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A METAFÍSICA PLATÔNICA COMO ORIGEM DO CRISTIANISMO Para Platão, a alma, o elemento racional que se achava encarcerado no corpo, só atingiria o mundo real após a morte: “[...] enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade” (Platão, 2004, p. 127). Portanto, para o grego, aqui neste mundo ilusório da matéria não nos relacionamos com as “coisas” verdadeiras, só com as às sombras. Daí, a constatação funesta: “... é impossível conhecer alguma coisa pura, enquanto temos corpo [...]” (Platão, 2004, p. 128). Enfim, só seremos livres "além do corpo" e, enquanto estivermos neste mundo material, temos que negar nossa corporeidade para afirmar a alma. Isto é dito da seguinte maneira: Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da verdade a não ser afastando-se do corpo e tendo relação com ele apenas o estritamente necessário, sem deixar que nos atinja com as suas imundices [...] (Platão, 2004, p.128). Interessantemente, em nome de uma alma imortal, aparentemente tendo como objetivo real uma vontade de duração ou, de permanência da identidade, o homem aprendeu a cultivar invertidamente uma vontade de negação. Em outras palavras, o homem trocou a vida por uma “metáfora” e, fazendo isso, começou a cultuar a própria morte. É por isso que Platão explicou: “[...] os verdadeiros filósofos trabalham com o objetivo de se preparar para a morte e esta não lhes afigura horrível” (Platão, 2004, p.129). Somente um terrível desprezo e ódio contra vida é capaz de criar uma metafísica que em tudo nega o homem real. Diferente de Nietzsche, que concebia o corpo, como o resultado unitário e temporário de uma constante mutação, Platão transcende, pelo menos imaginativamente, o desconforto da mutabilidade fisiológica e, no âmbito desta pretensa superação imaginativa, supervalorizou uma ilusória unidade transcendental chamada “alma”. Evidentemente, a mesma nada mais era que a promessa sedutora de uma “eterna imobilidade”. Os conceitos que servem como base de sustentação da metafísica socrático-platônica se opõem visceralmente à vida, estrutura-se como uma metafísica da negação da "carnalidade". Essa aviltante tese acaba por se configurar

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A METAFÍSICA PLATÔNICA COMO ORIGEM DO CRISTIANISMOPara Platão, a alma, o elemento racional que se achava encarcerado no corpo, só atingiria o mundo real após a morte: “[...] enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade” (Platão, 2004, p. 127).Portanto, para o grego, aqui neste mundo ilusório da matéria não nos relacionamos com as “coisas” verdadeiras, só com as às sombras. Daí, a constatação funesta: “... é impossível conhecer alguma coisa pura, enquanto temos corpo [...]” (Platão, 2004, p. 128). Enfim, só seremos livres "além do corpo" e, enquanto estivermos neste mundo material, temos que negar nossa corporeidade para afirmar a alma. Isto é dito da seguinte maneira:

Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da verdade a não ser afastando-se do corpo e tendo relação com ele apenas o estritamente necessário, sem deixar que nos atinja com as suas imundices [...] (Platão, 2004, p.128).

Interessantemente, em nome de uma alma imortal, aparentemente tendo como objetivo real uma vontade de duração ou, de permanência da identidade, o homem aprendeu a cultivar invertidamente uma vontade de negação. Em outras palavras, o homem trocou a vida por uma “metáfora” e, fazendo isso, começou a cultuar a própria morte. É por isso que Platão explicou: “[...] os verdadeiros filósofos trabalham com o objetivo de se preparar para a morte e esta não lhes afigura horrível” (Platão, 2004, p.129).Somente um terrível desprezo e ódio contra vida é capaz de criar uma metafísica que em tudo nega o homem real. Diferente de Nietzsche, que concebia o corpo, como o resultado unitário e temporário de uma constante mutação, Platão transcende, pelo menos imaginativamente, o desconforto da mutabilidade fisiológica e, no âmbito desta pretensa superação imaginativa, supervalorizou uma ilusória unidade transcendental chamada “alma”. Evidentemente, a mesma nada mais era que a promessa sedutora de uma “eterna imobilidade”.Os conceitos que servem como base de sustentação da metafísica socrático-platônica se opõem visceralmente à vida, estrutura-se como uma metafísica da negação da "carnalidade". Essa aviltante tese acaba por se configurar como uma espécie de “prenúncio do evangelho” e, segundo o viés nietzschiano, foi exatamente esta estrutura teorética, que parte da negação do corpo, que embasou intelectualmente o cristianismo em sua origem.Semelhante ao Platonismo, o Cristianismo abriga em seu núcleo certo rancor contra a vida. Para Nietzsche, as lógicas do ressentimento e do desdém, em relação a tudo que é mundano e, portando efêmero, são os pilares ocultos de toda edificação cristã. Ainda hoje, depois de mais de dois mil anos da morte do carpinteiro, praticamente todos seus "seguidores" repetem o "catecismo" do desprezo pelo corpo, enaltecendo a "alma" como a verdadeira essência do homem. Na interpretação nietzschiana, o ódio cristão pela vida efetiva era apenas um sintoma da covardia sacralizada como "espírito", um indício do declínio mascarado por detrás de sonoros "nomes sagrados". Portanto, o filósofo alemão viu no Deus dos cristãos a pura personificação da atrofia e da degeneração instintual, seu ponto de vista era que: “O conceito cristão de Deus - Deus como Deus dos doentes, [...] Deus como espírito – é um dos mais corruptos conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra [...]” (Nietzsche, 2007, p.23). Para ele, a ideia cristã sobre Deus era sinteticamente a própria representação do estado doentio dos cristãos:

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Onde, de alguma forma, declina a vontade de poder, há sempre um retrocesso fisiológico também, uma décadence. A divindade da décadence, mutilada em seus impulsos e virtudes mais viris, torna-se por necessidade o Deus do fisiologicamente regredidos, dos fracos. [...] Quando os pressupostos de uma vida ascendente, quando força, bravura, soberania, orgulho são retirados do conceito de Deus, quando passo a passo ele decai a símbolo de um bastão para cansados, de uma âncora de salvação para todos os que se afogam, quando se torna Deus-de-gente-pobre, Deus-de-pecadores, Deus-de-doentes par excellence [por excelência] [...] Talvez represente o nadir da evolução descendente dos tipos divinos. Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! (Nietzsche, 2007, pp. 22-23).

A racionalidade desencarnada nascida com Sócrates, sistematizada por Platão e popularizada pelo Cristianismo, na interpretação de Nietzsche, representou sempre um sinal de doença e, em sentido mais profundo, como foi este arcabouço ético-religioso a base de nosso projeto civilizatório, o filósofo da transvaloração acreditava que mesmo depois da “morte de Deus”(a desvalorização dos valores ocidentais supremos), muito dos nossos valores racionais continuam a ocultar os “restos mortais” do Deus Cristão. São os restos deste defunto que ainda se apresentam fantasmaticamente nos porões de nossa insistente e ingênua "vontade de verdade". Prof. Marcos de Oliveira / Leia o livro AUTÓPSIA DO SAGRADO -- Compre online ou fisicamente na Livraria Martins Fontes.