2 o texto literÁrio atravÉs da recepÇÃo infantil

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2 O TEXTO LITERÁRIO ATRAVÉS DA RECEPÇÃO INFANTIL 2 O TEXTO LITERÁRIO ATRAVÉS DA RECEPÇÃO INFANTIL 2.1 A construção das personagens 2.1 A construção das personagens No conjunto de textos narrativos reproduzidos/produzidos pelas crianças de classe social desfavorecida, 1 observa-se que o primeiro indício do processo de construção das personagens ou personas é marcado pela presença, em sua maioria, do nome de uma delas na composição do título, ora aparecendo como a totalidade, ora como parte desse título, como, por exemplo, A princesa Sherazade, Cinderela, O pulo do gato, João e Maria, Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar, Os três porquinhos e A cigarra e a formiga. 1 Os textos que compõem a amostra da classe social desfavorecida são os seguintes: Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar, A princesa Sherazade, João e Maria, Os três porquinhos, A cigarra e a formiga, A festa no céu, O pulo do gato, A relva azul, Curiosidade premiada e De trote em trote agarrei o velhote. Vale ressaltar que os títulos das narrativas estão de acordo com as versões reproduzidas pelas crianças.Ver anexo 4. 58

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Page 1: 2 O TEXTO LITERÁRIO ATRAVÉS DA RECEPÇÃO INFANTIL

2 O TEXTO LITERÁRIO ATRAVÉS DA RECEPÇÃO2 O TEXTO LITERÁRIO ATRAVÉS DA RECEPÇÃO INFANTILINFANTIL

2.1 A construção das personagens2.1 A construção das personagens

No conjunto de textos narrativos reproduzidos/produzidos pelas crianças de classe social desfavorecida,1 observa-se que o primeiro indício do processo de construção das personagens ou personas é marcado pela presença, em sua maioria, do nome de uma delas na composição do título, ora aparecendo como a totalidade, ora como parte desse título, como, por exemplo, A princesa Sherazade, Cinderela, O pulo do gato, João e Maria, Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar, Os três porquinhos e A cigarra e a formiga.

Dentre os títulos relacionados, percebe-se um grau significativo de fidelidade em relação às versões já publicadas, diferindo apenas com o acréscimo do nome de outras personagens como em Branca de Neve e os sete anões, em que foi justaposta a

1 Os textos que compõem a amostra da classe social desfavorecida são os seguintes: Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar, A princesa Sherazade, João e Maria, Os três porquinhos, A cigarra e a formiga, A festa no céu, O pulo do gato, A relva azul, Curiosidade premiada e De trote em trote agarrei o velhote. Vale ressaltar que os títulos das narrativas estão de acordo com as versões reproduzidas pelas crianças.Ver anexo 4.

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expressão os sete anões, ou com a alteração do grau do substantivo como em João e Maria em vez de Joãozinho e Mariazinha, o que denota, nessas três situações, interferências de naturezas distintas na recepção. A primeira revela uma assimilação fiel do título pela criança; na segunda ocorre uma interferência do infante ao reelaborar o título inserindo outras personagens, o que pode representar uma estreita vinculação que ele realiza entre as personagens; e, na terceira, a escolha do título pelo pequeno leitor é direcionada pela edição publicada a que teve acesso, uma vez que circulam edições com os dois títulos.

Desse modo, observa-se que a ênfase dada a essas personagens, via título, indica o nível de importância da mesma na trama e gera no leitor uma expectativa a respeito da sua composição, a qual pode ser evidenciada, ainda, nesse elemento estrutural do texto, visto que tais personagens são caracterizadas como pertencentes a um grupo humano ou a um antropomorfizado. Nota-se também que o gênero predominante dentre as personagens-título é o feminino (A princesa Sherazade, Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar, A cigarra e a formiga), o que indica uma certa preferência por histórias com esse perfil.

Com relação ao tipo de grupo representado nas narrativas, constata-se a presença em maior quantidade do grupo humano (A princesa Sherazade, Cinderela, Curiosidade premiada, João e Maria, De trote em trote agarrei o velhote, Branca de Neve e os sete anões, O Casamento da princesa Nuriar) e, conseqüentemente, em menor quantidade do grupo

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antropomorfizado (O pulo do gato, A festa no céu, Os três porquinhos, A relva azul e A cigarra e a formiga). Esse dado pode ser explicado pela variável idade, uma vez que crianças, na faixa etária de 10 e 11 anos, buscam personagens que possuam um maior vínculo com a realidade, já que, segundo Richard Bamberger,2 nessa fase a criança começa a orientar-se no mundo concreto, o que não quer dizer se afastar da fantasia, haja vista se tratar de uma fase intermediária em que os acontecimentos não podem ser descritos somente sob o ponto de vista racional, interferindo ainda os elementos imaginativos.

Sendo assim, o entrelaçamento entre o real e o mágico permeia o processo de construção das personagens, tendo em vista a reprodução/produção de narrativas em que há uma convivência entre representantes do real e do mágico como em Cinderela, João e Maria e Branca de Neve e os sete anões. A presença do real é camuflada pelo mágico, como em O pulo do gato, A festa no céu, Os três porquinhos, A relva azul e A cigarra e a Formiga, em face da antropomorfização; e há histórias em que não ocorre a personificação da fantasia, mas acontece o manuseio de objetos mágicos pelas personagens, como em O casamento da princesa Nuriar.

A escrita das crianças, contudo, não se limita a apresentar personagens frutos desse entrelaçamento, pois alguns dos textos traçam o perfil de pessoas reais sem o convívio com o mágico, como em Curiosidade premiada e De trote em trote agarrei o velhote. A escolha por uma caracterização mais realista 2 BAMBERGER, Richard. Como incentivar o hábito da leitura. 6.ed. São

Paulo: Ática, p.34. (Série Educação em ação)

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não tornou a trama menos atraente, porque foi inserido um elemento de humor, materializado através do exagero nos caracteres de Glorinha e Serafina, respectivamente. Assim, o narrador substituiu a magia por esse recurso sem perder de vista o efeito pretendido de seduzir o leitor e levá-lo para o mundo da ficção.

As personagens construídas pelos pequenos leitores podem ser agrupadas em dois grandes grupos: humano e antropomorfizado. O primeiro grupo apresenta uma subdivisão em que estão situados, de um lado, elementos de cunho humano e mágico e, do outro, realista. Desse modo, o grupo humano, localizado na interface entre a magia e a realidade, é composto, entre outros elementos, por reis, príncipes, princesas, fadas madrinhas e bruxas. Quanto aos que constituem o do realismo, são representados por seres humanos como, por exemplo, pai, mãe, filha, vizinha, velho, velha, moça e rapaz. Já o segundo grupo não apresenta nenhuma subdivisão e os animais, ao personificarem humanos em diversos contextos, são colocados sob o mundo da fantasia.

A categoria princesa é materializada pela presença das personagens Branca de Neve, Nuriar, Cinderela e Sherazade, que são caracterizadas, inicialmente, pela condição social de que são oriundas, uma vez que as duas primeiras já nasceram como membros da realeza e as duas últimas tornaram-se princesas ao final do enredo. Tal estratificação é explicitada nos textos via caracterização da Branca de Neve, ao ser apresentada por meio da expressão adjetiva “uma linda princesa” e pelo espaço em que

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vivia, um “reino”; Nuriar também é classificada como princesa, mas de modo bastante econômico, tendo em vista a limitada caracterização; Cinderela e Sherazade são descritas como filhas de famílias comuns que mantinham contato com a realeza e, ao se casarem com príncipes, ascenderam socialmente.

As personagens são enquadradas como elementos positivos na trama, porque os caracteres explicitados e suas ações denotam alegorias3 do bem, como se observa na qualificação de Branca de Neve em “uma linda princesa”, órfã, na condição de vítima e o modo amigável como se relaciona com o caçador e com os anões. Nuriar é descrita apenas como princesa, o que já traz embutido um conjunto de características não explicitadas em face dessa posição; Cinderela também é adjetivada pela expressão “uma moça linda”, órfã, ingênua e vítima das agruras promovidas pela madrasta; Sherazade é apresentada como “uma moça que fazia histórias” e também na posição de vítima, cujas ações de contar histórias propiciam um final feliz.

Em vista disso, percebe-se que a montagem das personagens leva a um perfil positivo, como já foi afirmado, bem como passivo e ingênuo, porque, dentre as quatro princesas, três esperam pela ajuda de auxiliares para retornarem à felicidade. A passividade é mais acentuada em Nuriar, pois a ela não é imputada nenhuma ação pelo narrador. Quem difere dessa postura é Sherazade, que, desde a sua apresentação como “uma

3 Entende-se por alegoria toda concretização, por meio de imagens, figuras e pessoas, de idéias, qualidades ou entidades abstratas. Cf. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1995. p.15.

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moça que fazia histórias”, reflete um sujeito promotor de ações e é nessa condição ativa que produz um final feliz para si.

As madrastas em Branca de Neve e os sete anões, Cinderela e João e Maria são o contraponto das protagonistas, uma vez que a categoria a que pertencem possui uma carga semântica negativa porque personifica o mal. A rainha, em Branca de Neve, é qualificada de ”malvada”, “cruel” e “invejosa” e apresentada, inicialmente, sob a pele de uma bela mulher vaidosa, que sempre indaga ao espelho mágico sobre sua beleza, pretendendo que a mesma seja insuperável, contudo, ela passa por um processo de transformação física que revela a sua verdadeira face, a de bruxa. As suas ações também reforçam esse perfil, já que mandou matar a enteada porque não aceitava a superioridade da beleza de Branca de Neve, e apresenta um modo autoritário de conduzir suas relações com o espelho e com o caçador. Assim, a composição dessa personagem como antagonista é coerente porque os adjetivos utilizados coadunam com suas ações.

A madrasta em Cinderela é caracterizada, a princípio, por um pronome indefinido “uma” antes do substantivo mulher, o que já indicia um desprezo do narrador, que culminará com a expressão adjetiva “malvada madrasta”. Tal expressão é utilizada em razão da atitude de casar Cinderela somente depois de casar as duas filhas, denominadas Anastácia e Drizela, as quais são qualificadas como invejosas. Dessa forma, as duas moças e a mãe constituem, a partir dos elementos caracterizadores e de suas ações, alegorias do mal. Vale ressaltar que os nomes dados às duas filhas não conferem com o original, o que, de certo modo,

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acusa a interferência das adaptações para o cinema ou a televisão. Em João e Maria, a madrasta é caracterizada pela ação de abandoná-los na floresta e reproduzida na figura da velha bruxa, que tenta devorá-los.

Para Nuriar e Sherazade o antagonismo não é materializado na pele de madrastas, todavia em formas distintas, uma doença e um príncipe, respectivamente. Na construção das personagens de O casamento da princesa Nuriar não há a personificação do mal; o que se desenrola é uma competição em busca do amor dela e o elemento que surge para atrapalhar é uma doença. Em A princesa Sherazade, o mal é concretizado na figura do príncipe que, impelido pela traição de sua primeira esposa, condena todas as moças do reino à morte.

Junto à figura da madrasta outra é revelada, a do pai. Dessa maneira está constituída a relação da princesa com o seu pai, conforme catalogação de Wladimir Propp,4 sendo em Branca de Neve e os sete anões uma relação não explicitada ou omitida pelo narrador, mas, ao mostrar uma madrasta, implica a atitude do pai em tentar suprir a carência da filha. Em Cinderela, ela é explicitada com a afirmação de que o pai se casara para resolver o problema da perda da mãe. No que se refere à narrativa O casamento da princesa Nuriar, essa relação é substituída pela da sobrinha e seu tio, entretanto, o que se observa é a atitude do tio revelando-se nos mesmos moldes daquela de um pai, buscando um esposo para a sobrinha/filha. Em João e Maria, mesmo não havendo uma princesa, o pai também tem a mesma atitude

4 PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 73-76.

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ocorrida em Branca de Neve e os sete anões e Cinderela ao casar-se novamente, tentando suprir a carência dos filhos. A figura do pai nessas narrativas apresenta-se, portanto, como elemento positivo, mas, em alguns casos, revela-se passiva, em face da dominação imposta pela esposa, que não é narrada pelas crianças. Quem contraria essa postura é o tio/pai de Nuriar, que conduz ações para decidir aquele que será seu marido.

Como as personagens Branca de Neve, Cinderela e Nuriar necessitam de auxiliares para a resolução de seus problemas, entra em cena o caçador para ajudar a primeira princesa, que a princípio está a serviço do mal, mas se revela como elemento positivo, já que não mata a menina e a ajuda a fugir. Assim como recebeu auxílio do caçador, ela também contou com a acolhida dos anões, os quais são quantificados apenas no título e somente dois são nomeados, o Mestre e Dengoso, caracterizados também como alegorias do bem. Em Cinderela, a fada-madrinha é o elemento que surge como auxiliar, só que na condição de elemento mágico. Os três irmãos príncipes André, Cil e Anderson5

são para Nuriar também auxiliares, pois conseguiram presentes valiosos que a ajudaram a curar a doença.

Contrariando essa expectativa, Sherazade, João e Maria não se comportam passivamente e não ficam à espera de ajuda; eles tentam com seus próprios meios vencer os obstáculos. Em João e Maria, contudo, o narrador compartilha entre os irmãos a

5 Há alteração nos nomes dos príncipes, ocorrida, provavelmente, por serem nomes incomuns e a história ser pouco conhecida, os quais são respectivamente: Husan, Ali e Amed, conforme a publicação encontrada no acervo da escola. Cf. BRAIDO, Eunice. O casamento da princesa Nuriar. São Paulo: FTD, s/d. (Coleção 1001 noites)

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atitude de empurrar a velha bruxa no forno, alterando, então, a versão original em que Maria é a autora da ação e responsável pela salvação dos dois no final da história. A mudança realizada pela criança pode ser oriunda da composição do perfil de João como elemento positivo e ativo porque é o primeiro a tomar atitudes em prol do não abandono pelos pais, o que provoca uma incoerência no enredo, porque ele estava preso numa espécie de cela.

A personagem Príncipe está presente em Branca de Neve e os sete anões, Cinderela, O casamento da princesa Nuriar e A princesa Sherazade, no entanto, o que se observa é que nas duas primeiras narrativas ela surge apenas no final como aquele que salva a princesa da condição de infelicidade. Esses heróis não são caracterizados fisicamente, pois está implícito um rol de qualidades de todo príncipe, tais como beleza, poder, galanteio, coragem, as quais não precisam ser explicitadas, uma vez que são confirmadas pelas atitudes, como o beijo que salva Branca de Neve e a busca incessante pelo reino atrás da dona do sapatinho de cristal. Em Nuriar, não há apenas um, mas três, os quais possuem características semelhantes em virtude do grau de parentesco (irmãos), bem como por conseguirem presentes com o mesmo valor e em nenhum momento é relatado algum conflito entre os mesmos, o que configura uma união; entretanto, a diferença surge com a habilidade em jogar a lança, saindo vencedor Cil/Ali. O perfil mais destoante de um príncipe é o de Lio/Shariar em A princesa Sherazade, tendo em vista o processo de transformação por que passa a personagem, que transitou do

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bem para o mal, tornando-se o algoz do seu povo. Ele só recupera a posição inicial após se apaixonar por Sherazade.

Dentre as histórias até agora descritas nota-se uma preferência pela composição de protagonistas jovens, todavia em De trote em trote agarrei o velhote e Curiosidade premiada as personagens principais assumem características opostas em relação àquelas e até entre si, visto que Serafina e Glorinha, respectivamente, são uma velha e uma criança. A primeira não é uma velha qualquer porque, segundo o narrador, “era uma velha, não tão velha”, com um hábito bastante inusitado, “gostava de passar trote em telefone”, uma atitude que a distancia dos velhos e a aproxima dos jovens; “uma velha diferente das outras, ela não tinha nem um cachorro nem um felino”, mas possui um gosto em comum com as demais as velhas, “gostava de fazer crochê e bordado”.

Embora possua esse conjunto de características peculiares, Serafina é muito solitária, o que a aproxima, mais uma vez, do perfil tradicional das pessoas da terceira idade, mas nem por isso deixa de procurar uma companhia, o que faz através dos trotes. Nesse momento, ela deixa de ser uma senhora de 84 anos, um pouco loura, magra, para se transformar numa jovem de “23 anos, cabelos loiros, magra e muito simpática”. Todavia, a busca só se concretiza quando ela se assume com todas as suas características reais, uma vez que o companheiro que encontra possui 86 anos e busca uma pessoa compatível com seu perfil.

A segunda personagem, Glorinha, é caracterizada como “uma menina curiosa demais”, o que já indicia uma perspectiva

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diferente dos caracteres de uma criança passiva e a denominação no diminutivo pode ser vista como uma forma de reforçar a idéia de infantilidade. Essa descrição é confirmada no decorrer da narrativa, em face de suas ações, ou seja, perguntar, perguntar e perguntar. Ela indaga a todos, conhecidos e/ou desconhecidos, desde a um homem que passa na rua com uma mala, à cozinheira, às visitas da casa, aos pais, provocando inúmeras reações, visto que são perguntas de naturezas diversas. Essas personagens não são detalhadas na narrativa como se o leitor já dominasse o estatuto das qualidades sedimentadas. Pode-se acrescentar algumas informações sobre Glorinha em função das outras personagens presentes, tais como o fato de viver com os pais, os quais são cuidadosos, pois se preocupam com o nível de curiosidade da menina. Acrescente-se que sua condição socioeconômica deve ser satisfatória, porque possuem uma cozinheira.

Nesse âmbito bastante realista, a personagem Dona Domingas funciona como um elemento auxiliar, ao apontar a solução para saciar a curiosidade da menina, diante da incapacidade dos pais em controlar Glorinha. A descrição dessa figura, assim como da Serafina, enfatiza o fator velhice apenas pelo seu caráter externo (“era velha por fora”), o que, de certo modo, alia experiência e juventude.

Dos cinco textos que compõem o grupo antropomorfizado, observa-se que tende a diminuir a polarização entre o bem e o mal, tendo em vista que somente em Os três porquinhos essa divisão é muito nítida e materializada nas

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personagens os três porquinhos e o lobo, respectivamente. As primeiras são descritas como moradoras de uma floresta, apreciando passear nela, porém não são nomeadas, demonstrando uma forma de homogeneização das mesmas. Serão diferenciadas a partir de suas ações, isto é, cada porquinho constrói um tipo de casa, revelando um pouco da sua personalidade, sendo destacado como “mais trabalhador” e “não era preguiçoso” aquele que construiu a casa de tijolo. O antagonista sofre uma alteração por parte do narrador, que o denomina de “raposa” em vez de lobo, o que pode demonstrar uma confusão entre personagens antagonistas da literatura infantil. Sua descrição é realizada a partir de suas ações, cujo objetivo é devorar as vítimas e, para isso, tenta derrubar as casas, conseguindo seu intento em duas oportunidades e na terceira é surpreendido pelos porquinhos com um caldeirão de água fervente. Nesse momento, ocorre inversão de papéis, pois o lobo/raposa passa à condição de vítima, sendo punido por suas más ações.

Em A cigarra e a formiga, O pulo do gato, A festa no céu e A relva azul, não se nota a constituição da relação bem/mal, embora apareçam pólos antagônicos, como em A cigarra e a formiga e A festa no céu. Outro elemento comum entre as referidas narrativas é o processo de construção das personagens realizado de acordo com as ações desenvolvidas na trama, haja vista a escassez, em sua maioria, de detalhamento físico e psicológico. Sendo assim, na primeira narrativa, não há uma descrição física, pois os dois animais possuem um estatuto próprio, que se observa na caracterização da formiga como

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representante da classe trabalhadora, uma vez que ela “estava trabalhando como sempre”, e na da cigarra enquanto representante dos artistas, não tendo preocupação em realizar outro tipo de trabalho. Na visão da formiga, a cigarra deveria fazer o mesmo que ela estava fazendo, porque senão iria se arrepender. Em contrapartida, para a cigarra a formiga é “boba” porque não estava aproveitando o verão. Com a chegada do inverno, a cigarra mostra-se indefesa e pede ajuda à formiga, que presta socorro, porém não deixa de repreendê-la sobre a necessidade do trabalho e ela compromete-se a trabalhar no próximo verão. A última ação da cigarra não confere com o original, revelando um posicionamento pessoal do narrador.

Para a composição do gato e da onça, em O pulo do gato, constata-se uma descrição desigual, uma vez que a onça é qualificada como “muito esperta”, reforçando uma idéia pré-existente a respeito desse animal, e com relação ao gato não há nenhuma caracterização, ficando implícitas as sedimentadas e referentes a essa espécie. O que há de comum entre os dois é o grau de parentesco: primos. Todavia, essa economia em relação ao gato é um artifício do narrador para demonstrar, através das ações do felino, que a situação é oposta, uma vez que, ao atender ao pedido da prima onça de ensinar as suas habilidades, ele não mostra o principal truque, o pulo do gato. Dessa forma, o narrador realiza uma troca de papéis entre as personagens, tendo em vista que o gato assumiu a condição de “mais esperto”. As outras personagens são o rato e o lagarto, que funcionam como vítimas, sendo tal escolha coerente com a lógica das duas personagens principais.

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Dona Tartaruga, em A festa no céu, também é descrita de modo econômico, ficando implícita a sua caracterização a partir da inexistência dos pré-requisitos para ir a uma festa no céu, ou seja, ter asas e ser leve. Outros caracteres podem ser identificados através das suas ações que denotam diversos elementos subjetivos, como, por exemplo, tristeza ao perceber que não pode ir para a festa, sensação de competência ao encontrar uma solução, felicidade por estar na festa e infelicidade ao cair. O urubu é uma personagem importante por ser, inicialmente, uma espécie de elemento mágico, que possibilita à tartaruga chegar até a festa, mas funciona também como elemento negativo porque, não agüentando o peso da tartaruga, solta o violão, provocando a queda. Entretanto, o legítimo elemento mágico é a personagem Deus, por ter juntado os pedaços da protagonista. As personagens secundárias (anjos, papagaio, garça, sabiá, pombo, andorinha, cisne e urubu) têm em comum a capacidade de voar, fazendo o contraponto com a Dona Tartaruga. A estrela e a lua completam esse quadro, apresentando harmonia, uma vez que são elementos coerentes com a proposta de narrar uma festa no céu.

O cavalo Pingo, protagonista de A relva azul, é, dentre as personagens do grupo antromorfizado, a que apresenta maior descrição, uma vez que é qualificada como pequeno, com nome próprio (os demais animais não o possuem), pertencente a uma família de cinco irmãos, que também são nominados (Baio, o irmão mais velho, Biri, Roli, Rougi e Bobi). A caracterização dos irmãos não é fiel ao original, visto que nesse não são quantificados nem nomeados. Baio, na versão publicada, não é qualificado como

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irmão de Pingo e sim como um cavalo que vive no mesmo local e conta a história sobre a relva azul, a qual irá impressionar o pequeno animal. A descrição física e as ações do protagonista (perseverar em busca da relva azul) dão margem à construção de um perfil de impetuosidade e imaturidade, próprio dos jovens. É um elemento positivo e com um perfil ativo, embora receba a ajuda de personagens secundárias, que cumprem o papel de irmãos mais velhos.

O conjunto de textos reproduzidos/produzidos pelas crianças de classe social favorecida6 também apresenta como indício primeiro, a respeito da construção das personagens, a presença do nome próprio ou genérico das mesmas em todos os títulos da amostra. Em sua maioria tem-se a totalidade do nome, como em Três porquinhos, A jararaca, a perereca e a tiririca, Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, A menina da janela, Os três mosqueteiros, A bela adormecida, Romeu e Julieta, A Cinderela, Sherazade e O Rei leão; e, em menor proporção, constituindo parte do título, como em A arca de Noé. Isso mostra a importância dada pelas crianças à personagem como elemento estrutural na composição da narrativa, porque elas enfatizam, no título, o lugar que a personagem ocupa na trama, cujo desenvolvimento se dá a partir dessa e de suas ações. Tal modo de organização da história realizado pelos alunos é típico do conto

6 Os textos que compõem a amostra da classe social favorecida são os seguintes textos: A Cinderela, Branca de Neve, A bela adormecida, Sherazade, Chapeuzinho Vermelho, Três porquinhos, A jararaca, a perereca e a tiririca, O rei leão, A arca de Noé, Os três mosqueteiros, Romeu e Julieta e A menina da janela. Vale ressaltar que os títulos das narrativas estão de acordo com as versões reproduzidas pelas crianças.Ver anexo 5.

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infantil tradicional, que é estruturado, de acordo com Wladimir Propp,7 pelas ações das personagens e não pelo assunto.

A reprodução dos títulos é fiel às versões publicadas, com exceção de Sherazade, caso se leve em consideração a publicação dos Contos das 1001 noites ou a adaptação de Eunice Braido, A princesa Sherazade.8 Dessa forma, nota-se uma recepção bastante uniforme, tendo em vista que as crianças assimilaram o título do original sem a interferência de outros fatores condicionantes, tais como a recriação dos títulos ou o acesso a adaptações.

Observa-se, também, a partir dos títulos, que as narrativas representam grupos humanos como em Branca de Neve, A menina da janela, Os três mosqueteiros, A bela adormecida, Romeu e Julieta, A Cinderela, Sherazade; antromorfizados como em Três porquinhos e O rei leão; e um terceiro grupo que mescla os dois já referidos, como em Chapeuzinho Vermelho, A jararaca, a perereca e a tiririca e A arca de Noé. Contudo, há um predomínio do primeiro grupo, o que significa uma preferência por representações que mantenham um vínculo mais estreito com a realidade, mas sem abdicar da fantasia. Dentre as personagens-título, o gênero feminino é o que se apresenta hegemônico.

A fusão entre o real e o mágico não ocorre somente no primeiro grupo, uma vez que a antropomorfização presente no segundo é também uma forma desse entrelaçamento. O terceiro grupo, sem dúvida, constitui a materialização dessa mistura, já 7 PROPP, op. cit., p. 25. 8 BRAIDO, op. cit.

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que as ações desenvolvidas fazem com que o humano e o antromorfizado estabeleçam relações, mostrando a possibilidade de convivência desses universos.

As personagens que constituem o grupo humano são representadas por rei, rainha, princesa, príncipe, fada-madrinha, bruxa, madrasta, entre outros, compondo as ações dos textos que contêm a fusão entre o real e o mágico. Menina, menino, moça e rapaz, enquanto faixa etária, formam o elenco que dá vida aos textos mais realistas. Os animais personificados são os representantes do universo antropomorfizado, tais como lobo, jararaca, perereca, tiririca, leão, porcos, os quais, ao assumirem características humanas, dão margem à materialização da fantasia.

A categoria princesa é concretizada pelas protagonistas a bela adormecida, Branca de Neve, Cinderela e Sherazade, as quais são inseridas pelo status social que possuem indicado nas narrativas. As duas primeiras são membros natos da realeza, uma vez que são descritas como “uma princesa que nasceu” e “ela morava em um enorme castelo onde vivia a sua madrasta, a rainha”, respectivamente, descrevendo, de modo preciso, a origem das duas moças. As duas últimas são de famílias plebéias e adquirem o título ao se casarem com príncipes no final da trama.

A caracterização de a bela adormecida, Branca de Neve e Cinderela inserem-nas no perfil de protagonista princesa, alegoria do bem e elemento passivo. A primeira é intitulada princesa, filha de um rei, rodeada de fadas-madrinhas, é bonita, possui voz graciosa, aprecia colher flores, brincar com animais e não toma

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nenhuma iniciativa para impedir o efeito do feitiço da fada-bruxa. A segunda é descrita como “uma linda menina”, órfã, “lábios como rosa, cabelos como pântano, pele branca como neve”, “morava num enorme castelo”, gosta de colher flores, e também não pratica nenhuma ação para tornar o seu destino diferente. Finalmente, a terceira é apresentada como órfã, tratada pela madrasta e pelas irmãs como empregada, apelidada de “gata borralheira”. Assim como as duas primeiras, Cinderela necessita do auxílio de outras personagens para mudar a sua condição, entretanto, nessa versão, ela demonstra menos passividade, ao se oferecer, no final da história, para experimentar o sapatinho.

As três personagens referidas correspondem ao padrão da categoria princesa dos contos infantis, no entanto, a descrição da princesa Sherazade a distancia desse perfil, visto que é caracterizada como inteligente, qualidade que em nenhum momento é atribuída às outras protagonistas, e que é comprovada pelas ações, que resultam no prolongamento da sua vida até que o sultão a perdoe. A única descrição externa dessa personagem é o fato de ela ser filha de um dos funcionários do sultão, o que chama atenção por ser a denominação funcionário de cunho bastante atual, contrariando a utilizada para os subalternos de uma corte real do Oriente.

Os opositores dessas personagens configuram-se de modo distinto, pois em Branca de Neve e A Cinderela o antagonismo apresenta-se na figura da madrasta, em A bela adormecida concentra-se em uma das fadas-madrinhas e em Sherazade o príncipe constitui o grande adversário. A madrasta

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em A Branca de Neve é descrita como má, invejosa, vaidosa, porque não aceita a beleza da enteada e a sentencia à morte, ordenando a um caçador que a mate e, como prova, trouxesse o seu coração, o que demonstra outra característica, a crueldade; ela também faz feitiços, como o da maçã envenenada, e demonstra a capacidade de mutação ao se transformar numa velha. Já a madrasta, em A Cinderela, apresentada com detalhes físicos, enquadra-se nessa categoria, em face de as suas ações darem movimentação ao enredo, fazendo a protagonista sofrer. Desse modo, tais personagens podem ser entendidas como alegoria do mal, diferindo apenas a primeira por possuir dons mágicos.

A fada-madrinha em A bela adormecida contraria a expectativa em relação ao seu papel habitual, que é proteger e auxiliar a protagonista nos contos infantis, tendo em vista ser ela a responsável pela condenação da mocinha à morte. Ela entra em cena junto com outras duas fadas, a pedido do rei, para abençoar a filha, todavia observa-se uma incongruência com o texto original, pois a postura dessa fada na versão original resulta do despeito por não ter sido convidada para o banquete, resolvendo se vingar e sentenciando a princesa com o mal. Assim, a fada perde a condição de alegoria do bem para assumir o papel de bruxa, representando o mal.

Os príncipes dessas histórias são apresentados de formas distintas, uma vez que em A Cinderela e Branca de Neve não são descritos fisicamente e só aparecem no final da história para encontrarem a princesa. Essa economia deixa implícito um

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conjunto de qualidades já sedimentadas sobre essa personagem, as quais não precisam ser verbalizadas, tais como belo, corajoso e justo. Contrariando, em certa medida, esse perfil, o príncipe em A bela adormecida, configura-se, a princípio, sob a condição de vítima por ter sido aprisionado pela bruxa, precisando do auxílio das fadas, o que o iguala à condição passiva da princesa. Contudo, reverte essa posição ao lutar com a bruxa, matando-a para a salvar a amada. Em Sherazade, o príncipe/sultão também foge do padrão, ao ser caracterizado, inicialmente, como cruel, por matar todas as mulheres com quem contraía núpcias, um ato de vingança por ter sido traído pela sua esposa. Mas ele recupera sua posição de representante do bem ao perdoar Sherazade e ”se passaram mil e uma noites de histórias”. Nota-se, portanto, que a personagem príncipe, enquanto categoria, não perde a sua condição de alegoria do bem, embora possa, em alguns momentos, viver o conflito dualista entre o bem e o mal.

As personagens-auxiliares são materializadas por elementos mágicos, como as fadas-madrinhas, em A bela adormecida e A Cinderela, havendo uma alteração em relação ao texto original, uma vez que na primeira história são quantificadas em três e, na verdade, são quatro. Também se concretizam através de elementos considerados reais, mas com características incomuns, como o caçador e os sete anões em Branca de Neve, os quais não são descritos fisicamente, ficando a caracterização a cargo de suas ações, que denotam o seu papel.

A figura do pai é omitida em quase todas as narrativas, aparecendo apenas em A bela adormecida, como o rei que,

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estando feliz com a chegada da filha, promove um grande banquete e convida as fadas para defendê-la, confirmando o dever de todo pai de buscar proteção para os filhos. Por conseguinte, a ausência reflete uma fidelidade ao texto original, uma vez que essa figura é mal ou pouco explorada pelo narrador, o que faz com que a criança, no momento da reprodução/produção da narrativa, também empregue o mesmo modelo.

Nos textos em que as personagens são representadas pelo grupo antropomorfizado, há uma tendência de situá-las entre os pólos do bem e do mal, do mesmo modo que ocorre com a construção das personas no grupo dos humanos. A descrição é bastante limitada, ficando a cargo das ações das mesmas a possibilidade de individualização. Três porquinhos e O rei leão são exemplos desse procedimento, uma vez que os porquinhos são denominados com nomes próprios (João, Francisco e José), enquadrados num processo de hierarquia tanto no plano familiar, quanto pelo tipo de casa construída, e, ainda, são o alvo do lobo; o rei leão Simba também é uma representação do bem, sendo caracterizado como herdeiro do trono que passa por várias etapas até estar pronto para assumir o lugar do pai. Para vivenciar essas fases, o protagonista Simba tem a ajuda dos amigos Timão, Pumba e da namorada Nala.

O lobo e Iscar são os antagonistas das duas narrativas, cujo objetivo em comum é eliminar os protagonistas, mas por razões distintas. O primeiro deseja devorar as vítimas e o segundo quer tomar o lugar de Simba como rei. Movidos por tais desejos, movimentam as histórias com ações que levam perigo e ameça

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aos protagonistas, entretanto, são mal sucedidos, já que o lobo cai numa chaminé acesa e Iscar é destruído por Simba e seus amigos.

Nota-se, no grupo em que se mesclam personagens humanas com antropomorfizadas, que essa perspectiva maniqueísta de construção das personagens é fortemente marcada em Chapeuzinho Vermelho, tendo em vista a polarização do bem na figura da menina, da vovozinha e do caçador, e do mal na do lobo. A descrição da protagonista é realizada pela sua posição no âmbito familiar, a de filha, bem como por seu comportamento, já que é vista como imatura e precisa de recomendações da mãe para concretizar as suas ações. Ela, entretanto, não segue à risca os conselhos e cai na armadilha do lobo por duas vezes, o que denota a sua ingenuidade e reforça a necessidade do auxílio do caçador. O lobo movimenta a trama com suas artimanhas para enganar a netinha e a vovozinha, conseguindo engoli-las, caracterizando-se como antagonista, cuja descrição resulta de suas ações.

Em A jararaca, a perereca e a tiririca, o conflito bem/mal configura-se na luta dessas personagens contra o homem, o qual fica personificado nos trabalhadores da construção civil. Elas são caracterizadas como vizinhas, já que eram moradoras de um terreno baldio, mas não se relacionam umas com as outras. Com a ameaça da construção, elas mudam o comportamento e tornam-se solidárias em busca da sobrevivência. A jararaca é a mais destemida e enfrenta o trator, mas termina morrendo. A tiririca apresenta-se como líder e orienta a perereca a fugir, pois sabe enfrentar os problemas com desenvoltura.

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Em A arca de Noé, tem-se a única personagem bíblica da amostra – Noé – e, como tal, é descrita através de adjetivos e pelo ciclo familiar, ou seja, era um homem muito bom, com três filhos, esposa, nora, residindo todos juntos. Os demais membros não são descritos fisicamente, todavia Deus classifica Noé e sua família como pessoas boas e generosas. Outra característica do protagonista é a obediência, e por ter cumprido o pedido divino, ele é premiado ao final da narrativa com o arco-íris.

Saindo da esfera da relação real/mágico, as crianças apresentam personagens mais elaboradas como em Os três mosqueteiros, Sherazade, Romeu e Julieta e A menina da janela. É interessante observar que, nesse universo de narrativas, o público-alvo original da maioria não era as crianças, como nos outros textos. Todavia, constituem, em relação aos demais, uma mudança do horizonte de expectativas, tendo em vista a alteração do perfil das personagens. Nos dois primeiros textos, observa-se uma composição das personagens a partir das ações, resultando numa caracterização de D’Artagnan, enquanto protagonista, como um homem apaixonado por uma mulher e detestado pelos irmãos dela, despertando amor e ódio. Corajoso como um bom espadachim, enfrentava a todos, fato que o levou a duelar com os três mosqueteiros, os quais são Porthos, Athos e um terceiro não nomeado, que se subentende ser Aramis. Sherazade é uma protagonista que traz para si a responsabilidade de se defender com sua inteligência e astúcia da sentença de morte decretada pelo sultão, como também Romeu e Julieta, dois jovens apaixonados, que são capazes de atitudes extremas em nome do amor e cometem o suicídio.

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Observa-se, no entanto, que a personagem com o perfil mais distinto dos até então apresentados está configurada na narrativa A menina da janela, uma vez que o protagonista aparece na superfície do texto através do pronome de 1ª pessoa, “eu”. É uma personagem apaixonada pela menina da janela, descrita por meio de suas ações, mostrando-se sonhadora, insegura, triste e encantada com a garota. A menina da janela é caracterizada pela voz do “eu” como “tão linda que chamava atenção de todos”. A menina não tem nome, mas assume o protótipo da primeira namorada.

O cruzamento dos dados representativos dos dois grupos sociais revela a personagem como elemento estrutural importante na composição da narrativa, uma vez que em ambos os grupos sua construção é realizada já na escolha do título, visto que ela compõe ou faz parte do mesmo, indiciando, a princípio, que as histórias que constituem o imaginário dessas crianças são marcadas por essas figuras, constituindo, assim, o primeiro traço do horizonte de expectativas das mesmas. Dentre os títulos relacionados, percebe-se uma fidelidade em relação às versões publicadas, sendo que as crianças do grupo social favorecido são mais fiéis aos livros do que as crianças do grupo social desfavorecido, o que pode representar um contato mais freqüente das primeiras com o texto literário, resultando numa maior assimilação desse elemento.

A presença da personagem do gênero feminino na maioria dos títulos explicita uma preferência por histórias com esse perfil independente do nível social, haja vista que nas duas

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camadas sociais há o predomínio desse traço. Desse modo, observa-se que essa preferência não está relacionada à questão econômica, a priori, mas ao processo de seleção dos textos que são expostos à recepção dos dois grupos.

Como se constata, as personagens que compõem a amostra podem ser reunidas em dois grupos: humano e antropomorfizado. No entanto, o grupo humano apresenta, no estrato social favorecido, quase uma totalidade, enquanto que, no grupo social desfavorecido, há uma maioria que não chega a suplantar em grande número o grupo antropomorfizado. Por conseguinte, as crianças de nível social favorecido tendem a uma maior aproximação com o real do que as do nível desfavorecido, mas sem se afastarem da fantasia, tendo em vista que as narrativas não são descritas de modo totalmente racional e sim como histórias que contam com a presença do elemento mágico.

A confluência entre o real e o mágico permeia a montagem das personagens, visto que a maioria das narrativas reproduz a convivência entre representantes dos dois pólos. Embora tal confluência se apresente de modo significativo nos dois grupos sociais, nota-se uma maior presença na camada social desfavorecida, o que reforça a idéia de que as crianças pertencentes à camada social favorecida tendem para uma maior vinculação com o realismo. Isso fica mais evidente com a presença de histórias que traçam o perfil de personas reais sem o convívio com o mágico, que é mais representativo no grupo social favorecido, bem como pela densidade que essas personagens apresentam, tais como Romeu, Julieta e “eu”.

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O grupo humano, localizado na interface entre a magia e a realidade, é formado por, entre outros elementos, reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas-madrinhas e bruxas. Entretanto, constata-se que entre essas personagens, sem dúvida, as rainhas/madrastas e as princesas são os focos de atenção das crianças, provavelmente em face da dualidade bem/mal que elas representam. Elas são caracterizadas seguindo o estatuto da natureza de suas personagens, em que as princesas são descritas como alegoria do belo, da passividade e da bondade, enquanto que as rainhas/madrastas, como alegoria do mal e responsáveis pela movimentação da narrativa, uma vez que suas ações desencadeiam os eventos. Quem contraria em parte essa expectativa é a história A princesa Sherazade, personagem presente nos dois grupos sociais, que não se enquadra no caráter passivo das princesas.

Quanto aos príncipes, reis, pai, fadas-madrinhas e demais adjuvantes são compostos de acordo com o perfil denotado nos originais, não havendo nenhuma ruptura, ou seja, são descritos segundo o papel de herói, como os príncipes, e o de auxiliar, como as fadas-madrinhas, caçador, os sete anões, qualificados sob a tutela do bem. Porém, assim como a princesa Sherazade rompe com um elemento do perfil consagrado, o príncipe da mesma história também se distancia, em alguns momentos, desse quadro, quando se posiciona como antagonista.

Dentre as personagens-protagonistas da amostra, observa-se uma preferência pela composição de personagens jovens, todavia, é o grupo social desfavorecido que apresenta

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narrativas em que tais personas assumem características opostas em relação àquelas, materializadas nas figuras de Serafina, uma velha, e João, Maria e Glorinha, três crianças. A mudança de perfil não se restringe à escolha de uma velha ou de infantes, mas estende ao comportamento atípico tanto da velha e das crianças, visto que a caracterização traz uma visão distinta daquela comumente dada a essas personagens. Para tanto, tal apresentação desloca-se da perspectiva passiva presente, por exemplo, na vovozinha e na Chapeuzinho Vermelho, para uma postura ativa e empreendedora na resolução dos conflitos.

Nos textos que compõem o grupo antropomorfizado, das duas camadas sociais, nota-se uma tendência de amenização da relação dualista bem/mal, mas há, ainda, a manutenção de relações antagônicas, uma vez que a caracterização das personagens perde a função de situar o bem e o mal, ainda presente, por exemplo, nos três porquinhos, para fixar as diferenças entre os indivíduos concretizadas por meio das personagens-animais. Como esse tipo de personagem é mais freqüente no nível social desfavorecido, a fantasia é ainda necessária para que essas crianças compreendam os papéis sociais desempenhados pelos indivíduos numa comunidade.

O perfil das personagens da amostra, tanto do grupo social favorecido como do desfavorecido, apresenta-se bastante fiel aos contos tradicionais infantis, todavia, observa-se que o estrato mais privilegiado traz uma ruptura com relação a esse modelo. O rompimento verifica-se a partir da construção de protagonistas mais densos, como D’Artagnan, Romeu e Julieta,

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tendo em vista que o primeiro, enquanto herói, foge da composição “bom moço” da categoria príncipe. No que se refere aos outros dois, a tomada de atitudes trágicas extrapola a relação maniqueísta bem/mal, exigindo do leitor infantil maior capacidade de compreensão da lógica do comportamento humano. Tal nível de densidade também se configura na dificuldade da criança na concretização de uma personagem por meio do pronome de 1ª pessoa, eu, em A menina da janela. Dessa forma, o horizonte de expectativas dessas crianças apresenta-se mais amplo do que as de classe social desfavorecida.

2.22.2 A apresentação e o desenvolvimento do conflitoA apresentação e o desenvolvimento do conflito

Para a montagem do conflito nas narrativas, observa-se que as crianças de classe social desfavorecida lançam mão de duas formas para construir a situação inicial. A primeira conta com a presença de um equilíbrio e a segunda com um desequilíbrio. No entanto, há um predomínio da elaboração de uma situação inicial equilibrada como, por exemplo, em Cinderela, O casamento da princesa Nuriar, A princesa Sherazade, Os três porquinhos, A cigarra e a formiga, A festa no céu, O pulo do gato, A relva azul, Curiosidade premiada e De trote em trote agarrei o velhote.

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A noção de equilíbrio é explicitada mediante a caracterização de um cotidiano em que as personagens estão integradas num contexto familiar estável (Cinderela, O casamento da princesa Nuriar, A Princesa Sherazade, Os três porquinhos, O pulo do gato, A relva azul, Curiosidade premiada), numa situação de trabalho (Os três porquinhos e A cigarra e a formiga), em um acontecimento social (A festa no céu), bem como através do comportamento de uma personagem bastante inusitada (De trote em trote agarrei o velhote).

A situação inicial em desequilíbrio é um recurso usado apenas nas narrativas Branca de Neve e os sete anões e João e Maria, em que os protagonistas são contextualizados num ambiente familiar instável, já que são órfãos de mãe e vivem com suas respectivas madrastas, as quais figuram como antagonistas. Na maioria das narrativas, porém, constata-se uma preferência por um processo de construção da trama desencadeado a partir do equilíbrio para em seguida ocorrer a ruptura com a configuração do conflito. As duas formas apresentadas para a constituição da situação inicial seguem o roteiro designado por Wladimir Propp em que o conto “começa com certa situação inicial. Enumeram-se os membros de uma família, ou o futuro herói (por exemplo, um soldado) é apresentado simplesmente pela menção de seu nome ou indicação de sua situação”.9

A natureza do conflito nas histórias apresenta-se múltipla, já que é pautada por relações antagônicas entre o bem/mal (Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, A princesa Sherazade, João e Maria, Os três porquinhos), astúcia/não-astúcia (O pulo do 9 PROPP, op. cit. p. 31.

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gato e A festa no céu), maturidade/imaturidade (A relva azul, Curiosidade premiada), como também por relações sociais (O casamento da princesa Nuriar, A cigarra e a formiga e De trote em trote agarrei o velhote).

A responsabilidade de provocar o conflito é direcionada, principalmente, ao antagonista, por ser ele o responsável pela movimentação das ações. Sendo assim, nota-se que nas histórias em que ocorre o confronto entre o bem e o mal, o conflito é mais tenso porque as ações deliberadas pelos vilões têm como objetivo eliminar os protagonistas por meio da morte, que pode ser simbólica ou real, tais como a madrasta e as filhas em Cinderela, a rainha-madrasta de Branca de Neve e os sete anões, o sultão de A princesa Sherazade, a bruxa em João e Maria e o lobo mau em Os três porquinhos.

Para tanto, os vilões utilizam instrumentais diversos que denotam as estratégias para atingirem os seus propósitos, como se observa na tentativa da madrasta e das filhas em anular a existência da Cinderela, colocando-a numa espécie de cativeiro, já que vivia como escrava. Em Branca de Neve e os sete anões, os instrumentos são o exercício de poder da rainha-madrasta ao ordenar a um caçador que matasse a enteada, bem como o uso de magia ao transformar-se numa bruxa e oferecer a maçã envenenada para a princesa. Outra estratégia de se opor ao protagonista é, por exemplo, a tirania do sultão ao decidir sobre o destino de suas noivas, o processo de sedução pelos doces da bruxa de João e Maria, e a perseguição física aos três porquinhos.

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Nas histórias em que está presente a relação astúcia/não-astúcia, o conflito revela-se não mais através de uma tensão provocada pelo elemento morte, mas por estar em jogo a constituição de identidades. Em vista disso, a onça e o gato, em O pulo do gato, realizam um confronto amigável, em que a primeira, mostrando-se mais hábil, seduz/pede ao segundo que ensine as suas habilidades particulares, contudo o felino não ensina o principal, o pulo do gato. Em A festa no céu, o conflito materializa-se na estratégia de D. Tartaruga para ir a uma festa no céu, mesmo não possuindo asas, para isso se utilizando do violão do Urubu, sem que ele saiba, para chegar até lá. Entretanto, ela não contava com a possibilidade da queda, que a fez em pedaços.

No que se refere à relação maturidade/imaturidade, observa-se em A relva azul a busca do protagonista em realizar seu desejo, constituindo-se no conflito interno que provoca as ações da narrativa, o qual reflete o processo de maturação do jovem. Em Curiosidade premiada, Glorinha, enquanto centro da história, ao demonstrar uma fonte inesgotável de dúvidas, realizando infinitas perguntas, coloca em xeque a conduta dos pais, os quais sozinhos não conseguem encontrar uma solução. Dessa forma, o comportamento da menina reflete a etapa de transitoriedade por que passa, uma vez que busca respostas por meio do outro, bem como revela a fragilidade dos pais diante da situação.

Em O casamento da princesa Nuriar, A cigarra e a formiga e De trote em trote agarrei o velhote, o conflito é gerado a partir das relações sociais estabelecidas, uma vez que, na primeira

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história, o direito de se casar com Nuriar virá do resultado de uma disputa entre três irmãos, mas a competição é realizada de modo civilizado. Na segunda, a valorização da modalidade de trabalho braçal confronta-se com o artístico, materializada nas personagens principais, a formiga e a cigarra, respectivamente, quando essa se vê dependente daquela, e, na última narrativa, a problemática da solidão na terceira idade é o foco central, com vovó Serafina, via trotes, busca encontrar um parceiro.

Para se chegar a uma solução do conflito com sucesso, os protagonistas contam com a ajuda de personagens auxiliares, que se concretizam nas histórias através da fada-madrinha em Cinderela, do caçador e dos sete anões em Branca de Neve, de Deus em A festa no céu, dos irmãos de Pingo em A relva azul, e da D. Domingas, em Curiosidade premiada, que ajuda os pais de Glorinha a acharem uma solução para o excessivo exercício de questionar da menina. Tais personas interferem na trama, colaborando ora para que os objetivos dos antagonistas não sejam contemplados, ora para que os dos protagonistas o sejam.

Todavia, constata-se que a concretização da solução com sucesso também resulta da iniciativa das personagens principais como, por exemplo, Sherazade que, ao contar histórias, conquista o sultão, assim como a personagem Maria, ao derrubar a bruxa no caldeirão, havendo neste caso uma alteração da criança-narradora ao estender a João a autoria dessa ação; ou os três porquinhos que, ao aplicarem um golpe no lobo, solucionam seus problemas; o gato, ao demonstrar mais astúcia do que a onça no momento

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em que não ensina o pulo do gato, e Serafina, ao retornar a ligação consegue conquistar um parceiro da sua idade.

Vale ressaltar que nas histórias Cinderela e Branca de Neve e os sete anões a figura do príncipe aparece para findar o conflito, como o grande herói. As ações dele são bastante limitadas e decisivas, uma vez que o papel dessa personagem se restringe a procurar a dona do sapatinho de cristal ou beijar a princesa para despertá-la, respectivamente, contudo, tais atitudes trazem de volta o equilíbrio às narrativas.

Nos textos reproduzidos/produzidos pelas crianças de classe social favorecida ocorre a utilização dos dois modos de elaboração da situação inicial, por meio do equilíbrio ou desequilíbrio, sendo que nesse grupo não há o predomínio de uma forma, visto que metade do corpus constrói uma situação inicial pautada no equilíbrio, como se observa em A bela adormecida, Chapeuzinho Vermelho, A jararaca, a perereca e a tiririca, O rei leão, A arca de Noé e A menina da janela, e a outra metade lança mão do desequilíbrio como fator inicial da trama, como em Branca de Neve, A Cinderela, Sherazade, Três porquinhos, Os três mosqueteiros e Romeu e Julieta.

O contexto familiar estável (A bela adormecida, Chapeuzinho vermelho, O rei leão e A arca de Noé), as relações sociais (A jararaca, a perereca e a tiririca) e a descoberta do amor ( A menina da janela) configuram o conceito de estado de equilíbrio em que as personagens estão. No tocante ao desequilíbrio, ele se materializa mediante a presença de um ambiente familiar em que ocorreu a perda de um dos seus pilares,

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a mãe, a qual é substituída pela madrasta (Branca de Neve e A Cinderela); ou a ameaça do inimigo (Três porquinhos e Os três mosqueteiros), ou ainda as brigas entre famílias (Romeu e Julieta), além da decretação de sentença de morte (Sherazade).

Quanto à natureza do conflito, nota-se um predomínio do confronto entre o bem e o mal (Branca de Neve, A bela adormecida, A Cinderela, Sherazade, Chapeuzinho vermelho, Três porquinhos, O rei leão). Entretanto, outras questões também se fazem presentes, como, por exemplo, a religiosa (A arca de Noé), os conflitos sociais (A jararaca, a perereca e a tiririca) e entre famílias (Romeu e Julieta), o primeiro amor (A menina da janela) e a aventura (Os três mosqueteiros). Por conseguinte, percebe-se uma preferência por tramas em que o bem e o mal estão intrincados através da convivência entre o real e o mágico, tendo em vista que a maioria dos textos portadores dessa característica trabalha tal fusão.

As ações que resultam num conflito são, em sua maioria, de responsabilidade do antagonista, que usa estratégias distintas com vistas ao sucesso dos seus planos. A madrasta, em Branca de Neve, utiliza-se do poder real que tem para mandar matar a princesa, bem como do mágico, mediante a transformação em uma velha e do preparo da maçã envenenada ou através da morte simbólica de Cinderela, que vivia como uma empregada. A fada/bruxa a exemplo da antagonista anterior revela-se cruel ao condenar à morte por meio de feitiços a bela adormecida. O príncipe, em Sherazade, enfurecido sentencia todas as moças do seu reino à morte. Já o lobo tenta, por meio da sedução ou da

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força física, devorar Chapeuzinho Vermelho e os três porquinhos, respectivamente e Iscar, em O rei leão, intenta eliminar Simba para ascender ao poder.

O elemento que promove as ações geradoras do conflito não se configura somente por meio de personagens, já que questões subjetivas também surgem para dar movimentação à narrativa. O progresso provoca a quebra do equilíbrio da situação inicial em A jararaca, a perereca e a tiririca; os desentendimentos familiares impossibilitam a realização do romance entre Romeu e Julieta; o cumprimento de ordem divina é o fator motriz em A arca de Noé; a insegurança/imaturidade diante de uma experiência nova, o primeiro amor, move A menina da janela; a busca pela honra constrói Os três mosqueteiros.

Para a resolução do conflito, algumas protagonistas apresentam uma postura passiva e necessitam da ajuda de outras personagens, cujo papel é auxiliá-las, tais como o caçador e os sete anões, em Branca de Neve, que a ajudam a fugir e se proteger da rainha-madrasta. A fada-madrinha, em A Cinderela, possibilita à princesa participar do baile e encontrar o príncipe encantado e, em A bela adormecida, ameniza o feitiço da fada-bruxa; e o caçador, em Chapeuzinho Vermelho, salva a vovozinha e a menina da barriga do lobo. O príncipe, embora se caracterize como personagem principal, também funciona como auxiliar, mas com o poder de finalização do conflito.

Observa-se, porém, a ocorrência de protagonistas que atuam ativamente em busca de uma solução do conflito, como em Sherazade, cuja princesa, sem ajuda de auxiliares, consegue

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prolongar a sua vida e conquistar o príncipe, bem como em Romeu e Julieta, em que os protagonistas tomam veneno. As atitudes isoladas dessas personagens denotam resoluções distintas, tendo em vista que a primeira resulta em sucesso e a segunda, em fracasso. Outras personagens principais também tomam iniciativas, mas contam com a ajuda de auxiliares para conseguirem finalizar a trama com sucesso, como em O rei leão, Os três Mosqueteiros e A arca de Noé, sendo os ajudantes amigos ou parentes.

Em A menina da janela, ocorre um conflito interior em face da dúvida do “eu” em relação à outra personagem, a qual só se dissipa quando tem certeza de que há uma reciprocidade de sentimentos. Sendo assim, o protagonista depende de uma reação da outra personagem para poder haver a resolução, com sucesso, do conflito.

Em vista da descrição apresentada, constata-se que as crianças de classe social desfavorecida constroem predominantemente as suas narrativas a partir de uma situação inicial equilibrada, havendo, portanto, uma preferência por essa modalidade, o que demonstra uma necessidade de partir do estável para em seguida ocorrer uma ruptura, que se configura no conflito. Entretanto, essa posição não é a mesma das crianças de classe social favorecida, pois elas lançam mão de modo igualitário das duas formas de elaboração do contexto inicial, isto é, as crianças começam as narrativas tanto com situações equilibradas, como desequilibradas. O quadro em questão permite afirmar que as crianças do segundo grupo social, ao utilizarem na mesma

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proporção os dois recursos de estruturação da trama, demonstram uma maior maturidade em relação às crianças do primeiro grupo, tendo em vista que o nível de complexidade da história é maior quando se trata de iniciar um enredo com uma instabilidade, porque exige do leitor mirim maior capacidade de compreensão de organização do mundo a partir de um novo modelo, o caos.

A concepção de equilíbrio é montada, principalmente, a partir de um âmbito familiar estável, em que os papéis sociais estão devidamente definidos dentro de um padrão dominante, bem como por meio do cotidiano em que estão inseridos questões de trabalho, acontecimentos e comportamentos sociais, como se observa nos textos dos leitores desfavorecidos. O âmbito familiar estável também se configura como sinônimo de equilíbrio para os leitores favorecidos, como as relações sociais e pessoais que permeiam a vida das personagens.

O desequilíbrio é materializado via ambiente familiar instável para as duas modalidades de leitores, sendo que, para as crianças de classe social privilegiada, essa noção não se limita a tal questão, pois também se concretiza por meio de outras, tais como a ameaça de um inimigo, a briga entre famílias e a sentença de morte.

Quanto à natureza dos conflitos, a relação antagônica bem/mal predomina nos textos das duas camadas sociais, mas não se restringe a tal modalidade, tendo em vista que na classe social desfavorecida o antagonismo também se faz presente via outros confrontos como, por exemplo, astúcia/não-astúcia, maturidade/imaturidade, não deixando de tratar das relações

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sociais. Além da oposição bem/mal, os textos das crianças de classe social favorecida também abordam a religião, o primeiro amor e a aventura.

A responsabilidade para desencadear o conflito é dada, em sua maioria, pelos leitores das duas camadas sociais ao antagonista, visto que é ele quem movimenta a narrativa com suas ações, que, em geral, pretende eliminar o protagonista. No entanto, os protagonistas e as questões sociais também atuam no sentido de provocar o conflito, como se observa em histórias reproduzidas/produzidas pelos leitores mirins desfavorecidos, bem como questões subjetivas são os elementos condutores do conflito, usadas em narrativas das crianças de classe favorecida.

Para solucionar os conflitos, percebe-se nos textos, a utilização, como recurso estrutural, das ações do protagonista ou de personagens-auxiliares. Há, no entanto, nas histórias das crianças de classe social desfavorecida um equilíbrio no uso dessas categorias e uma discreta discrepância nas histórias das crianças de classe favorecida, em virtude de uma maior atuação dos protagonistas. Vale ressaltar que a categoria príncipe aparece, nos textos de ambas as camadas sociais, somente no final, mas como elemento que finaliza e soluciona a trama.

A solução com sucesso do conflito é um elemento estruturador de todas as narrativas das crianças de classe social desfavorecida e predominante nas das crianças de classe social favorecida. Contudo, essa última apresenta uma narrativa em que ocorre o fracasso, em Romeu e Julieta, uma vez que a história de amor não tem um final feliz. Desse modo, constitui uma ruptura do

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modelo do conto infantil tradicional, o que implica a recepção de outra forma de organização do universo da ficção e, conseqüentemente, do mundo real.

2.32.3 A representação do tempo A representação do tempo

Nos textos reproduzidos/produzidos pelas crianças de classe social desfavorecida, observa-se que a realização do tempo é iniciada, em Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar, A princesa Sherazade, O pulo do gato, A relva azul, Curiosidade premiada, De trote em trote agarrei o velhote, a partir de um traço lingüístico: o marcador narrativo temporal “era uma vez”, que funciona como portal de entrada para o mundo da ficção. Sendo assim, percebe-se a escolha do tempo mítico/a-histórico para o desenvolvimento do fluxo narrativo, o que possibilita ao narrador situar o leitor noutro tempo e espaço, em relação ao atual, sendo possível, então, transitar entre o real e o imaginário.

Seguindo essa mesma perspectiva temporal, as demais narrativas são introduzidas pelos marcadores “um dia” (João e Maria e A festa no céu), “uma vez” (Os três porquinhos), “num belo dia” (A cigarra e a formiga), os quais têm o mesmo papel da expressão “era uma vez”, tendo em vista que inserem o leitor no

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mundo da ficção e não oferecem nenhuma precisão em relação ao momento em que aconteceu o fato a ser narrado, materializando, assim, o tempo mítico. Tais marcadores cumprem também uma função situacional, já que descrevem para o leitor o contexto da trama em que as personagens principais estarão inseridas e as ações, desenvolvidas.

Coerente com a opção pelo uso do tempo mítico, o narrador, em Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, A princesa Sherazade, João e Maria, Os três porquinhos, A cigarra e a formiga, A relva azul e De trote em trote agarrei o velhote, encerra o enredo com a expressão temporal “e viveram felizes para sempre”, cujo verbo se encontra no pretérito perfeito do indicativo, denotando um fato passado já concluído, mas cujos efeitos perduram no presente, bem como no futuro por causa da locução adverbial de tempo indicadora de futuro. Assim sendo, reforçam a idéia de tempo eterno, imutável, que se repete sempre igual, sem evolução nem desgaste.

Nas demais histórias, o narrador não usa a expressão citada anteriormente para finalizar o enredo, uma vez que em O casamento da princesa Nuriar acontece a realização de dois casamentos, ficando implícita a mesma conotação, já que o tempo verbal utilizado é o pretérito perfeito, que indica ações concluídas. A trama, em A festa no céu, é concluída com a solução do problema de D. Tartaruga, resultado de uma ajuda divina, que pode ter o mesmo valor ou tom do final feliz expresso usualmente. Em O pulo do gato, o enredo é finalizado com a vitória do gato sobre a onça sem a presença de nenhum outro indício. Já em

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Curiosidade premiada, a oração “e esta família viveu muitas curiosidades e aventuras” encerra a história, a qual tem o mesmo teor semântico de “e viveram felizes para sempre”, na medida em que dá igualmente um caráter de permanência.

Para reforçar a noção mítica do tempo, observou-se a presença de expressões temporais tais como “um dia” (Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, A princesa Sherazade, O pulo do gato, De trote em trote agarrei o velhote), que é utilizada para marcar o início de um novo evento na narrativa; “passaram alguns dias” (Branca de Neve e os sete anões), “mais um dia” (O casamento da princesa Nuriar), “depois” (A princesa Sherazade e A festa no céu), “quando” (A princesa Sherazade e O pulo do gato), “passou noite, passou dia” (A princesa Sherazade), “passou muito tempo”, “naquela mesma noite”, “quando amanheceu num certo dia”, “aí anoiteceu”, “no outro dia” (João e Maria, O pulo do gato e De trote em trote agarrei o velhote), “aí todo dia”, “aí um dia” (João e Maria), “os dias passaram” (A cigarra e a formiga), “uma hora mais tarde”, “é hora de ir embora” (A festa no céu), “na hora” (O pulo do gato), “no dia do encontro” (De trote em trote agarrei o velhote), que indicam o desenvolvimento linear do fluxo narrativo no tempo, isto é, as expressões funcionam como elementos marcadores da alteração nas ações das personagens e contribuem para a ordenação dos fatos. Entretanto, nota-se que a presença desses marcadores tem um caráter de indefinição, visto que apenas dão uma seqüência aos fatos sem localizá-los num momento histórico.

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O marcador conversacional “aí”, típico da língua oral, que contribui para o andamento do fluxo narrativo, aparece apenas em João e Maria e Os três porquinhos, com a finalidade de indicar a sucessão dos acontecimentos. Ressalta-se que, no segundo texto, ele é utilizado somente no início da história, sendo substituído pela conjunção aditiva “e”, que tem a mesma função. Dessa forma, percebe-se que, para imprimir uma progressão ao texto, as crianças passam a recorrer a elementos lingüísticos próprios da língua escrita para representar o tempo. Isso indicia um maior contato com o texto escrito e a pressão da escola para exclusão dessa partícula oral na construção de narrativas.

As versões originais de Cinderela, A princesa Sherazade, A cigarra e a formiga são marcadas pela questão do tempo, tendo em vista que as ações importantes da trama dependem desse aspecto. Nos textos reproduzidos/produzidos, os narradores não deixaram de apresentar essas marcas, como se observa na verbalização, por duas vezes, da expressão “meia-noite”, para indicar o momento de retorno de Cinderela para casa; da partícula “passou dia, passou noite”, que dá idéia da movimentação temporal à história de Sherazade, na medida em que indicia configurar as 1001 noites; e das estações do ano, inverno e verão, que servem de pano de fundo para apresentar uma proposta ideológica a partir do conflito entre a cigarra e a formiga.

Os textos Cinderela e A cigarra e a formiga apresentam uma elaboração mais complexa quanto ao tempo em relação aos demais, em face de a presença de prolepses,10 que indicam etapas 10 A prolepse corresponde a todo o movimento de antecipação, pelo discurso,

de fatos cuja ocorrência, na história,é posterior ao presente da ação. Cf. GENETTE, op. cit.

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futuras. No primeiro, a antecipação ocorre no momento em que a fada-madrinha dá o aviso sobre o horário em que ela deve voltar do baile; e no segundo, quando a formiga avisa à cigarra que ela irá se arrepender com a chegada do inverno, o que é confirmado posteriormente, e quando a cigarra se compromete a trabalhar no próximo verão.

Outro elemento que contribui para a ordenação do fluxo narrativo é o jogo dos tempos verbais. Ocorre com maior incidência a utilização do pretérito perfeito e do imperfeito, os quais localizam as ações num primeiro ou segundo plano, respectivamente. Contudo, observa-se o predomínio do primeiro em face de a ênfase estar centrada nos eventos mais importantes do enredo, já que as condições de produção oferecidas no processo de construção dos textos, de certo modo, condicionou à escrita de um texto curto por causa dos fatores tempo e memória. Em vista disso, na etapa de seleção das ações a serem verbalizadas, as crianças preferem expressar através do pretérito perfeito as ações mais importantes, as quais são classificadas como concluídas.

As marcas lingüísticas temporais e o jogo entre os tempos verbais materializam uma ordenação linear das ações em começo, meio e fim, configurando um tempo cronológico. Entretanto, nota-se que ele está submetido a um tempo mítico, já que a cronologia não situa num momento histórico a narrativa, ou seja, o papel do tempo cronológico é trazer até a superfície do texto o fluxo da narrativa, o qual é simplificado em face da capacidade cognitiva das crianças, o que não quer dizer que elas sejam limitadas, mas

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que provavelmente só esse tipo de estrutura linear tenha sido apresentado a elas.

A estrutura do conto infantil é reproduzida em todos os textos de modo que o escoar do fluxo narrativo por meio de uma linearidade temporal, em que uma situação inicial introduz o leitor no universo ficcional, seguida de um conflito gerador das ações, a partir das quais se vai desenrolar o processo de solução, resultando no sucesso; ou uma situação inicial introduz o leitor no universo ficcional, seguida de um conflito gerador de ações que resultam num fracasso, a partir do qual vai se desenrolar um processo de solução com vistas ao sucesso.

Nos textos reproduzidos/produzidos pelas crianças de classe social favorecida, o leitor também é introduzido no mundo ficcional pelo marcador narrativo “era uma vez” como se observa em Branca de Neve, A bela adormecida, A Cinderela, Sherazade, Chapeuzinho Vermelho, Três porquinhos, A jararaca, a perereca e a tiririca, Os três mosqueteiros. Em O rei leão, a partícula temporal utilizada é “naquele dia”, que cumpre a mesma função do marcador já citado.

Nas histórias Romeu e Julieta e A arca de Noé, esse marcador vem logo após uma pequena contextualização, como se nota na primeira, em que o narrador anuncia inicialmente que se trata de uma história e, desse modo, convida o leitor a entrar no mundo ficcional e o situa a respeito do contexto social em que se darão os acontecimentos. Após essa introdução, o narrador usa a expressão temporal “um certo dia” para dar início à trama propriamente dita. Na segunda, a história é iniciada com o uso do

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pretérito imperfeito, o que denota um período transcorrido não concluído, que situa o leitor sobre a condição da personagem principal e sua família para em seguida, através da partícula “um dia”, dar início à trama. Assim, tais elementos dão um tom de imprecisão que concretiza a idéia do tempo mítico/a-histórico.

Coerente com essa perspectiva mítica do tempo, nas narrativas Branca de Neve, A bela adormecida, A Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Três porquinhos, A arca de Noé, o final feliz é expresso pela oração “e viveram felizes para sempre”, sendo que na primeira história há uma pequena alteração nessa frase, pois o verbo está na terceira pessoa do singular, indicando que a ação se refere somente à Branca de Neve, já que é ela quem recupera a sua condição de felicidade.

Em A jararaca, a perereca e a tiririca tal expressão finalizadora não se faz presente, uma vez que nem todas as personagens sobreviveram, no entanto, as sobreviventes têm um final feliz, o que de certo modo retoma a noção de “viveram felizes para sempre”. Ela também não aparece em O rei leão e Sherazade, contudo, as frases “e esse é o ciclo da vida” e “se passaram mil e uma noites de histórias” têm a mesma força dessa expressão, porque representam um tempo que não se esgota e que se repete, portanto, um tempo mítico.

Romeu e Julieta é a narrativa que contraria a composição de um final feliz para os protagonistas, impondo ao leitor uma relação mais próxima do real, pois utiliza um elemento trágico como finalizador da trama, o suicídio. Entretanto, a tragicidade retoma, de maneira às avessas, o aspecto de eternidade que é

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constante e característico do tempo mítico, uma vez que o amor entre os dois jovens é imortalizado.

As expressões temporais “um dia” (Branca de Neve, A bela adormecida, A Cinderela, Três porquinhos, O rei leão), “numa linda manhã” (Branca de Neve), “quando” (A Branca de Neve, A Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Três porquinhos, A arca de noé, Os três mosqueteiros), “no mesmo dia” (Branca de Neve), “depois de um dia” (A bela adormecida), “depois” (A bela adormecida, O rei leão, Os três mosqueteiros), “de repente” (A bela adormecida), “por muito, muito tempo”, ”até que um dia”, “todos os dias”, “noite”, “passaram várias noites de histórias” (Sherazade), “enquanto” (Chapeuzinho Vermelho, Os três mosqueteiros), “certo dia”,“nessa hora”, “agora” (A jararaca, a perereca e a tiririca), “e passaram dias e dias na arca com chuvas”, “poucos dias” (A arca de Noé), “logo após”, “na hora”, “no dia seguinte”, “à noite” (Os três mosqueteiros) denotam o processo de organização do texto, o qual se materializa pela linearidade das ações, isto é, numa perspectiva cronológica. Todavia, tais elementos lingüísticos colocam os eventos narrativos num âmbito de imprecisão, reforçando a realização da história no tempo mítico.

Entre as narrativas, A Cinderela e A bela adormecida formam um pequeno grupo, cujas ações são marcadas pelo tempo, tendo em vista que o destino das protagonistas está relacionado com esse aspecto. Em vista disso, observa-se que os narradores mirins não deixaram de atentar para isso, pois os elementos indicadores de tempo “meia-noite” e “depois de dezesseis anos” estão presentes e funcionam como o ponto de

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partida para as alterações no destino das personagens principais, sendo que, para Cinderela, representam o início da retomada da felicidade e, para a bela adormecida, são o clímax da história, o momento de concretização do feitiço da fada-bruxa.

Em todas as narrativas, o jogo dos tempos verbais contribui para o delineamento do tempo por meio do pretérito perfeito e do imperfeito, havendo, contudo, um certo predomínio do perfeito, com vistas à valorização das ações concluídas pertencentes ao primeiro plano da narrativa, enquanto o imperfeito denota as ações de pano de fundo. O presente do indicativo aparece quando o narrador utiliza o recurso do discurso direto.

O emprego das marcas lingüísticas e do jogo dos tempos verbais nas narrativas das crianças de classe social favorecida, assim como nas das crianças de classe social desfavorecida, tem a finalidade de desencadear o fluxo linear da história, o que garante ao texto começo, meio e fim, situado numa cronologia regular que materializa o tempo mítico.

Enfim, o leitor é levado para o mundo da fantasia, com uma ordenação prevista pela forma do conto infantil, a qual é reproduzida em quase todos os textos. Entretanto, A menina da janela representa uma ruptura com relação a essa perspectiva temporal, visto que o narrador introduz a história com um relato pessoal, em 1ª pessoa, no pretérito, o que demonstra inicialmente uma construção do tempo com foco psicológico.

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Confrontando as duas amostras, evidencia-se em ambas uma preferência por uma construção da história num enfoque temporal mítico, havendo uma alteração na classe social favorecida, porque ela introduz uma narrativa numa perspectiva temporal distinta, cujo foco é psicológico, uma vez que o ponto de vista da narração não é de uma terceira pessoa, mas do narrador em primeira pessoa. Essa preferência relaciona-se com o fato de as crianças que compõem a amostra da pesquisa já estarem numa faixa etária em que o lógico e o racional já são elementos ativos no processo de compreensão do mundo, contudo a influência mítica ainda se faz presente. Outro aspecto que colabora para a permanência da tempo indefinido é a recepção literária restrita ao modelo do conto infantil tradicional.

Observa-se também que os elementos lingüísticos indicadores de tempo são utilizados como organizadores da narrativa dentro desse tempo mítico, visto que organizam as ações de modo linear, porém num tempo impreciso. Uma vez ordenadas as ações, elas são encaixadas na estrutura do conto tradicional, reforçando mais ainda o seu caráter linear.

2.42.4 A representação do espaçoA representação do espaço

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A construção do espaço, tendo como referência a perspectiva mítica, é materializada nas narrativas infantis reproduzidas/produzidas pelas crianças de classe social desfavorecida a partir da presença da expressão temporal “era uma vez” ou outras expressões similares como, por exemplo, “um dia”, “uma vez”, “num belo dia”, que introduzem o leitor no mundo narrativo ficcional, ou seja, tais partículas transportam o receptor a um espaço em que a convivência entre o real e o imaginário é pacífica. Dessa forma, o narrador usa a categoria tempo em quase todos os textos para introduzir a natureza do espaço, ficando restrito apenas ao texto Branca de Neve e os sete anões o uso, na sua superfície, de uma expressão espacial “no reino bem distante” para explicitar esse elemento estrutural da narrativa.

A confluência entre a realidade e a imaginação possibilita a concretização do espaço da narrativa por meio da constituição de personagens humanas, antropomorfizadas ou mágicas, as quais se movimentam num ambiente físico. Assim, observa-se que a identificação desse tipo de espaço é realizada através da verbalização de alguns nomes, tais como “casa” (Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, Os três porquinhos, O pulo do gato), “palácio” (A princesa Sherazade), “casa de doce” (João e Maria), “casa da formiga” (A cigarra e a formiga), “céu” (A festa no céu), “floresta” (Branca de Neve e os sete anões) e “mato” (João e Maria). Entretanto, a descrição é limitada, porque está restrita ao uso dessas nomenclaturas, dando a idéia de que tais lugares já possuem embutidos neles um conjunto de características que são necessariamente de conhecimento do

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leitor e que, portanto, não precisa ser explicitado. Somente o “céu” e a “casa dos anões e dos porquinhos” recebem adjetivação que contribuem para a sua composição.

Em face da decisão do narrador de contar com o conhecimento prévio do seu interlocutor, outros espaços de natureza física podem ser vislumbrados, pelo que fica implícito nos textos como o “castelo” em Cinderela e Branca de Neve e os sete anões. No primeiro, houve um baile oferecido por um príncipe e, no segundo, a madrasta é denominada rainha, bem como em O casamento da princesa Nuriar, por tratar-se da história de uma princesa. A “vegetação”, em A cigarra e a formiga, é identificada por causa do habitat natural em que a formiga trabalha e a cigarra canta. A “casa” e a “rua”, em Curiosidade premiada, são invocadas porque a menina Glorinha realiza sua mania de perguntar tanto em ambientes internos (aos pais, vizinhos, cozinheira) como externos (homem que ia passando). A “casa de Serafina” em De trote em trote agarrei o velhote, é descrita a partir de sua mania de passar trote, possuindo telefones em todos os lugares: banheiro, cozinha, sala e quarto.

Na narrativa A relva azul, o narrador não delimitou nenhum espaço físico, reforçando a idéia de indefinição espacial provocada pelo caráter mítico, como também pela pressuposição de um leitor dotado de um mesmo nível de conhecimento acerca da história, já que é uma criança, assim como o produtor, pois a orientação dada pelo pesquisador, no momento da escrita do texto, remetia a um leitor da mesma idade e série. A única pista sobre esse elemento restringe-se à indicação espacial do lugar

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onde poderia estar o objeto de desejo do protagonista, “a zona sul”, a qual não corresponde à versão original, pois no desenrolar das ações as personagens não possuem nenhuma indicação geográfica a respeito da localização da relva azul. Também é uma indicação urbana e contemporânea que não se coaduna com a proposta da história recontada, cujo caráter é rural.

A delimitação explícita ou implícita desses espaços físicos possibilita identificar também outras categorias dos mesmos, visto que eles podem ser caracterizados como internos ou externos. Percebe-se, então, que há um predomínio do primeiro tipo em relação ao segundo, o que não quer dizer que são mais importantes, uma vez que os conflitos muitas vezes ocorrem na confluência entre a “casa/casa dos anões/casa de doce/casa da formiga” e a “floresta/mato/vegetação/rua”, como em Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar, Os três porquinhos, João e Maria, O pulo do gato, A cigarra e a formiga e Curiosidade Premiada.

Em Cinderela, Sherazade e De trote em trote agarrei o velhote, as ações principais são realizadas dentro da “casa/castelo”, o que indica uma maior importância do espaço interno, porque é nele que a madrasta e as filhas entram em conflito com Cinderela, mas também é dentro dele que o príncipe encontra finalmente a protagonista. O “castelo” representa o momento do encontro das personagens principais (Cinderela/príncipe), bem como o local em que Sherazade conquista o príncipe com suas histórias. E é no espaço “casa” que

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Serafina realiza os trotes na busca de um companheiro, reforçando a caracterização de uma velhinha diferente.

Já em A festa no céu e A relva azul, o lugar do desenvolvimento do enredo é o externo, tendo em vista que é no céu a festa que D. Tartaruga se esforça para ir, mesmo não tendo asas. No segundo texto, fica implícito que o protagonista Pingo sai em busca da relva azul por meio da vegetação, que é o habitat natural dos animais.

O espaço configura-se nas narrativas a partir da categorização de urbano ou rural, havendo, no entanto, uma preferência pela organização das ações num ambiente rural, como se constata em Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, Os três porquinhos, O pulo do gato, João e Maria, A cigarra e a formiga, A relva azul, A festa no céu. O urbano aparece em menor proporção como em A princesa Sherazade, Curiosidade premiada e De trote em trote agarrei o velhote. Em vista disso, tal escolha reforça a concepção mítica do espaço porque é esse tipo de ambiente que se apresenta mais propício ou natural para a fusão entre o mágico e o real, enquanto o ambiente urbano denota uma maior proximidade com a realidade, eliminando o mágico e trazendo à tona uma organização mais racional e mais próxima do mundo contemporâneo.

A circulação das personagens nesses locais implica também a constituição entre si de relações sociais, criando, então, o espaço social. Dessa forma, “casa” ou ambiente familiar reflete, inicialmente, a relação de hierarquia social entre pais/filhos em Cinderela, Curiosidade premiada e O casamento da princesa

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Nuriar, entre madrasta/enteada em Cinderela, Branca de Neve e os sete anões e João e Maria. Saindo da esfera familiar, observa-se a configuração mais ampla do aspecto social a partir da relação autoritária entre rainha/caçador em Branca de Neve e os sete anões e príncipe/povo em A princesa Sherazade, bem como por meio da relação nobre/plebeu em Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, O casamento da princesa Nuriar e A princesa Sherazade, evidenciando as castas sociais.

Também constitui um espaço social a questão ideológica a respeito do trabalho, que se faz presente em A cigarra e a formiga, uma vez que a descrição do comportamento das personagens delimita os lugares de onde elas falam. Isso é materializado na relação estabelecida entre as mesmas, visto que “a formiga estava trabalhando como sempre” e “a cigarra sempre cantando”, isto é, o espaço da primeira é o do trabalho como produção capitalista e o da segunda, o artístico. Assim, a construção do espaço é realizada pela concepção de trabalho que encara a atividade artística como não-trabalho, apenas como lazer.

As relações sociais estabelecidas entre as personagens não só configuram um espaço social, mas, como são dotados de sentimentos, um espaço psicológico. Nesse sentido, na amostra não há uma descrição detalhada do comportamento das mesmas que indique com precisão esse aspecto, ficando explícitas através do desenvolvimento das ações que exploram os conflitos no âmbito familiar, como, por exemplo, entre madrasta/enteada em Cinderela, Branca de Neve e os sete anões e João e Maria, a

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competição entre irmãos em A princesa Sherazade, e a instabilidade da relação pais/filhos provocada pelo comportamento inusitado de Glorinha em Curiosidade premiada. No âmbito pessoal, o espelho funciona como o super ego da rainha-madrasta em Branca de Neve. Em De trote em trote agarrei o velhote, a caracterização da casa de Serafina reflete o comportamento inusitado da protagonista, visto que o trote, de acordo com as regras sociais, é um procedimento típico de jovens, bem como o do caçador em virtude da atitude de piedade para com a princesa em Branca de Neve e os sete anões, pois o seu papel era eliminá-la e não o cumpriu.

Nas demais narrativas, como não é apresentada uma movimentação psíquica mais explícita, a mudança de estado da felicidade/infelicidade/felicidade ou da infelicidade/felicidade das personagens é o elemento que pode configurar o espaço psíquico da história, já que a transformação projeta os sentimentos das mesmas.

Nos textos reproduzidos/produzidos pelas crianças de classe social favorecida a materialização do espaço também se realiza a partir das partículas temporais “era uma vez”, “naquele dia”, “um certo dia” e “um dia”, denotando uma indefinição tanto temporal como espacial, que introduz o leitor no mundo de ficção. Todavia, tal imprecisão é amenizada por meio da presença das expressões espaciais “um enorme castelo” (Branca de Neve), “um reino bem distante” (A bela adormecida), “Arábia antiga” (Sherazade), “terreno baldio” (A jararaca, a perereca e a tiririca). Apesar de tais denominações definirem o espaço, a dimensão por

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elas apresentada ainda possui um grau de indefinição elevado, mas plenamente aceitável em face da natureza ficcional do texto e do seu caráter mítico.

A descrição desses espaços físicos restringe-se à verbalização dos seus nomes, como se fosse desnecessário descrevê-los mais detalhadamente, visto que já são de conhecimento do leitor as suas características típicas, isto é, o narrador conta com um conhecimento prévio sedimentado a respeito dessas modalidades de espaço por parte do receptor. Sendo assim, cabe ao leitor preencher as lacunas deixadas pelo narrador quanto à montagem do espaço com os conhecimentos cristalizados que possui.

Outra modalidade de espaço físico verbalizada é a “floresta/bosque”, que representa o primeiro obstáculo enfrentado por Branca de Neve e o local onde está inserida a casa dos anões, como também o perigo para Chapeuzinho Vermelho, o lugar da moradia dos porquinhos e onde ocorre o conflito com o lobo. Ele também é o lugar de realização das ações de O rei leão, mesmo não sendo explicitado, mas que pode ser identificado a partir da agitação entre os animais com o nascimento do filho do rei leão, o qual aconteceu em cima da maior pedra do reino animal. Enfim, o habitat natural de um rei dos animais é sempre manifestado como sendo a selva.

A “arca de Noé” constitui outra delimitação física do espaço, apresentada já no título da história, cujo papel é proporcionar a conjunção entre o terreno e o divino, que fica subentendida pelas ações das personagens, uma vez que Noé e

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sua família representam a terra e Deus, o céu. Estabelece-se, então, o domínio do divino sobre o terreno em face da questão da desobediência do homem a Deus, que se manifesta sob a ira dos céus materializada na figura do dilúvio, e com o arco-íris confirmando a bondade divina.

Observa-se uma dificuldade na definição do espaço físico quando os textos reproduzidos são mais complexos, como Os três mosqueteiros, Romeu e Julieta e A menina da janela, uma vez que nas versões originais a delimitação dos espaços exige um maior rigor de detalhes, como nos dois primeiros exemplos, contrariando a tendência presente nos contos tradicionais, que é de simplificação através da indefinição espacial.

O narrador em Os três mosqueteiros não se preocupa em descrever com exatidão os espaços da narrativa, chamando atenção apenas para o lugar em que irão acontecer os duelos, a montanha. Também apresenta um elemento como caracterizador do espaço que não se coaduna com a narrativa, que é a presença de um trem, um indicador contemporâneo para o tempo da história. Os duelos, marcadores do conflito de D’Artagnan com os irmãos da namorada e com os mosqueteiros, indicam um espaço/tempo distante, tendo em vista que a realização do duelo resulta de um comportamento da Europa medieval.

Tais espaços também podem ser caracterizados a partir da categorização interno ou externo. Não há, porém, o predomínio exacerbado de um tipo, mas nota-se a presença, em maior proporção, de ações importantes realizadas no primeiro, como em Cinderela, A bela adormecida, Sherazade, A menina da janela e A

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arca de Noé. No que se refere ao segundo tipo, ocorre uma maior preferência em A jararaca, a perereca e a tiririca, Os três mosqueteiros e O rei leão. No entanto, em Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Os três porquinhos e Romeu e Julieta, acontece a confluência de ambos os tipos de espaço, isto é, entre a “casa” e a “floresta/praça”.

Quanto à natureza urbana ou rural do espaço nas narrativas, constata-se que há uma preferência pelo rural, como em Branca de Neve, A bela adormecida, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Os três porquinhos, O rei leão e A arca de Noé. Numa proporção menor, mas significativa, o ambiente urbano faz-se presente em A jararaca, a perereca e a tiririca, Sherazade, Os três mosqueteiros, Romeu e Julieta e A menina da janela. Desse modo, identifica-se um certo equilíbrio entre o urbano e o rural, o que denota a busca por um espaço não só da fantasia, mas também mais próximo do real.

Os locais já identificados, além de constituírem a natureza física do espaço, também funcionam como lugar de interação entre as personagens, o que desencadeia a formação do espaço social. Assim, a hierarquia social é o que caracteriza tal elemento, tendo em vista as relações estabelecidas no âmbito familiar entre pais/filhos em Chapeuzinho Vermelho e A bela adormecida, madrasta/enteada em A Branca de Neve e A Cinderela; no âmbito religioso entre Deus e Noé em A arca de Noé, e, principalmente, por meio da definição de castas sociais, como em Branca de Neve, A Cinderela, A bela adormecida, Sherazade, Romeu e Julieta, A jararaca, a perereca e a tiririca e O rei leão.

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A construção de um espaço de caráter psicológico fica mais evidenciada em Romeu e Julieta, por causa das atitudes de cunho trágico das personagens, e em A menina da janela, em face de o foco narrativo ser em primeira pessoa, o que denota as angústias provocadas pela incerteza de um primeiro amor ser ou não correspondido. Outro elemento que pode configurar esse espaço é o conflito de natureza familiar entre madrasta/enteada, em Branca de Neve e A Cinderela. Em Três porquinhos, a descrição do material das casas (palha, madeira e tijolos) reflete o grau de maturidade dos porquinhos, representando a personalidade de cada um. Nas demais narrativas, a passagem de estágios da felicidade/infelicidade/felicidade ou infelicidade/felicidade materializa o percurso psíquico das personagens, mas sem adentrar num detalhamento desse comportamento em vista de sua linearidade.

Confrontando as duas amostras, percebe-se que há uma convergência no uso de expressões de tempo que indicam imprecisão para introduzir o leitor num espaço de caráter ficcional. As crianças de classe social favorecida apresentam, no entanto, outras marcas lingüísticas como, por exemplo, “no reino distante”, que reforçam essa idéia de imprecisão, enquanto que as de classe social desfavorecida em sua grande maioria não o fazem. Por conseguinte, a indefinição é fruto da concepção mítica que as crianças têm desse elemento estrutural da narrativa, uma vez que introjetam o modelo do conto infantil tradicional.

A delimitação do espaço físico fica restrita à verbalização do nome dos ambientes sem haver nenhuma descrição que os

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particularizem. Isso mostra a construção desse tipo de espaço com base no conhecimento sedimentado a respeito desses locais e que o narrador supõe ser de domínio do leitor. Vale ressaltar a confluência entres os espaços internos e externos na construção da movimentação das ações principais, enquanto elemento estruturador da narrativa, principalmente, na amostra do estrato social desfavorecido, havendo no outro uma certa equivalência na utilização desses elementos.

No que se refere à localização do espaço nos universos urbano e rural, nota-se uma maior aproximação da amostra do grupo social desfavorecido com o rural, enquanto a do grupo social favorecido apresenta uma certa equivalência entre os dois tipos, muito embora o rural ainda seja mais forte. Isso significa a busca das crianças do segundo grupo por uma organização do mundo mais próxima da realidade, o que não quer dizer que tenham abdicado da fusão entre o mágico e o real.

A constituição do espaço social é definido pelas relações estabelecidas entre as personagens, que se materializam a partir da noção de hierarquia social presente nas narrativas, cuja demarcação fica mais evidenciada nas relações familiares e na constituição das castas sociais, que se constata com a mesma proporção nas duas classes.

Quanto ao espaço psicológico, a amostra confirma que são as crianças de classe social favorecida que ensaiam uma construção mais complexa na tentativa de revelar o psíquico, enquanto que as de classe social desfavorecida se limitam a

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materializar esse espaço por meio da mudança de estado das personagens sem, contudo, aprofundá-lo.

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