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Page 2: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Domício Proença Filho

Doutor em Letras e livre-docente em Literatura Brasileira

pela Universidade Federal de Santa Catarina

Professor titular e emérito da Universidade Federal fluminense

A linguagem literária

Edição revista e atualizada

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.

Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.

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© Domício Proença FilhoDiretor editorial Fernando Paixão Editor Carlos S. Mendes Rosa Editor assistente Frank de Oliveira Preparador de texto Eliel Silveira Cunha Coordenadora de revisão Ivany Picasso Batista Revisão Lumi Casa de Edição Estagiário Roberto Moregola

ARTE

Editora Cintia Maria da SilvaCapa e projeto gráfico Homem de Mello & Tróia DesignEditoração eletrônica Studio 3

EDIÇÃO ANTERIOR

Diretores Benjamin Abdala Júnior e Samira Youssef Campedelli Preparador de texto Pedro Cunha Júnior Coordenador de arte Antônio do Amaral Rocha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

P9531.8ª.ed.Proença Filho, Domício, 1936-

A linguagem literária / Domício Proença Filho. — 8.ed. — São Paulo : Ática, 2007. 95p. — (Princípios; 49)

Inclui bibliografia comentada ISBN 978-85-08-10943-2

1. Análise do discurso literário. I. Título. II. Série.07-0594.

CDD 401.41CDU 81'42

ISBN 978 85 08 10943-2 (aluno) ISBN 978 85 08 10944-9 (professor)

20078ª edição1ª impressãoImpressão e acabamento: Yangraf Gáfica e Editora Ltda.Todos os direitos reservados pela Editora Ática, 2007Av. Otaviano Alves de Lima, 4400 — São Paulo, SP — CEP 02909-900Tel..:(11)3990-2100-Fax: (11)3990-1784Internet: www.atica.com.br - www.aticaeducacional.com.br

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SumárioSumário

1. Introdução 5

Texto literário, texto não-literário 5

Literatura: conceitos 8

2. Literatura e linguagem 12

Mais um texto no percurso 12

Literatura e conhecimento 15

3. A linguagem 18

Conceitos 18

Sistema, comunicação e signo 20

Fatores do processo linguístico da comunicação e

funções da linguagem 21

Linguagem, língua e discurso 23

Discurso e estilo 25

Dimensões da linguagem 27

4. Arte literária, língua e cultura 30

Literatura, mímese e universalidade 30

Abertura e conotação 33

Cultura e arte literária 36

5. Características do discurso literário 40

Literatura e especificidade 40

Complexidade 41

Multissignificação 43

Predomínio da conotação 45

Liberdade na criação 46

Ênfase no significante 47

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Variabilidade 49

Modos de realização 50

Manifestações em prosa 50

As visões da narrativa, 51; Os personagens, 55; A ação, 56; O

tratamento do tempo, 57; O ambiente, 58; O estilo, 59

Manifestações em verso 62

O metro, 63; A rima, 67; As formas fixas, 69

Verso, prosa, gêneros literários 69

Questões em aberto 74

A questão do referente 74

Intertextualidade 75

Fechamento 78

6. Vocabulário crítico 80

7. Bibliografia comentada 85

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Pág. 05

1 1

IntroduçãoIntrodução

Texto literário, texto não-literárioTexto literário, texto não-literário

Imaginemos que, na comunicação cotidiana, alguém nos diga a seguinte

frase:

— Uma flor nasceu no chão da minha rua!

Conforme as circunstâncias em que é dita, isto é, de acordo com a

situação de fala, entendemos que se refere a algo que realmente ocorreu,

corresponde a um fato anterior ao seu enunciado e de fácil comprovação.

Mesmo diante de sua transcrição escrita, o que nela se comunica basicamente

permanece.

Num ou noutro caso, para veicular essa informação, o nosso interlocutor

selecionou uma série de palavras do idioma que nos é comum e, de acordo

com as regras que presidem o seu funcionamento e que todos conhecemos, as

dispôs numa sequência. A seleção feita e a sucessão estabelecida conferem à

frase uma significação que pode ser submetida à prova da verdade em relação

à realidade imediata. Como é fácil concluir, é isso que acontece ao nos

comunicarmos no dia-a-dia do nosso convívio social.

Retomemos a nossa frase inicial, agora ligeiramente modificada e

combinada com outros elementos:

Pág. 06

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

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Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros,

É feia. Mas é realmente uma flor.

Percebemos, desde logo, que estamos diante de uma utilização especial

da língua que falamos. O ritmo que caracteriza o texto, a natureza do que se

comunica e, ao chegar até nós por escrito, a distribuição das palavras no

espaço do papel justificam essa conclusão. A nossa frase-exemplo depende

também, como ato linguístico que é, da gesticulação e da entoação que a

acompanharem ao ser enunciada; por força, entretanto, de sua situação nesse

conjunto e da associação com as demais afirmações que a ela se vinculam,

abre-se para um sentido múltiplo, ganha marcas de ambiguidade: no contexto

do fragmento transcrito e da totalidade do poema de que faz parte "A flor e a

náusea", de Carlos Drummond de Andrade1, podemos entender essa flor como

esperança de mudança, por exemplo. Mas esse sentido que o texto a ela

confere não reproduz nenhuma realidade imediata; nasce tão-somente do

próprio texto. A flor dessa rua deixa de ser um elemento vegetal para alçar-se à

condição de símbolo, ganha uma significação que vai além do real concreto e

que passa a existir em função do conjunto em que a palavra se

Pág. 07

encontra. É claro que os versos remetem a uma realidade dos homens e do

mundo, mas para além da realidade imediatamente perceptível e traduzida no

discurso comum das pessoas, li o que acontece com essa modalidade de

linguagem, a linguagem da literatura, tanto na prosa como nas manifestações

em verso.

Na prosa, por exemplo, podemos encontrar a palavra flor em outro

contexto linguístico e com outro sentido, que lhe c conferido exatamente por

essa nova circunstância: trata-se do romance Memórias póstumas de Brás

Cubas, em que o termo aparece numa afirmação vinculada a um famoso

personagem criado pelo escritor: "Uma flor, o Quincas Borba"2.

1 ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In:______. Nova reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro/Brasília: J. Olympio/INL, 1983. v. 1, p. 112-3.2 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1959. v. 1, p. 433.

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Aí está um conteúdo inteiramente distinto do que se configura no poema

drummondiano e que só pode ser percebido de maneira plena quando a frase é

considerada na totalidade do romance em que se insere. É possível perceber a

estreita relação entre a dimensão linguística e a dimensão literária que envolve

a significação das palavras quando estas integram o sistema semiótico que é o

texto literário.

Os três exemplos que acabamos de examinar permitem algumas

conclusões.

A fala ou discurso é, no uso cotidiano, um instrumento da informação e da

ação. A significação das palavras, nesse caso, tem por base o jogo de relações

configuradoras do idioma que falamos. Vincula-se a uma verdade de

correspondência.

O mesmo não acontece com o discurso literário. Este se encontra a

serviço da criação artística. O texto da literatura é um objeto de linguagem ao

qual se associa uma representação de realidades físicas, sociais e emocionais

mediatizadas pelas palavras da língua na configuração de um objeto estético.

O texto repercute em nós na medida em que revele marcas profundas de

Pág. 08

psiquismo, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais.

O artista da palavra, co-partícipe da nossa humanidade, incorpora elementos

dessa dimensão que nos são culturalmente comuns. Nosso entendimento do

que nele se comunica passa a ser proporcional ao nosso repertório cultural,

enquanto receptores e usuários de um saber comum.

O discurso literário traz, em certa medida, a marca da opacidade: abre-se

a um tipo específico de descodificação ligado à capacidade e ao universo

cultural do receptor.

Já se percebe o alto índice de multissignificação dessa modalidade de

linguagem que, de antemão, quando com ela travamos contato, sabemos ser

especial e distinta da modalidade própria do uso cotidiano. Quem se aproxima

do texto literário sabe a priori que está diante de manifestação da literatura.

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Literatura: conceitosLiteratura: conceitos

A literatura é tradicionalmente entendida como uma arte verbal. A arte da

palavra, segundo Aristóteles. Mas isso diz pouco. Mesmo porque, durante

longo tempo, limitava-se às composições poéticas.

Considerado o termo, em sentido restrito, a partir de uma perspectiva

estética, isto é, como o equivalente à criação estética, o conceito de literatura,

como acontece com outros fatos culturais, não é matéria pacífica entre os

estudiosos que a ela se dedicam. Resiste ao rigor de uma conceituação. Assim

situado, tem vivido, ao longo da história, variações significativas. Foge ao

propósito deste volume rastrear tal percurso; indicam-se, entretanto, na

bibliografia do final do volume, algumas obras ampliadoras de esclarecimentos

nessa direção.

Tais circunstâncias não impedem, porém, que sejam deslocadas

concepções que a têm identificado, com maior relevo,

Pág. 09

no âmbito da cultura ocidental, em que pese a crise vivida, há algum tempo,

pela teoria da literatura.

Há os que entendem que a obra literária envolve uma representação e

uma visão do mundo, além de uma tomada de posição diante dele. Tal

posicionamento centraliza, assim, suas atenções no criador de literatura e na

imitação da natureza, compreendida como cópia ou reprodução. A linguagem é

vista como mero veículo de comunicação, e, como assinala Maurice-Jean

Lefebve, "a 'beleza' da obra resulta, então, de um lado, da originalidade da

visão, e, de outro, da adequação de sua linguagem às coisas expressas"3. E a

chamada concepção clássica da literatura.

No século XIX, os românticos acrescentam algo a esse conceito: à luz da

ideologia que os norteia, entendem que ao artista cabe a visão das coisas

como ainda não foram vistas e como são profunda e autenticamente em si

mesmas. Associa-se ao texto literário, desse modo, a valorização da

subjetividade. O que não impede que teorizadores como Mme. de Staël, no seu

3 LEFEBVE, Maurice-Jean. Structure du discours de la poésie et du récit. Montreux: Éditions de La Baconnière, 1971. p. 14.

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De la Lit-térature considerée dans ses rapports avec les institutions sociales,

livro de 1800, ainda entendam que, em sentido amplo, como assinala Luiz

Costa Lima, a literatura englobe "todos os escritos filosóficos e as obras de

imaginação, 'tudo o que, enfim, concerne ao exercício do pensamento nos

escritos, com exceção das ciências físicas'"4.

A segunda metade da mesma centúria assiste a uma mudança

significativa: o núcleo da conceituação se desloca para o como a literatura se

realiza. Sua especificidade, segundo essa nova visão, nasce do uso da

linguagem que nela se configura.

Pág. 10

Em texto de 1972, Algirdas-Julien Greimas acentua a relatividade do

conceito, ao vincular a interpretação da "literariedade", ou seja, das

características que tornam "literário" um texto, "a uma conotação sociocultural e

sua consequente variação no tempo e no espaço humanos"5.

E, no ano seguinte, Michel Arrivé, reitera o posicionamento, ao afirmar

que "a literatura é o conjunto dos textos recebidos como literários numa

sincronia sociocultural dada"6.

Paralelamente, o caráter ficcional que, durante largo tempo, foi

considerado uma das características básicas do texto de literatura, entendida a

ficção como fingimento, resultante do ato de fingir, tem sido posto em questão.

Para alguns especialistas contemporâneos, o ficcional não se confunde com o

falso: nele se abriga alguma coisa captada da realidade.7

A conceituação da literatura, assim, permanece em aberto, na medida em

que acompanha o dinamismo da cultura em que se insere.

A questão fundamental, e que continua desafiando os especialistas, é a

4 Cf. LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 326-27. V. STAËL-HOLSTEIN, L. G. de Necker. De la littérature considerée dans ses rapports avec les institutions sociales. G. Gengembre e J. Goldxink (eds.). Paris: Flammarion, 1991.5 GREIMAS, Algirdas-Julien et al. Essais de sémiotique poétique. Paris: Larousse, 1972. p. 6.6 ARRIVÉ . Michel. La sémiotique littéraire. In. POTTIER, Bernard (Dir.). Le langage. (Les dictionnaires du savoir moderne). Paris: Bibliothèque du CEPL, 1973. p. 271.7 Cf. pro domo nostra, LIMA, Luiz Costa, op. cit., texto de Sérgio Alcides na orelha da 1ª capa e palavras do autor, na p. 21. Observe-se que o livro estabelece limites en-tre história, ficção e literatura, data de 2006 e foi escrito entre 2002 e 2005.

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caracterização da natureza das propriedades estéticas do texto literário e quais

as ligações entre ambas.

Se é difícil, entretanto, conceituar ou definir, por meio de palavras, certas

realidades do mundo, isso não significa que deixem de existir os elementos que

as singularizem.

É consenso ainda, na atualidade, que os aspectos estéticos da obra

literária podem ser alcançados por meio do texto e que todos eles têm uma

base linguística (sintática, semântica ou estrutural).

Pág. 11

Acredito que, se não podemos, até o momento, caracterizar plenamente a

especificidade da literatura, temos possibilidade, graças ao desenvolvimento

dos estudos e das pesquisas na área, de indicar traços peculiares e

identificadores do discurso literário enquanto tal. Sem a menor pretensão ou a

veleidade de decifrar o mistério da esfinge.

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Pág. 12

2 2

Literatura e linguagemLiteratura e linguagem

Mais um texto no percursoMais um texto no percurso

Vejamos agora um breve poema de Manuel Bandeira:

Irene no céu

Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no Céu:

— Licença, meu branco! E São Pedro bonachão:

— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.8

O texto centraliza-se na exaltação da humildade e da simplicidade, à luz

do cristianismo. Remete também a uma realidade social brasileira, não apenas

na vinculação a tal dimensão de religiosidade mas ainda a uma atitude

paternalista em relação

Pág. 13

ao negro, revelada na caracterização de Irene, no comportamento a ela

atribuído diante de São Pedro bonachão e na reação do santo porteiro do Céu

à sua atitude.

O poema mobiliza elementos de nossa emoção relacionados com a

formação cristã e com certos comportamentos sociais que, como brasileiros,

nos são peculiares.

8 LBERTINAGEM. In: ______. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1946. p. 125.

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Observe-se que a humildade e a simplicidade depreendidas dos versos

não se configuram apenas na parte de sentido de cada palavra que

corresponde à representação do mundo, mas sobretudo na parcela de

significação que nelas corresponde à capacidade de manifestar estados de

alma e exercer uma atuação sobre o próximo. O sentido do texto emerge do

ambiente linguístico em que os termos se inserem. Estes, como ocorre com os

citados versos drummondianos, também não reenviam necessariamente a uma

realidade passível de ser comprovada de forma imediata. A "verdade" que

neles se consubstancia funda-se na coerência.

O poema, ainda que capte algo da realidade, é o que é porque foi feito

como foi feito. Irene, essa Irene, passa a "viver" a partir de sua presença nesse

texto, por força da linguagem de que este último se faz, onde alguns

procedimentos se destacam em relação ao uso da língua portuguesa. O autor

valeu-se de termos do falar cotidiano; reproduziu formas da fala coloquial

despreocupada: ao atribuir ao santo o emprego da forma entra, em lugar de

entre, exigida pelo tratamento você, afastou-se da norma culta da língua, em

nome do efeito expressivo. Por norma, nesse sentido, entenda-se, como

registra o Dicionário de filologia e gramática de Joaquim Mattoso Câmara Jr., "o

conjunto de hábitos linguísticos vigentes no lugar ou na classe social mais

prestigiosa do país". De forma mais ampla, a norma pode ser caracterizada, de

acordo com Eugenio Coseriu, como "um sistema de realizações obrigatórias

consagradas do ponto de vista social e culturalmente: não corresponde ao que

Pág. 14

se pode dizer, mas ao que já se disse e tradicionalmente se diz na comunidade

considerada".9

Em se tratando de Bandeira, o aparente "erro" ajuda a traduzir a

naturalidade e a afetividade que marcam as palavras de São Pedro. O adjetivo

"bonachão" e a simplicidade da expressão "— Licença, meu branco!" —

popular, típica, coloquial — como que autorizam a forma "entra". Por outro

lado, para dar maior autenticidade ao que revela, o poeta recorreu ao diálogo;

dividiu a composição em duas estrofes: a primeira centrada na caracterização

9 COSERIU, Eugênio. Sincronia, diacronia e história: o problema da mudança linguística. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca e Mário Ferreira. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Edusp, 1979. p. 50.

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da figuração de Irene; a segunda, feita de elipses e entoação, vinculada à

caracterização de São Pedro e à ação de ambos, exigindo maior participação

do leitor para melhor captar o que no poema se comunica. Os versos se fazem

de emoção subjetiva, trazem elementos narrativos e até traços típicos da

linguagem dramática. Na sua feitura, nota-se, além disso, o aproveitamento do

falar simples da gente simples do Brasil, que ganha condição de linguagem

literária.

No texto de Bandeira, literário que é, inter-relacionam-se, interdependem-

se elementos fônicos, ópticos, sintáticos, morfológicos, semânticos, formando

um conjunto de relações internas, por meio das quais se revela uma realidade

que não preexiste ao poema, a não ser como potencialidade. Caracteriza-se

uma perspectiva existencial relacionada com o complexo cultural de que essa

manifestação literária é representativa, a partir das vivências de um escritor

brasileiro. Configura-se um posicionamento ideológico na visão de mundo do

autor.

Na abertura para a descodificação, essa matéria cultural, veiculada por

meio das palavras da língua aproveitadas no código literário, pode ser

apreendida pelo leitor ou ouvinte do poema,

Pág. 15

com maior ou menor grau de informação estética, na dependência, reitero, do

seu universo cultural.

No percurso dessa apreensão, situa-se a dimensão conotativa, chave da

plurissignificação do texto literário, como se explicitará adiante.

Literatura e conhecimentoLiteratura e conhecimento

Longe estamos de penetrar totalmente no mistério do processo criador da

poesia. As considerações feitas sobre o texto de Bandeira limitaram-se a

alguns aspectos da manifestação literária em verso. Elas permitem, entretanto,

algumas deduções e conclusões.

Para revelar o que se consubstancia no poema, o autor, como é óbvio, se

valeu da língua portuguesa do Brasil e, a partir dela, buscou caracterizar uma

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realidade apoiada em vivências humanas. O que depreendemos de suas

palavras, porém, ultrapassa os limites da mera reprodução ou referência, para

nos atingir com um tipo de informação que não conseguimos mensurar ou

traduzir plenamente, vai além dos limites individuais do codificador e atinge

espaços totalizantes. A linguagem literária — concretização de uma arte, a

literatura — é marcada por uma organização peculiar.

A arte é um dos meios de que se vale o homem para conhecer a

realidade.

Esta última se efetiva na constante relação entre homem e mundo, vale

dizer, entre sujeito e objeto, como costumam lembrar os filósofos.

Nesse jogo dialético, o homem busca aceder à interioridade da sua

essência, para melhor saber de si e situar-se. E, no seu percurso existencial,

tem procurado conhecer a si mesmo, o mundo, a sua relação com os outros, a

sua relação com o mundo.

Pág. 16

Todo conhecimento se caracteriza como uma representação, como um

tornar de novo presente a realidade em que vivemos, para que dela tenhamos

uma visão mais clara e profunda, que escapa à nossa percepção imediata.

Toda representação, nesse sentido, configura uma interpretação. "O homem é

a presença de todas as determinações de uma interpretação. Rejeitá-las seria

negar a própria existência. Portanto, o homem é um arranjo existencial

definido, articulado, situado. É uma circunstância, dizia Ortega y Gasset", e

lembra Arcângelo Buzzi, na sua Introdução ao pensar.10

Esse interpretar se clarifica por meio de uma linguagem.

A linguagem converte-se, desse modo, como destaca Eduardo Portella,

na "fonte de toda e qualquer realidade; é precisamente a realidade mais livre, a

mais aberta".11 Claro está que a natureza do compromisso entre a literatura e a

cidadania reveste-se de traços ideológicos. Mas a reflexão que propicia abre-se

ao necessário questionamento. O oxigênio da arte é a liberdade. E isso vale

10 BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar. 3. ed. Petrópolis. Vozes. 1973. p. 51. 11 PORTELLA, Eduardo. Fundamento da investigação literana. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981. p. 74.

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tanto para o escritor como para o leitor.

O texto literário repercute em nós, na condição de leitores ou ouvintes, na

medida em que revele traços profundos do nosso psiquismo, coincidentes com

o que em nós se abrigue como seres sociais. O artista da palavra, co-partícipe

de nossa humanidade, incorpora elementos dessa dimensão que nos são

culturalmente comuns. Nosso entendimento do que no texto se comunica

passa a ser proporcional ao nosso repertório cultural.

O texto literário como tal pode ser lido, criticamente, no nível de superfície

ou de profundidade, considerada a polissemia que o caracteriza, com base em

três enfoques: em função de sua relação com aspectos existenciais,

destacados processos

Pág. 17

cognitivos e éticos, e motivações nele configurados; podemos centrar a leitura

nas dimensões sociais ou psicossociais que nele se fazem presentes,

privilegiadas a relação entre a literatura e o social, a literatura e a história, a

literatura e a cultura; podemos nuclearizá-la no diálogo intertextual, que

privilegia influências. Alfredo Bosi, em livro de 2006 em que trata das Memórias

póstumas de Brás Cubas, aponta tais linhas de abordagem e assinala que

destacam respectivamente aspectos expressivos, miméticos e construtivos.12

Uma leitura como a que o crítico propõe para a compreensão do olhar

machadiano resiste à limitação da perspectiva centrada num determinado perfil

do narrador, pautada numa autonomia compacta. Ela exige, como melhor

resposta, "uma combinação peculiar de vetores formais, existenciais e

miméticos, sem que uma instância monocausal tudo regule e

sobredetermine".13 O crítico defende, desse modo, uma visão múltipla e

integradora, que exige uma perspectiva hermenêutica, vale dizer, interpretativa,

perspectiva que tem se revelado das mais promissoras nos espaços da crítica

literária, o que não invalida outras focalizações, desde que assumidas como

setorizadas.

O texto de literatura pode ainda ser considerado como pretexto para a 12 Cf. Bosi, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.13 BOSI, Alfredo. Op. cit. p. 50-1.

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compreensão da língua, seu ponto de partida, procedimento bastante comum

na realidade pedagógica brasileira. Costuma também ser associado ao estudo

de outras manifestações culturais.

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Pág. 18

3 3

A linguagemA linguagem

ConceitosConceitos

Apesar do ceticismo com que alguns estudiosos encaram a

caracterização da linguagem, creio útil destacar, por pertinentes ao nosso

objeto de estudo, alguns conceitos com que se tem tentado configurá-la:

• A linguagem é uma das formas de apreensão do real. O ser humano

vive em permanente e complexa interação com a realidade e a apreende de

várias maneiras, por exemplo, através dos sentidos. Mas, como lembra o

linguista Iouri Lotman, as informações que o envolvem, os sinais que a vida lhe

envia exigem, para um melhor desempenho na luta pela sobrevivência, que ele

os decifre e os transforme em signos capazes de permitir-lhe comunicar-se.14

Vale dizer, ele precisa transformar essas informações e esses sinais em

elementos de uma linguagem para assegurar-lhes a perfeita compreensão de

que decorre o pleno aproveitamento de importantes oportunidades no seu

percurso de vida.

Para certos teóricos, acrescento, a linguagem, ao converter a realidade

em signos, ultrapassa as limitações da apreensão

Pág. 19

sensorial para permitir um desvelamento (um "retirar de véus") do real em

relação ao sujeito. É, por outro lado, uma forma de organizar o mundo que nos

cerca.

• A linguagem é a faculdade que o homem tem de expressar seus estados

mentais através de um conjunto de sons vocais chamado língua, que é ao

mesmo tempo representativo do mundo interior e do mundo exterior, propõe a

clássica lição de Ernst Cassirer que pode ser lida nas páginas 91 e 92 da sua

14 Cf. LOTMAN, Iouri. La structure du texte artistique. Paris: Gallimard, 1973. p. 29.

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obra lançada na tradução espanhola com o título Psicologia del lenguaje, pela

Paidós, em Buenos Aires.

Sob essa visão, centrada de maneira óbvia no sujeito, a linguagem é

entendida como uma atividade que apresenta um aspecto psíquico (linguagem

virtual) e um aspecto propriamente linguístico (linguagem realizada) que

compreende, por sua vez, o ato linguístico (realidade imediata) e o repertório

dos atos linguísticos (material linguístico). No âmbito desse posicionamento, a

língua é uma abstração, um conjunto organizado de aspectos comuns aos atos

linguísticos, vale dizer, em termos técnicos, um sistema de isoglossas.15

Cabe esclarecer que a linguística tem como objeto o estudo da linguagem

falada e articulada, ou seja, aquela que se concretiza nas línguas naturais. Os

demais sistemas são objeto de interesse da semiótica ou semiologia, entre eles

o sistema de comunicação usado pelos animais (zoossemiótica), as

comunicações táteis, os sinais olfativos, os códigos do gosto, os códigos

musicais, o sonho, a pintura, a literatura e outros.

• A linguagem, como acentua Tatiana Slama-Casacu, na página 20 de

seu Langage et contexte (Haia, 1961), é um conjunto complexo de processos

— resultado de uma certa atividade psíquica profundamente determinada pela

vida social — que

Pág. 20

torna possível a aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer. Eis-

nos de novo ante um conceito restrito. Essa dimensão se amplia, ainda na

palavra de Lotman, quando afirma que "por linguagem entendemos todo

sistema de comunicação que utiliza signos organizados de modo particular".16

Sistema, comunicação e signoSistema, comunicação e signo

Esse último conceito de linguagem nos conduz didaticamente à

explicitação de sistema, comunicação e signo.

Sistema é um conjunto organizado. Dizer "organizado" pressupõe

15 Cf. COSERIU, E. Teoía del lenguaje y linguística general. 2. ed. Madri: Gredos, 1969. p. 91-2.16 LOTMAN, Iouri. Op. cit. Paris: Gallimard, 1973. p. 34-5.

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princípios organizatórios que conferem singularidade ao conjunto. Diante das

múltiplas modalidades de linguagem, cumpre, pois, conhecer esses princípios,

se desejarmos dela nos assenhorear e assegurar a eficácia da comunicação

que por seu intermédio se processa.

Por comunicação compreende-se, ainda em sentido restrito, a troca de

mensagens ou informações entre seres humanos. Se se pensa na etimologia

da palavra, pode ser entendida como a faculdade que o homem tem de tornar

comum a outrem seus pensamentos, sentimentos e desejos e as coisas do

mundo que o cercam. Em sentido amplo, envolve também a realidade técnica

da relação entre o homem e as máquinas (por exemplo, os computadores) e

das máquinas entre si, além de estender-se ao mundo animal e aos sistemas

próprios do interior do indivíduo, como, por exemplo, os sinais transmitidos

pelos feixes de nervos do organismo.

Claro está que, quando alguém "fala consigo mesmo", está representando

simultaneamente dois falantes.

Signo é outro termo de conceituação ampla e complexa, mas, de maneira

geral, e em sentido lato, pode ser entendido, se-

Pág. 21

gundo Charles Sanders Peirce, como qualquer elemento que, sob certos

aspectos e em certa medida, representa outro.

À luz das posições do mesmo estudioso, podemos identificar três

modalidades de signo, em relação àquilo que designam: o signo índice ou

índex, que mantém relação direta com o que representa (é o caso de uma

impressão digital, por exemplo); o signo ícone, que tem analogia ou

semelhança com o que representa (uma fotografia, uma estátua, um esquema);

o signo símbolo, que se baseia numa convenção (as palavras de uma língua,

as bandeirolas usadas na comunicação marinheira, os sinais de trânsito etc).

Essas modalidades admitem superposições: a cruz, por exemplo, enquanto

instrumento de flagelação, é um ícone; enquanto representação do

cristianismo, é um símbolo; a impressão digital pode envolver dimensões de

ícone e de índice, e ganha caráter simbólico quando, por exemplo, passa a

representar uma entidade ou uma empresa; as palavras onomatopaicas são

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símbolos-ícones: farfalhar (de sedas), cacarejar (de galinhas) etc.17

Fatores do processo linguístico da comunicação e funções da linguagemFatores do processo linguístico da comunicação e funções da linguagem

O processo da comunicação implica fatores e funções que têm sido objeto

de preocupação de vários estudiosos, entre eles Roman Jakobson, para

ficarmos apenas numa perspectiva linguística. Para esse especialista, cada ato

de comunicação verbal envolve, na linguagem comum, um remetente que

envia uma mensagem por meio de um código a um destinatário, estabelecido

entre os interlocutores um contato que envolve um canal físico e a necessária

conexão psicológica. A mensagem enviada é compreendida por-

Pág. 22

que se refere a um contexto extra verbal e a uma situação efetivamente

existente anteriores e exteriores ao ato da fala.

Remetente ou emissor, mensagem, código, destinatário ou receptor,

contato e contexto são, portanto, os seis fatores do processo linguístico da

comunicação.

A partir deles, o citado linguista aponta as conhecidas seis funções da

linguagem:

a) função referencial ou denotativa — pela linguagem nós nos referimos

às coisas do mundo que nos cerca e às do nosso mundo interior; a linguagem

denota, representa o mundo;

b) função expressiva ou emotiva — a linguagem é um meio de

exteriorização psíquica; as interjeições são um exemplo marcante dessa

função;

c) função conativa (de conação, que significa tendência consciente para

atuar) ou apelativa — quando falamos ou escrevemos, exercemos maior ou

menor influência sobre o nosso interlocutor. A linguagem funciona como

atuação social ou como apelo. Os verbos no imperativo acentuam bem a

presença dessa função, e, sob esse aspecto, é significativa a sua utilização tão

17 Cf. PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 28-9.

Page 22: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

frequente nas mensagens da propaganda e da publicidade;

d) função fática — caracteriza-se quando a mensagem busca estabelecer

ou interromper o que se está comunicando. São exemplos frases como "Alô!",

"Estão me entendendo?", "Certo?", "Está tudo claro?";

e) função metalinguística — ocorre quando o emissor e o destinatário

verificam se estão usando o mesmo código, quando explicitamos termos da

própria linguagem usada: Literatura é a arte da palavra;

f) função poética ou fantástica — evidencia-se quando, através dos

signos, se "cria" intencionalmente uma realidade, configurada sobretudo numa

obra de arte literária.18

Pág. 23

As três primeiras funções apontadas por Jakobson — a representativa, a

emotiva e a conativa — foram anteriormente caracterizadas por Karl Buhler, à

luz da psicologia. Para esse estudioso alemão, a linguagem é um meio

precípuo de exteriorização de estados de alma (manifestação psíquica), exerce

uma atuação sobre o próximo na vida comum (atuação social ou apelo) e

estrutura a nossa experiência mentada (função representativa).

Nos atos de linguagem, várias dessas funções se apresentam

concomitantemente e estabelece-se entre elas uma certa hierarquia.

Linguagem, língua e discursoLinguagem, língua e discurso

Linguagem nos faz voltar ao conceito de língua, tal a relação que as

vincula.

A língua é um sistema de signos, ou seja, é um conjunto organizado de

elementos representativos. Como tal, é regida por princípios organizatórios

específicos e marcados por alto índice de complexidade: envolve dimensões

fônicas, morfológicas, sintáticas e semânticas que, além das relações

intrínsecas peculiares a cada uma, são também caracterizadas por um

significativo inter-relacionamento. A rigor, mais do que um sistema, a língua é

um conjunto de subsistemas que se integram.

18 Cf. JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1966. V. também______. Linguística e comunicação. 2. ed. rev. São Paulo: Cultrix, 1979.

Page 23: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Tomemos, por exemplo, a palavra rua: o seu significado tem a ver com o

jogo de oposições que marca o sistema fônico da língua portuguesa, o que se

aclara quando a comparamos com termos como lua, nua ou sua e lembramos

que o fonema se caracteriza por marcar a distinção de significado entre as

palavras de uma língua. A forma nasceu, no jogo morfológico dos verbos,

termina por um fonema que nos indica pessoa, tempo, aspecto e modo da ação

nela expressa; é a terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do

indicativo, diz a gramática: nasceu, por oposição a nasceram, nascemos,

nascem, nascesse, indicadores

Pág. 24

de outras pessoas, outros tempos, modos, aspectos, no sistema morfológico da

língua portuguesa; os aspectos sintáticos se fazem presentes na combinação

de umas palavras com as outras na frase de que fazem parte. A significação

global emerge, portanto, das relações fono-morfo-sintático-semânticas que

estão na base da organização desse complexo sistema.

Já que estamos tratando de significação, vale lembrar que, em termos de

palavra, esta resulta fundamentalmente, na sua condição de signo, da relação

entre o significante e o significado, dois aspectos que o identificam: o primeiro,

perceptível, audível; o segundo, produto dele, nele contido. E isso é ponto

pacífico, desde os estudos pioneiros de Ferdinand de Saussure.

Não nos esqueçamos também de que a língua, além de ser um conjunto

organizado de valores, é, simultaneamente, uma instituição social, é a

linguagem de urna sociedade. É constituída de elementos que têm um valor em

si e um valor em relação aos demais; o signo linguístico, como explicita Barthes

nos seus Elementos de semiologia, é como uma moeda: cada peça vale pelo

seu poder aquisitivo, mas vale também em relação às outras moedas de valor

maior ou menor.

A língua pode ser entendida ainda como a realização de uma linguagem,

um sistema de signos que permite configurar e traduzir a multiplicidade de

vivências caracterizadoras do ser de cada um no mundo.

Em sentido restrito, alguns linguistas a consideram um sistema de sons

vocais peculiares ao uso da linguagem pelo ser humano.

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Outros, como Celso Cunha, por exemplo, em sua Gramática do português

contemporâneo, a definem como "um sistema gramatical pertencente a um

grupo de indivíduos" e, como expressão da consciência de uma coletividade,

como o meio pelo qual esta concebe o mundo que a cerca e age sobre ele.19

Pág. 25

Podemos, ainda mais, entender saussurianamente com o citado Barthes

que a língua (langue) é "a linguagem menos a fala (parole), é, ao mesmo

tempo, uma instituição social e um sistema de valores. Como instituição social,

ela não é absolutamente um ato; escapa a qualquer premeditação: é a parte

social da linguagem"20. Língua e fala, diz ainda o semiólogo francês, "retiram

sua definição do processo dialético que as une: não existe língua sem fala, não

há fala fora da língua".21

Criação social, a língua vive em permanente mutação, acompanha as

mudanças da sociedade que a elege como instrumento primeiro de

comunicação.

Nesse processo, o exercício da linguagem produz uma espécie de

depósito sedimentário que ganha valor de instituição e se impõe ao falar

individual por meio do dicionário e da gramática.

Discurso e estiloDiscurso e estilo

Se a língua envolve uma dimensão social e se caracteriza por ser

sistemática, a utilização individual que dela fazemos, ou seja, a fala ou

discurso, é um conglomerado de fatos assistemáticos e, em relação a ela, "um

ato individual de seleção e atualização", para ficarmos com as palavras do

mesmo Barthes. Em outra perspectiva, entende-se o discurso como um

enunciado ou um conjunto de enunciados ditos e escritos por alguém na

direção de um destinatário. Enunciado, segundo alguns linguistas, é, em

função da significação, a unidade elementar da comunicação verbal, uma

19 CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970. p. 15.20 BARTHES, Roland. Le degré zero de l'écriture suivi de éléments de sémiologie. Paris: Gonthier, 1964. p. 85-6.21 Id., ibid.

Page 25: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

palavra ou sequência de palavras dotadas de sentido.22

Pág. 26

Cada pessoa tem o seu ideal linguístico. A língua coloca à disposição de

cada um, um múltiplo repertório de possibilidades. Ao assumir o discurso, o

indivíduo busca escolher os meios de expressão que melhor configurem suas

idéias, pensamentos e desejos. Essa escolha é que caracteriza o estilo.

Explicitando um pouco mais, podemos entender o estilo, em sua

dimensão individual, e a partir de conceito de Helmut Hatzfeld 23, como o

aspecto particular que caracteriza a utilização individual da língua e que se

revela no conjunto de traços situados na escolha do vocabulário, na ênfase nos

termos concretos ou abstratos, na preferência por formas verbais ou nominais,

na propensão para determinadas figuras de linguagem, tudo isso estreitamente

vinculado à organização do que se diz ou escreve e a um intento de

expressividade.

O estilo admite também uma dimensão coletiva, vinculada aos

denominados estilos de época, vale dizer, ainda adaptando definição do

mesmo Hatzfeld, à atitude de uma cultura que surge com tendências análogas

nas manifestações artísticas, na religião, na psicologia, na sociologia, nas

formas de polidez, nos costumes, vestuários, gestos etc.

No que diz respeito à literatura, essa modalidade só pode ser avaliada

"pelas contribuições dos estilos individuais, ambíguas em si mesmas,

constituindo uma constelação que aparece em diferentes obras e autores da

mesma era e parece informada pelos mesmos princípios perceptíveis nas artes

vizinhas".24 São esses traços que aproximam os textos examinados de Manuel

Bandeira e Carlos Drummond de Andrade e os situam

Pág. 27

22 Os conceitos de discurso e enunciado variam em função do enfoque.23 Apud COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: São José, 1966. p. 24.24 HATZFELD, Helmut. In: COUTINHO, Afrânio. Op. cit, p. 211. A dinâmica do processo cultural, a diluição das fronteiras da literatura, tem tornado complexa, ao longo do século XX e do atual, a configuração dos estilos epocais.

Page 26: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

como representativos do Modernismo na literatura brasileira, o que não impede

que se diferenciem por força dos caracteres próprios do estilo individual de

cada um, entre outros aspectos. Vale ressaltar: ambos os textos se valem da

língua portuguesa do Brasil; a partir dela, criam-se realidades, num uso

especial da linguagem, a arte literária; ao fazê-lo, os autores evidenciam

atitudes individuais que singularizam os seus textos e, ao mesmo tempo,

apresentam traços comuns que os aproximam como representativos de um

determinado momento da cultura e da arte literária do Brasil.

Dimensões da linguagemDimensões da linguagem

O texto literário, como se percebe, envolve dimensões universais,

individuais, sociais e históricas, mas de forma peculiar. Já a propósito da

linguagem em si, cabe a significativa afirmação de Coseriu: "A linguagem é

uma atividade humana universal, que se realiza individualmente, mas sempre

segundo técnicas historicamente determinadas (línguas)".25

Exemplificando: se nos referimos à linguagem como uma atividade,

quando, por exemplo, se diz de uma criança que ela ainda não fala, ou seja,

não utiliza a linguagem como meio de comunicação, estamos no âmbito do

nível universal; se sabemos que alguém, ao falar, está usando o português, o

italiano, o espanhol, o inglês etc, referimo-nos ao nível histórico; se

conseguimos identificar quem fala, estamos no âmbito do nível individual.

Podemos também considerar a linguagem, em cada um desses níveis,

como atividade criadora (ou simplesmente atividade), como saber (ou fato de

técnica) ou como produto.

Pág. 28

Desses critérios, resulta a caracterização de nove seções na estrutura

geral da linguagem. Vejamo-las num quadro resumidor da lição de Coseriu:

25 Lições de linguística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980. p. 91.

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Atividade Saber Produto

Universal A linguagem é "o falar (em geral) não determinado historicamente".

A linguagem é "o saber falar em geral".

A linguagem é "o 'falado', a totalidade do que se disse ou ainda do que se pode dizer, sempre que se considere coisa feita".

Individual A linguagem é o discurso, "o ato linguístico (ou a série de atos linguísticos conexos) de um determinado indivíduo numa dada situação".

A linguagem é "o saber relativo à elaboração dos 'discursos'".

A linguagem "é um texto (falado ou escrito)".

Histórico A linguagem "é a língua concreta, tal qual se manifesta no falar, como determinação histórica deste".

A linguagem é o saber "idiomático", "a língua enquanto saber tradicional de uma comunidade".

A linguagem "não se apresenta nunca de modo concreto, uma vez que tudo o que nesse nível se 'produz' (se cria) 'ou redunda numa expressão dita uma única vez' ou se adota e se fixa historicamente, passa a fazer parte do saber tradicional".

Níveis

Pontos de vista

Page 28: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Pág. 29

Aos três níveis citados correspondem três tipos de "conteúdo" linguístico

que se apresentam simultaneamente nos textos: a designação, o significado e

o sentido.

A designação é a referência à "realidade", isto é, a relação cada vez

determinada entre o signo e a "coisa" designada.

O significado, nosso velho conhecido, é, ainda na palavra do linguista, "o

conteúdo de um signo ou de uma expressão enquanto dado numa determinada

língua e exclusivamente por intermédio dessa mesma língua".

Por sentido, Coseriu entende "o conteúdo próprio de um texto, o que o

texto exprime além e através da designação e do significado". Um exemplo

clarificador: o sentido que, por força do ludismo, as palavras adquirem no texto

de uma anedota.

O plano de sentido e o plano do significado diferem, mas tanto o

significado pode coincidir com a designação como o sentido pode coincidir com

o significado; esta última coincidência se dá na linguagem comum informativa,

o que não acontece com o sentido no texto literário.

Page 29: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Pág. 30

4 4

Arte literária, língua e culturaArte literária, língua e cultura

Literatura, mímese e universalidadeLiteratura, mímese e universalidade

Toda criação artística exige um suporte material. Como, entre outros, a

tinta e a tela, na pintura; o mármore, a pedra, a madeira, o metal, na escultura.

Trata-se, no caso, de produtos naturais. A literatura tem como suporte uma

língua, um produto cultural.

A realidade imediata não se diz em plenitude.

A língua, na sua condição de concretização da linguagem da comunidade,

restringe-se à simples representação de fatos ou situações particulares,

observados ou inventados. A literatura se configura, tradicionalmente, quando,

ao tratar desses fatos ou situações, dimensiona-lhes elementos universais.

Se a linguagem verbal caracteriza uma "desrealização" da realidade ao

transformá-la em signos-símbolos, a mímese poética leva ainda mais longe

esse desrealizar-se, quando, a partir do fingimento do particular, atinge

espaços da universalidade.

O texto literário veicula uma forma específica de comunicação que

evidencia um uso especial do discurso, colocado a serviço da criação artística

reveladora.

Por revelação compreenda-se a configuração mimética do real. Tal

afirmação leva a um dos mais importantes conceitos ligados à arte literária:

mímese.

Pág. 31

O conceito, importante para a compreensão do fato literário, também não

é pacífico, e tem sido objeto da preocupação e do questionamento de inúmeros

estudiosos, desde a sua caracterização pelos gregos. Notadamente por Platão

Page 30: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

e Aristóteles. Entendido como "imitação", levou, nesse sentido, a várias

interpretações. Para os pitagóricos, por exemplo, correspondia à expressão ou

representação de estados de alma, e o produto dela resultante teria função

terapêutica, pois possibilitaria ao artista ou ao consumidor a liberação de suas

próprias emoções. Para Platão, a arte envolveria a representação do mundo

das aparências e das opiniões; a mímese, na concepção platônica,

corresponde à imitação da aparência da realidade. Para ele, a realidade é

"imagem" ("fantasma") de idéias eternas; a obra de arte seria "imagem de

imagem", simulacro da realidade, e não caracterizaria conhecimento do real. Já

para Aristóteles, a mímese corresponde à imitação das "essências"; imitar não

é duplicar o referente; implica conhecimento da natureza profunda do ser

humano e do mundo. O produto artístico que se concretiza a partir dela conduz

ao efeito de "purgação" liberadora (catarse).

Inicialmente mal descodificado com o sentido de "fotografia" ou "espelho"

da realidade, o conceito atravessa os séculos e, com essa acepção, domina,

não sem alguma controvérsia, a literatura clássica ocidental. A verdadeira

natureza da teoria aristotélica sobre a arte em geral e a literatura em particular

só começa a ser compreendida depois de Kant, de Hegel e de Croce, nos fins

do século XIX, e, sobretudo, após os estudos de Hölderlin e a tradução e

interpretação que da Arte poética de Aristóteles fez o escritor britânico S. H.

Butcher. A partir de então, a mímese passou a ser entendida como revelação

da plenitude do real.

Se a linguagem verbal caracteriza uma "desrealização" da realidade ao

transformá-la em símbolos que a essencializam, a arte literária amplia

radicalmente essa "desrealização". A mímese poética, acentua Merquior,

atinge, por meio da representação

Pág. 32

de particulares, os espaços do universal.26 Como lembra Eduardo Portella,

"devemos ao poeta Hölderlin a moderna revitalização do conceito de mímesis.

Ele faz ver que imitar não é copiar; é descer ao plano de articulação das

possibilidades subjacentes na coisa. A arte supre a natureza e, desse modo, se

26 Cf. MERQUIOR, J. Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. p. 8.

Page 31: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

relacionam sem se confundirem".27 Em síntese, mímese implica imitação da

natureza (physis para os gregos), no que esta tem de capacidade criadora.

Ao conceito de mímese vincula-se imediatamente a noção de catarse.

Aristóteles não deixou muito claro o sentido do termo. Como esclarece a

"Introdução" da Arte poética na edição de que me valho, emprega-o "na Política

(1341, livro VIII, cap. VII, 4) anteriormente à composição da Arte poética" e o

entende como "purificação", "purgação"; "uma expulsão provocada de um

humor incômodo por sua superabundância. Do mesmo modo que a música

apaixonada, a tragédia bem concebida deve determinar no auditório, que se

deixou empolgar pelas paixões expressas, um gozo que, no final do

espetáculo, dá impressão de libertação e de calma, de apaziguamento, como

se a obra tivesse dado ocasião para o escoamento do excesso de emoções".28

Ao lado da tradição como imitação das essências, a mímese envolve

ainda, na estética do Ocidente, conforme assinala Stefan Morawski, uma

tradição platônica (imitação das aparências) e uma tradição democrítica

(imitação das ações da natureza).29

Pág. 33

Como quer que seja, é consenso, entretanto, que, no texto literário, se

configura uma situação que passa a "existir" a partir dele como tal e que

caracteriza uma apreensão profunda do ser humano e do mundo, a partir de

tensões de caráter individual, como ocorre, por exemplo, em A paixão segundo

G. H., romance de Clarice Lispector, ou coletivo, como em O cortiço, de Aluísio

Azevedo, e que podem ainda configurar-se juntamente num mesmo texto, com

prevalência de uma ou de outra, ou de equilíbrio entre ambas.

Isso se dá num processo de constante diferenciamento, que permite

perceber dimensões de visões de mundo e a presença de ideologias. O

fenômeno literário se efetiva na inter-relação autor/texto/leitor. Já se percebe

por que a obra literária sempre admite diferentes interpretações. A linguagem

27 PORTELLA, Eduardo. Teoria da comunicação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. p. 34.28 ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética [Art rhétorique et art poétique]. São Paulo: Difel, 1964. p. 258-59. Cf., para o conceito de mímese, PROENÇA FILHO, DOmício. Estilos de época na literatura. 15. ed. 5ª reimpressão. São Paulo: Ática, 2002, p. 23-4.29 Cf. Mimesis. Semiótica, Ncuchâtel, 2(1); 36, 1970.

Page 32: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

que a caracteriza é necessariamente ambígua e em permanente atualização e

abertura, vinculadas estreitamente ao caráter conotativo que a singulariza.

Abertura e conotaçãoAbertura e conotação

A conotação, à luz do processo linguístico da comunicação e das funções

da linguagem, é, como registra Mattoso Câmara Jr., "a parte do sentido de uma

palavra que corresponde à sua capacidade de funcionar para uma

manifestação psíquica ou um apelo".30 Em outros termos, a conotação se

centraliza na parte do sentido das palavras ligadas às funções emotiva e

conativa.

Assim entendida, ainda de acordo com o mesmo linguista, a conotação

depende de fatores vários:

a) de aspectos fônicos do vocábulo, que podem "impressionar pela

harmonia ou pela cacofonia";

Pág. 34

b) "da associação com outras palavras, num dado campo semântico ou

em frases usuais e frequentes";

c) da própria denotação, que evoca sensações agradáveis ou

desagradáveis;

d) "de pertencer a palavra a uma dada língua especial, como uma língua

profissional, a língua literária ou a gíria";

e) "de se situar entre os arcaísmos ou os regionalismos";

f) "de impressões emocionais coletivas ou mesmo individuais,

caracterizando o estilo individual, como as coletivas caracterizam o estilo

coletivo de uma dada época".31

Numa forma linguística, a conotação se distingue da denotação, com a

qual se combina para dar a significação integral da referida forma.

30 CÂMARA Jr., J. Mattoso. Dicionário de filologia e gramática referente à língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1964. p. 88.31 Id., ibid

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Por denotação compreende-se a parte da significação linguística ligada à

função representativa ou referencial da linguagem.

Esclarecedoras, a propósito, são as palavras de Georges Kassai:

Uma importante distinção do ponto de vista do sentido é a feita entre a função referencial e a função emocional dos signos. Ela está na base das pesquisas estilísticas recentes e se vincula à oposição denotação/conotação já empregada pela lógica escolástica, mas admitida desde algum tempo na terminologia da Linguística moderna. Designada como "valor suplementar", a conotação seria "a definição em compreensão" ou "definição intensiva", enquanto a denotação é uma definição em extensão.32

Se considerarmos, em termos de estrutura, que, em todo sistema de

significação, esta resulta da relação entre um plano de expressão e um plano

de conteúdo, teremos, nesse nível, a

Pág. 35

denotação. Já na conotação, o plano de expressão é constituído de um sistema

de significação já dado. Explicito melhor, à luz de Hjelmslev e Roland Barthes,

que, a partir dessa terminologia, ampliam as noções saussurianas de

significante e significado. Para tanto, volto ao nosso exemplo inicial: "Uma flor

nasceu no chão da minha rua". Observe-se, ainda uma vez, que o que se

informa nesse enunciado se centraliza basicamente no referente, numa

orientação para a representação mental ligada aos signos que o constituem, ou

seja, para a denotação. Não nos esqueçamos de que consideramos o exemplo

no espaço da comunicação cotidiana.

Se nessa mesma frase a palavra "flor" deixasse, por força da situação de

fala e do contexto verbal, de corresponder a um elemento vegetal, para indicar,

por exemplo, um estabelecimento de ensino, uma sede de sindicato, já algo se

acrescentaria à relação plano de expressão/plano de conteúdo. O novo sentido

da palavra flor corresponderia, então, à relação significação 1 (nascida da

relação plano de expressão/plano de conteúdo no discurso comum) / plano de

conteúdo (que já não conduz simplesmente à idéia de elemento vegetal). O

32 Le sens. In: MARTINET, André (Dir). La linguistique. Paris: Denoël, 1969. p. 342.

Page 34: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

algo mais que se acrescentou ao signo situa-se, como já observamos, no

âmbito da conotação. No caso, esta se vincula à criação de uma metáfora, uma

figura de linguagem que, como tal, torna mais expressivo o uso da língua,

mesmo no discurso cotidiano. As figuras assim utilizadas se aproximam da

linguagem literária, mas, se não integram um texto literário, não ganham a

especificidade de representantes plenas desse tipo de linguagem que marca,

por exemplo, a frase quando no texto drummondiano ou no romance de

Machado de Assis.

A conotação implica um universo cultural. A propósito, José Guilherme

Merquior lembra que "Martinet considera conotativos os elementos do sentido

que não pertencem a toda a comunidade utilizadora de determinada língua", e

acrescenta:

Pág. 36

"a conotação das palavras, mais do que a sua denotação, varia entre os

grupos etariais, as classes sociais etc; ela é uma função das múltiplas

estratificações da comunidade linguística".33

Por via da conotação, pode-se, pois, partir do texto para o social, uma vez

que a literatura é, antes de tudo, um objeto de linguagem. E não nos

esqueçamos de que o texto literário envolve dimensões históricas e

ideológicas. E, portanto, sobretudo por força de sua dimensão conotativa que a

obra literária se abre às mais variadas interpretações.

Cultura e arte literáriaCultura e arte literária

A literatura é, pois, um sistema semântico em que se destaca a

conotação, e esta é estreitamente vinculada às diferenças sociais.

É preciso considerar ainda que só há literatura onde existe um povo e,

consequentemente, o desenvolvimento de uma cultura.

A matéria literária c cultural. O artista da palavra retira do mundo

33 Cf. MERQUIOR, J. Guilherme. Do signo ao sintoma. In:______. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense/Edusp, 1974. p. 129.

Page 35: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

elementos que, convenientemente organizados, podem representar totalidades

e constituir uma afirmação cuja força e coesão não se encontram ao alcance

dos profanos. Em outros termos, de acordo com Edward T. Hall, uma das mais

relevantes funções do artista é ajudar o leigo a estruturar o seu universo

cultural.34

Cultura é outro vocábulo multissignificativo; envolve cerca de duzentos e

cinquenta conceitos ditados pelas diferentes posições dos estudiosos; destaco

três deles:

Pág. 37

Uma cultura constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e

imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos,

orientam as emoções.35

À luz do pensamento católico,

pela palavra "cultura" em sentido geral, indicam-se todas as coisas com as quais o homem aperfeiçoa e desenvolve as variadas qualidades da alma e do corpo; procura submeter a seu poder pelo conhecimento e pelo trabalho o próprio orbe terrestre; torna a vida social mais humana, tanto na família como na comunidade civil, pelo progresso dos costumes e das instituições; enfim, exprime, comunica e conserva, em suas obras, no decurso dos tempos, as grandes experiências espirituais e as aspirações, para que sirvam ao proveito de muitos e ainda de todo o gênero humano.36

Finalmente, à luz da antropologia, podemos também entender cultura

como

o conjunto e a integração dos modos de pensar, sentir e fazer adotados por uma comunidade, na busca de soluções para os problemas da vida humana associativa.

Cultura, como se depreende dessas acepções, implica sociedade.

Em função dessa circunstância, cabe considerar, em sentido restrito, a

34 Cf. HALL, Edward. La dimension cachée. Paris: Seuil, 1966. p. 105.35 MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX. o espírito do tempo. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Universitária, 1977. p. 15.36 A Igreja no mundo de hoje. In: Concilio Vaticano II. Gaudium et spes. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1966.

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cultura "já feita", isto é, as maneiras de pensar, de sentir e de fazer que o

consenso comunitário referendou como

Pág. 38

tal e como representativas do modo de ser da comunidade; em sentido amplo e

aberto, há que se ter em conta a cultura que se está fazendo, a cada momento,

no cotidiano do homem, sobretudo na atualidade, quando o mundo se constitui

numa imensa aldeia global e os meios de comunicação de massa se

convertem em eficientíssimos agentes culturais.

A caracterização cultural, em termos sociais, admite ampliações e

setorizações que permitem tratar, entre outras, de cultura ocidental, cultura

européia, cultura grega, cultura romana, cultura brasileira etc.

Consequentemente, de literatura ocidental, literatura européia, literatura grega,

literatura romana, literatura brasileira etc.

Obviamente, como fato cultural que é, a literatura acompanha o

desenvolvimento da cultura de que é parte integrante.

Cada ser humano encontra, desde que nasce, um mundo de

conhecimentos que lhe vão sendo transmitidos pela sociedade, por sua vez

herdeira de conhecimentos anteriores e aberta e novas interpretações. "A vida

é um constante fluir. Ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas do rio",

disse Heráclito, filósofo grego. Ao que podemos acrescentar: sai impregnado

das águas em que se vai molhando.

Tais conhecimentos veiculam-se por meio de linguagens, entre a língua

que falamos e que pode ser entendida como um conjunto organizado de

valores e que é, simultaneamente, uma instituição social e linguagem de uma

sociedade.

A literatura se vale da língua e revela dimensões culturais. Cultura, língua

e literatura estão, portanto, estreitamente vinculadas.

Reiterando noções e ampliando a explicitação: a linguagem literária é

eminentemente conotativa. A conotação se pluraliza em função do universo

cultural dos falantes; prende-se, portanto, às diferenças de camadas

socioculturais e ao processo de desenvolvimento da cultura. Fácil é concluir

Page 37: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

que a literatura,

Pág. 39

apoiada num sistema de signos linguísticos que representam o mundo e

revelam dimensões profundas do ser humano, traduz o grau de cultura de uma

sociedade. E mais: por força de sua natureza criadora e fundadora, pode

configurar-se como espelho ou como denúncia, como conservadora ou como

transformadora.

Essas dimensões têm marcado a história da arte literária ocidental, em

que se desenvolvem movimentos ora assinalados por atitudes regressivas, ora

por procedimentos de vanguarda.

Sendo a obra de arte literária matéria ficcional, claro está que a realidade

nela revelada não se confunde com a realidade socialmente dada. A linguagem

literária, lembra Lefebvre, abre-se sobre o mundo e coloca diante dele "uma

questão que não é daquelas que podem ser respondidas pela ciência, pela

moral ou pela sociologia [...] Ela interroga o mundo sobre sua realidade e a

linguagem sobre sua obsessão de uma adequação perfeita ao ser do mundo.

Não é uma solução, uma fuga para fora da linguagem e do humano: ela

encarna uma nostalgia".37

37 LEFEBVE, Maurice-Jean. Structure du discours de la poésie et du récit. Neuchâtel: La Baconnière, 1971. p. 28-9.

Page 38: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Pág. 40

5 5

Características do discurso literárioCaracterísticas do discurso literário

Literatura e especificidadeLiteratura e especificidade

Se a literatura é uma arte, nessa condição ela é um meio de comunicação

de tipo especial e envolve uma linguagem também especial. Esta última, como

já foi visto, apóia-se numa língua e se configura em textos em que se

caracteriza uma determinada modalidade de discurso.

O código em que se pauta o discurso literário guarda íntima relação com

o código do discurso comum, mas apresenta, em relação a este, diferenças

singularizadoras.

Diante do mistério do fenômeno literário, o grande desafio dos estudiosos

e pesquisadores tem sido caracterizar plenamente essa especificidade.

Identificar, entretanto, certos traços peculiares do discurso literário tem

sido possível; o que ainda não se conseguiu definir, mesmo à luz desses

traços, é o índice da chamada literariedade, busca mobilizadora sobretudo da

crítica formalista e estruturalista.

Essas limitações não impedem que assinalemos uma série de caracteres

distintivos do discurso literário em relação ao discurso comum. Vamos a eles.

Pág. 41

ComplexidadeComplexidade

O discurso da literatura se caracteriza por sua complexidade. No discurso

não-literário, há um relacionamento imediato com o referente; caracteriza-se,

na maioria dos casos, a significação singular dos signos, como vimos na frase-

exemplo "Uma flor nasceu no chão da minha rua". Já o que depreendemos do

texto literário ultrapassa, como já foi assinalado, os limites da simples

Page 39: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

reprodução. A natureza das informações que, por seu intermédio, são

transmitidas, vai além do nível meramente semântico para se converter em

algo tal que sua comunicação se torna impossível por meio das estruturas

elementares do discurso cotidiano.

No dispositivo verbal configurador da obra de arte literária, revelam-se

realidades que, mesmo vinculadas a elementos de natureza individual ou de

época, atingem espaços de universalidade.

O texto literário realmente significativo ultrapassa os limites do codificador

para nos atingir, por força ainda do mistério da criação em literatura, com

mensagens capazes de revelar muito da condição humana. Caracteriza um

mergulho na direção do ser individual, do ser social, do ser humano.

Dom Casmurro, para destacar um exemplo, romance de Machado de

Assis, é, sob tais aspectos, obra exemplar. Diante do que nela se revela e do

modo de realização que nela se configura, reveste-se de atualidade e abre-se,

na sua polissemia, a inúmeras e variadas leituras. Que nos permitem

depreender, entre outros, aspectos individuais metonimizados nos

personagens; multiplicidade de temas, como o ciúme; o adultério; a dúvida; o

ressentimento; a fratura do resgate; o fazer do romance; a dissimulação do

erotismo feminino; o desvendamento da prática jurídica; projeções do social,

também metonimizados no microcosmo familiar dos Santiago e dos Pádua;

visões de mundo; visões da vida no Rio de Janeiro do Segundo Reinado,

configurações da complexidade da vida humana.

Pág. 42

A condição de habitante de uma cidade apresenta-se exemplarmente nas

Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, que nos

leva "ao tempo do rei", e o rei era Dom João VI. Pode ainda ser lida em Feliz

Ano Novo, livro de contos de Rubem Fonseca, feito de metonímias hiperreais

da violência urbana na Cidade Maravilhosa.

A cidadania associa-se à nacionalidade na síntese que é Macunaíma, de

Mário de Andrade, centrada nas aventuras e desventuras de um anti-herói feito

da fusão de características do brasileiro, seus defeitos, suas virtudes, suas

aspirações. Um texto-paródia da história do Brasil.

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Dimensões psicológicas, geográficas, sociais, históricas, religiosas,

míticas, metafísicas integram-se na linguagem singularíssima do Grande

sertão: veredas.

Em certo sentido, a linguagem literária produz; a não-literária reproduz.

O fato literário caracteriza-se, entre inúmeras outras marcas, por uma

dupla dimensão articulada: a dimensão semiótica, ligada aos signos de que se

faz o texto, e a dimensão transfiguradora do real. Uma e outra, integradas,

estão, por seu turno, na base da dimensão estética que o caracteriza. O texto

literário é, ao mesmo tempo, um objeto linguístico e um objeto estético.

Nessa situação, configura-se um sistema de signos secundário em

relação à língua de que se vale, esta funcionando, no caso, como o sistema 1.

Entenda-se o adjetivo secundário vinculado sobretudo à natureza complexa

que está sendo assinalada e não somente ao fato de que o sistema 1 é uma

língua natural.

A obra de arte literária, valho-me ainda uma vez de Lefebve, é sempre "O

lugar e como a intersecção de dois movimentos de sentidos opostos que

envolvem, por um lado, um dobrar-se da literatura sobre si mesma num puro

objeto de linguagem e, por outro lado, um abrir-se "ao mundo interrogado na

sua realidade e na sua presença essencial [...] movimentos contraditórios

Pág. 43

e entretanto solidários, pólos ao mesmo tempo complementares e

antagonistas, criadores de um campo dinâmico que só ele permite

compreender os diversos aspectos do fenômeno literário"38.

MultissignificaçãoMultissignificação

Ao caracterizar-se no texto literário um uso específico e complexo da

língua, os signos linguísticos, as frases, as sequências assumem, em função

do contexto em que se integram, significado variado e múltiplo. Assim, afastam-

se, por exemplo, da monossignificação típica do discurso científico, para só

citar um caso.

38 LEFEBVE, Maurice-Jean. Op. cit. p. 29.

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É nesse sentido que alguns estudiosos situam o distanciamento que a

linguagem literária assume em relação ao que chamam grau zero da escritura.

Entenda-se, a princípio, grau zero como o discurso preocupado sobretudo

com a plena clareza da comunicação nele veiculada e com a obediência às

normas usuais da língua. (Para uma visão mais minuciosa do conceito, pode-

se ver o livro de Roland Barthes Novos ensaios críticos seguidos de O grau

zero da escritura, edição da Cultrix de 1974.)

A multissignificação ou polissemia não é marca exclusiva do texto de

literatura. Pode configurar-se em qualquer outra manifestação verbal. As

diferentes interpretações das leis, por exemplo, que frequentam o discurso

jurídico o evidenciam. No texto não-literário a ambiguidade dela decorrente

prende-se necessariamente "a uma preocupação de imediata e utilitária

funcionalidade".39 O texto de literatura, em função do contexto que o

caracteriza, repele qualquer imposição coercitiva. Esse preocupar-se nele não

se faz presente. O que o leva a possibilitar ao destinatário, leitor ou

Pág. 44

ouvinte, a depreensão de uma multiplicidade de sentidos. Tal depreensão

vincula-se ao seu universo cultural e ao seu saber linguístico, na medida em

que, como assinala Umberto Eco, "o estimula a interrogar a flexibilidade e a

potencialidade do texto que interpreta, tal como a do código a que se refere".40

A literatura, na verdade, cria significantes e funda significados. Apresenta

seus próprios meios de expressão, ainda que se valendo da língua, ponto de

partida. Superposto ao da língua, o código literário, em certa medida,

caracteriza alterações e mesmo oposições em relação àquele. É um desvio

mais ou menos acentuado em relação ao uso linguístico comum. Em termos

literários, por exemplo, assegurada a coerência do conjunto em que

inseríssemos a afirmação, teriam sentido frases como "a flor de nossa rua

comeu todos os medos" ou "a flor expulsou todos os monstros" e, fora desse

âmbito sintático-vocabular, lembro versos como "Um supremíssimo

39 REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina, 1995. p. 126.40 Eco, Umberto. Trattato di semiótica generale. 6. ed. Milão: Bompiani, 1978. p. 380. V., a propósito, REIS, Carlos. Op. cit. p. 126 e EMPSON, W. Seven types of ambiguity. Nova York: New Directions, 1966.

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cansaço/íssimo, íssimo, íssimo,/cansaço", de Fernando Pessoa, em que, como

se vê, se fere, em nome da expressividade poética, a norma morfológica do

idioma no seu uso cotidiano.

E mais: para a plurissignificação do texto contribuem, como acentua Paul

Ricoeur, fatores de ordem sincrônica e de ordem diacrônica. Vale dizer, os

primeiros se vinculam à carga significativa ligada às relações entre as palavras

no conjunto do texto de que fazem parte; já o plano da diacronia envolve tudo o

que de significação e evocação o tempo agregou aos vocábulos, no decurso de

sua história, incluídas nessa totalidade as dimensões resultantes do uso das

palavras na tradição literária.

Num ou noutro caso, a plurissignificação pode associar-se ao âmbito

sociocultural, como quer, por exemplo, Delia Volpe,

Pág. 45

ou a espaços míticos e arquetípicos, como pretende Northrop Frye; situo-me,

no caso, entre os que acreditam que tais dimensões não se excluem, antes se

complementam.

A multissignificação é, pois, uma das marcas do texto literário como tal. É

o traço que permite, entre outras, as múltiplas leituras existentes da obra de

João Cabral de Melo Neto, de Carlos Drummond de Andrade, de Guimarães

Rosa; que possibilita a Roland Barthes a sua apreciação da obra de Racine e

que nos autoriza ler, em Iracema, de José de Alencar, uma síntese simbólica

do processo civilizatório da América, entre outras interpretações. A

permanência de determinadas obras se prende ao seu alto índice de

polissemia, que as abre às mais variadas incursões e possibilita a sua

atemporalidade.

Predomínio da conotaçãoPredomínio da conotação

A linguagem literária é eminentemente conotativa. O texto literário resulta

de uma criação, feita de palavras. E do arranjo especial das palavras nessa

modalidade de discurso que emerge o sentido múltiplo que a caracteriza.

Os signos verbais, no texto de literatura, por força do processo criador a

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que são submetidos, à luz da arte do escritor, revelam-se carregados de traços

significativos que a eles se agregam a partir do processo sociocultural

complexo a que a língua se vincula. O texto literário pode abrigar a presença

de elementos identificadores de um real concreto, quase sempre garantidor de

verossimilhança, como costuma também, nessa mesma dimensão, apresentar

uma imagem desse real ligada estreitamente a outros elementos que fazem o

texto. Essa presença, que pode trair uma dimensão denotativa, não é,

entretanto, seu traço dominante. Este reside na conotação, conceito

fundamental para os estudos de literatura, e de tal maneira que especialistas

como André Martinet, Georges Mounin e, entre nós, José Guilherme

Pág. 46

Merquior chegam a admitir que nas conotações reside "o segredo do valor

poético de um texto".41

Liberdade na criaçãoLiberdade na criação

As manifestações literárias podem envolver adesão, transformação ou

ruptura em relação à tradição linguística, à tradição retórico-estilística, à

tradição técnico-literária ou à tradição temático-literária às quais

necessariamente está vinculado o trabalho do escritor. A literatura se abre,

então, plenamente, à criatividade do artista. Em seu percurso, ela envolve a

constante invenção de novos meios de expressão ou uma nova utilização dos

recursos vigentes em determinada época. Mesmo nos momentos em que a

obediência a determinados princípios pareceu regular os procedimentos

literários, a literatura, por sua própria natureza, levou à abertura de caminhos

renovadores.

Não existe uma "gramática normativa" para o texto literário. Seu único

espaço de criação é o da liberdade.

Se a norma, em alguns instantes, regulou a "arte", o "engenho" sempre foi

além, com maior ou menor evidência. E os movimentos de vanguarda, a

constante exigência e busca do novo continuam sendo suas marcas mais

41 Cf. MERQUIOR, J. Guilherme. Do signo ao sintoma. In: Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense/ lidusp, 1974. p. 129.

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patentes, num curso que segue paralelo à dinâmica do processo cultural em

que se integra. Nesse processo, ora o acompanha, ora se antecipa,

transformadora, porta-voz do devir. Veja-se o Ulisses, de Joyce, por exemplo.

O artista da palavra tem uma sensibilidade mais apurada do que a do comum

das gentes, e essa acuidade mobiliza-lhe a criação progressora.

Pág. 47

Na maioria dos casos, é a própria obra que traz em si suas próprias

regras. A obra de arte literária se faz, fazendo-se.

Observe-se que as normas reguladoras do texto não-literário, aquelas que

se impõem ao indivíduo por corresponderem àquilo que habitualmente se diz,

precisam ser obedecidas, sob pena de sérios ruídos na comunicação e, em

certas circunstâncias, até de total obliteração do que se pretende comunicar.

No texto literário a criação estética autoriza qualquer transgressão nesse

sentido. E em termos de história literária, múltiplos e vários têm sido os

percursos nessa direção, seja em termos individuais, seja em termos de

movimentos de época.

Ênfase no significanteÊnfase no significante

Enquanto o texto não-literário confere destaque ao significado, ou seja, ao

plano de conteúdo, o texto literário tem o seu sentido apoiado no significado e

no significante, com especial relevo concedido a este último. A questão,

entretanto, não é pacífica. Sobretudo quando pensamos que, ao situar

significante e significado no âmbito da semiótica, estes ganham dimensões

que, embora relacionadas com a visão da linguística, adquirem matizes

diferentes e contribuem efetivamente para o sentido do texto, principalmente

em termos da informação estética que nele se configura. Num poema como o

"Soneto de separação", de Vinícius de Moraes, por exemplo, os fonemas

bilabiais de certos vocábulos parecem contribuir para o sentido dominante no

texto, centrado na separação entre dois seres:

Soneto de separaçãoSoneto de separação

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De repente do riso fez-se o pranto

Silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se a espuma

E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

Pág. 48

De repente da calma fez-se o vento

Que dos olhos desfez a última chama

E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante

E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante

Fez-se da vida uma aventura errante

De repente, não mais que de repente.42

Textos há em que o significante sobressai de maneira ainda mais

acentuada, como neste poema concreto de Ronaldo Azeredo43:

42 In:______. Livro de sonetos. 3. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1967. p. 30-1.43 Apud CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos e manifestos críticos — 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975. p. 92.

V V V V V V V V V V

V V V V V V V V V E

V V V V V V V V E L

V V V V V V V E L O

V V V V V V E L O C

V V V V V E L O C I

V V V V E L O C I D

V V V E L O C I D A

V V E L O C I D A D

V E L O C I D A D E

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Pág. 49

A questão é facilmente compreensível: basta substituir os vocábulos de

um texto por sinônimos, para aquilatar a relevância do significante. Pensemos

na fala famosa do Hamlet, de Shakespeare:

To be or not to be: that is the question

(Ser ou não ser: eis a questão)

Veja-se o efeito de substituições:

Am I or am I not: that is the question

(Sou ou não sou: eis a questão)

ou

To be or not to be: that is what worries me

(Ser ou não ser: é isso que me preocupa)

Evidentemente, perde-se muito do efeito estético com as expressões

substitutas, levando-se em conta, obviamente, o contexto em que as palavras

do teatrólogo se inserem.

No "Soneto de separação", de Vinicius de Moraes, é bastante trocar

algumas palavras para verificar a força do significante, colocando, por exemplo,

"repentinamente" em lugar de "de repente"; "juntas", onde está "unidas", ou

"tranquilidade" onde se encontra "calma".

VariabilidadeVariabilidade

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O texto literário se vincula, como foi assinalado, a um universo

sociocultural e a dimensões ideológicas; sua natureza envolve mutações no

tempo e no espaço; ele tem uma língua como

Pág. 50

ponto de partida e de chegada; as línguas acompanham as mudanças

culturais; mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mudam as pessoas,

os povos, a linguagem: a literatura, manifestação cultural, acompanha as

mudanças da cultura de que é parte, integrante e altamente representativa. A

literatura traz a marca de uma variabilidade específica, seja em relação aos

discursos individuais, seja em termos de representatividade cultural. E não nos

esqueçamos de que, na base da literatura, está a permanente invenção.

Modos de realizaçãoModos de realização

O texto literário — eis um traço óbvio e imediatamente comprovável — se

faz de manifestações em prosa e de manifestações em verso.

Manifestações em prosaManifestações em prosa

As manifestações em prosa envolvem as modalidades da narrativa de

ficção.

Ficção — do latim fictionem, cognato do verbo fingere, "dar forma a

qualquer substância plástica e, por extensão, representar, imaginar, inventar",

que em português deu "fingir" — significa invenção, construção da imaginação,

fingimento, simulação, imaginação. A narrativa de ficção se caracteriza por

fazer-se de histórias fictícias ou simuladas, nascidas da imaginação.

As principais modalidades desse tipo de narrativa são o conto, o romance

e a novela.

Tarefa das mais complexas tem sido determinar os limites de tais formas.

As definições mais usuais as caracterizam como a seguir:

O conto oferece uma amostra da vida, por meio de um episódio, um

flagrante ou instantâneo, um momento singular e representativo. Constitui-se

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de uma história curta, simples, com

Pág. 51

economia de meios, concentração da ação, do tempo e do espaço. Ex.: "Noite

de almirante", de Machado de Assis.

O romance prende-se a uma vasta área de vivência, faz-se geralmente de

uma história longa e apresenta uma estrutura complexa. Ex.: Dom Casmurro,

do mesmo Machado de Assis; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Grande

sertão: veredas, de Guimarães Rosa, A república dos sonhos, de Nélida Pinou.

A novela se situa como forma intermediária entre o romance e o conto.

Ex.: Léguas da promissão, de Adonias Filho.

Essas variedades envolvem certa visão do mundo e uma determinada

maneira de captar as questões que nos textos se apresentam, caracterizando

um sistema que se faz de vários elementos integrados: uma narração vinculada

a personagens em ação (ou não) num tempo e num espaço em torno de um ou

mais temas, traduzindo-se num estilo e por meio de determinados ângulos de

visão.

As visões da narrativaAs visões da narrativa

Segundo os moldes consagrados pela tradição, a narração pode ser

conduzida por um narrador não participante ou por um personagem que

convive com os outros na história narrada. Isso nos leva ao modo como esta

última se apresenta e se constrói: o ângulo de visão, ponto de vista, foco ou

enfoque narrativo, também conhecidos como visão da narrativa.

Em princípio admitem-se, entre outras possibilidades, a história contada

em primeira pessoa por um dos personagens que toma parte nos

acontecimentos ou a história contada em terceira pessoa por um narrador que

se situa fora dos acontecimentos e pode: a) saber tudo a respeito de tudo

(visão totalizadora); b) conhecer plenamente apenas um dos personagens

(visão limitada); c) conhecer superficialmente os personagens (visão restrita).

Essas modalidades de visão são bastante encontradiças na literatura

ocidental. Acrescente-se a elas o monólogo interior, téc-

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Pág. 52

nica inventada pelo escritor francês Edouard Dujardin (1861-1949), que a

utilizou no seu romance Les lauriers sont coupés (1887). Esse procedimento

difere do monólogo tradicional, pois reproduz pensamentos íntimos como vão

surgindo do inconsciente sem nenhuma preocupação com um encadeamento

lógico: deixando fluir livremente as idéias e sentimentos em frases diretas, com

a sintaxe reduzida a um mínimo de recursos. Um excelente exemplo se

encontra num dos mais famosos textos da moderna literatura do Ocidente, o

citado Ulisses, de James Joyce; transcrevo uma passagem, na primorosa

tradução de Antônio Houaiss:

Sim porque ele nunca fez uma coisa como essa antes como pedir pra ter seu desjejum na cama com um par de ovos desde o hotel City Arms quando ele costumava fingir que estava de cama com voz doente fazendo fita para se fazer interessante para aquela velha bisca da senhora Riordan que ele pensava que tinha ela no bolso e que nunca deixou pra nós nem um vintém tudo pra missas para ela e para alma dela grande miserável que era com medo até de soltar 4x. para seu espírito metilado me contando todos os achaques dela com aquela velha de falação dela sobre política e tremores de terra e o fim do mundo que a gente tenha um pouco de distração pelo menos antes Deus ajude o mundo se todas as mulheres fossem como ela contra roupa de banho e decotes é claro que ninguém queria ver ela com isso eu creio que ela era piedosa porque nenhum homem havia de olhar para ela duas vezes eu espero que não vou ser nunca como ela não admirava se ela quisesse que a gente escondesse a cara mas ela era uma mulher bem educada e sua fala tagarela sobre o senhor Riordan praqui e o senhor Riordan pralá eu penso que ele ficou contente de se ver livre dela e do cachorro dela que cheirava meu casaco de pele e se metia sempre debaixo de minhas saias.44

Pág.53

Outro bom exemplo está no conto "Monólogo de Tuquinha Batista", de

Aníbal Machado:

Não Mundinha pra Zona Sul eu não vou já disso que não vou pra lá

44 JOYCE, James. Ulisses. Trad. de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. 792-3.

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não Betsy que não quero me perder e cá no meu subúrbio eu sou Tuquinha Tuquinha Batista T.B. meu nome em toda parte que eu quase choro agradecida T.B. nos muros T.B. no tronco das árvores no mamoeiro na porta da igreja como largar minha gente ficar longe das letras de meu nome não não Mundinha não me tentes mais estou quase noiva isto é não estou mas meu noivo vem vindo já apareceu na bola de cristal a cartomante disse que por enquanto ele aparece só pra ela todo dourado nadando num fundo azul e que é parecido com Clark Gable mas eu queria que ele parecesse com aquele que viajou no pingente uma vez na véspera do Ano-Bom ele me olhava de fora pela vidraça e o trem dava cada solavanco e ele se equilibrava a cara bonita atrás rindo tentando a gente rindo e cantando parecia até um demônio eu de repente fiquei apaixonada e até hoje quando vejo vidraça olha aquele findo me tentando querendo se apossar da gente nunca mais apareceu só a lembrança do rosto dele sorrindo sempre vai ver é um pilantra feito aquele "fala-macio" que levou Raimunda pra Copacabana dizendo que lá sabiam apreciar uma morena feito ela que ela ia virar girl e arranjava um bom contrato que o subúrbio era triste...45

A diferença entre o monólogo interior e o monólogo tradicional é flagrante:

este último admite a participação do narrador e até comentários sobre o que o

personagem está pensando, sentindo ou fazendo, o que não acontece com o

primeiro.

Pág. 54

O crítico francês Jean Pouillon, no seu O tempo no romance, ao tratar dos

"modos de compreensão" em relação ao romance, admite três modalidades

básicas de visão: a visão "com" (vision "avec"), a visão "por trás" (vision "par

derrière ") e a visão "de fora" (vision "du dehors").

Na visão "com", tudo se centraliza num personagem e é a partir dele que

nós vemos e "vivemos" os acontecimentos narrados e percebemos também o

que com ele se passa no âmbito da ação do romance. Memórias póstumas de

Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis, estão nesse caso.

Na visão "por trás", o autor não se situa no interior de um personagem,

mas procura afastar-se dele para considerar objetiva e diretamente sua vida

psíquica.

45 MACHADO, Aníbal. A morte da porta-estandarte e outras histórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. p. 106.

Page 51: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

A diferença entre a visão "com" e a visão "por trás" é a que se verifica

entre a pura e simples consciência e o conhecimento à luz da reflexão. Num

romance de visão "com", esta tem por centro, do qual se irradia, um foyer que

faz parte do próprio romance; é na obra que encontramos a fonte de luz que a

ilumina. No romance de visão "por trás", a fonte não está no romance, mas no

romancista, melhor dito, no narrador não nomeado, na medida em que ele

sustenta a sua obra sem coincidir com um de seus personagens. Observe-se

que, nesse caso, o leitor faz sua a visão do narrador.

A visão "de fora" envolve a observação material da conduta do

personagem, seu aspecto físico e o meio em que vive. Claro está que a

exterioridade assim caracterizada é situada pelo autor e captada pelo leitor

como reveladora de interioridade. O "dehors" dos personagens nos é

apresentado de tal modo que ele nos revela progressivamente seu caráter.

Essas divisões e classificações não esgotam a matéria, e as visões

admitem os mais variados arranjos e combinações. Nem se pense na

exclusividade necessária desse ou daquele enfoque. Há narrativas em que

convivem harmonicamente várias visões, como, por exemplo, em Corpo vivo,

romance de Adonias Filho,

Pág. 55

caracterizado por um especialíssimo tratamento do ponto de vista. Por outro

lado, em muitos romances contemporâneos, no-tadamente no nouveau roman

francês, o expositor se converte em cameraman e apenas apresenta

personagens e ações, como se a narrativa fosse uma película cinematográfica.

Como exemplo, pode-se ler Le voyeur (A espreita), de Alain Robbe-Grillet.

Os personagensOs personagens

Os personagens dão condição de existência ao enredo e "vivem" nele

como participantes da história.

As múltiplas classificações, nascidas das mais variadas posições críticas,

se apóiam no que os personagens "são", no que "representam" ou no que

"fazem", privilegiando, assim, dimensões aspectuais. Daí a variada tipologia

Page 52: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

que os considera:

a) por sua natureza — quando podem ser: seres humanos (exs.: Paulo

Honório, do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos; Augusto Matraga,

do conto "A hora e vez de Augusto Matraga", de Guimarães Rosa); coisas (ex.:

a propriedade, no mesmo São Bernardo); animais (exs.: a cachorra Baleia, em

Vidas secas, romance de Graciliano Ramos; Quincas Borba, o cão, no

romance do mesmo nome, de Machado de Assis; o burrinho pedrês, no conto

do mesmo nome, de Guimarães Rosa) e, por extensão, elementos da natureza

(ex.: o vento, no conto "O iniciado do vento", de Aníbal Machado);

b) pela variedade — quando podem ser: individuais, ao se identificarem

com seres nitidamente caracterizados em sua personalidade (exs.: Capitu, em

Dom Casmurro, romance de Machado de Assis; o citado Augusto Matraga);

típicos, quando trazem características que os identificam com um grupo social,

nacional, regional, profissional etc. (ex.: Fabiano, no referido Vidas secas);

caricaturais, quando têm exageradamente acentuadas certas características

marcantes e definidoras, como a comadre,

Pág. 56

de Memórias de um sargento de milícias, romance de Manuel Antônio de

Almeida. Certos personagens típicos acabaram tornando-se universais, como o

usurário, o soldado fanfarrão, o criado hábil, o agregado, entre muitos,

encontrados a cada passo na literatura de ficção;

c) pela função que desempenham — quando podem ser: protagonistas,

as figuras principais da história (ex.: Cajango, em Corpo vivo, romance de

Adonias Filho); antagonistas, os que se opõem à figura principal, ou seja, com

ela entram em tensão direta no desenvolvimento da trama (ex.: Manuel

Pescada, no romance O mulato, de Aluísio Azevedo). Nessa área funcional há

que considerar ainda o narrador, caracterizado como tal.

A tendência estruturalista é centrar a classificação na participação dos

personagens em suas inter-relações.

A caracterização dos personagens pode apoiar-se também no nome que

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levam, em certos tiques, no tipo físico e no tipo antropológico.

A açãoA ação

A narrativa, que integra ação e narração, caracteriza uma sequência,

simples ou complexa, de conflitos ou tensões que se resolvem ou não. A ação

se situa, assim, no nível da trama, intriga ou enredo, que envolve o que ocorre

com os personagens, o conjunto de seus atos ou reações, os acontecimentos

ligados entre si, tudo isso comunicado pela narrativa.

O desenvolver-se da trama leva ou ao desaparecimento das situações

conflituais ou à criação de novos conflitos.

Por narração compreende-se a sucessão de fatos, imagens ou

acontecimentos que, numa sequência ordenada, se configura num texto

literário; é o modo como a narrativa se organiza.

É na articulação da ação com a narração que se instaura o processo da

ambiguidade peculiar ao texto literário.

Pág. 57

O tratamento do tempoO tratamento do tempo

O homem é um ser temporal. O tempo, como quer Percy B. Shelley, "é a

nossa consciência da sucessão das idéias em nossa mente".46

O tempo cronológico, isto é, o tempo convencional das horas, dos dias,

dos meses, das estações e dos anos é a medida exterior da duração. Admite

padrões fixos de medida, vinculados ao movimento de rotação e translação da

Terra. É um tempo objetivo, que se opõe à subjetividade do tempo psicológico,

interior e relativo, situado no âmbito da experiência individual, que avalia a

partir de padrões variáveis.

Remonta a Bergson a concepção do tempo psicológico. Como explicita

Dirce Riedel, "a realidade está na relatividade subjetiva da durée (duração), no

que permanece no fluir do tempo, apesar de toda a sua irreversibilidade, e não

46 Queen Mab. Apud MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Porto Alegre: Globo, 1972. p. 135.

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no conceito objetivo da física que falsifica a natureza essencial do tempo"47.

A duração (durée) é anacrônica.

O pensamento bergsoniano, notadamente a teoria da durée, está na base

de uma nova concepção de personagem, em grande parte da ficção moderna,

especialmente no romance que se faz de fluxo de consciência. Abandona-se,

por falso, o fixar da personalidade por meio da descrição externa, por

intermédio de rótulos, definições e listas de características: a personalidade

passa a ser caracterizada à luz de sua renovação momento a momento, com o

passado sempre presente, variável de acordo com a ampliação do seu campo

temporal em movimento.

A mesma teoria conduziu a uma nova concepção da trama e da estrutura,

à limitação progressiva da duração ficcional do

Pág. 58

romance, à ampliação da duração psicológica dos personagens: "toda a vida

num dia, toda a vida num momento", como lembra Mendilow na página 167 da

obra citada, passa a ser o objetivo dos romancistas. Os citados Ulisses, de

Joyce, e A Paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, são excelentes

exemplos da adoção dessa técnica.

A duração se identifica com a vida interior.

A literatura moderna busca exprimir não apenas a irreversibilidade do

tempo que se escoa mas ainda uma distância interior, um tempo subjetivo,

como resume Dirce Riedel na obra citada, em que acrescenta: "A memória

poética funde passado e presente, numa sucessão psicológica, já que a

realidade não é um estado estável; o presente é constante transição, perpétuo

vir-a-ser [...] Enquanto a narrativa linear exprime a continuidade do tempo

exterior, a associação dinâmica pode revelar a continuidade emocional, numa

literatura que quer surpreender o processo do subconsciente".

Esse posicionamento envolve necessariamente as relações da narrativa,

instalando-se no âmbito da consecução e da consequência, substituindo na

ordem de apresentação ficcional a sequência cronológica pela sequência

47 RIEDEI., Dirce. O tempo no romance machadiano. Rio de Janeiro: São José, 1958. p. 15.

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psicológica.

O moderno tempo ficcional se faz da sucessão psicológica, mede-se pela

distância interior, variável segundo a melodia do mundo interior de cada

indivíduo. Caracteriza-se uma duração aberta. Se o comparamos com o tempo

da história, vemos que este se faz de uma perspectiva exterior, mede-se

cronologicamente e apresenta unidade de ação.

O ambienteO ambiente

Também chamado meio, localização, envolve as condições materiais ou

espirituais em que se movimentam os personagens e se desenrolam os

acontecimentos. Por meio dele podem-se

Pág. 59

configurar traços dos personagens e mesmo a própria história. Ex.: O mulato e

O cortiço, de Aluísio Azevedo; Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano;

Senhora, de José de Alencar.

O estiloO estilo

Apesar de já termos tratado desse traço da linguagem, cabem ainda

algumas observações. Os estudos relacionados com o estilo envolvem, em

síntese, dois posicionamentos: há aqueles que o consideram como resultante

de um conjunto de escolhas em relação à língua; outros entendem que se trata

de um desvio em relação à norma gramatical. Entre os primeiros, encontra-se,

por exemplo, Charles Bally, o criador da estilística como disciplina cuja tarefa

consiste na busca dos elementos expressivos que, num dado momento,

servem para produzir os movimentos do sentimento e da razão. É a chamada

corrente saussuriana ou positivista. Ao segundo grupo, pertencem estudiosos

da chamada corrente da escola alemã de Karl Vossler, como os críticos Leo

Spitzer, Dámaso Alonso, Helmut Hatzfeld e outros, que, embora aceitando

inicialmente as teses de Ferdinand de Saussu-re, mestre de Bally, se

preocupam com depreender da fala o que nela existe de individual, de criação

Page 56: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

pessoal, que, na busca da expressão adequada à situação de fala, foge da

automatização na formulação linguística. Vossler compara a forma que usamos

ao falar com a forma que vestimos: segundo ele, o modelo nos é imposto pela

vida prática, mas a decisão sobre o corte e a cor depende do gosto de cada

um.

As duas correntes, a saussuriana e a idealista de Vossler, fundamentam a

crítica literária de base estilística, que vê o estilo a serviço da criação artística.

Cabe lembrar que a tese de Vossler se inspira nas teorias de Benedetto

Croce, filósofo italiano para quem o objetivo dos estudos de estética é a função

expressiva que caracteriza o ser humano, sobretudo aqueles que possuem

uma psique mais apta,

Pág. 60

mais rica, e que são chamados artistas, porque expressam plenamente

estados de alma. Quando tais expressões conseguem manifestar-se com

excelência, são chamadas obras de arte.

Mais uma vez, estamos diante de uma questão longe de ser tranquila.

Aline Lévavasseur, por exemplo, nota que os adeptos do primeiro grupo

correm o risco de confundir estilo com fala ou discurso, uma vez que, na

linguagem, tudo é consequência de uma escolha, consciente ou não, por parte

do falante. Acrescenta ainda que, para aumentar a confusão na área, o termo

estilo aparece para designar "certos tipos de formulação rigorosamente ditados

pela tradição", como estilo telegráfico, estilo administrativo, estilo jurídico, estilo

judiciário, estilo diplomático etc. Lembra que o estilo se situa no lado oposto

desse extremo, pois, hoje em dia, todo o esforço do escritor consiste

justamente em buscar a originalidade a qualquer preço e em quebrar os

moldes da expressão tradicional ou mesmo apenas um pouco mais usuais.48

O estilo, ainda de acordo com tal posicionamento, tende a se confundir

com o idioleto, ou seja, com aquilo que o próprio Bally definiu como "o sistema

de expressões de um indivíduo isolado" ou, como esclarece Mattoso Câmara,

no seu Dicionário de filologia e gramática, "o nome dado pelos linguistas

48 LÉVAVASSEUR, Aline. Style et stylistique. In: MARTINET, A. (Org.). La linguistique. Paris: Denoël, 1969. p. 359.

Page 57: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

americanos à língua tal como é observada no uso de um indivíduo".

Como se percebe, o conflito entre estilo, idioleto e discurso não prima

pela solução mais simples.

A conceituação adotada pelo segundo grupo também é passível de

restrições. Desvio em relação à norma implica que esta última seja definida e

estabelecida. E aí é que enfrentamos um dilema, pois a norma é entendida

como uma soma de abstrações, como se depreende da citada definição de

Coseriu.

Pág. 61

Um último conceito nos leva à teoria que entende o estilo como

"fenômeno de elaboração, que consiste em substituir a natural linearidade da

linguagem por uma certa profundidade, em razão de um objetivo mais ou

menos intuitivo ou inconsciente do enunciado global que deve resultar das

escolhas sucessivas", conforme as palavras de Aline Lévavasseur.

Eis um ponto de vista que ainda uma vez se centraliza na intenção do

falante, que deve transformar sua fala em fato estilístico.

Cabe, a este passo, trazer à apreciação, por oportuna, a relação entre

estilo e escritura (écriture). Deixemos a palavra com Roland Barthes, que,

preliminarmente, diz:

[...] a língua está aquém da literatura. O estilo está quase além: imagens, uma elocução, um léxico, nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam pouco a pouco os próprios automatismos de sua arte. Assim, sob o nome de estilo, se forma uma linguagem autárquica, que não mergulha senão na mitologia pessoal e secreta do autor, nessa hipofísica da fala, onde se forma o primeiro par das palavras e das coisas, onde se instalam de uma vez por todas os grandes temas verbais da existência.

E esclarece a seguir:

[...] entre a língua e o estilo, há lugar para uma outra realidade formal: a escritura. [...] Língua e estilo são forças cegas; a escritura é um ato de solidariedade histórica. Língua e estilo são objetos; a escritura é uma função: ela é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem literária transformada por sua destinação social, ela tem sua forma apreendida na sua intenção humana e

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ligada assim às grandes crises da História.49

Pág. 62

Como quer que seja, para efeito operacional, entenda-se o estilo na

definição adaptada de Hatzfeld, apresentada na página 25, a partir da qual se

percebe que, no caso do texto literário, se vincula a uma organização

específica: o estilo, no caso, passa a integrar um objeto estético e assume

dimensão relevante nesse âmbito.

O mais se situa no espaço de muitos problemas ainda não resolvidos

plenamente na área dos estudos da linguagem e da literatura.

Manifestações em versoManifestações em verso

Por verso entende-se, tradicionalmente, como registra Mattoso Câmara,

"a frase ou o segmento frasal em que há um ritmo nítido e sistemático".50

Se nos limitarmos apenas à área fônica, podemos dizer, como Todorov,

que um verso é formado por uma sequência métrica de sílabas.

Na língua portuguesa, por exemplo, a métrica ou medida do verso é

constituída da combinação da regularidade do número de sílabas e da

disposição dos acentos tônicos. O ritmo do verso é consequência dessa

regularidade (ritmo silábico) e dessa disposição (ritmo intensivo).

O final do século XIX assiste ao aparecimento de um novo tipo de verso,

o verso livre, que deixa de ter na sílaba a sua unidade; caracteriza-se pela

sucessão de grupos fônicos valorizados pela entoação, pelas pausas e pela

maior ou menor rapidez da enunciação: tem, pois, seu ritmo apoiado na

combinação da entoação e das pausas. Vejamos o exemplo:

Pág. 63

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

49 Le degré zéro de l'écriture suivi des éléments de semiologie. Paris: Gauthier [s.d.]. p. 14, 16 e 17.50 CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de filologia e gramática referente à língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1964. p. 349.

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no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?51

Por entoação entende-se a linha melódica que caracteriza o enunciado: é

a escala de elevação da voz com que se enuncia uma frase.

Três elementos interdependentes costumam ser apontados como

relevantes na caracterização tradicional do verso: o metro, a rima e as formas

fixas. Na base deles, um ponto comum fundamental para a distinção entre

verso e prosa: a repetição (ou ritmo, ou periodicidade, ou paralelismo, ou

simetria). Por outro lado, essa interdependência também está presente nas

relações que vinculam o verso a outros traços linguísticos de um enunciado: a

versificação caminha junto com a significação.

O metroO metro

O metro apóia-se na repetição de três fatos linguísticos: a sílaba, o

acento, a quantidade.

A sílaba se constitui de um fonema-núcleo, chamado silábico,

acompanhado ou não de outros fonemas, chamados não-silábicos. Em termos

de verso, a sílaba só se converte em realidade linguística na leitura particular

que se chama metrificação ou escansão, como se vê no exemplo da página

seguinte.

Pág. 64

A / mor / é / fo / go / que ar / de / sem / se / ver /;

É / fe / ri /da / que / dói / e / não / se / sen / te

(Camões)

51 ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In: Reunião. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1969. p. 77.

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Já há algum tempo, têm surgido colocações mais amplas: além dos

procedimentos firmados pela tradição, procura-se utilizar as sílabas no verso

em função de aspectos visuais que envolvem cortes, desintegração e

duplicação de palavras etc. As vanguardas brasileiras dos anos 50 e 60

oferecem bom exemplo dessa técnica.

Escandir ou metrificar o verso é destacar as sílabas métricas de que ele

se compõe. Essa escansão envolve algumas normas que apresentam

pequenas alterações de idioma para idioma. Em português, a divisão silábica

do verso é semelhante à divisão silábica da prosa, com as seguintes

especificidades:

1ª) contam-se as sílabas somente até a última tônica, como nesse verso

de Cecília Meireles:

Ai / pa / la /vras / ai / pa / la / vras (sete sílabas métricas)

2ª) o encontro de duas vogais idênticas obriga o uso da crase, como

nesse outro verso de Cecília Meireles, sequência do exemplo anterior:

Que‡es / tra / nha / po / tên / cia‡a / vos /sa! (crases: e + e = e; a + a = a)

3ª) o encontro de vogai átona com vogai átona ou de vogal átona com

vogai tônica entre vocábulos leva a uma única sílaba métrica, numa relação

que se chama sinalefa; o exemplo a seguir é do mesmo poema de Cecília

Meireles, "O romance LIII"

Pág. 65

— Das palavras aéreas, do Romanceiro da Inconfidência, que cito pela

edição da Livros de Portugal:

O / mel / do‡a / mor / cris / ta / li / za (sinalefa: do‡a) seu / per / fu / me em

/ vos / sa / ro / sa

4ª) também se considera uma só sílaba a elisão, ou seja, no encontro de

vogais átonas ou de vogai átona com vogai tônica entre vocábulos, a primeira

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deixa de ser pronunciada:

sois / o / so / nho‡e / sois / a au / dá / cia (elide-se o final de sonho e lê-se

sonhe sois)

5ª) em alguns casos, no encontro de uma vogai nasal com uma vogai oral

entre vocábulos, desnasaliza-se a primeira, para efeito de metrificação. É o que

ocorre, por exemplo, no verso de Antônio de Castro Alves:

Eu quero marchar com os ventos,

Com os mundos... co'os firmamentos!!! (co'os = com os)

E Deus responde: — "Marchar!"

De acordo com o Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage,

de Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, "o acento consiste na ênfase que se

confere à duração, à altura ou à intensidade de um fonema silábico e que o

diferencia dos seus vizinhos"; a quantidade corresponde "às diferenças de

duração fonêmica que, em certas línguas, assumem função distintiva". A

quantidade é, por exemplo, a base do metro dos versos da literatura latina

clássica, apoiado na combinação de sílabas breves e longas.52

Pág. 66

A princípio, é possível distinguir três tipos de metro: o silábico, o acentuai

e o quantitativo, cada um apoiado, respectivamente na repetição regular do

número de sílabas, de acentos, de quantidades.

Normalmente, um verso associa mais de uma dessas dimensões.

O verso admite tantas medidas ou pés quantas forem as sílabas que

comporta o elemento que se repete.

O final do verso é caracterizado por uma pausa métrica.

Quando o final do verso caracteriza discordância sintática ou separação

de palavras de um grupo fônico, estamos diante do recurso estilístico chamado

52 Cf. DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Paris: Seuil, 1972. p. 240 e ss.

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cavalgamento ou "enjambement". Eis um exemplo nestes versos de João

Cabral de Melo Neto:

Do alpendre, o tempo pode ser

sentido: e na substância física

A propósito, vale lembrar as palavras de Maurice Grammont:

Não é exato que o enjambement suprima, como dizem alguns, a pausa do

fim do verso, nem que ele suprima ou mesmo enfraqueça o último acento

rítmico do verso; longe disso, a pausa final do verso que cavalga é tão nítida e

tão longa como as outras, e o seu último acento rítmico é também forte. Tudo

se reduz ao seguinte: enquanto nos versos comuns abaixamos a voz no fim de

cada verso, deixamo-la interrompida e suspensa no fim daqueles que

cavalgam. Daí resulta um aguçamento da atenção do auditor, que fica em

ansiosa expectativa durante a pausa. E como a voz não baixou, ela deve, na

parte excedente, aumentar de intensidade ou mudar de entoação.53

Pág. 67

Em outros termos, o enjambement é a não-coincidência entre a pausa

métrica e a pausa verbal (gramatical ou semântica). Admite, portanto, duas

leituras: uma, métrica; outra, semântica.

A rimaA rima

A rima é outro elemento que contribui para o ritmo do verso.

Rima é a coincidência de fonemas em determinados lugares do verso.

Tradicionalmente essa coincidência se dá no final do verso, mas pode

aparecer também no meio ou no início. Exs.:

Eu te amo, Maria, te amo tanto

Que o meu peito me dói como em doença

53 Petit traité de versification française. 3. ed. Paris: Armand Colin, 1916. p. 92-3.

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E quanto mais me seja a dor intensa

Mais cresce na minha alma o teu encanto

(Vinícius de Moraes)

São Paulo! comoção de minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original ...

Arlequina!!... Traje de losangos... Cinza e ouro...

Luz e bruma ... Forno e inverno morno...

(Mário de Andrade)

Se há identidade ou semelhança de todos os fonemas a partir da vogai

tônica, diz-se que a rima é soante, também conhecida como rima consoante ou

consonância. Ex.: tanto / encanto.

Se coincidem apenas as vogais tônicas ou as vogais a partir da tônica,

incluída esta, tem-se a chamada rima toante ou assonante ou assonância. Ex.:

Por ódio, cobiça, inveja,

vai sendo o inferno traçado.

Pág. 68

Os reis querem seus tributos,

— mas não se encontram vassalos.

Mil bateias vão rodando,

mil bateias sem cansaço,

(Cecília Meireles)

Há também a coincidência das consoantes no início dos termos; é a

chamada rima aliterada ou aliteração. Ex.:

Auriverde pendão da minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra,

E as promessas divinas da esperança...

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(Castro Alves)

Versos que não rimam são chamados soltos ou brancos. Ex.:

Aqui, além pelo mundo,

ossos, nomes, letras, poeira...

onde os rostos, onde as almas?

nem os herdeiros recordam

rastro nenhum pelo chão.

(Cecília Meireles)

A rima é um fenômeno fonético. Por essa razão, admitem-se rimas entre

palavras como catedrais/paz; nus/azuis:

Nunca mais, oh bomba atômica

Nunca, em tempo algum, jamais

Seja preciso que mates

Onde houver morte demais:

Fique apenas tua imagem

Aterradora miragem

Pág. 69

sobre as grandes catedrais:

Guarda de uma nova era

Arcanjo insigne da paz!

(Vinícius de Moraes)

Livre filho das montanhas,

Eu ia bem satisfeito,

Da camisa aberta o peito

— Pés descalços, braços nus

— Correndo pelas campinas

A roda das cachoeiras,

Atrás das asas ligeiras

Das borboletas azuis!

(Casimiro de Abreu)

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A caracterização das rimas que se estende ainda por ampla terminologia,

não atende, entretanto, ao consenso dos estudiosos e está a exigir

reformulações.

As formas fixasAs formas fixas

No âmbito das formas fixas chama-se estrofe a sucessão de dois ou mais

versos. Tais formas resultam da combinação de estrofes, que nos levam a

exemplos como o soneto, a balada, a lira etc.

Com o advento da modernidade, essas formas passaram a conviver com

outras e inúmeras modalidades, nascidas da liberdade criadora dos artistas da

palavra.

Verso, prosa, gêneros literáriosVerso, prosa, gêneros literários

As manifestações em verso envolvem dimensões líricas, épicas e

dramáticas, no sentido que lhes confere o crítico Emil Staiger. Já o romance, a

novela e o conto são manifestações literárias em que predomina o épico. Essa

lembrança nos leva a um

Pág. 70

dos mais complexos problemas da teoria literária, objeto de controvérsias e

múltiplas interpretações: os gêneros literários.

A problemática começa na delimitação da área semântica abrangida pelo

termo: a designação gênero ora se restringe a três grandes divisões

tradicionalmente fixadas — lírica, épica e drama e, logo, gênero lírico, épico e

dramático —, ora envolve manifestações literárias conhecidas como tragédia,

comédia, romance, conto, ode e outras.

Os estudiosos do assunto têm oferecido variadas explicações e

caracterizações, e alguns chegam a negar a importância de qualquer

classificação e até a existência dos gêneros como tal.

O assunto é inicialmente tratado pelos filósofos gregos Platão e

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Aristóteles.

O primeiro, embora não trate sistematicamente da literatura, escreve

sobre tragédia, comédia, ditirambo e poesia épica, fazendo referências, nos

seus Diálogos, que permitem depreender uma preocupação com a unidade e a

universalidade da arte e uma propensão para abolir divisões.

Aristóteles, com o qual nasce a preceptiva, estabelece em sua Poética

princípios ainda hoje válidos. Em relação à matéria, refere-se à épica, ao

drama e à poesia lírica como gêneros poéticos fundamentais. Estabelece

distinções apoiadas na natureza dos assuntos tratados e nos elementos

formais, como a métrica e a linguagem figurada.

Em Platão e Aristóteles já aparece a distinção entre poesia lírica, épica e

dramática baseada no '"modo de imitação' (ou de 'representação'): a poesia

lírica é a 'pessoa' do próprio poeta; na poesia épica, o poeta fala em primeira

pessoa, como narrador, e em parte faz falar seus personagens em estilo direto

(narração mista); no teatro, o poeta desaparece através da distribuição de

papéis".54

Pág. 71

O poeta Horácio codifica e leva para Roma as teorias gregas, inspirando-

se notadamente em Platão e cm Aristóteles. Quando trata dos gêneros,

caracteriza-os a partir de traços estilísticos e de variedades métricas; propõe

uma rigorosa separação para os gêneros que não permitia, por exemplo,

misturar, num mesmo texto, tragédia e comédia: cada uma teria o tom

adequado.

As teorias aristotélicas e platônicas horacianamente codificadas é que

informarão basicamente a literatura e a crítica literária do Ocidente nos séculos

XVI, XVII, XVIII e boa parte do XIX.

No século XVI, predomina, não sem polêmica, a adoção de critérios

rígidos e fica estabelecido, entre outros princípios, que: lírica é a poesia feita

das reflexões do poeta; dramática é a poesia em que a pessoa do poeta não

intervém; épica é um conglomerado das duas atitudes anteriores. Os gêneros,

concebidos como algo estático que não admite desenvolvimento, classificam-

54 Cf. WELLEK, René; WARRF.N, Austin. Teoria literária. Madri: Credos, 1953. p. 397-8.

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se em maiores e em menores: entre os primeiros, situavam-se a tragédia e a

epopéia; entre os menores, a comédia e a fábula, por exemplo. Na base da

divisão, o assunto, os personagens: a tragédia e a epopéia envolvem figuras de

reis, heróis e grandes personalidades; a comédia se centraliza, geralmente, em

personagens e problemas burgueses; a farsa tem como núcleo de interesse

elementos populares.

Na mesma época surge, ao lado dessa posição, uma atitude mais aberta,

segundo a qual novas formas literárias distintas das preconizadas por gregos e

romanos são consideradas legítimas; os gêneros tradicionais admitem

modalidades novas; admite-se que a literatura "moderna" pode ser superior à

greco-latina.

A polêmica permanece durante os séculos XVII e XVIII, fortalecidas as

teses "modernas" ainda mais com o desenvolvimento de novas manifestações

na arte literária, como o romance e o drama burguês.

A posição do século XIX destaca a liberdade e o ecletismo. São

representativas as palavras de Victor Hugo no prefácio de

Pág. 72

sua peça Cromwell, de 1827: "Metamos o martelo nas teorias, nas poéticas e

nos sistemas. Abaixo este velho reboco que mascara a fachada da arte. Não

há regras nem modelos; ou melhor, não há regras além das leis da natureza

que planam sobre toda arte e das leis especiais que, para cada composição,

derivam das condições próprias de cada assunto. As primeiras são eternas,

interiores, e permanecem; as outras, variáveis, exteriores, e servem apenas

uma vez".55

Outra tese do mesmo século entende que os gêneros nascem, crescem,

desenvolvem-se, transformam-se e desaparecem, como defende Ferdinand

Brunetière.

Mais radical é a posição do filósofo italiano Benedetto Croce, que confere

à teoria dos gêneros significação secundária, como um elemento extrínseco da

obra; para ele, esta deve ser estudada em si mesma, como expressão única de

realidades. A validade estética da obra de arte literária independe, segundo

55 VICTOR HUGO. Théâtre complet. Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1963. p. 434. v. 1.

Page 68: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Croce, de sua subordinação a este ou àquele gênero arbitrariamente

caracterizado.

Já o citado Staiger admite a existência de um estilo lírico, um estilo épico

e um estilo dramático caracterizadores das obras literárias, expressões a que

dá preferência, por serem mais dinâmicas. Para ele, qualquer obra autêntica

participa dos três gêneros literários, e a sua classificação é ditada pela

predominância das características deste ou daquele estilo; a idéia do que seja

lírico, épico ou dramático ocorre em cada indivíduo a partir de algum exemplo

que pode ou não ser uma obra literária: "Posso ter vindo a conhecer a

significação ideal — para falar com Husserl — do 'lírico' por meio de uma

paisagem, e do 'épico' talvez por uma leva de imigrantes; uma discussão pode

ter-me incutido o sentido do 'dramático'", esclarece aquele estudioso nos seus

Conceitos fundamentais da poética.

Pág. 73

Outras perspectivas para o estudo dos gêneros literários colocam o centro

das atenções na estrutura linguística da obra; é o caso da posição de Roman

Jakobson.

Em resumo, os estudos sobre a matéria envolvem duas teorias:

a) a teoria clássica, que considera os gêneros a partir de critérios rígidos,

como entidades nitidamente caracterizadas em sua estrutura: estabelece

normas (embora não tão autoritárias como à primeira vista se poderia supor),

preconiza uma diferença entre os diversos gêneros em termos de natureza e

hierarquia c determina sua separação;

b) a teoria moderna, que se vale de critério aberto, admitindo os gêneros

como realidades dinâmicas que possibilitam mudanças, variações e

imbricações. É descritiva e não normativa.

Como quer que seja, apontam-se tradicionalmente três gêneros — o

lírico, o épico e o dramático —, que se configuram em formas ou manifestações

como o poema, o romance, o conto, a novela, a tragédia, a comédia etc,

admitindo-se variantes, formas mistas e o aparecimento de novas realizações

artísticas, a cada passo evidenciadas nas rupturas dos movimentos de

vanguarda.

Page 69: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Vale registrar que as tradicionais modalidades da narrativa de ficção, bem

como as manifestações em verso, vêm modernamente perdendo contornos; as

formas vêm-se descaracterizando como tal, e novos modelos surgem

desafiando a argúcia e a ciência dos estudiosos. E se a teoria dos gêneros já

vem sofrendo, há muito, contestações, essas mudanças acentuam ainda mais

a problemática que as envolve.

Essa, entretanto, já é outra história.

Fecho essas considerações sobre as manifestações em prosa e em verso

lembrando uma modalidade que assumiu notável desenvolvimento na realidade

brasileira: a crônica.

Navegando entre o literário e o não-literário, a crônica, como o nome

indica, retira sua configuração da dinâmica do tempo dos

Pág. 74

limites do qual se libera, por força da linguagem estética em que se concretize.

Faz-se de fatos e comentários do autor sobre a realidade próxima ou distante,

mas sempre a partir de uma óptica atualizada. Trata-se de uma forma literária

que encontrou nos veículos de comunicação de massa, notadamente nos

jornais e revistas, seu principal e dominante instrumento de divulgação,

embora, em segundo plano, venha frequentando também os espaços do livro.

Os bons exemplos vêm desde Machado de Assis e passam por autores como

Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Antônio Maria, Sérgio Porto,

Henrique Pongetti, Raquel de Queirós, Fernando Sabino, Paulo Mendes

Campos, Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo, João Ubaldo

Ribeiro, Zuenir Ventura e alguns outros que asseguraram a instauração e a

permanência dessa modalidade de texto ao que parece essencialmente

brasileiro.

Questões em abertoQuestões em aberto

Além desses traços característicos do discurso literário que já desfrutam

de razoável consenso (embora alguns permaneçam marcados de alguma

polêmica), outros há que, até o momento em que escrevo, permanecem como

Page 70: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

questões ainda não plenamente equacionadas. Entre eles assinalo alguns:

A questão do referenteA questão do referente

O assunto divide os estudiosos. Para alguns, o texto literário não tem

referente.56

O referente se liga ao contexto extraverbal; se situaria, portanto, fora da

linguagem; o sentido das palavras, no texto literário, emerge do próprio texto e

se apóia sobretudo na dimensão co-

Pág. 75

notativa. A tese parece sustentar-se, mais ainda se pensamos em termos de

mímese das aparências e só essa ausência de referente quiser significar que

ele é, no caso, fictício ou imaginário.

A posição, no entanto, não resiste à consideração de alguns fatos: se

acreditamos que o texto literário é uma desrealização do real que remete à

profundidade desse real; se aceitamos o texto como concretizador de uma

mímese das essências; se pensamos em textos autobiográficos, ou em certas

narrativas hiper-realistas contemporâneas, em que as fronteiras do real e do

imaginário parecem diluir-se; se entendemos que os traços literários envolvem

não apenas a totalidade do texto de literatura mas podem ser configurados em

fragmentos e passagens — aí então o referente se evidencia, embora esteja

sempre presente a dimensão conotativa.

A propósito, vale lembrar a posição de Jakobson, para quem "a

supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a

referência (a denotação) mas a torna ambígua".

A problemática permanece, com acentuada tendência de muitos a

considerar que o texto literário é um simulacro de referente e de outros a

entender que algo da realidade abriga-se nos espaços do ficcional.

IntertextualidadeIntertextualidade

56 Cf. TODOROV, T. Note sur le langage poétique. Semiótica 1. Paris: 1969. p. 323-8.

Page 71: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

O termo "intertextualidade" foi proposto por Mia Kristeva como substituto

de dialogismo, conceito lançado pelo teórico soviético Mikhail Bakhtin (1895-

1975).57

Em oposição ao pensamento saussuriano, que privilegia a língua em sua

dimensão ideal, Bakhtin concentra suas atenções

Pág. 76

na fala (ou discurso), que considera intrinsecamente ligada às condições da

comunicação, por seu turno vinculadas às estruturas sociais.

Considera também a consciência individual como um fato sócio-ideológico

c entende que a linguagem implica um contexto histórico-social: o homem se

transforma num ser histórico e social, segundo ele, a partir dos signos que lhe

comunicam o mundo. E esses signos são sempre impregnados de ideologia,

uma vez que esta reflete as estruturas sociais.

As palavras de um enunciado estariam assim carregadas de significação

vinculada a inúmeros contextos vividos, e toda comunicação envolveria a

interação de um falante, um destinatário e um "personagem" (de que se fala),

envoltos por um horizonte comum que possibilita a compreensão dos

elementos ditos e não-ditos.

Ainda segundo sua teoria, a realização de qualquer comunicação ou

interação verbal envolve uma troca de enunciados, situa-se na dimensão de

um diálogo.

Por consequência, como resume Todorov, para ele, "o estilo é, pelo

menos, dois homens, ou mais exatamente, o homem e seu grupo social,

encarnado por seu representante acreditado, o ouvinte, que participa de

maneira ativa da fala interior e exterior do primeiro".

A luz desses posicionamentos, o discurso literário envolve um

cruzamento, um diálogo de vários textos, que se dá em nível horizontal e em

nível vertical: em termos de horizontalidade, a palavra, no texto, pertence, ao

mesmo tempo, a quem escreve e ao destinatário; verticalmente, é orientada na

57 Cf. KRISTEVA, Julia. Présentation. In: BAKHTIN, M. La poétique de Dostoievski. Paris: Seuil, 1970; TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtin: le príncipe dialogique suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris: Seuil, 1981.

Page 72: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

direção do corpus literário anterior ou do contemporâneo.

Bakhtin chama a esses dois níveis de diálogo e ambivalência, achado a

que Kristeva prefere denominar intertextualidade.

Pág. 77

Todo texto se converteria assim num mosaico de citações e absorção e

transformação de outros textos, consciente ou m conscientemente

aproveitados pelo escritor.

A questão, entretanto, é mais uma que não é simples e se encontra

aberta a amplas discussões, ampliações, contestações, avaliações, até porque

os textos de Bakhtin envolvem problemas: seus primeiros trabalhos foram, até

mesmo, assinados por seus discípulos Volochinov e Medvedev.

A caracterização da intertextualidade, porém, permite "ler", por exemplo,

em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, a presença de Os sertões, de

Euclides da Cunha, e do discurso da Bíblia; o texto bíblico, aliado ao texto da

mitologia clássica e ao texto da história do Brasil, aparece em Esaú e Jacó, de

Machado de Assis (a propósito, pode-se ler, de Affonso Romano de Sant'Anna,

estudo publicado em Análise estrutural de romances brasileiros); a mesma

Bíblia, a história da conquista da América e o mito edipiano cruzam-se em Cem

anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, como demonstra Selma Calasans

Rodrigues em tese de doutorado apresentada à Faculdade de Letras da UFRJ,

em 1985, só para citar três exemplos significativos.

O fértil conceito bakhtiniano deixa perceber ainda limites do plano de

conotação que envolvem desde dimensões individuais até as dimensões dos

gêneros literários. Em que pese a complexidade que o marca, é fora de dúvida

que se presentifica com relevância no discurso literário. A tal ponto que tem

merecido ampliações e aprofundamentos de vários estudiosos58 e frequentado

inúmeros estudos críticos de textos.

A noção de dialogismo se liga à de paródia revitalizada por Bakhtin e esta

à de carnavalização. Mas já se trata de assuntos que fogem aos limites deste

livro.

58 V., a propósito, GENETTK, Gerard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982; MOISÉS, Leila Perrone. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978.

Page 73: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Pág. 78

FechamentoFechamento

O texto literário se caracterizaria por um começo, um meio e um fim.

Seria, portanto, marcado por um fecho. A questão, porém, é outra, longe de ser

pacífica.

Considerada a história narrada, o texto pode não se fechar e deixar em

aberto à imaginação do leitor ou ouvinte a solução ou as soluções para as

tensões ou os conflitos nele apresentados, É o caso, por exemplo, de Dom

Casmurro, de Machado de Assis, que chega a converter-se num enigma a

propósito de Capitu, personagem feminina central, e do romance A grande arte,

de Rubem Fonseca, cujo término, no espaço da trama, é marcadamente

ambíguo.

Em termos estruturais, a partir do entendimento de que o texto literário se

constitui de relações recíprocas entre discurso c narrativa, Michel Arrivé, por

exemplo, conclui, apoiado era considerações e conceitos de Julia Kristeva, que

pode haver abertura ou fechamento, à luz desses dois níveis.

O discurso, no caso, será fechado quando ele mesmo manifestar seu

próprio finalizar-se, através de signos do tipo "agora aplaudam", ou quando sua

própria natureza o indicar, como acontece, por exemplo, com os poemas de

forma fixa, como o soneto. Discurso, nessa perspectiva, é compreendido como

o encadeamento ou a concatenação das unidades propriamente linguísticas

(do fonema à frase) que tornam o texto manifesto. Vale esclarecer que, na

literatura moderna, é raro esse tipo de fechamento formal explicitado.

O fechamento da narrativa se dá "quando o conjunto de suas sequências

está implícito na primeira sequência dentre elas" (exemplo: a tragédia clássica),

ou quando se explicita na última sequência. Ocorre também quando, em alguns

casos, a ação central desta última sequência não pode seguir além de um

Pág. 79

termo implícito na própria estrutura do conteúdo da ação, como é o caso dos

romances policiais, por exemplo. Nos textos em que a ação da última

Page 74: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

sequência admite o prosseguimento para além do discurso acabado, a

narrativa permanece aberta.59

59 ARRIVÉ, Michel. La sémiotique littéraire. In: POTTIER, Bernard (Org.). Le langage. Paris: La Bibliothèque du CEPL, 1973. p. 276-8.

Page 75: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Pág. 80

6 6

Vocabulário críticoVocabulário crítico

Comunicação: em sentido restrito, é a troca de mensagens ou

informações entre seres humanos. Se pensamos na etimologia da palavra,

pode ser entendida como a faculdade que tem o homem de tornar comum a

outrem seus pensamentos, sentimentos e desejos e as coisas do mundo que o

cercam. Em sentido amplo, envolve também a realidade técnica da relação

entre o homem e as máquinas (por exemplo, os computadores) e das

máquinas entre si, além de estender-se ao mundo animal e aos sistemas

próprios do interior do indivíduo, como, por exemplo, os sinais transmitidos

pelos feixes de nervos do organismo.

Conotação: pode ser compreendida como a parte do sentido de uma

palavra centralizada na sua capacidade de funcionar para a manifestação

psíquica ou a atuação social, ou seja, centralizada nas funções emotiva e

conativa da linguagem.

Cultura: trata-se de um termo que admite centenas de conceituações. À

luz da antropologia, podemos entendê-lo como o conjunto e a integração dos

modos de pensar, sentir e fazer adotados por uma comunidade, na busca de

soluções para os problemas da vida humana associativa. (Ver outras definições

no corpo do livro.)

Pág. 81

Designação: referência à "realidade", isto é, na terminologia linguística

proposta por Eugênio Coseriu, a relação cada vez determinada entre o signo e

a "coisa" designada.

Estilo (individual): a partir do conceito de Helmut Hatzfeld, é o aspecto

particular que caracteriza a utilização individual da língua e que se revela no

conjunto de traços situados na escolha do vocabulário, na ênfase nos termos

Page 76: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

concretos ou abstratos, na preferência por formas verbais ou nominais, na

propensão para determinadas figuras de linguagem, tudo isso vinculado à

organização do que se diz ou se escreve e a um intento de expressividade. Os

estudos relacionados com o estilo envolvem, em síntese, dois

posicionamentos: há aqueles que o consideram como resultante de um

conjunto de escolhas em relação à língua; outros entendem que se trata de um

desvio em relação à norma gramatical.

Estilo de época: ainda com apoio no mesmo Hatzfeld, é a atitude de uma

cultura que surge com tendências análogas nas manifestações artísticas, na

religião, na psicologia, na sociologia, nas formas de polidez, nos costumes,

vestuários, gestos etc. No que diz respeito à literatura, essa modalidade só

pode ser avaliada "pelas contribuições dos estilos individuais, ambíguas em si

mesmas, constituindo uma constelação que aparece em diferentes obras e

autores da mesma era e parece informada pelos mesmos princípios

perceptíveis nas artes vizinhas".

Fala ou discurso: é a utilização individual da língua; é um conglomerado

de fatos assistemáticos e, em relação à língua, "um ato de seleção e

atualização", como explicita Barthes. O conceito tem merecido reformulações.

Língua: entre outras acepções, é a realização de uma linguagem por um

grupo social, um sistema de signos que permite configurar e traduzir a

multiplicidade de vivências caracterizadoras do ser de cada um no mundo.

Pág. 82

Linguagem: o termo admite múltiplas conceituações, entre elas: a

linguagem é uma das formas de apreensão do real. Para Ernst Cassirer, é a

faculdade que o homem tem de expressar seus estados mentais por meio de

um conjunto de sons vocais chamado língua que é, ao mesmo tempo,

representativo do mundo interior e do mundo exterior. Tatiana Slama-Casacu a

considera "um conjunto complexo de processos — resultado de certa atividade

psíquica profundamente determinada pela vida social — que torna possível a

aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer". Lotman a entende

como "qualquer sistema de comunicação que utiliza signos organizados de

maneira particular".

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Mímese: o termo pode ser descodificado, à luz de Aristóteles, como

imitação. Imitar, no caso, significa muito mais do que a simples reprodução ou

"fotografia" do real, embora com essa acepção a palavra tenha atravessado os

séculos e dominado, não sem alguma controvérsia, a literatura ocidental. A

partir dos fins do século passado, após um novo entendimento da teoria

aristotélica, passou a ser compreendido como revelação da essência do real.

Ao lado dessa tradição como imitação das essências, envolve ainda, na

estética do Ocidente, conforme assinala Stefan Morawski, uma tradição

platônica (imitação das aparências) e uma tradição demo-crítica (imitação das

ações da natureza). Admite também a pronúncia como paroxítono, embora

alguns estudiosos prefiram reservar essa forma para a figura de retórica

homônima e usar a forma proparoxítona (mímese) para marcá-la na condição

de conceito de poética e de estética, como propõe José Guilherme Merquior.

Norma: por norma, em sentido restrito, compreende-se, segundo Mattoso

Câmara, "o conjunto de hábitos linguísticos vigentes no lugar ou na classe

social mais prestigiosa do país".

Pág. 83

Mais amplamente, pode ser entendida, de acordo com Coseriu, como "um

sistema de realizações obrigatórias consagradas social e culturalmente que

não corresponde ao que se pode dizer mas ao que já se disse e

tradicionalmente se diz na comunidade considerada".

Sentido: em termos amplos, é a significação da palavra no texto, o

conteúdo próprio de um texto.

Significado: é, para ficarmos apenas com Coseriu, "o conteúdo de um

signo ou de uma expressão enquanto dado numa determinada língua e

exclusivamente através dessa mesma língua".

Significante: é, numa dada língua, a parte fônica do signo que, na

relação com o significado, garante a significação. O significante envolve

aspectos físicos, ou seja, vibrações sonoras, e aspectos psicológicos, a saber,

que implicam comando cerebral. É claro que ao termo se estende a mesma

complexidade dos seus correlatos, signo e significado.

Signo: é, segundo a conceituação de Charles Sanders Peirce, qualquer

Page 78: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

elemento que, sob certos aspectos e em certa medida, representa outro. Na

lição clássica de Saussure, corresponde à combinação de significante (imagem

acústica) e significado (conceito). A conceituação do termo é, entretanto,

bastante ambígua e complexa.

Sistema: é um conjunto organizado, isto é, integrado por elementos que

se interdependem.

Verso: por verso entende-se, tradicionalmente, a frase ou o segmento

frasal em que há um ritmo nítido e sistemático. De acordo com Mattoso

Câmara, na língua portuguesa, o ritmo desse tipo de verso é "consequência da

regularidade do número de sílabas (ritmo silábico) e da disposição dos acentos

tônicos (ritmo intensivo). Essas duas regularidades combinadas constituem a

medida ou a métrica do verso". A par-

Pág. 84

tir do final do século XIX, floresce uma nova modalidade de verso, o chamado

verso livre; caracteriza-se por deixar de ter na sílaba a sua unidade rítmica; seu

ritmo se apóia na combinação da entoação e das pausas, ou seja, na sucessão

de grupos fônicos valorizados pela entoação, pelas pausas e pela maior ou

menor rapidez da enunciação.

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Pág. 85

7 7

Bibliografia comentadaBibliografia comentada

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética [Art rhétorique et art poétique].

São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. Obra de importância básica para a

teoria e a crítica literárias. É com Aristóteles que nasce a preceptiva. Com base

na análise do legado artístico de seu povo, o filósofo grego elabora a sua Arte

poética, de importância fundamental para a história não só da crítica literária

mas do próprio pensamento humano. A Arte retórica trata da eloquência, de

notável presença na Atenas de seu tempo. Nela, o autor aponta os

procedimentos que o orador deve adotar para conduzir os ouvintes à

persuasão que objetiva, a partir de processos dialéticos. A Arte poética,

também centrada no bem dizer, apresenta inúmeras idéias fundamentais sobre

a arte e a literatura. Diante da natureza da matéria que envolve e da linguagem

utilizada, deve-se consultar, de preferência, uma edição comentada.

AUERBACH, Eric. Mimésis: la représentation de la réalité dans la littérature

occidentale. Paris: Gallimard, 1968. O livro estuda a interpretação da realidade

histórica e social em textos representativos, desde o Gênesis e a Odisséia até

obras de Proust, Joyce e Virgínia Woolf. Trata-se de obra já

Pág. 86

clássica sobre a questão da mímese. Pode ser consultada a edição brasileira

da Perspectiva: Mímesis.

BARTHES, Roland. Le degré zero de l'ecriture suivi de éléments de

sémiologie. Paris: Gonthier [s.d.].

O livro se faz, como o título indica, de dois estudos. O primeiro, Le degré

zéro de l'ecriture, procura responder a duas questões básicas: o que é

literatura e que ligações se estabelecem entre ela e a história. Nesse percurso,

o autor situa os diferentes domínios da fala, da língua, do estilo e trata do

Page 80: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

problema geral das condições necessárias de uma linguagem. Apresenta

também o conceito de escritura, como complementar das conceituações de

estilo e de língua, situando-o em sua relação com o engajamento do escritor na

sociedade de que participa. O segundo trata, de forma didática, do objeto de

estudo da semiologia e de pesquisas na área. Podem ser consultadas edições

brasileiras, da Cultrix: Elementos de semiologia e Novos ensaios críticos / O

grau zero da escritura.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/ Edusp,

1977.

O livro engloba seis ensaios marcados pela percuciência crítica e pela

profundidade das considerações: "Imagem e discurso", "O som no signo",

"Frase, música e silêncio", "O encontro dos tempos", "Poesia resistência" e

"Leitura de Viço". Trata desde a essência da poesia até as formas de sua

atualização histórica, como se pode depreender do título da obra.

________. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos.

São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Uma proposta exemplar de leitura crítica, centrada na polissemia do texto

machadiano. Destacadas as reflexões sobre

Pág. 87

as Memórias póstumas de Brás Cubas, objeto dos três primeiros ensaios. Os

demais focalizam a política nas crônicas do autor e a visão de Raymundo

Faoro sobre a obra do Bruxo do Cosme Velho. Estudos convergentes. No

percurso, um diálogo do crítico com outras leituras críticas. Na conclusão, a

proposta fundamentada de uma leitura do romance fundada numa visão

integradora, de caráter hermenêutico, apoiada na "combinação de vetores

formais, existenciais e miméticos, sem que uma instância monocausal tudo

regule e sobredetermine".

Buzzi, Arcângelo. Introdução ao pensar. 3. ed. rev. e aum. Petrópolis:

Vozes, 1971.

Num texto didático e bastante acessível, mesmo para os não iniciados em

filosofia, o autor discorre sobre o ser, o conhecer e a linguagem e suas

Page 81: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

relações.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de filologia e gramática

referente à língua portuguesa. 2. ed. ref. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1964.

Nova edição enriquecida da obra anteriormente denominada Dicionário de

fatos gramaticais. Com a segura fundamentação do autor, pioneiro dos estudos

de linguística no Brasil, o livro objetiva, em suas próprias palavras, "dar em

ordem alfabética, para consultas ocorrentes, as noções gramaticais, como base

para a compreensão estrutural, funcional e histórica da língua portuguesa".

CARVALHO, J. G. Herculano de. Teoria da linguagem: natureza do

fenômeno linguístico e análise das línguas. Coimbra: Atlântida, 1967. v. I e II.

Situa didática e claramente, à luz de um rigoroso espírito crítico,

problemas como a natureza da linguagem e do sinal,

Pág. 88

a análise do saber linguístico e do ato da fala, a funcionalidade e a mudança na

linguagem.

COSERIU, Eugênio. Lições de linguística geral [Lezioni di linguística

generale]. Trad. de Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

O livro reúne as lições que o renomado linguista contemporâneo ministrou

nos cursos de atualização para professores de literatura e de línguas

estrangeiras, na Itália, de 1968 a 1971. Obra marcada pela originalidade de

várias propostas, estuda questões relacionadas com as teorias linguísticas

modernas a partir de uma "consideração estrutural e funcional, numa

concepção dinâmica da língua". Coseriu identifica e explicita ainda os três

níveis de linguagem referidos: o universal, o histórico e o individual. Texto

fundamental para uma visão atualizada de importantes questões ligadas à

linguagem.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique des

sciences du langage. Paris: Seuil, 1972. Trata-se de um dicionário que busca

explicitar termos da linguística, da literatura e de disciplinas afins. Compõe-se

de cinquenta e sete artigos que envolvem cerca de oitocentas definições, o que

possibilita, por força do índice final que o integra, a consulta pela ordem

Page 82: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

alfabética e a leitura corrida. Artigos e conceitos são acompanhados de

indicações bibliográficas complementares que permitem aprofundamento e

ampliação de conhecimentos sobre a matéria tratada. Possibilita conhecer um

dos vários e distintos posicionamentos relacionados com a linguagem, a

literatura e a teoria literária.

ESCARPIT, Robert (Dir.). Le Uttéraire et le social: éléments pour une

sociologie de la littérature. Paris: Flammarion, 1970.

Pág. 89

A obra envolve, em diferentes ensaios, apreciações originais sobre a

sociologia da literatura, mais bem aproveitadas pelo leitor que já tenha um

convívio com o tema. Há no livro um documento assinado por Robert Escarpit

— denominado "La définition du terme 'littérature'. Project d'un arti-cle pour un

dictionnaire international des termes littéraires" — que permite, entretanto, uma

visão da etimologia do termo e do percurso histórico de sua significação.

FRYE, Northrop. Anatomie de la critique [Anatomy of criticism]. Paris:

Gallimard, 1969.

O livro é, desde 1957, um dos mais importantes textos da crítica literária

anglo-saxônica. Nele, o autor procura definir a literatura e a crítica literária e, no

âmbito desta última, tece considerações sobre quatro tipos: a crítica histórica, a

crítica etológica, a crítica retórica e a crítica dos arquétipos. Leitura de grande

interesse, sobretudo na área das relações entre literatura e mito. Pode ser lido

na edição brasileira, da Cultrix: Anatomia da crítica.

JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1966.

Em onze ensaios, o autor trata, com percuciência, da maioria das

questões fundamentais da linguística estrutural, no âmbito da fonologia, da

semântica, da retórica e da poética. Importante para os interessados nos

estudos da linguagem literária é o já clássico "Linguística e poética", que

examina, entre outros aspectos, os fatores do processo linguístico da

comunicação e as funções da linguagem.

LEFEBVE, Maurice-Jean. Structure du discours de la poesie et du récit.

Neuchâtel: La Baconnière, 1971. Livro centralizado numa tese pessoal do autor

Page 83: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

a propósito da estrutura e do funcionamento do discurso literário, converte-

Pág. 90

se, por outro lado, num texto didático mobilizador de reflexões sobre uma série

de noções e questões relevantes relacionadas com as características da

linguagem da literatura.

IÉVAVASSEUR, Aline. Style et stylistiquc. In: MARTINET, André (Dir.). La

linguistique. Paris: Denoël [1969]. A autora rastreia o conceito de estilística

desde o seu aparecimento e questiona e discute as várias posições dos

estudiosos a propósito do conceito de estilo.

LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das

Letras, 2006.

Teórico da literatura, o autor discute a especificidade dos termos que dão

título à obra, seus limites, suas fronteiras. Aponta distinções entre ficcional e

literário. Rastreia percursos conceituais, notadamente o da literatura. Propõe

reformulações, mobilizadoras da reflexão do leitor, num texto rigorosamente

fundamentado.

LOTMAN, Iouri. La structure du texte artistique. Paris: Gallimard, 1975.

A obra envolve uma síntese e uma retomada crítica dos trabalhos dos

formalistas russos e dos estruturalistas, com referências às contribuições de

Tynianov, Bakhtin, Roman Jakobson, Roland Barthes e Christian Metz, entre

outros. Centrada na especificidade da informação artística, inclui amplo e

importante estudo sobre a arte como linguagem e sobre a linguagem poética.

MANHEIM, Karl. Ideologia e utopia [Ideology and utopia]. 3. ed. Rio de

Janeiro: Zahar, 1976.

Obra importante para o entendimento da mudança social e sua relação

com a ideologia, cuja complexa conceituação é objeto do capítulo II.

MAKTINET, André (Dir.). La linguistique. Paris: Denoël, 1969.

Pág. 91

Obra coletiva, é um guia alfabético que reúne 51 artigos relacionados com

Page 84: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

as principais noções da linguística moderna. Segura introdução ao

conhecimento de conceitos básicos vinculados à linguagem.

MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese: ensaios sobre lírica.

Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. Merquior, com a segura fundamentação e a

inteligência que marcam seus escritos, reúne nove ensaios sobre temas

teóricos e sobre textos de autores como Rilke, Carlos Drummond de Andrade,

João Cabral de Melo Neto, José Carlos Capinan e Francisco Alvim. O primeiro

deles, sobre a natureza da lírica, é uma excelente introdução ao entendimento

da mimese em literatura.

OLSEN, Stein Haughom. A estrutura do entendimento literário [The

structure of literary understanding]. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

A obra tem, como propósito, a "tentativa de explicar a natureza da reação

do leitor à obra literária". Nesse sentido, descreve e questiona as teorias que

consideram a literatura expressão de emoção, revelação de um tipo especial

de verdade e modalidade específica de linguagem, e também busca fazer a

"anatomia" dos julgamentos literários. Em que pese o caráter polêmico do

texto, é uma leitura informativa, rica e instigadora.

PENUELAS, Marcelino C. Mito, literatura y realidad. Madrid: Gredos, 1965.

O livro situa o mito e suas relações com a linguagem e a literatura.

Excelente ponto de partida para um conhecimento dessa rica área de estudos,

com aprofundamento possibilitado pela bibliografia que apresenta.

Pág. 92

Pignatari, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. São Paulo:

Perspectiva, 1968.

Trata, de forma clara e didática, de questões ligadas à comunicação e à

linguagem. O capítulo 2 é uma excelente introdução à teoria dos signos.

PORTELLA, Eduardo et al. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1975.

A obra se faz de sete ensaios instigadores de reflexão: "Limites ilimitados

da teoria literária", de Eduardo Portella; "Crítica e história literária", de Manuel

Antônio de Castro; "Os estilos históricos na literatura ocidental", de José

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Guilherme Merquior; "Os gêneros literários", de Helena Parente Cunha;

"Análise da narrativa", de Maria do Carmo Pandolfo; "Semiologia e literatura",

de Muniz Sodré e "A paraliteratura", de Anazildo Vasconcelos da Silva.

POUILLON, Jean. Temps et roman. 3. ed. Paris: Gallimard [s.d.]. Estudo

básico sobre o romance; com apoio em textos representativos, trata da questão

do tempo e de outras questões teóricas relevantes, como a intenção

romanesca, a imaginação, a autobiografia, os diferentes modos de

conhecimento do "eu", os personagens etc. Pode-se ler a edição brasileira, da

Cultrix/Edusp: Tempo e romance.

PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura. 14. ed., 5. reimpr.

São Paulo: Ática, 2002.

Este livro pretende ser, em princípio, uma introdução aos estudos de

literatura, a partir de textos comentados, com ênfase numa visão ampla dos

movimentos literários desenvolvidos no mundo ocidental. Incluídas

considerações sobre o chamado Pós-modernismo. Nele apresento,

notadamente nos quatro primeiros dos treze capítulos que o constituem e em

inúmeras notas, considerações e informações sobre lin-

Pág. 93

guagem e arte literária, além de uma extensa bibliografia de apoio. Acredito

que possa ser utilizado com algum proveito por quem se inicie nesses

assuntos.

REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos

literários. Coimbra: Almedina, 1995. A obra apresenta e examina

exaustivamente conceitos operacionais relevantes no âmbito da teoria da

literatura. Analisa e discute o conceito de literatura, o texto literário, a

periodologia literária, modos e gêneros do discurso. Tece, entre outras,

considerações sobre a poesia lírica, sobre o diálogo entre a literatura e a

História, sobre a criação poética, sobre o diálogo intertextual. Na

fundamentação, ampla e atualizada bibliografia.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística general [Cours de

linguistique générale]. Publicado por Charles Bally y Albert Sechehaye con la

colaboración de Albert Riedlinger. 2. ed. Buenos Aires: Losada, 1955.

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Livro pioneiro e fundamental, leitura imprescindível para quem quer que

se preocupe com os estudos da linguagem. Além da edição citada, preparada

pelos discípulos do mestre genebrino, deve-se consultar a edição feita por Túlio

de Mauro, lançada pela Payot, 1972.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. São Paulo: Martins

Fontes, 1976.

Obra nascida dos cursos da disciplina que o autor ministrou na Faculdade

de Letras de Coimbra, oferece um amplo leque de aspectos da problemática do

fenômeno literário rigorosa e exaustivamente examinados. Uma ampla

bibliografia possibilita maior aprofundamento nos estudos da área. Leitura

básica para um conhecimento de conceitos fundamentais da teoria literária.

Pág. 94

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética [Grundbe-griffe des

poetik]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. O livro envolve uma

compreensão renovada e original do que se entende por épico, lírico e

dramático e, até certo ponto, por trágico e cômico. Leitura importante para uma

visão atualizada desses conceitos, ainda objeto de posições polêmicas e não

raro contraditórias.

THÉORIE de la litterature. Textes des formalistes russes. Paris: Seuil, 1965.

O livro se faz de quatro partes que tratam, respectivamente, das linhas

mestras da metodologia formalista, de estudos sobre ritmo e verso, de uma

teoria da prosa e suas manifestações (o conto, a novela e o romance) e de um

apêndice com uma exposição dos temas principais ligados à teoria da

literatura. Não é uma obra de iniciação nos estudos de literatura; sua leitura

exige conhecimento prévio dos conceitos básicos da teoria literária; vale

lembrar, entretanto, que o trabalho dos formalistas repercutiu marcadamente

nos estudos linguísticos e literários contemporâneos, seja entre os

participantes do Círculo Linguístico de Praga, como Jakobson por exemplo,

seja entre estudiosos que defendem posições modernas da teoria da

informação, passando por estruturalistas como Roland Barthes, Claude Lévy-

Strauss e Michel Foucault, entre outros. Pode-se ler a edição brasileira

organizada por Dionísio de Oliveira Toledo e publicada pela Editora Globo,

Page 87: A Linguagem Literária - Domício Proença Filho - Série Princípios (doc) (rev)

Porto Alegre, 1976.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura [Theory of

Literature]. Lisboa: Europa-América, 1962. Obra já clássica no âmbito dos

estudos de teoria literária, propõe-se, como explicitam os autores no prefácio,

"unir a

Pág. 95

'poética' (ou teoria literária) e o 'criticismo' (valoração da literatura) à 'erudição'

(investigação') e à 'história literária' (a 'dinâmica' da literatura em contraste com

a 'estática' da teoria e do criticismo)". É mais um posicionamento, entre tantos,

a propósito de conceitos básicos da teoria da literatura e permite comparações

esclarecedoras.

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