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ALEXANDRE HENRIQUE DOS REIS
A METAFÍSICA DE DIONISO
aspectos de uma dialética trágica
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte
Orientadora: Professora Doutora Virginia de Araujo Figueiredo
Belo Horizonte
2003
1
Reis, Alexandre H.A metafísica de Dioniso , aspectos de uma dialética trágica. Belo Horizonte: UFMG – FAFICH, 2003,163 folhas.
Dissertação (Mestrado) UFMG.FAFICH
1-Nietzsche; 2-Filologia; 3-Filosofia Alemã; 4-Sublime; 5-Tragédia; 6-Dialética; I-Título.
2
Para Nelson (1975-1994), meu irmão, in memoriam,
que se arriscaria pelas sendas duvidosas da filosofia e da teologia.
3
Agradecimentos
O trabalho filosófico, a elaboração do pensamento, constitui-se de alguma forma
num isolamento espiritual. Ao menos inicialmente. É preciso retirar-se para num segundo
momento mostrar-se. É esse e não outro o momento que antecede o debate. Meus
agradecimentos devem se voltar, nesse sentido, a todos os meus amigos e familiares , que
compreenderam, assim espero, essa minha ausência incorrigível. Devo agradecer à casa de
minha mãe, a Sra. Maria Peres, que guarda em Patrocínio/MG o conforto do descanso.
E de um modo muito especial deixo aqui meus agradecimentos:
À Priscilla Simões, que me ajudou a construir uma tranqüilidade no coração que
reflete, ato contínuo, uma serenidade perante a vida;
À prof.ª Virginia pela orientação e pela afinidade com o gosto pelo trágico; à prof.ª
Iracema Macedo, pela abertura ao debate e pelas dicas; à Leida Reis, pela correção de meu
texto, pelo acolhimento e pela conditio sine qua non. Ao Ricardo Camêlo e ao Fabrício
Soares pelo nosso empenho no projeto “Germania”, cujos estudos sobre Nietzsche têm se
realizado e se tornado mais agradáveis; ao Levindo pelo compêndio da obra wagneriana e
pela amizade inestimável; ao Bira, amigo e poeta, pelas conversas sempre proveitosas.
A todos meus amigos que se deixaram seduzir pelas musas da filosofia. Pois,
lembrando Nelson Rodrigues, “o amigo é o grande acontecimento.” Lembro aqui, portanto,
Ângelo Rolla, Jean Américo, Pedro A. C. Teixeira, Luis Cláudio da Cruz, Flávia
Benevenuto, Elson Pimentel, José Costa, Marcelo Luiz, Marcelo Sevaybricker, Jaime
França Jr., Henrique Segal, Júlio Marques, Wantuil, Amarildo. De modo especial, à Isabela
e à Gabriela, com carinho. Aos professores que me deram as lições do pensamento e,
enfim, à FAPEMIG, pela concessão da bolsa de mestrado.
4
Próximo está
E difícil de compreender é o Deus.
Hölderlin
5
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................. 8
ABSTRACT......................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO
I................................................................................................................. 10
II................................................................................................................ 13
III.............................................................................................................. 16
IV.............................................................................................................. 22
CAPÍTULO I
Nietzsche como filósofo
§. 1 – Os Limites da Filologia......................................................................... 27
§. 2 – O Contato com o Pessimismo............................................................... 30
§. 3 – O Caso Wilamowitz-Möllendorf.......................................................... 35
§. 4 – A Filosofia para além da Filologia....................................................... 39
§. 5 – Jacob Burckhardt e a Renovação da Grécia......................................... 41
§. 6 – Dioniso como Origem e como Fim...................................................... 43
CAPÍTULO II
Nietzsche e a interpretação do silêncio
§. 1 – Linguagem e Transcendência................................................................ 47
§. 2 – A Sabedoria Popular e a Representação da Divindade.......................... 50
§. 3 – A Natureza da Tragédia......................................................................... 55
6
§. 4 – O Silêncio da Tragédia… ou a Tragédia do Silêncio............................. 62
§. 5 – A Música como Objeto da Filosofia...................................................... 68
CAPÍTULO III
As bases da metafísica de Dioniso
§. 1 – Colocação do Problema........................................................................ 75
§. 2 – O Ponto de Partida de Schopenhauer................................................... 78
§. 3 – O Buda de Frankfurt em Visita ao Solitário de Königsberg................. 83
§. 4 – O Paradoxo da Subjetividade: o mundo é minha representação........... 86
§. 5 – Os Sentimentos do Belo e do Sublime: a arte como propedêutica
do conhecimento.................................................................................. 91
§. 6 – A Experiência do Sublime na Tragédia, ou a Representação do
Irrepresentável..................................................................................... 96
CAPÍTULO IV
Da dialética trágica
§. 1 – O Sócrates de Nietzsche: Advertência Preliminar................................ 104
§. 2 – Kant e a Possibilidade de uma Filosofia Trágica.................................. 115
§. 3 – O Dionisíaco e a Necessidade da Aparência......................................... 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 140
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 154
7
RESUMO
O presente trabalho parte de um pressuposto: Kant, Schopenhauer e Nietzsche
constituem um momento de crise do conceito de razão na modernidade. Kant assinala a
crise e demonstra os limites do conhecimento humano: a coisa em si é aquilo que não se
pode conhecer. Schopenhauer procura na vontade, entendida como essência do mundo, uma
compreensão da totalidade e acredita que, por meio do sentimento do sublime, seja possível
uma experiência estética desinteressada do próprio mundo. Nietzsche, por sua vez,
desenvolverá, em O nascimento da tragédia, uma metafísica voltada para a arte, uma
tentativa de compreender o teatro grego e o problema do trágico como totalidade. O
conhecimento científico é impotente e carece de forças perante as musas da tragédia. A
experiência estética, ao contrário, é capaz de se voltar para aquilo que escapa à ciência: a
questão mais fundamental que procura afirmar a vida e a existência, eis a metafísica
nietzscheana de Dioniso que, ao contrário de uma negação da vontade de vida, volta-se
dialeticamente para a aparência, para a ilusão apolínea da arte, ao preservar o fundo
essencial do dionisíaco. Nietzsche, o objeto do presente estudo, ficará frente a frente com
seu mestre Schopenhauer: e veremos que dois caminhos bastante díspares resultam desse
momento crítico da razão moderna: a filosofia kantiana.
8
ABSTRACT
This study is based on the following hypothesis: Kant, Schopenhauer and
Nietzsche constitute a crisis point in the modern concept of reason. Kant brings the crisis
to light and presents the limits of human knowledge: the thing itself is that which cannot
be known. Schopenhauer seeks in will, understood as the essence of the world, a
comprehension of totality; and believes that through the feeling of the sublime, an
aesthetic experience detached of one’s own world is possible. Nietzsche develops, in The
Birth of Tragedy, metaphysics towards art, an attempt to understand the Greek theatre
and the tragic issue as a totality. Scientific knowledge is impotent and lacks strength
against the muses of tragedy. The aesthetic experience, on the other hand, is capable of
focusing on what escapes from science: the most fundamental matter that tries to affirm
life and existence, Dioniso´s Nietzschian metaphysics which, contrary to being a denial
of life will, turns itself dialectically to appearance, to the Apollonian illusion of art, as it
preserves its essencial Dionisian core. Nietzsche, the subject of this study, finally faces
his master Schopenhauer, and we see that two quite distinct paths result from this critical
moment in modern reason: Kant’s philosophy.
INTRODUÇÃO
9
I
A análise da obra de Friedrich Nietzsche (1844-1900), sobretudo a análise do livro
que marca o início de sua carreira filosófica, O nascimento da tragédia, ou helenismo e
pessimismo (Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus), não é tarefa
que demanda pouco tempo. Desde logo, por esse motivo, desafio de tal envergadura, não
parecia nada fácil me lançar nesses mares turbulentos. Ao fim, contudo, essa obra revelou-
se bem mais embaraçosa do que antevia, quiçá uma obra inesgotável, em sentido pleno,
nascida das preocupações de seu jovem autor sobre temas como a cultura, a Alemanha do
século XIX, a arte e a filosofia, a filologia, o teatro antigo, o conhecimento e a música.
Devo reconhecer agora que todo o meu trabalho, devido à pouca experiência, apresenta-se
inelutável diante das lacunas e das irrestritas imperfeições deixadas nessas páginas que se
seguem , mas espero, com força e veemência, que essa minha dissertação tenha
conseguido levantar algumas questões de relevância para a leitura da primeira obra desse
filósofo tão caro à nossa época e que, como poucos, soube compreender bem o seu tempo.
Esse livro, cujo título originalmente lia-se O nascimento da tragédia a partir do
espírito da música, foi escrito nos últimos meses de 1871 e publicado em janeiro do ano
seguinte. Mas, na verdade, seus principais problemas foram pensados, e os primeiros
esboços foram feitos, quando o seu autor se encontrava em meio à guerra franco-prussiana
(1870), em meio “aos estrondos da batalha de Wörth, (…) diante dos muros de Metz”,
como lembraria anos mais tarde o filósofo em sua autobiografia.1 Entre doentes e feridos de
guerra, os quais se encontravam sob os seus cuidados de enfermeiro, em noites frias de
setembro, Nietzsche mantinha seu pensamento entretido entre a cultura grega e a cultura 1 NIETZSCHE, Ecce Homo, pág. 61.
10
alemã contemporânea, e é por isso que ele mesmo definirá seu livro como extemporâneo.2
Foi, portanto, durante os horrores da guerra que o filósofo formulara seus pensamentos
sobre estética, ou, antes, sobre a ciência vista com olhos de artista,3 de modo semelhante
ao que fará mais tarde Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que escreveu seu Tractatus
Logico-Philosophicus sob a forte chuva bélica dos campos de batalha da Primeira Guerra
Mundial.
Em suas reflexões sobre a cultura grega, bem como em seus cursos de filologia
clássica na Universidade da Basiléia, situada na Suíça, Nietzsche volta-se para o teatro
trágico dos helenos. Mas esse retorno ao teatro antigo não se dá à maneira do filólogo
ortodoxo: este concentra todas as suas forças em busca de um exame rigoroso dos
documentos que se salvaram pela história. Ao contrário, o filósofo procura limpar as
poeiras que encobrem os mistérios das musas trágicas: é a música o principal elemento, o
principal efeito das peças dos tragediógrafos antigos.
Uma questão deve impacientar todo aquele que se deixa admirar pelas belíssimas
tragédias do teatro grego. Mais ainda: deve tirar o sono dos estudiosos e deixar estupefatos
aqueles que se aproximam da poesia grega, como se essa fosse apenas a expressão de seus
poetas posta no “papel”. Sim, porque é tão-somente por meio de documentos escritos,
muitas vezes fragmentados, que nos aproximamos da cultura da Grécia clássica. Eis aqui o
grande problema: as obras de Ésquilo (525-456 a.C.), de Sófocles (496-406 a.C.), de
Eurípides (485/484-406 a.C.), as suas peças que nos restaram, são, não o teatro trágico, mas
apenas a ruína daquele grande palco de Dioniso. São ruínas as palavras de uma língua que
já não é falada por mais ninguém, e apesar de todos os esforços de nossos filólogos, de
nossos eruditos e estudiosos, a oralidade, ou antes, a musicalidade daqueles versos da
2 NIETZSCHE, id. 3 Cf. “Tentativa de Autocrítica”, § 2, publicada como prefácio à segunda edição de O nascimento da tragédia.
11
poesia antiga, está completamente perdida. As músicas e as danças apenas podem ganhar
vida, uma pálida vida, tal qual espectro em nossa imaginação, quando nos aproximamos e
tentamos encontrá-las nos ritmos. Quando se tenta representar uma peça do teatro antigo,
opera-se por meio da fala, da recitação daqueles versos, como se o teatro grego fosse, desde
já, a sombra de um corpo perdido que se assemelhasse a nosso teatro prosaico; como se as
peças daqueles grandes dramaturgos fossem escritas unicamente para serem lidas e
interpretadas. E é sempre assim: o teatro grego se encobre da vestimenta do mundo que o
representa; veste a moda de cada tempo que dele se apropria. A música, em sua
indumentária original, foi completamente corroída pelas traças do tempo.
O nascimento da tragédia é uma tentativa de resgatar esses elementos perdidos, não
por meio de uma análise pormenorizada dos documentos, e sim através de uma
interpretação filosófica decididamente inventiva, servindo-se, para tal inventividade, dos
elementos da modernidade: a revolução kantiana na filosofia; a interpretação
schopenhaueriana dos elementos estéticos de Immanuel Kant (1724-1804); a leitura de
Jacob Burckhardt (1818-1897) do mundo grego; a música e as idéias de Richard Wagner
(1813-1883). A tarefa que se apresenta aqui, nessa leitura da obra nietzscheana, dispensará,
infelizmente, uma compreensão da influência da música e das teorias wagnerianas em O
nascimento da tragédia, embora reconheça a sua relevância incontestável. A ausência de
Wagner em nosso texto resultará, obviamente, numa incompletude, mas, decerto, numa
incompletude deliberada. É que o objeto a ser examinado na presente dissertação é outro,
como deverá ficar claro, assim espero, ao longo de sua leitura. Não há, de modo algum, a
pretensão de esgotá-lo, mas, antes, de levantar algumas hipóteses acerca das relações entre
a tragédia e o sublime, trazendo à superfície, como suspeita, uma tensão dialética entre as
noções do dionisíaco e do apolíneo, tal como essas noções aparecem no pensamento de
12
Nietzsche sobre o surgimento da teatro grego. É como conjectura, vale reiterar, que se
estabelece aqui, apesar de toda a crítica explícita do filósofo à dialética socrática, uma
tensão dialética entre esses elementos primordiais do teatro antigo, tensão essa que receberá
o nome, no presente texto justamente para se diferenciar daquela de dialética
trágica.4
II
Ao que tudo indica, existe uma certa tendência no cenário nacional que perpassa a
escolha de um objeto de estudo dentro do corpo da obra de Nietzsche. O último período do
pensamento do filósofo, o chamado período de maturidade, é, na maioria das vezes,
privilegiado pelos nossos estudiosos. É aceitável que obras como A genealogia da moral e
Além do bem e do mal assumam a dianteira das pesquisas realizadas no Brasil. De fato, as
obras a seu respeito, escritas e publicadas em nosso país, tendem a esse privilégio; por
outro lado, o período de juventude permanece ainda pouco estudado. A análise das questões
que giram em torno do aparecimento de O nascimento da tragédia, certas polêmicas
suscitadas no meio acadêmico (veja-se as críticas de Wilamowitz-Möllendorf), não têm
merecido, através dos tempos, o favor e a atenção da maioria de nossos críticos. O
recebimento que o livro de Nietzsche teve, à sua época na Academia, inteiramente
negativo, auxilia, por exemplo, no esclarecimento dos propósitos do autor. Desde logo, o
livro de Nietzsche foi atacado por Wilamowitz devido ao fato de esse filólogo não ter
encontrado ali uma leitura científica da Antigüidade. A ausência de elementos que
possibilitassem tal leitura consternou, de modo intenso, o mestre de Nietzsche, Ritschl
4 O termo “dialética trágica”, devo deixar claro ao leitor, não aparece no texto de Nietzsche, sendo o seu uso inteiramente de minha responsabilidade.
13
(1806-1876), que esperava um tratado filológico e quando recebeu de Nietzsche um
exemplar de O nascimento da tragédia, não podendo encontrar ali uma análise
rigorosamente metodológica do problema do nascimento do teatro entre os gregos, não lhe
restou senão exclamar: “Uma bobagem espirituosa”.5
Se apartarmos agora a ausência quase completa de estudos sobre as relações de
Nietzsche com a filologia, no contexto nacional, atendo-nos a questões mais relevantes, não
nos livraremos de tal desconforto. Questões de interesse indubitável para uma compreensão
maior do pensamento de Nietzsche, a relação de seu pensamento com a música e tratados
de Wagner e com a filosofia de Schopenhauer (1788-1860), também são pobremente
estudadas no Brasil, salvo algumas poucas exceções.6 O filósofo, geralmente analfabeto em
música, ouve-a apenas com os ouvidos, quando os possui, enquanto o músico passeia nos
campos da filosofia alegre e livremente, mas sem o devido rigor que essa exige. Isso tem
constituído um grande empecilho para separar o que é de Nietzsche e o que é de Wagner.
É evidente que a aproximação de Nietzsche do teatro grego se dá através de uma
visão metafísica, uma vez que aquela totalidade que reunia em si mesma, ator ou atores, a
entrada de um coro de sátiros (párodos), os episódios nos quais havia certos entrecortes e
intervenções por parte do coro (estásimos) e que se findava com a saída do coro (êxodos),7
aquebrantou-se por completo, espatifando-se em migalhas que representam a sua inteira
destruição. Somente o pensamento é capaz de juntar os cacos, não à maneira de um
mosaico, mas é capaz de se aproximar daquela obra de arte pela totalidade inquebrantável
de uma visão que não se filia unicamente à história ou aos fragmentos empíricos da
história. É preciso que o exercício do pensar compreenda aquela sublime arte grega como
5 RITSCHL, apud SAFRANSKI, Nietzsche, biografia de uma tragédia, pág. 73.6 A relação Nietzsche/Schopenhauer é estudada, com competência, por Rosa M. Dias e José Thomaz Brum.7 Sobre a divisão e as partes que constituem a tragédia grega, ver ARISTÓTELES, Poética, XII.
14
algo que ainda vive: algo que morreu com a história, mas que pode reviver por meio de
uma compreensão filosófica da história.
Essa visão metafísica, ou antes, essa metafísica de artista anunciada por Nietzsche,
talvez justifique a recusa que esse livro tem suscitado entre os filósofos. O próprio
Nietzsche se lançará mais tarde, em Humano, demasiado humano (1878) e nas obras que
compreendem a chamada fase madura,8 contra a metafísica. Notoriamente, são esses textos
que a atacam diretamente que ganham destaque nas teses e dissertações defendidas em
nossas instituições. Acredito que O nascimento da tragédia ainda não tenha recebido a sua
devida importância dentro do corpo da obra de Nietzsche: é preciso diferenciar esse livro de
juventude e, ao mesmo tempo, compreender suas influências para que se possa enxergar
nele o que possui de genuinamente filosófico e de próprio.
A investigação que ora se inicia pretende compreender a filosofia de Nietzsche
levando em conta o conteúdo do seu pensamento propriamente, mas sem desprezar o
aspecto formal de sua filosofia. Essa investigação não busca constituir, porém, uma forma
de expressão propriamente nietzscheana, mas entender as intuições filosóficas do pensador,
problematizando, em algum momento, embora não seja esse o nosso objetivo, a vestimenta
estilística. Por certo, o mais importante é o conteúdo de seu pensamento, mas, ao que tudo
indica, em muitos momentos esse exige para si uma forma de expressão não-conceitual,
não-sistemática, não-ortodoxa. A atividade reflexiva é propriamente filosófica e a sua
expressão não constitui a intuição mesma, estando submetida a ela de forma obediente. A
intuição filosófica deve procurar o melhor meio para se expressar.
8 As obras de Nietzsche geralmente são divididas em três fases, como, por exemplo, nos diz Bayer, em sua História da estética: “Podem-se distinguir fases de seu pensamento; um Saiter ou um Berthelot distinguem, de 1859 a cerca de 1876, um ‘pessimismo romântico’. De 1876 a 1881, um ‘positivismo céptico’ baseado na verdade. A partir de 1882, um período de reconstrução baseado na vida.” BAYER, Raymond pág.(s) 321 e 322. E ainda Eugen Fink, em sua famosa obra: “Depois do início romântico(…) depois da reação científico-desmestificadora (…) com Zaratustra começa o terceiro período, o período definitivo da filosofia de Nietzsche (…)” FINK, A filosofia de Nietzsche, pág. 65 .
15
III
Os contemporâneos de Nietzsche não o compreenderam. Mesmo a literatura
posterior apossou-se de seu estilo e encontrou ali aquilo o que os antigos gregos
denominavam de pharmakós: por um lado, os estudantes que se alistavam como voluntários
morriam com os versos de Nietzsche nos lábios já inchados, durante as batalhas da Primeira
Grande Guerra, além disso, chegaram a celebrá-lo como precursor do nudismo e de
revoluções alimentares , por outro lado, no entanto, a obra de Nietzsche não será vista
senão como “um campo de ruínas, coberto de destroços contraditórios.”9 É a expressão de
Karl Jaspers. Mal-entendidos como esses são demasiado comuns na primeira metade do
século que se seguiu à morte do filósofo.
De modo geral, a filosofia de Nietzsche se insurge contra as tentativas de se erguer
um conhecimento sistemático, abandonando, pois, qualquer possibilidade de sistema, seja
ele estético, metafísico ou moral. O recurso literário mais peculiar à obra nietzscheana,
quando a olhamos no seu conjunto, não é tanto o ensaio ou o fragmento, e sim o aforismo.
O fragmento foi muito usado pelos românticos como uma forma de se aventurar por outros
caminhos da literatura e ainda assim permanecer fiel ao edifício de bases sistemáticas. Ao
contrário disso, o aforismo é uma maneira radical de desprezar a construção do sistema na
filosofia, de converter os seus ensinamentos em figuras literárias da sutileza e da rapsódia.
Embora tenha sido usado freqüentemente pelos moralistas franceses,10 foi Schopenhauer11
quem canonizou o aforismo como forma estilística na filosofia, mais do que isso, o 9 JASPERS, K. apud CARPEAUX, O. M. “Nietzsche e as consequências”, in Ensaios Reunidos, pág. (s) 245-251. Para saber mais sobre esses mal-entendidos, veja-se esse ensaio.10 Cf. PASCAL, B. Pensamentos; Divertimento; LA ROCHEFOUCAULD, Reflexões morais; LA BRUYÈRE, Dos poderosos; Do coração; Das obras do espírito; Do homem.11 Cf. SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida.
16
aforismo é ele mesmo uma maneira de pensar, de combater a sistematicidade linear da
lógica expositiva tão presente nos sistemas filosóficos do século XIX.
Um tecido metafórico e poético reveste a letra de Nietzsche estendendo-se por seus
ensaios e aforismos. Nesses últimos, encerra-se a sua filosofia mais nos pressupostos
ocultos do que nas intenções declaradas.12 Daí segue-se a sua metáfora das faculdades
bovinas: ela nos aconselha a ruminar a sua filosofia.13 Tanto Nietzsche quanto
Schopenhauer compreendem a tarefa filosófica como estando muito próxima do trabalho do
artista: comunicam as suas idéias através de conceitos, mas sabem que esses são apenas
palavras que escondem uma torrente essencial por eles comunicada, do mesmo modo que o
artista lança mão do seu material para expor uma intenção mais íntima.
Nascido na Áustria, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), grande conhecedor de toda a
literatura ocidental, viveu e escreveu durante muitos anos em nosso país, naturalizando-se
brasileiro em 1944. Em sua História da literatura ocidental, volume VI, ele considerou que
a língua bárbara passou por três grandes transformações: primeiramente com Lutero que
modernizou e vivificou a língua com as suas traduções do Novo, em 1522, e do Velho
Testamento em 1534 , depois com os nomes de Goethe (1749-1832) e Schiller (1759-
1805), e finalmente com a obra de Nietzsche, que, para Carpeaux, revestiu com novo ar a
língua alemã. Carpeaux considera Nietzsche, ainda, como sendo “o criador do simbolismo
alemão”,14 destacando sempre o aspecto poético de sua obra, preferindo colocar o filósofo
ao lado de Platão (428 – 348 a.C.) e de Pascal (1623 – 1662), no que diz respeito à sua
forma de expressão. Ele parece ter razão em suas afirmações quanto ao simbolismo, já que
12 Com isso concorda Eugen Fink: “Evidentemente, em certo sentido, pode dizer-se de todas as filosofias que a sua formação literária não as torna simplesmente objectivas e acessíveis a toda gente, que existe uma particular relação de tensão entre a sua divulgação (…) e o pensamento filosófico. Mas a filosofia de Nietzsche (…) é dissimulada pelas máscaras, pelas diferentes figuras que ele assume.” Pág.(s) 14-15.13 Cf. NIETZSCHE, F. A genealogia da moral, “Prefácio”, §VIII. 14 CARPEAUX, O. M. História da literatura ocidental, volume VI, pág. 2734.
17
Nietzsche foi contemporâneo de Mallarmé e dos simbolistas que defendiam a l’art pour
l’art.
O nascimento da tragédia ocupa, dentro da obra literária nietzscheana, um lugar
especial: é talvez o mais belo livro de Nietzsche quanto à forma estilística, possuindo uma
peculiaridade que pertence à poesia sem, no entanto, sair do campo da filosofia, da filologia
e da teoria da música. O livro obedece, de maneira mais próxima, aquele ensinamento que
mais tarde Nietzsche daria a Lou Andreas-Salomé (1861-1937): “O tato do bom prosador
na escolha de seus meios consiste em chegar bem perto da poesia, mas nunca se transferir
para ela.”15
O cuidado com a letra instala-se, assim, desde o primeiro livro e com facilidade
pode-se verificar nas obras posteriores uma certa adequação entre o pensamento e os meios
pelos quais são apresentadas as intuições filosóficas. Isso parece ocorrer, por exemplo, em
Humano, demasiado humano, quando Nietzsche se posiciona, quiçá pela primeira vez,
contra a metafísica e a tendência sistemática da filosofia alemã, buscando inspiração nos
filósofos franceses e na forma aforística para expressar sua filosofia.
Sobre essa adequação entre o pensamento e a sua forma de apresentação, veja-se a
tese de Roberto Machado que, em Zaratustra, tragédia nietzschiana, defende, de maneira
clara, que o livro Assim falou Zaratustra pretende alcançar uma perfeita compatibilidade
entre pensamento e linguagem. Roberto Machado argumenta que tal compatibilidade não
está presente em O nascimento da tragédia, quando Nietzsche, mesmo pretendendo
posicionar-se ao lado da arte trágica, acabaria por lançar mão de uma linguagem filosófica
que permanece ainda presa à tradição, estando mais próxima daquele méthodos usado pelo
15 NIETZSCHE, apud ANDREAS-SALOME, in. Nietzsche em suas obras, pág. 141.
18
filósofo Sócrates (469 – 399 a.C.), na medida em que apresenta os seus ensinamentos de
modo científico e conceitual.16
Seja como for, seguiremos por outra via. A presente discussão limitar-se-á tão-
somente ao que se propôs fazer, não se lançando sobre a obra de Nietzsche como um todo,
mas somente sobre a sua primeira obra, O nascimento da tragédia. As metáforas presentes
nesse livro serão aqui interpretadas e colocadas sob a vestimenta de Apolo, ou seja, serão
tomadas no seu sentido original, como expressão de uma metafísica de Dioniso. O caminho
traçado para se compreender tal metafísica será uma espécie de confronto trágico entre
esses deuses: uma batalha que esconde, mais ao fundo, uma mútua necessidade da qual
resultará, no mundo antigo, a mais bela das manifestações artísticas: o teatro trágico.
A presente dissertação vai se voltar para a importância da filosofia de juventude de
Nietzsche. Defenderemos e tentaremos mostrar que em O nascimento da tragédia existe
uma dialética trágica que distancia Nietzsche de Schopenhauer, embora ambos aceitem
comumente certas premissas. Em O mundo como vontade e representação, mais
especificamente nas seções 39 e 51, não encontramos a possibilidade de uma relação
dialética entre o belo e o sublime, nem a possibilidade de sua efetivação na leitura
schopenhaueriana da tragédia. Procurar-se-á mostrar, assim, que é justamente pela
possibilidade de se ler o par apolíneo/dionisíaco dialeticamente que se pode enxergar o que
é de Nietzsche quando esse filósofo se encontra próximo da filosofia de Schopenhauer.
Será esse o desfecho de nossa dissertação.
16 “Se a tragédia nasce do coro trágico e morre porque perde o espírito da música, ao ser subordinada ao conceito, um livro como O nascimento da tragédia, ao pretender demonstrar conceitualmente essas duas teses, não estaria, do ponto de vista da forma de expressão, mais próximo do racionalismo socrático do que da poesia trágica, mesmo que tivesse a intenção de se posicionar ao lado dessa última?” MACHADO, R. op. cit., pág. 17. A tese de Roberto Machado, que é, de fato, interessante, caminha no sentido de mostrar que com Assim falou Zaratustra, Nietzsche procura desfazer essa incoerência.
19
Os seguintes capítulos rearranjaram-se devido a uma conseqüência inevitável, pois
os problemas que se seguem nasceram da necessidade de uma leitura irrestrita do
pensamento do jovem Nietzsche. Igualmente, é como uma tentativa de defesa que o
presente texto se estrutura: ele visa uma relação que se distancie das pedras, ou antes da
petrificação, e pretende uma leitura que dê movimento entre aquilo que Nietzsche chama
pelos nomes de dionisíaco e apolíneo. É nesse sentido que se justifica aqui o subtítulo,
aspectos de uma dialética trágica, o que nada mais quer dizer do que o estabelecimento de
uma tensão dialética que, ao contrário daquela dialética socrática, como advertiremos na
primeira seção do capítulo quarto, manifesta-se na compreensão do trágico.
O primeiro capítulo, intitulado “Nietzsche como filósofo”, apresenta-se ao leitor
como sendo introdutório, situando-o em relação ao pensamento de juventude de Nietzsche
e pontuando alguns aspectos importantes do universo intelectual no qual o filósofo estava
inserido, dando assim ao leitor a oportunidade de vislumbrar toda uma tensão vivida pelo
jovem filósofo entre a carreira científica, ou entre os rigores da escolha filológica, e suas
intuições filosóficas, que exigiam uma sobreposição ou um alargamento do olhar da
filologia. Um passo interpretativo é dado a seguir no capítulo II, “Nietzsche e a
interpretação do silêncio”, no qual temos o intuito de mostrar que um dos principais
problemas que se erigem diante da leitura do teatro grego realizada por Nietzsche repousa
sobre a questão do silêncio da cena trágica, sobre a mudez do herói que se revela agora
fragmentado e despedaçado, reduzido, pois, a um texto teatral que já não se revela na sua
totalidade, uma vez que a tradição perdeu de uma vez por todas a música que acompanhava
a encenação do drama. Ocupei-me, inicialmente, em “Nietzsche e a interpretação do
silêncio”, de uma investigação histórica sobre as origens do teatro grego, servindo-me para
tal propósito das mesmas fontes que Nietzsche: trata-se da monumental História da cultura
20
grega, escrita por Jacob Burckhardt.17 Embora essa obra só tenha sido publicada
postumamente, nos últimos anos do século XIX, foi escrita no período em que Nietzsche se
apresentava à universidade da Basiléia para ocupar a cadeira de filologia clássica. Dois
fatos não deixam dúvidas sobre o contato de Nietzsche com o conteúdo dessa obra:
primeiro, é consabido, Nietzsche foi um assíduo freqüentador dos cursos de seu colega e
mestre, Burckhardt, que são preparatórios à obra; segundo, o próprio Burckhardt menciona
seu querido discípulo na História da cultura grega, como veremos adiante.
O capítulo terceiro, “As bases da metafísica de Dioniso”, é um retorno à filosofia de
Schopenhauer e pareceu-me incontornável. Ele conduz o presente debate até a teoria da
tragédia do Buda de Frankfurt, como Nietzsche denominaria, anos mais tarde, o autor de O
mundo como vontade e representação. Apresenta-se, nesse capítulo, os fundamentos ou
pressupostos metafísicos da visão de mundo nietzscheana, apostando que é precisamente
ali, na obra capital de Schopenhauer, que se deve procurar as chaves para compreender a
estética de Nietzsche e, consequentemente, a sua visão de mundo. A leitura que aquele
filósofo faz dos sentimentos do belo e do sublime, tomando-os de empréstimo a Kant e
ajustando-os à sua filosofia, será retomada no intento de compará-la à leitura nietzscheana
dos elementos do apolíneo e do dionisíaco, quando serão levantadas algumas hipóteses.
Por fim, tentamos mostrar, no quarto e último capítulo, “Da dialética trágica”, de
que maneira Nietzsche, por meio de uma tensão dialética, procura justificar o mundo da
aparência e, desse modo, fica demonstrada a importância fundamental da noção de
apolíneo. É por meio de uma aguerrida rivalidade entre Apolo e Dioniso, metáforas de duas
manifestações essenciais da cultura trágica, que se pode justificar a afirmação do múltiplo
preservando a visão do Uno. Contudo, será preciso diferenciar essa dialética trágica da
17 Utilizei a tradução espanhola realizada por Antonio Tovar. Cf. Bibliografia, nº 10.
21
dialética socrática, tal como Nietzsche a apresenta em O nascimento da tragédia. Se não se
trata da dialética apresentada negativamente pelo autor em sua obra, a presente dissertação
precisa deixar claro do que se trata quando se fala de uma dialética trágica. Mais ainda,
deve justificar o emprego desse adjetivo e mostrar em que ganhamos com a sua adição.
IV
O gosto de Nietzsche pelo teatro já vinha desde a sua adolescência, quando o
pequeno pastor, ou padrezinho, como era chamado por seus colegas na escola, entrou em
contato com a obra de Liszt (1811-1886) e Meyerbeer (1791-1864). Aos dezessete anos,
Nietzsche comprou uma edição completa (na verdade incompleta) das obras de Hölderlin
(1770-1843). Tanto ele quanto seu poeta preferido encontraram em Empédocles (cerca de
490-435 a.C.) um ideal poético-filosófico.18 É notável que Nietzsche aos dezessete anos,
como observou o filósofo francês Lacoue-Labarthe,19 tenha percebido o caráter
autobiográfico dos textos de Hölderlin, que tinha por obsessão o εν και Παν (tudo é um).
Foi talvez por influência de Hölderlin que Nietzsche pretendeu, em 1872, escrever uma
tragédia , a qual tinha por protagonista justamente o poeta-pensador Empédocles. No
entanto, a tragédia de Nietzsche resumiu-se apenas a um roteiro, a um esboço, tendo o
filósofo abandonado seu projeto definitivamente.20 Nietzsche já havia tentado escrever uma
tragédia antes, por volta dos quinze anos, sobre um príncipe medieval da cultura nórdica,
Ermanaric, cujo enredo girava em torno dos temas do parricídio e do sacrifício, mas
limitou-se a compor algumas canções que tinham por motivo esse príncipe nórdico.
18 A obra máxima de Hölderlin, ao lado de seu Hipérion, tem por título Fragmentos de Empédocles. 19 Em conferência ministrada no auditório Prof. Baesse da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 02/10/2000.20 Este roteiro está publicado como apêndice no livro de GIRARDOT, R. G. Nietzsche y la filologia clásica.
22
É interessante notar ainda que esse desejo de Nietzsche de escrever uma peça teatral
dramática jamais encontrará a sua satisfação. Zaratustra parece ter sido a tentativa mais
radical feita pelo filósofo de aproximar a linguagem filosófica da arte das musas trágicas.
Apesar disso, talvez seja melhor considerá-lo tão-somente como um poema filosófico, uma
vez que tem por modo de expressão precisamente a prosa poética, mas permanece ainda
preso a uma compreensão filosófica do mundo, uma vez que apresenta os principais temas
da filosofia de Nietzsche em sua maturidade: o eterno retorno do mesmo, o além-do-
homem, o niilismo, a crítica dos ideais ascéticos, o tema da morte de Deus, etc. Apesar de
todo o fracasso poético de Nietzsche, do abandono de suas tentativas de composição
dramática, uma questão permanece em sua filosofia: ele não conseguiu escrever uma
tragédia, mas a sua compreensão do trágico não é uma compreensão científica ou
conceitual. Antes, uma tentativa de compreender, de intuir o problema, e não de reduzir o
fenômeno trágico a conceitos. Nesse sentido, como tentaremos indicar no quarto capítulo,
Nietzsche permanece na esteira de Kant e de Schopenhauer, uma vez que admite a
falibilidade da razão discursiva diante do problema da totalidade do mundo. Podemos
compreender nas linhas que se seguem essa postura do filósofo, que em outubro de 1868
escrevia a seu amigo Paul Deussen:
É impossível escrever a crítica duma concepção do Universo. Compreende-se ou não compreende-se;
a existência duma terceira posição, em relação a ela, parece-me inteiramente impossível. Aquele que
não se apercebe do perfume duma rosa não tem nenhum direito para criticá-lo; e se dele se apercebe
a la bonheur! então lhe passará a vontade de criticá-lo.21
Nessa carta, Nietzsche refere-se à sua leitura da visão de mundo de Schopenhauer,
mas podemos aplicar essas suas palavras também à compreensão da tragédia grega, uma
21 Carta a Paul Deussen, Leipzig, 20 de outubro de 1868. In. Despojos de uma tragédia (cartas inéditas), pág. 85.
23
vez que procura intuir ali, no teatro dramático, uma visão total do mundo, na qual os heróis
trágicos não são senão máscaras do próprio deus originário do teatro: o deus Dioniso. Ao
dionisíaco corresponde, mesmo, a totalidade da existência. Não é senão por esse motivo
que Nietzsche aproximará essa sua noção ao Uno primordial (das Ur-Ein) de
Schopenhauer. O dionisíaco é, em duas palavras, o monstruoso e o lindo; ou se se quiser,
em uma, o sublime.
Não é pela via do conhecimento que Nietzsche pretende se aproximar do problema
fundamental. Esse problema deve ser compreendido pela arte trágica. O próprio dionisíaco
não se deixa apreender pelo discurso racional: as musas da arte trágica escapam ao olhar
que espreita e se mostra curioso. O culto de Dioniso, como diz o próprio Nietzsche, só pode
ser compreendido por seus companheiros:22 é assim que Penteu, em tudo diferente ao culto,
é descoberto quando, escondido atrás de arbustos, espiava as bacanais dionisíacas, sendo
inteiramente destroçado pelas mênades.23 Assim como o culto apresentava-se esotérico, isto
é, fechado a apenas iniciados, também o teatro grego, apesar de exotérico, isto é,
direcionado a todos (aberto), preserva um certo mistério trágico que, ao contrário das
imagens e do conceito, fazia-se guiar pela música. O teatro grego, mesmo sendo uma festa
política,24 guardava os seus mistérios religiosos que eram cantados nos versos do poeta
trágico. Mas de que música se fala aqui? Não a música posta a serviço de uma série de
imagens e a serviço da palavra, como acontece na ópera florentina, mas sim a música como
fim em si mesmo, capaz de penetrar no fundo do coração diretamente. É assim que
Nietzsche identifica a cultura da ópera a uma cultura socrática, racional, “pois, nesse
22 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 2. “o servidor de Dionísio só é portanto entendido por seus iguais!”, o que nos faz lembrar a sentença de Empédocles: “o semelhante apenas pode ser conhecido pelo semelhante.” Apud Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, §71.23 Cf. EURÍPEDES, As bacantes. 24 Segundo o prof. Bignotto, quase todos os intérpretes concordam em dizer que a tragédia grega possuía um grande alcance político, nas suas palavras, “as tragédias seriam políticas na mesma medida em que todas as festas o são.” BIGNOTTO, O tirano e a cidade, pág. 46.
24
domínio, a cultura pronunciou-se sobre o seu querer e conhecer, com uma ingenuidade
própria, para a nossa admiração, quando comparamos o gênero da ópera e o fato mesmo do
desenvolvimento da ópera com as perenes verdades do apolíneo e do dionisíaco.”25
Ao criticar a ópera italiana , que lança para o segundo plano a música que deve
ser agora reduzida a um meio, como no caso do recitativo, quando o cantor declara o texto
, Nietzsche pensa na música wagneriana e se deixa vislumbrar pelos projetos de Richard
Wagner. Se a música do teatro grego está inteiramente perdida, a Gesamtkunstwerk (obra
de arte total) wagneriana é, para o jovem Nietzsche, a possibilidade de se fazer renascer o
drama dionisíaco, e com ele, uma nova cultura trágica plena de mitos trágicos.
Pode-se dizer que, ali onde a religião torna-se artística, fica reservado à arte salvar o núcleo da
religião, apreendendo em seu valor de imagem sensível os símbolos míticos, que a primeira quer crer
como verdadeiros objetos de fé em seu sentido autêntico, permitindo conhecer por meio da expressão
ideal, a verdade profunda que neles se oculta.26
Essa arte, como quer Wagner, dispensa para as suas criações a produção individual
e nomeia “o próprio povo como o artista do futuro”.27 É por isso que Nietzsche considera
Wagner como sendo uma superação da cultura socrática, também chamada por ele de
alexandrina, e espera que a obra de arte total possa fazer renascer os efeitos da tragédia
dionisíaca. É assim que Wagner representava, para as esperanças do jovem filósofo, o
fundador da nova civilização mediante uma renascença da cultura trágica dos gregos: a
música wagneriana constituir-se-ia numa espécie de paidéia germânica. Como é bem
conhecida a história, Nietzsche mais tarde se voltará contra Wagner e se sentirá
completamente iludido perante esse artista da décadence.28
25 NIETZSCHE, op. cit. § 19.26 WAGNER, apud HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade, p. 127. 27 Id.28 NIETZSCHE, O caso Wagner, § 5.
25
Apesar de tudo, as frustrações poéticas de Nietzsche levaram-no a buscar uma
compreensão total da arte dionisíaca, não desprezando para isso a inventividade filosófica
que lhe permite recriar dos fragmentos do teatro antigo uma autêntica metafísica. Sua
metafísica encontra em Dioniso uma justificativa para a vida e para a existência que, como
ele mesmo diz, podem ser agora afirmadas esteticamente. É o gosto pelo teatro que levou
Nietzsche a se sentar na primeira fila do imenso palco de Dioniso, ali onde se convoca
Apolo para o espetáculo. Ali onde há a reconciliação entre essas duas divindades do teatro
antigo.
CAPÍTULO I
Nietzsche como Filósofo.
Nas grandes épocas da tragédia, a humanidade supôs encontrar uma
visão trágica da existência e, possivelmente, não foi o teatro que imitou a
vida, mas foi a vida que recebeu do teatro uma dignidade e um estilo
verdadeiramente grandes.
Roland Barthes
§. 1 – Os Limites da Filologia.
26
O pensamento moderno está plenamente imbuído de oposições. Isso ocorre, por
exemplo, desde o dualismo cartesiano à filosofia kantiana: o que decorre daí é uma busca
incessante no sentido de transpor as formas duais à procura do ser originário no qual se
harmonizam as contradições e donde se justifica a diversidade dos entes. “O verdadeiro é o
todo”, escreve Hegel (1770-1831).29 Diferentemente dessa posição na qual se procura ter
um conhecimento do ser, Friedrich Schlegel, à sua maneira, também escreve: “O que
importa é a suspeita do todo”.30 Enfim, o pensamento moderno está marcado pela
preocupação com a totalidade. Totalidade transcendental, mas que está intimamente
presente no homem como subjetividade, veja-se as filosofias de Fichte (1762-1814) e do
jovem Schelling (1775-1854). Friedrich Nietzsche, inserido na Alemanha do “Fin du
Siècle”, voltará suas forças, um pouco mais tarde, contra a filologia e a metafísica de tipo
platônica, contra os símbolos da ciência e, de um modo mais sutil e implícito, contra a
linguagem conceitual que impregna a filosofia desde Aristóteles (384-322 a.C.). Ele
buscará, com intensidade espiritual, o caminho de uma nova experiência do ser desde o
pensamento na idade dos gregos, em seu nascimento e em sua áurea trágica. À sua maneira,
Nietzsche demarcará novos caminhos para a filosofia no Ocidente. Apesar de tudo isso, o
filósofo da Prússia, em sua juventude, não surge como o demolidor da tradição, mas como
o seu inevitável resultado. É, sobretudo, nos rastros da filosofia de Kant que Nietzsche
introduzirá seu pensamento no campo filosófico.
Em 18 de janeiro de 1870, na universidade da Basiléia, enquanto professor de
filologia clássica, Nietzsche ministrou publicamente sua conferência “O drama musical
grego”, já anunciando uma das principais teses que desenvolveria em O nascimento da
29 HEGEL, G.W.F. Prefácio da Fenomenologia do Espírito, § 20. 30 SCHLEGEL, F., apud GIRARDOT, Nietzsche y la filologia clásica, pág. 31.
27
tragédia: a cena trágica vista como totalidade artística, como aquilo que supera a
contradição entre o logos e o pathos na tragédia. Desde o início de sua carreira como
professor na Suíça, Nietzsche já se situava entre a filologia clássica e a filosofia, marcas
inconfundíveis do estilo de seu pensamento de juventude. Como filólogo, Nietzsche
procurou expandir sua visão por cima dos limites dessa disciplina e mesmo antes de seu
primeiro contato com o pensamento de Arthur Schopenhauer em 1865, já demonstrara
interesse pela filosofia e pela letra filosófica.
A mãe, no entanto, queria ver o filho seguir a carreira do pai, que se tornasse pastor
da igreja protestante. Mas depois do primeiro semestre na universidade de Bonn, Nietzsche
cessa seus estudos teológicos e entrega-se aos estudos da filologia. Numa carta de 3 de
maio de 1865, ele escreve à sua mãe confessando-lhe abertamente as transformações de seu
jovem espírito: a comodidade trazida pela religião se dá facilmente pelo consolo que
recebemos, coisa extremamente diferente é, no entanto, perseguir a verdade, que pode ser
feia e repulsiva, dispensando os cuidadosos caprichos da estética e da moral.31 Nesse
momento de sua vida, os caminhos que se apresentavam à sua frente se faziam visíveis com
nitidez: a alma filosófica não deve pretender a calmaria de águas rasas, mas deve se lançar
aos mares escuros para enfrentar os desafios do espírito. “Queres paz da alma e felicidade,
então crê, queres ser apóstolo da verdade, então investiga.”32 E ainda numa carta à irmã:
“Deve-se sempre procurar a verdade do lado das coisas mais penosas.”33
Nietzsche, assim como Hegel, iniciou seus estudos com a leitura do texto helênico,
contudo, nas palavras de Fritz Ernst, sua primeira cultura foi “a mais alemã que se pode
imaginar.”34 Na escola de Pforta, teve sua educação profundamente marcada pelos poetas
31 Cf. SAFRANSKI, R. Nietzsche, biografia de uma tragédia, pág. 37. Vale lembrar, en passant, que no título se lê: Nietzsche, biografia de seus pensamentos, (Nietzsche, Biographie seines Denkens). 32 NIETZSCHE, apud SAFRANSKI, id.33 NIETZSCHE, apud HALÉVY, D., Nietzsche, um biografia, pág. 32.34 GIRARDOT, em Nietzsche y la filologia clásica, pág. 20.
28
nacionais e, de um modo particularmente intenso, teve em Hölderlin a sua predileção. Em
seus estudos em Bonn, e posteriormente em Leipzig, Nietzsche é seduzido por Ritschl que
o coloca no caminho rigoroso do exercício científico da filologia. Sob a tutela desse mestre,
Nietzsche tornou-se um ativo e assíduo leitor dos trabalhos da Sociedade Filológica.
É notável que os cursos ministrados pelo filósofo na universidade da Basiléia
possuam sempre uma reflexão filosófica enraizada na filologia clássica. Na sua significação
maior, esses cursos são dedicados à poesia lírica, a Hesíodo (século VIII a.C.) e aos
dramaturgos da tragédia antiga. Nietzsche enxerga naquela época que vai de Hesíodo a
Ésquilo (525-456 a.C.) uma seriedade trágica digna de louvor por ser precisamente o
período em que a epopéia teria sido sintetizada de alguma forma com a poesia lírica. O
resultado desse amálgama entre uma poesia objetiva e outra, subjetiva é justamente o
surgimento da tragédia. A respeito dessa visão de Nietzsche sobre o passado grego, Karl
Joël diz que:
A imagem tradicional da Hélade ‘serena’ é violentamente destruída por Nietzsche como uma
falsificação (…). A época elegíaca da Hélade, a época da gestação, da reflexão e a tragédia, a dos
grandes líricos e dos grandes tiranos, esta é a verdadeira pátria espiritual de Nietzsche.” 35
As lições que o jovem docente ministrou na Basiléia revelam a maneira entusiástica,
isto é, preenchida pela divindade, com a qual ele se aproximou dos helenos, como se
seguisse cuidadosamente aquela expressão ouvida de seu mestre Ritschl, que muitas vezes
aconselhava ao investigador que se aproximava de um objeto ainda desconhecido: deve-se
começar com o amor, não com a crítica.36 É ainda o amor pela sabedoria que conduzirá
Nietzsche a uma tentativa de superar a filologia clássica, no que ela tem de específico e nas
suas exigências de comprovação empírica. É o vôo que direciona o olhar numa amplitude
35 JOËL, K., apud OEHLER, Max, “Apêndice” do Tomo I da tradução espanhola das obras completas de Nietzsche, pág.313.36RITSCHL, apud OEHLER, Max, op. cit. pág. 316.
29
que se apresenta à criatividade perante a sabedoria do passado, é a intuição filosófica
procurando sempre a totalidade diante daquelas ruínas deixadas pelo tempo, aqueles
fragmentados documentos que não revelam a essência musical da poesia grega.
§. 2 – O Contato com o Pessimismo.
Foi a filosofia schopenhaueriana que guiou as conversas do jovem professor de
filologia com o famoso compositor alemão, Richard Wagner, apresentado a Nietzsche em
novembro de 1868 pela esposa de seu professor Ritschl. As relações entre a filosofia e a
música ganham intensidade nessas conversações. Mas as influências de Wagner sobre
Nietzsche geralmente ganham mais peso por parte dos críticos que, em muitas ocasiões,
não conseguem lançar uma visão bilateral sobre esse relacionamento. Tanto as influências
de Wagner quanto as influências da filosofia de Schopenhauer sobre o pensamento de
juventude de Nietzsche existiram. Atribuir um valor definitivo dessas influências seria, no
entanto, esquivar o olhar para aquilo que o autor tem de mais sutil e peculiar; seria não
compreender a sua visão de mundo e se abster diante da questão que mais importa à
pesquisa filosófica nesse caso específico: enxergar o que é de Nietzsche e mostrar a
relevância de seu pensamento de juventude dentro do corpo da obra, sem com isso
transfigurar esse pensamento.
Schopenhauer marcou o espírito de uma época. A partir 1870, como mostra Otto
Maria Carpeaux,37 os intelectuais alemães reagiram contra a prosperidade da
industrialização e contra a arrogância do regime militarista refugiando-se no pessimismo
37 Cf. CARPEAUX, O. M. História da literatura ocidental, volume VI. Pág. 2733 ss.
30
schopenhaueriano. Em Nietzsche, tanto Schopenhauer quanto Wagner possuem uma
significação simbólica que marca um momento preciso de seu pensamento e, de forma
abrangente, a história espiritual de sua época.
As teses de O mundo como vontade e representação serviram como instrumentos.
Os conceitos de vontade e de fenômeno serviram para orientar as idéias de Nietzsche sobre
a tragédia grega, mas não tiveram força suficiente para modificá-las e determiná-las. As
noções de belo e de sublime inspiraram a sua metafísica de artista, mas até que ponto é
Nietzsche devedor da compreensão schopenhaueriana dessas noções estéticas de Kant?
Como tentaremos demonstrar no capítulo III, “As bases da metafísica de Dioniso”, uma
compreensão da teoria schopenhaueriana do belo e do sublime faz-se necessária e é exigida
na leitura de O nascimento da tragédia. Compreender os sentimentos do belo e do sublime,
tal como esses aparecem em O mundo como vontade e representação, significa ter em
mãos o instrumental necessário para enxergar onde se assenta uma metafísica da arte, ou
seja, enxergar a visão totalizante do mundo sobre a qual se erguem os princípios essenciais.
Isso não significa, no entanto, que essa visão se explique exatamente da mesma forma em
Schopenhauer e em Nietzsche, ambos estão na mesma tradição, mas possuem
peculiaridades quanto aos resultados conquistados, capazes de dar às suas filosofias
identidades diferentes.
No tocante a Wagner, Hollinrake demonstrou com rara clareza a independência das
idéias de Nietzsche sobre a tragédia em relação a seu escrito Beethoven de 1870.38
Ademais, a interessante posição de Hollinrake procura demonstrar que toda a obra de
Nietzsche é, mesmo que de maneira pouco elucidativa, uma maneira de dar resposta ao
compositor e idealizador da Gesamtkunstwerk. Tanto Nietzsche quanto Wagner bebem na
38 Cf. Hollinrake, Roger. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo.
31
fonte schopenhaueriana do pessimismo. Para Schopenhauer, o sentido de uma purificação
que ocorre por meio de uma descarga emocional de piedade e de terror, aquilo que
Aristóteles chamou de kátharsis, não é senão passageiro, apenas um momento que na sua
pequenez não consegue remediar a ferida aberta do ser. A tragédia ensina ao espectador,
aos olhos de Schopenhauer, a renúncia, como procuraremos mostrar mais adiante. A
irrestrita existência miserável do homem não merece a lealdade: o espírito trágico conduz à
resignação.39 Mais tarde, no final do capítulo III, mostraremos mais detalhadamente a
postura de Nietzsche perante essa leitura de Schopenhauer.
O que importa para Wagner, em Schopenhauer, é o fato de esse filósofo ter
considerado a tragédia moderna, Shakespeare (1564-1616), Goethe, Schiller e Corneille
(1606-1684), superior à tragédia clássica,40 o que poderia justificar, para usar a expressão
de Nietzsche, um renascimento dos elementos dionisíacos no drama moderno e, por que
não, na sua música dramática. Porém, o próprio Schopenhauer nunca se preocupou muito
com a obra de arte total do compositor: quando o filósofo de Frankfurt recebeu de Wagner
O anel dos Nibelungos com uma dedicatória, disse explicitamente numa carta a Julius
Frauenstädt, “Dê graças a seu amigo Wagner em meu nome pelo envio de seus Nibelungos.
Só que deveria abandonar a música, pois tem um gênio maior para a poesia! Eu,
Schopenhauer, permaneço fiel a Rossini e a Mozart.”41 Contudo, o pessimismo de
Schopenhauer, como demonstram vários críticos, teve forte influência na obra wagneriana.
A filosofia de juventude de Nietzsche é, em grande parte, devedora do pensamento
de Schopenhauer. Mas, será mesmo assim? Até que ponto devemos dar crédito a essa 39 Cf. SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação, livro III, §51.40 Após fazer uma detalhada comparação entre a tragédia clássica e a moderna, mostrando que a primeira não apresenta no término de suas ações uma renúncia voluntária do herói, enquanto que na segunda se tem uma negação total do mundo, Schopenhauer diz: “No meu juízo, a tragédia moderna é mais elevada que a dos antigos.” Le monde comme volonté et comme représentation, “Suppléments”, § 37.41 SAFRANSKI, R. Schopenhauer y los años salvajes de la filosofia, pág. 473. Ver também HOLLINRAKE, R. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo, nota 11 do capítulo 3, ali também aparece um trecho dessa carta: “Wagner tem mais talento para a poesia! Eu, Schopenhauer, permaneço fiel a Rossini e a Mozart”.
32
palavra “devedora”? Será que podemos encontrar um denominador comum entre esses dois
pensamentos? Ora, não é isso que nos importa aqui, antes pelo contrário, tentaremos
entender precisamente o que leva Nietzsche a afirmar a existência, mesmo que a esta
estejam ligados a ilusão e o erro. Daremos maior importância, assim, aos resultados a que
chegam esses dois filósofos. O dionisíaco apresentar-se-á, em Nietzsche, como totalidade
do mundo; o apolíneo, por sua vez, como a arte da aparência que procura, com beleza
reluzente, domar essa essência de Dioniso que não conhece senão a dor e os sofrimentos
originais.
A primeira forma de pessimismo que Nietzsche encontrou talvez não tenha sido,
como poder-se-ia supor, a de Schopenhauer (conhecida por ele em 1865/66), mas a dos
gregos, o que pode fundar a suspeita bastante plausível de que Nietzsche recebeu a filosofia
schopenhaueriana pensando-a a partir dos gregos e não o inverso, como é comumente
admitido. Mas isso só pode ser dito ressaltando esse talvez, ou seja, apenas como suspeita,
pois faltam as provas cabais. Contudo, apresentemos os elementos que dispomos para
levantar tal suspeita, ainda que esta seja, no momento, intuitiva. Uma boa maneira de se ler
os escritos filológicos de Nietzsche é pressupor a sua observação de que o mundo helênico
está marcado por pensamentos pessimistas, o que não deixa de ser uma observação
estritamente filosófica, ou seja, deve-se ler os escritos filológicos filosoficamente. Em seu
trabalho de 1864 dedicado a Teógnis, intitulado De theogonioe megarensis publicado no
Rheinisches Museum, Nietzsche menciona uma frase atribuída à deusa Hera, citada por
Teógnis: “…para os homens é melhor morrer do que viver”.42 É curioso que Nietzsche
tenha tido contato com esse pessimismo antes mesmo de descrevê-lo em seu primeiro livro,
42 Citado por GIRARDOT, op. cit., pág. 30.
33
pois encontramos em Teógnis precisamente aquelas mesmas palavras que, em O
nascimento da tragédia, são postas na boca do sátiro Sileno:
De todas as coisas, a melhor para os homens é não ter nascido
nem ter visto os raios do penetrante sol.
E, uma vez nascido, transpor depressa as portas do Hades
e jazer coberto com muita terra.43
Essas palavras nos fazem imediatamente lembrar a resposta do sátiro ao rei Midas,
exposta no capítulo III de O nascimento da tragédia. Essa idéia é também compreendida e
compartilhada por Sófocles, lido por Nietzsche antes mesmo de conhecer Schopenhauer.
Então vejamos: Nietzsche lera Teógnis antes mesmo de entrar em contato com o
pensamento de seu filósofo predileto à época em que redigiu seu livro (1871) , além
disso, lera também Sófocles, no qual essas palavras ganham também um sentido, digamos,
pessimista, por exemplo na frase final do Corifeu em Édipo rei.44 Lembremos ainda que
Sófocles foi lido na escola de Pforta pelo filósofo diretamente no grego e através das
traduções de Hölderlin.
Se realmente é assim, Schopenhauer não foi, ao que parece, a grande inspiração que
levou Nietzsche ao reconhecimento dos gregos como um povo pessimista, mas talvez
ocorra simplesmente o seguinte: Schopenhauer apresenta-se a Nietzsche como um
Geistesgenosse, um companheiro espiritual, uma vez que possuem, tanto um quanto o
outro, uma sensibilidade para o trágico.
43 TEÓGNIS, 425-428 Diehl, in.: “Lírica Grega – Antologia”, organizado por Celina Figueiredo Lage e Jacyntho Lins Brandão, Departamento de Letras Clássicas, FALE/UFMG, 1996. 44 “Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem, tão poderoso, quem não sentirá inveja? No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida.” SÓFOCLES, Édipo Rei, página 88.
34
§. 3 – O Caso Wilamowitz-Möllendorf.
Em suas conferências abertas ministradas na Basiléia, onde ocupava desde 1869 a
cátedra de filologia clássica (graças ao reconhecimento de seu trabalho pelo seu mestre
Ritschl que lhe indicou a Adolf Kiessling), Nietzsche não se professa como filólogo, mas,
determinado, afirma que toda filologia deve se aproximar dos conhecimentos da filosofia.
No último parágrafo de sua conferência, “Homero e a filologia clássica”, após ter
parafraseado Sêneca, “Philosophia facta esta quae filologia fuit” 45, ele diz:
Com isto quero expressar que toda atividade filológica deve estar impregnada de uma
concepção filosófica do mundo, na qual todo o particular e singular seja condenado como
algo desprezível, e permaneça somente a unidade do todo.
Em seu prólogo retrospectivo de 1886 a O nascimento da tragédia, Nietzsche
definiu o conteúdo de seu primeiro livro como sendo uma “metafísica de artista”. Mesmo
antes da elaboração desse livro, numa carta a seu amigo Rohde, em meados de fevereiro de
1870, ele dizia: “Ciência, arte e filosofia crescem dentro de mim tão estreitamente ligadas
que vou acabar parindo um centauro”.46 Naquela “metafísica de artista” já se percebe a
profundidade filosófica que perpassa as teses de Nietzsche em sua primeira obra. Se as
conferências da cátedra de filologia na universidade da Basiléia são fundamentalmente
preparatórias à sua primeira obra, O nascimento da tragédia, o resultado está
profundamente marcado por intuições filosóficas e por um abandono quase inconsciente
dos rigores da ciência filológica. O “centauro” que Nietzsche esperava parir da fusão
45 “Criou-se a filologia, porque a filosofia existiu”.46 HAVÉVY, Daniel, Nietzsche, uma biografia, pág. 70.
35
espetacular que se formava intimamente dentro de si é, por fim, uma nova visão dos
elementos da tragédia grega marcada pela estética, pela filosofia e por uma “metafísica de
artista”.
A filologia deve ser absorvida pela filosofia, essa é uma preocupação importante de
Nietzsche nesse momento. Resulta daí, certamente, o estranhamento que O nascimento da
tragédia vai causar no fervoroso Wilamowitz-Möllendorf, que, logo após a publicação da
obra em janeiro de 1872, procurou apontar, entre outras, as contradições filológico-
históricas presentes nas teses de Nietzsche sobre a relação entre Sócrates e Eurípides. Ele
tornou público, em 1873, seu terrível artigo contra o filósofo de Röchen, no qual se pode ler
as seguintes sentenças:
Que o Sr. Nietzsche tome a palavra, pegue o tirso, mude-se da Índia para a Grécia, mas que desça da
cátedra na qual deveria ensinar de maneira científica; que reúna tigres e panteras em torno de suas
pernas, mas não a juventude filológica alemã.47
Nietzsche, no entanto, já não interpretava o mundo helênico no sentido da filologia
acadêmica, mas construía por meio de intuições filosóficas a sua Grécia antiga. E mesmo
com o bombardeio de críticas ao “Sócrates teórico”, permanece ileso o Sócrates histórico
em seu livro. A Sócrates, Nietzsche se refere como a uma noção, a um tipo-ideal, e afirma
que o socratismo existia mesmo antes daquele “dialético de rua”.48 As noções kantianas de
coisa em si e fenômeno, ainda que indiretamente, estão presentes na ordenação do mundo
antigo realizada por Nietzsche, que lança mão da filosofia de Schopenhauer como
47 WILAMOWITZ-MOELLENDORF, apud SAFRANSKI, op. cit., pág. 73.48 Sobre esse assunto, ver de Nietzsche Socrates und die Tragödie, p. 545: “o socratismo é mais antigo que Sócrates; seu influxo aniquilador da arte se faz notar muito antes. O elemento da dialética que lhe é peculiar penetrou furtivamente no drama musical já muito tempo antes de Sócrates e produziu em seu belo corpo um efeito devastador.” Ver também O nascimento da tragédia, § 13. O termo dialético de rua, referindo-se a Sócrates, e lembrado acima, só será usado por Nietzsche mais tarde, em Humano, demasiado humano, §433.
36
instrumental conceitual. A contragosto dos filólogos, Nietzsche não se prendeu à
necessidade de comprovações empíricas ou históricas, mas procurou, à maneira da
revolução realizada por Kant no campo do conhecimento, determinar o mundo trágico da
Antigüidade, configurá-lo de acordo com suas intuições. Nietzsche inventou a sua Grécia.
As críticas que Ulrich von Wilamowitz-Moellendorf dirigiu a Nietzsche, após a
publicação de O nascimento da tragédia, acusando-o de ignorância, de desonestidade e de
falta de academicismo não tiveram, aparentemente, muita força sobre o filósofo. Mas o
efeito foi devastador quanto à sua carreira de professor de filologia, ainda mais quando
Richard Wagner veio em sua defesa escrevendo-lhe uma carta aberta em um pequeno jornal
alemão no qual dizia que O nascimento da tragédia não era um livro para acadêmicos, mas
para artistas. Foi a gota d’água. Nietzsche ficou muito prejudicado com a receptividade que
o seu livro encontrou no meio acadêmico. No mesmo ano da publicação da sua obra, ele
escreveu a Wagner: “Há uma coisa que está me perturbando: o semestre de inverno chegou
e não tenho discípulos. Nossos classicistas não aparecem!” 49
É importante dizer sobre essa incompreensão que se trata de um grande erro reduzir
a discussão a questões meramente eruditas acerca da interpretação que Nietzsche fez dos
mais diversos aspectos do mundo grego. O nascimento da tragédia é a obra de um filósofo,
não de um filólogo, como pensou Wilamowitz. No entanto, os filósofos têm
constantemente esquecido o fato de que Nietzsche era professor de filologia clássica e de
que um certo valor filológico deve ser levado em conta na interpretação dessa obra. O que
Wilamowitz não pôde perceber foi o caráter essencialmente filosófico da interpretação
nietzscheana do passado grego. Nietzsche distanciou-se do silêncio que impregnava a
leitura erudita do texto antigo. As peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípides em parte, não são
49 NIETZSCHE, apud VIEIRA DE MELLO, Mário, Nietzsche: o Sócrates de nossos tempos, pág. 23.
37
por ele vistas apenas como textos para o teatro, mas são compreendidas como obras
musicais, como dramas que tinham na música o seu elemento primordial. Voltaremos mais
adiante sobre esse ponto quando levantaremos alguns problemas.
Nietzsche denunciou a incompetência da leitura erudita do texto dramático. Mostrou
que as peças dos dramaturgos gregos não devem ser lidas meramente como o libreto de
uma ópera perdida, como o fantasma das musas trágicas. Foi mais além. Pretendeu trazer
novamente para o palco do teatro grego a totalidade das encenações. Comparou o teatro
trágico da Grécia Antiga à Gesamtkunstwerk de Richard Wagner. Nietzsche chamou as
peças antigas de “dramas musicais gregos”, e com essa expressão quis chamar a atenção
para a importância de compreender o teatro antigo dentro de uma totalidade. Mas
reservemos essas questões para discuti-las com o devido cuidado no capítulo segundo.
Diante das teses de Nietzsche, o que Wilamowitz não podia suportar é que toda uma
tradição filológica ficava agora sob suspeita. Wilamowitz havia ignorado o conteúdo
intelectual e filosófico do livro. Tendo olhos apenas para o academicismo, ignorou a
exigência que Nietzsche fazia: a filologia deve estar envolvida por uma visão abrangente do
mundo, por uma concepção que vai além dos limitados rigores da ciência, por uma visão da
totalidade que a filosofia pode oferecer.
§. 4 – A Filosofia para além da Filologia.
A compreensão de um livro como O nascimento da tragédia não pode deixar de
lado um estudo das influências exercidas por Richard Wagner e por Schopenhauer. Mas o
grande problema é que, muitas vezes, quando esses dois nomes são colocados ao lado de O
38
nascimento da tragédia, o pesquisador não consegue mais enxergar as intuições
genuinamente filosóficas de Nietzsche, deixando-as se perderem no pensamento
schopenhaueriano e nas ambições dos projetos wagnerianos. Não é preciso muito esforço
para se encontrar esse tipo de interpretação. É muito comum a afirmação de que o livro de
Nietzsche é uma obra genial (o que revela o grande fascínio que o filósofo-escritor exerceu
e ainda exerce em seus leitores), mas em quê uma afirmação desse tipo poderia contribuir
para a compreensão da obra? Por outro lado, O nascimento da tragédia foi lido durante um
bom tempo como um grande equívoco científico: um rigoroso exame erudito demonstraria
os erros cometidos pelo autor. Nietzsche viu-se exilado do mundo da filologia clássica, e
muitas vezes vai afirmar que sem os amigos, sem os seus alunos, o único consolo, a única
companheira, é somente a música.
Num primeiro momento, Nietzsche parece ter conseguido elaborar uma verdadeira
adaequatìónis entre o exercício da filologia e a descoberta da filosofia de Schopenhauer,
mas com o desenvolvimento de sua atividade intelectual, o exercício da filologia foi
ficando cada vez mais incerto, como uma conseqüência da nova maneira de enxergar o
mundo. O pathos filosófico preenchia-lhe o ânimo a tal ponto que a disciplina científica já
não era tão segura para investigar a verdade do passado.
A verdade! Ilusão exaltada de um deus! O que importa aos homens a verdade!
E o que era a “verdade” heraclítica?!
E para onde ela foi? Um sonho que escapa, apagado das faces humanas com outros sonhos!
Não foi a primeira!50
O certo é que, como filólogo, Nietzsche empenhou-se numa visão que
compreendesse a filologia clássica numa totalidade, evitando assim um ponto de vista que
50 NIETZSCHE, “Sobre o PATHOS da verdade”, in. Cinco prefácios para cinco livros não escritos, pág. 31.
39
fosse meramente científico. A Antigüidade, quando vista desse ponto unilateral ou
“meramente científico”, apresenta-se aos olhos do investigador reduzida a conceitos; do
mesmo modo, diz Nietzsche em “Homero e a filologia clássica” (1870), o naturalista reduz
as formas lingüísticas a uma lei morfológica e com isso se perdem todos os elementos
estéticos. A visão da Grécia que pretende fugir a uma visão unilateral é aquela que procura
elaborar um amálgama entre as contradições presentes entre os gregos, ou seja, que procura
enxergá-los como o povo da civilização luminosa da plástica, da beleza, da serenidade, da
democracia, mas também como o povo dos mistérios trágicos, da crueldade e da selvajaria.
O nascimento da tragédia é uma obra essencialmente filosófica por possuir uma
visão de totalidade, por exprimir as intuições do autor que fogem à uma análise cientificista
do passado grego e da então atualidade alemã. É uma visão que procura no trágico as
variações e contradições da alma grega, valorizando não apenas aquele aspecto luminoso e
plástico, como fizeram os classicistas, mas também esse lado sombrio e repleto de horror: o
elemento dionisíaco é visto como totalidade e, nesse sentido, como veremos no capítulo IV,
o livro de Nietzsche revela uma metafísica e uma dialética trágica.
§. 5 – Jacob Burckhardt e a Renovação da Grécia.
Jacob Burckhardt (1818-1897), dono de uma autêntica apoliteia, foi o grande
investigador das renascenças e mais especificamente tornou-se o grande mestre da
Renascença italiana, sobretudo com sua A cultura do renascimento na Itália (Die Kultur
der Rennaisance in ltalien). Nascido na Basiléia, foi o grande mestre de Nietzsche, e não
somente enquanto este ali permaneceu como professor até o final da década de setenta. A
40
obra de Burckhardt mais cara ao pensamento de Nietzsche, a sua História da cultura grega
(Griechische Kulturgeschichte), publicada postumamente em Berlim, 1898-1900, nunca foi
uma obra muito estudada, mas causou um grande prejuízo ao classicismo e à filologia
acadêmica por desvelar uma Grécia cheia de contradições. “Se a História da civilização
grega fosse mais conhecida,… [a] raiva professoral seria decerto mais generalizada; pois
esse livro destruiu um dos mais caros sonhos da humanidade”. 51
A visão totalizante presente em O nascimento da tragédia, que pretende
compreender o fenômeno dionisíaco na cultura grega e a possibilidade do seu renascimento
na cultura moderna, tem forte inspiração de Burckhardt. As principais teses desse suíço
confrontam com uma visão da Grécia já há muito cristalizada: a de que a civilização grega
sucumbiu pelo terror disseminado pelas migrações bárbaras e que logo após o obscuro
período da Idade Média foi iluminada pelos filólogos que ressuscitaram a filosofia e a
literatura grega, povoando novamente o passado grego de deuses luminosos. Para
Burckhardt, o que foi ressuscitado na Renascença dos séculos XV e XVI, não foi a
verdadeira Grécia, mas uma Grécia já idealizada, a imagem perfeita que serviu então como
medida e juízo iminente para todas as novas civilizações. A Grécia de Burckhardt, como
nos chama a atenção Otto Maria Carpeaux, não é a Grécia erigida na exuberante plástica
pelos escultores italianos, nem é a Grécia cristã de Racine; não é nem a Grécia harmônica e
filosófica de Goethe nem a democrática da Atenas ideal. Burckhardt descobre uma
realidade grega um tanto quanto desagradável, desfazendo as imagens idealizadas pelos
historiadores que viam na democracia ateniense um modelo ideal:
51 CARPEAUX, O. M. “Jacob Burckhardt e o futuro da inteligência”, in Ensaios Reunidos. Vol. I, pág. 258.
41
Com o tempo, perceberam que Simônides emigrara para Sicília, que Ésquilo morrera lá também, e
Eurípides na Macedônia, que Heródoto vivera em Túrio, que Sócrates preferira à fuga a cicuta, que
Platão fugira, até, para Utopia. 52
Nietzsche está muito mais próximo dessa perspectiva de Burckhardt do que da visão
classicista. Pois o olhar nietzscheano ao se direcionar aos gregos, embora o filósofo os veja
também como símbolos paradigmáticos da humanidade e da cultura, revela entre os helenos
uma noção de atrocidade, de uma cultura pagã cujos valores representavam a antítese
mesma da história cristã. Nietzsche dá um novo sentido para os termos que desde o
humanismo e a Ilustração haviam se tornado demasiado correntes para caracterizar o povo
grego, e enxerga naquela “alma harmoniosa”, “alegria serena”, “serenidade na grandeza”,
etc., uma terrível profundidade na visão de mundo helênica. Para Nietzsche, e isso ele
compartilha com seu mestre Burckhardt, deve-se pensar os gregos não somente através
dessa plasticidade, mas também por meio do seu contrário, ou seja, por meio das noções de
selvageria, crueldade, obscuridade, etc.53 Todas essas noções são contradições de aspectos
inseparáveis, como ele mesmo diz numa carta a Erwin Rohde de 16 julho de 1872,
referindo-se ao mundo grego: “pode-se falar da primavera se a ela antepomos o inverno.
Pois certamente não caiu do céu esse mundo de pureza e beleza.”54
§. 6 – Dioniso como Origem e como Fim.
52 BURCKHARDT, J. História de la Cultura Griega, vol. I. apud CARPEAUX, op. cit. 26153 Talvez haja também, nesse ponto, influência de Hölderlin, para quem a Grécia era divina e sombria, “submetida a efusão dionisíaca ou à fulguração apolínea”, que eram indissociáveis para ele. Cf. LACOUE-LABARTHE, P. A imitação dos modernos, FIGUEIREDO, V. A. e PENNA, J. C. (organizadores), São Paulo: Paz e Terra, 2000, cap. IV, “Hölderlin e os Gregos”.54NIETZSCHE, Despojos de um tragédia, pág. 167.
42
O principal problema que está presente em O nascimento da tragédia consiste
naquilo que chamamos aqui de Metafísica de Dioniso, que expressa, em Nietzsche, um
entendimento profundo do fenômeno dionisíaco entre os gregos. Esse entendimento já é
expresso no prefácio dedicado a Richard Wagner, quando o autor diz que “a arte é a tarefa
suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida.” Daí, certamente, a revolta
legitimada pela sua visão de mundo contra o caráter tradicional e erudito do método e do
lugar da filologia que, como já apontamos, só encontra o seu valor justificado uma vez
fundamentada na cultura e na filosofia.
Novamente, O nascimento da tragédia é uma obra que busca reconstruir uma
experiência da totalidade, uma vez que não é outro senão o sublime o objeto da tragédia. E,
poderíamos até mesmo chegar à conclusão, não tanto forçada, de que no fundo, a morte é o
que é representado e exigido no palco do teatro grego: o retorno para o seio da natureza.
Mas a representação da morte nesse sentido, compreendida como a dissolução do herói
individualizado no seio do coro trágico, é uma transfiguração da representação da própria
vida, isto é, daquele momento de duração da peça de teatro. O desprendimento do herói
individualizado do coro originário é, no sentido da metafísica de Dioniso, a própria
existência do indivíduo, é a possibilidade da vida que se dá com as peripécias do herói e
que exige novamente a sua destruição, o seu retorno eterno para os braços do coro.
É assim que a arte e a poesia trágicas envoltas pela música dionisíaca revelam “o
mundo por detrás das aparências”. O fundo dionisíaco da existência vem à tona na
personificação apolínea do herói, na individuação do não-individual. O texto de Nietzsche
não pretende nos provar, num sentido mais rigoroso, como se deu esse amálgama originário
da tragédia; mas apresenta-nos uma sugestão demasiado interessante para a seguinte
questão: como se deu a passagem da representação do deus Dioniso no início da tragédia,
43
quando o poeta substituiu o corifeu por um ator que desempenharia um papel determinado,
personificando a figura do deus, para a representação de outros heróis e outros mitos?
Como já é admitido desde Aristóteles, aquele canto coral que foi o fundamento da
tragédia pertencia ao ditirambo, e a tragédia procedeu daqueles que iniciaram o ditirambo.
Os ditirambos, como nós sabemos, eram as odes cantadas e dedicadas ao deus Dioniso
durante a colheita das uvas, e que eram executadas regularmente por um coro. O primeiro
passo para a existência da tragédia parece ter sido, realmente, a história dos sofrimentos de
Dioniso cantada pelo corifeu. Para a execução dessa representação, os gestos do coro
imitavam as maneiras dos sátiros, ou seja, o coro fazia gestos num só tempo de alegria e de
dor. É isso que nos fala Aristóteles, Poética, capítulo IV, dizendo que a tragédia primitiva
teve o caráter de um drama satírico, no sentido em que imitava os movimentos dos sátiros.
A interpretação nietzscheana da tragédia estabelece uma compreensão determinada de que
o coro representa a realidade mesma, que o que se segue na cena é uma proto-visão, o
momento em que pela primeira vez também ao coro aparece o próprio Dioniso, falando
como herói individualizado.
Nem para a história nem para a antropologia existe uma explicação, ao menos
satisfatória, que compreenda o momento no qual apareceram outros mitos e personificações
além de Dioniso como objeto da tragédia. Esse ponto será melhor desenvolvido após
recuperarmos alguns elementos históricos sobre o coro trágico, o que faremos no capítulo
seguinte. Contudo, veremos que esses elementos históricos são insuficientes para justificar
uma metafísica da música, tornando-se necessário, pois, uma teoria filosófica que
identifique Dioniso com a expressão da totalidade do mundo.
Representando o coro a própria realidade, a reconciliação do homem com a natureza
aparece sob a magia dionisíaca que rompe a expressão apolínea da individuação. A poesia
44
trágica de Ésquilo, de Sófocles e em parte a de Eurípides, possui essencialmente no olhar o
poder de penetração que atinge esse fundo onde não existe o eu ou o tu, mas uma
comunhão mística na qual todos são um com a Natureza: é precisamente aqui que há a
dissolução do princípio de individuação no seio do fundo místico do dionisíaco. E é
precisamente isso que representa, na metafísica de Dioniso, o papel do coro: acolher o herói
na sua desgraça e consolá-lo no seio da Natureza.
Para conduzirmos nossa investigação rumo aos objetivos aqui visados, quais sejam,
a compreensão metafísica dos instintos apolíneo e dionisíaco e a sua tensão dialética,
devemos antes retomar um ponto capital perante a interpretação nietzscheana da tragédia.
Trata-se da ausência do elemento musical na nossa leitura do drama antigo e da
impossibilidade histórico-filológica de sua recuperação. O passo seguinte deverá ser dado
rumo à filosofia schopenhaueriana. O caminho talvez se mostre espinhoso, exigindo um
longo percurso pela discussão dos sentimentos do belo e do sublime, mas ao final se
revelará mais compreensível a metafísica presente em O nascimento da tragédia. Após esse
primeiro capítulo, introdutório e mais descritivo, conduziremos nossa investigação pelas
sendas do representável e do irrepresentável. Pois, repetimo-lo, o sublime é o verdadeiro
objeto da tragédia.
45
CAPÍTULO II
Nietzsche e a interpretação do silêncio.
Aquilo que nunca, e em nenhuma parte aconteceu,
Só isso não envelhece.
Schiller.
Todo se há roto en el mundo.
No queda más que el silencio
El horizonte sin luz
García Lorca.
§. 1 – Linguagem e Transcendência.
Nas várias tendências de nossa tradição, a linguagem parece encontrar um fato já
decididamente aceito: as suas fronteiras. O que não fica comumente decidido, no entanto, é
o que se encontra para além dos limites da palavra. Na tradição neoplatônica e gnóstica, ali
onde a palavra humana falha e teima em se calar encontra-se a luz. “O que há para além
da palavra humana é revelador de Deus”, diz George Steiner.55 Além da expressão divina
revelada como luz, podemos encontrar ainda em nossa tradição uma corrente distinta que se
orienta por uma outra modalidade de transcendência, a música. A noção de que a estrutura
do cosmos está ordenada pela harmonia musical é tão antiga quanto Pitágoras, e se
olharmos para o passado mais longínquo não conseguiremos ver senão uma origem comum
55 STEINER, G. Linguagem e Silêncio, ensaios sobre a crise da palavra. p. 59.
46
para a poesia e para a música. Essa harmonia entre a música e a palavra está presente, por
exemplo, entre os poetas gregos.
Mais tarde, no romantismo alemão, o ideal musical estará sempre para além da
linguagem verbal. Tendo a idéia de correspondência presente na crença da música como
linguagem universal, a conseqüência que se seguirá será a interpretação da linguagem
verbal como inferior à expressão musical. Essa idéia faz parte do sentimento romântico,
simbolista e moderno, e encontrará em Nietzsche e em Wagner um lugar privilegiado para
a sua consumação.
Em Wagner há um vínculo entre a poesia e a música: na sua concepção de uma
Gesamtkunstwerk, a primeira lança-se numa aspiração ascendente rumo à segunda, ou mais
precisamente, rumo à modulação musical, atingindo uma combinação de expressão total
entre esses dois elementos antes dissociados. A visão que Nietzsche lançará sobre o mundo
grego será predominantemente marcada por essa aproximação entre a música e a palavra. A
sua interpretação da Grécia perscrutará na alma do povo helênico o elemento musical do
drama antigo, que julga indissociável da palavra que compõe as peças dos dramaturgos
gregos.
Nas últimas décadas do século XVIII, por meio das reflexões de Lessing (1729-81) e
de Winckelmann, e posteriormente com a autoridade de Goethe e de Schiller, e ainda com
todo o movimento que ficou conhecido por neo-romântico, a exaltação do gênio helênico
da época clássica permaneceu amplamente ancorado por uma visão resplandecente e por
um ideal puro de beleza e esplendor, por uma clareza e serenidade plásticas expressas nas
noções de medida e proporção. O ideal classicista compreendia em todas as criações do
espírito grego, na religião, na arte, na vida prática e intelectual, um caráter puro que
desconhecia a contradição entre a vida e a arte, ou entre o viver e o pensar.
47
Também sobre isso nos dá testemunho Rodolfo Mondolfo, para quem o classicismo
quis prender e cristalizar o gênio helênico, representando apenas aspectos parciais da
história e da vida dos gregos, não compreendendo a multiplicidade que envolvia o “espírito
tão poliédrico e cheio de fervor” dos antigos.56 A religião olímpica, como já dissemos no
primeiro capítulo, não era a única tendência que orientava a visão de mundo desse povo,
além da harmonia plástica e da resplandecência exaltadas pelo classicismo, ou seja, do
próprio instinto apolíneo, encontrava-se no mundo e na vida dos gregos uma tendência
diferente, estranha e enigmática, uma tendência que na intuição genuinamente filosófica de
Nietzsche se contrapunha àquela vontade de ilusão ou de aparência (Wille zum Schein).
Trata-se do instinto dionisíaco.
Se o apolíneo é a representação da clareza e da luminosidade do mundo, o
dionisíaco representa os impulsos de paixões exageradas, desordenadas, de desumanização,
de excesso, enfim, os impulsos de exaltação e de pessimismo. As intuições da filosofia de
juventude de Nietzsche chegam à sua originalidade quando advertem que sem o aspecto
sombrio e noturno da alma grega, não se pode compreender ou apreciar aquele aspecto
plástico, luminoso e harmonioso da consciência apolínea. Dessa forma, Nietzsche
distancia-se do classicismo e tenta compreender a visão dos gregos por meio da
contraposição de tendências conflitantes da alma grega.
O nascimento da tragédia é, assim, uma reconstrução do mundo clássico, uma
tentativa de restabelecer o “canto das musas” calado pelo efeito do tempo e pela aridez da
tradição erudita. É a tentativa de recriar um passado perdido e somente agora, após terem os
seus mestres, Kant, Schopenhauer e Burckhardt, legitimado a sua procura, tornou-se
possível encontrar no espírito dionisíaco e na aparência apolínea os fundamentos de uma
56 MONDOLFO, R. O infinito no pensamento da Antigüidade Clássica, pág. 27.
48
leitura total do teatro grego. Assim, a própria cultura não pode ser compreendida ou
mesmo definida como aquele esforço incessante de adquirir um saber mais abrangente, mas
deve se definir, de acordo com Nietzsche, como a unidade que traz em si o estilo artístico
de todas as manifestações vitais de um povo.
Fica, assim, a compreensão de que naquela grande manifestação trágica da cultura
grega, o esforço dos tragediógrafos e dos espectadores não era tanto o de buscar o
enriquecimento e as experiências que serviriam como adornos para a humanidade. O teatro
antigo, ao contrário do teatro de nossos dias, não tinha por objetivo o entretenimento, mas
conseguir uma unidade de estilo nas obras já realizadas pela cultura, como a epopéia, a
lírica e as canções populares. O importante era chegar a uma visão de mundo que possuísse
profundidade para representar o enigma do homem em suas contradições essenciais. A
filologia é, sem dúvida, necessária para resgatar a compreensão dessas manifestações
culturais, mas se apresenta insuficiente, pelo menos na visão de Nietzsche, por não se
preocupar com a totalidade ficando, assim, presa a uma investigação minuciosa dos
documentos e, por fim, não percebendo a transcendência musical presente nas peças do
teatro antigo, uma vez que se limita ao exame científico da linguagem escrita, a única que
nos restou.
§. 2 – A Sabedoria Popular e a Representação da Divindade.
Uma das teses defendidas por Nietzsche em O nascimento da tragédia já era
partilhada por vários outros estudiosos da cultura grega. De Aristóteles a Burckhardt, a
tragédia surgiu do coro formado pelas festas de louvor ao deus Dioniso. Mas é de Nietzsche
49
a leitura desse coro originário que cantarolava os sofrimentos do deus como sendo a
representação da realidade mesma, uma espécie de sabedoria que expressava toda a cultura
anterior à própria criação da obra de arte, ou seja, anterior aos poemas homéricos e aos
deuses do Olimpo, só que agora de uma maneira lírica e subjetiva. Em seu prefácio para um
livro jamais escrito, intitulado A disputa de Homero, Nietzsche apresenta uma hipótese a
respeito do período pré-homérico, vislumbrando ali um mundo repleto de ódio, de
desgraças, e no qual prevalecia a sabedoria popular que rezava a não-existência de sentido
para a vida humana, uma crueldade que consumia o espírito desse povo num crescendo
terrível:
Quando, em uma luta entre cidades, a vencedora executa toda a população masculina da outra e
vende as mulheres e crianças como escravos, segundo o direito de guerra, vemos na concessão de um
tal direito, que o grego considerava como uma grave necessidade deixar escoar todo o seu ódio; em
tais momentos, a sensação de inchaço, de cheia, aliviava-se: o tigre sobressaía, uma voluptuosa
crueldade brilhando em seus olhos terríveis. 57
Por que todo o mundo grego se regozijava e se deixava admirar pelas sangrentas
imagens dos combates descritos na Ilíada? Nietzsche faz essa pergunta na seqüência. Se
o mundo homérico representa uma realidade cujas cores fortes, e ao mesmo tempo suaves,
revelam uma ilusão artística que torna a vida mais simpática ao destino dos homens, como
haveria de ser o mundo grego no período pré-homérico? A resposta de Nietzsche:
“Olharíamos apenas para a noite e o terror, para o produto de uma fantasia acostumada ao
horrível. (…) Uma vida dominada pelos filhos da noite, a guerra, a obsessão, o engano, a
velhice e a morte. 58
57 NIETZSCHE, F. Cinco prefácios para cinco livros não escritos, pág. 74.58 NIETZSCHE, F. id., pág. 75.
50
Somente como fenômeno estético encontra a vida a sua justificação: a arte é a
principal saída dos gregos para o problema do pessimismo. Ela é aqui representada como o
grande jogo capaz de mascarar a realidade terrível e acolher o homem, salvando-o por meio
da representação trágica. É a necessidade da arte que teria movido o artista grego a
conjugar a representação apolínea com a realidade dionisíaca do mundo. É a possibilidade
de tornar o dionisíaco representável, isto é, de domar suas forças cegas pela beleza e
serenidade do instinto apolíneo, que tornou possível a criação da tragédia grega. Nesse
sentido, Nietzsche encontra uma resposta para um problema que inquietava Jacob
Burckhardt: como surgiram outros mitos além de Dioniso na representação trágica?59 Como
surgiram outros personagens no palco do teatro grego?
A tragédia, na sua origem primitiva, era apenas canto coral, ou seja, não era ainda
tragédia, ou melhor, drama, mas um grupo estático de sacerdotes extáticos que cantavam
louvores ao deus Dioniso. Para que possamos ter uma compreensão mais precisa da
possibilidade de criação da tragédia, faz-se necessário uma reflexão histórica, ainda que
breve, pois esse não é o nosso objetivo, do abandono da poesia épica e da tradição heróica
que tinham nos hinos aos deuses o único objeto possível da poesia.
Após os tempos de Homero (séc. IX a.C.), como nos mostram os grandes
historiadores da cultura grega, entre outros, Burckhardt, Jaeger e Mondolfo, a poesia
desenvolveu-se cada vez mais voltada para a comunidade e suas exigências pedagógicas e
morais, e para a vida do próprio indivíduo. Mesmo tendo as novas formas poéticas brotado
de um solo comum (a epopéia), o próprio mito restringe-se, aos poucos, a um lugar mais
tímido na cultura pós-homérica, sendo em muitos casos, como em Arquíloco e em Teógnis,
em grande parte abandonado. Porém, vejamos o que nos diz Jaeger:
59 BURCKHARDT, J. “Mas quando e por quem foram ali introduzidos, além de Dioniso, outros personagens e mitos, é para nós uma questão obscura.”. in História de la cultura griega, vol. 3, pág. 278.
51
Apesar do esforço crescente para transpor o conteúdo ideológico da epopéia para a realidade atual e
progressivamente converter a poesia em intérprete e guia direto da vida, o mito conserva a sua
importância como fonte inesgotável de criação poética. Pode ser usado como elemento de idealidade,
quando o poeta enaltece o atual, referindo-se ao mítico, e assim ergue a realidade para uma esfera
superior: é o que sucede com o uso de exemplos míticos na lírica.60
Se a epopéia começa agora a perder o seu lugar central na cultura grega, é
precisamente pelo fato de, aos poucos e devido ao seu caráter histórico, tornar-se prosa.
Isso ocorre por um lado; por outro, dá-se o desenvolvimento da poesia coral que se
desenvolve fortemente na Sicília e que se espalha rapidamente pela Magna Grécia.61 Esses
coros eram acompanhados pela cítara, pela flauta alegre, e sempre guiados pelas canções de
lamentos, cujo tema eram os sofrimentos de Dioniso.62
Os elementos épicos tiveram que ser adaptados aos cantos corais, uma vez que
esses eram sempre acompanhados pelos instrumentos e por uma variada construção rítmica
que inspirava as danças corais.63 Essa variação rítmica conduzia a atenção dos participantes
do culto até o centro sobre o qual se fundava o próprio ritual: Dioniso era o verdadeiro
objeto dessas manifestações festivas e era a ele que as canções corais se dirigiam:
Nascida de improvisações tanto a tragédia quanto a comédia, a primeira por obra dos solistas do
ditirambo, a última, dos solistas dos cantos fálicos, composições ainda hoje apreciadas em muitas
cidades , a tragédia se desenvolveu pouco a pouco, à medida que evoluíam os elementos que lhe
eram próprios. Depois de modificar-se muito, estabilizou-se ao atingir sua natureza própria.64
60 JAEGER, W. Paidéia, pág. 268.61 Tísias (643-560 a.C.), que recebeu o nome de Estesícoro (criador de coros), nasceu na Sicília, na cidade de Hímera, e teria sido ele o responsável pela “introdução em massa da matéria épica na lírica coral.” BURCKHARDT, J. op. cit. Pág. 253. Para saber mais sobre Estesícoro, ver EASTERLING, P. E. e KNOX, B. M. W. Historia de la literatura clásica, pág. 210 até 226. 62 Cf. BURCKHARDT, J. op. cit. Pág. 93 ss. 63 Para saber mais sobre a dança grega, ver novamente BURCKHARDT, J. op. cit. Pág. 196 ss e pág. 251 ss.64 ARISTÓTELES, Poética, IV, §20. O grifo é meu.
52
Dessa massa coral originária, que dirigia os seus ditirambos ao deus da embriaguez,
teria surgido no século VII a.C. um solista (corifeu), que representava agora o próprio deus:
a boca desse indivíduo era a fenda pela qual saia a voz do próprio Dioniso que
dialogava, então, com aquela massa coral. Ora, aí estão os primeiros elementos da tragédia,
e, de um modo geral, do drama: temos, a partir desse momento, a figura do ator, do
hypokritês, daquele que se coloca no lugar do outro. Somente uns duzentos anos mais tarde,
a partir do século V a.C., quando a tragédia encontra a sua maior expressão, é que se passou
a focalizar não apenas Dioniso, mas também outros mitos e outras divindades e
principalmente com Eurípides, também temas profanos.
É justamente aqui que se coloca aquela interrogação de Burckhardt sobre a
passagem da representação do deus a outros deuses e mitos. E é aqui que encontramos a
suposição metafísica de Nietzsche: toda representação trágica, seja aquela que apresenta o
destino miserável, porém nobre, de Édipo ou de Antígona, enfim, da família dos Labdácias,
é a expressão, em última instância, da realidade dionisíaca, e os heróis e mitos são máscaras
do deus do vinho. Essa é a tese de Nietzsche, tese essa que agradou profundamente seu
mestre Burckhardt.65 O objeto da tragédia, que subjaz a todos os elementos diversificados,
todos os episódios e temas, é, no fundo, os sofrimentos de Dioniso. Daí segue-se, como
hipoteticamente já o sugerimos, a compreensão de que o sublime é objeto da tragédia, e a
música a expressão desse sublime uma vez que se compreenderá, aqui, uma confluência
entre o sublime e Dioniso. É a própria divindade que é colocada no palco e sobre o seu
rosto, a máscara da individuação do herói. Essa máscara deverá ser retirada com a
destruição do protagonista do drama, a sua destruição é o retorno para a natureza, para a
65 Ao colocar esse problema em sua obra, Burckhardt menciona, admirado, essa postura de Nietzsche perante o problema. Talvez seja aqui Burckhardt o primeiro estudioso a citar a obra de Nietzsche. Cf. BURCKHARDT, op. cit. Pág. (s) 277, 278, notas de rodapé: 113, 114.
53
physis, para aquela situação coral inicial na qual não havia individuação. É nesse sentido
que encontramos no final das peças trágicas o consolo prestado pelo coro ao herói,
acolhendo-o no seu seio e recolhendo-o do palco do teatro.
§. 3 – A Natureza da Tragédia.
Freqüentemente as melodias dos gregos recebiam letras de acordo com a ocasião,
mas nunca as letras eram fixadas ou exatamente as mesmas, variavam de acordo com a
improvisação, no que a melodia permanecia a mesma. A capacidade de improvisação
recebia nos concursos de canto da Grécia Antiga um peso considerável e servia como
critério principal de avaliação, por exemplo, das mulheres que constantemente participavam
desses concursos.66 Vemos com isso, que mesmo nessas festividades populares já havia
uma necessidade de adequação da palavra com a música, mas, apesar de todo o esforço de
adequação, a música permanecia soberba na sua superioridade em relação à palavra.
Também nas tragédias gregas, os versos mantinham um estreito laço com a música, que
entre os gregos possuía o ritmo mais desenvolvido que a melodia, como nos atesta
Burckhardt.67
Reside aqui o principal problema em relação à arte musical: como podemos nos
aproximar da música grega? Não podemos. A não ser pela imaginação criadora: a música
dos antigos tornou-se silêncio. Um silêncio intransponível. Não podemos ouvir ou
compreender a música do povo que nos legou tantas riquezas do espírito. A esse respeito,
Otto Maria Carpeaux chama a tenção para o fato de que o problema da música dos gregos
66 Cf. BURCKHARDT, J. op. cit. volume 3, sobretudo a seção sétima, “Poesía y música”, parte III, “La música”.67 Cf. BURCKHARDT, id..
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deve ser tratado de uma maneira diferente da que tratamos a literatura, as artes plásticas e a
filosofia deles, uma vez que: a) ela não exerceu sobre a nossa cultura musical a mesma
influência que as outras atividades citadas; b) os fragmentos da música grega que nos
restaram são insignificantes; c) não sabemos (os músicos não sabem) ler esses poucos
fragmentos musicais com segurança.68
Infelizmente, quando falamos que a música mantém um laço muito forte com a
palavra nas tragédias gregas e na cultura antiga em geral, apenas podemos ter uma idéia
imperfeita de como realmente se dava tal conexão. O lugar da música entre os gregos é um
tema que tem ocupado muitos filósofos e interessados pela literatura e pela cultura dos
antigos. Por certo, concebemos os helenos como aficionados por música, mas os nossos
conhecimentos de como era essa música permanece ainda muito incompletos, de tal forma
que ela, a música, tornou-se mesmo misteriosa. E, ao que parece, esse é um problema
insolúvel.
De qualquer forma, como dissemos no início desse capítulo, entre os poetas gregos
a poesia está unida com a música, sempre numa perspectiva religiosa. Assim, foram os
próprios deuses que criaram os instrumentos musicais: Hermes teria inventado a lira, Apolo
a cítara, Atena a flauta, o endiabrado deus Pan, uma variação da flauta, etc.69 Lembro isso
para dizer que mesmo os mitos dos deuses estão repletos de representações musicais. Por
exemplo, danças corais, acompanhadas pelo canto, eram dirigidas pelas mulheres ao deus
Dioniso e eram comuns entre os gregos outras festas acompanhadas por manifestações
musicais. Aliás, em nenhum outro lugar desenvolveu-se o coral como ali nas festividades
dionisíacas. Nessas manifestações, a religião não aparecia separada do âmbito da vida,
68 CARPEAUX, O. M. Uma nova história da música, “Prefácio da 1ª edição”, no qual o autor cita o musicólogo inglês Donald Francis: “as formas da arte musical foram desenvolvidas pela civilização européia a partir do século XIV da nossa era, a música mais antiga está além da nossa capacidade de compreensão.”69 Cf nota 62.
55
sendo que o próprio culto não se direcionava a nenhuma transcendência: “Aqui nada há que
lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante
existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou
mau.”70
A tragédia grega não é apenas, como poder-se-ia pensar a partir da filologia e da
busca histórica do nascimento do teatro, uma reconstrução dramatizada que se apresenta
agora entoada por um coro daqueles belíssimos cantos da Ilíada e da Odisséia. Nas
palavras de Jaeger:
Nem a dramatização dos cantos heróicos gregos teria sido outra coisa senão uma nova elaboração das
representações artísticas da lírica coral, sem grande interesse para nós e sem capacidade de evolução
ulterior, se não tivessem sido elevados a um mais alto grau de espírito heróico e adquirido assim um
nova força artística e criadora.71
Ora, também na monumental Paidéia de Werner Jaeger,72 encontramos elementos
que nos ajudam a pensar a tragédia como tendo sido originada do ditirambo. Os atores do
teatro dramático, no caso específico da tragédia, enchiam-se de um êxtase que, assim como
Nietzsche, Jaeger afirma ser verdadeiramente dionisíaco.73 O coro, do qual segundo
Aristóteles teria nascido a tragédia, conseguia estimular um alto grau de furor nos
espectadores: associado aos outros elementos da representação trágica, como a música, ele
conduzia os espectadores a uma emoção jamais conseguida anteriormente, como, por
exemplo, no caso dos aedos e rapsodistas dos cantos das epopéias.
70 NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, §. 3, o grifo é meu. Daqui em diante, indicaremos as referências a esse livro com a abreviação “N. T.”, seguida pelo número da seção.71 JAEGER, Werner, Paidéia, a formação do homem grego, pág. 271.72 É interessante notar que as observações de Jaeger caminham no sentido de comprovar as teses de Nietzsche. Embora trate-se de um pensador posterior ao filósofo de Röchen, ele é aqui utilizado no sentido de dar tal comprovação histórica.73 JAEGER, W., id..
56
Era com a atitude alta e solene com que os cidadãos se reuniam às primeiras horas da manhã para
honrar Dioniso, que eles agora se entregavam de corpo e alma e com alegre aceitação às impressões
que as graves representações da nova arte lhes ofereciam. 74
Esse canto coral pertencia à classe do ditirambo, canção dedicada a Dioniso e que
era executada regularmente pelo coro. Como nos chama a atenção Nietzsche, a música
entoada pelos entusiastas dionisíacos, que os preenchia de dor e prazer, excitando neles
espantos e pavores,75 diferia-se da música de Apolo, o inventor da cítara com já dissemos,76
precisamente por essa música apolínea ser demasiado austera e representar ela mesma, para
usar a expressão do autor de O nascimento da tragédia, uma “arquitetura dórica de sons”.77
A observação de Nietzsche é aqui muito correta, uma vez que o ditirambo dionisíaco, por
sua vez, é uma composição poético-musical que não encontra nenhuma regularidade nas
estrofes, como nos documenta Antônio Houaiss, que diz que essa irregularidade “quanto ao
número de versos e pés, métrica e disposição das rimas, visa festejar o vinho, a alegria, os
prazeres da mesa etc., num tom entusiástico e/ou delirante”.78 A música desses ditirambos,
a música dionisíaca, ao contrário da música de Apolo, é assim descrita por Nietzsche: “a
comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente
incomparável da harmonia.”79
74 JAEGER, W., op.cit., p. 273.75 NIETZSCHE, op. cit. § 2.76 Segundo Plutarco, a música antiga era solene sobretudo por ser invenção dos deuses e, para ele, foi o próprio deus Apolo o criador da música. Cf. Burckhardt, op. cit., p. 201. Essa filiação da música lhe concede, obviamente, uma significação ética importante. 77 NIETZSCHE, id..78 HOUAISS, Dicionário eletrônico da língua portuguesa, versão 1.0, verbete “ditirambo”, Instituto Antônio Houaiss, editora Objetiva, Ltda., 2001.79 NIETZSCHE, ib.
57
No início, portanto, os cantos ditirâmbicos narravam a história do deus e, aos
poucos, foi destacando-se do coro a personificação do próprio deus. Mas, como isso se
deu? O que se passava ali naquelas festas primitivas?
O ditirambo era uma canção dedicada a Dioniso, executada por amigos que se
reuniam possuídos pelo próprio deus, ou seja, que se reuniam bêbados em volta de um
banquete. Segundo Burckhardt, mestre e fonte segura de Nietzsche, foi a partir de um tal
Arión que o ditirambo começou a ser cantado regularmente pelo grupo que compunha o
coro.80 O objeto dessas canções era, ora o princípio da primavera e toda a alegria envolta
nessa estação tão admirada pelos gregos e que simbolizava o renascimento de Dioniso, ora
momentos tristes, como as dores e sofrimentos desse deus. Mas isso é uma descrição
histórica, ainda que geral e inexata, dos poucos elementos de que dispomos.
Esses elementos são reunidos por Nietzsche na sua leitura do teatro trágico da
Antigüidade e apresentados aos seus alunos na universidade da Basiléia, nos seus cursos
sobre a literatura e o culto dos gregos. Essas aulas estão disponíveis nas edições das obras
(in)completas de Nietzsche, organizadas por Max Oehler em 1922 e traduzidas em Madrid
(com publicação simultânea também em Buenos Aires e México) no começo dos anos 50,
por Felipe González Vicen. No tomo XIV da edição em língua espanhola, intitulado La
cultura de los griegos, estão reunidas as lições pronunciadas na universidade da Basiléia
entre os anos de 1872 e 1878. Nos anos de 1874 e 1875, as lições de Nietzsche voltaram-se
para a “História da literatura grega”, e é ali, além é claro da obra publicada em 1972, O
nascimento da tragédia, que encontramos uma valiosa descrição da tragédia.
São essas as principais proposições do olhar nietzscheano sobre a natureza da
tragédia:81
80 BURCKHARDT, J. op. cit. 277.81 Todas as citações que se seguem nessa enumeração são retiradas do tomo XIV, La Cultura de los Griegos, das Obras completas de Federico Nietzsche, “História de la Literatura Griega”, § 8. Pág.79 até 82.
58
i) O sentido original e próprio da tragédia é constituído por elementos líricos,
“e só paulatinamente retrocedem ante o diálogo. (…) Uma grande unidade
musical percorre as partes líricas da antiga tragédia.”;
ii) O surgimento da tragédia coincide com “a exposição dos terríveis e
dolorosos mitos dionisíacos, e não mudou seu tom.”;
iii) O antigo coro de sátiros da tragédia nada tem a ver com aquela caricatura
satírica do homem, burlesca, ao contrário disso, “Existem características de
uma concepção completamente distinta [no] âmbito dionisíaco, como, por
exemplo, na lenda do diálogo entre Midas e Sileno.”;82
iv) O ditirambo que dá origem à tragédia não deve ser pensado nem na sua
forma clássica nem na sua forma moderna, mas trata-se, sim, do ditirambo
hesicástico. “As duas formas artísticas, tragédia e o ditirambo hesicástico,
desenvolveram-se paralelamente no culto estatal, delineando sua
contraposição cada vez mais estritamente.”;
v) “A tragédia surge da lírica dionisíaca, não da lírica apolínea.”;
vi) A tragédia é a reunião de todas as artes. “O amplo âmbito de vinte a trinta
mil cidadãos, o céu aberto, os coros que aparecem com coroas douradas e
enfeites magnificentes, a cena de grande beleza arquitetônica, a confluência
de todas as artes.” Essa descrição de Nietzsche opõe-se à sua observação do
teatro francês clássico, no qual “os atores apenas ficavam [em relação aos
espectadores] a dez passos para a ação”.;
82 Esse diálogo entre o rei Midas e o sátiro Sileno a que se refere Nietzsche foi por ele exposto em N.T., cap. 3.
59
vii) “O fim e o propósito do poeta são uma grandiosa cena plena de ressonância,
o pathos, um ponto culminante da vivência lírica.”;
viii) A importância suma da música incitante. O papel da canção é agora mudado:
de “construir algo principalíssimo junto aos episódios, passam a transformar-
se em música para os entreatos. Uma vez criada a oposição entre coro e ator
esse último como virtuoso , esta teria que se aprofundar cada vez mais.
Neste processo encontra-se a história da tragédia.”;
ix) Na tragédia não deve surgir nada que desprenda o interesse, não deve haver
surpresa. “Os personagens devem ser conhecidos de longa data e respeitados
como pre-história mítica do povo. Como mito, o acontecer deve estar
próximo, pois só a história conhece a lonjura no tempo.”;
§. 4 – O Silêncio da Tragédia… ou a Tragédia do Silêncio.
A música encontrou no seu casamento com a voz humana uma condição mais
elevada para os antigos gregos. Ali na Grécia Antiga, esse casamento era preferível à
música instrumental. Burckhardt lembra que certa vez na procissão de Filadelfo, apareceu
um coro de 600 homens, entre os quais cerca da metade estava tocando “cítaras douradas e
[ornamentados com] coroas também douradas”.83 Nesse coro, lembrado aqui por
Burckhardt, podemos imaginar a perfeita combinação entre a voz humana e os
83 BURCKHARDT, op. cit. Pág. 192.
60
instrumentos. Mas podemos apenas imaginar. Assim, também em outros casos, podemos
imaginar aquela massa coral primitiva acompanhada pela música dionisíaca na ocasião do
culto. Mas isso aparece-nos de uma forma muito vaga. É preciso, pois, nesse momento da
investigação, ultrapassar as descrições históricas e buscar uma interpretação filosófica. É
aqui que a erudição de Burckhardt já se apresenta como insuficiente para uma leitura do
problema. É preciso uma interpretação filosófica, metafísica, vale dizer, da própria música
, uma vez que a música histórica já não nos interessa, pois não pode mais preencher
nossa imaginação, tendo ela mesma desaparecido e a sua lembrança se tornado estéril. A
música deve, agora, tornar-se objeto da filosofia.
É justamente sobre essas lembranças vagas da música grega que se instala, agora,
um problema na leitura de Nietzsche das tragédias gregas. A esse problema, daremos o
nome aqui, na presente dissertação, de silêncio da tragédia. Eis a difícil situação posta nas
palavras do próprio Nietzsche:
Eu afirmo, com efeito, que o Ésquilo e o Sófocles que nós conhecemos nos são conhecidos
unicamente como poetas do texto, como libretistas, ou seja, que precisamente eles nos são
desconhecidos.84
É com um silêncio assustador que Nietzsche se depara ao ter em mãos as obras dos
poetas do teatro antigo. Após compreender que a origem da tragédia havia ocorrido
precisamente naquelas festas corais, portanto, musicais, o que nos resta agora do teatro
antigo é apenas um cântico silente. É a partir desse problema que Nietzsche faz a denúncia
da incompetência da leitura erudita de uma tragédia clássica. Pois, O nascimento da
84 NIETZSCHE, “Das griechische Musikdrama”, pág. 517. “Ich behaupte nämlich dass deruns bekannte Aeschylus und Sophokles uns nur als Textbuchdichter, als Librettisten bekannt sind, das heisst dass sie uns eben unbekannt sind.” Todas as citações de O drama musical grego traduzidas que irão aparecer no corpo da presente dissertação são de minha autoria. À essas traduções seguir-se-á, em notas de roda pé, o texto original, indicado com o número da página, seguido da numeração marginal. Ver bibliografia, nº 75.
61
tragédia tem como tese que o efeito principal do drama ático repousa sobretudo num
elemento que se perdeu através do tempo e com os rigores da filologia acadêmica: a
música.
As intuições de Nietzsche modificam de modo definitivo, em sua filosofia de
juventude, o nosso olhar para o passado, rumo aos gregos e aos fazedores de tragédia. A
experiência do silêncio da cena trágica será aos poucos transformada. Ela encontrará a
revelação do enfraquecimento da palavra, do fantasma que ronda os livros empoeirados das
estantes de nossa biblioteca. O silêncio absoluto da música ocupou a leitura dos eruditos
que voltaram o seu olhar para o palco das representações trágicas. E é esse silêncio das
musas da tragédia que a interpretação de Nietzsche procura desfazer.
A música grega tornou-se história, isto é, tornou-se pálida, numa palavra,
desapareceu. Apesar de todas essas considerações, de toda essa aproximação entre a voz
humana e os instrumentos musicais, tudo isso não passa para nós de palavras, de narrações
que têm se tornado vazias e que somente apresentam uma parte das tragédias. É que a parte
musical está destruída, apagada pelas páginas da história para todo o sempre. De tal forma
que os resquícios musicais das tragédias antigas são ainda mais obscurecidos pela tentativa
moderna de empreender uma leitura erudita e demasiado consciente das peças teatrais. Foi
assim que a tentativa da filologia de se voltar de forma douta para o antigo, na Alta Idade
Média, interrompeu a evolução da música grega, enterrando a possibilidade de se resgatar
ainda alguns aspectos musicais do teatro antigo. Foi mais ou menos assim que as peças do
teatro grego se tornaram puramente literatura, obras para serem lidas. Ou, para lembrar a
expressão de Nietzsche, tornaram-se música para os olhos: a música “tornou-se música-
62
literatura, música para ler.”85 Referindo-se a Píndaro, a Ésquilo e ainda a Sófocles, ele diz
que:
Quando os chamamos poetas, queremos dizer precisamente poetas de livro: mas justamente com isso
perdemos toda intelecção de sua essência, a qual se nos descobre unicamente quando alguma vez, em
uma hora intensa e rica de fantasia, fazemos desfilar diante de nossa alma a ópera de um modo tão
idealizado, que se nos dá precisamente uma intuição do drama musical grego.86
Novamente é o poder da música que é evocado por Nietzsche. Não é à toa que ele
foi, salvo engano, o primeiro a chamar a tragédia antiga de drama musical grego,87
colocando lado a lado a ópera de Richard Wagner e o teatro dramático numa
interpretação da tragédia grega por meio da grande ópera. Era preciso restabelecer o canto
perdido das musas trágicas, e Nietzsche interpretou os movimentos do coro sobre o fundo
do delírio dionisíaco das desarmonias. É contra a civilização da palavra que o filósofo
deseja fazer emergir a celebração da tragédia grega. Se a tragédia antiga se apresenta à
modernidade apenas como libreto, qual é o elemento capaz de propiciar a revitalização da
essência do drama?
O que é preciso, para Nietzsche, é o resgate nos gregos não da obra guardada tão
fielmente quanto possível nos textos de arte trágica, mas é preciso resgatar o elemento
fundador da tragédia. Somente esse elemento poderia fazer a tragédia entoar novamente o
seu canto. É preciso devolver ao texto o seu elemento musical. Compreender musicalmente
85 NIETZSCHE, op. cit., pág. 517, 11-12, “Es war dies Litteraturmusik, Lesemusik.”86 NIETZSCHE, id., 22-27, “Wenn wir sie als Dichter bezeichnen, so meinen wir eben Buchdichter: gerade damit aber verlieren wir jeden Einblick in ihr Wesen, das uns einzig aufgeht, wenn wir die Oper uns einmal in kräftiger phantasiereicher Stunde so idealisirt vor die Seele führen, dass uns eben die Anschauung des antiken Musikdrama’s sich erschliesst.” 87 Nietzsche toma emprestado essa expressão de Richard Wagner, que pretendeu criar um novo tipo de obra dramática: a Gesamtkunstwerk (obra de arte total). Wagner pretendia reunir, numa só obra, todas as partes constituintes da arte dramática, a música, os espetáculos, a encenação, o drama: um imenso conjunto que ele preferiu dar o nome de dramas musicais, evitando, assim, o nome ópera.
63
a arte trágica, os textos que nos chegaram pela tradição, significaria recusar uma leitura
conceitual do texto antigo. Daí a distância que Nietzsche toma da filologia clássica, daí a
incompreensão de Wilamowitz-Möllendorf.
A interpretação do silêncio é a essência filosófica de O nascimento da tragédia. A
ópera wagneriana ao lado do drama de Sófocles fez aparecer aquilo que já não podíamos
ouvir das musas trágicas. Nietzsche supõe no pathos originário um elo entre a palavra e a
música; entre a forma imagística de Apolo e o delírio musical de Dioniso.
Se os limites da palavra escondem um mistério guardado no silêncio, esse mistério
ganha agora um sentido e uma interpretação: é aquela leitura de Aristóteles, segundo a qual
a tragédia grega nasceu do coro, levada às últimas consequências. É a música habitando
lado a lado com o silêncio o lugar de transcendência da palavra escrita. Eis o paradoxo.
Em sua autobiografia, Ecce Homo, o filósofo comenta:
Uma ‘idéia’ a oposição entre dionisíaco e apolíneo transporta para o metafísico; a própria
história como o desenvolvimento dessa ‘idéia’; na tragédia, a oposição elevada a uma unidade; dessa
ótica, coisas que nunca se haviam vislumbrado, súbito colocadas frente a frente, iluminadas e
compreendidas uma pela outra… por exemplo, a ópera e a revolução…88
O que essa unidade permitiu compreender, de fato, já era algo esquecido pela
tradição. A criação da tragédia se originou no coro, na música dissonante dos rituais
dionisíacos, como já apontamos. A história erudita da cultura, que nem sempre arrasta
apenas as páginas de um livro, também levou as partituras dessa ópera anacrônica, dessa
invenção grega. As peças de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, até certo ponto, são
interpretadas perante essa espécie de dialética nietzscheana, como a totalidade de uma
composição musical. Frente a esse todo da cena trágica, a nossa leitura torna-se unilateral,
88 NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por escrevo livros tão bons”, pag. 61.
64
apenas alimentamos o nosso espírito com as palavras que nos chegaram, vindas do passado
grego. O vento já não traz as harmonias, os ritmos e dissonâncias através dos quais gritava
o ator no palco de Dioniso. Esse terrível silêncio ocupa o lugar da transcendência da
palavra. Sendo que esse lugar deveria ser ocupado pela música. Esse silêncio só pode ser
denunciado por uma visão trágica do mundo grego, e é essa visão que estabelece, em
Nietzsche, uma articulação entre a tragédia, compreendida como drama musical, e uma
leitura do fenômeno dionisíaco, aquilo que o estudioso português Nuno Nabais chamou de
estética do êxtase na dissonância rítmica e melódica.89
Como venho dizendo ao longo de todo esse capítulo, existe entre os poetas gregos
uma harmonia entre a palavra e a música, sendo que esta última se destinava a apoiar a
palavra nos poemas, reforçando a expressão dos sentimentos. A poesia não só conduz à
música como pode também tornar-se música, se conseguir atingir toda a potencialidade de
sua essência. A compreensão das peças trágicas da Antigüidade como dramas musicais
pressupõe essa harmonia. Em O drama musical grego, Nietzsche afirma sobre a música
que:
a sua finalidade era a de transformar a paixão do deus e do herói numa fortíssima compaixão nos
ouvintes. Sem dúvida, essa mesma tarefa tem também a palavra, mas para esta é muito mais difícil
revolvê-la e só pode fazê-lo com rodeios. A palavra atua primeiro sobre o mundo conceitual, e só a
partir dele o faz sobre o sentimento; [a palavra] com bastante freqüência não alcança de modo algum
sua meta, dada a longitude do caminho. Ao contrário, a música toca diretamente o coração, posto que
é a verdadeira linguagem universal que em todas as partes se compreende.90
89 NABAIS, Nuno, Metafísica do trágico, estudos sobre Nietzsche, pag. 62.90 NIETZSCHE, “Das griechische musikdrama”, pág. 528, 28-34, pág. 529, 1-2. “ihre Aufgabe war es, das Erleiden des Gottes und des Helden in stärkstes Mitleiden bei den Zuhörern umzusetzen. Nun hat ja auch das Wort dieselbe Aufgabe, aber es wird ihm viel schwerer und nur auf Umwegen möglich, dieselbe zu lösen. Das Wort wirkt zunächst auf die Befriffswelt und von da aus erst auf die Empfindung, ja häufig genug erreicht es, bei der Länge des Wegs, sein Ziel gar nicht. Die Musik dagegen trifft das Herz unmittelbar, als die wahre allgemeine Sprache, die man überall versteht.”
65
Ao “ouvir” essa música dos poetas gregos, Nietzsche desenvolve a sua metafísica
de Dioniso. O espectador do teatro antigo, diante da música e da dança báquicas, direciona
o seu olhar para a essência do mundo, deixando-se conduzir até o íntimo do ser. Dilacerado
pela crueldade da existência, o herói trágico no palco não deseja uma negação da realidade,
não deseja se esquivar de seu inexorável destino. É assim que Édipo, no final da peça de
Sófocles, fura seus próprios olhos castigando o culpado pelos dois crimes horrendos. Ele
aceita-se culpado e, nessa consciência da culpa, não se furta ao próprio sofrimento com um
golpe fatal, como o faz sua mãe, mas, determinado, suporta a sua própria condição e
identidade, cumpre, pois, o que havia determinado no “Prólogo”: punir o assassino de Laio:
a única maneira, segundo o oráculo, de livrar Tebas da peste.
Ao contrário de uma saída escatológica, o herói das peças trágicas, de um modo
geral, percebe a possibilidade de aspirar ao belo, à aparência, de regressar às formas da
plástica e da luminosidade, à serenidade das formas. É esse casamento entre Dioniso e
Apolo que teria engendrado a tragédia. E é essa música de comunhão metafísica que
Nietzsche quis fazer ouvir. Eis o mistério da interpretação. Eis a criação de uma Grécia que
não se prende demasiado à poeira dos tratados de filologia. Nem ao desgosto de uma
submissão aos fatos da história.
§. 5 – A Música como Objeto da Filosofia.
A obra de Nietzsche inicia-se com uma dedicatória a Wagner e, num certo sentido,
tanto este quanto aquele possuem uma forte inclinação para a filosofia de Schopenhauer. O
Nietzsche que escreve O nascimento da tragédia é um pensador metafísico, quanto a isso
66
estou inteiramente convencido.91 O Wagner que em 1851 escreve Ópera e drama, está, por
sua vez, plenamente convencido de que a música é solenemente um meio, uma expressão
que traz à tona uma mensagem presente no drama. Em outubro de 1854,92 com a leitura de
Schopenhauer, Richard Wagner passa a conceber a música como expressão daquilo que
Schopenhauer chamou de Vontade, e é essa vontade de vida que possui um caráter
noumênico que é possível de ser alcançada por esse meio. Mas, seja como for, a música é
sempre um meio e nunca um fim em si mesmo para o compositor alemão.
Em 1886, nos posfácios a suas obras anteriores, Nietzsche tenta distanciar sua
primeira obra da música de Wagner, mudando o título de seu livro que passa de O
nascimento da tragédia no espírito da música para O nascimento da tragédia, ou
pessimismo e helenismo. Mas essa mudança de palavras esconde apenas uma mudança de
atitude, um acerto de contas com o passado. O Nascimento da tragédia continuará sendo
uma obra inesgotável, cujos elementos constituintes ainda não ganharam uma interpretação
cabal e definitiva e, pelo caráter da obra, jamais encontrarão tal interpretação. É
precisamente com as palavras desse livro de Nietzsche que essa seção sobre música e
filosofia deve se iniciar, no que buscaremos algum esclarecimento:
Na poesia da canção popular vemos, portanto, a linguagem empenhada ao máximo em imitar a
música: daí começar com Arquíloco um novo universo da poesia, que contradiz o homérico em sua
raiz mais profunda. Com isso, assinalamos a única relação possível entre poesia e música, palavra e
som: a palavra, a imagem, o conceito buscam uma expressão análoga à música e sofrem agora em si
mesmos o poder da música. Nesse sentido, nos é dado distinguir na história lingüística do povo grego
91 Nesse sentido, a presente dissertação caminha numa direção contrária à uma leitura como a de ASSOUN, P. L. Freud & Nietzsche, semelhanças e dessemelhanças, na qual o autor compreende o apolíneo e o dionisíaco dentro de uma perspectiva naturalista, identificando o pensamento presente em O nascimento da tragédia a uma philosophia naturalis. Contudo, o termo Natur, utilizado por Nietzsche, é empregado no sentido, ou próximo ao sentido, de physis, tal como os gregos compreendiam a natureza, não no sentido empírico ou biologizante do naturalismo. É claro que mais tarde esse sentido fisiológico ganhará destaque na obra de Nietzsche, mas, até onde consigo ver, trata-se de um erro ler a obra de juventude a partir da filosofia de maturidade, transportando para ali as críticas nietzschianas da metafísica. 92 BARRY MILLINGTON, Wagner, um compêndio, pág. 38.
67
duas correntes principais, conforme a linguagem imite o mundo da aparência e da imagem ou o da
música.93
Essa passagem guarda importantes elementos para compreender a relação da musica
com a poesia lírica e requer algumas explicações. A música ou a peça musical, apartada
totalmente da palavra, pode conduzir a imaginação do ouvinte a constituição de imagens e
de figuras. Ora, mesmo quando isso ocorre, essas imagens figuradas não nascem senão da
própria música, mas não são elas mesmas capazes de nos conduzir ao verdadeiro
significado da música, isto é, não têm essas imagens o poder de compreensão sobre o
significado total do mundo.94 A poesia lírica grega recebe, pois, em O nascimento da
tragédia, o papel importantíssimo e nada fácil de transpor para as palavras e imagens ( vale
dizer, para o conceito, tal como o compreende Nietzsche) a essência mesma da música, no
que ela se deixa transpor. A música vai ser entendida por Nietzsche como aquilo que
aparece como sendo a própria vontade, ou seja, como aquilo que se contrapõe, no sentido
dado por Schopenhauer, ao estado estético puramente contemplativo.95 É assim que o poeta
lírico deve exprimir a música em imagens, deve afastar-se da razão, pois a vontade é o
irracional, a coisa em si, o querer cego, e transpor-se para a paixão, “desde o sussurrar da
propensão até o trovejar do delírio”, como diz Nietzsche.96
Mergulhado nesse impulso dionisíaco, o poeta lírico compreende a própria natureza
e a si próprio como sendo uma única coisa, a saber como eterno querente, cobiçante,
anelante.97 Ora, é precisamente aqui que Nietzsche se distancia da leitura histórica e/ou
filológica. Com Burckhardt, Nietzsche aproximou-se dos gregos, isso o levou para longe de
93 NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. § 6. 94 Sobre esse ponto só alcançaremos maior detalhamento no final do capítulo III, quando será possível, após uma incursão pela filosofia de Schopenhauer, compreender a música como expressão da totalidade do mundo.95 Cf. O nascimento da tragédia, § 6.96 NIETZSCHE, id..97 NIETZSCHE, ib.
68
uma aproximação científica, pois não podemos deixar de notar um certo ar idealista na obra
desse grande historiador da cultura. Contudo, Nietzsche não é historiador, mas filósofo.
Vejo que, na sua leitura, os efeitos presentes na tragédia são decorrentes de uma dialética
trágica: quando o poeta lírico interpreta a música em imagens e palavras ele mesmo já está
sob o signo da individuação, de tal forma que ao falar dessa representação sem objeto, da
música, ele encontra-se no silêncio e na solidão que se localizam distantes do movimento
interminável e arrebatador da música. “Tal é diz Nietzsche o fenômeno do lírico:
como gênio apolíneo, interpreta a música através da imagem do querer, enquanto ele
próprio, totalmente liberto da avidez da vontade, é puro e imaculado olho solar.” 98
A poesia do lírico exprime tão-somente o que já está contido na própria música, que
em sua livre abundância conhece o todo e o representa, ainda que esse não se deixe
representar. Sim, porque o mundo, em sua essência, não é representável em sua totalidade.
A música, tal como a definiu Schopenhauer, é representação de uma inexistência.99 O poeta
lírico depende, então, do espírito da música, ao passo que esse espírito musical não precisa
das palavras nem das imagens, não precisa, pois, da esfera da aparência. Será mesmo
assim? A linguagem permanece, dessa maneira, limitada e impossibilitada de alcançar
completamente e num só golpe o simbolismo universal da música, porque esse é a
referência universal da metafísica de Dioniso.
Mas, se por um lado a música dispensa toda a “frivolidade” das imagens e das
palavras, por outro, a própria verdade do mundo a contradição e a dor primordiais de
Dioniso requer para si o apolíneo e o convoca para juntar-se a si na representação da
tragédia: o dionisíaco necessita da aparência e da individuação para revelar-se como
verdade. O coro precisou que um elemento (o corifeu) se destacasse e se tornasse outro,
98 NIETZSCHE, Op. cit., § 699 Cf. O Mundo como vontade e representação, § 51. Voltaremos a esse ponto no próximo capítulo.
69
para que o coro pudesse se realizar enquanto tal. Perante a música, toda linguagem na
medida em que é um órganon e símbolo da aparência, permanece impossibilitada de
exteriorizar a essência musical; mesmo aqueles momentos mais profundos de eloqüência do
poeta lírico não conseguem trazer à superfície das aparências a totalidade da música. Na
tragédia, o herói individualizado necessita da destruição, da dissolução, da dor e da angústia
para novamente retornar ao seio da natureza. O coro encarrega-se de consolá-lo.
Em última instância, o que é necessário ao herói trágico para realizar-se como tal?
Se se rompem as cadeias da individuação, ele não se depara senão com a própria morte.
Mas o drama, como já o demonstrou tanto Schopenhauer100 quanto Hegel101, está à frente
dos outros gêneros de poesia, pois não se limita aos simples meios de que a poesia dispõe.
Assim, em vez de simplesmente relatar acontecimentos e empreendimentos do passado,
como ocorre com as epopéias, ou de exprimir liricamente o mundo subjetivo e nada mais, o
drama propõe-se figurar uma ação presente e real e para tal há de usar todos os meios
adequados. Na tragédia, face à violência do arbítrio dos deuses, é notável perceber a
conciliação que ocorre na poesia dramática entre o mundo interior do homem e o mundo
exterior.
Mas devemos ter a decência de não imprimir na tragédia antiga um naturalismo
superficial. Tanto Nietzsche quanto seus predecessores admitem o coro da tragédia
primitiva como sendo o berço da representação trágica. Acontece que esse coro satírico
caminhava num terreno que se encontrava suspenso em relação ao nosso andar cotidiano,
uma espécie de médium entre a vida do dia-a-dia e a morada dos deuses, mas que possuía
para a crença dos gregos a mesma realidade do Olimpo. “O grego construiu para esse coro
100 Cf. SCHOPENHAUER. A. O mundo como vontade e representação, § 51.101 Cf. HEGEL, G. F. W. Preleções sobre Estética, vol. III, “As artes românticas Poesia”.
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a armação suspensa de um fingido estado natural e colocou nela fingidos seres naturais.”
102 É nesse sentido que a tragédia pode dispensar para si a obrigação penosa e condicional
de representar no palco a realidade tal como ela é e se apresenta. Tomemos também aqui o
testemunho de Jaeger:
Não era menor a influência dos dramas míticos, uma vez que a força desta poesia não deriva da sua
referência quotidiana. Sacudia a tranqüila e confortável comodidade da existência vulgar, por meio
de uma fantasia poética duma audácia e duma elevação desconhecidas, e que atingia o seu auge e o
seu dinamismo supremo no êxtase ditirâmbico dos coros, apoiados no ritmo da dança e da música. O
consciente afastamento da linguagem cotidiana elevava o espectador acima de si mesmo, criava um
mundo duma verdade mais alta.103
O herói da tragédia antiga é a representação dos sofrimentos de Dioniso. É assim
que esse deus ganha em O nascimento da tragédia um lugar primordial, sendo ele mesmo,
por sua vez, a expressão do mundo enquanto totalidade: lembremos que para Nietzsche o
coro originário é a representação da realidade mesma. Mas, como o espírito dionisíaco
pode ser representado no palco do teatro grego se Nietzsche nos diz que ele, enquanto
estado de puro êxtase no qual não há consciência individual, está relacionado com aquilo
que Schopenhauer chamou de Uno-primordial (das Ur-Ein) e, nesse sentido, relaciona-se à
totalidade colossal expressa no sentimento do sublime? Aqui se pode perceber o quanto
Dioniso precisa de Apolo, ou para dizê-lo analogamente com as expressões de Kant, a
coisa em si do fenômeno.104 O centro da representação trágica é constituído pela natureza
íntima do indivíduo. Os diversos sentimentos determinados da alma do homem, da sua
psykhê, adquirem a função de móbeis internos que se desenvolvem por entre uma
102 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, cap. 7. pág. 54. no original em alemão lê-se: “Der Grieche hat sich für diesen Chor die Schwebegerüste eines fingierten Naturzustandes gezimmert und auf sie hin fingierte Naturwesen gestellt“. Pág. 47103 JAEGER, Werner, Paidéia, a formação do homem grego, p. 274.104 Sobre as relações entre os pares dionisíaco/apolíneo e coisa-em-si/fenômeno, trataremos no 4º capítulo.
71
complicação de circunstâncias exteriores. A essência dionisíaca do espírito humano, aquilo
que o liga à natureza (no sentido de physis), é envolta pela aparência da individuação que se
depara com a ação dramática. As conseqüências dessa ação influem sobre o seu caráter e os
seus estados de alma.
Assim, o conteúdo verdadeiro que direciona a ação da tragédia é fornecido pelas
forças essenciais da natureza que querem a vida; é o ciclo eterno do fazer e do destruir, o
grande círculo da natureza que se dá nos momentos da individuação do herói trágico para
novamente exigir a dissolução de tudo que é particular, individual, delimitado. O
nascimento, a individuação, esse é, no fundo das coisas, o verdadeiro pecado original. E é
por esse pecado que o herói das tragédias deve pagar; deve, pois, sofrer para que seu
sofrimento restitua o verdadeiro significado do mundo.
O consolo metafísico com que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira tragédia nos deixa de
que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro
satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer indestrutíveis, por trás de toda
civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da história dos povos,
permanecem perenemente os mesmos. 105
O herói trágico, bem como o herói épico em certo sentido, aceita o sofrimento e as
suas dores, aceita, pois, a aniquilação; eleva-se a um patamar superior de humanidade no
qual somente aquele que possui a coragem de lutar contra o seu destino, mesmo sabendo-o
inexorável, pode alcançar. Nessa luta contra o véu negro do seu destino, sobrevêm a dor e a
morte. Novamente o coro o reconforta no profundo sentido das coisas.
105 NIETZSCHE, op. cit., cap. 7.
72
CAPÍTULO III
As bases da metafísica de Dioniso.
Se pensas no finito transformado em infinito, pensas no homem.
F. Schlegel
§. 1 – Colocação do Problema.
Como procuramos apontar nos capítulos anteriores, a maneira por meio da qual
Nietzsche enxerga a Antigüidade clássica e a Alemanha de seu tempo é marcada por uma
visão de mundo que procura abraçar a totalidade. Por esse motivo, é de profunda
importância uma reflexão sobre o sentido que Nietzsche dá à expressão sabedoria
dionisíaca. Ao dionisíaco corresponde o essencial, não no sentido da metafísica
especulativa, senão como a essência mesma de todo o real donde brotam o conhecimento, a
vida e a arte. Trata-se, portanto, daquilo que não pode ser esgotado pelo pensamento nem
ser apreendido de forma cabal pela linguagem, apesar de toda a sedução metafísica de
73
cristalizar e submeter aos conceitos o que é essencialmente inapreensível na sua totalidade.
Kant já havia proibido um conhecimento da totalidade, do oceano tempestuoso, da
incognoscível coisa em si daí o seu caráter trágico , mas Schopenhauer atrevera-se a
tirar conclusões da filosofia kantiana indo mais longe que Kant permitira e nomeou
Vontade (Wille) aquilo que é inapreensível pela razão. Nietzsche chamará então de
dionisíaco a realidade vista na sua totalidade, e dará um dinamismo vigoroso a essa visão
de mundo que deve ser compreendida, como tentaremos mostrar, por meio de uma dialética
trágica.
O termo dionisíaco não possui, no entanto, um único sentido em O nascimento da
tragédia. Se por um lado é a compreensão metafísica do mundo, a totalidade que se que
manifesta num jogo dialético com o apolíneo na representação do herói trágico, por outro
possui um sentido antropológico que caracteriza a humanidade no seu período das festas
primitivas, das Grandes Dionisíacas, das manifestações populares, dos concursos de teatro,
ganhando, assim, um sentido cultural.106 Essa visão da cultura antiga foi apontada nesse
último capítulo, “Nietzsche e a interpretação do silêncio”, no qual buscamos alguns
elementos na história para pensar o nascimento da tragédia a partir do canto coral. Mas o
que realmente distingue esse primeiro livro de Nietzsche não é uma antropologia das festas
báquicas e barbarescas, senão o significado de uma metafísica de Dioniso, que só pode ser
expressa por meio de uma tensão dialética entre dois opostos que se necessitam
mutuamente. Para uma compreensão mais abrangente dessa visão dionisíaca do mundo
teremos, contudo, de voltar a uma discussão que remonta à filosofia de Schopenhauer e à
sua compreensão daqueles termos que Kant discutiu na sua terceira crítica: as noções de
belo e de sublime.
106 As manifestações populares que se firmavam sob o frêmito do dionisíaco bárbaro são vistas não apenas no Ocidente, mas também no Oriente de onde, aliás, surgiu o deus Dioniso, que veio para a Grécia tardiamente.
74
Acredito que com esse retorno a Schopenhauer estaremos dando um passo
importante em nossa interpretação da filosofia de juventude de Nietzsche, pois
encontraremos ali, na filosofia schopenhaueriana, a possibilidade de um rico debate com
essa visão dionisíaca do mundo.
Esses dois termos, belo e sublime, guardam uma diferença que é retomada por
Schopenhauer no parágrafo 39 de sua obra mestra O mundo como vontade e representação.
A compreensão schopenhaueriana desses termos kantianos nos permitirá entender melhor a
visão de mundo de Nietzsche. Devemos mencionar e dar mérito ao comentário de Nuno
Nabais, no qual lemos que esse parágrafo 39 contém “cada linha de inspiração da estética
de O nascimento da tragédia”.107 A pista nos é dada ali, resta agora explorar esse caminho
que nos conduzirá a uma compreensão de Nietzsche situando-o, não como um repetidor das
teses de Schopenhauer, mas como aquele discípulo que segue seus próprios passos à
sombra do mestre até os jardins do conhecimento, onde as mãos desatam os nós e o
aprendiz segue pelo seu próprio caminho para ele mesmo tornar-se mestre.
A compreensão da metafísica de Dioniso guarda a sua chave nesse debate que vem
desde o século I, quando Longino escreveu pela primeira vez sobre o sublime, mas não é,
obviamente, o sentido que esse autor deu ao termo que irá nos interessar aqui. Devido ao
exíguo tempo e a outros interesses, também não discutiremos diretamente com Kant, senão
com a obra mesma de Schopenhauer. Essa estratégia em nada perde se levarmos em conta
que é precisamente O mundo como vontade e representação que está diante dos olhos de
Nietzsche quando ele nos fala de uma metafísica de artista. Trata-se de uma afinidade que
agrada a Nietzsche, uma influência que lhe permite orientar seu pensamento e não, como já
o dissemos, cristalizar de uma vez por todas as suas intuições. Vejamos como a metafísica
107 NABAIS, N. A metafísica do trágico, p. 37.
75
de Schopenhauer dá as bases para a visão dionisíaca do mundo, tentaremos assim
compreender o pensamento de Nietzsche e suas principais diferenças em relação aos
resultados da filosofia schopenhaueriana.
§. 2 – O Ponto de Partida de Schopenhauer.
Uma questão de fundo está presente em O nascimento da tragédia: inicia-se aqui
uma reflexão que aos poucos vai se desprendendo da preocupação metafísica e culminará
mais tarde, ao menos explicitamente, como em Humano, demasiado humano (1878), numa
investida contra essa visão de mundo que se lança para além da física. Mas que questão é
essa a qual nos referimos? Trata-se da preocupação em interpretar o sofrimento, o horror, a
crueldade, enfim, a dor que marca profundamente a história universal.
O mundo grego, não há dúvidas, é o grande paradigma da cultura na filosofia do
jovem Nietzsche. No entanto, O nascimento da tragédia não é uma obra que se volta
apenas para a Antigüidade clássica. É, num sentido forte, uma leitura de seu tempo, uma
aposta no renascimento do trágico na modernidade: Kant, que demarcou os limites do
conhecimento e, assim, assinalou a nossa impossibilidade de conhecer Deus, ou a
totalidade, teremos oportunidade de voltar a isso; Schopenhauer, que identificou a Vontade
com a própria coisa em si e Richard Wagner, que reuniu todas as artes dramáticas numa
grande arte, o drama musical , esses três momentos da história da cultura moderna, no
entendimento de Nietzsche, apontam para esse renascimento. Essa aposta tem ainda uma
grande inspiração de Jacob Burckhardt, o inventor das renascenças.
76
O sofrimento, a dor, a crueldade e o horror, tudo isso se afigura como propriedades
intrínsecas da natureza humana, intrínsecas à existência do homem. O nascimento da
tragédia apresenta-se como uma nova esperança, na verdade, uma luta, um esforço para dar
as condições de recriação de uma cultura trágica , um espaço no qual as inelutáveis
características da existência humana ganham sentido e valor, não numa soteriologia ou
mesmo numa escatologia, mas ganham o seu sentido e valor na afirmação da aparência.
Esse é, indubitavelmente, um ponto polêmico para a tradição filosófica.
A verdade está velada pelas máscaras da aparência, e o caminho para compreender
(e não para explicar) tal verdade é a arte. A ciência deve permanecer, como demonstrou
Kant, no mundo da aparência, no mundo do fenômeno, daquilo que se nos apresenta no
espaço e no tempo , esse mundo da aparência não tem, obviamente, um sentido negativo
na filosofia kantiana. Desse modo, a arte pode dar ao homem a percepção dionisíaca do
mundo, lançando-o para além da singularidade de sua existência. É aqui, na arte trágica,
que o homem pode dar sentido aos horrores e ao absurdo da existência humana. A arte seria
o caminho que levaria o homem para além das aparências, uma vez que a essas está
confrontado um jogo trágico com o dionisíaco. A máxima nietzscheana, que reza que o
mundo só pode se justificar como fenômeno estético, obriga-nos a compreender a filosofia
de Kant e a de Schopenhauer, lança-nos pelo rio que deságua no problema do fenômeno e
daquele oceano tempestuoso, a coisa em si. É justamente por meio da filosofia de
Schopenhauer que Nietzsche se aproxima desse problema. Eis aqui o motivo desse capítulo
que se inicia.
Rüdiger Safranski, que nos deu recentemente as biografias de Heidegger e de
Nietzsche, também escreveu a bibliografia do Buda de Frankfurt, como Nietzsche mais
tarde irá se referir, ironicamente, a Schopenhauer. Em Schopenhauer e os anos selvagens
77
da filosofia (Schopenhauer und die wilden Jahre der Philosophie), o biógrafo narra-nos a
seguinte anedota: em Dresden, onde permaneceu entre os anos de 1814 e 1818,
Schopenhauer estava, certo dia de inverno, imerso numa contemplação da fisionomia das
plantas. Em meio a essa imersão, ele se faz a seguinte pergunta: “de onde procedem formas
e cores tão diversas? Que quer me dizer esse vegetal?” Ele teria dito isso em alto tom e
certamente gesticulando bastante como de costume, supõe Safranski, pois chamou a
atenção do vigilante que, vendo aquele altivo senhor conversando com as plantas, quis
saber quem era aquele estranho. Aproximou-se, então, e indagou quem era ele. “Quem sou
eu? respondeu Schopenhauer Ah, se você pudesse me dizer quem sou, eu ficaria
muito agradecido.”108
O mundo é minha representação. Com essa afirmação tem início o pensamento de
Schopenhauer. A oposição sujeito/objeto, presente na filosofia em incontáveis épocas, é
englobada aqui pela representação, no que se mantém uma forte interdependência: o objeto
só existe para um sujeito e este sujeito, por sua vez, é precisamente dependente do objeto,
pois só é sujeito enquanto realiza representações. Schopenhauer quer chegar a uma
compreensão da coisa em si, mas, para isso, não pode fazer aquilo que seus
contemporâneos fizeram. Não pode se prender a uma filosofia do sujeito, nem afirmar a
independência do objeto. Não pode, pois, seguir os caminhos de Fichte nem os caminhos
do materialismo: as críticas a esse último mantêm-se até o final de sua vida.
O absurdo básico do materialismo consiste, portanto, em que seu ponto de partida é o objetivo…,
enquanto que, na verdade, todo o objetivo, enquanto tal, está multiplamente condicionado pelo
sujeito cognoscente e pelas formas de conhecimento, as quais tem como pressuposto; pelo que
desaparece por completo se suprimimos o sujeito.109
108 SAFRANSKI, Schopenhauer y los años salvajes de la filosofia. Pág. 299.109 SCHOPENHAUER, apud SAFRANSKI, id., pág. 293. Parece saber mais das críticas do filósofo ao materialismo, ver O mundo como vontade e representação, livro I, § 6.
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Como é possível sair desse jogo sujeito/objeto que permanece sempre circular? É
preciso dar um passo adiante e procurar apresentar o mundo fora dessa representação, fora
da relação sujeito/objeto, dessa relação entre o eu e o não-eu, para lembrar a expressão de
Fichte retomada pelo jovem Schelling.110 Mas, com esse passo, o que precisamente
Schopenhauer está procurando? Novamente, nas suas próprias palavras: “Buscar a essência
íntima do mundo, a coisa em si, não em um dos elementos da representação (sujeito e
objeto), mas em algo distinto por completo da mesma.”111
Se o mundo apresenta-se a mim como sendo minha representação, o que é o mundo
completamente apartado dessa representação? Poder-se-ia também perguntar, e essa
pergunta remonta a grande parte da tradição grega: o que existe por detrás do fenômeno?
Ora, já conhecemos a posição de Schopenhauer.
Aqui, o filósofo de Frankfurt acredita ter encontrado uma resposta para a questão
kantiana: a coisa em si é aquilo que nenhuma representação pode alcançar, mas, sugere
Schopenhauer, esse algo não-representável deve ser procurado em nós mesmos, posto que
somos os sujeitos da representação. Mas devemos perceber que Schopenhauer, na linha de
Kant, não procura uma explicação para a coisa em si, entendida em sua obra como vontade.
Ao contrário de uma tentativa de exposição racional, o filósofo busca uma compreensão de
que essa vontade só pode ser vivida por dentro, na intimidade de cada um, só pode, pois,
ser atingida no interior do sentimento. Se colocamos, agora, a vontade referida à
representação intuitiva,
110 Cf. SCHELLING, F. W. J. Vom Ich als Prinzip der Philosophie oder über das Unbedingte im menschlichen Wissen. In. Historisch - kritische Ausgabe / Friedrich Wilhelm Joseph Schelling. (Editores: Baumgartner, Hans M.; Jacobs, Wilhelm G.; Krings, Hermann e Zeltner, Hermann) Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1982. (Reihe I, Werke; Werke 2)111 SCHOPENHAUER, apud SAFRANSKI, op. cit., pág. 293.
79
[assim,] nos será dado conseguir uma aclaração sobre seu autêntico significado, sobre esse
significado seu [o significado da vontade], que normalmente só chega pelo sentimento e em virtude
do qual tais figuras não nos resultam estranhas ao passar a nosso lado deixando-nos indiferentes,
senão que se dirigem a nós de maneira imediata, são compreendidas e despertam um interesse que
nos absorve por completo.112
Deve-se levar em conta que nessa passagem, como nos chama a atenção Safranski,
guarda-se um caráter hermenêutico: não se trata de explicar a realidade, mas de buscar um
significado para esta. Esse significado não está no mundo exterior, mas encontra-se aqui
numa imanência radical. O papel da filosofia será, diante dessa busca de significado para o
mundo, o de transpor para os conceitos o que se tem vivido intimamente dentro de si. A
busca pela verdade do mundo encerra, em Schopenhauer, um abandono da vontade
empírica: deve-se abrir mão dos desejos, da perseguição dos objetivos, da vontade de
domínio, para que se possa atingir aquilo que o Buda de Frankfurt chamou de beatitude da
contemplação carente de vontade.113 A filosofia deverá, então, traduzir esse estado interior
de renúncia, de abandono de si, nos conceitos: não é outra senão essa a função da filosofia
para Schopenhauer.
Essa beatitude só pode ser alcançada quando se aparta completamente o
conhecimento da vontade, o que ocorre a partir daí é a atividade metafísica propriamente
dita. Essa autêntica atividade metafísica é, na filosofia de Schopenhauer, uma atividade
estética.114 O próprio mundo torna-se, agora, são essas conseqüências de seu pensamento,
um espetáculo que pode ser contemplado com prazer desinteressado. O espectador é
induzido pela arte que se apresenta como a experiência máxima e paradigmática da
realidade.
112 SCHOPENHAUER, apud SAFRANSKI, op. cit, pág. 296.113 Id.114 Cf. SAFRANSKI, op. cit. Pág. 301. Esse ponto será explicitado quando nos aprofundarmos, a seguir, na seção 39 de O mundo como vontade e representação.
80
O gozo de todo o belo, o consolo que proporciona a arte, o entusiasmo do artista, que lhe permite
esquecer os cuidados da vida… tudo isso se fundamenta em que… o em-si da vida, a vontade, a
existência mesma, é um padecimento contínuo em parte fastidioso e em parte terrível; a mesma
coisa, ao contrário, contemplada como representação pura ou reproduzida pela arte e livre de
tormento, proporciona um espetáculo pleno de significado.115
§. 3 – O Buda de Frankfurt em Visita ao Solitário de Königsberg.
Devemos avançar em nossa investigação e adentrar a compreensão estética de
Schopenhauer. É com essa investigação sobre os sentimentos do belo e do sublime, do
fenômeno e da coisa em si, da representação e da vontade, que nos aproximaremos, no
capítulo IV, Da dialética trágica, dos elementos apolíneo e dionisíaco na filosofia de
juventude de Friedrich Nietzsche.
Platão e Kant. Esses dois nomes correspondem às maiores influências, dentro da
filosofia ocidental, do pensamento de Schopenhauer. Iniciaremos, aqui, um exame da
leitura feita por esse filósofo dos sentimentos do belo e do sublime, tal como esses foram
apresentados por Kant. É precisamente essa visita de Schopenhauer a Kant que nos
interessa. É essa leitura da estética de Schopenhauer que irá nos auxiliar em nossa
investigação sobre o pensamento de Nietzsche.
O belo e o sublime são apresentados por Kant na Crítica da Faculdade de Julgar
inicialmente por aquilo que têm em comum: são juízos reflexionantes, o que quer dizer que
se opõem aos juízos determinantes (de conhecimento ou morais)116 e que, portanto, não são
determinados mediante os conceitos do Entendimento; ambos implicam um prazer
115 SCHOPENHAUER, apud SAFRANSKI, id., pág. 302.116 Cf. KANT, Crítica da faculdade do juízo, “Analítica do sublime”, §23.
81
necessário; são formulados sem a mediação de conceitos; possuem uma pretensão à
universalidade. Mas a compreensão dessas noções da estética kantiana se deve antes às suas
diferenças: a forma do objeto está relacionada ao sentimento do belo enquanto o sentimento
do sublime muitas vezes ocorre mesmo sem possuir o objeto uma forma.117 Sendo assim,
esse sentimento do belo satisfaz-se precisamente com a finalidade da forma que é, portanto,
o seu objeto de satisfação, mas já o sublime não se adapta à imaginação, muitas vezes
significando mesmo uma brutalidade para com esta, pois o sublime é o sentimento do
grandioso, do colossal, e nesse sentido não pode ser contido nem na imaginação nem ser
apreendido numa forma ou num conceito.
No sublime, a imaginação entrega-se a uma atividade de todo em todo diferente da reflexão formal.
O sentimento do sublime é experimentado diante do informe ou do disforme (imensidade ou
potência). Tudo se passa então como se a imaginação [reprodutora] fosse confrontada com o seu
próprio limite, forçada a atingir o seu máximo, sofrendo uma violência que a leva ao extremo do seu
poder.118
A manifestação do belo se dá de forma sedutora, atrativa, fazendo despertar em nós
um sentimento de intensificação da vida. O sublime, por sua vez, por ser o sentimento da
enormidade, é passivo e não manifesta qualquer forma sedutora ou de atração, pelo
contrário, ele suspende o espectador inibindo-o, ao mesmo tempo em que o leva a uma
compreensão maior, expandido e ultrapassando os limites antes impostos pelo
conhecimento.
(…) enquanto o belo comporta diretamente consigo um sentimento de promoção da vida, e por isso é
vinculável a atrativos e a uma faculdade de imaginação lúdica, o sentimento do sublime é um prazer
117 Cf. KANT, id.: “O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na sua limitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado em um objeto sem forma (…).” 118 DELEUZE, G. A filosofia crítica de Kant, pág. 57.
82
que surge só indiretamente, ou seja, ele é produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição
das forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas; por
conseguinte, enquanto comoção não parece ser nenhum jogo, mas sim seriedade na ocupação da
faculdade da imaginação.119
Essa formulação apresentada por Kant será retomada por Schopenhauer no
parágrafo 39 de O mundo como vontade e representação, que recupera essa diferenciação
como ponto de partida, sem, no entanto, simplesmente repetir as palavras de Kant. O que
Schopenhauer faz é ajustá-las à sua maneira de ver o mundo.
Kant recusou absolutamente uma ontologia do belo e do sublime, recusou qualquer
doutrina que procurasse se fundar em características não-subjetivas do objeto, e aí está sua
superação da estética de Baumgarten (1714-1762): o belo e o sublime são determinações
ideais do juízo estético, nunca propriedades reais de objetos. A distância tomada por Kant
em relação à postura de Baumgarten já é observada na sua Crítica da razão pura, quando
recusa a Estética como ciência do conhecimento sensível, tal como Baumgarten nos
apresentou. Sobre isso, nada mais significativo que aquela passagem da Crítica da
Faculdade do Juízo, que nos diz com claridade:
Não há uma ciência do belo, mas somente crítica, nenhuma ciência bela, mas somente arte bela. Pois
no que concerne à primeira, deveria então ser decidido cientificamente, isto é, por argumentos, se
algo deve ser tipo por belo ou não; portanto, se o juízo sobre a beleza pertencesse à ciência, ele não
seria nenhum juízo de gosto. No que concerne ao segundo aspecto, uma ciência que como tal deve
ser bela é um contra-senso. Pois se nela, como ciência, se perguntasse por razões e provas, ela
responder-nos-ia com frases de bom gosto (bom-mots) 120
Ao contrário de Kant, Schopenhauer tem a grande pretensão de erguer uma doutrina
positiva da experiência estética e reerguer uma metafísica da arte, rompendo assim com os
119 KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. “Analítica do sublime”, §23, pág. 90. 120 KANT, I. op. cit. § 44. Pág. 150.
83
principais elementos da filosofia de Kant, aqueles que se situam no terreno do
transcendental. Como dissemos antes, o filósofo de Frankfurt busca uma compreensão da
coisa em si, e o caminho que envereda pelas sendas da estética apresenta-se como sendo o
mais adequado para a sua investigação, posto que é a arte e não a ciência que possibilita
essa busca. Mas não estaria o nosso filósofo voltando a uma postura pré-crítica ao renunciar
o transcendental que fundamentalmente representa todo o edifício da nova metafísica de
Kant? Não é obviamente o que pensa Schopenhauer. Baumgarten ao expor a sua estética
geral do belo renunciava inteiramente ao ponto de vista subjetivo, partindo de uma crença
no poder do conhecimento sensível, fundando toda a sua estética no conhecimento
intuitivo. Os objetos, para ele, possuem propriedades imanentes. E é a superação desse
realismo ingênuo que assegura, na visão de Schopenhauer, o mérito de Kant: “a sua
investigação tomou uma direção totalmente subjetiva. Esse caminho foi, evidentemente, o
correto” .121
É na trilha deixada por Kant que Schopenhauer traçará seu caminho. É de encontro
à morada do sábio “solteirão de Königsberg” que o filósofo de Frankfurt se lançará em sua
investida filosófica, até encontrar, no final das contas, aquele sopro da religião sem deus
vindo do oriente, o budismo.
§. 4 – O Paradoxo da Subjetividade: o mundo é minha representação.
O caminho argumentativo que é percorrido por Schopenhauer levará,
infalivelmente, a alguns paradoxos. Mas o que vai distanciá-lo radicalmente de Kant são os
121 SCHOPENHAUER, Kritik der kantischen Philosophie, S. W. I, p. 709. apud NABAIS, N., 1997, p. 40.
84
resultados aos quais ele chegará. Embora partam dos mesmos princípios, das mesmas
premissas, as doutrinas de Kant e de Schopenhauer, do ponto de vista dos resultados, são
irreconciliáveis.
Ele [Kant] mostrou o método e abriu o caminho, mas falhou no objetivo (…) na crítica do juízo
estético não parte do belo ele mesmo, do belo intuitivo e imediato, mas do juízo formulado sobre o
belo, daquilo a que chamam, com uma expressão muito feia, juízo de gosto. É aqui que reside o seu
problema. Aquilo que o impressiona é que um tal juízo é manifestadamente a expressão de um
processo no sujeito e que, enquanto tal, possui uma tal validade universal que parece referir-se a uma
propriedade do objeto (…). O seu ponto de vista é um enunciado de um outro sujeito, um juízo sobre
o belo, não o belo ele mesmo.122
Schopenhauer apresenta-nos uma imagem um tanto quanto retorcida da estética de
Kant para depois refutá-la por meio de uma falsificação da teoria do juízo reflexivo. O
problema na descoberta feita por Kant de uma vocação do juízo de gosto à validade
universal, acusa Schopenhauer, é que existe aí na apreciação estética um caráter
convencional na aceitação da validade de um juízo. Contra essa posição de Kant,
Schopenhauer opõe um subjetivismo levado às últimas conseqüências: o belo é o modo
como certas propriedades do objeto contemplado afetam a minha faculdade de emoção.
Veremos como esse subjetivismo vai se confundir com o próprio realismo na obra de
Schopenhauer.
A obra de arte ganha na estética schopenhaueriana uma determinação ontológica,
esse é um ponto chave para a compreensão do mundo em sua filosofia. Outro aspecto
importante para essa compreensão é o lugar da determinação do sentimento. Tanto o belo
quanto o sublime reenviam o sujeito da contemplação primeiramente a estrutura do objeto,
seja ele belo ou sublime quanto ao caso, e somente depois, num segundo momento, diz
122 Id..
85
Schopenhauer, esses sentimentos reenviam o sujeito às formas que o afetam. No caso do
sublime, o sentimento de arrebatamento se produz apenas quando o indivíduo se eleva à
condição de sujeito puro que se separa da hostilidade do objeto, percebendo essa
hostilidade como sendo abstraída de seu corpo, mas na perspectiva schopenhaueriana, a
condição de possibilidade desse sentimento reside no objeto, ou seja, certas características
estéticas são imanentes ao objeto sublime. Essas características exigem uma modificação do
espectador, são elas que levam o espectador a abstrair essa hostilidade. Essa abstração se dá
por meio de uma anulação da vontade, e até mesmo essa própria anulação se irrompe do
objeto. Mas, como? Novamente devemos perguntar se isso não significa um retorno à
postura de Alexander Baumgarten, uma vez que as propriedades, sejam elas belas ou
sublimes, são inerentes ao objeto contemplado.
Eis aqui o caráter ameaçador do sublime que anula a vontade individual arrebatando
o espectador e transformando-o em contemplador da natureza. Mas acontece que a
distinção entre fenômeno e coisa em si é conservada na doutrina de Schopenhauer, o que
pode levar a alguns paradoxos, uma vez que temos aqui uma reificação do estético. Os
efeitos do objeto sobre o sujeito da representação, uma vez mantida a distinção kantiana,
não podem deixar de ser considerados como pertencentes à esfera da aparência, não estando
esses efeitos ligados diretamente à coisa em si ou à vontade que, nessa altura do
pensamento de Schopenhauer, confundem-se entre si e são, para ele, a verdade do mundo.
Embora a condição de possibilidade do sentimento estético resida no objeto, Schopenhauer
permanece bem longe de Baumgarten, uma vez que a condição de possibilidade do objeto
reside na representação do sujeito.
É a própria angústia do sujeito que projeta os aspectos belos ou sublimes das formas
do objeto. Esses aspectos, respectivamente, harmoniosos ou arrebatadores, como a
86
contemplação de uma tempestade ou de um vulcão, são somente modos de se afetar a si
próprio enquanto condição de possibilidade da representação. As características residem no
objeto, mas esse só existe enquanto representado pelo sujeito.
Suponhamos que nos perdêssemos a contemplar a infinitude do mundo no tempo e no espaço, quer
refletíssemos sobre a multidão dos séculos passados e futuros, quer durante a noite o céu nos revele,
na sua realidade, mundos sem números, ou que a imensidão do universo oprima, por assim dizer, a
nossa consciência: neste caso, sentimo-nos reduzidos ao nada; como indivíduo, como corpo animado,
como fenômeno passageiro da vontade, temos a consciência de não ser mais do que uma gota no
oceano, isto é, de nos dissiparmos e de desaparecermos no nada..123
Quando está diante de um objeto sublime, como nos casos citados por
Schopenhauer nesse trecho de sua obra, o sujeito da contemplação tem o sentimento de
fragilidade de sua forma corpórea, apresentando-se diante da imensidão do mundo como
algo desprezível e irrelevante. Porém, nesse momento da experiência ergue a grande
verdade do mundo, para Schopenhauer:
Mas, ao mesmo tempo, contra a ilusão do nosso nada, contra esta mentira impossível, eleva-se em
nós a consciência imediata que nos revela que todos esses mundos existem somente em nossa
representação; eles são apenas modificações do sujeito eterno do conhecimento puro; são apenas
aquilo que sentimos em nós, desde de que esquecemos a individualidade; em resumo, é em nós que
reside o que constitui o suporte necessário e indispensável de todos os mundos e todos os tempos.124
O próprio objeto que ameaçava e revelava a pequenez do sujeito revela-se, agora,
como ilusório, essa descoberta ocorre ao mesmo tempo em que a sua angústia o revelava
como um nada no sentimento do sublime diante da forma do objeto ou diante de um objeto
informe. Esse objeto ameaçador nada mais é do que uma construção fictícia nas formas
123 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação, livro III, §39.124 SCHOPENHAUER, id..
87
puras da sensibilidade (espaço e tempo) e o próprio sujeito que experimenta tal revelação
descobre-se agora a si próprio como sendo ilusório, como sendo um fenômeno da vontade,
uma manifestação passageira e desprezível da vontade que reside, por sua vez, fora do
espaço e do tempo e que maravilhosamente se manifesta num mistério metafisicamente
insondável pela razão em inúmeras individuações espaço-temporais.
O sublime revela-se, assim, na doutrina de Schopenhauer, de uma forma
ambivalente, ou seja, o sentimento do sublime é, num só tempo, ameaçador e arrebatador.
Esse paradoxo do sublime é resultado de uma representação que se manifesta como sendo
real e quanto mais se apresenta como se fosse real, mais é revelado o seu caráter de
aparência. No momento em que percebo a nulidade de meu corpo, de meu ser
insignificante, que percebo toda a minha fragilidade diante de um objeto colossal, como as
pirâmides do Egito ou da catedral de São Pedro em Roma, como exemplifica
Schopenhauer,125 nesse momento atribuo essa minha insignificância meramente ao
resultado de uma ilusão. O sujeito é produtor do mundo na sua atividade de representação,
se agora ele é reduzido a nada, o que ele irá produzir nas faculdades da sensibilidade?
Quando reduzido a nada, ele nada pode produzir. Assim, aquele objeto colossal que
revelava a sua condição de insignificância, também revela a sua condição de nada, ele
também não pode ser senão um nada, apenas o sonho de um sonhador, como diz o filósofo
de Frankfurt. No ponto máximo dessa experiência de fragilidade produz-se a distensão,
aquele alívio de quem desperta de um sonho de angústia: “A grandeza do mundo, diz
Schopenhauer que antes nos inquietava, agora repousa em nós: nossa dependência em
relação a ela é suprimida pela sua dependência de nós”.126
E ainda:
125 SCHOPENHAUER, ib.126 SCHOPENHAUER, op. cit. livro III § 39.
88
O sentimento do sublime se origina pela interiorização da insignificância de nosso próprio corpo
frente a uma grandeza que por outro lado apenas reside em nossa representação e cujo portador
somos enquanto sujeito cognoscente, e portanto aqui como em toda parte pelo contraste da
insignificância e dependência de nosso eu como indivíduo, como fenômeno da vontade, frente à
consciência de nós mesmos como sujeito puro do conhecimento.127
§. 5 – Os Sentimentos do Belo e do Sublime: a arte como propedêutica
do conhecimento.
A obra O mundo como vontade e representação mantém sempre presente na
exposição de suas teses a distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si. É precisamente
sobre essa distinção que são fundamentados os conceitos de representação e de vontade,
que são os dois modos de existência do mundo, na visão schopenhaueriana. É preciso
lembrar, contudo, que é através dessa dualidade representação/vontade que Schopenhauer
recusa a separação feita por Kant entre intuição, entendimento e razão, reconhecendo
somente a oposição entre intuição e entendimento. A intuição é, portanto, expressão do
próprio entendimento , nessa relação toda intuição é intelectual, resultando daí, como
dissemos antes, que todo objeto percebido na representação existe enquanto é projetado
pelo sujeito nas formas do tempo e do espaço. “A primeira manifestação do entendimento,
aquela que se exerce sempre, é a intuição do mundo real; ora, este ato do pensamento
consiste unicamente em conhecer o efeito pela causa: deste modo toda intuição é
intelectual.”128
127 SCHOPENHAUER, id.128SCHOPENHAUER, ib., livro I.§ 4.
89
Sendo a intuição sempre intelectual, Schopenhauer vai fazer da arte a propedêutica
do conhecimento. Não se trata de uma explicação do mundo, conhecer é, para ele, a
apreensão de um objeto para além das representações do tempo e do espaço. Nesse
processo, a própria vontade torna-se objeto e portanto, representação. Nas palavras de Nuno
Nabais, “O conhecimento intuitivo exprime uma vontade, é a materialização de um
interesse, de uma estratégia de sobrevivência dessa vontade face a outras vontades que ela
constitui igualmente na sua representação como objetos.”129 Vejamos o que diz o próprio
Schopenhauer:
Depois de, no primeiro livro, ter estudado o mundo como simples representação, de objeto para um
sujeito, consideramo-lo, no segundo livro, sob um outro aspecto: descobrimos que esse ponto de
vista é o da vontade; ora, a vontade manifesta-se unicamente como aquilo que constitui o mundo,
abstraindo da representação; foi então que, segundo esta noção, demos ao mundo, considerado como
representação, o seguinte nome, que corresponde tanto ao seu conjunto como às suas partes: a
objetidade da vontade, que significa: a vontade tornada objeto, isto é, representação. 130
A vontade é apenas uma. Enquanto coisa em si, enquanto totalidade inapreensível, a
vontade é una, trata-se, pois, da vontade em si mesma. A diversidade de manifestações
objetais que se dá na representação é precisamente a diversidade dos modos de aparição
dessa vontade que se manifesta como fenômenos na aparência, isto é, na representação. A
vontade, enquanto coisa em si, não se deixa apreender nas intuições do tempo e do espaço,
sendo essencialmente incomensurável. Mas essa vontade, afirma Schopenhauer, deve
admitir certos graus de objetivações. A objetividade imediata é pensada por ele por meio da
filosofia de Platão: a objetivação pura da vontade é uma Idéia [Idee]. As idéias, no entanto,
129 NABAIS, N. op. cit., pág. 44. 130 SCHOPENHAUER, op. cit., livro III, §30.
90
não se constituem como objetos do pensamento, antes pelo contrário, Schopenhauer as
compreende como figuras do mundo intuitivo que são objetos da contemplação estética.
Embora essas idéias sejam as propriedades imutáveis de todos os objetos da
natureza construídos na representação, embora elas se manifestem na diversidade dos entes
que se encontram no tempo, no espaço e sob a categoria da causalidade, elas mesmas não se
encontram nesses âmbitos, sendo compreendidas aqui no sentido mesmo que Platão as
compreendeu, ou seja, estão para além do espaço e do tempo, permanecendo eternas e
indeterminadas (indeterminadas no seguinte sentido: elas não estão submetidas à
causalidade). É precisamente por esse motivo que elas não podem ser apreendidas na
intuição, restando apenas, na perspectiva schopenhaueriana, uma saída para ir de encontro a
elas.
Se o mundo é a minha representação e se essa representação tem a sua existência
garantida somente para um sujeito que se encontra, contudo, preso a sua vontade empírica,
é preciso, pois, para ascender às idéias, a aniquilação da vontade individual. Diz
Schopenhauer: “a condição necessária para que as idéias se tornem objeto de conhecimento
é a supressão da individualidade no sujeito que conhece.” 131
É precisamente aqui que a estética schopenhaueriana encontra sua melhor
formulação: a forma bela de um objeto, esse é o caminho para ascender à Idéia. Diante do
belo, o que o sujeito contempla não é o objeto belo, mas a Idéia da qual aquele objeto é a
objetivação. O que ocorre aqui é uma experiência de cognição, o que eu conheço ao
contemplar um objeto belo, segundo a perspectiva de Schopenhauer, não é objeto empírico
que na sua singularidade aparece em meio às formas belas, mas é, antes, a própria idéia que
de alguma forma se singularizou, sem esgotar-se obviamente, nesse objeto.
131 SCHOPENHAUER, id. As seções 31 e seguintes, voltam-se para os desenvolvimentos e detalhes que explicam como se dá essa supressão da individualidade.
91
Num primeiro momento, portanto, a beleza é uma determinação do objeto empírico,
ela pertence às formas desse objeto que se apresentam condicionadas no tempo, no espaço e
sob categoria da causalidade. Num segundo momento, essa beleza vai desprender o
indivíduo que a contempla de sua individualidade, vai anular o caráter interessado do seu
conhecimento e elevá-lo à condição do conhecimento puro, à condição de sujeito de
contemplação desinteressada das formas belas. O que se revela agora para o contemplador
já é a própria Idéia inteligível que o objeto exemplifica. Esses momentos representam, pois,
dois modos de interação entre o conhecimento e a experiência de beleza. No primeiro
momento, temos o conhecimento da beleza empírica, como se essa fosse um caráter
intrínseco do objeto belo; no segundo momento, temos já o conhecimento da Idéia por meio
dessa beleza empírica.
Na experiência do sublime dá-se da mesma forma esse processo: também ali sou
elevado à contemplação intuitiva das Idéias. Nas palavras do já mencionado Nuno Nabais,
“A diferença entre o belo e o sublime reside no processo de transição da esfera da
representação para a das Idéias.”132 E na pena do próprio Schopenhauer:
Eis o que distingue o sentimento do sublime daquele do belo: em presença do belo, o conhecimento
puro desprende-se sem luta; visto que a beleza do objeto isto é, a sua propriedade de facilitar o
conhecimento da idéia põe de lado sem resistência, por conseqüência sem o sabermos, a vontade,
assim como as relações que contribuem para o seu serviço; (…) pelo contrário, em presença do
sublime, a primeira condição, para chegar ao estado de conhecimento puro, é de nos arrancar
consciente e violentamente às relações do objeto que sabemos desfavoráveis à vontade.133
Tanto o belo quanto o sublime são vias de acesso às idéias inteligíveis. Existe aqui,
no entanto, uma diferença capital que nos conduzirá a uma compreensão, esperamos que
132 NABAIS, N. op cit, pág. 46133 SCHOPENHAUER, O Mundo como Vontade e Representação, livro III, § 39.
92
acertada, das noções nietzscheanas de apolíneo e dionisíaco, ou seja, existe uma diferença
entre o belo e o sublime que de alguma forma será transcrita na metafísica de Dioniso. O
sentimento do belo me conduz à esfera das Idéias, mas nunca para além dessa esfera do
inteligível. Já no sentimento do sublime, que nada mais é que uma elevação para além do
próprio indivíduo, é a vontade mesma, una e eterna que se apresenta ao meu “olhar”.
Ambos os sentimentos, o do belo e o do sublime, conduzem às Idéias platônicas, o belo por
meio de uma intensificação do comprazimento, num primeiro momento, e por uma
suspensão desse comprazimento no objeto num segundo momento; o sublime pela
suspensão imediata do interesse diante de um objeto ameaçador. Mas os objetos sublimes
elevam o sujeito para além das Idéias platônicas mesmas; na contemplação de um objeto
colossal, o que ocorre é uma libertação total do sujeito da prisão da sensibilidade: sou
arrancado do mundo empírico para ascender ao mundo como coisa em si.
Novamente é necessário citar o próprio autor:
O sentimento do sublime provém do fato de que uma coisa perfeitamente desfavorável à vontade se
torna objeto de contemplação pura, contemplação essa que não pode prolongar-se a menos que se
faça abstração da vontade e que nos elevemos acima de seus interesses (…); o bonito, pelo contrário,
faz decair o contemplador do estado de intuição pura que é necessário para a concepção do belo; ele
seduz infalivelmente a vontade com a visão dos objetos que a lisonjeiam de imediato; daí em diante o
espectador já não é um puro sujeito que conhece; ele torna-se um sujeito voluntário [sujeito da
vontade] submetido a todas as necessidades, a todas as servidões. 134
Diante do objeto belo, o sujeito liberta-se da representação por absorver seu olhar
nas Idéias, mas acontece que essas ainda guardam as marcas das objetos empíricos dos
quais são o arquétipo. Se há uma continuidade que vai do objeto empírico até a forma bela
puramente metafísica desse objeto, ou seja a própria Idéia, no caso do sublime não existe
134 SCHOPENHAUER, op. cit. § 40.
93
qualquer continuidade: ruptura instantânea na esfera da representação. No sentimento do
sublime, o sujeito passa do representável àquilo que não se deixa representar, à própria
coisa em si, e acontece aqui uma inversão absoluta na esfera da motivação: o que era
ameaçador, hostil, transforma-se em sentimento de prazer; o objeto que ameaçava o
contemplador revela-se como ilusão que existe somente diante de seu olhar. Schopenhauer
distancia-se de Kant por apresentar o sublime no interior de um sistema marcado pelo
ateísmo e por recusar o modelo de um imperativo moral. A desmesura do sublime não
conduz a uma mesura, a um respeito pelo desmesurado, como propôs Kant. Schopenhauer
acusa Kant de transformar o sentimento do sublime numa experiência exclusivamente
moral. O sublime, em Schopenhauer, não conduz ao respeito moral, respeito pelo
irrepresentável, apenas abre para uma irrepresentabilidade indefinida.
§. 6 – A Experiência do Sublime na Tragédia, ou a Representação do
Irrepresentável
O que permite uma real aproximação entre O mundo como vontade e representação,
de Schopenhauer, e O nascimento da tragédia, de Nietzsche, é a possibilidade de converter
a teoria do sublime numa teoria da tragédia. Compreender isso é o que nos falta para
fundamentar metafisicamente a nossa leitura dos instintos dionisíaco e apolíneo e livrá-los
em nossa dissertação de qualquer interpretação que se filie exclusivamente a uma
abordagem fisiológica no período de juventude da filosofia nietzscheana.
Embora Schopenhauer não faça a aproximação do sublime com o trágico na edição
de 1819, ele o fará em 1844, como aponta Nuno Nabais e como pude verificar. Apesar
94
disso, acredito ser Nietzsche quem melhor realiza a conversão da teoria do sublime numa
teoria do trágico. Essa questão traz uma delicadeza que exige um esforço muito grande do
olhar do investigador, pois, se Nietzsche faz essa conversão, ele o faz de uma forma
bastante implícita e velada. Se realmente é assim, podemos dizer que a obra de Nietzsche,
embora não se esgote nesse ponto, é o acabamento radical da teoria de Schopenhauer. O
que não quer dizer tome direções opostas.
O sistema schopenhaueriano apresenta, como apresentava também o de seu arqui-
rival Hegel, um sistema geral das formas de arte desde a arquitetura, forma mais rústica da
manifestação artística, até a poesia que se encontra no topo da pirâmide das artes. A poesia
pode ser subjetiva ou objetiva, e nela estão inclusos o romance, a epopéia e o drama
(comédia e tragédia). Schopenhauer considera, como também Hegel, que esse último tipo
de drama, a tragédia, é o mais elevado dos gêneros poéticos, tanto pela grandiosidade dos
efeitos, como pela dificuldade de realização.135 Se, por um lado, essa justificativa já fora
dada deveras pela tradição, a superioridade da tragédia em relação aos outros gêneros
encontra, por outro lado, uma justificativa intensamente particular em Schopenhauer, é que
ela é a metáfora do mundo, a figuração daquilo que é essencialmente injusto.
(…) esta forma superior do gênio poético [ tragédia] tem por objeto [por objetivo] mostrar-nos o lado
terrível da vida, as dores indescritíveis, as angústias da humanidade, o triunfo dos maus, o poder do
acaso que parece ridicularizar-nos, a derrota infalível do justo e do inocente: encontramos nela um
símbolo significativo da natureza do mundo e da existência. 136
Todas as formas de arte são, dentro do sistema de Schopenhauer, manifestações de
uma Idéia, somente a tragédia, no entanto, exprime o mundo ele mesmo. A tragédia é, para
o autor de O mundo como vontade e representação, um sinal significativo da natureza cruel
135 Cf. O mundo como vontade e representação, livro III, § 51.136SCHOPENHAUER, id.
95
e da essência injusta do mundo e da existência. Como mostrou Nuno Nabais, na sua
Metafísica do trágico estudos sobre Nietzsche, e como pode ser percebido por uma
leitura bem feita, na edição de 1819, Schopenhauer não faz qualquer relação entre a
experiência trágica e a categoria de sublime. Mas isso só não ocorre, como verificamos,
explicitamente. No parágrafo 39, inteiramente dedicado aos sentimentos do belo e do
sublime e suas respectivas diferenças, Schopenhauer utiliza-se de fenômenos naturais,
meramente, para exemplificar o sentimento do sublime, como uma tempestade terrível, ou
então serve-se de obras colossais, como a igreja de São Pedro em Roma. Entretanto,
encontramos uma referência a Horácio, que é discutido por Hamlet na peça de Shakespeare,
quando Schopenhauer fala daquilo que chamou de caráter sublime. São as palavras de
Hamlet referindo-se a Horácio: “Visto que não deixaste de ser um homem que, sofrendo
tudo, não teria sofrido nada: aceitaste com igual ânimo os golpes e as recompensas da sorte
etc.”137 Embora encontremos apenas referência a um herói e não à tragédia mesma,
podemos ler no parágrafo 51, especialmente dedicado à tragédia:
Enfim, nos seres excepcionais, o conhecimento, purificado e elevado pelo próprio sofrimento, chega
a esse grau em que o mundo exterior, o véu de Maya, já não pode enganá-lo, em que vê claro através
da forma fenomenal ou princípio de individuação. Então, o egoísmo, conseqüência deste princípio,
desaparece com ele; os “motivos”, outrora tão poderosos, perdem o seu poder, e no seu lugar, o
conhecimento perfeito do mundo, agindo como calmante da vontade, conduz à resignação, à
renúncia e mesmo à abdicação da vontade de viver.
É assim que a tragédia já se encontra lado a lado com o sentimento do sublime,
embora aqui não tenha sido concluída a conversão de um sentimento noutro, o sublime no
trágico. Não existe em Schopenhauer, como acreditamos haver em Nietzsche, uma dialética
137 SCHOPENHAUER, id. § 39. “For thou hast been / As one, in suffering all, that suffers nothing; / A man, that fortune’s buffets and rewards / Hast taken with equal thanks etc.”
96
trágica, que se dê entre a vontade mesma (atingida pelo sentimento do sublime, aniquilação
da vontade individual) e a representação (objetivação da vontade mesma, que na sua
essência é irrepresentável). Vinte e cinco anos após a edição de 1819 de O mundo como
vontade e representação, Schopenhauer dirá explicitamente que o nosso prazer na tragédia
pertence ao sentimento do sublime. Do mesmo modo como
Uma cena sublime da natureza, que se desenrola diante de nós, muitas vezes produz o efeito de
anular a vontade para nos manter em disposição puramente contemplativa, pois de igual modo,
diante da catástrofe trágica nos desprendemos até mesmo da vontade de viver. O campo de ação da
tragédia é o aspecto aterrador da vida, oferecendo-nos o espetáculo da miséria humana, o reino do
erro e do azar, a perdição do justo, o triunfo dos maus; contemplamos, pois, tudo aquilo que mais
hostiliza a nossa vontade no sistema do mundo.138
Já se encontra aqui uma das diferenças fundamentais em relação à postura que
Nietzsche assumirá diante da tragédia, uma vez que para Schopenhauer, “Este espetáculo
[descrito na citação acima] nos conduz a apartar a vontade de viver, a não amar nem desejar
a vida.”139 A partir de 1844, portanto, Schopenhauer concebe a tragédia como a
representação artística da própria essência do mundo, da condição injusta da existência
enquanto determinada pela vontade de viver.
Mas como se dá a experiência do sublime diante da representação do
irrepresentável, isto é, da tragédia? Como nos mostra Schopenhauer, as coisas ocorrem da
seguinte maneira: primeiramente, o espectador que está diante da representação do teatro,
de todos aqueles horrores descritos pelos dramaturgos, a provocar um terror que o destrói
juntamente com o herói trágico, na medida em que se dá o mecanismo da identificação. E,
paradoxalmente, no ponto máximo dessa experiência de identificação, o espectador percebe
138 SCHOPENHAUER, Le monde comme volonté et comme représentation, “Suppléments”, §XXXVII. ob.: esses suplementos só se encontram na edição de 1844, realizada por Schopenhauer.139 SCHOPENHAUER, id.
97
que tudo não passa de uma encenação, de uma representação artística, que tudo aquilo que
o ameaçava na sua identificação com os sofrimentos do herói, não passa de um teatro
nesse momento, ele perde todo o seu interesse pelos acontecimentos da vida dos
personagens, já não mais lhe importa o destino do herói. Aqui, na leitura de Schopenhauer,
o espectador eleva-se à seriedade do sujeito puro da contemplação da obra de arte. Ocorre,
pois, o que dissemos sobre a experiência do sublime, ou o que constitui uma experiência
possível do sublime no espetáculo da tragédia. Mas, há mais uma a ser vivida, como nos
explica Schopenhauer nos “Suplementos” incorporados à edição de 1844. Tendo passado
uma vez por aquela primeira experiência, tendo reconhecido que aquilo que o ameaçava na
sua identificação com o protagonista da peça dramática não passa de uma representação,
ocorre agora uma transposição daquele sentimento, que aconteceu diante do palco, para a
existência vista na sua totalidade. O espectador reconhece-se a si mesmo, conclui
Schopenhauer, como sendo um mero personagem de uma tragédia, pois a tragédia é uma
representação no teatro dos horrores e crueldades que constituem a essência íntima da
existência. Eis aí a conversão do sublime: o sujeito ascende à experiência do mundo como o
irrepresentável da representação trágica, ou seja, percebe na experiência trágica que o
mundo é passível de representação.
O sublime experimentado na cena trágica proporciona, na filosofia de
Schopenhauer, o sentimento de que existe um mundo para além da representação: a
negação da vida, o abandono da vontade de viver, são ainda uma afirmação de que existe
algo para além da própria vida. O abandono da individuação o retorno ao Uno
primordial. Será esse o budismo de Schopenhauer?
Portanto, a definição schopenhaueriana do sublime aproxima-se demasiado da
definição dada por Kant: uma representação do irrepresentável. No caso do sentimento do
98
belo, o contemplador é levado a uma intuição da Idéia, da qual a forma bela, seja ela natural
ou artística, é a aparição; já no sublime o contemplador chega a uma intuição da própria
coisa em si, ao conhecimento da vontade do próprio mundo na sua irrepresentabilidade. É
claro que essa intuição da coisa em si só pode ser negativa, posto que a vontade una,
enquanto totalidade do mundo, revela-se como não-representável, ou seja, se há uma
experiência do sublime na representação da cena trágica, há, paradoxalmente, uma
revelação do não-representável na representação. Ora, formula-se aqui espontaneamente
uma questão que não poderíamos deixar de registrar: como é possível ter conhecimento, e
de que tipo seria, numa experiência que não pertence ao mundo da representação e que está
para além da esfera das Idéias, não podendo ter nem mesmo essas Idéias como objeto?
Não encontramos resposta aqui, neste livro Schopenhauer, nem noutros que já
estudamos. Essa questão inevitável brota desse paradoxo que se encontra também em
outros filósofos na história do pensamento do Ocidente. Mas parece que o sublime tem, em
Schopenhauer, o seu efeito por privação. O sentimento do sublime, já o dissemos ad
nauseam, provém do fato de um objeto hostil à nossa vontade tornar-se um objeto de
contemplação pura. Se algum tipo de conhecimento ocorre aqui, só pode ser de forma
indireta, pois a natureza da coisa em si é expressamente não representável, não-figurável,
não-esgotável em sua essência muito embora presentificável na sua representabilidade.
Essa forma de conhecimento indireto exige, na representação da desarmonia da existência e
na perpétua luta entre vontades individuais, a dissolução do principium individuationis no
seio da vontade una e eterna. Enquanto o belo permanece no domínio da representação, o
sublime enraíza-se no mundo da representação empírica para exigir um mundo totalmente
outro, o outro da representação que é essencialmente o irrepresentável. É o próprio mundo
99
do em-si, a própria vontade que se dá no sublime e nessa representação do irrepresentável:
a tragédia.
No parágrafo 52 da edição de 1819, encontra-se ainda um outro paradoxo que
dificilmente poderia ser justificado: esse não-representável, a essência do mundo, a vontade
mesma, a coisa em si, é pensado como representável e a música é essa representação.
Reside aqui uma solução para o mistério do sublime. A música é representação de algo que
nunca pode ser objeto de representação, é a cópia de uma inexistência. Sendo assim, a
música nada tem a ver com o comprazimento na beleza das formas; ao contrário, a música,
poderíamos dizer, nos indica o sublime, pois ela é a dimensão do ilimitado. Aquilo que é da
ordem do irrepresentável se torna representável, a música pode ser a representação de algo
que não pode ser representado por ser ela mesma uma cópia sem modelo.
Devo reconhecer que a verdade desta explicação é, por natureza, impossível de provar. Com efeito,
ela pressupõe e estabelece uma ligação estreita entre a música considerada como arte representativa,
e, por outro lado, uma coisa que pela sua natureza nunca pode constituir o objeto de uma
representação: em resumo, a minha explicação obriga-nos a considerar a música como a cópia de um
modelo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente. 140
O mundo é na sua essência mais íntima o irrepresentável. Mas o reconhecimento
dessa não-representabilidade do mundo produz uma revelação metafísica, conversão do
conhecimento em contemplação pura, conversão do olhar em escuta. Schopenhauer, no
entanto, nunca é muito claro ao falar de sua concepção da música como sendo essa
representação sem objeto, nem faz qualquer ligação entre a metafísica da música e a
estética do sublime.
140 O mundo como vontade e representação, livro III, §52.
100
Ao contrário, suponho, na sua concepção de experiência dionisíaca, ou do que aqui
se chamou de metafísica de Dioniso, Nietzsche caminho no sentido de aproximar essa
tríade sempre sugerida, mas nunca levada a termo, de fato, por Schopenhauer:
música/tragédia/sublime.
Toda a minha tentativa consiste aqui em não compreender O nascimento da
tragédia apenas como uma obra menor e repetidora das teses de Schopenhauer. Por outro
lado, foi necessário percorrer esse caminho pela filosofia de Schopenhauer para que
pudéssemos ter uma nítida compreensão da visão dionisíaca do mundo, uma visão
totalizante que não compreendesse de forma unilateral as noções dionisíaco/apolíneo, ou
seja, que não as restringisse a meros instintos fisiológicos, uma vez que o próprio Nietzsche
refere-se a elas como sendo instintos que brotam da própria Natureza “sem a mediação do
artista humano.”141 Contudo, uma diferença far-se-á radical: no capítulo IV, no qual
desaguarão todos os problemas tratados nesses três primeiros capítulos, revelar-se-á, no
pensamento presente em O nascimento da tragédia, uma dialética que buscará a afirmação
da aparência, da experiência trágica reveladora da finitude do herói. É o jogo entre o belo e
o sublime numa interpretação do drama antigo, um jogo que ocorre dialeticamente e que
“apazigua” toda e qualquer oposição possível entre o apolíneo e o dionisíaco.
CAPÍTULO IV
Da Dialética Trágica
A coragem de não guardar nenhuma pergunta no
coração é o que constitui o filósofo. Este precisa
parecer-se ao Édipo de Sófocles, que, procurando
explicação sobre seu próprio destino terrível,
continua investigando sem descansar, ainda que já
141 Cf. O nascimento da tragédia, cap. 2, em itálico no texto de Nietzsche.
101
adivinhe que das respostas virá para ele o mais
pavoroso.
Carta de Schopenhauer a Goethe.
§1 - O Sócrates de Nietzsche: Advertência Preliminar.
A cultura ocidental é uma cultura da razão, uma cultura que centralizou seus
esforços num âmbito teórico. O prazer socrático do conhecimento revitaliza o conhecedor,
dá-lhe as esperanças de um conhecimento crítico que, através do método dialógico, permite
um saber correto sobre todos os assuntos. Aquele período anterior a Sócrates não podia
mais ser entendido como pré-filosófico, e é contra isso que se ergue a voz do humanismo
na modernidade, período no qual se procurou compreender aquela formidável evolução do
espírito no Ocidente, dentro de uma tradição clássica e hegeliana. Os filósofos pré-
socráticos são compreendidos por Nietzsche dentro de uma perspectiva na qual aparecem
indissociáveis da poesia e da música pertencentes àquele período. Essa fusão entre o
pensamento filosófico, a poesia e a música, ou, para dizê-lo mais corretamente, a não-
dissociação desses três elementos que se apresentavam unidos, carateriza a filosofia na
idade trágica dos gregos. Contra essa unidade dos filósofos trágicos encontra-se a
dualidade socrática entre corpo e alma, dualidade essa que se apresenta, diante dos olhos
perscrutadores de Nietzsche, como uma verdadeira antithésis do pensamento profundo
imediatamente anterior àquela época de Sócrates. Sobre Empédocles, o filósofo predileto
de seu poeta querido, Hölderlin, Nietzsche faz essas anotações:
102
Queria fazer os homens passarem por uma purificação inaudita. Sua eloquência se resume no
pensamento de que tudo o que vive é um, os deuses, os homens e os animais. A unidade dos viventes
é o pensamento parmenidiano da unidade do ser, sob uma forma infinitamente mais fecunda; uma
simpatia profunda com toda a natureza e uma compaixão transbordante aliam-se a ele. […] Ele é o
filósofo trágico, o contemporâneo de Ésquilo. O que mais surpreende nele é seu extraordinário
pessimismo, mas um pessimismo ativo e não quietista.142
Nessa época, quando o espírito científico ainda não subjugava os elementos da
paixão, do amor e dos desejos, forçando-os a uma retração descomunal, corpo e alma não
se apresentavam como dois elementos distintos, como duas partes que pudessem ser
divididas radicalmente, elevando-se, pois, a partir de tal separação, a alma até o mundo
daquelas aeternae veritatis, enquanto o corpo permaneceria sempre rebaixado ao mundo
animal. Nos ares matinais da filosofia grega, respirava-se uma harmoniosa completude do
ser. O filósofo Sócrates, porém, deu ao elemento racional (leia-se apolíneo) um
determinado privilégio em relação ao dionisíaco-irracional, garantindo, dessa maneira,
uma quebra daquela harmonia pré-socrática. É, nesse sentido, que Nietzsche se lançou em
busca de um restabelecimento daquela tensão original entre o apolíneo e o dionisíaco,
tensão essa que se perde em O nascimento da tragédia quando o leitor não se apercebe de
que a oposição entre esses elementos, exposta no início do livro, não é senão ilusória, ou
antes, apenas pertencente a um artifício didático.
Esse privilégio do racional, do teórico, garantirá, contudo, um determinado
otimismo científico nas páginas da história do pensamento ocidental. Essa é a visão de
Nietzsche. E é isso que justifica o seu ódio ao filósofo Sócrates. É esse advento do teórico
que fez desaparecer na Grécia antiga o elemento trágico: a própria morte do teatro ático
está ligada ao surgimento de Sócrates no contexto intelectual de Atenas. Para Nietzsche,
142 NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos, in Pré-socráticos (Col. Os Pensadores), pág. 198-199.
103
teria sido a influência desse pensador sobre o dramaturgo Eurípides que teria ocasionado o
desaparecimento da tragédia na antiga Hélade.
Em uma das mais famosas passagens da Poética de Aristóteles, encontramos a
clássica distinção entre os gêneros dramáticos: “esta [a comédia] procura imitar os homens
inferiores ao que realmente são, e aquela [a tragédia], superiores.”143 É assim, ao que
parece, que a paidéia grega passa, sobretudo no século V, pelo teatro de Dioniso, e é ali que
os atenienses são educados, agora, segundo a imitação das ações nobres e dignas de louvor
dos heróis trágicos, de maneira semelhante à educação que se assentava nos poemas de
Homero, por meio dos quais se destacava a figura do aedo, do poeta cantador. Como
correlativo ético, podemos extrair dessa distinção realizada por Aristóteles que, imitando
homens superiores, a tragédia imita os homens como eles devem ser; ao passo em que a
comédia, enquanto imitação de “homens inferiores ao que realmente são”, imita os homens
como eles não devem ser.144 Tanto nas peças de Ésquilo quanto nas de Sófocles, há um
certo mistério impenetrável, na medida em que a tradição religiosa sugere os temas de suas
peças. O orgulho incomensurável, a hybres, de Édipo, a sua arrogância facilmente
verificável no diálogo que estabelece com o adivinho Tirésias, no primeiro episódio da peça
de Sófocles, é prova da tensão mantida entre a tradição religiosa e a nova pretensão dos
filósofos. Édipo, no entanto, após buscar um conhecimento sobre sua própria origem, foi
gravemente acometido pela culpa trágica e aceitou sua própria identidade ao furar seus
olhos. Aceitando o mandamento délfico do deus Apolo, “Conheça-te a ti mesmo”, após ter
desrespeitado o também apolíneo “Nada em demasia”, o rei desgraçado aceita seu destino
143 ARISTÓTELES, Poética, II, §9.144 Devemos mencionar, aqui, o prof. José Henrique Santos, que em seus “Cursos de Ética”, ministrados na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sempre salientou esse ponto.
104
ao reconhecer-se culpado. Torna-se sábio. Não rejeitando, assim, a sua verdadeira
identidade: Édipo, o assassino de seu pai; Édipo, o esposo de sua mãe.
Com Eurípides erige-se a máxima de Sócrates, “Só o sabedor é virtuoso”, da qual
Nietzsche extrai a formulação socrática: “Tudo deve ser inteligível para ser belo”.145 Para
Nietzsche, a influência de Sócrates sobre Eurípides teria levado esse dramaturgo a
modificar a própria linguagem do drama, os caracteres, a estrutura dramática, a música
coral.146 O prólogo de Eurípides elimina o mistério, deixando a tragédia com um certo ar de
esclarecimento. Apesar de longa, a seguinte passagem é esclarecedora:
Que uma personagem individual se apresente no início da peça contando quem ela é, o que precedeu
à ação, o que aconteceu até então, sim, o que no decurso da peça há de acontecer isso um autor
teatral moderno tacharia de renúncia propositada e imperdoável ao efeito da tensão. De fato, sabe-se
tudo o que vai acontecer. Quem vai querer esperar que ocorra realmente? Mesmo porque, no caso,
não se verifica absolutamente a excitante relação de um sonho vaticinador com uma realidade que se
apresentará mais tarde. Completamente diverso era o modo de Eurípides refletir. O efeito da tragédia
jamais repousava sobre a tensão épica, sobre a estimulante incerteza acerca do que agora e depois iria
suceder, mas antes sobre aquelas grandes cenas retórico-líricas em que a paixão e a dialética do
protagonista se acaudalavam em largo e poderoso rio.147
Como é sabido, os principais personagens do teatro trágico já eram conhecidos
pelos espectadores, tal como o já mencionado tirano Édipo,148 uma vez que são retirados da
tradição mitológica, ou, mais exatamente, da tradição religiosa. Apesar desse fato, nos
“Prólogos” de Ésquilo e nos de Sófocles, as conexões entre os acontecimentos são apenas
sugeridos, ou antes, essas conexões aparecem ao espectador como se fossem casuais: ele
vivencia, aos poucos, juntamente com os personagens, o pathos da tragédia. O prólogo
145 NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, § 12.146 NIETZSCHE, id.147 NIETZSCHE, ib. o grifo é meu.145 Apesar de praticamente todas as traduções brasileiras usarem o termo “Rei” no título da peça de Sófocles, traduzido por Édipo Rei, o termo empregado no original é tyrannos (tirano) e não basileus (rei). Para saber mais sobre esse problema e compreender a distinção entre o tyrannos e o basileus tal como era compreendida na época de Sófocles, ver BIGNOTTO, N. O tirano e a cidade, pág. 73.148
105
anuncia, nas peças desses autores e isso é facilmente verificável, o tema, mas deixa
permanecer ainda um certo mistério a ser desvendado. Eurípides, na interpretação de
Nietzsche, acreditou ter corrigido os seus mestres ao extinguir esse mistério: o espectador, é
essa a exigência socrática, deve compreender tudo aquilo que é apresentado e representado
no palco. Por esse motivo é introduzido nas peças euripideanas um prólogo no qual “uma
divindade precisava, em certa medida, garantir ao público o desenrolar da tragédia e tirar
toda dúvida quanto à realidade do mito.”149 Tudo deve, desde já, receber tal esclarecimento.
Ora, Eurípides pôs no palco do teatro dramático o homem comum: o próprio
espectador sobe agora ao palco e são as suas vivências do cotidiano que são retratadas no
lugar daquele herói paradigmático que suportava toda dor e sofrimentos do destino (moira)
trágico. Se, como dissemos antes, a tragédia imita os homens como eles devem ser,
Eurípides representa, desde já, uma transição: ele está situado entre a tragédia (imitação dos
homens superiores ao que são na realidade) e a comédia (imitação dos homens inferiores ao
que são na vida real, conforme Aristóteles), uma vez que, ao pôr no palco o homem
comum, põe no palco uma representação do homem como ele é. Mas isso já é a passagem
para a comédia: quando surgem os elementos cômicos a tragédia já fica completamente
impossibilitada de dar continuidade à sua existência o riso teria assassinado os deuses
gregos, uma vez que nenhuma religião pode suportar que se ria de suas crenças.150
Por seu intermédio [o de Eurípides], o homem da vida cotidiana deixou o âmbito dos espectadores e
abriu caminho até o palco, o espelho, em que antes apenas os traços audazes chegaram à expressão,
149 NIETZSCHE, ib.150 É precisamente isso que Nietzsche nos fala, mais tarde, em 1885, pela boca de Zaratustra: “Já está tudo acabado, de há muito, com os velhos deuses; e, na verdade, um alegre fim, digno de deuses, tiveram eles! / Não um crepúsculo, foi a sua morte mente-se ao dizê-lo! Ao contrário: morreram, um belo dia, de tanto rir!” Assim falou Zaratustra, parte IV, “Dos Renegados”, § 2, pág. 189.
106
mostrou agora aquela desagradável exatidão que também produz conscientemente as linhas mal
traçadas da natureza.151
A própria banalidade dos problemas comuns, ordinários, podia ser vista agora no
palco e com ela perdia-se o efeito paradigmático do teatro antigo. Poder-se-ia dizer que a
própria poesia corria um sério risco de se extinguir, uma vez que o teatro se tornava, em
certa medida, com Eurípides, aquilo que nosso teatro contemporâneo já é, ou seja, prosaico.
Os personagens dos dramas de Eurípides dizem, tão logo apareçam, o que são e o que vão
fazer, antes mesmo da ação: assim procedendo mostram-se por inteiro na palavra, ao passo
que os heróis de Ésquilo e de Sófocles são sempre mais profundos do que seus discursos.
Então, o que acontece de tão miserável nas peças de Eurípides que leva Nietzsche a
incriminá-lo e a condená-lo, para todo o sempre, como o grande assassino da musa trágica?
“Excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e onipotente e voltar a construí-
la de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma visão de mundo não-dionisíacas
tal é a tendência de Eurípides que agora se nos revela em luz meridiana.”152 Retirar o
elemento dionisíaco à força é sacrificar o próprio teatro trágico. O deus mesmo tratou de
corrigir essa tendência em Eurípides, que nos legou como uma das últimas de suas obras,
portanto, já na maturidade da velhice, As bacantes, peça na qual o próprio Dioniso aparece
como protagonista, desvelando toda a sua fúria contra Penteu, rei de Tebas e filho de
Agave, que se negou a reconhecer a sua paternidade divina.153 Mas já era tarde demais, a
tendência de Eurípides, predominantemente esclarecedora, “iluminista”, límpida, já havia
triunfado. Aos olhos de Nietzsche, não é senão Sócrates quem aparece por detrás dessa
151 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 12152 NIETZSCHE, id.153 Dioniso é filho do deus supremo da mitologia grega, Zeus, e da mortal Sêmele.
107
tendência de Eurípides. “Eis a nova contradição: o dionisíaco e o socrático, e por causa dela
a obra de arte grega foi abaixo.”154
Recusar o dionisíaco significa necessariamente uma recusa do apolíneo, tal é o
entrelaçamento desses dois elementos. Mas quem é o Sócrates de Nietzsche, esse sábio de
Atenas que, influenciando Eurípides com sua visão sóbria do mundo, condenou a própria
tragédia à beberagem daquela conium maculatum?155 O Sócrates de Nietzsche é, por
excelência, o não-místico, o crítico que entrega à lógica toda sua confiança. É instaurada
aqui uma batalha que não se processa como aquela luta incessante entre o apolíneo e o
dionisíaco, aqui está, desde já, inaugurada uma luta sem possibilidade de reconciliação: a
ciência socrática de um lado, a mística dionisíaca do outro. É essa caricatura do Sócrates
lógico, racionalista, que aparece em O nascimento da tragédia. Sim, isso é uma caricatura.
Apesar de ser caricatural, no entanto, uma coisa é certa: toda aquela manifestação sublime
da arte que nasceu do ditirambos sempre dirigidos ao deus Dioniso se via, agora, diante de
uma nova Atenas —, é a tensão entre a religião grega expressada no teatro e a filosofia que
se estabelece aqui. As acusações que Nietzsche lança sobre Sócrates giram em torno, em
linhas gerais, da consideração feita por este de que “a arte trágica nunca diz a verdade” e
que seu espectador “não tem muito entendimento”.156 O que se segue nessa condenação de
Sócrates é a exposição da dialética socrática, o único caminho que pode levar o filósofo à
verdade.
O pensamento filosófico mantém, no ápice de sua concepção na Grécia antiga, na
passagem do século quinto para o século quarto, uma forte tensão com a poesia trágica. Em 154 NIETZSCHE, ib. 155 A cicuta (conium maculatum) possui, como indicam os médicos, uma das mais letais substâncias, a conicina ( ou cicutina, conina, como é também chamada). Dos seus efeitos, a principal característica é a paralisia que antecede à morte. Dizendo metaforicamente, é esse o efeito que a dialética socrática causou na arte trágica, efeito esse que é exatamente contrário ao da picada de um moscardo, sempre associada a Sócrates pelo incômodo que provocava.
156 NIETZSCHE, op. cit., § 14.
108
O nascimento da tragédia, Nietzsche acusa a filosofia de ter agarrado-se unicamente ao
“tronco da dialética”157 e de ter cristalizado-se na tendência apolínea do conhecimento. Essa
dialética criticada aqui por Nietzsche não é, e não pode ser, a dialética trágica da qual
trataremos nesse último capítulo de nosso texto. A crítica à dialética socrática parece
dirigir-se ao Sócrates dos diálogos platônicos, àquele desenvolvimento das obras de Platão
que se move por meio de razões e contra-razões, de argumentos e contra-argumentos. Essa
dialética socrática, na visão nietzscheana, desconhece o principal elemento trágico do teatro
de Dioniso: “(…); pois quem pode desconhecer o elemento otimista existente na essência
da dialética, que celebra em cada conclusão a sua festa de júbilo e só consegue respirar na
fria claridade e consciência?”158
A causa primeira da tragédia, o coro, quando reduzida, conduz a arte dramática para
longe do corpo dionisíaco da tragédia.159 A dialética socrática , chamada por Nietzsche
de dialética otimista (e o otimismo é sempre entendido aqui como superficial, no sentido
mesmo de algo que não se atira ao fundo) , é aquela que, por meio dos silogismos, das
cadeias de razões, procura um esclarecimento para aquilo que se apresenta velado pela
ignorância e/ou pelos mistérios da grandiosa religião grega, ou, para dizê-lo ironicamente,
isto é, como os ímpios, pelas superstições infundadas. A própria música que acompanha a
tragédia (hoje completamente perdida para nós, conforme dissemos no capítulo segundo) é,
em meio às exigências do silogismo, expulsa do teatro: o resultado disso foi a morte da
tragédia e o que se seguiu não foi senão a própria comédia.
Sobre o surgimento de Sócrates em Atenas e seu novo método de filosofar, poder-
se-ia dedicar uma outra pesquisa, devido ao fato desse tema apresentar-se inesgotável e
157 NIETZSCHE, id.. 158 NIETZSCHE, ib.159 NIETZSCHE, ib.
109
pleno de tendências interpretativas conflitantes. Embora não possa me aprofundar sobre o
problema, ao menos, é possível indicar que a tensão dialética estabelecida entre o
dionisíaco e o apolíneo, na filosofia de juventude de Nietzsche, nada tem a ver com a
dialética socrática ou, antes, com a interpretação nietzscheana dessa dialética. De início,
basta dizer que Sócrates se distancia dos sofistas pela preocupação com o indivíduo, no
intento de conduzir sua alma a um reto caminho, a uma cura, podemos dizer. Os sofistas,
por sua vez, dirigiam-se aos seus ouvintes para fascinar e encantar, para arrecadar mais e
mais fundos para as suas vidas privadas. O método filosófico deve ser dia-lógico, ou seja,
deve se dar através de uma intervenção do logos que, visando sempre a verdade, é
experimentado por meio de perguntas e respostas entre o mestre e o discípulo.
A dialética socrática tem em vista a exortação à virtude, o convencimento do homem de que a alma e
o cuidado da alma são o máximo bem para o homem, a purificação da alma provando-a a fundo com
perguntas e respostas, para libertá-la dos erros e dispô-la à verdade.160
O Sócrates de Nietzsche é o paradigma, ou a expressão máxima, do homem teórico,
o tipo oposto ao homem trágico. Podemos reduzir as principais diferenças entre um e outro
da seguinte maneira: ambos buscam uma compreensão da verdade, só que o primeiro, o
teórico, procura um desvelamento total do seu objeto, empenhando-se ao máximo com
todos os seus esforços para fazer cair aquele véu que mascara a realidade; enquanto isso, o
artista trágico, segundo Nietzsche, “a cada desvelamento da verdade permanece sempre
preso, com olhares extáticos, tão somente ao que agora, após a revelação, permanece
velado”.161
160 REALE, História da filosofia antiga, vol. I, pág. 305.161 NIETZSCHE, op. cit., § 5.
110
O homem teórico, ou antes o próprio Sócrates de Nietzsche, encontra no saber e no
conhecimento a potência máxima capaz de erradicar a grande peste da condição humana: o
erro e a ilusão apresentam-se como as doenças a serem curadas pela medicina universal,
pela dialética socrática. Nietzsche vai colocar, pois, como verdadeiros antípodas, o homem
da ciência, quiçá a ciência mesma, entendida como manifestação racional e consciente, e o
homem que se aproxima do mundo por meio de uma visão trágica, quiçá o próprio
conhecimento trágico. Qual é, então, a necessidade da arte? Por que, segundo Nietzsche, o
próprio homem teórico deverá desembocar no conhecimento trágico do mundo? Mais uma
vez é Kant, digo isso como hipótese, quem está por detrás das afirmações de Nietzsche; é
talvez o próprio reconhecimento dos limites da ciência alcançado na Crítica da razão pura,
a golpes de machado, que conduz o homem teórico ao reconhecimento da falibilidade da
ciência:
Agora porém a ciência, esporeada por sua vigorosa ilusão, corre, indetenível, até os seus limites, nos
quais naufraga seu otimismo oculto na essência da lógica. Pois a periferia do círculo da ciência
possui infinitos pontos e, enquanto não for possível prever de maneira nenhuma como se poderá
alguma vez medir completamente o círculo, o homem nobre e dotado, ainda antes de chegar ao meio
de sua existência, tropeça, e de modo inevitável, em tais pontos fronteiriços da periferia, onde fixa o
olhar no inesclarecível.162
Esse reconhecimento da fragilidade da dialética socrática, das intenções de se
chegar a um conhecimento seguro da totalidade por meio do dia-logo, conduzirá a ciência
ao fracasso, ao menos em relação às suas pretensões de conhecer o próprio ser. A coisa em
si permanece intocada pelas pretensões de uma cientificidade: o nosso conhecimento falha
ao tentar aproximar-se dela, restando-nos somente aquilo que é produto de Maia , apenas
podemos conhecer, no sentido de Kant, o fenômeno, isto é, aquilo que aparece para o
162 NIETZSCHE, op. cit, §15.
111
sujeito transcendental nas intuições da sensibilidade, quais sejam, o espaço e o tempo. É
precisamente a filosofia de Kant, voltaremos a isso a seguir, que possibilita um
amolecimento da cultura socrática, entendida por Nietzsche como cultura racionalista, na
medida em que o solitário de Königsberg demostra, por meio das noções de fenômeno e
coisa em si, os limites de nosso conhecimento. Isso significa a possibilidade, na perspectiva
nietzscheana e na visão de Schopenhauer, de uma experiência da totalidade para além do
Entendimento, o que quer dizer, desde já, que essa experiência permanece sempre
impossibilitada de ocorrer através de um conhecimento, o que já indica um sério problema
para a ciência.
A conferência ministrada por Nietzsche na universidade da Basiléia, “Sócrates e a
tragédia”, foi dedicada a estudar o fim da arte trágica entre os gregos. Esse fim da tragédia
é um fato singular: o teatro trágico não teve uma morte lenta nem um declínio glorioso,
simplesmente não teve declínio. Ela desaparece com Sófocles como que atingida por um
incomensurável desastre: o filósofo Sócrates é esse desastre, ele que desprezava a tragédia,
a arte da imitação de seres superiores, como definiu Aristóteles. Consigo, Sócrates leva
Platão para os passos da dialética, este que talvez se tornasse o maior de todos os poetas
trágicos, não fosse a sedução socrática. Sócrates propõe uma revolução na educação grega:
não mais a poesia deve educar, não mais os poetas mentirosos, mas sim o próprio logos. A
condenação de Sócrates renasceu no auditório no qual Nietzsche pronunciava a sua
conferência aberta, obviamente a polêmica foi aí instaurada. Anos mais tarde,
postumamente, Nietzsche encontrará sua tese endossada pelo seu grande biógrafo:
“Sócrates substitui a inspiração heróica pelas deduções da dialética; a cicuta foi merecida.”,
afirma Halévy.163
163 HALÉVY, Daniel. Nietzsche, uma biografia, pág. 68.
112
§ 2. – Kant e a Possibilidade de uma Filosofia Trágica
A leitura schopenhaueriana da tragédia não se encontra fora de sua obra máxima, O
mundo como vontade e representação, escrita antes mesmo de o filósofo completar 30 anos
de idade. Nas últimas páginas do livro III dessa obra, o autor erige a tragédia acima de
todas as outras formas de arte. A tragédia é para ele metáfora do caráter cruel e injusto do
mundo, ela assenta-se na percepção íntima sob a qual o herói não corrige determinados
erros, mas sim o erro fundamental que está no âmago da própria existência. A visão de
mundo de Schopenhauer, claramente flagrante, é facilmente descrita nos versos de
Calderón, por ele citado na qüinquagésima primeira seção:
Pues el delito mayor
Del hombre es haber nacido.
A apresentação de um grande infortúnio: isso é o essencial para a tragédia, diz
Schopenhauer, e na sua visão pode ser alcançado pelo artista de três modos , pela
apresentação de uma perversidade extraordinária de caráter, no extremo de todas as
condições possíveis (como Creonte na Antígona); pelo destino cego e inexorável, que se
lança indestrutivelmente na vida dos protagonistas, como ocorre em Édipo Rei, na tragédia
clássica (e em Romeu e Julieta, na tragédia moderna). Esse grande infortúnio, característica
essencial da tragédia, é ainda possível de ser alcançado, segundo o filósofo de Frankfurt,
pelo simples relacionamento das pessoas, conforme a inventividade do artista, de modo que
não é preciso, nesse caso, nenhum acontecimento que lembre essas duas ocorrências acima
113
descritas. Esse último caso é o predileto de Schopenhauer: os personagens são dispostos de
tal modo pelo autor da tragédia, que são forçados a criar a maior infelicidade sem que a
culpa caia inteiramente em um lado apenas.
Esta última espécie nos apresenta estas forças destruidoras da felicidade e da vida de um modo tal
que seu caminho está aberto também a nós a qualquer momento, e que o maior sofrimento é
produzido mediante associações, cujo essencial poderia ser assumido também pelo nosso destino, e
por ações que talvez também nós seríamos capazes de realizar, assim retirando-nos o direito a
queixas sobre a injustiça; então, horrorizados, já nos sentimos em pleno inferno.164
Alcançar esse efeito não é tarefa fácil, sendo esse efeito mesmo o mais difícil de ser
atingido dentro de uma literária que se pretenda trágica, ou seja, que represente a dor e a
angústia da existência. Poucos são os que conseguiram. Schopenhauer elege Clavigo, de
Goethe, como a obra que mais perfeitamente se enquadra nesse tipo de tragédia. Não deixa
de mencionar, contudo, Hamlet, se nossa atenção volta-se inteiramente para a relação que o
protagonista tem com Laerte e Ofélia. Além disso, menciona ainda Fausto, do seu grande
mestre, como ele refere-se a Goethe, e Cid, de Corneille. A tragédia, para Schopenhauer,
leva-nos tão somente à resignação, a um estado capaz de nos arremessar para fora da
própria vida, a não querer mais desejar a existência.
Kant freou as tentativas da metafísica de uma compreensão da totalidade, da coisa
em si, demonstrando em sua Crítica da razão pura os limites do conhecimento. A coisa em
si é inteiramente incognoscível. Kant, Schopenhauer e Nietzsche, é esse o pressuposto de
nosso trabalho, constituem uma determinada linha na história da filosofia que representa a
crise da compreensão do “conceito” de razão na modernidade. Seguindo os passos de Kant,
Schopenhauer defende em O mundo como vontade e representação essa incognoscibilidade
164 SCHOPENAHER, O mundo como vontade e representação. §51.
114
da coisa em si compreendendo-a como a vontade em si, passível, contudo, de ser
experimentada esteticamente. Apesar de seguir e permanecer fiel a Kant, Schopenhauer
filia-se, mesmo com seu ateísmo declarado, a uma tradição platônico-cristã na medida em
que mantém uma valoração negativa da vida. A melhor expressão dessa valoração negativa
será entendida por ele na tragédia, metáfora da injustiça e do sofrimento da existência.
Nietzsche parte dos mesmos pressupostos de Schopenhauer, ou seja, da possibilidade de
uma experiência estética da totalidade, mas empenha-se ao máximo, por meio de uma
tensão dialética, em manter uma valoração afirmativa da vida, uma afirmação da
multiplicidade que só é garantida pela unicidade do mundo; uma afirmação, pois, da
aparência e do fenômeno na medida em que estes estão relacionados a uma totalidade.
Apolo, na filosofia de Nietzsche, representa as formas e a aparência. Dioniso nos
informa a visão do informe, daquilo que não se deixa apreender pelo olhar, é ele quem
revela a verdadeira essência do mundo, que é cruel e terrível. Mas o homem trágico de
Nietzsche, ao contrário dessa visão apresentada por Schopenhauer e acima descrita, percebe
no auge da experiência trágica, diante da verdade horrenda do mundo, a possibilidade, ou
antes, a necessidade, de se aspirar à forma, à serenidade de Apolo. É Apolo quem mostra a
verdade do mundo, é ele quem se deixa encarnar por Dioniso para que esse demonstre toda
a sua força. Apolo possibilita, por meio da individuação do herói trágico, a essência mesma
da existência, isto é, permite que o fundo místico do dionisíaco se mostre ao herói apesar de
toda a sua hostilidade. É justamente a revelação da crueldade dessa essencial característica
de Dioniso que exige de novo o prazer da aparência: é Apolo quem redime Dioniso. É
nesse sentido que a filosofia de Nietzsche, apesar de toda influência, não se confunde com
o pensamento de Schopenhauer, uma vez que chegam a resultados bastante díspares. É
somente por meio de uma tensão dialética entre o apolíneo e o dionisíaco, entre a aparência
115
e a essência, que se pode chegar na arte trágica a uma experiência da totalidade , a uma
experiência estética da metafísica de Dioniso.
Invoquemos novamente a fórmula de Nietzsche, ela pode aqui esclarecer a sua visão
da obra de arte trágica entre os gregos e da experiência estética dionisíaca em geral:
somente como fenômeno estético pode a vida ser justificada. Há um pessimismo entre os
antigos. Isso é descrito em O nascimento da tragédia por meio do diálogo entre o rei Midas
e Sileno, quando este último, sabedor profundo da natureza humana, revela ao rei, após ser
forçado e ameaçado, qual é dentre todas as coisas a mais preferível para o homem: “Por que
me obrigas a dizer-te o que seria apara ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti
inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor
para ti é morrer logo.”165 A criação do mundo olímpico, a criação de seus deuses: teria sido
essa a saída dos gregos para o problema do pessimismo. A sua religião colorida de deuses
significou, tal como interpreta Nietzsche, uma justificação da vida. Deu à existência dos
homens um sentido e um fim. Por meio da criação da obra de arte, tanto a épica quanto a
trágica, a vida revelou-se agora digna de ser vivida e de ser desejada a tal ponto que os
gregos poderiam agora responder a Sileno, na inversão realizada pelos olhos e ouvidos
enthusiasmados (no sentido grego da palavra) de Nietzsche: “A pior coisa de todas é para
eles [para os gregos] morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia.”166
Percebe-se aqui que essa afirmação só é possível através de uma experiência estética
na medida em que os antigos não dissociavam a sua poesia da ética e das experiências
vividas: a criação artística entre os gregos, ao menos a poesia de Homero, de Arquíloco e
dos grandes poetas trágicos, está intimamente ligada a uma experiência profunda do ser
165 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, §3. Comparar essa fala de Sileno com os versos de Teógnis, expostos na página 33.166 NIETZSCHE, id.
116
humano e plenamente arraigada no seu ethos. A idéia de uma estética ou de uma criação
artística como experiência individual que brota da cabeça do artista é uma noção moderna e
equivocada para se aproximar dos gregos e nada tem a ver com a estética aqui entendida
por Nietzsche. Para os helenos, não existe uma noção estética dissociada dos seus efeitos
éticos.167
Eis os resultados conflitantes de Schopenhauer e de Nietzsche. Para o primeiro, a
tragédia grega conduz o homem trágico a um abandono do que é fenomênico, pois revela
por meio da experiência do sublime, como explicamos no capítulo anterior,168 que a vida é
aparência, mera ilusão e isso o leva a desejar um outra existência, característica essencial
do niilismo contra o qual Nietzsche se lançará de forma tão impetuosa,169 afirmando a
possibilidade de se querer a vida, mesmo que ela seja apenas aparência, o sonho de um
sonhador, sem o qual a existência, no entanto, seria um tédio insuportável. Como é
possível, contudo, a afirmação da aparência? Através da arte trágica, de uma experiência
estética que se apresenta como a possibilidade de se representar, por meio de uma
expressão apolínea, aquilo que não se deixa representar, isto é, a totalidade do mundo que é
expressa na noção de dionisíaco.
Mas como é possível, depois de Kant, falar de uma experiência da totalidade, da
coisa em si, uma vez que existe, ao que tudo parece indicar, um parentesco entre a coisa em
si, a vontade e o dionisíaco? Se Dioniso representa a visão da totalidade informe e se a
tragédia é a tradução dessa totalidade na expressão apolínea, como é possível apresentar
uma visão estética que se fundamente metafisicamente? Quais seriam os meios de
comunicar o que é essencialmente incomunicável? Não se trata, contudo, de um
167 Lembro que os gregos não conheciam a palavra estética (derivado, no entanto, do verbo grego aisthesis), que somente apareceu em 1750, com a publicação da primeira edição da Estética de Baumgarten.168 Cf. capítulo III, pág. 92, terceiro parágrafo em diante.169 Cf., por exemplo, A genealogia da moral, terceira dissertação: “O que significam os ideais acéticos?”.
117
conhecimento da totalidade, mas de uma compreensão trágica do mundo. Não se trata de
conhecer essa totalidade, mas antes de experimentá-la por meio de uma compreensão
estética. Mesmo assim, qual linguagem falaria o Dioniso de Nietzsche? Qual linguagem
suportaria essa totalidade posta na representação e na aparência? Como é possível o
casamento da totalidade dionisíaca, essa inqualificável essência do mundo, com o apolíneo,
na medida em que Apolo se apresenta como o deus dos limites? Guardemos essas questões
por hora para retomá-las e problematizá-las mais adiante, nas “Considerações Finais”.
É preciso, antes de mais nada, retomar uma distinção dos antigos. A idéia de razão é
vinculada a duas raízes essenciais quem vêm do grego e do latim: λεγω, λογος , cujo
sentido originário é ajuntar, ligar; reor, ratio, cujo sentido, na sua origem, é calcular,
contar. Como fica claramente exposto no diálogo Teeteto, de Platão, a razão opõe-se de
modo especial ao conhecimento que é imediatamente adquirido por meio dos sentidos, que
só pode fundar a opinião (δοξα), aquela certeza imediata que constantemente nos engana.
Isso porque a razão anela pelo universal e exige sempre para si justificações. O
conhecimento racional é um conhecimento autêntico e verificado, que nos faz ultrapassar as
aparências e ir em busca daquilo que, apesar de todas as mudanças, permanece sempre o
mesmo: a isso os antigos gregos davam o nome de realidade, ao passo que aquilo que é
sempre percebido imediatamente pelos sentidos não pode ser senão ilusório e imperfeito.
Um outro aspecto essencial e bastante representativo do pensamento grego é aquele
que nos diz que a razão admite graus ou formas distintas de compreender os seus objetos.
Essa distinção entre uma razão intuitiva e uma razão discursiva estará fortemente presente
na tradição do pensamento ocidental e dará origem a uma série interminável de
controvérsias. A noésis (νοησις ) é essa razão intuitiva que apreende as verdades num só
golpe, seria a faculdade capaz de captar verdades fundamentais por uma via intuitiva, sem
118
precisar recorrer a um pensamento meramente calcado na ciência e na palavra, assemelha-
se, pois, ao que, séculos mais tarde, proibirá Kant em sua primeira crítica: a intuição
intelectual, retomada e legitimada, contudo, nos livros de juventude do jovem Schelling e
fortemente defendida por Schopenhauer como a única forma de conhecimento autêntico. A
diánoia (διανοια), por sua vez, é a razão discursiva, é o discurso interior da alma consigo
mesma, como nos diz Platão: “Pensamento e discurso são, pois, a mesma coisa, salvo que é
ao diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento.”170 A
diánoia é o pensamento articulado em juízos encadeados, como ocorre nos silogismos, nos
quais passamos necessariamente dos argumentos (desde de que obedeçam a certas regras da
lógica) a uma conclusão, de maneira semelhante, por exemplo, às demonstrações da
matemática.
Pois bem, o Sócrates de Nietzsche está reduzido a esse segundo tipo de razão, a essa
necessidade do discurso para se atingir à verdade, e tudo aquilo que não se apresente por
meio de cadeias de razões será recebido como falso. O filósofo socrático, tal como o
compreende Nietzsche, isto é, como o homem teórico, uma vez estando de posse dessa
faculdade e dessa capacidade da razão discursiva, dialógica, pretende um entendimento do
próprio ser, um entendimento que está, desde já, para além de toda ilusão e corrupção
delegadas pelo fenômeno. É esse o otimismo da ciência: ela acredita poder curar a nossa
maior doença, a nossa ignorância, por meio do conhecimento correto e seguro da essência
íntima das coisas. Esse otimismo socrático teria perdurado por toda a nossa tradição
intelectual e filosófica do Ocidente, impossibilitando mesmo o renascimento daquilo que
teria morrido justamente por causa desse otimismo: a cultura dionisíaca e seus mistérios
trágicos.
170 PLATÃO, O sofista ( 263 e), São Paulo: Abril Cultural, 1972. (col. Os Pensadores).
119
Para que se possa falar de uma interpretação estética do mundo, da totalidade do
mundo, quer da vontade, em Schopenhauer, quer do dionisíaco, em Nietzsche, é preciso
mostrar os limites da razão discursiva, ou antes mostrar a impossibilidade de se ter acesso
ao íntimo das coisas por meio do conhecimento racional ou discursivo. É como pressuposto
para se poder afirmar uma sabedoria dionisíaca que se apresenta tal empresa. É preciso
frear aquele poder esclarecedor que pretende tornar tudo inteligível, aquela aposta no poder
da lógica que teria sufocado os elementos dionisíacos da tragédia grega. Tanto Nietzsche
quanto Schopenhauer colocam-se, com determinadas diferenças, contra essa tradição que
delegou plenos poderes à dianóia em detrimento da noésis, se quisermos manter os temos
gregos.
Se, por um lado, Sócrates representa toda essa derrocada dos elementos trágicos, a
vitória do lógico e da razão discursiva sobre a razão intuitiva, Immanuel Kant, por outro,
representa, no horizonte vislumbrado em O nascimento da tragédia, a possibilidade de
renascimento na modernidade daquela cultura trágica da Antigüidade clássica, uma vez que
foi através da filosofia kantiana e da sua retomada por Schopenhauer, que “o espírito da
filosofia alemã”,
(…) viu-se possibilitado a destruir o satisfeito prazer de existir do socratismo científico, pela
demonstração de seus limites, e como através dessa demonstração se introduziu um modo
infinitamente mais profundo e sério de considerar as questões éticas e a arte, modo que podemos
designar francamente como a sabedoria dionisíaca expressa em conceitos: para onde aponta o
mistério dessa unidade entre a música alemã e a filosofia alemã, se não para uma nova forma de
existência, sobre cujo conteúdo só podemos informar-nos pressentindo-o a partir das analogias
helênicas?171
171 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 19. É claro, contudo, que um kantiano rigoroso não concordará, ipsissima verba, com essa leitura de Nietzsche. Devemos perceber que o que importa a Nietzsche são os resultados da filosofia kantiana, não aquele aparato transcendental que fundamenta obra de Kant.
120
Para Nietzsche, Kant representa uma vitória na filosofia moderna sobre toda a
tradição que vem desde Sócrates, justamente por demonstrar a impossibilidade de nosso
conhecimento se direcionar para as coisas mesmas. Ao demarcar os limites do
conhecimento , que só pode aplicar suas categorias no que se apresenta nas intuições da
sensibilidade, ou seja, só podemos conhecer aquilo que pode ser apreendido nas formas
puras do tempo e do espaço , Kant restringiu o campo do conhecimento e demonstrou a
falibilidade da ciência. Na visão de Nietzsche, essa foi uma grande vitória sobre as
pretensões do socratismo científico, obrigando-o a contentar-se tão somente com o
conhecimento das aparências. Kant, em sua Critica da razão pura interroga-se: como é
possível a ciência? E toda a sua filosofia nesse momento volta-se para esse imenso esforço
de levantar, tal qual inventário, os elementos puros a priori do conhecimento , que não
residem noutro lugar senão no próprio sujeito pensante.
O sentido da “revolução copernicana” está prescrito precisamente na determinação
dos quadros de conhecimento como uma definição do próprio sujeito transcendental, ou
lógico, na medida em que consiste numa faculdade de conhecer. A percepção dos objetos e
a possibilidade de seu conhecimento dependem unicamente do sujeito e não mais da
natureza dos objetos mesmos. Se antes o sujeito investigador ia à natureza para conhecê-la,
acreditando que aquelas determinações do tempo e do espaço, bem como as qualidades
como peso, altura, largura, etc., eram relações que ou, residiam no próprio objeto, ou entre
objetos; depois de Kant, tanto o tempo e espaço como as categorias são descobertas no
próprio sujeito do conhecimento. Para manter essa metáfora da revolução copernicana,
sugerida pelo próprio Kant, podemos dizer que são os objetos, pois, que passam a girar em
torno do sujeito.
121
De modo geral e dizendo rapidamente, o conhecimento racional consiste
precisamente numa redução à unidade dos dados do conhecimento que se apresentavam de
forma dispersa. Dentro do sistema kantiano, o esquema transcendental, que é sempre um
produto da faculdade da imaginação, é o responsável por ligar as categorias do
entendimento àquilo que é dado na faculdade da sensibilidade. A razão é um grau superior
de síntese de conhecimentos. O entendimento é uma faculdade que dá as regras para aquilo
que é dado na sensibilidade; a razão, por sua vez, não é uma faculdade de regras, mas de
princípios. Desse modo, a razão não se direciona imediatamente para a experiência, mas
volta-se para o entendimento. Para Kant, não podemos direcionar nosso conhecimento às
coisas em si mesmas, ao núcleo da experiência, mas simplesmente ao fenômeno, às
aparências, que são sempre o resultado das sínteses realizadas a priori pelo aparato do
conhecimento.
Mas, o que significa tudo isso para a filosofia e para as esperanças de Nietzsche?
Kant faz aqui a crítica da razão metafísica, demonstrando os seus limites. Deus, a
imortalidade da alma e a totalidade do mundo são idéias que a razão forma legitimamente,
mas às quais permanece impossibilitada de fornecer uma demonstração científica, na
medida em que essas idéias não são dadas na experiência sensível.172 Eis aqui o significado
da filosofia kantiana: “A enorme bravura e sabedoria de Kant e de Schopenhauer
conquistaram a vitória mais difícil, a vitória sobre o otimismo oculto na essência da lógica,
que é por sua vez, o substrato de nossa cultura.”173
O lugar de Kant é delimitado, em O nascimento da tragédia, como a grande
conquista contra Sócrates, ou antes, contra o conceito, contra a exigência lógica do
172 As idéias da razão não podem ser conhecidas, mas podem ser pensadas. Kant vai postular, pois, a razão pura prática, exposta na sua segunda crítica. Essa razão pura prática não se volta para o conhecimento, mas para a ação moral que é movida pelas máximas morais. 173 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, §18.
122
esclarecimento no elemento trágico , o que só pode levar à morte todos aqueles
elementos dionisíacos que guardavam em si um mistério religioso. Kant abre, assim, as
portas da possibilidade de um novo tipo de sabedoria que é guiada pelo espírito dionisíaco
que, representando a essência íntima do mundo, a natureza da dor e dos sofrimentos, leva o
homem a querer uma afirmação do apolíneo, das máscaras que tornam a vida possível e
desejável.
A impossibilidade de se chegar à totalidade do mundo por meio da razão discursiva:
é esse o grande golpe que Kant aplicou no otimismo socrático, ou, antes, nas pretensões do
conhecimento científico. Se a coisa em si é irremediavelmente incognoscível, ela é
interpretada por Schopenhauer como vontade, como o arracional:174 a sua via de acesso, se
é que existe alguma, não pode passar pelo conhecimento175 e sim por uma experiência
estética. Em Nietzsche, Kant representa uma vitória sobre o inimigo, sobre o otimismo
expresso na razão discursiva. O sublime é o que possibilita, em Schopenhauer, uma
experiência da própria vontade, uma vez que liberta o sujeito de toda representação, de tudo
aquilo que é fenomênico, ilusório, liberta o sujeito, pois, do véu de Maia. A dialética
trágica, na filosofia do jovem Nietzsche, é a possibilidade, por meio da expressão artística
apolíneo-dionisíaca, de uma compreensão da metafísica de Dioniso, que ao ser expressa
leva o homem trágico a continuar desejando a aparência, tamanho os horrores do
dionisíaco. Porém, esses horrores não são temidos pelo sujeito, mas agora experimentados
174 Prefiro usar a palavra arracional ao invés de irracional, pois assim refiro-me simplesmente ao que não é racional, livrando-me de todas aquelas conotações e polêmicas envolvidas no irracional.175 Por exemplo, em Kant, o conhecimento pressupõe, de um lado, a sensibilidade, e eu não posso experimentar a coisa mesma, de outro, a razão, na medida em que possui os princípios que fundamentam o entendimento. Para Schopenhauer, como ficou patente no capítulo anterior, não existem essas três demarcações, intuição (faculdade da sensibilidade), entendimento e razão, mas somente intuição e entendimento. A intuição é, para Schopenhauer, expressão do próprio entendimento , nessa relação todo objeto percebido na representação somente existe enquanto é projetado pelo sujeito nas intuições do tempo e do espaço. Portanto, o que percebo é somente minha representação. No entanto, para que eu possa ter uma experiência da totalidade do mundo, que é vontade, eu preciso me livrar de toda representação: esse tipo de experiência não pode pressupor o conhecimento porque deve abrir mão do próprio entendimento e das intuições, isso só pode ocorrer mediante o sentimento do sublime.
123
prazerosamente na representação apolínea. A metafísica de Dioniso é passível de ser vivida
esteticamente.
§ 3. – O Dionisíaco e a Necessidade da Aparência
Inicialmente, encontramos em O nascimento da tragédia uma oposição: trata-se da
disparidade entre as características do apolíneo e do dionisíaco que se constitui numa mútua
oposição. O apolíneo é equiparado ao mundo dos sonhos; o dionisíaco, por sua vez, ao
estado de embriaguez.176 A descrição desses dois impulsos é feita inicialmente através de
suas características tão distintas: o apolíneo é a expressão do artista que se volta para a
coloração e formas de seus objetos. Mais ainda: Apolo é o deus dos limites. O apolíneo
assinalará, pois, a nitidez dos contornos, a clara demarcação que se estabelece numa
determinada realidade, na qual a beleza, ou antes, o belo (na medida em que é ao apolíneo
que as formas do objeto se referem) constitui-se como objeto da arte. Do outro lado dessa
oposição, com características que contradizem esse estado artístico que se volta para a
beleza, está o dionisíaco: basta estabelecer os antônimos daquele para se compreender a
que esse impulso se refere. Sua característica mais essencial é, talvez, o ilimitado, ou antes,
o infinito, uma espécie de expansão na qual não há mais como fazer a separação de
indivíduos. A bacanal dionisíaca, dizendo antropologicamente, levaria os seus membros a
um estado de consciência tal que não haveria mais limites entre os elementos do ritual:
romper-se-iam, pois, as cadeias da própria consciência. Esse lestado de inconsciência,
provocado nas festas dionisíacas pela dança e pelo vinho, constitui exatamente aquele
176 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 1.
124
estado de narcose, isto é, aquele “estado de torpor e inconsciência produzido por um
medicamento hipnótico”, segundo a definição de Houaiss.177 Essa beberagem narcótica
conduz a um estado original: não há indivíduos, mas aquela massa coral, a qual já me
referi, que representa a realidade mesma.
É de uma oposição entre o principium individuationis e o Uno primordial que se
fala aqui, termos esses que Nietzsche toma emprestado de Schopenhauer. Mas uma tal
oposição entre o apolíneo e o dionisíaco só pode existir fora da obra de arte, uma vez que
esses dois elementos confluem para um mesmo ponto:
E aqui se oferecem ao nosso olhar as sublimes e enaltecidas obras de arte da tragédia ática e do
ditirambo dramático; como alvo comum de ambos os impulsos, cuja misteriosa união conjugal,
depois de prolongada luta prévia, se glorificou em semelhante rebento, que é simultaneamente
Antígona e Cassandra.178
Se existe uma oposição entre esses impulsos, tal oposição não pode ser
irreconciliável dentro da obra de arte. É que existe uma mútua necessidade que conduz
esses dois elementos a uma tensão dialética característica do fenômeno trágico. Tratemos
logo de esclarecer esse ponto.
O elemento apolíneo possui, como essência íntima, a sua devoção para com a
medida, aquilo que conhece os limites. “Nada em demasia”, aconselha o deus por meio do
oráculo de Delfos. O dionisíaco, por sua vez, não conhece esse preceito ético e, ao contrário
da harmonia, exigência apolínea, conhece apenas aquela música desenfreada, capaz de
inspirar os mais selvagens delírios e estados hipnóticos, conhece apenas, numa palavra, a
dissonância. Ao apolíneo de Nietzsche parece estar associado aquilo que Schopenhauer,
seguindo Kant e a tradição, chamou de belo, uma vez que é compreendido por Nietzsche
como aparência. A música nada tem a ver com o prazer que nos é proporcionado diante da 177 HOUAISS, A. Dicionário eletrônico da língua portuguesa 1.0, verbete “narcose”.178 NIETZSCHE, op. cit., § 4.
125
beleza das formas; ao contrário, a música é uma arte que nos indica o sublime, a dimensão
do ilimitado que só podemos sentir através de uma inversão dos sentidos: é bem vinda aqui
a metáfora schopenhaueriana do olho que tudo vê , um olho interior que assume o papel
do ouvido exterior.
A música parece indicar, tanto em Nietzsche, quanto em Schopenhauer e Wagner,179
uma estética do sublime que permite entrar em um mundo de luz divina e de uma pureza
que nasce da própria melodia. Contudo, Nietzsche não conclui que a tragédia grega, com
todo o seu jogo de prazer e dor e sofrimento, leva o homem a um retiro para esse mundo
outro, antes pelo contrário, dá-lhe a necessidade de permanecer no prazer da aparência. De
modo semelhante, guardadas as devidas diferenças e proporções, Zaratustra aconselhará,
anos mais tarde, o amor e a fidelidade do homem à terra: “Eu vos rogo, meus irmãos,
permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas!”180
A leitura nietzscheana da tragédia procura fazer justiça ao sentido originário e tão
assombroso do coro.181 É sim o caráter sublime da música que se afirma aqui. Para
Nietzsche, não é possível se aproximar do teatro trágico por via douta, isto é, por meio da
palavra; o conceito, tal como o compreende Nietzsche, ou seja, como palavra, não consegue
dar conta do pathos da tragédia, uma vez que este se apresenta totalmente impossibilitado
de ser apreendido pela ciência. O herói trágico é intimamente preenchido pelo espírito
dionisíaco, ou seja, é intimamente arrebatado pelo espírito da música e é por isso que as
suas ações são, segundo a leitura de Nietzsche, mais profundas que suas palavras. A
incompatibilidade entre o mito e a palavra falada reside no fato dessa última não conseguir
expressar o inexprimível. A música é o próprio sentido da tragédia. Não estaríamos, pois,
condenados ao mais terrível silêncio, uma vez que não possuímos a essência musical do 179 Cf. SCHPENHAUER, O mundo como vontade e representação, §51-52; WAGNER, Beethoven. 180 NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, “O prólogo de Zaratustra” § 3. 181 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 17.
126
teatro grego que se tornou, por assim dizer, um texto morto e inerte para nós, modernos? A
esse problema do silêncio, ressaltado e indicado no capítulo II, “Nietzsche e a interpretação
do silêncio”, está associado um mal-estar devido a nossa incapacidade de compreender o
fenômeno do trágico.
No tocante à tragédia grega, a qual se nos apresenta, em verdade, apenas como drama falado, dei a
entender inclusive que essa incongruência entre mito e palavra poderia facilmente nos
desencaminhar, se a considerarmos mais superficial e insignificante do que é e, como decorrência,
se lhe pressupusermos um efeito ainda mais superficial do que aquele que, segundo o testemunho dos
Antigos, ela deve ter tido: pois quão facilmente é esquecido que aquilo que o poeta da palavra não
alcança, a suprema espiritualização e idealidade do mito, ele, como músico criador, podia conseguir
a todo instante! 182
Uma dialética trágica só pode resultar da exigência do espírito da música, uma vez
que esse espírito necessita de uma revelação figurativa e mítica. A música dionisíaca
preenche a aparência singular alargando-a e fornecendo-lhe uma riqueza incomensurável de
imagens do mundo. A tragédia só é possível por meio de uma representação desse
dionisíaco originário. Mas como? O dionisíaco originário, enquanto totalidade, não é
irrepresentável? Acontece que esse dionisíaco que constitui a origem da tragédia é
essencialmente musical, e a música é, paradoxalmente, uma representação sem objeto. É
por isso mesmo que a música constitui a parte primordial do drama antigo, posto que
somente ela, representação sem objeto, pode tocar diretamente aquele fundo que caracteriza
a metafísica de Dioniso. “A tragédia interpõe diz Nietzsche entre o valimento
universal de sua música e o ouvinte dionisacamente suscetível, um símile sublime, o mito, e
182 NIETZSCHE, id.
127
desperta naquele a aparência, como se a música fosse unicamente o mais elevado meio de
representação para vivificar o mundo plástico do mito.”183
Somente o mito pode dar a liberdade à música, posto que esta, em si mesma, sem as
ilusões da aparência, do apolíneo, não se pode mostrar e “atrever-se, sem aquele engano, a
regalar-se”.184 O apolíneo ou, se se quiser, a palavra e a imagem, dependem do dionisíaco,
ou antes, da música dionisíaca, para atingir uma significação metafísica que garanta ao
espectador da tragédia um sentimento de prazer supremo diante da representação. O
apolíneo tem necessidade da música e das coisas universais, assim como o dionisíaco tem
necessidade da aparência e da ilusão que garantem a individuação para se revelar como tal,
ou seja, como algo que está no fundo de toda beleza plástica. O mito trágico e o herói
trágico precisam daquela força apolínea que possibilita a restauração da vida individual,
que estará inteiramente despedaçada no êxtase do dionisíaco. “Assim, o apolíneo nos
arranca da universalidade dionisíaca e nos encanta para os indivíduos: neles encadeia o
nosso sentimento de compaixão, através deles satisfaz o nosso senso de beleza sedento de
grandes e sublimes formas.”185 A ilusão do indivíduo proporcionada pelo apolíneo é, agora,
para Nietzsche, uma espécie de magia terapêutica que possibilita um prazer e acalma todo
o individual perante aquela dor e sofrimentos originais do dionisíaco, no qual não há,
sequer, a possibilidade, por si só, de existir qualquer indivíduo.
É assim que se dá a tensão dialética entre essas duas tendências da tragédia antiga: o
apolíneo, enquanto dura a representação do drama, parece domar o dionisíaco e pôr este a
seu serviço. O apolíneo obteve, desse modo, por meio de sua poderosa força de ilusão, uma
vitória sobre o dionisíaco musical. Mas essa vitória não é ela mesma senão ilusória,
efêmera. Enquanto o apolíneo fazia-nos acreditar em seu grandioso êxito, o dionisíaco
183 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, §21.184 NIETZSCHE, id.185 NIETZSCHE, ib.
128
aproveitava-se desse véu de Maia para proporcionar uma compreensão maior do drama. Se
durante os episódios da peça trágica fica patente, por um lado, um casamento entre esses
dois impulsos, e a representação apolínea dos indivíduos, dos heróis individuais, parece
mesmo atingir uma preponderância , por outro lado, ao cabo do drama, o efeito
dionisíaco mostra a sua superioridade infinita mais além de todos os efeitos artísticos
apolíneos.186 A destruição do herói ao fim da peça e o consolo metafísico atingido nesse
ponto parecem indicar que a relação dialética entre os dois elementos do teatro deve
apontar para uma unidade, dando à metafísica de Dioniso, enfim, a possibilidade de revelar-
se em toda a sua sublimidade.
Assim, a difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia poderia realmente ser simbolizada
através de uma aliança fraterna entre as duas divindades: Dioniso fala a linguagem de Apolo, mas
Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dioniso: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e
de toda arte em geral.187
Mas a própria voz com a qual canta agora Dioniso está mudada, ele sofreu uma
transfiguração metafísica. O apolíneo que devota a beleza e os limites assume, segundo
Nietzsche, uma postura ingênua (no sentido de Schiller), um encobrimento de um fundo
cruel e horrível que caracteriza a própria realidade.188 Somente com a criação do seu mundo
olímpico, não o cansa de repetir Nietzsche, pôde o homem grego viver e tornar a vida
desejável; somente com essa tendência apolínea, essa espécie de ilusão necessária, pôde o
grego dar continuidade a sua vida. É necessário outra citação do autor:
186 NIETZSCHE, ib.187 NIETZSCHE, ib. 188 “Onde quer que deparemos com o ‘ingênuo’ na arte, cumpre-nos reconhecer o supremo efeito da cultura apolínea: a qual precisa sempre derrubar primeiro um reino de Titãs, matar monstros e, mediante poderosas alucinações e jubilosas ilusões, fazer-se vitoriosa sobre uma horrível profundeza da consideração do mundo e sobre a mais excitável aptidão para o sofrimento.” NIETZSCHE, op. cit, § 3.
129
O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum
modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses
olímpicos. (…) Para poderem viver, tiveram os gregos, levados pela mais profunda necessidade, de
criar tais deuses, cujo advento devemos assim de fato nos representar, de modo que, da primitiva
teogonia titânica dos terrores, se desenvolvesse, em morosas transições, a teogonia olímpica do
júbilo, por meio do impulso apolíneo da beleza como rosas a desabrochar da moita espinhosa.189
Justificar esteticamente a vida e a existência: é esse o problema anunciado por
Nietzsche. Somente através de uma ilusão artística pôde o homem grego dar sentido a sua
vida. A arte emprestou um sentido e um fim à própria existência. O que antes parecia
assustador, indigno de ser vivido, é agora admirado e prazeroso por meio da fruição
estética. “Nenhum mortal é feliz. São sofredores / todos os mortais que avistam o sol”,190
dizia Sólon, e com ele uma boa parte da sabedoria dos gregos antigos. É essa filosofia
popular que está sob a superfície das histórias dos dramaturgos que guarda camadas de vida
primitiva que estão mais além de todo o nosso vislumbre. O dionisíaco de Nietzsche,
muitas vezes descrito como forças incontroláveis e anárquicas de paixão e de terror, precisa
ser domado pela máscara apolínea de beleza e serenidade: essa é a verdade sobre a tragédia
grega. Aquele que tiver gosto pela psicanálise e antropologia modernas, certamente
reconhecerá aqui as lembranças dos impulsos incestuosos e anárquicos que conduziram o
homem a seus tabus e à suas neuroses. Mas, poupar-me-ei de tais discussões. 191
A necessidade da arte justifica-se, assim, como necessidade de vida: a arte é a
possibilidade de transformar o sofrimento e a dor em prazer: tudo isso é possível por meio
do fenômeno trágico representado no teatro. O que antes aterrorizava, ameaçava a própria
vida, é agora, por meio da relação apolíneo-dionisíaco, o que a possibilita.
189 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia. § 3.190 SÓLON, fr. 15 Diehl, in.: “Lírica Grega – Antologia”, organizado por Celina Figueiredo Lage e Jacyntho Lins Brandão, Departamento de Letras Clássicas, FALE/UFMG, 1996.191 Sobre esse assunto, ver a análise de GASSNER da peça sofocleana Édipo Rei, in Mestres do Teatro I, pág.(s) 59-62.
130
Apolo, lembremos novamente, é representação, é o deus das formas, o patrono das
artes plásticas. Dioniso não é representação, ou antes representa, se quisermos um
paradoxo, o irrepresentável, o informe, o caos. A visão dionisíaca percebe a essência cruel
do mundo. A principal diferença em relação a teoria schopenhaueriana do sublime
(apresentada, ainda que com muitas limitações, no capítulo terceiro) reside nos seus efeitos.
Todo aquele terror e crueldade, a própria dor primordial que o entusiasta de Dioniso sente
quando, arrebatado pela música coral e pela dança, dirige o seu olhar para o âmago das
coisas, não o leva a uma atitude de abandono da vontade de viver,192 aqui, na visão
nietzscheana da tragédia, a experiência do sublime, ou a visão dionisíaca do mundo, não
conduz o homem à aspiração de um outro mundo, nem lhe revela a existência de algo para
além da vida. Sabe-se que, para além da existência, não há individuação:193 a morte nada
mais é que retorno à natureza, à physis. Distante da visão negativa de Schopenhauer,
Nietzsche intui que o auge da experiência do sublime para o gênio grego consiste em
aspirar o belo, as formas da aparência, em suma, agarrar ao apolíneo e desejar a vida. A
origem da tragédia está precisamente nessa descoberta, no casamento entre o informe e a
forma, os limites e o ilimitado, ou, se se preferir, entre a diké e a hybres, entre a justiça e
harmonia cósmicas e a transgressão.
Apolo é a vestimenta de Dioniso: a forma que o informe teria para expressar a
essência íntima das coisas, a cruel essência do mundo. Ora, é justamente essa revelação
que, devido ao seu peso insuportável a nos mostrar todo horror e crueldade do mundo,
exige novamente o gozo da aparência. Aqui, precisamente, reside o ponto original da visão
192 “Perante essa visão [a da representação trágica] afirmava Schopenhauer sentimo-nos solicitados a abandonar a nossa vontade de viver e não mais querer nem a amar a vida.”. Já citado antes na página 87.193 A individuação é aqui pensada no sentido de Schopenhauer: o espaço e o tempo constituem esse princípio: dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço e um indivíduo não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Se com a morte o indivíduo não se encontra mais no espaço e no tempo, não se pode mais falar de individuação. Cf. O mundo como vontade e representação, livro I, § 23.
131
de Nietzsche: o apolíneo é a redenção do dionisíaco e, consequentemente, por analogia,
podemos dizer corretamente que o fenômeno é a possibilidade que a coisa em si encontra
para se mostrar. Embora em nenhum desses casos, o que é representado ou apresentado se
esgote na representação ou apresentação. O mistério das musas trágicas não pode ser
desvelado em sua plenitude. Lembremos ainda que, para Kant, o sublime nos conduz a uma
ilimitação pensada em sua totalidade.194
Aquela distinção kantiana entre a coisa em si e o fenômeno que, como já dissemos,
mantém-se em Schopenhauer, mantém-se ainda e uma vez mais em Nietzsche. É claro que
não da mesma forma. O nascimento da tragédia constrói-se, contudo, a partir das figuras de
Dioniso e de Apolo em torno dos pares Uno/múltiplo, verdade/aparência, no entanto,
não traz essas figuras e esses pares como oposições rígidas, e sim como jogos de forças que
se harmonizam e se desarmonizam em meios aos elementos constitutivos. Com isso, o que
Nietzsche faz não é uma repetição de seus mestres, mas, ao contrário disso, o seu primeiro
livro, embora possua uma grande dívida, traz também um movimento que demarca uma
certa distância em relação à filosofia de Schopenhauer. A existência do homem individual
no espaço e no tempo é uma grande injustiça contra o Uno-primordial (“Pues el delito
mayor / Del hombre es haber nacido”, citava-se Calderón), é isso, entre outras coisas, que
nos ensina Schopenhauer; ora, isso Nietzsche também sabe, mas ao contrário da doutrina
schopenhaueriana, o nosso filósofo procura justificar o plano da aparência, o âmbito do
múltiplo, da singularidade; o que só é possível se se estabelece uma tensão dialética entre a
verdade do mundo e o fenômeno, entre a visão total do mundo e a afirmação do múltiplo,
entre o dionisíaco e o apolíneo.
194 KANT, Crítica da faculdade do juízo, “Analítica do Sublime”, § 23.
132
Para que a obra de Nietzsche fosse escrita, era preciso compreender o teatro grego
como totalidade artística. A partir disso, como se afirmou no primeiro capítulo, Nietzsche
se distanciou da filologia clássica e da compreensão cientificista do passado. A música
apresentou-se como o momento de nascimento da tragédia e como seu principal elemento.
É precisamente a visão da tragédia grega como totalidade artística, como drama musical,
que permite uma aproximação da teoria do sublime da metafísica de Dioniso.
Mas encontrávamo-nos diante de um problema insolúvel. Se a música é o elemento
no qual repousa o efeito principal da tragédia grega, não estamos condenados ao mais
terrível silêncio, uma vez que, como procuramos demonstrar no capítulo segundo, tal
elemento se perdeu para nós no tempo que nos separa do teatro dramático? Tal como
Nietzsche nos advertiu ao comparar as peças das tragédias clássicas à ópera moderna,195 não
estaríamos condenados a ler as peças de Ésquilo, Sófocles ou mesmo Eurípides apenas
como pálidos fantasmas que perderam o seu mais forte componente, ou seja, não
estaríamos condenados a ler esses poetas como libretistas? Esse problema só pode
encontrar solução possível na metafísica. Contudo, uma compreensão metafísica da música
liberaria nossos ouvidos de tal desconforto?
A oposição entre Apolo e Dioniso é somente estabelecida em O nascimento da
tragédia como artifício didático. No fundo, tal oposição não existe:
Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à
certeza imediata da introvisão de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade
do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos,
em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações.196
195 Sobre o renascimento da tragédia na modernidade, quando o elemento dionisíaco aparece para Nietzsche na ópera de Wagner, nunca na ópera italiana, são significativos os capítulos 16 e 19 de Nascimento da tragédia. 196 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 1. (O grifo é meu)
133
Não indicaria essa passagem precisamente o oposto do que acabo de dizer? Não
indicaria a existência de uma duplicidade que coloca de um lado o apolíneo e de outro, o
dionisíaco? Não seria essa uma oposição rígida e genuína? O fenômeno trágico percebe a
verdadeira natureza da realidade e constitui, ele mesmo, a possibilidade de uma visão que
apreende o mundo na sua totalidade. Mas como é possível conjugar esses dois elementos
que se apresentam com características tão díspares e amargas? O pathos da tragédia
sobressume as contradições. A arte trágica é assim, para Nietzsche, a via de acesso mais
séria para se chegar a uma compreensão mais original. A arte trágica encerra nela mesma
um jogo de forças, impulsos que geram uma discórdia no seu interior, que querem, ao
mesmo tempo, a individuação e a vida universal, o finito e a infinitude, a aparência, a
individuação e o fundo dionisíaco que subjaz ao fenômeno da individuação. Se existe uma
dialética em O nascimento da tragédia, ela é tão somente um jogo de forças, uma tensão
que se mantém, que garante ao dionisíaco a sua aproximação e aparição no apolíneo, e que
garante ao apolíneo se aproximar e se mostrar ao dionisíaco. Dessa tensão dialética da
tragédia não podemos, contudo, desejar uma síntese, se por síntese se entende um acordo
no qual as contradições das premissas anteriores desaparecem.
O estabelecimento dessa tensão dialética do trágico é, em tudo, diferente da
resignação da qual se alimenta o pensamento de Schopenhauer. O sentimento trágico do
mundo é uma aceitação da vida mesmo nos seus infortúnios e pesares. No comentário que
Eugen Fink destina ao livro O nascimento da tragédia, lemos:
A aceitação trágica mesmo do declínio da própria existência nasce do conhecimento fundamental de
que todas as formas finitas são apenas ondas temporárias na grande maré da vida, de que o declínio
134
do existente finito não significa destruição pura e simples, mas o regresso ao fundo da vida do qual
surgiram todas as coisas individualizadas.197
Com isso pretende-se dizer novamente que Nietzsche se identifica com o sentimento
que levou Empédocles ao reconhecimento de que “tudo é uno” (εν και Παν). A oposição
que, apresentada na primeira seção de O nascimento da tragédia, parece colocar Apolo de
um lado e Dioniso de outro, é, aos poucos, com o desenvolvimento da apresentação do seu
pensamento, inteiramente suplantada. O apolíneo é lentamente absorvido pelo dionisíaco.
Vida e morte não são duas coisas tão distintas: há morte na vida, como também há vida na
morte. A individuação e a dissolução do principium individuationis fazem parte de um
mesmo jogo. Jogo esse que se constitui essencialmente naquilo que Nietzsche chamou o
pathos da tragédia. A tragédia guarda os seus segredos. Eurípides foi condenado pelo
filósofo alemão pela consciência racional e “iluminista” de seus “prólogos”, por seu “deus
ex-machina”, pela substituição da música dionisíaca por uma dialética esclarecedora e
pelas modificações dos caracteres que conduziram a tragédia à comédia nova, enfim, pelos
temas profanos que levaram a tragédia a seu ocaso.
A dialética trágica de Nietzsche, que constitui e possibilita a sua metafísica de
Dioniso, compreende uma visão de mundo que procura justificar a existência dentro de sua
perspectiva individual. Não há aqui a negação da vontade individual. Nada há aqui que
lembre a ascese schopenhaueriana. Ao contrário, o apolíneo que nada mais é que
representação e beleza plástica, ganha a sua dignidade por meio de uma apologia da vida,
de um equilíbrio com o êxtase dionisíaco que luta para afirmar a existência individual do
herói trágico, mesmo sabendo que tudo o que é individual, todo existente finito, está fadado
à destruição. O combate que se trava na representação dramática do teatro grego é uma luta
197 FINK, E. A filosofia de Nietzsche, pág. 18.
135
pela vida, um combate que pretende dizer sim à vida, mesmo que a essa estejam ligados os
piores de todos os epítetos.
Se existe uma oposição genuína em O nascimento da tragédia, uma oposição
irreconciliável que se distribui em pólos extremos, tal oposição não se dá entre o apolíneo e
o dionisíaco, mas sim entre Dioniso (na medida em que esse se relaciona no fenômeno
trágico com o apolíneo) e o socratismo teórico. O homem trágico de Nietzsche é, por
excelência, o antípoda do homem teórico. Entre esses dois extremos não se encontra a
possibilidade de existência mútua. A história do Ocidente, na leitura nietzscheana, nada
mais é que a vitória do homem socrático sobre o homem trágico, a vitória da ciência e da
metafísica racional sobre o fenômeno trágico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
136
Só o teu olhar, monstruosoMe observa, infinitude.
F. Nietzsche
Há uma infinidade de questões vitais referentes ao teatro grego tais que nunca
iremos desvelar. É esse o silêncio que toma conta de nossas leituras da antiga Grécia.
Estamos condenados a esse silêncio. A nossa própria cultura tardiamente moderna tornou-
se uma cultura do livro e, hoje em dia, do texto eletrônico. O espírito do grande Platão, já
influenciado por aquele dialético de ruas, sabia perfeitamente da importância do aspecto
oral da linguagem,198 situando-se sempre entre esses dois extremos: de um lado, Sócrates,
que defendia radicalmente a oralidade; de outro, os defensores da escritura, da cultura da
escrita. Se os diálogos de Platão pretendiam fundir, na medida do possível, esses dois pólos,
imitando na escrita os aspectos do discurso oral, para onde nos levará nossa imaginação se
nos atemos ao aspecto musical do teatro grego? Somos em tudo incompetentes para nos
aproximarmos do grande palco de Dioniso. Estamos acorrentados a nossos dados que se
apresentam muito mais pobres do que se caberia desejar. Mesmos aqueles poucos
fragmentos musicais de que dispomos são em tudo insuficientes, e nossos estudiosos não se
cansam de lançar queixas e lamentações, admitindo a dificuldade em interpretá-los.199
A música grega tornou-se um mistério insondável, mas, de modo geral, podemos
compreender que os efeitos musicais provocados nos espectadores da tragédia, ou ouvintes,
como são propositadamente chamados por Nietzsche, conduziam-nos até o íntimo do
sentimento, a tudo aquilo que não pode ser conquistado pelas abstrações do discurso e da
198 Cf. Platão, Fedro.199 Como, por exemplo, se queixam Carpeaux, em Uma nova história da música e EASTERLING e KNOX, na grandiosa História de la literatura clásica.
137
palavra. A música que acompanhava o teatro de Dioniso é a linguagem universal do
sentimento e da paixão. Nesse sentido, Schopenhauer admirou-se intensamente com a
expressão de Platão: “η των µελων κινησις µεµιµηµενη εν τοις παθηµασιν, οταν
ψυχη γινηται”, ou seja, “O movimento das árias de música imitam as paixões da alma.”200
Não devo descuidar-me de lembrar que a música tem com estes fenômenos apenas uma relação
indireta, visto que ela nunca exprime o fenômeno, mas a essência íntima, o interior do fenômeno, a
própria vontade. Ela não exprime tal ou tal alegria, tal ou tal aflição, tal ou tal dor, terror,
encantamento, vivacidade ou calma de espírito. Ela pinta a própria alegria, a própria aflição, e todos
esses outros sentimentos, por assim dizer, abstratamente. Ela nos dá a sua essência sem nenhum
acessório, e, por conseqüência também, sem os seus motivos. E, contudo, compreendemo-la muito
bem, embora ela só seja uma sutil quintessência.201
O jovem Nietzsche deixa-se encantar por essa visão de mundo schopenhaueriana e
considera a música como a “autêntica idéia do mundo”, da qual “o drama é apenas um
reflexo, uma silhueta isolada dessa idéia.”202 Mas, em Nietzsche, a música não pode ser tão
somente um universal abstrato e a sua concretude vai se dar justamente na “identidade entre
a linha melódica e a figura vivente, entre a harmonia e as relações de caráter daquela
figura.”203 Em sua filosofia de juventude, os sentimentos são sempre efeitos da música,
nunca o contrário. Por conseguinte, uma canção lírica, quando composta pelo músico, não é
o resultado de imagens ou mesmo de um texto sentimental. Nietzsche pensa a elaboração
do texto, a letra, como expressão simbólica; o próprio símbolo, no entanto, não tem
importância alguma, diz ele, diante da divina essência das mais altas manifestações
200 PLATÃO, apud SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação, §. 52.201 SCHOPENHAUER, id.202 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 21.203 NIETZSCHE, id.
138
musicais, por exemplo, os últimos quartetos de Beethoven, “que se envergonhariam de
qualquer interpretação plástica tomada do reino da realidade empírica.”204
Uma perfeita combinação entre palavra e música ocorre, Nietzsche segue Wagner,
na Nona sinfonia de Beethoven. Mas, lembremos, a perfeição entre palavra e música se dá
precisamente na não-submissão da música à palavra; o inverso, esta a serviço daquela, não
só é aceitável como desejável. Os grandiosos versos de Schiller “só fazem incomodar e até
ofender a ardorosa melodia popular da alegria, mas como o crescente desenvolvimento dos
coros e das massas orquestrais nos impede de ouvi-los, não sentimos a incongruência.”205
Para Nietzsche, Beethoven não procura, nos versos de Schiller, a palavra ou o conceito,
mas um som mais agradável, um tom mais íntimo e gozoso. Na Nona sinfonia,
As vozes são tratadas como instrumentos humanos: o texto, nas grandes composições religiosas, não
está concebido segundo sua significação conceitual, mas serve simplesmente como material para o
canto e através do mesmo não perturba o sentimento musical, porque nunca desperta em nós
representações lógicas, mas, com a adequação a seu caráter religioso, só põe diante de nossa mente
fórmulas simbólicas de fé, bem conhecidas.206
Nietzsche conduz novamente nossa imaginação, ao comentar essa passagem do
livro Beethoven, de Wagner, ao nascimento da tragédia grega e, por conseguinte, à origem
do canto lírico. Concentra sua atenção no órgão responsável pela audição e conclui que
para o músico dionisíaco pouco importa a existência de um ouvinte, que também nada
significa para a massa orgiástica. Agitado pela “embriaguez” dionisíaca, o servidor de
Dioniso só é compreendido por seus companheiros, invoca-se aqui, como dissemos antes, a
figura de Penteu, o rei destroçado pelas bacantes e que não pertencia ao ritual religioso.207
204 NIETZSCHE, “Sobre la musica e la palabra” in. Obras completas de Federico Nietzsche, Tomo I, “El nacimiento de la tragedia y obras postumas, de1869 a 73”.205 NIETZSCHE, ib.206 WAGNER, R. apud NIETZSCHE, id. 207 Cf. “INTRODUÇÃO”, § IV, pág. 24.
139
O canto de um pássaro é tomado por Nietzsche como uma perfeita analogia: o lírico canta
por uma necessidade interior e seria insensato pedir que ele se preocupasse com suas
palavras. É assim que, ao ouvir uma missa de Palestrina, uma cantata de Bach ou um
oratório de Händel, podemos afirmar que só existe uma lírica para os que cantam, somente
a estes é possível uma música vocal. Mas, como? Os ouvintes consideram a lírica como
música absoluta, as palavras não devem ser entendidas, mas absorvidas pela totalidade
musical. Não se convoca aqui a faculdade do Entendimento. Daí o privilégio que Nietzsche
concede a Dioniso. Daí, também, a sua crítica à ópera italiana que põe a música a serviço
de uma série de imagens e de conceitos. A música como meio, eis a arrogância do conceito
de ópera.
Música e poesia são pensadas por Nietzsche como excitação dionisíaco-apolínea: é
por isso que a tragédia, enquanto drama musical, síntese desses impulsos artísticos, possui o
mais alto valor filosófico. Quanto a esta postura, não me parece que exista uma distinção,
ao menos clara e substancial, entre o pensamento do jovem Nietzsche e Schopenhauer. O
poeta, na concepção nietzscheana, não deve oferecer ao músico mais do que figuras
esquemáticas. A ópera, nessa perspectiva, pode ser valorizada e ter o mais alto valor quanto
mais livremente os elementos dionisíacos da música se sobrepuserem às exigências
dramáticas. Ora, é isso precisamente que Schopenhauer nos diz:
As palavras do canto e o libretto nunca devem esquecer a sua subordinação para se apoderarem do
primeiro plano, o que transformaria a música num simples meio de expressão; seria uma enorme
tolice e um absurdo. (…) se a música se esforçasse demasiado para se acomodar às palavras, para se
prestar aos conhecimentos, teria a pretensão de falar uma linguagem que não lhe pertence.208
208 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação, § 52.
140
Em Nietzsche, no entanto, a música torna-se um universal concreto, para usar
novamente essa expressão, quando encontra uma identidade com a imagem, com a figura
que se revela na cena dramática. Burckhardt, já o mencionamos,209 observou que, entre os
gregos antigos, a música lírica, portanto a música que tomava a voz como instrumento e
que muitas vezes dirigia um culto religioso, era tida como superior à música puramente
instrumental. A tragédia foi o resultado dessa música lírica, quando a esta se amalgamou a
poesia épica. Sendo assim, o que é a tragédia, para Nietzsche, senão a instância na qual as
potências apolínea e dionisíaca se abraçam e se contemplam? Não seria a tragédia uma
espécie superior de arte capaz de elevar a vida à mesma dignidade que possui a música?
Embora Nietzsche tenha utilizado a palavra idéia para se referir à música, na citação
feita a pouco, (a música é a “autêntica idéia do mundo”), ela é entendida em Schopenhauer
como expressão do mundo, como o ponto mais alto de uma linguagem universal, na qual a
universalidade não é abstrata e vazia: “o mundo poderia chamar-se tanto uma encarnação
da música como uma encarnação da vontade; [a música] o dá, é verdade, tanto mais
seguramente quanto a própria melodia é mais análoga ao sentido íntimo do fenômeno.”210
Nesse sentido, a palavra idéia, na passagem citada do capítulo 21, de O nascimento da
tragédia, não parece ser tomada rigorosamente no sentido que Platão o fez, nem na
recuperação desse sentido feita por Schopenhauer no capítulo 39 de sua obra máxima. A
música é a autêntica idéia do mundo, isso parece querer dizer tão simplesmente: a música é
o coração do mundo.211
209 Cf. Cap. II, §4, pág. 62.210 SCHOPENHAUER, id..211 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 21. “é deste coração para fora que o mundo fala; e ainda que incontáveis aparências daquela espécie pudessem desfilar ao som da mesma música, jamais esgotariam a essência desta, mas seriam apenas seus reflexos mais exteriorizados.”
141
Digo isso, propositadamente, para lembrar mais uma vez a expressão de Nietzsche,
sabedoria dionisíaca, que lança o espectador, para além de sua individuatio, a uma
compreensão do mundo como totalidade. O espectador, diz Nietzsche,
à vista do mito movendo-se à sua frente, sentia-se elevado a uma espécie de onisciência, como se
agora a força visiva de seus olhos não fosse meramente uma força superficial, porém capaz de
penetrar no interior, e como se, agora, as ebulições da vontade, a luta dos motivos e a corrente
engrossante das paixões ele as enxergasse diante de si, com a ajuda da música, tangivelmente
visíveis, por assim dizer, qual uma profusão de linhas e figuras vivamente movidas, e com isso
pudesse mergulhar até os mais delicados mistérios das emoções inconscientes.212
O herói da tragédia é aniquilado e esmagado. Ele, que vestiu a beleza épica e
encarnou a nitidez da individuação, é inteiramente destruído diante do espectador. Apesar
da catástrofe, o espectador goza de prazer perante essa terrível visão, “ele compreende até o
mais íntimo a ocorrência da cena e, no entanto, refugia-se de bom grado no
incompreensível.”213 A sabedoria dionisíaca compreende que o mundo foi transfigurado nos
meios apolíneos que possibilitaram a tragédia: o mito trágico é por ela visto como a
concentração do mundo. Dioniso, portanto, na filosofia do jovem Nietzsche, é elevado ao
mais alto grau de universalidade e sua linguagem será aquela que se expressa
musicalmente. Dioniso é o próprio mundo visto como totalidade de forças que se impõem
ao impulso apolíneo numa espécie de sobreposição dialética: “O impulso dionisíaco engole
todo esse mundo das aparências, para deixar pressentir por trás dele, e através de sua
destruição, uma suprema alegria artística primordial no seio do Uno primordial.”214
212 NIETZSCHE, op. cit., § 22.213 NIETZSCHE, id.214 NIETZSCHE, ib.
142
Dito tudo isso, podemos agora retomar um ponto apenas indicado no quarto
capítulo215 que se dispôs a interpretar o dionisíaco lado a lado com a vontade
schopenhaueriana e com a coisa em si kantiana, na medida em que essa última aparece, ao
menos na leitura de Schopenhauer, como totalidade. Naquela ocasião, perguntávamos pela
linguagem de Dioniso. Não há outra linguagem a não ser a própria música. Essa foi a
inspiração que levou Nietzsche a compreender as tragédias gregas como dramas musicais e
a identificar em Dioniso a sua metafísica possível. Parece ser isso que o próprio Nietzsche
observa, mais tarde, em sua “Tentativa de Autocrítica”, de 1886: “aqui falava uma espécie
de alma mística (…). Ela devia cantar, essa ‘nova alma’ e não falar!”.216 O próprio
discurso, a palavra e o conceito, são impotentes diante de uma visão de mundo que se
mostra inacessível ao Entendimento. A única linguagem possível é a música: a experiência
estética da totalidade permanece silente através de outros meios. A música é a linguagem
de Dioniso, não por ser um meio de expressão, mas por ser compreendida como linguagem
universal que, mesmo sem ter o conceito ou a imagem, pode tocar diretamente o coração do
mundo.
O elemento trágico esquiva-se de tudo o que é clarificação: é esse o ensinamento
que apreendemos das críticas dirigidas por Nietzsche a Eurípides. A linguagem da lógica é
anteposta a Dioniso: a caricatura nietzscheana de Sócrates, eis o que contradiz o
dionisíaco.217 Não devemos procurar, pois, uma expressão que seja adequada ao deus do
teatro: ele só é compreendido por seus iguais. Nesse sentido, arrisco-me a afirmá-lo, se
quisermos compreender o teatro grego, como o quis Nietzsche, devemos nos mover pela
ilusão e pelas esperanças artísticas: a Grécia de Nietzsche foi inventada por meio da
215 Cf. cap. IV, “Da dialética trágica”, pág. 120216 NIETZSCHE, “Tentativa de Autocrítica”, § 3.217 Cf. NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, §§ 14 e 15.
143
possibilidade de ver renascer o dionisíaco em seu tempo.218 A linguagem de Dioniso não
pode ser ouvida por uma cultura que se vê livre de mitos: a música wagneriana se
apresentou ao jovem espírito de Nietzsche como a possibilidade de se reerguer uma cultura
plena de símbolos míticos.
Pois bem, retomemos agora aquele ponto interpretativo do quarto capítulo: a
vontade, na filosofia de Schopenhauer, é entendida como a própria coisa em si219 e, nesse
sentido, é tomada como a unidade do mundo, novamente, como desconfiança de que, no
fundo, tudo é um: “Como coisa em si, a vontade se encontra inteira e indivisa em cada ser,
como o centro é parte integrante de cada raio.”220 Em sua leitura, Schopenhauer reconhece,
entre os méritos de Kant, a impossibilidade de nosso intelecto se dirigir ao mundo ele
mesmo. A sua falibilidade nos impele a outros caminhos, a uma experiência estética
possível.
A já indicada unidade da vontade, situada para além do fenômeno, na qual temos visto a essência
íntima do mundo fenomenal, é uma unidade metafísica, e portanto, seu conhecimento é
transcendente, vale dizer, que não descansa nas funções da inteligência nem pode ser apreendido por
ela.221
Dioniso aparece, em O nascimento da tragédia, como, mais uma vez, expressão
daquela sabedoria que nasceu nos tempos mais remotos, não só no ocidente mas também no
218 Lembro, an passant, que Hölderlin também pretendeu ver renascer a tragédia na modernidade: o Empédocles, apensar de fracassado e de abandonado, foi seu projeto de escrever uma “tragédia moderna”. Cf. LACOUE-LABARTHE, P. A imitação dos modernos, FIGUEIREDO, V. A. e PENNA, J. C. (organizadores), São Paulo: Paz e Terra, 2000, cap. IV, “Hölderlin e os Gregos”. 219 As seções 22 e 23 do livro II de O mundo como vontade e representação dão provas disso. A vontade, nessas seções, é apresentada como objetividade: “A vontade, enquanto coisa em si, é absolutamente diferente do seu fenômeno e independente de todas as formas fenomenais nas quais penetra para se manifestar.” §. 23. 220 SCHOPENHAUER, Le monde comme volonté et comme représentation, “Suppléments”, §XXV. Essa seção dos “Suplementos” inteiramente dedicada a uma aproximação entre a coisa em si e a vontade.221 SCHOPENHAUER, id.
144
oriente, como diz Schopenhauer,222 que busca uma compreensão de que, apesar de todas as
mudanças fenomenais, tudo é um (εν και παν):
Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a
natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho
perdido, o homem. (…) Se se transmuta em pintura o jubiloso hino beethoveniano à “Alegria” e se
não se refreia a força de imaginação, quando milhões de seres frementes se espojam no pó, então é
possível acercar-se do dionisíaco. Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas
e hostis delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a “moda impudente” estabelecem entre
os homens. Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado,
conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e,
reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial.
Observemos mais de perto essas palavras de Nietzsche, transpondo toda a força
simbólica de sua letra: não encontramos aqui o sentimento ou a sabedoria da unidade?
Seguindo os passos de Schopenhauer que, após Kant, negou a possibilidade de se atribuir
uma distinção real entre os indivíduos, uma vez que tempo e espaço não são objetivações
da experiência, Nietzsche parece afirmar a fragilidade da consciência apolínea, isto é, a
consciência dos limites, da individuação, quando a esta se apresentam os mistérios do
grandioso sentimento dionisíaco da totalidade, da reconciliação do homem com a physis.
Em Schopenhauer, como pode ser verificado na seção 39 de O mundo como vontade e
representação e na trigésima sétima dos “Suplementos” de 1844, a experiência do sublime
conduz o sujeito a uma elevação para além de sua individuação ao ameaçá-lo com sua
inibição das forças vitais e, por conseguinte, como já o dissemos, o conduz a uma inversão
metafísica do olhar: ele ascende à própria vontade mediante a nulidade de sua experiência
222 SCHOPENHAUER, ib.
145
individual. O sentimento do sublime leva o sujeito a contemplar o próprio mundo como
vontade mais além de toda representação.
No espectador da tragédia, de modo semelhante, na medida em que ela representa as
misérias e as dores do mundo, é despertado, segundo Schopenhauer, o sentimento de que
existe um mundo outro, um além: “a tragédia exige outra existência, um mundo diferente,
cujo conhecimento só podemos chegar indiretamente, que é como nos proporciona o
sentimento que a tragédia desperta.”223
Procurou-se afirmar, no presente estudo, ser este o ponto de conflito entre as leituras
de Nietzsche e de Schopenhauer. Se, para esse último, a catástrofe trágica desperta em nós
o sentimento, “mais claro do que nunca, de que a vida é um pesadelo de que convém
despertar”, e “O arrebatamento sublime que todo o trágico envolve, nasce do que nos faz
ver que o mundo e a vida não podem nos oferecer verdadeira satisfação”;224 para Nietzsche,
o espectador da tragédia pressente todo o horror do fundo dionisíaco e, apesar disso, não
deseja um outro mundo, uma fuga da vida. Instaura, aqui, como buscamos apontar, a
necessidade da ilusão, a necessidade da arte, ou antes, a arte como remédio, que busca
afirmar a vida prendendo-se às máscaras da aparência.
A destruição do herói não causa no espectador, quando se rompem os limites da
consciência individual, um desprazer e um sentimento de resignação, mas, antes, o
espectador frui o prazer da sabedoria de Dioniso. “Ele sente que as ações do herói são
justificadas e, no entanto, sente-se ainda mais enaltecido quando essas ações destroem o seu
autor. Ele estremece ante os sofrimentos que hão de atingir o herói e, no entanto, pressente
neles um prazer superior, muito mais preponderante.”225 Na sobreposição efetuada pela
223 SCHOPENHAUER, Le monde comme volonté et comme représentation, “Suppléments”, §XXXVII.224 SCHOPENHAUER, id.225 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 22.
146
dialética trágica, o apolíneo ou as aparências não são inteiramente negadas como em
Schopenhauer, mas, numa espécie de Aufhebung, são conservadas e postas a serviço de
Dioniso: “De onde havemos de derivar este milagroso autodesdobramento, esta quebra do
aguilhão apolíneo, se não da magia dionisíaca, que, excitando aparentemente ao máximo as
emoções apolíneas, é capaz, não obstante, de obrigar essa superabundância da força
apolínea a ficar a seu serviço.”226
Creio que agora tenha ficado claro essa distinção, ao ponto de poder afirmar que, do
ponto de vista dos resultados, as leituras da tragédia de Nietzsche e de Schopenhauer,
apesar de todos os pontos de contato, são irreconciliáveis. O mundo, seja ele expressão de
Dioniso ou da Vontade, não é acessível pela ciência, não é conhecido pelo Entendimento.
Schopenhauer e Nietzsche dão graças a Kant. O autor de O nascimento da tragédia
compreende a filosofia kantiana como sendo, definitivamente, a superação da arrogância do
conhecimento científico, do socratismo. A filosofia de Kant é a grande vitória contra
aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais
profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-
lo. Essa sublime ilusão metafísica é aditada como instinto à ciência, e a conduz sempre de novo a
seus limites, onde ela tem de transmutar-se em arte, que é o objetivo propriamente visado por esse
mecanismo.
É notável que, em O nascimento da tragédia, Nietzsche considere os limites da
ciência como uma condição que conduz inevitavelmente ao âmbito da arte. A ciência
permanece presa aos limites do conhecimento e somente uma experiência trágica, tal como
os gregos a vivenciaram, ou seja, acompanhada pela música de Dioniso, é capaz de
226 NIETZSCHE, id.
147
transgredir os limites, não só do conhecimento humano, mas da própria individuatio na sua
experiência existencial.
Um paradoxo circunscreve a experiência dionisíaca: ela inibe, aparentemente, as
forças vitais e reenvia ao fundo do monstruoso, do sofrimento e da dor, a um estado
inconsciente no qual o homem trágico não consegue enxergar a si próprio. Mesmo esse “a
si próprio” parece desaparecer por completo ante forças incontroláveis que obstam qualquer
experiência individual. A tormenta, o mar que agita as ondas incontroláveis, onde se
agarrará o homem trágico para salvar a sua própria vida e continuar experienciando essas
formas sublimes do dionisíaco? É possível, no auge da experiência que o ameaça e impele a
uma destruição inevitável, gozar prazer e afirmar ainda a existência? Ou terá, como indica
Schopenhauer, o sentimento de que a vida não pode nos dar satisfação e de que o melhor a
fazer é resignar-se por completo? No auge dessa experiência é possível ainda uma
afirmação da aparência, do prazer na beleza ante o sentimento do sublime. Invoquemos
uma imagem, ela aparece no livro I de O mundo como vontade e representação e é
retomada logo no primeiro capítulo do livro de Nietzsche:
Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda
vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiando na frágil embarcação; da
mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente
sentado, apoiado e confiante no principium individuationis.227
Onde se instala o paradoxo? Na representação trágica, o espectador está diante da
destruição do herói e consegue, com um prazer que só é possível através da representação
dramática, enxergar mais ao fundo, perceber o terror dionisíaco que exige que o indivíduo
227 SCHOPENHAUER, apud NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, § 1.
148
retorne ao seio da Natureza, ao seio do coro musical que, para Nietzsche, representa a
própria realidade. É preciso ameaçar a individuação, abalar os laços que amarram a
tranqüilidade da existência individual, é preciso provocar no espectador o sentimento do
sublime, do colossal, que faz violência à própria imaginação do indivíduo , para, ante
todos esses perigos, afirmar, dialeticamente, o prazer da aparência, o próprio plano da
existência empírica de cada indivíduo. O êxtase provocado pelo dionisíaco, ou o sentimento
da totalidade, ganha um equilíbrio com “a esplêndida imagem divina do principium
individuationis”,228 reconhecida na figura de Apolo.
No espectador, instalado no teatro do templo de Dioniso, são despertos os
sentimentos sublimes que engolem a sua própria individuatio, ele sente-se um só com a
Natureza ameaçadora, ele ama o fato terrível da destruição. Como dirá Nietzsche, anos
mais tarde, quando novamente reaparece o tema do trágico em sua filosofia:
“O ser em que a abundância de vida é maior, Dioniso, o homem dionisíaco, gosta não somente do
espetáculo do horrível e do inquietante, mas ama (…) todo luxo de destruição, de desagregação, de
negação, a maldade, a insanidade, (…) como conseqüência de uma superabundância que é capaz de
fazer, de cada deserto, um país fértil.”229
O tema de Dioniso permanecerá, por um longo período, imerso num silêncio
profundo na obra de Nietzsche. As obras que se seguem a O nascimento da tragédia não
dirão palavra alguma sobre o trágico ou a tragédia. Em A gaia ciência (1883), Dioniso
reaparece nos últimos parágrafos da obra e já anuncia Zaratustra, “Incipit tragoedie”. A
partir daí, cada vez mais a idéia de afirmação estará presente em sua filosofia. Cada vez
mais o mundo das aparências será afirmado como o verdadeiro mundo, como se,
228 NIETZSCHE, id.229 NIETZSCHE, A gaia ciência, § 370.
149
definitivamente, Dioniso se tornasse com Apolo um só deus. Engolido e digerido pelo deus
do teatro, Apolo não será mais mencionado, mas uma oposição ganhará cada vez mais
força, será desenvolvida até as suas últimas conseqüências: Dioniso contra Sócrates e,
radicalmente, contra o cristianismo que, como Schopenhauer, irá instaurar nos homens um
sentimento de um depois, de um mundo outro que é, em tudo, mais digno de ser desejado.
Eis o niilismo que será denunciado em A genealogia da moral. A metafísica de Dioniso não
aponta para uma fuga no nada, pretende, antes, tão simplesmente dizer sim à vida, afirmá-la
e desejá-la. Dioniso versus cristianismo, a afirmação da vida contra a sua negação: eis a
filosofia que encontraremos mais tarde no pensamento de Nietzsche.
Vita femina. Ver a suprema beleza toda a ciência e a boa vontade não seriam suficientes; são
precisos os mais raros, os mais felizes acasos para que as nuvens se afastem desses píncaros para
deixar o sol brilhar. É necessário não somente que nos encontremos exatamente no bom sendeiro,
mas ainda que nossa própria alma tenha afastado os véus desses cimos e ressinta a necessidade de
uma expressão e de um símbolo exterior, como para gozar uma parada e tornar-se mestra dela
mesma. Mas tudo isso se encontra tão raramente reunido que estou prestes a crer que os mais altos
picos de toda perfeição, seja a obra, a ação, a honra, a natureza, tenham restado para a maior parte
dos homens, mesmo os melhores, alguma coisa de oculta e velada; logo, aquilo que se desvela para
nós, se desvela uma vez! É verdade que todos os gregos podiam rezar “Duas e três vezes tudo o que
belo!”, pois tinham uma boa razão para invocar os deuses pois a realidade ímpia não nos dá a beleza
e se nos a concede, é apenas uma vez! Quero dizer que o mundo está repleto de coisas belas e apesar
disso, pobre, muito pobre de belos momentos e revelações dessas coisas. Mas talvez nisto resida o
maior encanto da vida: ela porta sobre si, entremeado de ouro, um véu de belas possibilidades,
promissoras, defensivas, pudicas, trocistas, complacentes e sedutoras. Sim, a vida é u’a mulher!230
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