, em continuidade e permanência, irredutível a cada acto ou vivência.» E acrescenta: «Se não aceitamos esta dupla condição, se não reconhecermos a forma de realidade que encontramos em cada momento, renunciamos a compreendê-la. Neste facto se encontra o fracasso dos conhecimentos do humano.» (Persona, Alianza Editorial, Madrid, 1996, p.63)

Esta verdade foi já intuida por Pico della Mirandola na sua Oratio pro hominibus dignitate quando afirma que a identidade humana não é algo dado de uma vez por todas, materialmente programada, mas que se trata duma identidade-ainda-não-idêntica, inacabada, submetida à exigência da permanente transformação, isto é, que o homem não se pode inventar de todo, mas também não pode deixar de todo de se inventar. Aquilo a que chamamos dignidade humana não é precisamente o que o homem já possui, mas aquilo que ainda lhe falta; e o que lhe falta é sem dúvida o que realmente tem-de-fazer.

Ora a motivação do querer desta descoberta da mesmidade pessoal é que realmente constitui o problema da educação. «O problema da educação», diz Delfim Santos, «no seu aspecto ideal, interessado e sério, pretende menos, e que é, ao mesmo tempo, muitíssimo mais: que o homem seja o homem que pode ser. A técnica de que usa deve apenas servir esta finalidade: auxiliar a d e s c o b r i r o h o m e m e o s s e u s va l o re s a o p r ó p r i o homem.» (Ibidem,p. 37)

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Este problema foi encarado por Sebastião duma maneira acutilante, quando defendeu que o professor, antes de se preocupar em ensinar, deveria estar atento a «ser», quer dizer, a ter ele próprio uma vida luminosa e branca. Sebastião intui a importância do inconsciente pessoal que influirá no adolescente por uma espécie de osmose relacional. Daí a responsabilidade do professor. Porque, para ele, o professor é uma das oportunidades — feliz ou infeliz — que o destino oferece ao adolescente para que encontre a forma típica do seu ser no seu afazer problemático de viver. Isto só será possível se na escola, tal como Gama pensa, os rapazes encontrarem oportunidades para se desenvolverem, para crescerem, para saberem resolver e poderem perceber.

A Sebastião não interessava tanto meter coisas nas cabeças dos rapazes, interessava-lhe motivar as suas potencialidades genéticas para que desenvolvessem as suas tendências positivas, crescessem em curiosidade criadora e interesse pelas coisas, soubessem resolver os problemas que a vida se encarrega de levantar a cada um de nós, a todos os níveis, teórico e prático, enfim soubessem valorizar as coisas, os homens, os actos humanos, de modo a encontrar o sentido da vida individual.

A condição sine qua non para resolver este programa projectivo e futurizo é para Sebastião a verdadeira relação interindividual a estabelecer com os alunos. Não se consegue motivar, desde dentro, um rapaz com quem o professor não trata de entabular uma relação, se não de «empatia», como quer Carl Rogers, pelo menos de simpatia. Sebastião sabia-o e por isso explicitará: Faço o possível por meter-me com os outros, mas não é uma aproximação tagarela... quero é descobrir o coração dos que vão comigo, senti-lo bater.

Radica aqui a verdadeira autoridade criadora do mestre. Esta é a sua grande possibilidade de «sedução», de exemplaridade: fazer nascer o que se encontra latente na alma do adolescente. No dizer de Michel Richard, «a acção de quem detém verdadeira autoridade educativa, é uma actividade de parteiro. E a autoridade se não é

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criadora, é autoritarismo.» (Los domínios de la Psicologia. Istmo, Madrid, 1972, p.45)

Sebastião em todo o seu quefazer educativo procurará o cerne dos seus educandos, quer os ensine a ler, quer os ensine a amar os animais ou a recitar poemas. O que lhe importa é o homem vivo, mais do que o homem racionalizado, porque o homem mais do que razão, é uma vida à procura de si mesma.

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REGRA TERCEIRA: Da

descoberta pessoal à liberdade

psicossocial«A que pode tender a educação senão para a formação

do gosto pela liberdade, para a reflexão, para a crítica.» (Michel Richard)

Para que a descoberta pessoal se processe de uma forma real e autêntica, o indivíduo necessita de um espaço de liberdade, isto é a possibilidade de ter uma perspectiva própria acerca do seu meio.

Sabe-se que, enquanto cada indivíduo de outras espécies surge no Mundo, adscrito a um meio que é o seu e que lhe fornece tudo quanto precisa para em situação normal se manter, o homem pode ser definido como animal sem meio, porque após os cuidados devidos à puerícia pelos seus progenitores, necessita de um longo período para a criação e a compreensão do seu meio, feito de inúmeras e nem sempre bem sucedidas experiências e tentativas de orientação. É sob este aspecto que se pode dizer que o homem é o autor de si mesmo.

Ele encontra, é certo, um meio já formado, mas é quase sempre inevitável que, mais cedo ou mais tarde, a consciência de si o leve à conclusão de que se o meio lá está, ele não está para o meio.

E isso pela razão de que cada indivíduo ao entrar num meio, procura adaptá-lo a si mesmo antes que o meio o adapte a si. Por isso a verdadeira pedagogia assume o problema geralmente designado por conflito de gerações, verdadeiro fenómeno histórico, em que todo e qualquer indivíduo estabelece uma relação de forças entre aquilo que lhe é imposto pelas gerações anteriores e que ele depõe e aquilo que ele propõe.

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As gerações são as formas sob que se apresentam as variações da sensibilidade vital em cada época histórica. Cada geração é uma variedade humana e representa uma certa altura vital a partir da qual se sente a existência de uma determinada maneira. As gerações nascem umas das outras, de modo que a nova se encontra já com as formas que a anterior deu à existência. Viver é pois, para cada geração, tarefa de duas dimensões, como diz Ortega: uma, consiste em receber o vivido pela antecedente (ideias, valorações, instituições, etc.); a outra, em deixar fluir a espontaneidade própria. Esta dupla operação não se faz sem provocar conflito e polémica.

Na realidade, o que cada geração faz ao deixar fluir a sua espontaneidade própria, é criar um meio para sobreviver com autenticidade, dado que sem um espaço, que permita tornar possível a sua trajectória particular, os indivíduos sentem-se alienados, reprimidos, inautênticos.

Se a tarefa educativa é possibilitar a descoberta pessoal de cada indivíduo, tem de incluir no seu programa a conquista de um meio onde o indivíduo possa livremente ser quem já «é», mas o tem que descobrir. A liberdade interna do indivíduo projectar-se-á no espaço libertado graças à sua intervenção transformadora, pois cada geração implica uma mudança normal na história social.

Por aqui podemos verificar quão complexo se toma o problema da educação: consistirá num equilíbrio sem aniquilação, entre o indivíduo e o meio, entre o passado e o futuro. O indivíduo não deve ser submetido ao meio e este não deve ser aniquilado mas transformado. Aqui, como em todo o processo de socialização, impõe-se a interdependência, a relação convivencial e polémica.

Assim sendo o processo psicossocial do indivíduo, nada mais natural do que o adolescente pedir aos educadores o espaço e a liberdade para crescer como pessoa individual e distinta deles no tempo e na sensibilidade. Coloca-se deste modo ao professor o problema do equilíbrio entre aquilo que ele quer impor e o que o aluno pretende propôr. Se um dos dois se desequilibra, o processo educativo claudica e tanto o mestre como o aluno ficarão anulados.

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Educar para a liberdade criadora implica desenvolver no aluno a capacidade crítica, a reflexão criadora de um espaço novo para uma nova criatura possível.

Sabemos como Sebastião da Gama desembaraçou o seu espaço profissional, ou seja, a sala de aula, para a tornar num lugar onde os alunos se manifestassem e se expressassem livremente, símbolo afinal de um espaço aberto para todos os comportamentos afectivos e cognitivos. Com efeito, não só evita a táctica dos castigos, os momentos de stress, as repressões, como motiva os alunos para a expansão da sua personalidade por meio dos métodos activos, da crítica, etc. Por isso, Sebastião pretendia, quotidianamente, transformar as aulas em horas de festa. Não podia deixar de encarar assim a aprendizagem escolar quem tinha como meta da sua pedagogia estabelecer uma convivência baseada no amor.

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REGRA QUARTA: Da liberdade

psicossocial ao amor convivencial«Ao lado da idade real e da idade mental, há uma idade afectiva

que é função do grau de maturidade da sensibilidade.» (GEORGES MAUCO)

«O amor é um arquitecto divino que desceu à terra para que todo o Universo viva em conexão.» (PLATÃO)

O amor convivencial, que é o estádio em que a vida se manifesta em plenitude, é também um dos objectivos da pedagogia vital. Na realidade, a educação não deve subordinar-se a mais nada do que à vida porque não é senão uma consequência dela.

Já Dilthey afirmava que a pedagogia devia derivar da vida e não de qualquer sistema moral. E isto porque é na vida e pela vida que o ser humano se revela e atinge o grau da maturidade pessoal.

É um dado sociológico que a escola, como diz Delfim Santos, «é um artifício e a pedagogia necessariamente artificiosa, o que em si não é um mal, se os artifícios forem pensados para o cumprimento da finalidade que deve orientar o homem: ser autêntico.» (Ibidem, p.98) Mas este facto de a escola ser um artifício, não comporta por si só qualquer atentado contra a vida, da qual ela é aliás preparação, porque é uma das características de todos os produtos culturais do homem. Todos os produtos humanos são artifícios que o homem cria para sobreviver. Ortega dizia que a vida é em si mesma e sempre, um naufrágio, explicando. «Naufragar não quer dizer afogar-se. O pobre humano, sentindo que se submerge no abismo, agita os braços para se manter à superfície. Este esbracejar com que reaje perante a sua própria perdição, é a cultura — um movimento natatório.» (IV, p.387)

Como produto cultural, a escola é isto: um movimento natatório para evitar que nos afoguemos, para sobrevivermos, para

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aprendermos a melhor maneira de sobreviver. Ora a suprema maneira para a sobrevivência é o amor convivencial, porque na realidade só pelo gozo da totalidade das relações com os seres da criação se consegue viver em plenitude. «O amor liga-nos às coisas, ainda quando passageiramente», afirma Ortega, acrescentando:

«Pergunte-se o leitor a si mesmo que novo carácter sobrevém a uma coisa amada quando se verte sobre ela a qualidade amada? O que é que sentimos quando amamos uma mulher, quando amamos a ciência, quando amamos a pátria? E antes de qualquer outra nota, achamos esta: aquilo que dizemos amar apresenta-se-nos como algo imprescindível. O amado é desde logo, aquilo que nos aparece como imprescindível. Imprescindível! Quer dizer que não podemos viver sem isso, que não podemos admitir uma vida em que nós existíssemos e o amado não — que consideramos como uma parte de nós mesmos. Há por conseguinte no amor uma ampliação da individualidade que absorve outras coisas dentro desta, que as funde connosco. Tal laço e tal compenetração faz inteirarmo-nos profundamente das propriedades do amado. Vêmo-lo: revela-se-nos todo o seu valor. Percebemos então que o amado é, por seu lado, parte de outra coisa, que necessita dela, que está ligado a ela. Imprescindível para o amado toma-se imprescindível para nós. Deste modo, o amor vai ligando coisa a coisa e tudo a nós, em firme estrutura essencial.» (I, p. 313)

Podemos deduzir assim que viver em amor convivencial é estabelecer relações universais plenas. Uma pedagogia que pretenda apreender a vida, terá que realizar esse amor convivencial com um sentido profundamente artístico, dado que só a arte é integradora da vida. Assim, só uma pedagogia como arte (integradora da vida), mais do que como ciência (fragmentadora da vida) alcança a universalidade das relações, isto é, a verdadeira convivência amorosa. Não é verdade que, quando o aplicamos à pedagogia, o termo de «formação» da personalidade, sugere-nos algo de escultórico e de artístico?

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Esta regra de uma pedagogia artística do amor convivencial enforma a ideia central da teoria educativa de Sebastião da Gama. Quando se pergunta socraticamente acerca do seu quefazer de mestre, «Tens muito que fazer?», só encontra uma resposta: «Não, tenho muito que amar.» Sebastiâo não se contentava senão com a realidade plena no seu quefazer profissional. Não queria excluir do seu programa vocacional de professor, a mínima parcela da criação. O seu sentido poético fazia-lhe sentir que podia pegar num breve troço da realidade como uma lição dada na aula ou uma palavra de compreensão para com o aluno, e expressar com isso o resto do Universo. Todo o acto de amor conncial era a melhor forma de simbolizar a Criação inteira.

Hernâni Cidade considera que todos os que conheceram Sebastião da Gama podem testemunhar que as palavras que a seguir transcrevemos exprimem a norma do seu comportamento: «Andamos no mundo quase todos como se fôssemos desconhecidos uns dos outros: quero Amor, quero a mesa aberta, quero a sinceridade e o abraço. Quero estar à mesa do pobre, sem ser por atitude calculada, antes porque o coração mo pede; quero estar à mesa do rico à minha vontade. Quando o pobre não percebeu isto, eu saí; saí, quando rico não percebeu isto.»(Ibidem, p. 175). Assim se conduziu quem só confiava no Amor.

Não pode pois causar estranheza que Sebastião, fino psicólogo, captasse que o problema dos rapazes maus radica na falta de boa vontade dos outros e que a desadaptação social seja proporcional à carência afectiva.

A convivência com os rapazes foi o aspecto mais gratificante da sua vocação educativa: Sou o peixe na água e a minha água é o amor De tal modo isto era assim que ficava doente se por qualquer motivo esta convivência se perturbava. Foi o que sucedeu, um dia em Setúbal, a meio do ano, quando se julgou forçado a pôr um aluno fora da aula. Diz assim: «Fiquei tão doente que parti o giz que tinha nas mãos e já não fui capaz de continuar a aula.» E acrescenta: «Esse desgosto era sobretudo um É desgosto de

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coração.» (Ibidem, p.113) E que a sua táctica para os que erravam costumava ser uma lição de amor. Dêmos o Coração, sobretudo àqueles que erraram; a esses não os condenemos logo. Busquemos antes, pelo Amor que é compreensão, antes de mais nada, trazê-los ao bom caminho. (Ibidem, p.166)

Mas a sua prática de amor convivencial com os alunos não se limitava à escola; pretendia continuá-la na sua casa. Lembra o seguinte: «Gente muito fina. Eu tenho por eles, além do amor, admiração. Tenho pena de não poder ter mais convivência individual com eles — trazer um por um a minha casa, estar cada dia com um deles, a falar, a ouvi-lo falar, a vê-lo por dentro.» E exclama: «Que rapazes estupendos! Que sorte grande me caiu nas mãos!» (Ibidem, p.210)

Não se pode duvidar de que de um professor com este talante afectivo se podem esperar as maiores transformações e milagres, porque como afirma Carl Rogers: «Quando um professor cria, mesmo em grau modesto um clima de aula caracterizado pela autenticidade, apreço e empatia; quando confia na tendência construtiva do indivíduo e do grupo, descobre então, que inaugurou uma revolução vocacional. Ocorre uma aprendizagem diferente... A aprendizagem transforma-se em vida e vida mais existencial (...) As mais notáveis aprendizagens de alunos, verificadas em tal clima são as de carácter mais pessoal — independência, auto-iniciativa e responsabilidade: liberdade de criatividade, tendência para se tornar mais uma pessoa.» (Liberdade para aprender, Interlivros, Brasil, p.119)

Na pedagogia de Sebastião da Gama, tudo conduzia, pois, ao salto supremo do amor convivencial à felicidade.

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REGRA QUINTA: Do amor

convivencial à felicidade«O homem é um ente infeliz, e por isso mesmo o seu destino

é a felicidade...... A ideia de um mundo coincidente com o homem é o que sechama felicidade.»

ORTEGA Y GASSET

«O homem não pode viver neste mundo se não tem em vista algo radioso. O verdadeiro móbil da vida humana é o gozo do dia de amanhã. Este gozo é um dos objectos principais sobre que opera a técnica pedagógica.»

MAKARENKO

Quando uma pedagogia tem como projecto o amor convivencial, tem de ter como objectivo a felicidade, esse impossível necessário. Ao fazer coincidir dentro do coração do homem todas as coisas através de um amor convivencial, estabelece-se a harmonia entre todos os seres do Universo, quer dizer, o Mundo, circunstância adversa, transforma-se em contorno amável. Deixa de haver o «outro - inimigo» para haver o amigo cordial e confidencial. A aspiração de todas as coisas ao amor não tem outro fundamento que o aperfeiçoamento, melhoria do Mundo, quer dizer, a humanização do Mundo, torná-lo habitável, feliz. E é que esta felicidade é sinal da realização conseguida pela nossa felicidade assim como a infelicidade é, por seu lado, sinal de frustração. Lembrando Goethe, Ortega dirá a este respeito:

«O homem não reconhece o seu eu, a sua vocação singularíssima, senão pelo gosto ou desgosto que sente em cada situação. A infelicidade vai avisando-o como a agulha de um aparelho registador, quando a sua vida efectiva realiza o seu programa vital ou se desvia dela.»

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É isso que comunica Goethe a Eckemann em 1829:

«O homem está consignado com todas as suas preocupações e afãs em direcção ao exterior, para o mundo que o rodeia, e esforçar-se-á por conhecê-lo e torna-o serviçal na medida em que o necessita para os seus fins. Mas de si mesmo sabe só quando os seus sofrimentos e os seus gozos o instruem sobre si mesmo, lhe ensinam o que há a procurar e o que há de evitar. No restante, o homem é uma natureza confusa; não sabe de onde vem, nem onde vai, sabe pouco acerca do Mundo e, sobretudo, acerca de si mesmo.» (IV, p.407)

Este projecto ambicioso de felicidade implica uma grande imaginação. Contudo, nada mais natural, sendo como é o homem um ser fantástico, construtor de mundos interiores com efeito, o homem, ao sentir-se infeliz num contorno desajustado não tem outra saída que a da sua fantasia para ajustar os seres consigo. O amor, a grande fantasia, é para Platão o único arquitecto que põe o Mundo em conexão. Da conexão «fantástica» à felicidade não vai mais que um passo. Ora este passo é uma decisão de cada um. A pedagogia do amor convivencial tende à preparação desta decisão individual, pois «a felicidade não se recebe nem se plagia, é em cada indivíduo labor original e criador», diz Ortega.

Como se fosse pouca fortuna ser poeta, Sebastião teve a sorte de ter como metodólogo um espírito selecto, uma imaginação criadora, Virgílio Couto, «o metodólogo sem preconceitos que trouxe ao ensino, pela irradiante acção pessoal e por meia dúzia de ideias claras e vividas, uma aragem renovadora», como se pode ler em Jacinto do Prado Coelho. A este metodólogo não ocorria outra ideia mais «fantástica» do que a de iniciar os estagiários da Escola Veiga Beirão na pedagogia da felicidade:

O que eu quero principalmente é que os rapazes vivam felizes, diz-lhes no primeiro encontro. Estas palavras, Sebastião guarda-as mais que todas as outras. Mas as outras também, porque prepararam o terreno da felicidade dos alunos, como aquelas que sugerem que as aulas deverão ser «um pretexto para estar a

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conviver com os rapazes, alegremente, sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando». Depois, esta nota importantíssima: «lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser, 'porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa fé'.» (Ibidem, p. 132)

Assim um poeta introduziu na pedagogia da felicidade outro poeta, e da comunhão destes dois poetas brotou a pedagogia fina e progressiva, compreensiva e humanizante, estruturante e feliz, cujo espelho é o Diário do poeta da Arrábida, estagiário da Escola Comercial Veiga Beirão de Lisboa.

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À MANEIRA DE

CONCLUSÃO«O artista prolonga o privilégio da curiosidade da infância

para lá dos limites dessa idade.»(HENRI FOCILLON)

O psicopedagogo Georges Mauco publicou um inquérito que fez acerca das relações afectivas professor - aluno, as razões que os alunos adolescentes apresentam para definir o que consideram um bom professor. Apresenta num quadro comparativo os termos mais frequentemente usados pelos alunos para qualificar a maneira de ser do professor simpático e os termos utilizados para definir o professor antipático. A conclusão a que chega é do seguinte teor: «A qualidade do professor que aparece como a mais essencial é a simpatia pelos alunos, isto é, a sua disponibilidade afectiva positiva. É o interesse do professor pelos alunos e pelo seu trabalho que aparece como o mais importante. Amando é amado, e respeitando é respeitado. Interessando-se pelos alunos estes interessam-se por ele (...) Os sentimentos positivos do professor (amor, interesse, compreensão, amabilidade, contacto sensível, sociabilidade, etc.) sentidos pelos alunos, suscitam em grande parte os seus sentimentos de simpatia.» (Psicanálise e vocação, Morais Editores,Lisboa,1972,p.135)

Assim, pode-se dizer que sem amor pela infância não é possível a prática pedagógica. Por amor pedagógico às crianças entende-se uma atitude afectiva de simpatia que desperta o amor pelo pedagogo. Um dos traços essenciais do pedagogo da infância e da adolescência consiste no poder sugestionador, cativante que faz da alma do mestre um pólo de atracção para as crianças que encontram nele um guia amado e admirado, um farol que os

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alumia e os atrai para o caminho ascendente da maior perfeição. Esta preocupação pelo amor das crianças significa, em termos de prática educativa, como muito bem diz Manuel Garcia Morente que «o educador deve importar-se mais com as vidas infantis que com os valores abstractos e deve aprender as qualidades culturais sempre como adjectivos do substantivo que é a criança concreta, individual, caracterizada». Pois, «não basta que o mestre se queira fazer amar. É necessário que o consiga. E por isso, o educador tem de patentear na sua pessoa, um certo número de valores que, percebidos pelas crianças, comovam os seus corações pueris. As crianças não são muito exigentes e depressa concedem o seu afecto.» (Ibidem, p. 127.)

Este perfil de bom professor coincide exactamente com Sebastião da Gama. Precisamente por reunir em si as excelentes qualidades de mestre, Sebastião da Gama, que levava dentro de si o pedagogo poeta, pode imaginar tamanha «fantasia» como a de fazer felizes os rapazes, converter as aulas em festa e libertar as almas das repressões socioculturais para que os futuros portugueses fossem no dia de amanhã como têm direito a ser: indivíduos sentimentais, espontâneos, abertos e até poetas, porque não? Na realidade, não há-de cada raça e cada cultura querer tocar a lira que lhe caiu em sorte neste grande concerto universal que é a vida humana e histórica?

Esta fantasia de poetas, a pedagogia da felicidade, não surgiu por acaso em Virgílio Couto e Sebastião da Gama, mas correspondia a uma nova sensibilidade histórica que se difundia então acerca da pedagogia por vários países. Da explosão pedagógica da Escola Nova, do movimento Freinet, das correntes não directivas, psicanalítica, rogeriana, entre outras, a uma pedagogia da felicidade, não vai mais de um passo. Esse passo foi dado, primeiro no país das tradições pedagógicas mais puritanas como a Inglaterra (Vicio inglês, Iam Gibson), por obra e graça de um discípulo de Freud, A.S. Neill. Este educador inglês tem como alvo da educação algo que vem a ser o alvo da vida humana... trabalhar jubilosamente e encontrar a felicidade. Na mesma linha,

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aparece em Lisboa a pedagogia da felicidade com idênticos propósitos e, embora sem um laboratório desta pedagogia, como o colégio de Summerhill, produziu o seu melhor manual: O Diário de Sebastião da Gama.

Desta forma, devido à altura dos tempos os mesmos espíritos selectos começam a mudar os rumos da educação. Contra a tendência racionalista e pouco humana de encarar a obra educativa, inventam a pedagogia do homem integral, o homem das emoções, dos sentimentos, o homem que pensa e sente e, sobretudo, o homem que quer ser feliz precisamente porque o não é.

O homem, que tem conseguido tantos triunfos sobre a natureza, vem sentindo agora a necessidade de dominar o reino da sua própria humanidade individual. Não estava certo que conhecendo os homens os segredos dos astros relativamente bem, continuassem a proclamar o homem como esse desconhecido ao jeito de Alexis Carrel .

Para Sebastião da Gama, o homem pode ser conhecido, mas para isso é preciso aprender a amá-lo, a compreendê-lo, porque o resto, a felicidade, virá por acréscimo.

Finalmente, devemos afirmar que se pretendemos situar à altura do nosso tempo a pedagogia vital de Sebastião, deveremos obviar os riscos que uma prática educativa centrada preferentemente nos meios audiovisuais pode ter para os jovens.

Sebastião sabia que Platão concedia uma missão especial a certos homens a quem chamava: os amigos de olhar, e que estes homens não eram os puros sensualistas do simples e passivo olhar com os olhos de ver, mas aqueles que olham através deles, por meio das ideias, dos conceitos. O mestre grego referia-se aos especulativos e principalmente aos filósofos, os teorizadores, os contemplativos. Ora bem, não é por acaso que um dos verbos chaves da teoria pedagógica de Sebastião é perceber, quer dizer, ensinar a perceber mas vitalmente, com a mente e o coração, racional e afectivamente, para «dar valor» às coisas e às pessoas que nos rodeiam e com as

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quais temos que dialogar para chegar a ser o que temos de ser. A meta educativa de Sebastião de que os seus alunos chegassem a ser gente muito fina implicava uma pedagogia não da facilidade do simples olhar passivo mas do exercício dum olhar activo e dinâmico que coincide com a arte de pensar para perceber.

Todos verificamos que um olhar passivo perante a tirania da televisão e os outros meios audiovisuais é o responsável pela inactividade da mente. A este respeito, Sebastião sabia que era cínica a afirmação de que uma imagem vale mil palavras. Ele como poeta estava convicto de que a palavra é a produtora de imagens, principalmente a palavra poética que tem tido o condão de impulsionar o poder mental dos humanos desde os primórdios da humanidade. Com efeito, o poeta não é um simples visualizador da realidade, mas o intérprete dela por meio da palavra vital e dinamizadora que desemboca no conceito, o qual nos apresenta a realidade da forma mais completa e lúcida. Todo o olhar que não acabe no conceito não será um olhar inteligente mas alienante, pois submete a pessoa ao império do vazio interior.

Por isso, os pedagogos devem estar acautelados contra a mania dos meios visuais e a sua tirania na prática educativa, sobretudo nas idades iniciais, pois contra os que pensam o contrário, estamos perante a realidade naquela mesma atitude, e às vezes ainda pior, do homem antigo, falhos das técnicas actuais de ver. Neste sentido, não temos outra opção perante o hieróglifo que é toda a realidade e as suas imagens, senão a de exercitar a arte da adivinhação, quer dizer, a função intelectual de interpretar.

Se fosse verdadeira a noção acerca do conhecimento de Aristóteles, como o puro deixar penetrar as coisas na mente através das janelas dos sentidos, então hoje estaríamos no tempo privilegiado para o saber, devido à infinidade de coisas que entram em nós pelos olhos dentro. No entanto, sabemos que conhecer não consiste na pura informação, mas no exercício da nossa razão que consiste na apreensão da realidade na sua conexão para encontrar o sentido das coisas que vemos. «Todo o conhecimento», diz Ortega,

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«é uma interpretação da coisa submetendo-a a uma tradução, como se faz de uma linguagem a outra, da linguagem do ser, que é mudo, à linguagem dizente do conhecer. Conhecer na sua radical concretização, é dialéctica, ir falando precisamente das coisas. A palavra enuncia as vistas em que nos dão patentes os aspectos da realidade» (IX, p. 327), significando por vistas o que o homem vê ao olhar algo e por aspectos, a resposta da coisa quando é olhada. Por isso, a sensação não é uma faculdade cognitiva, mas apenas registadora de simples vistas e aspectos que pertencem à coisa. Por isso, a este simples olhar e ver deve seguir-se o fixar da atenção em algo que se vê, o que implica uma interpretação.

A conclusão a tirar destes princípios por parte dos educadores é clara. Os educadores hoje encontram-se numa situação muito mais embaraçosa do que os antigos professores, como os da época de Sebastião da Gama. Estes tinham diante de si alunos pré-técnicos cujo modelo de homem a edificar estava referido ao Homo sapiens. Os professores actualmente têm alunos cujas únicas referências reportam-se ao modelo «Homo videns». Por isso, os educadores têm hoje como missão primordial reconverter o jovem — Homo videns — em «Homo sapiens». A tarefa não é nada fácil porque os jovens estão teleguiados por imagens, informações, sensações desde a infância. Os seus hábitos são hábitos do Homo videns, hábitos do instável e fugidio pois as coisas como imagens são fugazes, fugidias, escorregadias das nossas mãos, não as possuímos, sendo só o conceito que tem o condão de as ligar umas às outras, de as fixar e as fazer nossas prisioneiras. Ora isto só pode ser feito pela razão.

A razão faz com que vejamos as coisas dentro duma rede de relações e daí advém o sentido de cada coisa, que coexiste com as outras coisas. É o conceito que contém tudo aquilo que cada coisa é em relação com as demais. «O conceito aproxima as coisas para que convivam e por sua vez distancia-as para que não se confundam e aniquilem. O conceito exprime o lugar ideal que corresponde a cada coisa dentro do sistema das realidades.

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Encontrar a existência virtual de cada coisa nas demais, é um exercício de interpretação», diz Ortega. ( I, pp. 357-358) Ora bem, a técnica essencial que torna possível este exercício é a meditação ou a reflexão, práticas que o actual Homo videns desconhece. Este novo homem é da casta dos sensuais para quem o mundo é apenas uma reverberante superfície. Se temos em conta que, como latinos, somos naturalmente impressionistas devido ao excesso de luminosidade do nosso meio físico, não acharemos inconveniente que o que Alberto Caeiro finge acerca de si, possa ser referido de um certo modo de todos nós, pois o poeta tocado pela sensação acaba sendo um intérprete do sentido. O guardador de rebanhos diz:

«Os meus pensamentos são todos sensações Penso com os olhos e com os ouvidos

com as mãos e com os pés

com o nariz e com a boca

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

comer um fruto é saber-lhe o sentido.»

Fernando Pessoa, poeta fingidor deixa-se levar pelo rio das sensações ao mar dosentido. Finge-se sensacionista e acaba sendo intérprete do drama universal do viver.Ora bem, esta reconversão do poeta vidente em intérprete sapiente, poderia ser oparadigma do caminho a seguir do educador perante os alunos sensacionistas do nos-so tempo. Se a educação foi sempre uma arte mais do que uma ciência, hoje, mais doque nunca, os educadores deverão afinar a sua sensibilidade artística para seduzir os

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adictos das imagens para a sua verdadeira possessão, atando-as umas às outras com o laço do conceito para que não fujam e permaneçam dentro deles como luz, gozo e guia. Aqui radica o carácter cultural da prática educativa: em dominar a indócil torrente da vida por meio da reflexão. A este respeito Ortega diz:

«Qualquer labor de cultura é uma interpretação — esclarecimento, explicação ou exegese — da vida. A vida é o texto eterno, a giesta a arder à beira do caminho, onde Deus deixa ouvir a sua voz. A cultura — arte ou ciência ou política — é o comentário, é o modo de vida em que esta, refractando-se dentro de si própria, adquire polimento e ordenação. Por isso, a obra de cultura nunca pode conservar o carácter problemático inerente a tudo o que é simplesmente vital... O homem tem uma missão de claridade sobre a Terra. Esta missão não lhe foi revelada por um Deus nem lhe é imposta desde fora por ninguém nem por nada. Trá-la dentro de si, é a própria raiz da sua constituição.» E acrescenta: «Claridade não é vida, mas é a plenitude da vida.»( I. p. 357)

Para esta plenitude da vida deve orientar o educador a sua prática pedagógica, sabendo que só poderá consegui-la por meio da razão pois é um produto elaborado por ela. O educador deve estar convicto de que ao dar uma ideia aos seus alunos, lhes está aumentando a vida e dilatando a realidade. Assim, sendo reflexivos por obra e graça da sua razão, os jovens poderão reagir hoje como homens livres perante a tirania das imagens dos meios de comunicação.

Sebastião, como poeta, tinha dentro de si este tesouro dos princípios vitais e com eles pôde enfrentar a problemática da vida, da sua própria e a dos alunos, com claridade, com entusiasmo e esperança. Estes três atributos ainda são recordados por aqueles que fruíram da sua prática educativa como acontecimento decisivo das suas vidas e como a dádiva melhor que receberam da vida, que dava pelo nome de Sebastião da Gama, mestre e amigo, filósofo e poeta.

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APÊNDICEPor considerarmos que a análise de acção educativa de

Sebastião da Gama, além de nos revelar um pedagogo exemplar ao nível do seu inconsciente em diálogo com o inconsciente do aluno, exige de todo e qualquer professor que se preze, a necessidade da purificação do seu inconsciente em conformidade com a sua teoria educativa:

Ensinar e Ser— O Segredo é Amar

Para ser professor é preciso ter as mãos purificadas

A toda a hora temos de tocar em flores

A toda a hora a poesia nos visita

Os alunos acreditam em nós e não devem acreditar em vão Impõe-se-nos que mereçamos, com a nossa, a pureza dos nossos alunos; que a nossa alimente a deles, a mantenha,

pensamos pertinente apresentar em forma de apêndice, uma breve reflexão sistemática acerca do inconsciente afectivo em Pedagogia, à luz do primeiro desenhador da grande topografia da nossa intimidade físico - psíquica: Freud.

«O homem possui o terrível privilégio de afastar-se de si mesmo e deixardesapercebida uma parte do seu ser.» CARL JUNG

«O inconsciente existe, mas existe como desconhecido». JOÃO DOS SANTOS

«O inconsciente de uma criança é infinitamente maior do que o seu consciente.» A.S. NEILL

«Os autênticos fundamentos da personalidade são constituídos pelo inconsciente.O consciente não passa de um compromisso e de um equilíbrio dificilmente

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conquistado entre as pulsões inconscientes e as exigências da realidade exterior...»«O essencial da educação é uma obra inconsciente, realizada no plano simbólico.» GEORGES MAUCO

«Há uma parte da nossa pessoa como que infusa ou enraizada no corpo e comoque uma alma corporal...Serve esta alma corporal de cimento ao resto da nossa pessoa. É ela o plinto da estátua espiritual, a raiz da árvore consciente. O mais sublime da nossa pessoa está ligado estreitamente a esse subsolo animal...Toda a nossa pessoa, o mais nobre e o mais heróico dela, ascende desse fundoescuro e magnífico, o qual, pela sua vez, se confunde com o corpo.»ORTEGA Y GASSET

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INTRODUÇÃOAo longo da história da Psicologia sempre se analisou o ser

humano, definido por Aristóteles como Homo rationalis, no plano consciente. Da estruturação inconsciente e dinâmica do homem pouco ou nada se sabia. É certo que alguns filósofos e psicólogos falaram no inconsciente, mas nunca se basearam em observações sistemáticas. Não ultrapassaram o terreno das puras intuições. Charcot e Janet talvez tenham sido os autores que maior importância deram ao inconsciente nos seus estudos de psicopatologia. Mesmo assim, não foram além de constatações circunstanciais e assistemáticas.

O primeiro autor que se debruçou cientificamente sobre o inconsciente, incorporando-o no campo da consciência e criando métodos para a sua exploração, foi Freud. Ele é com toda a justiça o «Colombo do inconsciente», como alguém lhe chamou. Com efeito, este é o método incontestável de Freud. A psicanálise é a ciência do inconsciente. Diz o próprio Freud: «A diferenciação do psíquico em conciente e inconsciente é a premissa fundamental da psicanálise.» (El Id y el Ego, O.C. Biblioteca Nueva, Madrid, 1968, II, p.9) «Se fosse preciso concentrar», dizem Laplanche e Pontalis, «numa palavra a descoberta freudiana, essa palavra seria incontestavelmente a do inconsciente.» (Vocabulário de Psicanálise, Moraes, Lisboa, 1970, p.307)

Freud falou no inconsciente caracterizando-o pelas suas composições energéticas, com cargas distribuídas sobre um objecto ou sobre outro, segundo ligações positivas ou negativas, isto é, o inconsciente contém todos os pensamentos afastados da consciência ou simplesmente latentes, ou pela sua origem profunda, ou pelos mecanismos de repressão.

A Pedagogia, na medida em que é Psicologia aplicada racionalmente, sofre, por obra da psicanálise, uma transformação

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radical nas suas concepções. De facto, da noção de criança como adulto ignorante ou mau, passou-se à noção de criança propriamente dita, como um ser ainda não reprimido à maneira do adulto «normal», como um ser que tem as suas próprias normas de conduta e as suas necessidades. Experiências revolucionárias inspiradas no freudismo modificaram a educação pela raiz. Por outro lado, devido à psicanálise, também o homem comum começa a adquirir uma concepção mais humilde acerca de si, o que o leva a uma certa tolerância para com os outros. Depois de ter conhecimento, através de Darwin, que a sua espécie não é tão diferente da do macaco corno julgava até aí, começa a saber, com Freud, que ele, como indivíduo adulto, não é tão diferente do bebé, nem do demente, nem do criminoso, e o que é estranho é que ele possa ter aquilo a que chamamos uma vida «normal». Aliás, a normalidade é hoje cada vez mais problemática, acontecendo até que a anormalidade resulta a única normalidade.

Apesar de ter descoberto no inconsciente algo que se assemelha ao motor duma actividade dinâmica a que chamou «princípio de prazer» e que radica no cerne da génese da personalidade humana, Freud não foi capaz de o levar até às últimas consequências, opondo-lhe um dique repressor, «o princípio da realidade».

Deste modo, a dinâmica do «princípio do prazer» serve de bússola na aventura humana tão-só a nível intrapessoal ou intragrupal (principalmente ao nível familiar), mas nunca socialmente (historicamente), porque a realidade social, estática como é, segundo Freud, está fora de nós, impondo-nos o seu império repressor e irredutível.

Pelo facto de Freud não ter feito uma reflexão crítica do fenómeno social e histórico, a sua genial descoberta do «princípio do prazer» foi de certa maneira desaproveitada pelo «princípio da realidade». Com toda a razão, Marcuse, na sua crítica a Freud, não pôde deixar de reconhecer «na substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade, o grande acontecimento traumático do homem.» (Eros y civilización, Seix Barral, Barcelona, 1968, p.28)

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Por conseguinte, Freud não foi capaz de encaminhar o rumo da educação para o âmbito do social-histórico, porque em vez disso, se serviu dela para adaptar o ser humano a um certo aspecto do social vigente na sua época. Isto, que duma forma geral é um bem, acaba por se tornar um mal, visto que o ser humano renuncia a ser o elemento transformador do fenómeno social e histórico, ficando-se apenas pelas relações pais-filhos, mestre-aluno, sem incidir nas estruturas socias das colectividades.

Em todos os assuntos humanos há que ter em conta «essa contradança permanente», a que se refere Ortega, que nos faz ir e vir do indivíduo à colectividade e vice-versa, condição geral do nosso ser humano e que, como todo o humano, está repleta de inconvenientes e vantagens. Isto é precisamente o que Freud não teve em conta ao propor os dois princípios «extremos» da sua teoria, pois se, por uma parte, propõe uma vida em liberdade absoluta pelo «princípio do prazer», por outra, impõe uma vida como adaptação, sem liberdade, pelo «princípio da realidade». Contudo, tem que haver uma terceira via de alternativa, que seria algo assim como uma vida em liberdade possível, quer dizer, como vida autêntica, vida em que cada um chega a ser aquilo que tem de ser dentro do que pode ser, em diálogo polémico com aquilo que os demais, seja a que nível for, lhe sugerem e impõem que deva ser. Por exemplo, em relação ao Estado (como instrumento de governação de uma sociedade), que é o «social supremo», pressão da vida individual e necessidade para a vida social do mesmo indivíduo, este pode ter dois comportamentos diferentes: ou adaptar o Estado às suas preferências vitais ou, pelo contrário, adaptar-se a ele. No primeiro caso acontece, politicamente falando, a vida em liberdade; no segundo, a vida como adaptação, submetida ao molde férreo do Estado.

A estes dois comportamentos do indivíduo a respeito do Estado e vice-versa, a estas formas de funcionamento do Estado em relação ao indivíduo, Ortega, por meio de duas metáforas, chamará plasticamente: «Estado como pele» e «Estado como aparelho ortopédico». Significa que

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«o Estado se vai amoldando ao corpo social como a pele se forma sobre o nosso. Também a nossa pele nos aperta e nos cinge, mas a linha da sua pressão coincide com a forma dos nossos músculos. Daí que nos sintamos livres dentro dela, até ao ponto de ser símbolo máximo da liberdade uma pessoa sentir-se na sua pele... Pelo contrário, em época de vida como adaptação, deixamos de sentir o Estado como a nossa pele e sentimo-lo como um aparelho ortopédico.» (VI, pp.100-101)

Pois bem, Freud através do «princípio da realidade» acaba por impor ao indivíduo o molde férreo das instituições sociais, cujo símbolo supremo na sociologia de Ortega é o Estado. Neste sentido, a nível da metodologia, as teorias pedagógicas de Freud inserem-se dentro da escola tradicional, são uma reflexão apenas dentro dessa escola, uma reflexão crítica, certamente, e até científica, em certa maneira, mas feita da estruturação tradicional da escola burocrática. Não foi capaz de tirar proveito da sua genial descoberta para a transformar a nível institucional e, por seu intermédio, transformar a vida histórica.

Com efeito, Freud não fez uma reflexão crítica da educação a partir de um novo conceito de sociedade que o seu princípio do prazer exigia, de modo a criar um fundamento duma nova pedagogia institucional que orientasse a educação para a realização integral do ser humano como ser vivendo em sociedade. Por isso, a educação, para ele, quedou-se numa espécie de domesticação científica, longe da verdadeira libertação que prenunciava o seu princípio do prazer. Em realidade, Freud, condicionado pela sua atitude clínica, pretendia unicamente ajudar os doentes a superar os seus conflitos, cedendo completamente perante a realidade social. Por tal facto, não teve escrúpulos em afirmar que «a felicidade não é um valor cultural» já que a sua única aspiração corno símbolo clínico era conseguir a adaptação dos seus doentes à realidade quotidiana e social. É certo que ele ensina a realizar essa adaptação às formas sociais, da maneira mais suave e progressiva possível, mas isto não passaria de uma camuflagem. Em vez de ser coerente com a sua teoria dos imperativos dos impulsos de vida e tratar de

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renovar uma realidade social, inimiga da realidade psíquica do indivíduo, claudica e aceita o molde social, sacrificando toda a riqueza do ser humano. Assim, Freud não pretende construir uma pedagogia radicalmente renovadora, como seria o caso da Pedagogia Institucional que apela para a realização integral do ser humano, mas apenas melhorar as relações crianças-pais, alunos-mestre.

Esta atitude pessimista é asperamente criticada por Marcuse que pensa, contrariamente a Freud, que não somente «a felicidade é um valor cultural, mas que os homens deveriam chegar à conclusão que é o primeiro valor cultural e que tudo se deveria fazer para o realizar.» (José Mª Castellet, Lectura de Marcuse, Seix Barral, 1969, pp.79-80)

No entanto, apesar das limitações de Freud, podemos encontrar, dentro da escola por ele fundada, exemplos de superação da tese do mestre no terreno da educação. É o caso universalmente famoso de A.S.Neill, no seu colégio de Summerhill. Com efeito, Neill na esteira de Wilhem Reich, põe em prática uma educação em que o desenvolvimento da pessoa humana é não repressivo, prevalecendo a satisfação de todas as necessidades humanas, tanto sexuais como sociais. Erich From, referindo-se ao sistema de Neill afirmará: «É a aproximação radical no que se refere à educação da criança.., uma educação despojada de medo. Na escola de Summerhill a autoridade não mascara um sistema de manipulação. Neill mantém uma fé inquebrantável na bondade da criança. O alvo da educação — que vem a ser o alvo da vida — é trabalhar jubilosamente e encontrar a felicidade. Ter felicidade, segundo Neill, significa estar interessado na vida. A educação deve ser entranhada com as necessidades psíquicas da criança... Neill é um crítico da sociedade dos dias presentes. Insiste em que a espécie de pessoas que se está desenvolvendo nela é a do homem-massa... Neill não tenta educar crianças para se ajustarem bem à ordem existente, mas empenha-se em educar crianças que se tornarão seres humanos felizes, homens e mulheres cuja noção dos valores não seja a de «ter» mas a de «ser». Neill sabe que mesmo quando as crianças que educa não venham a

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ter necessariamente grande sucesso, no sentido humano, terão adquirido senso de autenticidade que evitará, com eficiência, que se tornem desajustados.» (Liberdade sem medo, Ibraswa. S. Paulo, Prefácio, 1970)As diversas superações levadas a efeito pelos seus sequazes na prática educativa, contribuem para que a grande descoberta de Freud, o inconsciente e os seus mecanismos, continue a merecer devidamente toda a atenção dos pedagogos de sempre.

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O INCONSCIENTE NUMA

PSICOLOGIA

DA ORGANIZAÇÃO

AFECTIVA «Não somos uma só coisa, uma área monótona e como que

um espaço homogéneo onde cada ponto é idêntico, ou mais oumenos, ao outro. Há em nosso interior zonas, estratos, orbesdiversos, cuja diferença é-nos, de sobra, aparente.»

ORTEGA Y GASSET

«Os que considerem pouco científico o uso de analogiasespaciais na descrição psicológica, caem num erro trivial, que jáhá tempos foi superado pela verdadeira ciência.Nada do que é psíquico é extenso; mas sim, quase extenso, oque seria suficiente para uma psicologia descritiva...A metáfora é um instrumento mental imprescindível, é umaforma do pensamento científico.»

ORTEGA Y GASSET

A personalidade, segundo Freud, é composta por três grandes instâncias: o Id, o Ego e o Superego. O comportamento humano é sempre resultado da interacção destas três instâncias. Raramente uma funciona com a exclusão das demais.

O Id constitui o pólo pulsional da personalidade; os seus conteúdos, expressão psíquica das pulsões, são inconscientes, em parte hereditários e inatos e em parte adquiridos e recalcados.

O Ego cria-se a partir do Id na medida em que estabelece uma relação com o meio exterior. Na perspectiva dinâmica representa o

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pólo defensivo da personalidade no conflito neurótico, pondo em jogo uma série de mecanismos de defesa.

O Superego é a última instância da personalidade a desenvolver-se. Ele é o representante interno dos valores e das ideias tradicionais da sociedade, transmitidos pela família e reforçados pelos sistemas de recompensa e castigos impostos à criança. O Superego tende a opor-se tanto ao Id como ao Ego e a fazer do mundo um reflexo da sua imagem. É a instância responsável pela substituição do «princípio do prazer» em «princípio de realidade» no Ego.

Estas três instâncias não são «manequins» que manipulam a personalidade mas nomes dados a vários processos que obedecem a diferentes princípios, não colidem nem trabalham para propósitos diferentes mas juntos e em equipa, sobre a liderança do Ego, procuram um caminho único. A personalidade funciona normalmente como unidade completa e não em três segmentos separados. De modo geral podemos considerar o Id como componente biológico da personalidade, o Ego como componente psicológico e o Superego como componente social. Uma corrente inconsciente perpassa todas as instâncias, isto é, toda a personalidade.

A experiência mostrou a Freud que o psiquismo não é redutível ao consciente e que certos conteúdos só se tornam acessíveis à consciência depois de superadas certas resistências. Revelou-nos que a vida psíquica está cheia de pensamentos eficientes, embora inconscientes e que é destes que emanam os sintomas. A psicanálise trará à luz os sentimentos expressos ou afectos diversos inconscientes.

Quando Freud afirma que um impulso jamais pode tornar-se objecto da consciência, refere-se, quer a um princípio explicativo dos nossos estados afectivos, quer a uma emoção afectiva de um estado afectivo; o que não será chamado inconsciente ou consciente (sob o ponto de vista da sua natureza) senão pela representação.

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Com efeito, os conteúdos do inconsciente são «representantes da pulsão».

Freud consagrou vários estudos ao inconsciente porque nesta estrutura psíquica os impulsos da afectividade obedecem a leis diferentes das que regem a consciência. O inconsciente não obedece nem a uma lógica racional, nem à realidade, nem à experiência. As relações dos elementos do inconsciente podem ser comparadas ao pensamento mágico.

Se a personalidade está organizada por esta estrutura inconsciente e se esta mesma estrutura é energética e dinâmica, fazendo sentir a sua força desde o início da vida, deveremos contar com ela no processo educacional e analisar o contributo que pode trazer a uma pedagogia científica.

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PEDAGOGIA DOS

PROCESSOS

AFECTIVOSAo lado da educação intelectual e física não se deve descurar a

educação afectiva. Não basta a uma criança ter uma inteligência suficiente e uma saúde satisfatória para que possa desenvolver-se. Necessita também de uma sensibilidade desenvolvida e de capacidades relacionais que lhe permitam servir-se das suas potencialidades físicas e intelectuais.

Grande número de desadaptações sociais e escolares têm a sua origem em dificuldades afectivas. Paralela à idade cronológica e à idade mental há uma idade afectiva que é função do grau de maturação da libido, ou seja, da vida relacional sexuada. A sensibilidade relacional desempenha um papel essencial na família e na escola.

Ora, para conhecer esta sensibilidade relacional é necessário, segundo Freud, ter em conta o conhecimento do carácter tripartido da personalidade humana.

As pessoas que rodeiam a criança devem ter em conta esses processos psíquicos para que a sua influência junto dela seja benéfica educacionalmente, isto é, para não lhes criar um Superego perturbador. A psicanálise visa, portanto, remodelar e humanizar a imagem dos «educadores» que habitam a criança quer sejam pais, quer professores, com preferência daqueles, pois, como lembra Anna Freud, «a educação de uma criança começa no dia do seu

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nascimento e as crianças, dos três aos seis anos são verdadeiros seres humanos».(Introducción al psicanálisis para educadores, Paidós, Buenos Aires,p.17)

Quando as crianças entram na escola levam consigo qualidades e defeitos vincados no seu pequeno ser, de difícil modificação. Por isso é indispensável conhecer as fases do desenvolvimento da criança e a sua relação com os educadores visto que ela depende do adulto e vive, desde o primeiro momento da sua vida, em osmose com os educadores. A educação que a psicanálise visa, mais do que propriamente o ensino, é aprendizagem das relações humanas e a maturação da sensibilidade sexuada do homem e da mulher. O educador age não somente por aquilo que diz e faz, mas ainda por aquilo que é, tanto no plano consciente como no inconsciente.

O educador tem muitas vezes mais influência na criança pela sua sensibilidade inconsciente do que pelo comportamento consciente. A criança sem o saber e sem o poder evitar acha-se, deste modo, numa relação profunda com o que permanece de imaturo em todos os adultos. Por tal facto, torna-se indispensável ter uma compreensão psicanalítica dos comportamentos humanos.

De início a criança só tem sensibilidade inconsciente. Esta sensibilidade conhece apenas a lei da procura da satisfação imediata. Tem um carácter libidinal e pulsional imperioso. É a etapa do Id poderoso e solitário.

Diz Georges Mauco: «Se o bebé tivesse a força de Hércules assistir-se-ia a uma carnificina à sua volta.» (Psicanálise e educação, Moraes Lisboa, 1972, p.72) É a fase da omnipotência mágica do desejo. Esta sensibilidade aparentemente animal pede, no entanto, algo muito diferente do que a satisfação duma necessidade instintiva. Exige uma relação com o outro, um diálogo e um intercâmbio, o amor.

Outro aspecto da sensibilidade humana, activo desde o princípio da vida, é a sua condição sexuada. Uma vez que o desejo

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é o desejo de um outro, tem sempre mais ou menos uma implicação sexual.

A educação tradicional não tem em conta esta maneira «natural» de ser da criança. Até há pouco a educação tratou mais de fiscalizar o homem interior do que o potenciar. Os resultados têm sido desastrosos. Ninguém tem procurado saber por que preço e por que meios se chegou a essa fiscalização.

A psicanálise veio pôr de lado os preconceitos acerca da infância e analisar, à luz das diferentes fases do desenvolvimento infantil, as situações relacionais de que depende a estruturação do Ego e do Superego. O amor captativo, como situação relacional, exprime os desejos insatisfeitos do adulto e torna praticamente impossível uma acção educadora sã. A mãe obedecendo aos seus próprios sentimentos inconscientes, não deve prender a criança, mas antes ajudá-la a libertar-se progressivamente. Doutro modo fará contra-educação, pois educar crianças é conseguir levá-las a dispensar-nos.

A relação pai-filho simboliza a força disciplinar que permite, através do domínio dos desejos, a construção psíquica do ser humano. A sua influência é decisiva na formação do Superego. É o pai que rompe a relação dual, criança-mãe. Então e na medida que impõe coacções, o pai é experimentado como frustrador. Mas se atingiu uma maturidade afectiva que lhe dá calma e domínio de si, é ao mesmo tempo agente de segurança que a leva a suportar, sem excessiva angústia, o aspecto negativo das frustrações. Frustrações que, em Freud, fazem parte da educação, visto que a criança deve ser educada para se inserir na sociedade, que lhe exige um condicionamento dos seus desejos.

É a este nível relacional entre a criança e os pais ou os seus substitutos que surge, precisamente, o chamado complexo de Édipo ou situação edipiana. Este acontecimento psicológico tem tal importância no desenvolvimento psicogenético do indivíduo que, por vezes, é ele quem decide da sua positividade ou negatividade, e portanto, do equilíbrio psíquico do indivíduo pela vida fora.

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Este complexo, com o nome do rei grego que matou o pai e casou com a mãe, manifesta-se diferentemente nos rapazes e nas raparigas. Aliás, referido às raparigas, é por vezes chamado complexo de Electra. Esta situação edipiana é fundamental para a definição das atitudes relativamente às pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto.

Freud vê na identificação a primeira manifestação de uma lição afectiva com outra pessoa. No complexo de Édipo esta identificação desempenha um papel importante. Nas primeiras fases da sua formação, a criança manifesta um grande interesse pelo pai: gostaria de vir a ser como ele é, tomar, em todas as situações, o seu lugar. Faz do pai o seu ideal. Simultaneamente a esta identificação com o pai, ou um pouco mais tarde, a criança começa a orientar para a mãe os seus desejos. Manifestam-se, então, duas espécies de ligações psicologicamente distintas: uma ligação com a mãe, como objecto puramente sexual, e uma identificação com o pai, que considera como um modelo a imitar. Estes dois sentimentos permanecem, durante um certo tempo, lado a lado, sem se influenciarem, nem se perturbarem reciprocamente. Mas, à medida que a vida psíquica tende à unificação, esses sentimentos aproximam-se um do outro, acabando por se encontrar; e é desse encontro que resulta o complexo de Édipo normal. A criança apercebe-se de que o pai lhe barra o caminho para a mãe; a sua identificação com o pai assume, desde logo, uma coloração hostil e acaba por se confundir com o desejo de tomar o lugar do pai, mesmo junto da mãe. A identificação é, de resto, ambivalente desde o início: pode estar orientada para a expressão da ternura como para o desejo de supressão. Pode-se dizer, aliás, a mesma coisa, mutatis mutandis, a respeito da rapariga na sua atitude para com a mãe. Dependerá da orientação equilibrante dos pais a superação de ambivalência destes sentimentos no psiquismo inconsciente da criança e, mais tarde, na adolescência, quando esta situação edipiana se reproduzir. É tão importante viver estes sentimentos com equilíbrio que, se por acaso assim não suceder, mais tarde, o

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adulto andará sempre confuso e desequilibrado no seu relacionamento entre os indivíduos dos dois sexos.

A concepção de Freud a respeito da ocorrência universal do complexo de Édipo repousa sobre supostos biológicos (Libido). Contudo, a corrente cultural da psicanálise, prefere fazer depender esta situação edipiana das provocações externas, sociais. Assim, o complexo de Édipo não seria de natureza biológica, mas sim de um conjunto de factores que actuam na vida da família, a saber: o papel da autoridade dos pais, reclusão da família e o seu tamanho, proibições sexuais, etc.

Embora discordando de Freud, Karen Horney não pode deixar de confessar: «Se pusermos de lado as implicações teóricas da tese biológica, o que sobra não é o complexo de Édipo, mas sim a altamente construtiva descoberta de que as relações primeiras, na sua totalidade, moldam o carácter de um modo que não se pode encarecer suficientemente. Então, as atitudes posteriores em relação aos outros não seriam mais repetições de atitudes infantis, mas emanariam da própria estrutura do carácter, cujas bases se encontram na infância.» (Novos rumos da psicanálise, Ed. Civilização, Brasil, 1966, p.73)

Além disto um dos princípios fundamentais da teoria freudiana consiste na ultrapassagem do princípio do prazer pelo princípio da realidade. A frustração será necessária e natural, mas deverá ser moderada e progressivamente imposta. O princípio do prazer será substituído pois, pouco a pouco, pelo princípio da realidade.

Ao mesmo nível relacional devem situar-se as relações entre professores e crianças. Os alunos apercebem-se instantaneamente, para além do que vêem e do que ouvem, das fraquezas inconscientes do professor. Este facto permite afirmar que o que é importante na-educação não é apenas o que o educador diz ou faz, mas o que ele é e o que pode inconscientemente sentir. Em estado de medo a criança não pode aprender, por isso é sumamente importante a escolha de professores psiquicamente equilibrados mais do que cientificamente instruídos.

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Segundo Anna Freud, haveria algumas diferenças entre as possibilidades pedagógicas do primeiro período infantil, do período de latência. Enquanto que os pais e a criança se enfrentam hostilmente porque ambos perseguem propósitos opostos, a criança que se encontra perante o professor já não é o ser homogéneo do período anterior. Encontra-se dividida. Se o seu Ego ainda persegue os antigos «objectos», o Superego, sucessor dos pais, que a criança introjectou como preço da sua independência física, situa-se do lado dos educadores. Aqui pois, o bom senso dos educadores pode decidir das possibilidades pedagógicas.

O estudo das etapas da maturação afectiva têm, portanto, uma grande importância. Permite conhecer as dificuldades e os problemas que a criança tem de resolver em cada uma das suas idades para se follnar psiquicamente; e esclarece o modo como a criança pode fazer face às exigências dos seus desejos e das coacções educativas. Mostra-nos igualmente o desenvolvimento afectivo que constitui o essencial da educação, pois a criança depende mais daqueles que a rodeiam do que dos que a precederam.

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1 - AS ETAPASSegundo Otto Rank, o nascimento provoca no recém-nascido

um grande número de reacções penosas (traumatismo do nascimento). Por muito tempo, o pequeno ser humano permanece parasita e dependente em tudo dos pais. Na criança que nasce não existe pensamento. Está num estado indiferenciado. Só através das interacções entre o meio e a criança emergem as formas de conduta.

No acto de sorrir aparece na criança um princípio do pensamento e do Ego. No fim do primeiro ano, tem um Ego suficientemente elaborado para reconhecer os que a rodeiam, os «objectos». No segundo ano, a relação vai incidir sobretudo na actividade motora, nomeadamente na aprendizagem do domínio dos músculos dos esfíncteres que se tornam objectos de imposições educativas.

As interdições educativas, nomeadamente na altura do desmame e a aquisição do asseio e do domínio neuromuscular, levaram a criança a sentir a mãe como mais impositiva. O «não» que proíbe com força foi ouvido muitas vezes. Por uma atitude de identificação com o educador, o «não» também será utilizado pela criança para afirmar o seu Ego e a conquista da personalidade autónoma.

No decurso do terceiro ano a criança vai conhecer outras situações relacionais em que tem de assimilar outros desprazeres. O real vai-se-lhe impôr cada vez mais, com a multiplicação dos imperativos sociais. Tem de abordar as inseguranças afectivas que irão desenvolver-se com a afirmação objectiva da sua condição sexual (masculino ou feminino) dentro da situação triangular (situação edipiana), levando consigo uma experiência profunda.

Cerca dos cinco ou seis anos sofre a dupla influência afectiva dos pais e das relações escolares, que irá marcar a sua

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aprendizagem para a vida e a sua preparação para a actividade colectiva da puberdade (período de latência). A criança torna-se agora, e cada vez mais, capaz de diálogo, facilitando aos pais uma acção educativa em que a autoridade pode fazer um maior apelo à compreensão consciente da criança. A sua energia é investida em comportamentos activos e socializados.

É nestas formas de vida que a criança confronta os seus fantasmas com a realidade, permitindo-lhe viver algumas das suas pulsões em expressões das tendências agressivas. Daí o erro dos pais que, com receio de cultivar os instintos agressivos da criança lhe proíbem todas essas formas de actividade ou distracção. Para além de lhe impedir o caminho da expressão e do domínio, a criança sente a própria ansiedade dos educadores.

Anna Freud observa que a educação escolar, em certo sentido, inibe a criança. Diz ela: «As crianças que aos três ou quatro anos têm uma grande riqueza de fantasia, na idade escolar dão a impressão de serem estúpidas, simples e pouco interessantes. Onde é que está a inteligência e a originalidade do período anterior? A psicanálise revela-nos que estes dotes de criança não resitiram às exigências que a educação lhes impôs e foram-se apagando a pouco e pouco. A imposição de uma "boa" conduta tem os seus riscos. As repressões, as formações reactivas e sublimações têm um preço.» (209)

Seria então melhor abstermo-nos em matéria de educação? A perspectiva psicanalítica viu sempre na educação um risco e por isso afirma a conveniência de a restringir.

Há outro período em que a influência inconsciente dos pais é importante: a puberdade (14-17 anos). Há nesta fase uma certa analogia com a situação edipiana: o desejo libidinal, a afirmação do sexo, o desapego definitivo dos pais e a passagem à escola, a afirmação à autonomia. A mutação relacional que se opera é tanto mais delicada quanto o Ego do adolescente se forma pelo jogo das imitações, identificações e oposições às imagens paternais. O

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adolescente revive, transpondo para o plano consciente e social as situações e, de modo especial, a relação triangular edipiana.

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2 - A SITUAÇÃO

RELACIONAL DA CRIANÇA

NA ESCOLASe o aspecto relacional pais-filhos é muito importante, o da

criança-professor não o é menos. A criança que chega à escola traz consigo toda a experiência relacional que adquiriu na família. É portadora de um inconsciente pessoal. Orientada por este inconsciente vai transferir para os professores que evocam nela a imagem do pai, os sentimentos que a ligam a eles. Os novos diálogos dos inconscientes trazem um contributo educativo favorável ao desenvolvimento da criança. Por outro lado, o meio escolar proporciona à criança uma nova possibilidade de reviver a relação humana em condições menos captativas do que na família. O grupo escolar exige, aliás, que cada um se adapte a ele e aceite as suas regras. Os fantasmas fascinantes que orientam de forma maciça a vivência familiar, atenuam-se na vivência escolar a favor da realidade. O trabalho escolar canaliza as energias funcionais até então entregues aos fantasmas inconscientes. A criança transfere, naturalmente, a sua energia libidinal para a actividade escolar: ler, escrever, etc., tornam-se substitutos do desejo de conhecer e de compreender, que assediou os seus primeiros anos e culminou no complexo de Édipo.

Por tudo isto, a pedagogia escolar deve procurar articular-se com a expressão simbólica do aluno e dialogar com esses fantasmas. A linguagem simbólica exprime os sentimentos relacionais, os desejos e as rejeições dos outros. A psicanálise trouxe ao professor a possibilidade de uma compreensão mais profunda do aluno. Permitiu-lhe detectar as perturbações psíquicas que escapam aos pais. O professor pode, com a sua experiência analítica, manter o controlo das tensões que se exprimem na convivência do grupo

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escolar. Mesmo sob o ponto de vista da aprendizagem, a psicanálise mostra ao professor que para aprender tem que haver uma certa projecção dos impulsos libidinais sobre a matéria a aprender, revestindo-a de interesse e despertando o desejo de assimilar.

Na relação pedagógica opera, de maneira eficaz e positiva, a simpatia. Para que o educador possa desenvolver a sua autoridade directiva sem excesso nem fraqueza, deve estar rodeado de simpatia, isto é, a sua disponibilidade afectiva deve ser positiva em relação aos alunos. Esta simpatia que se compõe de muitas qualidades caracterológicas, ajuda o aluno a encontrar o caminho da identificação.

O professor deve ser cada vez menos magister, apelando antes para as possibilidades dos alunos. O diálogo mestre-aluno para ser dinamizador deve acontecer em dois planos, consciente e inconsciente; só assim resulta um diálogo profundamente revelador por ser a quatro vozes. Os educadores, em geral, devem saber que a criança, tal como eles próprios, obedece a motivações inconscientes.

Ter receio da psicanálise é um sinal de medo da verdade profunda de nós mesmos, oculta na camuflagem do inconsciente. Tomar consciência disso é uma atitude corajosa e sã. Será a preocupação da verdade que deve levar os educadores, não a condenar e a recalcar o desejo da criança, mas antes ajudá-la a reconhecê-lo, para lhe permitir a sua expressão por um lado e a dominá-lo por outro.

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CONCLUSÃO«O intelecto, no seu exercício espontâneo, petrifica ao

contemplar...Daí que o que está o mais distante do intelecto humanoseja precisamente o próprio homem, já que ele éo menos mineral possível...«A razão aparece-nos a cada qual como um imperativo derecurso a si próprio. A tradição, por seu lado, como umimperativo de escamotear o nosso "eu"dissolvendo-o no colectivo.»

ORTEGA Y GASSET

Freud propusera-se levar a bom termo uma difícil tarefa que trouxe ao conhecimento humano da personalidade algo, que por esquecido, limitava o conhecimento do homem, com as consequentes incidências no terreno da Pedagogia. Como cientista e exper imenta l i s ta preocupou- se sobremane i ra com o desenvolvimento interno do ser humano sem pretender levar o seu estudo a uma revisão dos conteúdos da sociedade. Aliás, como ele não era estritamente um pedagogo no sentido funcional, mas sim um teórico da pedagogia, não podia fazer uma revolução da instituição escolar.

Freud é um renovador da pedagogia, mas dentro da escola burocrática, sem atingir uma verdadeira dimensão da renovação institucional. O que acima de tudo faltaria a Freud, do ponto de vista actual, seria uma dimensão futurista e «utópica» do homem. Pensar que educar é sobretudo rasgar horizontes de futuro, mais do que resolver problemas do presente. Devido a uma antropologia excessivamente radicada na biologia, a uma perspectiva histórica do homem e às suas implicações de futuro, Freud pensou que o homem da sua época era o homem absoluto como acontecera

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anteriormente a Marx. Querendo salvá-lo, condena-o à aceitação da realidade social, que ele julgava estática e imperiosa.

Não vislumbrou o verdadeiro desabrochar de todas as possibilidades do homem histórico, esse homem desconhecido porque excessivamente socializado. Insistimos no conceito de homem histórico sem esperar por homem novo algum, como têm profetizado espíritos de talento religioso mais do que científico, como Ivan Illich e até Paulo Freire. Com efeito, o que está em causa é o homem de sempre que até agora tem sido sistematicamente ignorado por aquilo que Ortega diz, quando afirma que:

«a intimidade primária que tenho com a minha vida ao vivê-la, impede-me de a ver como um objecto ou realidade que possa constituir tema de investigação, problema para o conhecimento. A minha vida é-me transparente e o que é transparente é mais difícil de ver. O homem repara melhor no que está fora dele e que por isso mesmo, lhe é desconhecido, opaco e enigmático.» (VI, p.177)

Por isso a própria realidade que é o homem não foi encarada pela filosofia até finais do século XIX. Compreendemos assim que o discreto encanto da burguesia vienense limitasse Freud. Porém, o freudismo contém virtualidades libertadoras ao nível social quando bem aprofundado, como o tem demonstrado eloquentemente Neill.

A nova prática educativa é a partir de Freud que se constitui, superando-o evidentemente. Sabemos que todas as teorias, por históricas, são superáveis; contudo, nem por isso deixam de ser válidas e fecundas para os homens futuros. «O humano tem de ser vivido por todos os homens», dizia Goethe. Pois bem, o humano vivido e descoberto por Freud, por meio da sua teoria do inconsciente, é algo que nos interpela hoje a todos os que pretendemos saber a que nos ater em profundidade acerca do diálogo do nosso inconsciente com o inconsciente dos outros. Eis porque continua a ser um ponto de reflexão para todo o educador que se preza.

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Caelum et terra transibunt, verba autem mea non transibunt... — declamava o Acácio Fernandes.

Fili mi Absalom! Absalom fui mi! Quis mihi tribuat ut ego moriar pro te, Absalom fui mi! Fili mi Absalom... — soletrava eu.

Mas levei boas notas para férias, acompanhadas dum sentimento de ufania pelo dever cumprido. E também uma bruma de melancolia na alma oprimida, que a luz deslumbradora da paisagem que me agasalhava não conseguia dissipar.

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INDICECarta de Matilde Rosa Araújo ao autor - 2

Prólogo - 4

Introdução - 15

Fundamentação filosófica da Pedagogia Vital de Sebastião da

Gama - 17

1 - Introdução biográfica - 20

2 - Filosofia e Pedagogia - 28

3 - A filosofia da Razão Vital e Histórica - 30

TEORIA EDUCATIVA - 32

OBSERVAÇÃO PSICOLÓGICA - 37

DIDÁCTICA ESCOLAR - 43

REGRAS DE OURO DA PEDAGOGIA VITAL DE

SEBASTIÃO DA GAMA - 46

Regra primeira - 51

Regra segunda - 59

Regra terceira - 67

Regra quarta - 78

Regra quinta - 91

À MANEIRA DE CONCLUSÃO - 104

APÊNDICE - 127

O INCONSCIENTE AFECTIVO EM PEDAGOGIA

(FREUD) - 155

Introdução - 187

O inconsciente numa psicologia da organização afectiva - 193

Pedagogia dos processos afectivos - 194

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1 - As etapas - 196

2 - A situação relacional da criança na escola - 200

Conclusão - 201

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Ebook versão digital: Agosto 2013

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