da escola pÚblica paranaense 2009 · teóricas: a poesia dos inconfidentes, de domício proença...

22
O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Produção Didático-Pedagógica Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7 Cadernos PDE VOLUME I I

Upload: others

Post on 23-Jul-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Produção Didático-Pedagógica

Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE

VOLU

ME I

I

Page 2: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

CARTAS CHILENAS SOB O OLHAR CONTEMPORÂNEO

Celimara Cristine Lima Strelow (PDE- SEED)

Rita Felix Fortes (UNIOESTE)

RESUMO: No presente artigo propõe-se analisar as satíricas Cartas Chilenas, cujo

autor provável é Tomás Antônio Gonzaga, retomando o contexto histórico de Vila Rica, no período da Inconfidência Mineira, momento que contribuiu para a formação do sentimento nativista brasileiro. O presente estudo pauta-se nas seguintes obras teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética, de Mikhail Bakhtin. Tendo em vista o tom satírico das Cartas Chilenas, toma-se as mesmas como modelo que auxilia na visão geral do Brasil colônia e, durante a análise, resgatar-se-á os versos que explicitam os desmandos do governador Luís da Cunha Meneses / O Fanfarrão Minésio. Ao retomar as missivas gonzaguianas, estabelecer-se-á um diálogo com o poema Quando levares, Marília, / teu ledo rebanho ao prado, dedicado à amada Marília, musa inspiradora da obra Marília de Dirceu. O poema lírico insere-se no estudo por fazer parte da obra composta na masmorra e, apesar do lirismo, os versos reiteram as intenções de denúncias. A partir da releitura da obra Cartas Chilenas, traz-se à tona reflexões pertinentes ao atual cenário político brasileiro. O estilo empregado por Tomás Antônio Gonzaga, no final século XVIII, é recuperado em epístolas atuais, com isso, encerra-se o estudo mencionado uma carta contemporânea que, pelo estilo e conteúdo abordado, vincula-se às Cartas Chilenas.

PALAVRAS-CHAVE: Cartas Chilenas, sátira, diálogo, cenário político. ABSTRACT: This article proposes to analyse the satirical Chilean Letters, Whose author is likely Tomas Antonio Gonzaga, returning to the historical context of Villa Rica, during the Minas Conspiracy, when it contributed to the formation of Brazilian nativist feeling. This study is guided in the following theoretical works: Domício Proença Filho’s The poetry of the conspiracy, Dostoevsky’s poetics problems and Mikhail Bakhtin’s Issues of literature and aesthetics. In view of the satirical tone of Chilean letters, it becomes the same as a pattern that helps overview of Brazil colony and during the analysis, it will redeem the verses which explain the excesses of the Governor Luís da Cunha Menezes / Minésio’s braggart. Gonzaguianas missives to resume will establish a dialogue with the poem When you take Marília / your merry flock to the meadow, dedicated to beloved Marília, Marília inspirer muse the work Marília of Dirceu. The lyrical poem part of the study because part of the work was composed in the dungeon. Despite the lyricism, the verses reiterate the intentions of complaints. From the reading of the work Chilean Letters, brings to the surface relevant reflections to the current political scene. The style employed by Tomás Antônio Gonzaga, in the late eighteenth century, is recovered in epistles current, thereby terminating the study mentioned a contemporary letter, addressed by the style and content, links to the Chilean Letters. KEYWORDS: Chilean Letters, satire, dialogue, the political situation.

Page 3: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

INTRODUÇÃO

A obra Cartas Chilenas, atribuídas a Tomás Antônio Gonzaga, é composta

por versos construídos em tom mordaz e satírico que denunciavam o despotismo do

governador da província de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, no final do

século XVIII: período imediatamente anterior à Inconfidência Mineira, prenúncio de

uma identidade nacional.

A análise das Cartas Chilenas faz parte de um estudo literário em andamento

que comparará a obra árcade, de teor predominantemente crítico e que circulou

anonimamente em Vila Rica – atual Ouro Preto – a dois romances escritos na época

da ditadura militar: Os sinos da agonia e Os tambores silenciosos. Por serem

escritos em período de intensa censura e represálias, os autores Autran Dourado e

Josué Guimarães recorreram a táticas esquivas de composição literária, burlando,

assim, o aparelho estatal de perseguição política a toda forma de expressão que se

revelasse contrária ao governo ditatorial.

Tomás Antônio Gonzaga, que adotou o pseudônimo Dirceu, em consonância

com as tendências do Arcadismo, ficou assim conhecido devido à obra poética, na

maioria dedicada à sua musa inspiradora Marília (Maria Dorotéia Joaquina de

Seixas, por quem, de fato, o poeta se apaixonou). Dedicar os versos líricos à musa

inspiradora com vistas a um cenário bucólico era recorrente na poesia árcade.

Fizeram parte do Arcadismo poetas intelectuais de acurada visão

sociopolítica, pois os homens letrados da época tinham consciência da necessidade

de se estabelecer nova ordem social e a literatura seria uma via favorável para tal

pretensão. Segundo (BOSI, 2008, p.56), o “denominador comum das tendências

arcádias é a procura do verossímil”. Tal constatação remete ao seguinte

questionamento levantado por (PROENÇA FILHO, 1996, p.565): “Que motivos

teriam impelido os poetas Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e

Alvarenga Peixoto a integrar o grupo dos inconfidentes”? A resposta estaria no

engajamento pelas causas da Inconfidência Mineira, pois a insólita situação da

Colônia mobilizou-os em torno de um levante contra a Metrópole. Os intelectuais

jovens e abonados traziam da Europa para Vila Rica a influência do Iluminismo1.

1 Movimento do século XVIII, conhecido como Século das Luzes (da razão). O Iluminismo foi um

movimento de engajamento intelectual que correspondia aos interesses daqueles que desejavam mais liberdade política e econômica. Os pensadores iluministas defendiam, além da não intervenção

Page 4: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

Para Alfredo Bosi (2008), a presença da razão, na obra poética do Arcadismo,

vincula-se ao “enciclopedismo francês”.

Os aspectos da poesia árcade apontados por (PROENÇA FILHO, 1996,

p.558), fixam que: “as poesias árcades buscam motivos bucólicos cristalizados em

cenários fixos, nos quais o clima ameno e campestre esmaece a transformação que

se realizava no contexto político-social circundante”. Os poetas estavam de tal forma

engajados que embebiam seus versos com as angústias fiscais, mas a visão crítica

e inovadora levou-os sofrer severos castigos. As atrocidades contra os poetas, para

(CANDIDO, 2008, p.108), “representam no Brasil o primeiro e até hoje maior

holocausto da inteligência às ideias do progresso social”.

Vila Rica, a capital da província de Minas Gerais do século XVIII, surgiu em

torno da exploração dos minérios locais (ouro e diamante) e a Metrópole, durante

aquele século, fartou-se com as riquezas vindas da Colônia. Porém, o tempo de

fartura foi se escasseando e a Metrópole tomou severas medidas fiscais, visando

manter os ganhos de outrora, para tanto, os impostos sob os produtos de Lisboa

passaram a chegar ao Brasil com tarifas exorbitantes, os preços dos escravos

sofriam os mesmos deliberados abusos de ajustes. A crise econômica gerou

descontentamento entre as pessoas, foi o estopim de grandes revoltas coloniais e a

insustentabilidade da situação resultou na derrama2.

Na impossibilidade de calarem-se diante dos ditames do opressor, as

manifestações se expandiram. Conforme constata (NOVAIS, apud PROENÇA

FILHO, 1996, p.29), “é no último quartel do século XVIII que as tendências

emancipacionistas se manifestam de forma recorrente e significativa”.

Tomás Antônio Gonzaga transita na Inconfidência Mineira com tendências ao

conservadorismo estamental que se diverge da tendência anticolonialista de

Tiradentes. Para Laura de Mello, apud Proença (1996, p.30) a Inconfidência está

relacionada aos protestos, pois, ”por todo o século XVIII, as Minas se viram às voltas

com os levantes (...), e sua formação social densa mantinha os governantes e os

poderosos em constante sobreaviso. Com o avançar do século, a insatisfação se

do Estado na economia, a igualdade jurídica entre os homens, a liberdade religiosa e de expressão e outros direitos. Com isso o Iluminismo abriu caminho para as revoluções que combateram as estruturas do Antigo Regime (COTRIM, 2005, p.266). 2 Em 1765, foi decretada a derrama, cobrança de todos os impostos atrasados, que correspondiam a

1/5 (um quinto) de todo o outro extraído no Brasil. Na execução da derrama, as autoridades não pouparam nem mesmo os mineradores empobrecidos, que acabaram perdendo os poucos bens que lhes restavam (COTRIM, 2005, p.249).

Page 5: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

enraizou (...)”. Os conflitos instaurados desencadearam a fase das revoltas

historicamente conhecidas como: a guerra emboabas, os motins do sertão do rio das

Velhas, as revoltas de Pitangui e Vila Rica e as quimeras do sertão de São

Francisco.

Por mais que se mobilizassem, a voz do oprimido não se fazia ouvir. O

anexim “a voz do povo é a voz de Deus”, como no tempo remoto da história, ainda

hoje não se aplica, pois o povo tem sido inaudível.

Nomeado ouvidor de Vila Rica, o advogado Tomás Antônio Gonzaga

conviveu com pensadores ilustres, formados na colônia como o Cláudio Manuel da

Costa e Alvarenga Peixoto e juntos articulavam os ideais do Iluminismo, que haviam

tomado conhecimento na Europa, e, por aquele continente se expandia. Quando,

denunciado por Silvério dos Reis, vem à tona a conjuração mineira, antes de esta ter

sido posta em prática, os inconfidentes foram punidos exemplarmente, pois a coroa

portuguesa visava se prevenir contra futuros levantes. Por exemplo, Tomás Antônio

Gonzaga, provável autor das Cartas Chilenas, foi considerado “caviloso” e

“dissimulador”. Como homem das leis, Tomás Antônio Gonzaga, assumiu, “à

primeira vista, uma postura legalista em face ao poder metropolitano” (PROENÇA

FILHO, 1996, p. 772). O fragmento bem diz, “primeira vista”, pois se Tomás Antônio

Gonzaga expõe o governador da capitania ao ridículo, isso denota sua consciência

política efervescente, impulsionada a denunciar sem temer represálias, prática

comum, na época, quando se praticavam crimes de lesa majestade. Naturalmente,

ele previne-se, publicando a obra anonimamente.

Em Proença Filho (1996), confirma-se que na obra Cartas Chilenas, a figura

vilipendiada era o governador Luís da Cunha Meneses, apesar do criptônimo

Fanfarrão Minésio, certamente reconhecia-se como alvo das ofensivas diretas com

termos pejorativos como: “vil canalha”. Tais galhofadas deveriam constranger e

despertar a cólera do administrador corrupto que, ao invés de receber versos com

lisonjas dignas de um amigo del Rei, vinham-lhes as cartas satíricas que o

desmoralizavam perante a sociedade mineira. Versos bajuladores não seria o etilo

do poeta e o conflito entre o ouvidor e o governador déspota e arbitrário motivou-o a

compor as cartas.

A complexidade dos versos das Cartas Chilenas deve-se, segundo Proença

Filho (1996), a questões que transcendem o seu valor artístico. Parodiando o

mesmo teórico, pergunta-se: “Será que a sátira contribuiu para influenciar o ânimo

Page 6: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

dos inconfidentes? O consenso é que ela refletiu a efervescência política que se

alastrou pela província das Minas Gerais, apesar do número escasso de cópias das

mesmas.

DO NAMORO DO POETA OUVIDOR AO ENCERRAMENTO NO CÁRCERE

O estudo sobre Tomás Antônio Gonzaga perpassa por sua experiência

amorosa, visto que esta o inspirou a compor as liras românticas dedicadas à amada

Marília. Tomás Antônio Gonzaga, sob o pseudônimo de Dirceu, já no cárcere, após

o desmantelamento da Conjuração Mineira, compôs parte de sua memorável obra

lírica Marília de Dirceu. Maria Dorotéia despertou no poeta grande paixão, ele com

quarenta anos, ela no desabrochar dos dezessete. Apaixonado, o ouvidor poeta não

economizava galanteios, os versos líricos fluíam para o deleite da amada, que, por

sua vez, passou a demonstrar afeição por ele. Os momentos de intensa felicidade

não demoraram e a prisão afastou-o da noiva, às vésperas do casamento.

No cárcere, na fortaleza da ilha das Cobras, o poeta intensificou o ofício dos versos, lançou-se à composição dos versos líricos, inspirados na musa Marília. Distante da amada, expressa em seus versos um misto de lirismo e reflexões legais.

Realista cauteloso, misturam-se num perfil o pastor Dirceu e o poeta Gonzaga. Lira e lei se misturam neste painel gonzaguiano setecentista da lírica arcádica, entramando, num quadro complexo, o poeta, o réu, a lira, a lei, o processo, num conluio em que o lírico e o traçado real da existência se enlaçam, articulando literatura e vida cultural (PROENÇA FILHO, 1996, p. 570).

Diante do impasse na prisão, ficam imbricadas as palavras do intelectual

Gonzaga e do poeta de pujante lirismo, o qual, vivendo uma forçada separação

amorosa, expressa os sentimentos advindos da ausência da amada e de indignação

política. Para quem já estava recluso, não havia mais nada a temer: “Agora já não

tinha receio de se comprometer, enjeitando a paternidade da escandalosa sátira”

(PROENÇA FILHO, 1996, p.549). A publicação destas não se deu, pois, após três

anos de prisão na ilha das Cobras, Gonzaga fora julgado e condenado a dez anos

de degredo em Moçambique.

O LEGADO DA OBRA CARTAS CHILENAS

Page 7: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

De acordo com Proença Filho (1996), em 1995, surgiu a última organização

dos manuscritos de Tomás Antônio Gonzaga, realizada por Joaci Pereira Furtado,

baseada em edições anteriores, de Rodrigues Lapa e Tarqüínio de Oliveira. De

acordo com estes estudos, as Cartas Chilenas são compostas por 3964 versos

decassílabos brancos, divididos em treze cartas. No século XX, após árdua

pesquisa, atribuiu-se a autoria das Cartas Chilenas a Tomás Antônio Gonzaga e

estas, satiricamente, traçam um panorama político da época do Brasil colonial, cujos

desmandos permanecem até hoje. Ou seja, vêm daquela época vícios político-

administrativos como a confusão entre o que é público e o que é privado. Ainda não

se incutiu na consciência da maioria dos governantes que , quando se rouba o que é

público, roubam-se de todos, não um indivíduo e se um indivíduo lesado não deve

calar-se, menos ainda a população.

Essas cartas, que circulavam anonimamente, para Proença Filho (1996)

correspondiam ao interesse da sociedade mineira do século XVIII e suscitava

aplausos, pois os versos de ironia pungente arrostavam com a prepotência do

governador de Minas, o qual, certamente, deveria “escabujar” de raiva ante os

versos que o afrontavam. “Peças satíricas, as cartas funcionam como um amplo

documento da época, num texto alegórico contra os desmandos do poder de um

mandatário corrupto, o Fanfarrão Minésio, contra o qual impreca o remetente Critilo”

(PROENÇA FILHO, 1996, p. 563). Tomás Antônio Gonzaga, como intelectual e leitor

assíduo, seguiu modelos de outras obras da literatura universal, as quais se serviam

de outros contextos para fazer denúncias em tom satírico, assim, compôs as cartas

nos moldes da diatribe, a qual, conforme aponta Bakhtin (2008, p.129), orbita em

torno da “sátira menipéia”. Através da reelaboração do discurso, o poeta

esquematizou sua obra da seguinte forma:

A ação das cartas de Critilo, aproveitando-se do modelo de Montesquieu nas Lettres persanes, transporta a ação para o Chile, que simboliza Minas Gerais. A capital passa a ser Santiago em vez de Vila Rica. A Universidade de Coimbra transforma-se na de Salamanca, e Portugal figura como Espanha, onde pretensamente estaria o destinatário das cartas, denominado Doroteu, nome corrente no Arcadismo. A estrutura dramática do texto abriga duas personagens que centralizam a ação a ser narrada: Doroteu, o autor da “Epístola”, que antecede as treze cartas e delas destinatário, e Critilo, que conta na sua correspondência a Doroteu, os fatos que Fanfarrão Minésio obrou no Chile. A história que emerge dessa narrativa, em versos cortantes, num ritmo dramático, desvela um jogo de autoria: Doroteu, ao redigir sua epístola a Critilo, tem prévio conhecimento das cartas. Já Critilo, que destina todas elas a Doroteu, não referencia a epístola ao expor os fatos (PROENÇA FILHO, 1996, p. 775).

Page 8: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

No contexto de Vila Rica, o autor recorreu à carnavalização menipéica, cujas

ações caracterizam, segundo (BAKHTIN, 2008, p.134), como “cenas de escândalos,

de comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas, (...) abrem

brecha na ordem inabalável”. Em sintonia com os diferentes recursos empregados

na literatura universal, Tomás Antônio Gonzaga assim o fez. Sobre o domínio de

vasto universo cultural, Bakhtin (1988), aponta que:

Nos ciclos paródicos e satíricos realiza-se uma luta contra o fundo feudal e as más convenções, contra a mentira que impregnou todas as relações humanas. À mentira pesada e sinistra opõe-se a intrujice alegre do bufão, à falsidade e à hipocrisia vorazes opõem-se a simplicidade desinteressada e a galhofada sadia do bobo, e a tudo o que é convencional e falso a forma sintética da denúncia do bufão (BAKHTIN, 1988, p.278).

Nas Cartas Chilenas, a denúncia à perniciosidade na administração política

no Chile equipara-se às Cartas Persas de Montesquieu, “que criaram todo um

gênero de cartas exóticas análogas, representando o regime francês visto por um

estrangeiro que não o compreende” (BAKHTIN, 1988, p.279).

OS VERSOS TÊM ALGO A DIZER

A contextualização feita até aqui se justifica devido à importância da

reconstrução e compreensão das circunstâncias político-sociais do último quartel do

século XVIII, pois uma análise coerente se concretiza através desses conhecimentos

e ainda suscita reflexões acerca do atual panorama político no Brasil. Nesse ensejo,

propõe-se analisar a temática retratada nas segunda, terceira, quinta, décima

segunda e décima terceira cartas, nas quais, dentre as demais, evidenciam-se a

desonestidade do administrador Meneses / Fanfarrão, que deixa prevalecer o jogo

de troca de favores e acordos interesseiros entre os seus mais chegados. A exemplo

do chefe corrupto, seus assessores adotam igual conduta, formando, assim, uma

inescrupulosa equipe de governo.

Na primeira estrofe, da segunda carta, o tom irônico é perceptível pela forma

de Gonzaga / Critilo se referir ao administrador Fanfarrão como “imortal chefe”. Os

versos relatam uma noite de total dedicação aos escritos da carta, a qual o poeta diz

ser volumosa e a conclusão da mesma se deu ao amanhecer. Os relatos

minuciosos, aliados à arte poética, demandam tempo, pois, os versos, além de

Page 9: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

constituírem uma denúncia anônima ao chefe, atendem à tendência árcade e seriam

lidos por intelectuais do seu círculo de amizade, razão suficiente para o esmero.

As brilhantes estrelas já caíam e a vez terceira os galos já cantavam, quando, prezado amigo, punha o selo na volumosa carta em que te conto do nosso imortal chefe a grande entrada; (...) (p.804)

3

Gonzaga / Critilo, dirige-se ao interlocutor, Doroteu, com versos que lhe

chamam a atenção sobre os desmandos e privilégios usufruídos pelo governador,

em contradição com o estilo de vida de Critilo que, apesar das necessidades, é mais

digna e não lhe tira o sono, pois, em sua vida singela, não usufrui de patrimônios

alheios. O poeta mostra-se indiferente a bens e riquezas, ainda mais quando

conquistados ilicitamente. Nos verso abaixo fica clara a consciência do eu lírico em

relação à avareza, à corrupção e ao enriquecimento ilícito dos administradores da

Colônia, que se apropriam dos bens públicos para formar fortuna pessoal, lesando

tanto aos ricos quanto aos pobres. Mesclada à questão política, há também a

presença do ideal simples de vida que caracterizou toda a lírica árcade:

Não cuides, Doroteu, que brandas penas me formam o colchão macio e fofo; (...) (...) e colchas matizadas, não se encontram na casa mal provida de um poeta, (...) (...) nem na suja cozinha acende o fogo. Mas nesta mesma cama tosca e dura, descanso mais contente do que dorme aquele que só põe o seu cuidado em deixar a seus filhos o tesouro que ajunta, Doroteu, com mão avara furtando ao rico e não pagando ao pobre. (p.805)

Apesar de confessar que tem a consciência tranquila, que pode descansar

sem culpa, na segunda estrofe, da segunda carta, os versos dizem:

Assustado, desperto, os olhos abro e, conhecendo a causa que me acorda, um tanto impaciente o corpo viro, fecho os olhos de novo, e cruzo os braços, para ver se outra vez me torna o sono.(...) (...) Já soam dos soldados grossos berros, já tinem as cadeiras dos forçados, (...) (p.805).

3 Todas as citações das Cartas chilenas referem-se a: GONZAGA, Tomás Antônio. In: PROENÇA,

Domício Filho (org.). A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996 e os números das páginas serão inseridos após as citações das mesmas.

Page 10: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

Quando mudam as contingências políticas, o sono tranquilo do autor das

cartas passa a ser assombrado pela ronda dos soldados del Rei que, mandados

pelo governador da província, rondam acintosamente a cidade. O que incomoda

são os ruídos dos soldados e ele bem sabe que estes são afeitos à brutalidade.

Conhecendo a conduta do chefe, na quinta estrofe, da segunda carta, Critilo

relata ao amigo Doroteu:

Aquele, Doroteu, que não é santo, mas quer fingir-se santo aos outros homens, pratica muito mais do que pratica quem segue os caminhos da verdade. Mal se põe nas igrejas, de joelhos, Abre os braços em cruz, a terra beija, (...) (...) estando em parte onde o mundo as veja. (p.806)

O fingimento do chefe, nestes versos, pode ser comparado ao dos fariseus,

os mesmos fariseus criticados por Cristo, presentes ainda hoje nas igrejas e

transitando nas diversas esferas sociais tranquilamente. Dissimulações semelhantes

a do chefe Meneses / Fanfarrão tem apenas o intuito de causar boa impressão a

todos quantos o observem, afinal é da boa imagem perante o público que se faz um

político. Sabendo dessa estratégia, não só o governador Luís da Cunha Meneses, o

Fanfarrão Minésio, mas muitos políticos ainda recorrem às mesmas táticas,

frequentando os lugares onde possam ser vistos, principalmente, simulando gestos

de bondade. No atual cenário político, a cena descrita nos versos acima surge em

número cada vez mais crescente. Sob o foco das lentes das câmeras há sempre a

imagem de políticos abraçando idosos, pegando crianças no colo e beijando-as,

circulando nos becos, ocupando bancos das igrejas, enfim, dando demonstrações

de gestos humanitários que os enobrecem perante a sociedade.

Os militares de Vila Rica / Santiago, abusavam do poder, mas o chefe fazia

vista grossa às atrocidades cometidas:

Apanha um militar aos camaradas do soldo uma porção. Astuto e destro, para não se sentir o grave furto, mistura nos embrulhos, que lhes deixa, igual quantia de metal diverso. Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto, sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde, que este Hércules não cinge a grossa pele nem traz na mão robusta a forte clava, para guerra fazer aos torpes Cacos. (p.807)

Page 11: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

Os versos acima remetem à conhecida barganha política ou troca de favores.

Certamente, o administrador tinha interesse nos serviços dos torpes soldados, por

isso não tomava nenhuma medida punitiva, àqueles que se sabiam larápios. O

governador, de reputação duvidosa, não poderia tomar medida alguma, tendo em

vista que a sua própria conduta sofre de igual mácula. Aqueles que detêm o poder

deveriam servir de exemplo, não se envolvendo em escândalos de corrupção, se

assim fosse, eles poderiam impor ordem as quais seriam, no mínimo, refletidas, pois

não haveria contra-argumentação diante de um chefe moralmente íntegro.

Na segunda carta, seguem-se as denúncias e como bacharel, nomeado

ouvidor de Vila Rica, é inteirado das leis, Gonzaga /Critilo, relata sua indignação

perante os descasos do governo para com as mesmas:

(...) pede outro que lhe queime o mau processo, (...) (...) decide os casos todos que lhe ocorrem, ou sejam de moral, ou de direito, ou pertençam também à medicina, sem botar (que ainda é mais) abaixo um livro da sua sempre virgem livraria. Lá vai sentença revogada, (...) (p.811) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Já disse, Doroteu, que o nosso chefe, apenas principia a governar-nos, nos pretende mostrar que tem um peito muito mais terno e brando do que pedem os severos ofícios do seu cargo. (p.813)

O trecho destacado demonstra que os processos são julgados ao acaso, pois

seu principal representante, o governador, não se preocupa em consultar os livros

legais, visto não ter o hábito da leitura e da interpretação da legislação em vigor.

Não os consulta, pois o hábito de leitura não coaduna com a prática do “grande”

chefe. Há, ainda, que se destacar que o autor das Cartas Chilenas é um intelectual

de formação iluminista, que tem o hábito da leitura e da reflexão, enquanto o

Fanfarrão Minésio, por ser rude, é descrito com tosco intelectualmente, e, por ser

incapaz de interpretar as leis, julga à revelia com a brutalidade que lhe é peculiar. Os

versos acima apontam também que o governador não tem estofo nem competência

para cumprir as funções demandadas pelo cargo que ocupa e para disfarçar sua

incompetência reveste-se de dissimulada ternura. Se o cargo exige uma postura

mais enérgica, o ocupante do cargo deve assim agir para que se faça ouvido, não

por temor, mas por respeito.

Page 12: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

A construção da cadeia, atual museu da inconfidência, é o alvo da crítica na

terceira carta. A projeção de tamanho investimento não condiz com a realidade do

humilde povoado, principalmente, quando se evidencia que a cadeia se destina aos

desvalidos.

E sabes, Doroteu, quem edifica esta grande cadeia? Não, não sabes. (...) E sabes para quem? Também não sabes. Pois eu também to digo: para uns negros, que vivem, quando muito, em vis cabanas, fugidos dos senhores nos matos. (p.815).

No fragmento acima há uma série de elementos que merecem destaque, a

começar pela construção de uma grande obra, como a cadeia de Vila Rica, para

encarcerar os miseráveis transgressores em um momento em que a província das

Minas Gerais está endividada, o que implica o aumento da pobreza, da miséria e da

violência. Tal elemento merece destaque, pois, ainda hoje, este comportamento é

recorrente entre os políticos brasileiros. São feitas grandes obras sem que se

consiga resolver os problemas sociais Em relação à cadeia, vale destacar o

paradoxo de que a construção de tal obra implicaria o aumento da miséria e,

consequentemente, da marginalização.

Há, ainda a relevante questão dos negros, cuja afirmação, hoje, certamente

causa, no mínimo constrangimento, mas está em sintonia com a mentalidade em

vigor na época. Embora os inconfidentes tivessem planos muito bem estruturados

em relação à liberdade política e crescimento da colônia, e seus ideais fossem,

realmente, libertários, não fazia parte destes planos a abolição da escravatura. Isso

se deve ao fato de mão-de-obra escrava era fundamental à mineração, mas também

porque a visão da elite brasileira em relação ao negro, certamente, era de que este

estava aquém da condição humana e os inconfidentes comungam com esta

mentalidade. Tanto é assim que a abolição da escravatura no Brasil só ocorreu um

século após o desbaratamento da Conjuração Mineira e o Brasil foi o último país da

América a abolir a escravidão. Portanto, os ideais de liberdade, embora justos e

autênticos, não fez com que os conjurados fossem sensíveis à condição dos negros

escravos.

Quando o chefe não age com escrúpulos, seu exemplo é seguido pelos

assessores, isso ocorria em Vila Rica, representada simbolicamente como Chile e,

Page 13: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

na realidade em diferentes esferas políticas atuais. Tal conduta pode ser constatada

nos seguintes versos:

Os mesmos magistrados se revestem do gênio e das paixões de quem governa.

(...) Por isso, Doroteu, um chefe indigno é muito e muito mau, porque ele pode a virtude estragar de um vasto império.

(p.816) Nas levas, Doroteu, não vem somente os culpados vadios; vem aquele que a dívida pediu ao comandante; vem aquele que pôs os olhos na sua mocetona, e vem o pobre que não quis emprestar-lhe algum negrinho, para lhe ir trabalhar na roça e lavra. ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Estes tristes, mal chega, são julgados pelo benigno chefe a cem açoutes.(...) (p.818)

Os versos acima apontam que os magistrados, assim como o governador da

província, envolvem-se em corrupção. Nesse sentido, questiona-se: a quem recorrer,

se de onde se espera o direito de igualdade, buscam-se favorecimentos próprios?

Aqueles que deveriam dar exemplo de lisura envolvem-se em escândalos que

deixam a população despontada e sem perspectiva de justiça.

Tomás Antônio Gonzaga, com sua formação iluminista, constata que um

chefe indigno corrompe a virtude de um vasto império. Os vícios de governos

corruptos legam para a nação mazelas sociais irreparáveis. Sônia Almeida Pimenta

(2008) expõe que a ineficácia dos serviços públicos tem origem na corrupção

política, a qual abre espaço para o culturalmente conhecido “jeitinho brasileiro”, pois

cada um, a seu modo, procura levar vantagem para obter atendimento nos serviços

públicos e, então, o que deveria ser constituído por direito reverte-se em favores.

No que se refere à pseudo imparcialidade da justiça, Tomás Antônio Gonzaga

/ Critilo reitera sua desaprovação, pois aos reveses da lei, a agilidade da justiça só

se aplica aos pobres e pretos. A analogia aqui pode ser remetida aos inúmeros

atuais casos de fraudes políticas que resultam em denúncias que, quando

investigadas e comprovadas, arrastam-se por anos em processos obscuros que

tendem a se perder por decurso de prazo. A questão da imparcialidade da justiça

sempre deve ser posta em xeque, já que a aplicabilidade da lei deve seguir uma via

de mão única, devendo prevalecer o direito à igualdade.

Page 14: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

Em diversos versos, ao longo da carta, fica explícita a indignação do poeta,

que questiona o amigo Doroteu sobre a desmoralização desmedida que se alastrava

em Vila Rica / Santiago. Essa inquietude revela um escritor crítico, polêmico, incapaz

de calar-se diante das irregularidades que presencia. A indagação seguinte é

reiterada em diversas estrofes da carta. “Já viste, Doroteu, um tal desmancho”?

(p.817).

Festividades luxuosas, sustentadas por dinheiro público e frequentadas por

figuras dissimuladas, revestidas de superficialidade de aparências provocam

grandes rumores e indignação:

Uns ralham, outros ralham, mas que importa? Todos arbítrios dão, nenhum acerta. Então o grande Alberga, que preside, vendo esta confusão, na mesa bate e, levantando a mão pausada e forte, a importante questão assim decide: “Há dinheiro, senhores, há dinheiro; vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos, venda-se o próprio pano e mesa velha; quando isto não baste, há bom remédio: as fazendas se tomem, não se paguem(...) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Mandam-se apregoar as grandes festas, acompanhada ao pregão luzida tropa de velhos senadores. Estes trajam, ao modo cortesão, chapéus de plumas, capas com bandas de vistosas sedas. (p.832).

Na quinta carta, Gonzaga / Critilo narra com ironia esses festejos pomposos,

nos quais as pessoas imergem-se em um jogo de faz de conta. A cena descrita nos

versos acima revela o inverso do ideal de vida simples almejado pelos poetas

árcades, tendo em vista que no Arcadismo os autores elegem o campo como o

cenário ideal de inspiração do eu lírico.

A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno prestígio da existência citadina os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma de ideal de relação humana (CANDIDO, apud BOSI, 2008, p.57).

As festividades mencionadas pelo eu lírico seguem os moldes daquelas que

aconteciam nas cortes européias e demonstram que o poder emana das pompas,

Page 15: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

não da legalidade. As pessoas que frequentam os luxuosos salões de festas visam

interesses próprios, para tanto, revestem-se de ricos trajes, pois é pela aparência

que são avaliados. Segundo (BOSI, 2008, p. 58), “o bucolismo foi para todos o

ameno artifício que permitiu ao poeta fechado na corte abrir janelas para um cenário

idílico onde pudesse cantar, liberto da constricções da etiqueta, os seus sentimentos

de amor e de abandono ao fluxo da existência”. Os fatos presenciados pelo poeta

impeliam-no a registrar suas imprecações nas Cartas Chilenas. Nos versos acima

constata-se que, a despeito de todos, o presidente da Câmara Municipal de Vila

Rica cede aos caprichos do Fanfarrão e angaria recursos, mesmo ilegalmente, para

apregoar as festas. Os frequentadores de tais festas comungam de igual conduta,

desconsideram as leis e tramam negócios lucrativos para si, lesando, assim, a

população que vê os seus direitos e seus bens se esvair.

Outra ação ilícita imprecada por Gonzaga / Critilo, na décima segunda carta,

diz respeito ao protecionismo dispensado a um certo mulato:

Aquele que jacta de fidalgo não cessa de contar progenitores(...) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ (...)assim o nosso chefe traz consigo arribação infame de bandalhos, que geram também asas, com a muita, nociva audácia que lhes dá seu amo. Na corja dos marotos aparece um magriço mulato, a quem o chefe, por oculta razões, estima e preza. (p.888).

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Passados alguns tempos, Ludovino encontrou, uma noite, a sua escrava(...) Aqui lhe perguntou a longa história da fugida que fez; e a triste serva, com ânimo sincero, assim lhe fala: “Ribério me induziu a que fugisse; meteu-me no quarto, aonde estive fechada muitos dias. Alugou-me, depois uma casinha; aqui me dava dos sobejos da mesa de seu amo, para alimentar a pobre vida. Tive dele dois filhos; o demônio Enganou-me, senhor, cuidei...” E, nisto,(...) (892) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Agora dirás tu: “Nasceu fidalgo, e as grandes personagens não se ocupam em baixos exercícios”. Nada dizes. (895)

Através da leitura da décima segunda carta obtém-se a informação que,

Robério, criado do chefe, rouba uma escrava de Ludovino e amasia-se com ela, que

dá a luz a dois filhos. Ficam implícitas nos versos as razões pelas quais o Fanfarrão

Page 16: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

preza e estima o mulato. Gonzaga / Critilo relata que um fidalgo não se ocupa de

exercícios de pouca monta, o que leva a entender que tamanho beneplácito deve-se

a razões obnubiladas.

O que fica evidente nos versos acima é o preconceito racial de Tomás

Antônio Gonzaga, o que para época não poderia ser diferente, pois, mesmo entre os

ilustres intelectuais, engajados no movimento da conjuração mineira, não se

cogitavam os ideais de libertação dos escravos. Porém, na mesma medida que a

mentalidade escravocrata era latente, formava-se um novo perfil de população que

constituiria a futura nação brasileira. O período colonial marca a ascensão do

bacharel, Gilberto Freyre (2004), retrata sobre esse tema no capítulo Ascensão do

bacharel e do mulato, na obra Sobrados e Mucambos.

Gonzaga, Cláudio, os dois Alvarenga, Basílio da Gama marcam esse prestígio mais acentuado do bacharel na sociedade colonial; a intervenção mais franca do letrado ou do clérigo na política. Marcam, ao mesmo tempo, o triunfo político de outro elemento na vida brasileira, o homem fino da cidade. E mais: a ascensão do brasileiro nato e até do mulato aos cargos públicos e à aristocracia da toga (FREYRE, 2004, p.714).

Entre os séculos XVII e XVIII muitos mulatos ascenderam como bacharéis e

intelectuais formados na Europa graças ao investimento dos pais ou das mães, que

não mediam esforços para contribuírem com a formação universitária dos filhos.

Houve, ainda, a ascensão por meio da carreira militar no Exército e também a

ocupação dos cargos de sargento-mor e até capitão-mor mulato; mulato escuro,

segundo Gilberto Freyre:

(...) esses poucos mulatos que chegavam a exercer, nos tempos coloniais, postos de senhores, quando aristocratizados em capitães-mores, tornavam-se oficialmente brancos, tendo atingido a posição de mando por alguma qualidade ou circunstância excepcional (FREYRE, 2004, p.727).

Cabe aqui a seguinte indagação: o bacharelado ou a aristocratização em

capitães-mores propiciou o emparelhamento social a todos os mulatos? Os fatos

demonstram que tanto o preconceito racial quanto o social esteve enraizado ao

longo da história e a exclusão social dos cidadãos que vivem na miséria absoluta

continua negando-lhes o princípio básico que rege a Declaração Universal dos

Direitos Humanos, que é o direito à igualdade e dignidade.

Page 17: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

Assim como Tomás Antônio Gonzaga, Gregório de Matos, primeiro grande

nome da Literatura Brasileira, em sua poesia satírica, empregando linguagem ferina

e sarcástica cultiva a visão estamental em relação ao negro ou mulato4.

Mais delicada, se não espinhosa, é a questão do negro e, dentro desta, a questão do mulato. A ojeriza que o último inspira a Gregório faz escrever uma sociedade onde o grau de mestiçagem era já o bastante alto para que se destacasse do conjunto da população um grupo de pardos livres (BOSI, 1992, p.106).

A leitura das poesias de Gregório traz à tona a seguinte indagação de (BOSI,

1992, p.107): “a fusão que se deu na pele e na carne significou também

emparelhamento social”? A reposta se obtém nos seguintes apontamentos:

Sobre eles, mulatos nascidos e criados em mucambos e cortiços, agiu poderosamente o desfavor das circunstâncias sociais, predispondo-os ao estado de flutuação e inadaptação aos quadros normais de vida e de profissão, ao de inconstância no trabalho, ao de rebeldia a esmo, estados todos esses, socialmente patológicos, que tantos associam ao processo biológico de miscigenação (FREYRE, 2004, p.749).

No que diz respeito à condição social do mulato, Gilberto Freyre (2004)

destaca ainda que “é considerável o número de sararás, cabras, cafuzos, mulatos de

cabelo liso ou cacheado ou encarapinhado, mas ruço e até arruivado e vermelho,

que passam pelos anúncios de jornais, da primeira metade do século XIX”. O

estigma da exclusão social seguiu-se ao longo da história e Gilberto Gil, na música

Sarará Miolo5, retrata essa questão mal resolvida da identidade do crioulo, que não

4 Muitos mulatos desavergonhados,

Trazidos pelos pés aos homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam, muito pobres: Eis aqui cidade da Bahia. (MATOS, Gregório de. Soneto VI. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br) 5 sara, sara, sara cura

dessa doença de branco(...)

cabelo duro é preciso

que é para ser você, crioulo. (GIL, Gilberto. Sarará Miolo. Disponível em: http://letras.terra.com.br)

Page 18: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

se adapta entre os brancos nem entre os negros. A análise feita do fragmento da

décima segunda carta traz à reflexão sobre a forma irônica com que Gonzaga /

Critilo retrata a questão dos privilégios da fidalguia, o alvo das críticas nos versos

dessa carta, além do Fanfarrão é a figura do mulato, por quem o autor das cartas

revela desprezo.

Gonzaga / Critilo, nos cinco últimos versos, da décima terceira (última) carta,

constata que a conduta do chefe é mascarada por um jogo de interesses para

continuar inserido no sistema. Para se manter no poder, o chefe apela para um

comportamento fingido, mostrando-se religioso, fiel e íntegro, mas esses adjetivos

não condizem com a moral do Fanfarrão Minésio, pois sua ação vela os torpes fins.

Não há, meu Doroteu, não há um chefe, Bem que perverso seja, que não finja Pela religião um justo zelo, E, quando não o faça por virtude, Sempre, ao menos, o mostra por sistema. (p.896).

Os versos acima trazem à tona a seguinte reflexão: o sistema político molda o

homem aos seus preceitos ou o homem molda o sistema de acordo com os seus

interesses? De qualquer forma, prega-se que jamais os interesses particulares

devem preponderar sobre os direitos coletivos.

O poeta Gonzaga transita entre os versos satíricos e os líricos. Nas Cartas

Chilenas busca-se resgatar o estilo sociopolítico do autor, mas o pastor Dirceu,

mesmo na sua obra lírica, deixou transparecer a pujança crítica de Gonzaga

retratando sobre sua condição de prisioneiro.

Um breve cotejo entre Cartas Chilenas e o poema Quando levares, Marília, / teu

ledo rebanho ao prado.

As anônimas Cartas Chilenas que circulavam em Vila Rica possuem estreitas

ligações com a participação de Tomás Antônio Gonzaga no movimento da

Inconfidência Mineira, fato que levou o ouvidor, noivo de Marília à prisão. Proença

Filho (1996, p. 548) aponta que o ócio do poeta na prisão levou-o “a duas grandes

tarefas: celebrar o amor, que o martírio tinha embelezado, e fazer a sua defesa por

Page 19: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

meio da poesia”. Essa condição sorumbática do poeta na prisão suscita uma breve

análise do poema composto na masmorra: Quando levares, Marília, / teu ledo

rebanho ao prado.

Saudoso, o poeta supõe que a amada por ele suspira de saudade. Os versos

seguem a estética das poesias árcades, em que o cenário bucólico e os temas

pastoris ficam em evidência. Na primeira estrofe do poema, o eu lírico imagina e

idealiza o prado onde estaria sua musa. A idealização, seja da musa, seja da

natureza, é recorrente na poesia árcade como um todo, tanto é assim que ela se

desdobrará, no século XIX, na poesia romântica. Segundo (BOSI, 2008, p.59), “tanto

no contexto árcade-ilustrado como no romântico-nostálgico há um apelo à natureza

como valor supremo que em última instância é defesa do homem infeliz”. O eu -

lírico nos versos seguintes manifesta seu sentimento pela amada Marília projetando-

a em um cenário bucólico.

Quando levares, Marília, teu ledo rebanho ao prado, tu dirás: - Aqui trazia Dirceu também seu gado. Verás os sítios ditosos onde, Marília, te dava doces beijos amorosos(...) (p. 180)

6

Na última estrofe do poema, o poeta descreve o frio cárcere e descreve o

lúgubre local de onde não é ouvido, pois suspira em vão, não sendo ouvido sequer

pelos deuses. A evocação aos deuses é retomada no Arcadismo, que recebeu

denominação de Neoclassicismo. A queixa do eu-lírico na estrofe seguinte é pela

profunda dor que acomete o seu coração, pois, para Dirceu, os sinais de inchaço e

roxidão dos olhos não são nada em relação aos retratados no coração. No mesmo

poema, conforme os apontamentos de Proença Filho (1996), apresenta-se um misto

de “pastor, Dirceu e poeta Gonzaga”. Com os fragmentos destacados é possível

perceber o lirismo árcade na primeira estrofe contrastando o tom de denúncia da

seguinte estrofe:

Numa masmorra metido, eu não vejo imagens destas, imagens que são por certo

6 As citações referem-se a: GONZAGA, Tomás Antônio. In: EULÁLIO, Alexandre. Os melhores poemas de Tomás Antônio Gonzaga. São Paulo: Global, 1983 e os números das páginas serão inseridos após as citações das mesmas.

Page 20: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

a quem adora funestas. Mas se existem, separadas dos inchados, roxos olhos, estão, que é mais, retratadas no fundo do coração. Também mando aos surdos deuses tristes suspiros em vão. (p. 182).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Coteja-se o poema acima às Cartas Chilenas como forma de evidenciar que

Tomás Antônio Gonzaga, mesmo na masmorra, continuou escrevendo poemas

líricos, mas sem deixar, esvanecer a veia satírica presente nas cartas em análise.

Cabe, aqui, retomar um breve comentário da parte que introduz as Cartas Chilenas:

Epístola a Critilo, em que o amigo Doroteu responde as missivas com os seguintes

versos:

Este, ó Critilo, o precioso efeito dos teus versos será: como em espelho que as cores toma e reflete a imagem, os ímpios chefes de igual conduta a ele se verão, sendo arguidos pela face brilhante da virtude, que, nos defeitos de um, castiga a tantos. (p.794).

As perseguições políticas sofridas por Tomás Antônio Gonzaga e seus

companheiros intelectuais iluministas não se ativeram, apenas àquele período da

história. Também os vícios do Fanfarrão não se reduziram àquele contexto, pois, no

meio político, permanece atual. Cartas com as de Tomás Antônio Gonzaga parecem

não surtir efeito quando os governantes são corruptos, pois estes desconhecem ou

ignoram tais apelos indignados contra a desonestidade. Entretanto, há, sempre, a

voz daqueles que de mobilizam em nome da legalidade e da legitimidade, como bem

exemplifica a atual carta de Rossini Amorim Bastos: Prezado Barão de Itararé, em

que sob o remetente Pedr’ Álvares denuncia os desmandos da atual política.

Aproximando-se do modelo da diatribe, em consonância com as concepções de

Bakhtin (2008), a carta mencionada vincula-se à “sátira menipéia”. Na atual missiva,

a autora aborda sobre o caso da prisão do então governador do Distrito Federal e as

indébitas concessões de mordomias através da seguinte colocação: “Até quando

durará o cárcere do monarca que rege o Distrito Federal? Na sala dois quartos onde

se encontra há TV e um jogo de sofá, este, a propósito confortável para que o

Page 21: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

prelado se recoste quando lhe é servido panetone”. (BASTOS, 2010) Outros casos

são relatados no mesmo estilo satírico empregado por Tomás Antônio Gonzaga nas

Cartas Chilenas. Registros desse gênero deveriam ser lidos e refletidos pelos

cidadãos e políticos, pois assim o leitor compreenderia melhor as relações que

permeiam o contexto político e exigiria mais transparência e efetivação dos direitos

garantidos por lei a todos, sem privilégios a um em detrimento de outros.

Na Dedicatória aos Grandes de Portugal há a seguinte frase: “Feliz reino e

felices grandes que não têm em si um modelo destes”! (GONZAGA, Tomás Antônio.

In: PROENÇA, 1996, p.795) Entre avanços e retrocessos, a nação brasileira vem

procurando eleger governantes que distanciem do modelo daquele representado por

Fanfarrão. Enquanto na realidade não se tem respostas a essas expectativas, na

literatura, encontra-se, para a apreciação do leitor, o modelo idealizado na figura dos

personagens heróicos. A releitura das Cartas Chilenas traz sempre à tona questões

sociopolíticas passíveis de reflexão em qualquer época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiésvski. Trad. Paulo Bezerra.

4ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

_____________. Questões de literatura e de estética. Trad. Aurora Bernardini ET

al. São Paulo: Hucitec, 1988.

BASTOS, Rossini Amorim. Prezado Barão de Itararé. Disponível em:

<http://www.usinadeletras.com.br/>

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 46ª ed. São Paulo:

Cultrix, 2008.

____________. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras,

1992.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade – Estudos de Teoria e História

Literária. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.

Page 22: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética,

COTRIM, Gilberto. História Global Brasil e Geral. 8ª ed. São Paulo: Saraiva,2005.

EULÁLIO, Alexandre. Os melhores poemas de Tomás Antônio Gonzaga. São

Paulo: Global, 1983.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global, 2004.

GIL, Gilberto. Sarará Miolo. Disponível em: http://letras.terra.com.br/gilberto-

gil/345133/

MATOS, Gregório de. Soneto VI. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br

PIMENTA, Sônia de Almeida; et al. Identidade nacional em debate. São Paulo:

Moderna, 1997.

PROENÇA FILHO, Domício (org.). A poesia dos inconfidentes. Rio De Janeiro:

Nova Aguiar, 1996.