a literatura e o literário infantil

8
1 A literatura e o literário infantil _____________________________ O ser "infantil" da literatura O tema literatura infantil leva-nos de imediato à reflexão acerca do que seja esse "infantil" como qualificativo especificador de determinada espécie dentro de uma categoria mais ampla e geral do fenômeno literário. Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma classe, já que não detém poder algum, mas a uma minoria que, como outras, não tem direito a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve ser conduzida pelos valores daqueles que têm autoridade para tal: os adultos. São esses que possuem saber e experiência suficientes para que a sociedade lhes outorgue a função de condutores daqueles seres que nada sabem e, por isso, devem ser-lhes submissos: as crianças. Estabelece-se, assim, de forma inquestionável e extremamente natural, um vínculo entre dominador e dominado, que, na verdade, reproduz, o modelo capitalista de organização social. Corroborando esse quadro, vem a própria Psicologia da Aprendizagem, que, ao evidenciar as fases para a [6]completa maturação das estruturas de pensamento e de todo o conjunto biopsíquico da criança, acaba por colaborar com a visão de "natural" domínio do adulto, na medida em que o pensamento infantil ainda não está apto para inferências, abstratas e generalizadoras, de uma mente logicamente controlada. É justamente essa carência da lógica racional, esteio para as estruturas do pensamento ocidental, que faz da criança um ser dependente para a nossa cultura. Convém salientar, ainda, que a essa não-competência para a esfera analítico-conceitual acrescenta-se uma outra: a do domínio do código verbal assentado na capacidade de simbolização para a qual o pensamento infantil ainda não tem a competência suficiente, já que lhe falta a posse das convenções e das regras gerais que lhe dão acesso à significação global. No entanto, a ausência da abstração é compensada pela presença da

Upload: marcus

Post on 30-Jan-2016

219 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

literatura e o literario infantil

TRANSCRIPT

Page 1: A Literatura e o Literário Infantil

1 A literatura e o literário infantil _____________________________

O ser "infantil" da literatura O tema literatura infantil leva-nos de imediato à reflexão acerca do

que seja esse "infantil" como qualificativo especificador de determinada espécie dentro de uma categoria mais ampla e geral do fenômeno literário.

Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma classe, já que não detém poder algum, mas a uma minoria que, como outras, não tem direito a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve ser conduzida pelos valores daqueles que têm autoridade para tal: os adultos. São esses que possuem saber e experiência suficientes para que a sociedade lhes outorgue a função de condutores daqueles seres que nada sabem e, por isso, devem ser-lhes submissos: as crianças.

Estabelece-se, assim, de forma inquestionável e extremamente natural, um vínculo entre dominador e dominado, que, na verdade, reproduz, o modelo capitalista de organização social.

Corroborando esse quadro, vem a própria Psicologia da Aprendizagem, que, ao evidenciar as fases para a [6]completa maturação das estruturas de pensamento e de todo o conjunto biopsíquico da criança, acaba por colaborar com a visão de "natural" domínio do adulto, na medida em que o pensamento infantil ainda não está apto para inferências, abstratas e generalizadoras, de uma mente logicamente controlada. É justamente essa carência da lógica racional, esteio para as estruturas do pensamento ocidental, que faz da criança um ser dependente para a nossa cultura.

Convém salientar, ainda, que a essa não-competência para a esfera analítico-conceitual acrescenta-se uma outra: a do domínio do código verbal assentado na capacidade de simbolização para a qual o pensamento infantil ainda não tem a competência suficiente, já que lhe falta a posse das convenções e das regras gerais que lhe dão acesso à significação global.

No entanto, a ausência da abstração é compensada pela presença da

Page 2: A Literatura e o Literário Infantil

concretitude. É preciso lançar mão de estratégias concretas e próximas à vivência cotidiana da criança, para que, por contigüidade, se possa fazer a transferência e a aprendizagem do conceito.

Essa é a operação mais simples de pensamento, que vai da concretitude e do imediatismo das partes para a generalidade e a globalização do todo. É esse, também, o caminho da Pedagogia, que se assenta em fases seqüenciais evolutivas, prevendo uma aprendizagem gradual, linear e contínua.

Colocar a arte literária nesse contexto implica, por sua vez, vê-la como uma atividade complexa e, por isso, não-natural ao universo da infância. Traduzi-la para esse nível significa facilitá-la, criar estratégias para concretizar, ao nível da compreensão infantil, um alto repertório, como o estético.

É aí que entram a Pedagogia, como meio de adequar o literário às fases do raciocínio infantil, e o livro, como [7] mais um produto através do qual os valores sociais passam a ser veiculados, de modo a criar para a mente da criança hábitos associativos que aproximam as situações imaginárias vividas na ficção a conceitos, comportamentos e crenças desejados na vida prática, com base na verossimilhança que os vincula. O literário reduz-se a simples meio para atingir uma finalidade educativa extrínseca ao texto propriamente dito, reafirmando um conceito, já do século XVIII, de A. C. Baumgartner de que "literatura infantil é primeiramente um problema pedagógico, e não literário".

Essa função utilitário-pedagógica é a grande dominante da produção literária destinada à infância, e isso desde as primeiras obras surgidas entre nós. Nada mais do que atender a uma exigência da própria estrutura da cultura ocidental em relação a seu tradicional conceito do ser infantil.

Mas a arte tem outros desígnios e desejos. A criança também. Se lhe falta a completa capacidade abstrativa que a capacite para as

complexas redes analítico-conceituais, sobra-lhe espaço para a vasta mente instintiva, pré-lógica, inclusiva, integral e instantânea que só opera por semelhanças, correspondências entre formas, descobrindo vínculos de similitude entre elementos que a lógica racional condicionou a separar e a excluir. Correspondências, sinestesias. Todos os sentidos incluídos.

O signo é a coisa de que fala; não há mais vínculo indireto entre eles (tal qual na construção simbólica), de maneira que, ao invés de representar, ele, agora, presenta diretamente o próprio objeto de

Page 3: A Literatura e o Literário Infantil

representação. Aqui e agora concretamente à nossa frente. Não há descrição mais fiel do modo como opera o pensamento

infantil; o mais distante possível de hábitos associativos convencionais, geral, imotivados e o mais [8] próximo possível de um pensamento concreto, inclusivo e motivado, em que a nomeação é análoga à coisa nomeada.

Ser integralmente. Sem separação alguma entre o pensamento e o objeto de pensar. Atento à qualidade, mesma, daquilo que se observa. Como a criança ao ver uma pedrinha. Toda ela, ali, sendo pedra com a pedra. No coração da realidade. Sem a mediação de camadas e camadas de idéias, conceitos e interpretações.

Para pintar o bambu, é preciso ser o bambu, diria o mestre Zen. E João Cabral: flor é a palavra flor. E Décio Pignatari: mostrar um sentimento e não dizer o que ele é —

isto é poesia. Um signo icônico. Concreto. Análogo ao objeto da representação.

Como no princípio da linguagem. Por isso que toda arte, literária ou não, é desde sempre concreta.

Exige um pensamento que vá às raízes da realidade e seja, também ele, concreto. Nesse momento instantâneo de inclusão e de síntese atinge-se, por analogia, o conceito. Conceito feito figura, imagem, numa relação direta com a mente que o opera.

Tal como o conceito ancestral de medo associado à imagem do lobo, que se vê desestruturado por uma simples inversão da própria palavra: lobo-bolo, em Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque.

Ora, sendo assim, o pensamento infantil está apto para responder à motivação do signo artístico, e uma literatura que se esteie sobre esse modo de ver a criança torna-a indivíduo com desejos e pensamentos próprios, agente de seu próprio aprendizado. A criança, sob esse ponto de vista, não é nem um ser dependente, nem um "adulto em miniatura", mas é o que é, na especificidade de sua linguagem que privilegia o lado espontâneo, intuitivo, analógico e concreto da natureza humana.

[9]

A literatura infantil

Page 4: A Literatura e o Literário Infantil

Desde os primórdios, a literatura infantil surge como uma forma literária menor, atrelada à função utilitário-pedagógica que a faz ser mais pedagogia do que literatura.

Contar histórias para crianças sempre expressou um ato de linguagem de representação simbólica do real direcionado para a aquisição de modelos lingüísticos. O trabalho com tais signos remete o texto para alguma coisa fora dele, de modo a resgatar dados de um real verossímil para o leitor infantil. Este, tratado fisionomicamente sob o "modo de ser" do adulto, reflete-se para a produção infantil como um receptor engajado nas propostas da escola e da sociedade de consumo. Deverá, sobretudo, apreender, via texto literário infantil, a verdade social.

Nesse universo, opera-se por associações mais simples de pensamento, as de contigüidade, feitas com base na proximidade explícita e compulsória entre os elementos da cadeia significativa: texto-contexto. Lógica comandada pelos princípios de sucessividade e de linearidade, o que corresponde ao resgate do tempo real com base na verossimilhança pretendida como uma lei absoluta da linguagem discursiva.

Portanto, se considerarmos o arranjo do discurso literário sob a operação da contigüidade dos signos, em convenção simbólica, mais nos aproximamos do uso social desse discurso, reforçando as estruturas do pensamento vigente em educação. Isso, sem discutir o tratamento apontado pela escola ao decidir as respostas da criança na leitura do texto literário: passividade e persuasão acompanham a recepção dos modelos da verdade verossímil; ainda a voz da lei pedagógica em exercício literário.

Os "bastidores" da produção do livro estão ocultos, e à leitura só resta seguir índices, rastros que desembocam, [10] inevitavelmente, num ponto terminal: o hábito comportamental que se quer ensinar.

Esse é o caso de todo um tipo de produção para a infância tida por nova para enfrentar o cotidiano; a chamada literatura "realista" para o público infantil.

O que se nomeia por realista, aí, outra coisa não é senão trazer para o texto um conjunto de temáticas — pobreza, menor abandonado, pais separados, sexo etc. — vinculadas, por contigüidade, ao contexto social no qual se pretende inserir a criança. Construção plana, previsível, sem surpresas, numa linguagem que tem por tarefa, apenas, ser canal expressivo de valores e de conceitos fundados sobre a realidade social.

Linguagem carregada de ideologia que permeia cada fala do narrador, cada diálogo das personagens, e tem um destinatário certo: o

Page 5: A Literatura e o Literário Infantil

leitor infantil, cujo pensamento se pretende capturar. Não há possibilidade de respostas alternativas nesse processo educativo autoritário que só admite à criança a função de aprendiz passivo frente à voz todo-poderosa do narrador e de seu enfoque da realidade social.

Seguindo essa trilha, não é preciso dizer, estão os produtos com menor grau de invenção e de liberdade criativa; perdem em poeticidade o que ganham em imediatismo e em praticidade.

Temos aqui descrita uma frente literária comum não apenas à grande parte da produção infantil contemporânea, mas também àquela não-infantil. Desnecessário se torna falar dessa qualidade literária à margem de um contexto de produção que se nega a especular sobre a natureza sensível da linguagem infantil; ao contrário, troca o inventar poético pelo modelo consumista do discurso literário.

Pound consideraria essa classe da produção literária como sendo a dos diluidores, "homens que trabalham [11] mais ou menos bem, dentro do estilo mais ou menos bom de um período. Desses estão cheias as deleitosas antologias, assim como os livros de canções e a escolha entre eles é uma questão de gosto".

Tomando-se literário no sentido estrito que lhe dá Jakobson, isto é, enquanto função poética (projeção do eixo da similaridade sobre o da contigüidade), assumir a dominante poética nos textos da literatura infantil é configurar um espaço onde equivalências e paralelismos dominam, regidos por um princípio de organização basicamente analógico, que opera por semelhanças entre os elementos. Espaço no qual a linguagem informa, antes de tudo, sobre si mesma. Linguagem-coisa com carnadura concreta, desvencilhando-se dos desígnios utilitários de mero instrumental.

Palavra, som e imagem constroem, simultaneamente, uma mensagem icônica que se faz por inclusão e síntese, sugerindo sentidos apenas possíveis. É a informação lançada no horizonte precário da arte feito de "um retalho de impalpável, outro de improvável, cosidos todos com a agulha da imaginação" (Machado de Assis). Cada coisa, cada ser pode ter similaridade com outros, redescobrindo o princípio da correspondência que os integra no todo universal; nesse fugaz instante entre o dito e o não-dito.

O pensamento infantil é aquele que está sintonizado com esse pulsar pelas vias do imaginário. E é justamente nisso que os projetos mais arrojados de literatura infantil investem, não escamoteando o literário, nem o facilitando, mas enfrentando sua qualidade artística e oferecendo os melhores produtos possíveis ao repertório infantil, que tem a competência

Page 6: A Literatura e o Literário Infantil

necessária para traduzi-lo pelo desempenho de uma leitura múltipla e diversificada.

Leitura que segue trilhas, lança hipóteses, experimenta, duvida, num exercício contínuo de experimentação e descoberta. Como a vida.

[12] A Pedagogia, por sua vez, sob a égide da função poética seria algo

semelhante à descoberta de Oswald de Andrade: Aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a descoberta das

coisas que nunca vi. Pedagogia que brota do próprio texto que a si ensina, como o sino

de Paulo Leminski:

de som a som ensino o silêncio

a ser sibilino de sino em sino

o silêncio ao som ensino

Investe-se na inteligência e na sensibilidade da criança, agora

sujeito de sua própria aprendizagem e capaz de aprender do e com o texto. Educação simultânea do par texto-leitor, ambos repertorialmente acrescidos e modificados no momento da leitura. É por isso que, ao se falar dos textos de literatura infantil sob a dominante estética, põe-se em risco a própria categorização de infantil e, mais ainda, do possível gênero de literatura infantil, já que não se trata mais de falar a esta ou àquela faixa etária de público, mas assim de operar com determinadas estruturas de pensamento — as associações por semelhança — comuns a todo ser humano.

É por isso, também, que obras não-elaboradas com a intenção de falar ao público infantil acabaram por atingi-lo. É o caso de Lewis Carroll e suas Alices, de Guimarães Rosa em muitos de seus contos, de poemas concretistas e oswaldianos. E de Leminski, no poema citado.

[13] Nada mais do que a conscientização da natureza universal da arte

literária, que a liberta desse ou daquele público específico, para propor-se como generalizadora e regeneradora de sentimentos, conforme diria

Page 7: A Literatura e o Literário Infantil

Charles S. Peirce.

A função utilitário-pedagógica Dentro do contexto da literatura infantil, a função pedagógica

implica a ação educativa do livro sobre a criança. De um lado, relação comunicativa leitor—obra, tendo por intermediário o pedagógico, que dirige e orienta o uso da informação; de outro, a cadeia de mediadores que interceptam a relação livro—criança: família, escola, biblioteca e o próprio mercado editorial, agentes controladores de usos que dificultam à criança a decisão e a escolha do que e como ler.

Extremamente pragmática, essa função pedagógica tem em vista uma interferência sobre o universo do usuário através do livro infantil, da ação de sua linguagem, servindo-se da força material que palavras e imagens possuem, como signos que são, de atuar sobre a mente daquele que as usa; no caso, a criança.

Esse uso, por sua vez, também se manifesta por uma ação — a atividade de leitura —, responsável pela decodificação da mensagem, traduzindo-a em novos signos portadores de sentidos que a mente apreendeu e, agora, transfere à experiência do usuário, incorporando-os ao seu modo de pensar, sentir e agir.

Estar sob a dominante utilitário-pedagógica ou poética traz, por decorrência, duas espécies de uso da informação: do mais unificado ao mais diversificado. Se o primeiro é possível de ser controlado pela função pedagógica, o segundo é um desafio a essa função, já que [14] põe em crise qualquer previsibilidade de uso frente à alta taxa de imprevisibilidade da mensagem.

Ao uso passivo e consumista se sobrepõe um uso que implica atividade efetiva da mente receptora, sujeito das conexões que cria, das sugestões de sentidos que capta e reconstrói em cumplicidade com seu outro — o livro —, também ele renascendo a cada instante em que se vê em processo de leitura.

Na história do livro, a história do leitor e de sua leitura, ambas em permanente processo de reciclagem da informação, marcada de geração em geração.

Privilegiar o uso poético da informação é também pôr em uso uma nova forma de pedagogia que mais aprende do que ensina, atenta a cada

Page 8: A Literatura e o Literário Infantil

modulação que a leitura pode descobrir por entre o traçado do texto. Ensinar breve e fugaz que se concretiza no fluir e refluir do texto, sem pretensões de ter a palavra final, o sentido, a chave que soluciona o mistério. Mais do que falar e preencher, o texto ouve e silencia, para que a voz do seu parceiro, o leitor, possa ocupar espaços e ensinar também. Redescobre-se, então, o verdadeiro sentido de uma ação pedagógica que é mais do que ensinar o pouco que se sabe, estar de prontidão para aprender a vastidão daquilo que não se sabe. A arte literária é um dos caminhos para esse aprendizado.

À função utilitário-pedagógica só resta um caminho, que a leve ao verdadeiro diálogo com o ser literário infantil: propor-se enquanto protopedagogia ou quase-pedagogia, primeira e nascente, capaz de rever-se em sua estratificação de código dominador do ser literário infantil, para, ao recebê-lo em seu corpo, banhar-se também na qualidade sensível desse ser com o qual deve estar em harmônica convivência.