a modernização das normas e do processo de análise das prestações de contas eleitorais
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A modernização das normas e do processo de análise das prestações de contas
eleitorais
Fernando Neisser, advogado, mestre e
doutorando pela Faculdade de Direito da
USP; membro fundador da ABRADEP
A prestação e posterior análise das contas eleitorais, regulada pela Lei nº
9.504/97, vem sofrendo alterações significativas a cada minirreforma eleitoral encetada
pelo Parlamento. Também o Tribunal Superior Eleitoral, por intermédio das resoluções
que expede, constantemente busca aprimorar este procedimento.
Nada obstante este esforço, resta fora de dúvida que a arrecadação ilegal e a
realização de gastos indevidos pelas campanhas eleitorais permanecem como algumas
das mais graves mazelas a conspurcar o resultado dos pleitos. É fato notório, neste
sentido, que cada escândalo de corrupção que vem à tona costuma ser acompanhado do
correspondente imbricamento com a prática do custeio ilícito de despesas eleitorais.
Mesmo reconhecendo alguns avanços nas recentes reformas, urge que a
comunidade acadêmica e profissional, advogados e promotores, juízes e servidores da
Justiça Eleitoral, parlamentares e respectivos partidos políticos; todos debrucem-se
sobre o tema. É palmar a necessidade de estabelecer balizas mais seguras e eficientes,
no eterno esforço em conter o poder econômico e a sua constante tentativa de macular a
disputa política.
O atual formato do controle de contas clama por uma radical alteração de
paradigmas. Novas exigências, instituídas pela Justiça Eleitoral no exercício de seu
papel normatizador – dentro ou fora dos limites que deveriam lhe ser cogentes - são
respondidas por tentativas do legislador de flexibilizar o rol de obrigações que a cada
eleição se acumula sobre os candidatos e partidos. Em reação, o mesmo Poder
Judiciário muitas vezes afasta a aplicabilidade destas novas normas, em um círculo não
apenas vicioso, mas vazio de fundamento.
Quer-se com isso dizer que nem as exigências constantemente instituídas se
fundam em pesquisas concretas que apontem a correlação entre o aumento da rigidez e
o atingimento das finalidades que se busca; nem as normas flexibilizadoras advindas do
Poder Legislativo encontram este necessário amparo na realidade. Tem-se,
resumidamente, um cabo de guerra em que se sabe o lado que cada um puxa a corda,
mas não o prêmio buscado por cada qual.
Estas poucas linhas se colocam como uma provocação, uma sugestão de alguns
dos caminhos que podem ser trilhados a partir do diagnóstico que se tem da ineficiência
do controle levado a cabo pela Justiça Eleitoral, bem como da inocuidade das normas
que a cada minirreforma eleitoral surpreendem quem lida com o dia a dia das eleições.
A tarefa do Estado como agente organizador das regras eleitorais assemelha-se
sobremaneira ao papel que exerce como ente regulador de quaisquer outras atividades,
inclusive econômicas. Deste modo, as alterações formuladas no arcabouço normativo
devem ser sopesadas tendo em vista os resultados que podem produzir, tanto positivos,
quanto e especialmente, negativos . 1
Há, contudo, no Brasil, certo preconceito em tratar a regulação da atividade
política com a mesma racionalidade com a qual se trabalha esta noção no campo
econômico. Respeitada a divergência, nenhuma característica estruturante do sistema
eleitoral parece diferenciá-lo de outras atividades humanas, a ponto de não terem
validade, neste campo, conceitos comezinhos como o da análise de custo-efetividade da
regulação. Como já sugeriram Issacharoff e Karlan, quaisquer reformas políticas
tendem ao fracasso quando se esquece que os agentes políticos, tal qual os agentes
econômicos, buscarão formas de reagir às mudanças de modo a preservar seus
interesses . 2
A ideia de avaliar de antemão os custos e benefícios decorrentes das sugestões
de alteração do quadro regulatório de uma atividade já foi há tempos incorporada no
Este e os parágrafos que se seguem, relativos ao cotejo entre regulação da atividade eleitoral e da 1
atividade econômica – até a citação do trabalho de Pedro Nery e Fernando Meneguin, foram extraídos de trabalho ainda inédito do autor, sem título, atinente à regulação do tempo de duração da propaganda eleitoral. A racionalidade por trás de ambos os campos de normatização é idêntica, a permitir o paralelo aqui sugerido.
“Electoral reform is a graveyard of well-intentioned plans gone awry. It doesn't take an Einstein to 2
discern a First Law of Political Thermodynamics-the desire for political power cannot be destroyed, but at most, channeled into different forms-nor a Newton to identify a Third Law of Political Motion-every reform effort to constrain political actors produces a corresponding series of reactions by those with power to hold onto it”. ISSACHAROFF, Samuel; KARLAN, Pamela. The Hydraulics of Campaign Finance Reform. Texas Law Review, N. 77, 1998, p. 1705 (pp. 1705-1738).
âmbito econômico. No caso da União Europeia, a prática é obrigatória desde 2003 . Nos 3
Estados Unidos, paulatinamente foi implantada ao longo dos últimos quarenta a
cinquenta anos , chegando a praticamente todos os ramos da atividade econômica e 4
obrigando o legislador a levar em consideração tal análise em suas decisões.
O fundamento desta prática reside na necessidade de garantir que “as regulações
desenvolvidas pelos governos sejam de alta qualidade, uma vez que os custos sociais de
normas regulatórias de baixa qualidade são substanciais” , como se diz no relatório da 5
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, ao recomendar
sua adoção por todos os países membros.
Pelo fato da atividade política não ser mensurável em termos econômicos,
naturalmente que a aferição tradicional de custo-benefício não pode ser empreendida.
Daí porque parece adequado emprestar o conceito da análise de custo-efetividade , útil 6
para casos desta espécie, levantando-se as alternativas regulatórias e comparando-as em
função de suas consequências esperadas.
A estratégia não é estranha ao campo político e eleitoral, tendo sido adotada com
regularidade desde 2003 pela Comissão Eleitoral do Reino Unido. A entidade,
responsável legal pela regulação da disputa eleitoral, tem a correspondente obrigação de
“Since 1 January 2003, the European Commission has given itself an obligation to carry out Impact 3
Assessments (IAs) analyzing economic, social and environmental impacts in one integrated framework. This commitment built upon previous efforts to analyze specific impacts separately. The obligation for integrated IAs originally applied to major policy initiatives, which broadly correspond to the proposals included in the Commission’s yearly legislative and work programme. It was later extended to all initiatives with significant expected impacts”. RENDA, Andrea et al. Assessing the Costs and Benefits of Regulation: Study for the European Commission, Secretariat General – Final Report. Bruxelas: CEPS, 2013, p. 7.
“Regulatory analytical requirements (e.g., cost-benefit and cost-effectiveness analysis) have been 4
established incrementally during the last 40 to 50 years through a series of presidential and congressional initiatives. The current set of requirements includes Executive Order 12866 and Office of Management and Budget (OMB) Circular A-4, the Regulatory Flexibility Act (RFA), and the Unfunded Mandates Reform Act (UMRA)”. CAREY, Maeve (Coord.). Cost-Benefit and Other Analysis Requirements in the Rulemaking Process. Washington: Congressional Research Service, 2014, p. 9.
OECD – Organization for Economic Co-operation and Development. Introductory Handbook for 5
Undertaking Regulatory Impact Analysis (RIA), 2008, p. 3.
“When benefits cannot be expressed in monetary values in a meaningful way, a cost-effectiveness 6
analysis (CEA) should be carried out to assist in making effective decisions. A cost-effectiveness analysis calculates cost-effectiveness ratios of different alternative policy options, and then compares the resulting ratios so that the most efficient option is chosen. In a sense, CEA ensures technical efficiency in the process of achieving a desired outcome”. JENKINS, Glenn; KUO, Chun-Yan. Canadian Regulatory Cost-Benefit Analysis Guide. Ottawa: Queen´s University and Cost-Benefit Advisory Committee, 2007, p. 34.
apresentar relatórios periódicos ao Parlamento, analisando a efetividade de cada medida
regulatória em vigor e propondo, se o caso, as alterações que produziriam melhores
resultados . 7
Mesmo no Brasil, ainda que sem força vinculante, a importação deste tipo de
conceito já começa a encontrar algum espaço. Nos debates que antecederam a
aprovação da última minirreforma eleitoral, ao menos no Senado Federal, houve a
apresentação de um trabalho elaborado por Pedro Nery e Fernando Meneguin,
produzido no âmbito do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa,
sugerindo a adoção do “instrumental da Análise Econômica do Direito para analisar as
consequências e comportamentos que emergem a partir da legislação eleitoral, com
foco nas alterações propostas no âmbito da reforma política” . 8
No campo específico da formulação das regras de arrecadação e realização de
despesas eleitorais, bem como do correspondente procedimento de seu julgamento,
diversos são os fatores que merecem ser ponderados e avaliados.
Há que se estabelecer critérios objetivos, probabilísticos, para eleger quais
contas devem merecer maior atenção; quais as operações de antemão suspeitas; quais
valores devem acender o alerta da Justiça Eleitoral. Mais do que isso, é preciso lançar
mão de ferramental próprio para este tipo de controle, a denominada matriz de risco,
trazida do ambiente privado para o controle efetuado pelo Poder Público . 9
“The Electoral Commission’s statutory role as the regulator of party and election finance in the UK 7
includes a duty to keep the legal framework under review, and report on our conclusions. We published a first report on these issues in 2003, and many of our recommendations for change have since been implemented. We have also identified further improvements in reports on particular elections and referendums”. United Kingdom Electoral Commission. A regulatory review of the UK´s party and election finance laws: Recommendations for change. Londres: 2013, p. 3.
MENEGUIN, Fernando; NERY, Pedro Fernando. Tópicos da Reforma Política sob a Perspectiva da 8
Análise Econômica do Direito. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Março/2015 (Texto para Discussão nº 170). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 22 jan. 2015, p. 5.
O tema, de forte conotação técnica, foi bem avaliado em sua aplicabilidade ao controle externo 9
realizado pelos Tribunais de Contas: OLIVEIRA, Licurgo Joseph Mourão de; Viana Filho, Gélzio Gonçalves Viana. Matriz de risco, seletividade e materialidade: paradigmas qualitativos para a efetividade das Entidades de Fiscalização Superiores. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. V. 74, N. 1, Ano XXVIII, janeiro a março de 2010, pp. 41-78. Este ferramental vem paulatinamente sendo adotado no âmbito do controle público, como dá exemplo o manual de auditoria geral do Município de C o n t a g e m / M G . D i s p o n í v e l e m : < h t t p s : / / w w w . g o o g l e . c o m . b r / u r l ?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=11&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwj46Kj-ga3LAhUBQBoKHVlWBFoQFghhMAo&url=http%3A%2F%2Fwww.contagem.mg.gov.br%2Farquivos% 2 F a r q u i v o s % 2 F a t o s _ n o r m a t i v o s%2Fresolucao_cgm_2014.001_matriz_planejamento_anexo.pdf&usg=AFQjCNHyTVASOAe3HeWHjOmmacLO95F5rA&bvm=bv.116274245,d.d2s>. Acesso em 6 mar. 2016.
Não é possível nem eficaz dar o mesmo grau de atenção a centenas de milhares
de prestações de contas, a imensa maioria das quais envolvendo montantes irrisórios e,
no máximo, contendo falhas formais decorrentes da carência de habilitação profissional
de seus responsáveis.
Nesta quadra, são louváveis os avanços trazidos com a prestação simplificada,
estatuída nos parágrafos 9º a 11 do art. 28 da L. 9.504/97, trazidos com a L. 13.165/15.
É o caso de avaliar, após o pleito de 2016, se o regramento trazido nos arts. 57 a 62 da
Resolução TSE 23.463/15 dará conta de promover a simplificação postulada pelo
legislador ou se, por outro lado, manteve-se indiretamente grau semelhante de
burocratização para contas de baixo valor.
Ademais, faz-se necessário dar especial foco ao campo das despesas eleitorais,
relegado a um segundo plano de preocupações em razão da prioridade que sempre se
teve no que toca às doações. Fatos recentes, vislumbrados nas últimas eleições,
demonstram a alta possibilidade de que recursos advindos do Fundo Partidário ou
mesmo de doações privadas sejam desviados em benefício de serviços não prestados . 10
Por fim, há que se buscar formas pelas quais o cidadão possa contribuir trazendo
aos atores deste processo – candidatos, partidos, Ministério Público Eleitoral e Justiça
Eleitoral – informações que permitam identificar com maior acuidade as
irregularidades.
Afinal, em um cenário de escasso tempo para promover diligências, é necessário
contar com a maior quantidade de informação possível, direcionando de forma mais
inteligente e racional os recursos daqueles que têm interesse em promover a
fiscalização. No mundo do big data, do acesso ubíquo aos smartphones e dos
Este alerta, bem como outras reflexões vocalizadas neste artigo são fruto do constante diálogo com a 10
Professora Marilda de Paula Silveira. A autora teve a oportunidade de trazê-las em artigo publicado em 2015, quando afirmou que “Os últimos tempos, contudo, têm nos surpreendido com a perspectiva de que boa parte dos valores que merece fiscalização não apresenta ilegalidade na entrada. Partem de doadores autorizados, em montantes que não ultrapassam o teto e com registro que atendem a todas as leis e regulamentos. Contudo, tem destinação duvidosa: empresas fantasmas, serviços não prestados, superfaturamentos e atividades incompatíveis com a realidade atual. O problema parece ainda mais grave quando consideramos que uma parcela desses recursos tem origem no Fundo Partidário, ou seja, nos cofres públicos. Não é preciso ser especialista para concluir que a apuração dessas potenciais ilegalidades não é tarefa nada fácil. Certamente, incompatível com o curto prazo previsto para julgamento das contas dos candidatos eleitos (oito dias antes da diplomação). Não é incomum (e nem de se espantar), portanto, que, após o julgamento das contas, pequenas falhas revelem grandes fraudes e operações com aparência de regularidade sejam fonte de grande ilegalidade”. SILVEIRA, Marilda de Paula. Contas de campanha: apuração e consequências sem estratégia. Disponível em: < http://jota.uol.com.br/contas-de-campanha-apuracao-e-consequencias-sem-estrategia>. Acesso em 6 mar. 2016.
aplicativos para celular, não parece ser difícil desenvolver um banco de dados
colaborativo que permita a vinda a público de cruciais informações . 11
Diante do exposto, de forma bastante, resumida, postula-se a necessidade de
uma mudança de paradigma no que toca ao regramento e posterior análise das
prestações de contas. Parece haver ganhos em uma visão que empreste elementos da
Análise Econômica do Direito, especialmente quanto à adoção da análise do custo-
eficiência das regras vigentes e daquelas que se planeja instituir.
Ademais, a implantação de técnicas de auditoria fundadas em análises
probabilísticas e matrizes de risco pode trazer maior eficiência ao controle, que deve,
ainda, ter foco não apenas na receita, mas também na despesa eleitoral.
Por fim, não se pode prescindir de trazer o cidadão para o processo,
aproveitando os mecanismos mais modernos de telecomunicações, de modo a criar um
banco de dados colaborativo que permita expor com maior eficácia eventuais
irregularidades às quais as autoridades não teriam acesso no curto espaço de tempo de
que dispõem.
REFERÊNCIAS
CAREY, Maeve (Coord.). Cost-Benefit and Other Analysis Requirements in the Rulemaking Process. Washington: Congressional Research Service, 2014.
ISSACHAROFF, Samuel; KARLAN, Pamela. The Hydraulics of Campaign Finance Reform. Texas Law Review, N. 77, 1998, pp. 1705-1738.
JENKINS, Glenn; KUO, Chun-Yan. Canadian Regulatory Cost-Benefit Analysis Guide. Ottawa: Queen´s University and Cost-Benefit Advisory Committee, 2007.
MENEGUIN, Fernando; NERY, Pedro Fernando. Tópicos da Reforma Política sob a Perspectiva da Análise Econômica do Direito. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Março/2015 (Texto para Discussão nº 170). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 6 mar. 2016.
OECD – Organization for Economic Co-operation and Development. Introductory Handbook for Undertaking Regulatory Impact Analysis (RIA), 2008.
A ideia de um aplicativo para celulares que alimente um banco de dados colaborativo, trazendo ao 11
conhecimento da Justiça Eleitoral eventuais irregularidades atinentes às prestações de contas também é fruto das reflexões da Professora Marilda de Paula Silveira, expostas em conversas privadas com o autor.
OLIVEIRA, Licurgo Joseph Mourão de; Viana Filho, Gélzio Gonçalves Viana. Matriz de risco, seletividade e materialidade: paradigmas qualitativos para a efetividade das Entidades de Fiscalização Superiores. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. V. 74, N. 1, Ano XXVIII, janeiro a março de 2010, pp. 41-78.
RENDA, Andrea et al. Assessing the Costs and Benefits of Regulation: Study for the European Commission, Secretariat General – Final Report. Bruxelas: CEPS, 2013.
SILVEIRA, Marilda de Paula. Contas de campanha: apuração e consequências sem estratégia. Disponível em: < http://jota.uol.com.br/contas-de-campanha-apuracao-e-consequencias-sem-estrategia>. Acesso em 6 mar. 2016.
UNITED KINGDOM ELECTORAL COMMISSION. A regulatory review of the UK´s party and election finance laws: Recommendations for change. Londres: 2013.