a minha casa

24
A minha casa Um homem vigoroso e sem receio enfia a pá na terra solta, lançando-a fria e eterna para cima do caixão de madeira sereno e sóbrio. Estavam poucas pessoas no funeral. Já poucos restavam. Mais próximo, quase a tombar para o buraco, estava um homem magro, corcovado, de olhos fechados, desamparado como a liberdade. Ninguém ao seu lado. A liberdade trouxera-lhe a solidão. Zé Maria chorava. Em volta, alguns circunstanciavam, amortalhados nas suas roupas de séculos. Zé Maria chorava a cada pá de terra que cobria a sua amada. A sua companheira de todos os momentos abandonara-o finalmente ainda antes que a velhice os apanhasse desprevenidos. O padre jejuava nas palavras o sentimento que, afinal, não podia ter, porque quem a amava era o Zé Maria e só quem ama é que sente verdadeiramente. As mangas do seu casaco não lhe chegavam aos pulsos; nunca se soubera compor. Era um descomposto social por natureza íntima, porém ela estava lá. Sempre consigo, aprimorando-o com a beatitude da sua beleza. Os pulsos estavam descalços em desarranjo comentado, enquanto a terra tapava por completo o caixão. Era o funeral de Bia. Depois, surgiram abraços e beijos diversos de pessoas sem cara, pessoas sem vida, porque não existiam. Zé Maria condescendia, perdido e choroso. A sua vida inteira ruíra; os projectos, as lutas, as ânsias, os sonhos, os sonhos… eterno mundo partilhado… morrera. Saía, devagar do 1

Upload: ricardo-oliveira

Post on 15-Jan-2016

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Conto

TRANSCRIPT

Page 1: A Minha Casa

A minha casa

Um homem vigoroso e sem receio enfia a pá na terra solta, lançando-a fria e

eterna para cima do caixão de madeira sereno e sóbrio. Estavam poucas pessoas no

funeral. Já poucos restavam. Mais próximo, quase a tombar para o buraco, estava um

homem magro, corcovado, de olhos fechados, desamparado como a liberdade. Ninguém

ao seu lado. A liberdade trouxera-lhe a solidão. Zé Maria chorava. Em volta, alguns

circunstanciavam, amortalhados nas suas roupas de séculos. Zé Maria chorava a cada pá

de terra que cobria a sua amada. A sua companheira de todos os momentos abandonara-

o finalmente ainda antes que a velhice os apanhasse desprevenidos. O padre jejuava nas

palavras o sentimento que, afinal, não podia ter, porque quem a amava era o Zé Maria e

só quem ama é que sente verdadeiramente. As mangas do seu casaco não lhe chegavam

aos pulsos; nunca se soubera compor. Era um descomposto social por natureza íntima,

porém ela estava lá. Sempre consigo, aprimorando-o com a beatitude da sua beleza. Os

pulsos estavam descalços em desarranjo comentado, enquanto a terra tapava por

completo o caixão. Era o funeral de Bia.

Depois, surgiram abraços e beijos diversos de pessoas sem cara, pessoas sem vida,

porque não existiam. Zé Maria condescendia, perdido e choroso. A sua vida inteira

ruíra; os projectos, as lutas, as ânsias, os sonhos, os sonhos… eterno mundo

partilhado… morrera. Saía, devagar do cemitério, por entre estranhos que lhe

murmuravam segredos em código, para lado nenhum. Não tinha para onde ir, o que

fazer. O que havia a fazer era com Bia, tinha-o combinado no dia anterior. Agora

caminhava pela cidade, olhando para a frente para não esbarrar com algum obstáculo.

Na verdade, o médico já lhes tinha dito que aquela gravidez era de risco, mas as

palavras eram tão difíceis que nem Zé Maria, nem a companheira, conseguiam entender

o que elas queriam dizer. Por isso esperançavam-se. Em casa, na cama, ele punha a mão

sobre a barriga breve de Bia e deslizava, contornando-a, para cima e para baixo, no

princípio do amor de pai que lhe nascia do amor pela mulher. Bia, deitada na cama

sobre a colcha que tinham comprado no dia em que decidiram viver juntos, sorria.

Estava feliz, o mistério da Vida acontecera-lhe como uma surpresa desejada. Mas o

mistério dorme para além da Vida que sabemos e eles não sabiam, não sabiam como

pode a vida que nasce morrer sem ter nascido e puxar-nos para a morte com ela. O

1

Page 2: A Minha Casa

médico também não sabia, contudo suspeitava. No entanto, ele não conhecia as

palavras. Aprendeu-as antes de entrar para o curso de Medicina e lá esqueceu-as;

deixou-as escondidas num poema clandestino que ficara na mesa-de-cabeceira do seu

quarto de caloiro.

Deitados na cama, Zé Maria contemplava na barriga de Bia o futuro que se

anunciava. Olha, está a mexer-se! E sorriam ansiosos, trocando olhares cúmplices.

Olhares que Zé Maria demorava no verde-transparente dos olhos grandes de Bia. Olhos

de adolescente que se fez mulher sem que o tempo desse conta.

Foi no final da adolescência que se conheceram. Era um fim de tarde de

Setembro. O vermelho do sol desmaiava sobre os prédios e as árvores que ladeavam a

estrada. Havia uma brisa outonal tépida que agitava as folhas discretamente. Zé Maria

passeava. Sempre tivera o gosto saudosista e triste de passear ao final da tarde, como se

lhe custasse que o dia terminasse. Passava diante da Piscina Municipal, onde pára para

fumar. A piscina era uma construção moderna inaugurada no ano anterior, mas ainda

não terminada. Ainda havia que esclarecer uns pontos quaisquer que o senhor doutor

juiz, decerto, decidirá. Contudo, entretanto, as portas abriram-se ao público da vila que

apreciou o novo serviço da terra.

Foi nesse momento que a viu pela primeira vez. Ela saía, deixando o negro

molhado dos seus longos cabelos humedecer a brisa que Zé Maria respirava. Pequena e

hilariante, galhofava em conjunto com as amigas, despreocupadas no seio da sua

juventude eterna. A mochila que trazia era leve e subtil como ela; era azul-celeste como

o infinito; divertida como só nela poderia ser. Ela passava. Zé Maria não conseguia tirar

os olhos daquela rapariga. Como era possível nunca ter reparado nela? A vila não era

assim tão grande. Era uma vila modesta, ponto de passagem de muitos, mas paragem de

um punhado de gente. Bia passou, indiferente ao olhar persistente daquele jovem que

estava sentado no cimento dum vaso que prometia alegrar, num futuro incerto, a entrada

da Piscina Municipal com uma planta. Quando dobrou a esquina do prédio, Bia tinha

sublimado o ar, tinha trazido um pouco de sonho à realidade de Zé Maria.

Zé! Zé, então, pá! Não me ouves? Antero chamava frustrantemente o amigo que

olhava o que o prédio não deixava ver. Zé!, tocou-lhe finalmente no braço. O que se

passa? Nada., respondeu atarantado. Antero era um rapaz gordo de cabelos compridos

que tinha uma enorme vontade de viver. Gostava da paródia e todos os dias mereciam

2

Page 3: A Minha Casa

uma celebração dionisíaca. Estás aluado! O que precisas é de beber um copo! E ria alto

para que toda a vila conhecesse a sua vitalidade. Logo vou a um jantar. Vão lá estar as

melhores raparigas da vila. Tens de vir! É obrigatória a presença de todos os cidadãos

exemplares desta vila. E tu és um deles?, troçou Zé Maria. Claro, menino! E tu também

és! Zé Maria era um tímido, porém concordou acompanhar Antero no famoso jantar da

sociedade juvenil local.

Antero e Zé Maria foram os primeiros a chegar ao restaurante. Estavam postas

mesas corridas ao longo de toda a sala, repletas, desde logo, de garrafas de vinho,

auspiciando uma noite de folia. À porta do restaurante aglomeravam-se jovens

soberbamente vestidos de adultos, cuidados na toilette ao detalhe, não descurando

domesticar aquele cabelo selvagem que insistia numa outra posição inestética. Todos,

menos Zé Maria que não tinha ido a casa trocar de roupa, nem sequer havia pensado

nisso, todos floresciam brilhantes no luxo fosforescente da nossa civilização. Zé Maria,

apertado na sua ganga e no desmazelo da sua casaca roçada, sentia-se desfasado e inútil.

As raparigas, principalmente, maquilhavam-se em beleza, exibindo decotes arrojados e

pernas longas, longuíssimas. Eram todas bonitas, como se a Natureza tivesse distribuído

a Beleza somente naquela vila. Antero emparelhava com Zé Maria na mesa, onde aquele

nunca deixava o copo de ninguém vazio, repetindo a frase: Não quero ninguém triste ao

meu lado. e logo atestava o copo desse amigo. Era um pândego, a seu lado era

impossível não rir à gargalhada. No entanto, a comida não tinha sido servida, visto que

ainda não tinham chegado todas as pessoas.

Eles ficaram na mesa que dava para a enorme janela de onde se podia ver a rua.

Lá fora, estavam alguns colegas que tardavam a entrada, fumando adultamente e

conversando. Quando, por fim, chega a rapariga da Piscina Municipal. Senta-se à mesa,

no outro lado. Trazia ganchos: eram borboletas de todas as cores que saltitavam pelo

negro-azul dos seus cabelos. Não trazia maquilhagem, porém os olhos brilhavam como

a felicidade. Sentou-se à mesa, longe de Zé Maria, que não atentava nas conversas que

decorriam com alarido. Sorri apenas para que os amigos não notassem o estado em que

se encontrava. Que linda!, pensava Zé Maria. Seria possível que estivesse apaixonado?

Não queria acreditar. Sempre achara essas coisas de “amor à primeira vista” histórias da

televisão. Tão linda, aquela miúda! Não conseguia evitar olhá-la. Perturbava-o. O

coração pulava.

3

Page 4: A Minha Casa

Entretanto, uns colegas levantavam a voz demasiadamente, em tom agressivo.

Gerara-se uma confusão qualquer que tinha nascido de um nada, fonte de grande parte

das discussões. Os colegas esgrimiam argumentos já com o corpo e o dono do

restaurante acabou por expulsar a sociedade juvenil local. Ficaram à entrada sem se

apaziguarem, encenando um acto de pancadaria insólito entre amigos. Foi uma cena

desagradável, fruto do exagero, do excesso de egoísmo que habita os jovens. Antero,

que gostava de paródia, tentou fazer regressar o espírito festivo, contudo apenas lucrou

um sopapo que lhe inchava a face esquerda.

Evitando a confusão, Bia encosta-se ao parapeito da janela do restaurante. Estava

sozinha, resplandecendo com o cetim das suas pernas descobertas pela curta saia. Zé

Maria recua para junto dela, mas não diz nada. O coração saltava tanto que quase lhe

saía pela boca. No entanto, inesperadamente, Bia pergunta: Que estavas a fazer na

piscina? Zé Maria, estupefacto por ela ter reparado nele, gagueja, suando e ruborizando

as faces. Ela estava a falar para ele. Assim, sem mais. Tinha-o visto, assim como ele a

tinha visto. Tinha de conseguir falar com ela; pôr para trás todos aqueles anos de

timidez que sempre o impediram de falar com raparigas. Tinha de falar. Dizer o quanto

ela o tinha impressionado. Corava: Estava a ver-te. Ela sorriu. Por vezes, quando

sabemos o que os outros nos vão dizer, sorrimos. Foi isso que Bia fez, sorriu. Contente

por aquele rapaz a ter visto. Contente, sorriu: Mas tu não andas na natação? Zé Maria

pareceu surpreendido. Não. Mas gosto de nadar. Não sabes nadar. Apenas dizes isso

para me agradar., gracejou Bia. Ela tinha uma voz pequena e breve como o seu corpo

que era quase transparente no meio da confusão, por isso Zé Maria encheu-se de

coragem e propôs: Queres vir comigo à piscina? Era um arrojo que nunca havia

cometido, transpirava e passava nervosamente as mãos pelo cabelo que começava a

rarear. Bia aceitou: Sim, vamos até à piscina. Sempre podemos conversar melhor. Ela

completava o raciocínio de Zé Maria espontaneamente, sem se esforçar ou, sequer, se

aperceber disso. Era o princípio; a porta aberta por onde o amor entra e se instala na sala

comum que ainda não estava decorada.

Seguiam em silêncio. Estavam ambos nervosos, pisavam ambos um território

desconhecido, andavam sem rota num rumo incerto; por isso, às vezes, cambaleavam e

os seus braços tocavam-se. Tocavam-se e logo recuavam, envergonhados e tímidos.

Todavia, já nas imediações da piscina, os braços voltaram a roçar e, na confusão gerada,

4

Page 5: A Minha Casa

terminaram de mão dada. Foi de mão dada que chegaram ao parque defronte da Piscina

Municipal. Sentaram-se no local onde ele tinha estado ao final da tarde. Quero ver se

sabes nadar. Sei, já te disse. Queres fazer uma corrida? Aposto que te ganho! Era

atrevida aquela rapariga, mas Zé Maria não se esquiva ao combate: Achas que és capaz

de me vencer?! Sou mais rápido do que um salmão a subir o rio... Sim, tenho a certeza

que sim! Rematou ela, faiscante no olhar e convida: Vamos a isso? Já?!

Bia conhecia uma entrada secreta que dava acesso à piscina. Entraram e, mesmo

vestidos, mergulharam nas águas paradas e escuras da piscina. O céu, pouco estrelado,

reflectia-se na água, dado que a cobertura era de vidro transparente. Mergulharam. Bia

grita: Não me apanhas. Quem chegar primeiro ao muro, ganha! Nada. Nada

velozmente. Zé Maria parte atrás dela, seguro de que seria fácil ultrapassar a pequena e

divertida rapariga, porém ela deslizava pelas águas como uma sereia, por isso a

distância entre eles ia-se alargando. No entanto, Bia retarda a marcha para que Zé Maria

pudesse sentir as ondas do seu movimento desenhado na água, mas não o deixa vencer:

Perdeste com uma menina!, troçava Bia, penteando os longos cabelos, que lhe tapavam

os olhos, para trás das costas. No rio, no rio quero-te ver. Não estou habituado a este

tipo de água. Depois, Zé Maria passa a sua mão por um cabelo que rebeldemente tingia

a face de Bia e esconde-o por trás da orelha. Ela sorri e espera. Ele olha-a bem no verde

profundo dos seus olhos, dizendo-lhe todas as coisas que tinha de dizer mas não têm

palavras. Ela entende e emociona-se, colocando a sua mão por cima da dele que ainda

repousava um pouco abaixo do ouvido. Tremem menos pelo frio da água do que pela

ansiedade. Zé Maria coloca a outra mão sobre a anca miúda de Bia. O espaço entre eles

é cada vez menor, partilham o ar e as pernas encostam-se.

No entanto, Bia recua, aponta para o céu: Já viste este espectáculo? Ele,

envergonhado, retira as mãos do corpo dela e responde: Não. Nunca tinha entrado aqui.

É deslumbrante! Bia chega-se e explica: Aquela é a constelação de balança. Ali é

Marte. Aquele é Vénus. Acolá é... ali devia estar a estrela polar. Era através dessa

estrela que os marinheiros sabiam o caminho. Onde estará ela? e espreitava,

acercando-se cada vez mais de Zé Maria. Eu sei onde ela está. Ela olha-o, surpresa. Que

mistérios teria aquele rapaz? Fui eu que a guardei., continua confiante. Estão os dois

frente a frente. Ele sorri. Sorri de prazer e de medo. Deixa que a palma da sua mão se

5

Page 6: A Minha Casa

acerque da barriga de Bia e depois sobe, por dentro da camisa dela: Deixei-a aqui., e

pára no seu coração.

Bia sossega a respiração acelerada, aquela mão que lhe subia, ao de leve, pelo

contorno do seu corpo fazia-lhe calor. Ela sossega, quando Zé Maria pára a mão, um

pouco abaixo do seu peito e deixa-se ir. Foi até ao encontro dos lábios de Zé Maria.

Beijam-se. Por cima, a estrela polar norteava o caminho deles.

Agora, Zé Maria caminhava, caminhava sem destino como daquela vez em que

resolveram ir à Cidade da Utopia. Foram a pé; sabiam que a verdadeira utopia está na

paisagem do caminho, porque na cidade mora sempre o fim.

Foi no Inverno, nas férias de Natal, Zé Maria convida-a: Vamos à Cidade da

Utopia? Bia sorri, indecisa. A época natalícia parecia-lhe demasiado familiar para

loucuras daquelas. Nós somos a família!, anuncia Zé Maria. Ela condescende, embora a

ideia lhe parecesse um pouco amalucada. Porém, Zé Maria prossegue: Iremos a pé. Bia

escandaliza-se: Tu sabes quantos quilómetros são? 333! Por isso mesmo, caminharemos

numa tripla perfeição!

Na madrugada seguinte, com duas mochilas e uma tenda que carregavam na mão,

saíram para a mais longa viagem que fizeram. Chuviscava. Intrépidos como os

cavaleiros medievais, começaram o caminho. Seguiam pela floresta. Não havia estrada

de alcatrão para Utopia: o Homem não pôde sujar para construir aquela civilização; por

isso, eles tinham de trilhar pelo meio das montanhas e vales que separavam a sua vila

daquela cidade. Bia ia à frente, mandara-o para trás para que pudesse ver tudo como

uma timoneira. É que tu és muito grande e tapas-me a paisagem. O trilho era pequeno

e, na verdade, só raras vezes podiam caminhar lado a lado. A terra estava enlameada não

só pelo riacho que a ladeava, mas também pela chuva que aumentava com a alvorada.

Zé Maria festejava: São os deuses que abençoam o nosso amor! Ela, encharcada, com

os cabelos negros e compridos ondulando-lhe colados à cara pequena e sardenta, as

botas cobertas de lama que chapiscava do chão, carregando orgulhosamente a tenda,

brilhava no verde mais vivo dos seus olhos, livre, como nunca fora, amada, como nunca

pensava ser.

Por volta do meio-dia, pararam junto à nascente que ficava na Aldeia Termal. A

aldeia ficava num vale, as casas subiam a montanha com discrição, eternizando-a como

um sagrado imaculado. Diante do átrio de uma capela branca estava a nascente. Bia

6

Page 7: A Minha Casa

atira para o chão lajeado a mochila e a tenda e passa as mãos na água, esfregando-a na

cara: Que macia é! Zé Maria experimenta: Sim, que macia., diz com as mãos nas faces

de Bia. Chovia copiosamente, por isso abrigaram-se no adro da capela, onde almoçam

do farnel que traziam. Zé Maria pensava: “Que grande mulher que está a meu lado!

Como é que é possível ela estar aqui comigo nesta maluquice? Amo-a tanto...” e,

sobressaltado, grita: Anda! Vem comigo! Arrasta Bia novamente para a nascente. Chovia

dolorosamente. As roupas pesavam no corpo miúdo de Bia. Zé Maria, solene como um

noivo, profere, molhando a mão direita e levando água à cabeça dela: Bia, meu amor,

com esta água eu te baptizo como a minha companheira eterna! Em nome da Água, da

Vida e do Amor... Bia fecha os olhos para que o amor diluído na água lhe entrasse por

todos os poros da cara. Depois, molha a mão e passa-a nos lábios dele. O meu amor...

Eterno companheiro! Beijam-se. A água borbulhava da terra e caía do céu. Mas eles não

ligavam; a eternidade do amor é maior do que isso.

Permaneceram nessa aldeia, onde procuraram um abrigo que os acolhesse.

Virgem santíssima! Como vocês vêm!, exclamava a senhora Noémia, dona da

Pensão. A senhora Noémia levava as mãos à cabeça, aterrada. Eles riam divertidos,

porque na flor da juventude as doenças são uma miragem tão inalcançável como a

velhice. Todavia, Noémia, senhora que vestia um luto que esmagava os seus frescos

cinquenta anos, ralhava: Isso são lá modos?! A caminhar à chuva, sem ao menos se

protegerem com um guarda-chuva! Noémia, minha santa, deixa lá os miúdos. Estão na

altura de viverem as suas aventuras. Um homem vestido com um fato azul aproxima-se

do balcão. A pele da sua cara era lisa como se nunca tivesse havido barba nela e o

cabelo meticulosamente penteado para trás, empastado em gel. Continuou: Noémia,

minha amada, serve-me um gin. Tua o quê? O homem deve estar parvo!, gritou Noémia

agitada, com os seios arfando, escondidos na escuridão do luto. Vá, meninos, vão tomar

um banho que ainda apanham uma gripe! Louvado seja Deus, que o mundo está

perdido!

A Pensão ficava bem no centro da aldeia e da janela do quarto onde Bia e Zé

Maria se hospedavam podia ver-se a nascente, ali mesmo, diante da capela branca.

Chovia. Nos vidros rectangulares da janela de madeira, copiosas gotas obliquavam ao

sabor do vento que crescia com o findar do dia.

7

Page 8: A Minha Casa

Ainda não sabiam se namoravam. Na verdade, Zé Maria nunca tinha perguntado:

Queres namorar comigo? E Bia, que já sabia a resposta, nunca a pôde dar, visto que

nunca houve nenhuma pergunta a responder. Andavam abraçados pelo desejo que os

fazia permanecer juntos e isso para eles bastava: Queres vir comigo? Sim, vou contigo.

Isso bastava para alimentar aquele amor. Era um amor puro, sem convenções ou

formalidades. Era um amor como um sentido de vida.

Durante a noite dormiram abraçados, calmos e sossegadamente protegidos pelos

seus pijamas de Inverno. No entanto, do outro lado da parede fina, ouviam-se gemidos.

Era uma mulher. Cansados, Zé Maria e Bia adormeceram.

Na manhã seguinte, dona Noémia recebia-os já com a sala a branquejar nas

toalhas postas sobre as mesas que mostravam leite, chocolate, café, manteigas, queijos,

compotas, que ela mesma fizera; discreto no cesto de vime, o quente do pão que fora

confeccionado no forno a lenha da pensão acarinhava o amanhecer. Noémia,

encarcerada no seu luto, falava-lhes sobre a qualidade dos produtos que dispunha, numa

conversa que lhe fora ensinada por um mestre que vivera antes do deus dos ladrões

mandar sobre o comércio. Noémia estava feliz. Quando falava do seu pão, cheirava-o

maternalmente para confirmar que era mesmo o seu.

Noémia, filha, anda cá tomar o pequeno-almoço comigo! Era o senhor sem barba

que falava, exibindo os reflexos gelosos do cabelo à luz espantosamente tépida daquele

dia de Verão no meio da invernia. Estou a atender clientes!, resmungou a senhora

Noémia. Serve-te, se quiseres, se não quiseres, tenha um bom dia!, remata, descuidando

um sorriso que lhe contrariava o tom áspero da frase.

Na Aldeia Termal, a vida escorregava devagar, como a água que nascia sem pressa

de morrer no mar. A nascente era a religião da terra: à volta dela juntavam-se os aldeãos,

cavaqueando: Vocês são peregrinos? Zé Maria esclarece: Sim, estamos a caminho da

Cidade da Utopia. O velho, cofiando o bigode antigo, arruma o chapéu como um toque

na modernidade de uma época distante: Sabes, fui eu que fiz a primeira viagem pelos

trilhos desta montanha até lá. Indiquei todo o caminho. Se estiveres atento às árvores,

encontrarás a direcção correcta. Bia, depois do pequeno-almoço, ainda permanecera na

pensão, Ainda tenho de acabar de me arranjar. Zé Maria tinha saído, conversava com

os habitantes sobre um fogo que ocorrera há dez anos. Ainda não havia bombeiros e foi

a força dos homens da terra que salvou a aldeia duma tragédia. Já alguma vez

8

Page 9: A Minha Casa

enfrentaste o fogo, rapaz? Já. Uma vez a minha casa ardeu... Era a voz de Bia, pequena

e breve, atrás de Zé Maria, como a eterna companheira que nunca o deixa

desprevenido... a minha mãe estava doente na cama e o meu pai paralisado de medo.

Enfrentei o fogo e defendi a minha casa como a minha intimidade. Houve um silêncio...

Zé Maria olha para trás e ali estava ela, linda, excessiva no seu corpo pequeno. Existem

demasiadas coisas que nos superam. Tanto que nos fazem sentir pequenos,

insignificando todo o sonho que o Homem pode inventar. Levantei a minha mãe e levei-

a lá para fora. Os aldeãos relembravam: Quando vem o fogo, temos de nos unir para

superar as dificuldades...

De volta à pensão, já o sol se punha, Noémia, maternal, perguntava por onde

tinham andado. Zé Maria nunca percebera por que motivo as pessoas têm de saber a

vida dos outros. Nunca percebera o benefício que isso poderia trazer à sua vida. Talvez

fortifique os laços entre os homens. Talvez seja uma maneira de se preocuparem uns

com os outros... explicava Bia. Talvez... talvez porque gostamos de falar uns dos outros,

por vezes mal., Zé Maria parecia não concordar. Talvez dizermos mal uns dos outros

seja uma maneira de nos amarmos. Zé Maria sorriu.

Durante a noite, voltaram a ouvir barulho do quarto ao lado. Os mesmos gemidos,

estranho: É do quarto da dona Noémia! Acharam alguma piada na malícia do

pensamento, porém não tentaram descobrir a verdade: esse recanto tão íntimo do ser que

raras vezes se desvenda. Bia tinha sede. Resolveu sair do quarto para ir beber um copo

de água na máquina comum da pensão. Quando regressou, trazia um sorriso desenhado

no seu rosto, um daqueles sorrisos que quer estourar num tropel de palavras. O que é

que te aconteceu? Nem imaginas... Anda diz lá! Nem sei se te devo contar. Deixa-te

disso, diz lá! Vi o senhor do fato azul a sair do quarto da dona Noémia! Zé Maria

espantou-se com o insólito da situação. Mas ela está de luto... Espera. Ainda vi uma

coisa mais incrível! O quê? Bia contraiu a face numa expressão de suspense, os olhos

arregalados como se tivessem desvendado algo incrível e nunca visto. Ele vinha

despenteado! Não tinha gel!

Passaram três dias na calma da Aldeia Termal.

Despediram-se pela manhã. O senhor ainda lá estava sentado na mesa sozinho,

com o cabelo empastado de gel. Noémia, filha, anda cá tomar o pequeno-almoço

comigo! Estou a atender clientes!, resmungou dona Noémia. Serve-te, se quiseres, se

9

Page 10: A Minha Casa

não quiseres, tenha um bom dia!, remata, arfando o peito sob o peso claustrofóbico da

camisa negra. Ele não ligou. E vocês, já vão? Temos de seguir o nosso caminho, vamos

para Utopia!, anunciou Zé Maria sorridente como a manhã. O senhor levantou-se

festivo: Venham cá esses ossos! Felicidades e boa viagem! Abraçou Zé Maria e Bia,

despedindo-se calorosamente.

O caminho, trilhado pelas montanhas em antigos carreiros calcorreados por gentes

desde tempos imemoráveis, tinha o encanto de ladear rios, ribeiros e lagos, onde os

namorados paravam para fotografar e se banhar. Seguiam as setas que o bom ancião

tinha deixado. No meio dos montes, onde a luz solar quase não tocava as tenras ervas

rasteiras, dependiam totalmente daquelas indicações. Sem elas, perdiam-se na certa, por

isso olhavam as árvores com toda a atenção, vendo nelas o mapa que não traziam.

A floresta era imensa, interminável e as indicações pintadas nas árvores

desvaneciam-se conforme a escuridão nocturna avançava. Num repente, deixaram de

ver as setas e caminharam desesperadamente perdidos até que Zé Maria sentenciou:

Espera! Temos de ter calma! Montamos nesta clareira a tenda e passamos cá a noite.

Bia parecia não muito confortável com a ideia, porém ele agarra no canivete e grava no

pinheiro gigante, que lhes estava defronte, um coração envolvendo os nomes “Bia” e

“Zé Maria”. Não te preocupes, ele protege-nos! Assim, sob a guarda do amor,

pernoitaram na floresta. Bia, de olhos muito abertos e grandes, ouvia os uivos distantes

dos lobos. O seu corpo breve, demasiado próximo do de Zé Maria, pois só tinham um

saco-cama, tocou o dele; então o rapaz envolve-a num abraço protector em que ela

adormece.

No dia seguinte, as pernas doíam. E tiveram de lutar muito até reencontrar o

caminho certo.

Utopia estava perto, eles sabiam-no devido à harmonia da paisagem. Passavam

por um pequeno carreiro, que fazia de ponte, carreiro que trilhava pelo meio de um

grande lago que circundava uma ilha. Utopia ficava nessa ilha, unida ao resto do mundo

apenas por três caminhos: a rua da Justiça, a rua da Igualdade e a rua do Amor. Eles

acercavam-se pela Igualdade; haviam cometido um erro qualquer no percurso, visto que

pretendiam entrar pela do Amor. Todavia, entre os companheiros deve existir igualdade,

por isso estavam satisfeitos e aceleraram o passo.

10

Page 11: A Minha Casa

Caminhavam, agora em companhia de vários peregrinos, que animavam as ruas

que desaguavam em pórticos graníticos imortais. No frontispício, esculpiam-se os

homens que participaram da construção daquela entrada. Ali viam-se os engenheiros,

além os arquitectos, os políticos, acolá os mestres e os pedreiros... Todas as figuras

estavam desenhadas com os seus traços individuais, ocupando, todas, a mesma

dimensão. À entrada havia músicos melodiando um teatro que decorria, pelas ruas

espalhavam-se pintores, desenhando o que estava por dentro daquilo que viam; numa

praça, as crianças ouviam os professores que lhes ensinavam o saber depois dos livros, o

saber dos homens, que, ao lado, os poetas diziam. Por cima dos arcos que circundavam

a praça escrevia-se: “Todo e cada homem nasce igual. Todo e cada homem é igual em

face da Justiça. Todo e cada homem é igual em face da possibilidade. Todo e cada

homem é igual na diferença que o faz existir.” E era isso que pintavam os pintores, que

ensinavam os professores, que diziam os poetas, que, ao centro, aperfeiçoavam os

políticos e que as pessoas que ouviam sabiam. Era a Praça da Igualdade, onde também

havia gente que vendia, contudo perfumando os produtos com o sabor do equilíbrio.

Bia interessava-se pelos cachecóis, enquanto Zé Maria se espantava com o

ambiente que os envolvia. Ela punha e tirava cachecóis numa dança sensual que

enfatizava com sorrisos cúmplices com o vendedor discreto e paciente. Decidiu por fim.

Porém, quando pagava, apercebeu-se que não tinha a carteira. Zé Maria logo procurou a

dele para resolver a situação constrangedora, contudo também a sua havia desaparecido.

Sobressaltados, reviraram as suas malas, desfizeram a tenda, esmiuçaram o saco-cama...

nada! Peço-lhe imensa desculpa! Mas não vou poder comprar o cachecol. Perdemos o

nosso dinheiro. Não, não perderam, Bia. Foi o homem do cabelo untado, mascarado de

fato, que vos roubou. Foi naquele abraço. Vocês não reparam, são demasiado jovens

para saber que um abraço pode não ser amor.

Bia desesperava, chorava, juntando uma multidão em volta deles. Calma, miúda,

tudo se há-de arranjar., ouvia-se, Podem ficar em minha casa..., frases soltas sem rosto,

Querem comer?, vozes de uma Igualdade que tarda em chegar, Venham comigo! Era o

homem da Pensão, o seu cabelo lustroso reflectia os oblíquos raios solares invernis.

Não, replicou Bia, temos de ir embora. Para ela não fazia sentido viver dos favores dos

outros. De quê que precisam? Zé Maria responde: Já não temos comida para o

regresso. De pronto, o senhor compra umas sandes e água para que pudessem voltar

11

Page 12: A Minha Casa

para a vila. Muito obrigada, não sei como pudemos ser tão distraídos! Muito obrigado,

senhor! E saíram de Utopia. Saíram sem terem compreendido a cidade, sem perceberem

que são os homens que enganam os homens e não permitem que a utopia exista.

Voltam... Zé Maria volta, agora sozinho, deixando o corpo de Bia repousar na

campa simples; volta para casa, onde já ninguém habita, apenas a sua mãe que espera o

impossível, olhando pela janela do tempo.

Em frente à sua casa havia um parque infantil. Era um pequeno parque com

baloiços, escorrega e um carrossel. Estava abandonado. Sobre a areia cresciam ervas

daninhas que invadiam o podre das madeiras. Zé Maria ainda lembrava os tempos em

que havia vida naquele parque. Nessa altura, parecia enorme, enorme como parece a

vida. Na sua infância brincava ali com os seus irmãos e amigos. Era o irmão mais novo

dos três filhos que os seus pais haviam criado. Anda para aqui!, chama a irmã, montada

no baloiço: era necessário o seu peso e o dele para equilibrar o do irmão mais velho.

Relembra. O seu ídolo, o irmão mais velho, a lançá-lo ao ar como uma pluma e depois,

juntos, caíam sobre a areia macia, trazida do mar. Anda para aqui!, chama a irmã. Era

uma adolescente plena, bela como a juventude. Já vou!, gritava Zé Maria, levantando-

se, cuspindo ainda a areia que o irmão lhe oferecera. Já vou, para onde foste? O baloiço

oscila ao vento, morto como a esperança do regresso.

Em frente à sua casa havia um parque infantil. Os cavalos do carrossel estavam

gastos e descoloridos. Houve um tempo... relembra... em que o irmão galopava com ele.

O pai fizera-lhes espadas e escudos de madeira, mas eles não lutavam. Montavam no

cavalo. No mais alto cavalo do carrossel. Era o mais veloz e sabido, o mais duro e

corajoso. Montavam no cavalo. O irmão colocava-o à sua frente e erguiam ambos as

espadas, gritando: Liberdade para todos os homens! E lutavam contra os tiranos que

governavam no castelo; lutavam contra os deuses que tomam a vida das pessoas nas

suas mãos, tomando, por elas decisões, mostrando-lhes depois o quão melhor para elas

próprias é obedecer-lhes cegamente. Zé Maria lutava, comandado pelo irmão que, por

trás dele, segurava firme a sua espada. Lutavam em conjunto contra os senhores que

matavam. O cavalo galopava pelas colinas, saltava os muros do castelo, esgueirando-se

às flechas violentas que vinham das ameias. Invadiram a torre de menagem, onde

estavam protegidos os governantes. Havia gentes que se punham em frente a eles, dando

a sua própria vida, como se a deles fosse mais importante do que a sua. Protegidos pelos

12

Page 13: A Minha Casa

escudos, avançaram. Costas com costas, como exímios espadachins, derrubavam um a

um os defensores da tirania. Todavia, a muralha que suportava Zé Maria cede. O irmão

estatela-se no chão e Zé Maria perde o seu escudo, caindo.

Ele regressa a casa, onde a madeira do cavalo apodrece como a liberdade que o

homem nunca terá. A liberdade de escolhermos as pessoas com quem viajamos. A

liberdade de construirmos o destino. A liberdade que nem na Cidade da Utopia existia...

Zé Maria regressa a casa. A sua mãe esperava-o no vazio do seu quarto, que o pai

tinha abandonado. Ela esperava-o junto à janela do tempo. Olhava uma fotografia. Zé

Maria volta para casa. Entra em silêncio. A mãe já há muito tinha descuidado a limpeza.

A casa envelhecia e morria com ela, como se fossem uma só. Sobe as escadas que

davam para os quartos. As suas portas estavam escancaradas e ele pôde ver o quarto que

habitara durante anos. A sua cama no chão a ser devorada pelos insectos, a servir de

morada aos ratos. A sua cama, onde amei pela primeira vez, Bia.

Foi no Verão. Eles iriam acampar para aquela praia paradisíaca, onde a montanha

desmaiava no mar, despindo rochas da cor da origem. Bia vinha a casa de Zé Maria,

vinha buscá-lo, muito embora preferisse que fosse ele a cumprir essa tarefa. Trazia um

decote, exibindo a perfeição da curva dos seus seios rijos, e uma minissaia leve como a

sensualidade. Olá, já estás preparado? Não. Anda ali ao meu quarto ajudar-me! Zé

Maria era um incompetente; nunca sabia que roupa seria necessário levar. Bia não se

importava, ela até gostava deste papel de mãe, representando-o com o amor de mulher.

Foram para o quarto, onde ele rompe beijando-a, desde o pescoço até às faces. Sem

querer, escorregam e caiem para a cama. Zé Maria, por cima, agarra com força as coxas

de Bia e desliza devagar. Ela puxa-lhe o cabelo demasiado raro para a idade, desaperta-

lhe a camisa e beija-lhe o peito. Zé Maria, não se contendo, sobe as mãos pela anca

dela, desvendando a pele branca e o soutien. Excessivamente, trazendo-a para dentro de

si, beija-lhe a boca. Amo-te! E as palavras eram curtas, por isso, tirou-lhe o soutien. São

para ti!, oferece. Eram cheios e erguidos os seios de Bia. Um milagre de beleza, um

cantinho de repouso do beijo mais profundo que Zé Maria conseguira. Estava calor. Os

corpos suavam, mas eles aproximavam-se cada vez mais, indecisos, incertos,

penetrando os terrenos desconhecidos do amor. A janela aberta deixava entrar a brisa

quente que trazia algumas folhas secas. Bia colhe uma que parara em cima da cama e

coloca-a sobre o bico do seio: Guarda bem esta folha: ela é o símbolo do amor que se

13

Page 14: A Minha Casa

torna mais forte, quando é alimentado com amor. Ele recupera-a devagar, brincando no

corpo dela e guardou-a no cofre que estava sobre a cómoda.

Abraçam-se como se, de alguma maneira, algum deles pudesse fugir. Ela tira a

saia e ele as calças. Olharam-se. Nos seus olhos traziam sorrisos e promessas de

felicidade eterna. Amaram-se. Amaram-se sem exigências. Amaram-se entregando-se,

mostrando ao parceiro os seus lugares mais íntimos sem medo. E navegaram mais

longe, mais fundo, até lá, onde só chega quem não tem receio de amar. Descobriram

todos os lugares que estavam escondidos nos mitos, desvendaram-nos como timoneiros

da nau do amor. E naufragaram, por fim, nos braços um do outro e ela disse baixinho,

no seu ouvido, enquanto o trincava: Amo-te!

Sobre a cómoda, ainda lá estava o velho cofre. Zé Maria abre-o. Dentro do diário

que manteve durante anos, embora com interrupções, ainda lá estava a folha seca,

eternizando o amor entre os homens, anunciando o regresso ao intenso íntimo de que

fazemos parte. Porque te foste embora, amor? E chorou. Chorou desenfreadamente

sobre o retrato daquela folha. Filho, és tu, filho, que estás aí? Zé Maria tentou

recompor-se: Sim, sou eu, mãe. Já vou ter contigo!

A mãe estava sentada na cadeira que o avô tinha feito. O avô era um carpinteiro

muito reconhecido na comunidade local. As gentes daquela época iam falar com ele

para descobrirem nas palavras que lhes dizia a direcção da vida. E era assim que ele

vivia, carpintando a vida. Quando ofereceu a cadeira à mãe, sentenciou: Toma! Esta

cadeira é para ti! Ela simboliza tudo o que te amo. Depois ama o teu filho. E ele que

ame o seu! E depois pôde partir, após ter dito as palavras essenciais, pôde partir.

Todavia, Zé Maria não pode amar o filho que não teve, apesar de o ter amado antes de

ter nascido. Zé Maria quase não se lembrava do avô. Era um velho, muito velho, bem no

princípio da sua infância, mas sabia o valor das suas palavras. Ainda hoje as pessoas que

iam àquela casa sabiam que era o amor que o avô tinha ensinado que servia de modelo.

Zé Maria dirigiu-se para o quarto da mãe, onde ela estava sentada junto à janela,

olhando uma fotografia. Era a fotografia da casa antes de estar construída. Era uma

fotografia da vida da mãe antes das possibilidades estarem esgotadas. Uma fotografia do

princípio, onde todos os caminhos são adornados com todas as pessoas, onde todos os

caminhos são estradas seguras que conduzem ao sorriso. Uma fotografia velha e salgada

das lágrimas derramadas. Com as lágrimas nos olhos, ele diz: Boa tarde, mãe!,

14

Page 15: A Minha Casa

beijando-lhe a face. Descansa a tua cabeça aqui, querido! Zé Maria pousa a cabeça no

colo da mãe, que lhe afaga a ausência de cabelo, e deixam cair a folha e a fotografia. A

brisa tépida de final de Verão levanta-as e leva-as para o firmamento, onde enfim tudo o

que amaram pode repousar.

15