poltica de defesa no brasil - domício proeça e eugenio diniz

Upload: guilherme-monteiro-santos

Post on 16-Jul-2015

211 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

poltica de defesa no brasil: uma anlise crtica

Domcio Proena Jr. Eugenio Diniz GEE e COPPE/UFRJ A anlise crtica nada mais que o pensar que deve preceder o agir. (Clausewitz, Da Guerra, livro II, captulo 5)

Abril 1998

2

PREFCIO 1. INTRODUO

3 5

2. CONTEXTUALIZANDO O DEBATE SOBRE A POLTICA DE DEFESA NO BRASIL ..........................10

3. O QUE UMA POLTICA DE DEFESA................................................................................................13

4. SEGURANA X DEFESA 4.1 4.2 5. 5.1 5.2 5.3 5.4 O DILEMA DA SEGURANA

20 ................................................................................................... 22 22

A FALCIA DA CORRIDA ARMAMENTISTA ................................................................................................

COMPONENTES DE UMA POLTICA DE DEFESA ............................................................................ 23 AS FORAS ARMADAS 23 ESTRUTURA INTEGRADA DE COMANDO E PLANEJAMENTO MILITAR ............................................................. 28 A INSTITUCIONALIDADE GOVERNAMENTAL PARA A DEFESA ....................................................................... 32 POLTICA DECLARATRIA E PRTICA CONCRETA.................................................................................... 36

6. ATIVIDADES CONCERNENTES A UMA POLTICA DE DEFESA .......................................................37 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5 7. A AVALIAO ESTRATGICA GOVERNAMENTAL ....................................................................................... 40 O PROJETO DE FORAS 44 O PLANEJAMENTO DAS AES MILITARES .............................................................................................. 50 O ORAMENTO CONSOLIDADO DE DEFESA .............................................................................................. 52 A AVALIAO MATERIAL DA POLTICA DE DEFESA .................................................................................... 53 RUMOS 54 58 60 61

BIBLIOGRAFIA SUMRIA SOBRE OS AUTORES O GRUPO DE ESTUDOS ESTRATGICOS

3

Prefcio Esta anlise crtica sobre a Poltica de Defesa no Brasil um oportuno alerta sobre tal necessidade e ao mesmo tempo um vade-mecum a ser observado pelos envolvidos em tal assunto. Urgia h muito que alguma iniciativa surgisse para que em torno do tema Defesa despontasse algo mais coerente. Sem que se defenda qual viria primeiro, se a Poltica de Defesa ou se o Ministrio da Defesa, o fato que o importante que no se intimidem de falar de defesa, e mais, que no se pense que s cabe ao segmento armado tal assunto. No se culpem os governos do perodo de 1964 a 1985 como responsveis pelo obscurantismo do assunto Defesa pois at ento, tambm, nada fora esquematicamente elaborado nesse campo. Penso que uma cobertura abrangente denominada Segurana, inibiu o trato direto do assunto Defesa. Por tal razo prefiro ficar claramente com idias do Prof. Glenn Snyder que assim podero ser interpretadas: A Poltica de Segurana Nacional (National Security Policy) envolve dois conceitos dissuaso (deterrence) e a defesa e prosseguindo: Dissuaso significa essencialmente desencorajar o inimigo de qualquer ao militar mostrando-lhe uma tal perspectiva de custo e risco pela perda que ultrapasse o seu ganho; Defesa significa reduo de nossas perspectivas de custo e risco no caso de falha de nossa postura de dissuaso. A dissuaso trabalha na inteno do inimigo; o valor da dissuaso por foras militares seu efeito em reduzir a probabilidade da movimentao militar inimiga. Defesa reduz a capacidade do inimigo em nos causar danos ou mesmo derrotar-nos; o valor da defesa por foras militares seu efeito em reduzir as conseqncias que nos forem adversas por possveis aes inimigas, sejam tais conseqncias perdas de nossos bens territoriais ou danos de guerra. Talvez a maior diferena entre dissuaso e defesa seja de que a dissuaso primeiramente um objetivo de tempos de paz enquanto a defesa valor em perodo de guerra. Os valores de dissuaso e de defesa so empregados diretamente em diferentes tempos, da pois a menor compreenso dos responsveis por identificao de polticas (de segurana? e ou defesa?). Entusiasma-nos ver dois jovens professores incursionarem com clareza e com to densas idias na medida em que vo desde conceitos iniciais sobre poltica de defesa, at seus componentes e atividades concernentes. til portanto para quem s est engatinhando conceitualmente, e com timidez ainda. As crticas referem-se tanto poltica de defesa no Brasil como do Brasil, e neste ponto a contribuio fundamental, por quanto sem que se ilumine a verdadeira Poltica Nacional, com a participao de todos os segmentos e que se determine com a participao do Congresso, os Objetivos Nacionais sejam permanentes ou circunstanciais no teremos a luz necessria para compor todo o quadro poltico no qual inserir-se- a poltica de defesa. Sua grande contribuio no crtica somente, tambm conceitual ao se referir aos termos operaes militares conjuntas e combinadas. A verdadeira idia integradas como bem explicitam os autores estou mesmo a acreditar que a traduo de importao lingstica levou a deturpar o vocbulo joint como tambm j o fizeram com a outra, overseas, imaginando ser esta o teatro de operaes martimo.

4

Suas lcidas colocaes sobre a necessidade da inteligncia (aqui uma vez mais entenda-se Informaes) devem inspirar e estimular um pouco mais fortemente aqueles que imaginam tal assunto como interesse policial ou de negociatas. Penso que se este livro j tivesse sido publicado antes de 1997 teramos um mais completo documento do que se intitulou PND (Poltica Nacional de Defesa) e evitar-se-ia que algum dos segmentos militares imprimisse e implementasse sua prpria poltica de Defesa e como conseqncia justificasse a carssima e inadequada aquisio de equipamentos militares de ataque para uma explcita postura defensiva da Poltica Nacional de Defesa. entusiasmante que se encontre no meio universitrio quem se proponha estudar grandes estratgias e, em particular sobre o tema da defesa e, mais ainda, que se exponham a mostrar suas idias sem temer crticas ou posturas dogmo-doutrinrias de escolas e Cursos formais que devem tratar de defesa. Um dos aspectos mais importantes deste documento quando diz: Conectar a poltica declarada das notas com a poltica concreta das armas o desafio central de uma poltica de defesa. Isto vai de encontro a outro excelente estudo denominado O Militar e o Diplomata (livro publicado em 1997 pela Biblioteca do Exrcito e de autoria do Cel Av Delano T. Menezes) no qual, verdadeiramente, busca-se identificar Poltica (policy) maior para que se chegue ao equilbrio entre a diplomacia e a fora. Antes que se encerre este simplrio escrito que deve anteceder a estimulante leitura do livro, valemo-nos de uma inspirao, talvez acadmica, para que se bem interprete a concepo de uma Poltica Nacional de Defesa, e que devem ser levadas em conta: O ambiente internacional como percebido pelo Estado. Os objetivos nacionais e as estratgias da fora militar e a doutrina de emprego. O processo de formao da poltica de defesa. As posturas da fora no concernente ao seu emprego, processo de aquisio, controles de armas e relaes civis-militares. Oportuno ento que se cite Henry Kissinger quando diz Poltica Externa sem um mnimo de apoio militar mero exerccio de retrica. Finalmente, devo dizer que este livro adequa-se tanto aos scholars quanto aos homens de governo pois demonstra o que pensar sem o que h de ser impossvel realizar, e neste mister os autores demonstram ser mestres. Integrar a postura chave: Nenhuma arma ou fora ganha sozinha uma guerra, mas, sem o emprego integrado de qualquer delas teremos triunfos somente parciais. Murillo Santos Tenente Brigadeiro do Ar

5

1. introduoO ano de 1996 marcou, no Brasil, a divulgao do primeiro documento que instrui uma poltica declaratria de defesa. Este documento, a Poltica de Defesa Nacional, traz no percurso de sua feitura e no contedo de seus captulos um resumo razoavelmente completo das vantagens, desvantagens, dilemas e inrcias do Brasil no campo dos assuntos de segurana externa e defesa nacional. Diferentemente da maioria dos pases democrticos, o Brasil possui cinco agncias militares em nvel de ministrio Exrcito, Marinha, Aeronutica e Estado-Maior das Foras Armadas (EMFA) e o Ministro-Chefe da Casa Militar , alm da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, todos voltados, no todo ou em parte, para os assuntos de defesa do Brasil. Alm disso, existem instncias diversas que exerceriam o papel de conselhos consultivos superiores sobre estes temas. O Conselho de Defesa, rgo constitucional, a Cmara Setorial de Relaes Exteriores e Defesa Nacional (CREDENA) e ainda, setorialmente, estruturas de comando nacional e Alto Comando das foras singulares cujos papis se sobrepem. Deste modo, fica bastante difcil uma efetiva integrao das Foras Armadas brasileiras, seja do ponto de vista administrativo, seja do operacional. Este ltimo, alis, fica duplamente prejudicado, pois o EMFA no desempenha, ao contrrio do que seu nome sugere, o papel de coordenao, integrao, homogeneizao e planejamento do conjunto das foras singulares. Serve principalmente para a centralizao de algumas tarefas em comum das foras singulares. Se olharmos bem, o documento produzido menos uma poltica de defesa e mais uma harmonizao de pontos de vista entre diversas agncias responsveis por assuntos externos do pas: a Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica SAE/PR , os ministrios militares e o Ministrio das Relaes Exteriores Itamaraty ou MRE , alm da presena, pouco clara em termos institucionais, do Ministrio da Justia. De fato, o documento pode ser considerado uma formulao de princpios norteadores e da enumerao de questes gerais relacionadas segurana e defesa do pas. Nesse sentido, talvez fosse melhor caracteriz-lo como uma espcie de declarao da postura internacional do Brasil, solidarizando as vertentes diplomtica e militar com os princpios das relaes internacionais do Brasil, tais como estabelecidos no artigo 4 da Constituio de 1988. Este sentimento sobre a natureza deste documento reflete-se na forma pela qual ele identificado pela prpria Secretaria de Assuntos Estratgicos, que o denomina Documento sobre Poltica de Defesa Nacional1 (grifo nosso; daqui em diante DPDN). Em sua introduo, o DPDN d testemunho das modificaes do cenrio internacional, bem como das transformaes ocorridas no plano interno brasileiro, luz dos contextos regional e global. Identifica tambm a necessidade de um documento de alto nvel que atenda ao interesse da sociedade brasileira e fundamente a materializao em poltica dos preceitos constitucionais para as relaes exteriores. Afirma o carter continental e martimo do Brasil, elencando as diversas componentes de sua diversidade ambiental, de recursos, de cenrios etc. Assegura a busca de uma poltica de defesa sustentvel, capaz de, por um lado, propiciar uma modernizao da capacidade de autoproteo harmnica com o desenvolvimento da democracia e, por outro, poltica e economicamente aceitvel. Disponvel em folheto na Presidncia da Repblica. Talvez o acesso mais fcil ao documento seja sua reproduo integral na revista do Centro de Estudos Estratgicos da SAE/PR: Parcerias Estratgicas, 1 (2): 7-18.1

6

Em seguida, descreve o quadro internacional, registrando o fim da Guerra Fria e identificando o momento presente como de uma transio onde impera um quadro de incertezas. Destaca a peculiaridade da Amrica do Sul como regio pacfica e desmilitarizada, enfatizando sua distncia dos focos de tenso mundial e a necessidade de uma insero mltipla capaz de harmonizar interesses e fortalecer o processo de integrao do Brasil no mundo. Alerta, porm, para a existncia de riscos oriundos de conflitos gerados externamente, seja por estados, seja por grupos armados capazes de contrariar interesses brasileiros ou de ameaar seu patrimnio. Manifesta, incisivamente, a subordinao das questes de defesa poltica externa brasileira, celebrando o sculo de paz do Brasil com seus vizinhos e prescrevendo a continuidade de uma insero mundial brasileira consistente com os princpios e normas do direito internacional e do respeito intransigente aos compromissos assumidos. Segue-se a este pano de fundo a enumerao de objetivos que buscam assegurar a manuteno de um sistema de defesa adequado preservao da soberania brasileira e vigncia do Estado Democrtico de Direito. Enumeram-se, assim, os seguintes objetivos: "a. a garantia da soberania, com a preservao da integridade territorial, do patrimnio e dos interesses nacionais; "b. a garantia do estado de direito e das instituies democrticas; "c. a preservao da coeso e da unidade da Nao; "d. a salvaguarda das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros ou sob jurisdio brasileira; "e. a consecuo e a manuteno dos interesses brasileiros no exterior; "f. a projeo do Brasil no concerto das naes e sua maior insero no processo decisrio internacional; e "g. a contribuio para a manuteno da paz e da segurana internacionais.2 A orientao estratgica brasileira centrada numa ativa diplomacia voltada para a paz e numa postura dissuasria de carter defensivo, reafirmando os preceitos constitucionais que asseguram a definio e reconhecimento internacional das fronteiras brasileiras, o relacionamento estreito baseado na confiana e no respeito mtuos com todos os pases, a rejeio guerra de conquista e busca da resoluo pacfica dos conflitos, ressalvado o direito autodefesa pelo uso da fora. importante destacar a nfase prioridade da ao diplomtica como instrumento primeiro na soluo de conflitos e a assertiva de que o Brasil no se impe limites, em caso de conflito, quanto ao emprego de seu poderio militar. A orientao estratgica brasileira reconhece como essencial o fortalecimento equilibrado da capacitao nacional para a defesa, destacando, porm, que o poderio militar fundamentado pela capacidade das Foras Armadas, se necessrio acrescidas dos recursos nacionais e das reservas mobilizveis. Especificamente, as Foras Armadas devero estar ajustadas estatura poltica e estratgica da Nao e estruturadas, de forma flexvel e verstil,

2

Parcerias Estratgicas, 1 (2): 11

7

para atuar, com presteza e eficcia, em diferentes reas e cenrios3. Conclui, assim, pelo carter essencial de um aprimoramento contnuo das Foras Armadas. As diretrizes contidas no DPDN so seu ponto mais ambicioso e mais vago. Listam-se vinte diretrizes, que muitos desejam incorporar ingenuamente como prioridades (sic), que vo desde reiteraes dos princpios acima expressos, passando por aspiraes de carter poltico na dinmica internacional de segurana e pela expresso de linhas fortes na atuao governamental interna e externa, at a necessidade de um trabalho de reconstruo da mentalidade de defesa nacional no contexto de um regime democrtico.4 O DPDN se encerra assim, sem concluses, prioridades ou elos explcitos de sua aplicao como guia para os programas do governo ou das Foras Armadas, sem qualquer meno ao ministrio da defesa. H, no documento, alguns trechos em que a redao foi infeliz, invertendo o carter instrumental das Foras Armadas e podendo induzir a leituras equivocadas da estrita subordinao que se afirma em quase todo o documento dos militares aos civis. Discutir poltica de defesa implica necessariamente discutir as foras armadas. As Foras Armadas so um instrumento legtimo da ao do Estado e devem ser objeto de discusso politicamente informada e tecnicamente competente. Uma poltica de defesa tem como tarefa crucial compatibilizar a capacidade de combate e os custos das foras com as metas polticas dos governos na cena internacional. Mesmo num perodo de crescente interdependncia entre os povos, a garantia ltima da sobrevivncia de um Estado e de sua capacidade de estabelecer relacionamentos construtivos com outras sociedades assenta sobre sua prpria capacidade de preservar sua integridade e de respaldar seus interesses pela fora. Entretanto, os mais recentes desdobramentos polticos na cena internacional, em conjunto com as transformaes na arte de combater dos anos 80-90, obrigam a que cada pas rediscuta o desenho e os interrelacionamentos de suas organizaes voltadas para a defesa. Pode-se dizer que vige no ambiente internacional uma anarquia que no se confunde com anomia, desordem ou caos; trata-se simplesmente de uma ausncia de governo. A existncia de acordos, mecanismos de cooperao e entendimentos de diversos tipos entre os diversos Estados no pode e no deve ser tomada como materialidade de uma ordem jurdica internacional. No obstante a crescente apropriao de legitimidade por parte de instncias de relacionamentos internacionais o Conselho de Segurana das Naes Unidas, a Organizao Mundial do Comrcio, a Corte Internacional de Justia de Haia, por exemplo , cada Estado existe por si mesmo. Deriva seu direito de existir, e portanto a possibilidade de participar destes ou quaisquer outros entendimentos, de sua fora num equilbrio de foras.3 4

Parcerias Estratgicas, 1 (2): 12

Com todas as suas lacunas, o DPDN serviu para engajar o Congresso Nacional e parte da imprensa no incio do debate democrtico sobre a Defesa Nacional. O seminrio sobre a Poltica de Defesa Nacional teve lugar na Cmara dos Deputados em 25 de novembro de 1996, reunindo os ministrios responsveis e especialistas civis para uma primeira reflexo. O seminrio e os debates permitiram a diversos congressistas a articulao entre os interesses que representam e a proposta do Executivo. De fato, pode-se mesmo pensar em reformas, at constitucionais, que dem novo destaque ao Congresso no processo de formulao e controle da execuo de uma verdadeira Poltica de Defesa Nacional brasileira.

8

Nenhuma lei os protege, nenhuma autoridade os controla. Quando os Estados discordam, est sempre presente a possibilidade do recurso s armas. Apenas na medida em que seus interesses se coadunam com os interesses de outros Estados que podem contar com alguma ajuda em suas querelas. Existem, evidentemente, Estados mais fortes que outros. O desenho da natureza e da medida dos fatores levados em conta no equilbrio do poder e portanto, valorados como fontes de poder no sistema internacional de um dado tempo responde ao interesses dos Estados mais fortes na medida do reconhecimento de sua superioridade; no limite, superioridade militar. Toda a paz resultado de um determinado equilbrio de foras. A paz sem fora um sonho. Na anarquia internacional, portanto, se um pas deseja ter seus interesses considerados, ele tem que contribuir com a sua parcela de fora para a paz. H pases que optaram ostensivamente por no disporem de foras armadas: so territrios pequenos ou pobres, fora do alcance ou interesse de vizinhos mais poderosos. A histria dos Estados nacionais foi, da Guerra dos Cem Anos (1337-1453) at a Carta das Naes Unidas, uma histria de absoro de territrios vizinhos, at o equilbrio entre os novos Estados expandidos; uma era de imprios. Desde as Naes Unidas, a guerra de conquista foi considerada um ato de agresso contra todos os Estados. Assim, pode-se entender a paz no sistema das Naes Unidas como uma paz nascida da aceitao de um determinado status quo respaldado, em ltima anlise, pelas foras armadas de seus membros. exatamente o carter de associao voluntria de Estados soberanos que faz com que qualquer entendimento da ONU como semente de um Estado mundial seja um equvoco. As relaes internacionais se baseiam, portanto, na possibilidade do recurso fora. uma das marcas positivas de nosso tempo que o uso desse recurso esteja limitado s situaes extremas. Entretanto, isso no tem nada de essencial ou intrnseco ordem internacional. apenas uma realidade circunstancial: basta imaginar uma ordem internacional centrada na Alemanha Nazista e seus aliados para que se tenha uma idia clara de quo precria e preciosa a nossa condio. O importante salientar que, em qualquer caso, as foras armadas so o instrumento de fora dos Estados e a garantia ltima de seus interesses e de sua existncia. A atualidade das foras armadas, portanto, um dos assuntos centrais na gesto dos assuntos pblicos e at da segurana ou paz internacional. Manterem-se atualizadas uma das tarefas mais importantes das foras armadas. Desde o sculo XIX, a vertente tecnolgica dessa atualizao tem sido um dos grandes desafios para polticos, comandantes e Estados-Maiores. Embora essa vertente tenha componentes tanto em termos de produtos (por exemplo, armamentos) quanto processos (por exemplo, tticas), houve uma reificao da mquina especialmente do armamento como suficiente para determinar a atualidade ou obsolescncia dos arranjos militares. Isto , a posse de um ou outro armamento seria condio necessria e suficiente para se aferir a atualidade de uma determinada fora. A histria militar do sculo XX pontuada por momentos em que este entendimento se revelou insuficiente para dar conta das necessidades de atualizao. Ficou claro que, mais do que os equipamentos em si mesmos, a forma de seu emprego e sua integrao dentro e para alm das organizaes militares que poderia servir para monitorar a atualidade de uma dada fora armada. A natureza traumtica do embate de concepes neste sculo deu margem percepo de que determinados arranjos produziam descontinuidades na produo de poder combatente em relao aos arranjos que os precediam. Estes momentos impuseram o redesenho das

9

expectativas dos resultados dos combates e a reconfigurao das instituies militares como produtoras de foras combatentes. A idia de que possam ocorrer descontinuidades nas capacidades combatentes que o ponto chave aqui. Implica que a dinmica cotidiana das organizaes militares, merc de seu ritmo corporativamente marcado, pode no ser capaz do redesenho profundo que tais descontinuidades exigem. A necessidade de dar conta delas soma-se, assim, ao imperativo da guerra industrial de que sociedade e fora armada estejam conectadas. As foras armadas esto sempre em evoluo, nem que apenas no aumento de sua familiaridade e experincia com seus arranjos vigentes. A existncia de descontinuidades coloca em pauta a necessidade de uma viso externa, que seja capaz de olhar para alm das estruturas e arranjos vigentes em busca das alternativas capazes de atualizar o instrumento militar de forma adequada. A necessria densidade tcnica dessa discusso no deve ser motivo para escamotear-se o carter eminentemente poltico das decises envolvidas. Existe um contexto poltico que situa o campo de possibilidades das alternativas tcnicas, subordinando-as a metas polticas. dizer, no se escolhem livremente a organizao e o equipamento das foras armadas, mas sim a partir de constrangimentos emanados da poltica, que podem cercear alternativas arbitrariamente. Foras Armadas so instrumentos polticos, e como tal devem ser pensadas. H mais decises envolvidas na organizao de uma fora armada, porm, do que apenas as decises polticas. parte da tarefa dos comandos militares informarem aos polticos sobre a viabilidade propriamente militar das alternativas disponveis seja do ponto de vista de sua sustentao logstica pelos recursos societais, seja do ponto de vista de sua eficcia combativa. O dilogo entre as metas polticas e o projeto de foras a concepo e o planejamento do desenho e do dimensionamento das foras o centro do debate sobre assuntos de defesa. Numa democracia, este dilogo envolve bem mais que as burocracias responsveis. Emancipa-se em uma das grandes questes nacionais, dando substncia ao entendimento cidado do que seja o lugar de sua sociedade nos assuntos mundiais. Desse debate participam o Congresso, a Imprensa, os partidos polticos e organizaes da sociedade civil, bem como a Universidade, que atua como um dos plos de coleta, produo e disseminao das idias necessrias para que tal debate se d de maneira produtiva e orientada para o interesse pblico, com um tipo de autonomia capaz: autonomia com relao dinmica corporativa das foras e burocracias (embora, obviamente, no seja autnoma com relao sua prpria dinmica corporativa); capaz com relao aos conhecimentos tcnicos necessrios compreenso dos problemas envolvidos e apreciao do mrito de alternativas de soluo. O livro que ora apresentamos tem por propsito examinar quais seriam as principais componentes e atividades de uma poltica de defesa, com vistas a contribuir para o debate sobre a formulao de uma poltica de defesa altura das aspiraes e necessidades da sociedade brasileira. um roteiro para a discusso informada dos assuntos de defesa em nosso pas. O livro se inicia com uma breve digresso sobre relaes internacionais e fora, seguida pela contextualizao do debate sobre a poltica de defesa do Brasil, onde se aponta como a alienao por parte da sociedade brasileira com relao aos assuntos de defesa resultou na negligncia quanto s atividades de defesa. Com efeito, boa parte dos acadmicos, jornalistas e cidados terminaram por, de fato, negar qualquer papel legtimo s foras armadas numa democracia; viso que urge superar.

10

Em seguida, afirma-se a natureza poltica da poltica de defesa e seus principais condicionamentos, salientando que necessria uma certa vigilncia, em sociedades sem ameaas concretas iminentes, para que os assuntos de defesa sejam adequadamente equacionados, uma vez que os processos normais de uma democracia, na paz, tendem a subestimar as necessidades de defesa em favor de outras demandas mais prementes. Para isto, torna-se necessrio clarificar o alcance dos erros e falcias decorrentes da difuso da Doutrina de Segurana Nacional, que se revelam claramente incompatveis com uma sociedade democrtica e insuficientes para a discusso substantiva da poltica de defesa nacional. O captulo seguinte apresenta as dificuldades conceituais da discusso sobre segurana e defesa no Brasil. Alm disso, enfrenta dois problemas candentes que obstam o desenvolvimento de um debate consistente sobre a defesa: o dilema da segurana e a falcia da corrida armamentista. Inicia-se ento a exposio das quatro componentes de uma poltica de defesa, a saber: as foras armadas, a estrutura integrada de comando e planejamento militar, a institucionalidade governamental para a defesa e articulao entre a poltica declaratria e a prtica concreta de uma poltica de defesa. A esta se segue um captulo contendo a descrio das cinco atividades concernentes a uma poltica de defesa, a saber: a avaliao estratgica governamental, o projeto de foras, o planejamento das aes militares, o oramento consolidado de defesa e a avaliao material da poltica de defesa. No captulo seguinte os rumos pelos quais se pode ir adiante no debate e reflexo sobre a defesa do Brasil, onde se fazem algumas consideraes a respeito da criao de um Ministrio da Defesa. importante destacar que estas exposies no pretendem prescrever uma poltica ideal de defesa para o Brasil: ao contrrio, seu propsito justamente o de qualificar os leitores para a participao no debate da formulao da poltica que julguem mais adequada ao pas.

2. contextualizando o debate sobre a poltica de defesa no brasilO principal problema para a discusso de assuntos propriamente militares no Brasil a continuidade de uma falsa expectativa: a de que o trmino do perodo autoritrio tivesse feito surgir do nada todo o aparato necessrio para a gesto democrtica dos assuntos pblicos. Espera-se que, imediatamente aps a deposio dos votos nas urnas, surjam automaticamente competncias especficas sufocadas na sociedade e no Congresso, rearticulaes polticas entre a sociedade e grupos poderosos no regime autoritrio, retraes desses mesmos grupos de reas de atuao inapropriadas, uma readequao de prioridades oramentrias consistente com os novos tempos, a substituio de mtodos de sobrevivncia e reproduo polticas, a reorganizao do servio pblico para o atendimento dos cidados, a instaurao de instncias superiores adequadas para a direo poltica conjunta das Foras Armadas e reformas educacionais em todos os nveis nas instituies militares. Obviamente, isso no verdade. O peso histrico de prticas tradicionais, carreiras consolidadas, falsas expectativas e mecanismos institucionais arrasta para o perodo democrtico muitas idiossincrasias.

11

Uma dessas idiossincrasias a alienao da sociedade com relao ao debate sobre assuntos militares, uma alienao fundada no no desinteresse, mas na ignorncia nascida de um distanciamento entre as foras armadas e a sociedade. Essa distncia assenta sobre resqucios de uma cultura do sigilo, que tratava os cidados brasileiros como inimigos potenciais. Da resultava uma situao esdrxula, que persiste inercialmente at os dias de hoje, mais freqentemente do que o tolervel: mais fcil obterem-se informaes sobre as foras armadas estrangeiras que sobre as brasileiras; e mais fcil tambm obterem-se informaes sobre as Foras Armadas brasileiras em anurios estrangeiros que em qualquer fonte nacional. De outra parte, a luta pela democracia marcou muitos dos estudiosos brasileiros com um posicionamento antimilitarista que nem sempre soube distinguir entre o papel ilegtimo que as instituies militares ocuparam como governantes e o seu papel legtimo como ferramentas polticas do Estado. Estes posicionamentos persistem de forma inercial e acrtica, inclusive depois de superados os principais obstculos polticos que os promoveram e os explicavam. Como resultado dessa postura, surgiram duas solues de compromisso: por um lado, desviou-se a discusso dos assuntos de defesa para a discusso da assim chamada poltica nacional, sob a roupagem dos assuntos estratgicos. Essa soluo, longe de superar o distanciamento entre a sociedade brasileira e suas Foras Armadas, reifica essa distncia, ao replicar a dinmica de segurana e desenvolvimento, afirmando a supresso da primeira em favor do segundo. Esta tendncia escusa a ausncia de discusso sobre os assuntos de defesa propriamente ditos sob a alegao de que ela s seria possvel depois que o entendimento holstico de um mtico projeto nacional tivesse sido formulado. Assim, a discusso dos assuntos militares fica adiada at o momento em que surja um entendimento abrangente que situe o Brasil no mundo e defina o papel e a razo de ser das foras armadas. Isto, claro, acaba por impedir que sociedade e foras armadas possam clarificar e explicitar o que sejam suas necessidades e prioridades no presente at porque, de fato, esse mtico projeto nacional no vir. A segunda soluo de compromisso aproxima-se da questo da defesa com olhos militantes, e se dispe ao sacrifcio da eficcia combativa das foras em nome de sua emasculao poltica. Como corolrio, iniciativas da discusso de assuntos de defesa so sempre vistas como potencialmente suspeitas de acobertar desgnios antidemocrticos, a no ser que estivessem explicitamente orientadas para o controle do risco de uma retomada do poder pelos militares. A principal conseqncia de tudo isso que a discusso efetiva sobre assuntos de defesa acaba reduzida ou a contribuies pontuais de alguns civis dedicados ao assunto ou ao debate interno ao grupo dos corporativamente interessados. Especialistas de outros campos, para quem os assuntos de defesa seriam complementares, vem-se levados a ignor-los ou a acreditarem que os assuntos militares no tm relevncia para temas como relaes internacionais, cincias sociais ou o desenvolvimento cientfico-tecnolgico da sociedade brasileira. Os cidados comuns e os tomadores de deciso encontram-se carentes de um ponto-de-vista independente, capaz de fazer crticas consistentes e formular alternativas viveis que instruam uma poltica de segurana e defesa5 coerentes com as demais aspiraes polticas brasileiras.

5

A diferena entre ambas ser elaborada mais adiante.

12

A atualidade dessa discusso, entretanto, foi reafirmada recentemente, com o lanamento, em novembro de 1996, de um documento sobre a poltica de defesa nacional. Neste documento, pela primeira vez, enunciou-se explicitamente o que seriam os contornos gerais das formulaes brasileiras para o campo da defesa nacional. Menos que uma poltica entendida no sentido ingls de policy, isto , uma ferramenta que instrui o atendimento de metas polticas , trata-se de uma harmonizao de perspectivas entre as diversas agncias governamentais ligadas, direta ou indiretamente, questo da defesa, subordinando-as de forma explcita s diretrizes constitucionais. Esse pronunciamento tem valor, portanto, mais pelo que exclui do debate sobre defesa do que por um papel normativo na formulao de uma poltica especfica. O documento institui as bases de uma poltica declaratria ao comunicar a interpretao do governo brasileiro sobre os limites constitucionais, legais e os decorrentes de tratados dentro dos quais se erigiria nossa poltica de defesa. Tornam-se, assim, ilegtimas interpretaes autnomas que se arrogavam o direito de ler em entrelinhas o que era negado explicitamente nas linhas: tentao a que cederam diplomatas, militares e acadmicos. Nunca demais destacar a centralidade de uma postura consistente em relaes internacionais e defesa. falso supor que, uma vez desencadeadas as hostilidades, tudo permitido. Essa consistncia um pr-requisito para o estabelecimento do relacionamento entre os pases em tempos de paz, que so a situao mais freqente de cada um dos Estados. Com efeito, ao estabelecer as linhas gerais da possibilidade do emprego da fora pelo Brasil, o documento enuncia uma espcie de poltica declaratria com relao sua defesa. Contrari-la, portanto, significa algo como um estelionato poltico perante os demais Estados soberanos do mundo: equivaleria a dizer que o Brasil no merece crdito. Esquece-se com freqncia alarmante que a guerra apenas a continuao da poltica, acrescida do emprego de meios violentos. A preservao da maior parte dos relacionamentos polticos anteriores s hostilidades no pode ser escamoteada quando do incio destas. A guerra no substitui a poltica; ao contrrio, ela a poltica armada. Da decorre, alis, nossa insatisfao com o Documento: ele estabelece as bases da poltica declaratria, mas no a enuncia, a no ser em alguns detalhes, alis importantes. Por exemplo, a renncia guerra de conquista, princpio constitucional, absorvida como parte do arcabouo de formulao de polticas, e no constitui novidade; j a explicitao do princpio de que o Brasil prefere a soluo pacfica dos conflitos, mas, uma vez que o uso de fora for decidido no desenrolar dos eventos, o Brasil a usar na intensidade e local que julgue adequados, uma contribuio valiosa para o que sejam de fato os entendimentos brasileiros sobre paz e guerra. Mas o documento principalmente um entendimento amplo do que sejam caractersticas e iniciativas desejveis no campo da defesa: por exemplo, a atualidade, flexibilidade, robustez e capacidade de ao tempestiva das foras armadas, sem marcar, no entanto, quaisquer prioridades entre as foras ou dentro delas. Ou, de forma ainda mais abrangente, a listagem de um rol de quesitos que encerram o documento sem conclu-lo: vo desde o desenho geral da temtica da defesa no Brasil, passando pela necessidade de um respaldo cientficotecnolgico, por problemas circunstanciais da insurgncia ligada ao trfico em pases na fronteira amaznica at a afirmao do carter desejvel de um vnculo mais estreito entre sociedade e assuntos de defesa. Nesse sentido, portanto, o documento do governo brasileiro constitui-se num marco a partir do qual se pode de fato discutir o que seja uma poltica de defesa brasileira. Mas no a poltica de defesa do Brasil.

13

3. o que uma poltica de defesaNeste momento, portanto, passamos a expor o que entendemos por poltica de defesa. A primeira caracterstica de uma poltica de defesa exatamente sua natureza poltica. Desse ponto de vista, preciso entend-la como fruto do entrechoque de interesses e perspectivas das diversas foras polticas relevantes no panorama poltico da sociedade brasileira. Como sempre em assuntos polticos, tratar-se- sempre de um acordo, resultado de mtuas concesses, de natureza pragmtica ou ideolgica, refletindo um determinado equilbrio temporrio de foras, as diferentes intensidades com que os interesses concretos dos grupos polticos aparecem na cena internacional, e at a maior ou menor presena do tema no conjunto da opinio pblica. Portanto, embora a poltica de defesa deva ser considerada como parte da poltica do Estado, ela tambm , como qualquer poltica, provisria, temporria, e seus objetivos tendero a oscilar conforme o grau de diferena entre os grupos e suas respectivas posies de fora no cenrio poltico. Em qualquer sociedade complexa e diversificada como a brasileira, os objetivos no so homogneos; apenas predominam sobre outros. Essa simples considerao confronta o centro dos entendimentos da Doutrina de Segurana Nacional (DSN), cujas formulaes e entendimentos sobrevivem de maneira institucionalizada e acrtica nas discusses sobre assuntos de segurana e defesa no Brasil6. Por exemplo, o exposto acima pe em tela o fato de que a idia de que haja qualquer coisa como Objetivos Nacionais Permanentes que justificariam a legitimidade e a perenidade da DSN no apenas falsa: ela contraditria com a realidade; uma recusa peremptria do mundo moderno; uma saudade atvica de um mundo simples; um legado mtico da era em que o Estado era o Prncipe. Ao se classificar um objetivo como nacional e permanente, temse que uma discordncia no apenas uma posio distinta de um cidado interessado em equacionar de maneira alternativa solues para seu pas: uma traio Ptria. Com isso, deslegitima-se a divergncia de opinies, demoniza-se o conflito, aniquilando, desta maneira, a possibilidade de um convvio democrtico com as diferenas inerentes a uma sociedade complexa. Voltaremos discusso dos objetivos nacionais no captulo 5 (Segurana x Defesa). Uma mostra significativa dessa simploriedade o apego da DSN ao determinismo causal da Geopoltica. Essa corrente se caracteriza, entre outras coisas, por transformar em lei geral aquilo que foi um fenmeno histrico datado: a expanso dos Estados Nacionais. Com efeito, Ratzel o ancestral dessa corrente de pensamento chegou a postular as leis do crescimento espacial dos Estados, imaginando ter encontrado num imperativo geogrfico a causa ltima de seu comportamento. Suprime-se, assim, com uma penada, a complexidade formidvel do processo decisrio das sociedades modernas, seja numa ditadura, seja numa democracia: o imperativo geopoltico seria a realidade; seu esquecimento, uma traio ao destino manifesto de grandeza de todo um povo. Afora as inconsistncias tericas e metodolgicas dessa corrente, a evidncia histrica a contradisse de maneira acachapante: a Unio Sovitica efetivamente controlou o Heartland de Mackinder durante setenta anos, e

No ignoramos, ao contrrio reconhecemos, que o corpo permanente da Escola Superior de Guerra vem desenvolvendo um esforo considervel de reformulao do Manual Bsico e com ele, de sua prpria Doutrina. Os comentrios que fazemos no devem ser tomados como um desmerecimento deste esforo.

6

14

no dominou nem a Ilha do Mundo, muito menos o Mundo; ao contrrio, desabou como um castelo de cartas7. crucial esclarecer que a crtica aos entendimentos nascidos da DSN no se encerra em consideraes principiais, em sua inadequao democracia ou seu apego a consideraes pseudocientficas cabalmente desmentidas pela Histria. No, a crtica DSN imprescindvel em funo do risco real que sua aplicao pode trazer busca das metas polticas para a gesto concreta dos assuntos de segurana e defesa. Tome-se como exemplo a idia de Poder Nacional, tal como expressa no Manual Bsico da ESG: o conjunto integrado de meios de toda ordem de que dispe a Nao, acionados pela vontade nacional, para conquistar e manter, interna e externamente, os Objetivos Nacionais 8 . Alm da impossibilidade de se atribuir qualquer significado idia de vontade nacional expressa acima, observe-se que essa idia de poder no contempla a principal caracterstica de qualquer entendimento corrente de poder poltico: a de que o poder uma relao entre atores, marcada pelas especificidades idiossincrticas de cada circunstncia particular neste relacionamento, luz de sua histria e intenes quanto ao futuro. Ao trat-lo como um conjunto integrado de meios de toda ordem, a DSN torna o poder uma quantidade, um estoque, um acervo de meios que existem por si ss, emancipadamente dos diversos relacionamentos entre os Estados e os grupos polticos, cujo engajamento em qualquer momento concreto depende de seu acionamento pela vontade nacional. Este entendimento despolitiza todo o edifcio analtico da DSN, oferecendo um entendimento do mundo em que os diversos Estados so hierarquizados em funo do seu Poder Nacional e onde o relacionamento poltico reduzido a um confronto plenamente quantificvel de Poderes Nacionais, predeterminando os resultados de qualquer conflito. evidente que a hiptese implcita de que os Estados utilizam todo o seu Poder Nacional em qualquer situao no se sustenta; qualquer tentativa de querer preservar esta idia de Poder Nacional pelo artifcio de querer quantificar a importncia poltica de uma questo como uma percentagem do Poder Nacional, merc do quanto do Poder Nacional a vontade nacional decide ver aplicado serve apenas para tornar mais evidente a inutilidade original desta idia, ainda que sirva para escusar qualquer resultado no previsvel pela simples comparao dos Poderes Nacionais envolvidos. Observe-se que nenhum Poder Nacional assim entendido seria suficiente para garantir a obteno de metas polticas nem no caso hipottico de um Estado cujo Poder Nacional fosse superior soma de todos os poderes nacionais de todos os demais Estados do planeta: pode-se admitir, por exemplo, um desafio global, que se desse em duas ou at trs frentes, pelas quais nosso Poder Nacional tivesse que se dispersar, podendo ser batido por partes, mediante uma combinao inteligente dos Poderes Nacionais dos outros pases. Uma das piores e menos percebidas conseqncias dessa idia de Poder Nacional a desesperana de que os brasileiros ou quaisquer outros menos poderosos que os mais poderosos possam obter sucesso em qualquer situao internacional caracterizada pelo

Sir Halford Mackinder, um dos fundadores da Geopoltica, estabelecera que quem controlasse o Heartland (faixa que compreendia a regio que vai da Alemanha at a Belarus) estava predestinado a controlar toda a Eursia (que ele chamava de Ilha do Mundo) e, da, inexoravelmente, todo o planeta.8

7

ESG, Manual Bsico. Rio de Janeiro, ESG, 1988: 60.

15

desacordo com um poderoso. Com efeito, como o que contaria em qualquer situao, segundo a DSN, seriam os Poderes Nacionais envolvidos, o lado que tivesse mais Poder Nacional sempre sairia vitorioso, acrescentando, por esta vitria, mais meios e recursos ao seu Poder Nacional, ao passo que o menos poderoso sempre perderia meios e recursos, diminuindo seu Poder Nacional. A busca pelo desenvolvimento que aumentaria o Poder Nacional resulta, assim, numa esperana de que os mais poderosos cometam erros no seu desenvolvimento, de maneira a permitir aos menos poderosos diminurem a diferena que os separa. No entanto, como o Poder Nacional abrange, tambm, as competncias atravs das expresses psicossocial e de cincia e tecnologia, por exemplo , esta uma esperana v, nos prprios termos da DSN, exceto para consideraes da mais alta subjetividade, e tendentes a um chauvinismo ingnuo, sobre a fortaleza e a fraqueza das vontades nacionais envolvidas. A histria da humanidade desmente to cabalmente a dinmica contida na DSN que a falsidade das premissas se revela ao primeiro olhar; o problema est na continuidade de seu uso no processo de tomada de deciso de atores significativos na cena poltica brasileira. Alm disso, tome-se a diviso do Poder Nacional nas suas expresses: poltica, econmica, militar, psicossocial e de cincia e tecnologia. Tal distino tem diversas conseqncias perversas tanto para a anlise quanto para a tomada de deciso, induzindo tanto uma despolitizao conceitual do relacionamento entre os Estados e, principalmente, de seus meios militares e seus conjuntos de interaes de carter econmico, por um lado; uma politizao equivocada e ingnua das percepes de uma situao, privilegiando, por exemplo, os poderosssimos grupos de comunicao de massa, por outro; ou que cincia e tecnologia no sejam fenmenos culturais, sociais e econmicos, mas que pudessem existir em si mesmas, atuando autonomamente na dinmica de relacionamento entre os Estados. Com efeito, ao se desdobrar uma idia de Poder Nacional em si mesma equivocada em cinco campos ou expresses distintos, perde-se de um lado o isomorfismo essencial entre poltica e aes militares, por exemplo; ou, de outro lado, ofuscam-se a estreitssima conexo e a enorme multiplicidade de interaes entre as vidas econmica e poltica de uma sociedade e seus entrelaamentos com as das demais sociedades humanas; de um terceiro ponto-devista, toma-se o fenmeno complexo a que poderamos chamar relacionamento mdiaopinio pblica como essencialmente subordinado e dependente dos mecanismos governamentais, subestimando-se a extraordinria capacidade independente de identificao e anlise de fatos que tm as grandes empresas jornalsticas; por ltimo, a razoavelmente recente separao do campo ou expresso de cincia e tecnologia um equvoco analtico simples: ao querer destacar a importncia do progresso tcnico, contrabandeia a idia de que o progresso seja um elemento que existe por si s, capaz de impacto prprio e distinto, revelia de suas materializaes em produtos, processos e saberes. Essa abordagem potencialmente catastrfica. Considere-se a dissociao entre poltica e aes militares, reificada nas expresses poltica e militar do Poder Nacional. Essa distino supe a validade de uma idia refutada cabalmente por Clausewitz em Da Guerra: a idia de que aes militares so diferentes das aes polticas e segundo a qual, uma vez iniciadas as hostilidades, a poltica deveria sair de cena para que as consideraes pretensamente puramente militares pudessem presidir a todo o esforo de guerra ou que as aes militares pudessem ser conduzidas segundo critrios puramente militares. Na verdade, no existem consideraes ou critrios puramente militares, e qualquer deciso relacionada ao emprego ou possibilidade de emprego de fora armada tem inevitavelmente aspectos no apenas tticos e estratgicos, mas tambm polticos.

16

Para exemplificar o potencial catastrfico da dissociao induzida pela DSN, tome-se o complexo de consideraes que se podem associar ao emprego de submarinos9. Trata-se evidentemente de um sistema de armas poderoso do ponto-de-vista ttico (isto , do uso das foras no engajamento): possui grande capacidade de infligir danos a navios e sua neutralizao exige um esforo complexo e difcil; mesmo a, sua capacidade de evaso bastante alta. Se o que se quer atacar navios inimigos, sua utilidade pode ser considerada alta. O mesmo j no se pode dizer do ponto-de-vista estratgico (isto , do uso dos engajamentos para o propsito da guerra): os submarinos inimigos possuem rigorosamente as mesmas capacidades, inclusive em relao aos nossos; a posse de submarinos no nos permite utilizar os oceanos, ainda que limitadamente, para os nossos prprios propsitos; trata-se de um sistema pouco verstil e, em boa parte das situaes, simplesmente intil. Sua situao piora ainda quando se o toma de um ponto-de-vista poltico: com efeito, as exigncias intrnsecas de sua boa utilizao ttica so de tal ordem que impem severas restries a suas comunicaes, o que dificulta seu controle e outorga tal autonomia a seu comandante que, muitas vezes, um s submarino pode pr por gua abaixo todo um intrincado e penoso esforo poltico; desse ponto-de-vista, o submarino deixa de ser em boa parte das vezes intil para se tornar potencialmente catastrfico. Em situaes de crise, esse problema exacerbado ao limite. Observa-se assim como a deciso de se empregar um determinado sistema de armas (o que, ingenuamente, se poderia considerar uma deciso puramente ttica) precisa ser ponderada, levando-se em conta suas potenciais conseqncias e riscos estratgicos e polticos. Ora, do ponto de vista da DSN, este conjunto de consideraes no faz qualquer sentido: a expresso poltica do Poder Nacional no tem qualquer relao de subordinao sobre a expresso militar; o uso do submarino determinado no pelo propsito poltico pretendido, mas sim pelas consideraes puramente militares que otimizariam o seu emprego. Isto simplesmente insano: pe-se em risco todo o conjunto de relacionamentos e compromissos polticos de um Estado, em nome de uma duvidosa eficcia militar que deveria exatamente servir como instrumento desses mesmos relacionamentos e compromissos. Notese o efeito desagregador que este entendimento acaba por produzir: ao invs de servir para articular uma anlise capaz de lidar com a multidimensionalidade dos relacionamentos entre os Estados, a DSN reifica e cristaliza esferas burocrticas de competncia sobre a base falaciosa das expresses do Poder Nacional. Se por expresso poltica entendemos diplomacia e negociao e por expresso militar submarinos, de fato o que a DSN induz que diplomatas e marinheiros atuem cada um na esfera demarcada por sua expresso. A questo : quem responsvel pelo resultado final? Quem responde pela articulao explcita e formal do processo em toda sua complexidade? Segundo a DSN, a resposta , necessariamente: Ningum. Entrega-se o resultado final s dinmicas pessoais de liderana dos diversos grupos responsveis por cada expresso, confia-se na capacidade dos envolvidos de amadurecerem, no calor da hora e diante da premncia dos fatos, a sntese capaz de articular o todo, ad hoc. Um arcabouo que deixa em aberto a concluso do processo

Do que se desenvolve neste pargrafo no se deve depreender qualquer posicionamento relativo prioridade, necessidade ou utilidade de submarinos de qualquer tipo para o atendimento das demandas de defesa do Brasil. A escolha do submarino como exemplo se deve ao fato de que este sistema de armas manifesta de forma exemplar a interao entre consideraes tticas, estratgicas e polticas, bem como a artificialidade da distino entre expresso militar e expresso poltica, que, no entanto, no se restringe a submarinos.

9

17

de tomada de deciso e que confia em fortuna e virt com tal abandono no serve para nada; parte do problema e no da soluo. Neste caso, talvez seja mesmo a maior parte do problema. Cabe, portanto, retornar ao ponto. Poltica de defesa essencial e primordialmente poltica, e a negociao e os interesses polticos devem presidir todas as decises relacionadas poltica de defesa, subordinando todas as consideraes ao tom-las como insumo para a deciso. Como se trata de uma poltica, suas decises sero, como sempre em poltica, acertos e acordos de carter provisrio, respeitando as relaes de fora e interesse polticos predominantes no momento da tomada de deciso. A longevidade dos programas que se associam a uma poltica de defesa faz tentador querer entend-la como reflexo de concepes sobre o destino do pas de flego igualmente longo. Esse equvoco recorrente compreensvel por dois motivos. O primeiro o do desejo de uma homogeneidade entre o provimento de meios e possibilidades de ao com a poltica, de carter puramente burocrtico por exemplo, se se planeja o corpo de oficiais para trinta ou quarenta anos, deseja-se ter os planos da vida nacional para o mesmo prazo. Este primeiro tipo de erro apenas mope: o plano dos trinta anos para o oficialato tem que ter como item primeiro a capacidade dos oficiais de se adaptarem s inevitveis mudanas em relao ao que foi inicialmente planejado. O segundo tipo de erro o desejo de ter nos planos de defesa um espelho verdadeiro das metas polticas do pas, materializadas em opes de fora. Este erro admite duas vertentes, difceis de serem separadas em qualquer ponto concreto. A primeira a que de boa-f aspira a ter uma poltica nacional de to longo prazo e de to intensa racionalidade tcnica informada quanto a que seria possvel aspirar a ter nos assuntos de defesa, em particular nos militares; ingnua. A segunda a que de fato presume, arrogantemente, que os compromissos e metas nos assuntos de defesa sejam um compromisso de longo prazo da poltica nacional. Aspira, assim, a que os interesses dos programas de defesa sejam permanentes na formulao da poltica nacional o erro aqui mais grave, pois se perde o que uma subordinao instrumental da defesa poltica. Trata-se de uma usurpao do poder poltico, to mais fcil pela dinmica burocrtica de grandes corporaes como as foras armadas quanto menor for o conhecimento por parte das foras polticas com relao aos assuntos de defesa. Por outro lado, esse reconhecimento do carter provisrio do acordo poltico em assuntos de defesa no deve servir de justificativa para que esse acordo no seja buscado, e chegamos aqui a um ponto importante. Por diversas razes dentre elas, o custo da organizao, da manuteno e da permanente atualizao das foras armadas, mas tambm o horizonte temporal dilatado prprio das relaes internacionais e, acima de tudo, o carter inaceitvel do risco de uma catstrofe militar , as decises relativas poltica internacional e aos assuntos de defesa tm, independentemente de nossa vontade, uma perenidade maior que as das demais reas da poltica de um Estado. Consideremos o seguinte:1. as decises de polticas de defesa so to diferentes das demais que elas influenciam

decisivamente a percepo externa do que seja a poltica do pas. So mesmo denominadas a poltica concreta do pas, sendo costumeiro que outros pases afiram a coerncia entre a poltica declaratria (o que se diz) e a poltica concreta (o que se faz) de um determinado Estado. Isso no a prtica normal com relao maioria das demais polticas;2. as polticas de defesa representam um investimento de longo prazo e grande inrcia, a tal

ponto que muitas vezes as polticas esto condicionadas pelos acervos e programas

18

existentes e que analistas afirmem que no existem polticas, mas apenas os programas de longo prazo;3. o treinamento militar que trabalha com a necessidade de clareza em meio incerteza talvez

seja naturalmente avesso formulao de polticas de defesa flexveis diante de avaliaes rigorosas. preciso admitir que haver momentos em que tal acordo simplesmente no ser possvel, sem que seja necessrio pressupor falta de patriotismo ou de viso. uma fatalidade, pode acontecer, mas no desejvel; ruim. Oscilaes bruscas nas prioridades polticas internacionais ocorrendo aps uma nica eleio presidencial, por exemplo, induzem uma insegurana, proporcional estatura poltica do Estado em questo, no ambiente internacional. Essa insegurana tem conseqncias desproporcionais: todo um programa de investimentos produtivos pode ser ameaado e at cancelado por conta de declaraes infelizes. Com isso, perdem-se empregos, divisas, investimentos: no limite, aumenta-se a pobreza, cresce a injustia, enfim, todas aquelas coisas que um governante no gostaria que ocorressem em sua gesto. As decises de defesa, como todas as de longo prazo, so vtimas naturais do desejo de se economizar recursos para dar conta de tais crises. Mas cobram seu preo. Entretanto, apenas ressaltar o carter poltico da poltica de defesa no esgota o assunto. O ponto fundamental que as distingue das demais polticas do Estado que ela est voltada para a produo da paz em termos razoavelmente aceitveis, utilizando-se, conforme se salientou anteriormente, de suas foras armadas como um instrumento de sua poltica; essa a segunda caracterstica de uma poltica de defesa. O cerne de uma poltica de defesa, portanto, a discusso sobre as foras armadas. Isto bvio como todos percebem assim que estala a crise ou a guerra. Mas nem sempre se o reconhece na paz, basicamente pelas razes seguintes: 1. organizacionais: em tempos de paz, as exigncias administrativas e polticas das Foras Armadas tendem a se sobrepor sobre as necessidades de manuteno de sua capacidade combativa e compor uma percepo equivocada sobre a centralidade do combate para os assuntos de defesa. Isso porque a prpria sobrevivncia das organizaes de defesa (e de seus oramentos) exigem um tipo de liderana mais afeita negociao poltica que ao combate, tanto para dentro quanto para fora das foras. Os temas militares do tempo de paz so os programas: tecnolgicos, de reequipamento, de treinamento de pessoal. As questes que a administrao militar tem que enfrentar dizem respeito sua participao nos negcios nacionais da paz: os programas sociais, os prstimos e auxlios a catstrofes e todo o espectro de aes cvico-sociais que so atividade subsidiria de qualquer fora armada. A onipresena do combate pode ser esquecida, e hbitos indesejveis tem que ser combatidos por um processo contnuo de manuteno, avaliao e autoaperfeioamento, cuja natureza raramente se abre a uma divulgao mais ampla. Neste ambiente, a inrcia prpria das grandes organizaes se impe; os grupos tendem a se perpetuar, e os salutares conflitos e disputas podem se congelar em relaes de fora e barganha mais ou menos reconhecidas e consolidadas. A prpria disputa interburocrtica, onde as diversas organizaes competem por espao, verbas e prestgio, tende a arrefecer numa entente cordiale; organizaes que se relacionam de maneira mais indireta com o assunto como o Itamaraty, por exemplo , barganham tacitamente uma diviso de tarefas: satisfeitas de que algum se ocupe com o problema, tendem a abandon-lo em funo de suas prprias prioridades;

19

2. polticas: por sua vez, as lideranas polticas tendem a se ocupar com problemas de mais curto prazo, urgentes, visveis e/ou com os que lhes rendem mais votos no mdio prazo. Na medida em que no se perceba ameaa militar sria e evidente um perigo real e imediato a tendncia natural dos polticos a de minimizar a necessidade de despesas militares e deixar que as discusses e programas relacionados defesa sejam conduzidos de maneira praticamente autnoma pelas organizaes responsveis. Assim, o principal mecanismo de controle das tendncias corporativas fica desativado, e o debate sobre defesa fica em segundo plano, sobressaindo na esfera poltica as reivindicaes oramentrias das foras e seus programas, vistos principalmente pela tica de um investimento politicamente gratuito da Unio nesta ou naquela regio, ou pela cautela na composio de um arranjo militar capaz de sustar quer uma manobra de fora, quer de atender demandas locais particulares, que se somam ao jogo pela promoo a postoschaves de figuras prximas aos grupos predominantes nas foras e na poltica. No caso do Brasil, recm-sado de uma ditadura militar, esse problema agravado pelo temor latente de descontentar os militares e, no limite, dessolidariz-los com a democracia. 3. histricas: De uma forma particular e algo distante, a percepo brasileira foi educada pelo processo mais amplo do aprendizado europeu do carter total da guerra no sculo XX. L, a sombra da tragdia da I Guerra Mundial e a prtica vitoriosa da II Guerra Mundial deixaram muito claro que a guerra era importante demais para ser abandonada aos militares. A digesto desta lio teve resultados importantes, que so ordinariamente percebidos pelos brasileiros de forma equivocada. A conscincia do vnculo necessrio entre as foras armadas e o potencial logstico-tecnolgico imprescindvel para o empreendimento da guerra industrial redundou num entendimento de que s foras armadas estava relegado um papel secundrio nas questes de segurana e defesa; a centralidade da discusso deslocava-se para questes econmicas e sociais mais gerais. Esta leitura simplesmente falsa: o processo da guerra industrial revelou o potencial multiplicador da mobilizao, mas no se pode perder de vista o cerne combatente necessrio sem o qual o produto zero. Note-se que no se pretende aqui fazer nenhuma admoestao, mas sim um alerta. As razes 1. e 2. so fruto do funcionamento normal de uma democracia, principalmente num Estado to abenoadamente sem ameaas militares quanto o Brasil. Quanto razo 3., trata-se sobretudo de um entendimento imperfeito, uma leitura generosa que ecoa os sonhos de uma paz perptua advinda da intensificao dos relacionamentos comerciais entre os povos. Entretanto, tais fenmenos embutem um potencial catastrfico que preciso erradicar. Com efeito, os desdobramentos lgicos e polticos das tendncias descritas acima so profundamente disfuncionais para a sustentao de um mnimo indispensvel de capacidade militar. Os erros da advindos no so remediveis em horizontes temporais curtos, e o ambiente internacional pode mudar de forma drstica num perodo muito curto. A queda do muro de Berlim no era concebvel em 1985 nem previsvel em maio de 1989; em novembro daquele ano, cinqenta anos de histria vieram literalmente abaixo. Em seis meses, o mundo mudou de maneira drstica e abrupta, reconfigurando de maneira radical todo o ambiente de segurana internacional. Nada garante que uma prxima mudana no seja para pior. Em seis meses, no se consertam os vcios de organizaes to grandes quanto as Foras Armadas; no se reequipam o Legislativo e o Executivo para atender as novas exigncias; no se prepara uma sociedade para as privaes e duras decises dos tempos de crise, ameaa e guerra. Entretanto, como j dissemos antes, o funcionamento normal de uma democracia em tempos de paz, distante de ameaas, no conduz, pelos seus mecanismos prprios, a uma poltica de

20

defesa satisfatria. preciso despender recursos e estruturar os meios pelos quais suas tendncias naturais so contrarrestadas por um exerccio ativo de prudncia e sabedoria. necessrio ter, desde logo, viso e desprendimento. Estes expedientes tm que ser institucionalizados na forma adequada. ainda igualmente necessrio dispor de competncias e contar com o entrechoque de opinies, valorizar disputas e promover acordos, mudar o que deve ser mudado, e preservar o que funciona. Mas, acima de tudo, preciso estabelecer prioridades e saber garantir continuidade na sua consecuo.

4. segurana x defesaAntes de seguir adiante, cabe agora entrar num ponto delicado: compartilhar perspectivas que permitam estabelecer uma distino entre segurana e defesa. Geralmente, costuma-se considerar segurana como um estado desejvel, uma situao que permita aos cidados e s sociedades o estabelecimento de laos estveis, quer do ponto de vista cultural em sentido lato, quer do ponto de vista comercial; ao passo que se d o nome de defesa ao conjunto das aes militares visando a garantir o estado de segurana. Nesse sentido, uma poltica de segurana teria duas dimenses: uma externa, primariamente no exclusivamente voltada para assuntos de defesa; e uma interna, voltada primariamente tambm no exclusivamente para assegurar o monoplio do uso da fora pelo Estado em seu territrio. Com isso, no pretendemos dizer que deva haver mais uma agncia ou uma burocracia voltada para estabelecer uma poltica de segurana, superior hierarquicamente poltica de defesa e poltica de salvaguarda do monoplio da fora; visase aqui, apenas, a salientar a complementaridade de ambas e seu mtuo relacionamento. Ao contrrio, a prudncia sugere que diferentes agncias tenham responsabilidade pela segurana interna e externa, quando menos pela necessidade de evitar a tentao de que um superministro da segurana usurpe a chefia do Estado ao Presidente da Repblica. Essa ressalva cresce em importncia no Brasil, uma vez que as discusses sobre segurana em nosso pas foram e, de forma heterognea e parcial, continuam contaminadas por uma confuso conceitual, cuja melhor e mais acabada expresso a Doutrina de Segurana Nacional (DSN). No se trata de questionar a honestidade de propsitos daqueles que a formularam, mas apenas de caracterizar os equvocos que ela embutiu e as conseqncias danosas que a sua difuso acarretou. O fato que, partindo da correta caracterizao da segurana como tendo um rosto de Jano uma face voltada para o exterior, outra para o interior , a DSN fundamentou um arranjo institucional que consagrava superagncias todo-poderosas. Estas agncias, em nome da segurana nacional, pretenderam deslegitimar qualquer oposio e quaisquer projetos alternativos, que recebiam automaticamente o epteto de subversivos, de inimigos da ptria, de agentes da guerra psicolgica adversa, de infiltrados de potncias estrangeiras. A sociologia enviesada da DSN estabelecia um suposto carter nacional brasileiro, caracterizado pela ndole pacfica e ordeira, cujo desvio s poderia ser fruto de aes solertes e insidiosas visando tomada do poder por grupos radicais, instrumentos, uma vez mais, de potncias estrangeiras; a concepo poltica totalitria em que a DSN se baseava no admitia a divergncia de metas e objetivos polticos, chegando ao cmulo de estabelecer doutrinariamente o que seriam os objetivos nacionais permanentes metas supostamente perenes, irrevogveis e autofundantes cujo questionamento no era admitido. A confuso conceitual entre Estado e Nao dava as tintas organicistas a essa concepo estapafrdia da

21

vida poltica de uma sociedade, onde o conflito poltico s podia ser entendido como uma alienao da busca do Bem Comum. A obteno dos objetivos nacionais permanentes era viabilizada pelo atendimento de metas intermedirias, os objetivos nacionais atuais. Esta definio sofre dos mesmos males da anterior: suprime o conflito poltico em torno de metas, contentando-se em admitir que a realidade (e seus bices) impede uma materializao direta e imediata dos objetivos nacionais permanentes. Resqucios dessa mentalidade permanecem em vrias instncias dentro e fora das Foras Armadas, e em programas de toda ordem: a terminologia envolvida na formulao do Projeto Calha Norte, por exemplo, reflete fielmente ainda que, talvez, de maneira inconsciente, e, por isso mesmo, sintoma de um enraizamento institucional de difcil erradicao as concepes e frmulas da DSN. Este , talvez, seu pior legado: a deseducao dos brasileiros para os assuntos de segurana e defesa. Com efeito, os brasileiros interessados carecem at de termos e expresses uma linguagem com que discutir assuntos de segurana e defesa que no estejam contaminados pela DSN. Pedimos desculpas a quem nos l, devido ao fato de que, em vrios momentos de nossa discusso, seremos obrigados a confrontar explicitamente alguns dos termos conspurcados pela DSN. Por exemplo, confrontamo-nos hoje com o problema da preservao da ordem pblica em nossas cidades. Num pas recm-redemocratizado, a discusso sobre o direito do Estado de atuar na segurana interna como distinta da ordem pblica embaraa desnecessariamente o debate sobre segurana. O que est em jogo nesta discusso exatamente um dos centros do processo de redemocratizao: a construo de um aparato policial que serve democraticamente sociedade, prestando um servio, em oposio a um sistema de segurana interna que servia ditadura como um instrumento de opresso. Da ser necessrio abrir mo do termo segurana pblica, perfeitamente enquadrvel na DSN como componente da segurana nacional, em sua vertente interna (a garantia que o Estado proporciona Nao, a fim de assegurar a Ordem Pblica10), entendendo os criminosos como inimigos do Estado, e estabelecer o uso do termo ordem pblica, em si mesmo mais apropriado ao tipo de relao que se deseja estabelecer entre comunidades, agncias pblicas e polcias no provimento de uma ordem inserida na vida democrtica. Ordem pblica, neste sentido, deixa transparecer um tipo de demanda que entende o provimento da ordem em resposta a demandas localizadas das comunidades, abaixo do legalmente sancionvel, de forma articulada com as agncias provedoras de servios pblicos e com as prprias comunidades. Percebe-se, assim, a estultice da idia de um inimigo interno: ou se trata de um cidado, produtor de desordem ou criminoso, mas sempre um cidado com suas garantias inalienveis, ou bem de um inimigo propriamente dito, caso em que se trata de um inimigo externo; simplesmente, em outras palavras, inimigo. Esta distino, portanto, no apenas, ou melhor, no exclusivamente pautada por uma necessidade de rigor cientfico ou expositivo. Como todo tema no campo da defesa, ela pautada por uma necessidade poltica: a de abrir espao para a discusso do papel legtimo das foras armadas (e policiais) sem se deixar enredar pela discusso relativa aos mecanismos necessrios para a construo democrtica da segurana.

10

ESG, Manual Bsico. Rio de Janeiro, ESG, 1988: 168.

22

No obstante os problemas acima, preciso discutir as questes de segurana. Nosso objetivo aqui trat-las na sua dimenso externa, isto : preocupamo-nos com os problemas de defesa do nosso pas, no contexto das relaes internacionais.

4.1 O DILEMA da seguranaUm dos paradoxos centrais na discusso de questes estratgicas o dilema da segurana. Quando um Estado procura incrementar sua segurana atravs da reorganizao de seus arranjos de defesa ou pelo fortalecimento de suas foras armadas pode, ao contrrio, acabar por diminu-la. Isto porque, na ausncia de um entendimento, de diplomacia, suscitar, principalmente em seus vizinhos, o temor de que essa reorganizao ou este fortalecimento tenham fins agressivos. Inseguros sobre os propsitos destas aes, outros Estados tendero a responder pelo incremento de suas prprias capacidades, diminuindo, desta forma, a segurana de todos. Um Estado pacfico pacfico por seus compromissos e propsitos, no por sua timidez nem por seus arsenais. Mesmo o Estado mais pacfico no pode abrir mo de arranjos de defesa adequados, nem de foras armadas capazes de respaldar suas polticas, dando substncia a suas posies. Cabe aqui erradicar a idia de que a posse de determinados armamentos seja condio necessria e suficiente para bons arranjos de defesa; que a ausncia de determinados armamentos seja condio suficiente para determinar a paz; que os armamentos sejam neutros; ou que a posse de armamentos possa se dar num vcuo poltico. O dilogo armado entre os Estados se estende na paz. A posse de determinados armamentos fala mais alto na avaliao das ameaas do que as notas diplomticas. Conectar a poltica declarada das notas com a poltica concreta das armas o desafio central de uma poltica de defesa. Armamentos e foras armadas so parte de um contnuo de meios de dilogo entre os Estados, na paz como na guerra, tendo, como disse Clausewitz, sua prpria gramtica, mas no a sua prpria lgica. A lgica das armas11 uma lgica poltica.

4.2 a falcia da corrida armamentista perigosamente fcil dar um passo terico em falso neste ponto: absolutizar-se o dilogo das polticas concretas, reduzidas forma quantitativa de acervos deste ou daquele armamento,

O rigor militar usualmente mal-compreendido. Esquece-se que o treinamento militar, quando bem feito, se dirige aquisio de hbitos capazes de sobreviver e sobrepujar o medo, o horror e a confuso do combate. Parte deste rigor est na imposio de um vocabulrio algo arbitrrio e inflexvel, cujo mote o da definio clara de termos inequvocos. Entretanto, nem sempre as definies estabelecidas segundo esta lgica so felizes; como resultado, podem se tornar obstculos comunicao. Assim, no caso brasileiro, no jargo militar entende-se por armamentos (arms ou weapons) os equipamentos capazes de produzir destruio e morte; por armas (arms ou branches), a diviso das foras em especialidades. Em funo dessa preciso vocabular de utilidade discutvel, obrigamo-nos, ao longo do texto, a pr a expresso equivalente em ingls sempre que confrontados com os termos do jargo militar brasileiro.

11

23

suprimindo-se a poltica declaratria como constitutiva do dilogo poltico. A expresso mais acabada desse erro a falcia da corrida armamentista, onde qualquer considerao do dilema da segurana redutvel ingenuidade do controle de armamentos. Como nos adverte Colin Gray, so as pessoas que fazem a guerra, no os armamentos. As tentativas e tcnicas relacionadas com o controle de armamentos por exemplo, confidence building measures (medidas de construo de confiana mtua) supem j uma boa vontade das partes que por si s j seria suficiente para o arrefecimento de tenses. Dessa maneira, a dinmica perversa instaurada pelo dilema da segurana, que se pretendia contrarrestar com o controle de armamentos, j estaria neutralizada ex ante. Neste sentido, a prpria justificativa de uma iniciativa diplomtica cujo foco exclusivo seja o controle de armamentos perde sua razo de ser. O erro que a idia de corrida armamentista erro da prpria idia, independentemente de quais sejam as metas e propsitos dos analistas e negociadores envolvidos embute a noo de que a dinmica de competio entre antagonistas seja instaurada e explicada pelos prprios armamentos, e no por uma incompatibilidade radical entre metas polticas. Nada disso impede que governos sejam tomados por esta confuso e se deixem levar pelo fetiche dos armamentos e seu significado concreto, esquecendo o seu carter intrinsecamente instrumental. Nosso uso da expresso corrida armamentista deve ser entendido como uma aluso a esse equvoco por parte de governantes: chamaremos de corrida armamentista as atitudes de governantes que sucumbem tentao da dissoluo da diplomacia no solvente do oramento militar.12 Terminada a apresentao das perspectivas que nos permitam delinear as caracterizaes de segurana e defesa, e pr de lado a falcia da corrida armamentista, passamos a apresentar os elementos que constituem e configuram uma poltica de defesa.

5. componentes de uma poltica de defesaPodemos dizer que uma poltica de defesa constituda fundamentalmente pelos seguintes componentes: as Foras Armadas; a estrutura integrada de comando e planejamento militar; a institucionalidade governamental para defesa; a poltica declaratria e a prtica concreta.

5.1 As Foras ArmadasO ponto nevrlgico e a expresso concreta final de qualquer poltica de defesa a busca sistemtica e competente da possibilidade de se resolver um eventual conflito armado em

12

de alguma importncia que se assinale que esta crtica ou advertncia sobre corrida armamentista no deve ser confundida com ignorncia sobre o processo de respostas simtricas e assimtricas na evoluo de sucessivas geraes de alternativas tcnicas e tticas, ao mesmo tempo possibilitadas e circunscritas pelas tecnologias de equipamentos, armamentos e procedimentos.

24

termos favorveis. As consideraes essenciais que devem estar no centro desta busca dizem respeito aos meios de fora propriamente ditos, isto , s foras armadas. Para que se possa participar das discusses que pautam esta busca necessrio amadurecer um juzo informado sobre a natureza combatente das foras armadas e entender as dinmicas que residem no centro desta discusso. Com efeito, o centro da guerra, seu principal problema, o combate. No se pode discutir a defesa sem um entendimento razovel sobre as realidades do combate e do combater. As cinco dinmicas que instruem a prpria capacidade combativa das foras armadas so referenciadas a seguir. A primeira dinmica diz respeito explicitao da centralidade do elemento humano na composio das foras armadas. Os armamentos no guerreiam por si mesmos, e ainda est distante o dia em que o decisor poltico poder dispor de meios de fora inteiramente automticos. So pessoas que do sentido e condio de possibilidade a que os armamentos sejam urdidos em foras combatentes, pessoas que instruem o emprego das foras combatentes de forma vantajosa, eficaz e eficiente, pessoas que detm o acervo de competncias sem os quais os armamentos no so mais que ferro-velho mais, ou menos, imponentes; so pessoas que persistem na luta apesar de tanto sofrimento, medo, morte, azares e fracassos. A combinao e o seqenciamento adequados das aes militares para um determinado fim so exigentes em termos de preparo, exerccio e dedicao. No exagero dizer que a dificuldade da capacitao dos comandantes o longo tempo necessrio para produzir um quadro capaz de integrar intelectualmente as atividades de toda uma fora e do conjunto das foras que justifica a existncia das foras armadas permanentes, mesmo na ausncia de ameaas. Nossa primeira referncia , portanto, que o intangvel que anima, articula e orienta as aes militares deve ocupar o centro de nossas preocupaes e ele reside nas pessoas. Em resumo, no existe vitria sem um comando capaz de conceb-la e uma tropa capaz de arranc-la ao inimigo: lutar, lutar bem, perseverar face aos reveses e vencer. Assim, o treinamento de soldados e praas, sargentos e suboficiais; a capacitao de um oficialato competente em toda complexidade da manuteno e operao do potencial militar; a criao e preservao de quadros e mecanismos capazes de articular as demandas dos polticos com as possibilidades das foras; tudo isto, to facilmente esquecido, to invisvel, depende do empenho e compromisso de vidas inteiras de pessoas dedicadas e motivadas, e deve ser pensado como uma parte integrante de qualquer poltica de defesa. A segunda dinmica a que diz respeito s armas combinadas (combined arms)13, que so a forma concreta pela qual as capacidades de tropas diferentemente armadas so forjadas em poder de combate. Isto no fcil, nem natural: exige tanto treinamento e exerccio quanto um enfoque metodolgico elementos de uma doutrina que permitam s diferentes tropas ajudarem-se na forma adequada e no momento preciso. O treinamento militar do manejo do armamento e dos equipamentos de suporte uma nfima parcela do tempo necessrio para o seu emprego satisfatrio, porque o emprego explicita a necessidade de mtuo suporte e coordenao entre os diferentes armamentos e equipamentos tanto quanto entre tropas diferentemente equipadas, entre o uso das tropas em combate e o propsito do combate, e at da familiaridade necessria entre distintas tropas e foras umas com as outras.13

Lembramos a nota sobre armamentos e armas, mais acima.

25

A terceira e quarta dinmicas referem-se criticalidade absoluta de sistemas pouco visveis: o que se refere logstica e o que se refere ao comando, controle, comunicaes, inteligncia e computao (C3I.C)14, para qualquer operao militar concreta. Por um lado, nem as tropas mais bem preparadas, articuladas e motivadas podem seguir lutando por muito tempo ou de maneira eficaz sem comida, munio ou equipamento. pela dimenso logstica que a conectividade societal da guerra industrial contempornea se revela de forma mais aguda. necessrio dispor de acervos considerveis de bens e servios que permanecem aparentemente ociosos durante toda a paz para a eventualidade do conflito. Neste caso, porm, revelam-se essenciais e insubstituveis. Ento s ento escolhas de excessiva modernidade ou ambio, que extrapolem as possibilidades produtivas ou aquisitivas do pas, podem cobrar um preo infinitamente mais alto do que o ganho de desempenho que as justificaria. E economias infelizes podem redundar em prejuzos catastrficos. Por outro lado, nem os mais aguerridos e brilhantes comandantes podem comandar sem informao e sem meios de transmitir e monitorar o cumprimento de suas ordens. Os arranjos de C3I.C sofrem de uma dupla discriminao. So quase invisveis e, portanto, pouco percebidos em alguns casos, dependem, para sua eficcia, de medidas de sigilo que contribuem para o desconhecimento de sua importncia ou das possibilidades de seu uso. Alm disto, tendem a ser preteridos em favor de meios mais conspcuos: os armamentos. No admissvel que os arranjos e meios de C3I.C, que so a materialidade do uso da guerra como ferramenta poltica e das foras como instrumentos, sejam relegados a um segundo plano. Ao contrrio, devem ser objeto de prioridade em qualquer proposta sria de poltica de defesa. Tudo o que foi dito acima sobre armas combinadas (combined arms) e sobre a preponderncia do elemento humano na guerra tem, portanto, que ser qualificado enfaticamente pela existncia, manuteno e aperfeioamento de dois sistemas vitais, o da logstica e o de C3I.C. O risco quando se fala de poltica de defesa e de foras armadas sempre o mesmo: cair-se na falcia de que mais armamentos mais tanques, avies ou navios seja sempre a melhor alternativa. preciso ponderar a aquisio de armamentos pelos meios de sua manuteno e operacionalidade luz dos recursos disponveis. O custo da adoo de um fuzil mais moderno, por exemplo, pode significar uma despesa que inviabiliza a continuidade do programa de sade familiar que mantm bons quadros na fora trocam-se mais armamentos pela perda das pessoas mais capazes. Pelo preo de um tanque, compram-se cinco motores de tanque e as peas de reposio, sem os quais o simples desgaste da paz imobiliza um regimento trocam-se mais tanques pela perda de desempenho em armas14

Na literatura internacional, vem-se consagrando o uso do acrnimo C4I para o complexo de atividades de comando, controle, comunicaes, computao e inteligncia; esta nos parece uma prtica infeliz, pois oculta o que levou explicitao da dimenso computao, ou seja, a velocidade relativa de processamento do ciclo observao-orientao-deciso-ao (OODA). O ciclo OODA representa a velocidade com que um dos lados reage mudana; um exemplo fcil imaginar dois lutadores de boxe, um com um ciclo OODA longo, se movendo em cmara lenta, e o outro, com um ciclo OODA curto, se movendo em velocidade normal. O que levou explicitao do termo computao foi exatamente o fato de que a velocidade de processamento multiplicou as capacidades de C3I de uma dada fora, sendo mais adequado portanto representar esta componente na forma de C3I.C.

26

combinadas (combined arms). Pelo preo de uma aeronave ou duas a mais, pode-se ter tanto os msseis para o treinamento e eventual emprego do restante da esquadrilha quanto os tanques descartveis de combustvel que multiplicam seu alcance e portanto sua capacidade trocam-se mais aeronaves pelos estoques logsticos que sustentam a esquadrilha. Pelo preo de um navio, pode-se ter o sistema de C3I.C que faz de uma coleo de navios uma esquadra combatente. Em resumo, foras armadas sem pessoas, sem armas combinadas (combined arms), sem logstica ou sem um sistema de C3I.C so meras fachadas, imposturas, blefes, que o primeiro esbarro pe abaixo. A isto h que se acrescentar um fator bvio: o tempo. Planos estratgicos e tticos podem ser concebidos num fim de semana, detalhados em mais alguns dias e arquivados em gavetas at serem implementados quando o inimigo escolher, claro, o caminho no previsto. A atrao e seleo de pessoas capazes, o apoio ao seu empenho e dedicao, o estabelecimento de unidades capazes de armas combinadas (combined arms), o aperfeioamento contnuo da doutrina e a proviso de recursos e sistemas logsticos e de C3I.C comeam no momento em que se decide que podem vir a ser necessrios. Tm que ser exercitados continuadamente desde esse momento at seu eventual emprego na guerra. A dissuaso a inibio do agressor contra nossos interesses produzida pela existncia concreta dessas capacidades. o clculo racional do risco que pode inibir eventuais agressores. Do dito acima, segue-se que foras armadas no so um retrato na parede: so uma organizao complexa e viva, cuja capacidade combatente varia de acordo com os ritmos da alternncia de pessoas, da identificao, superao e atualizao dos arranjos adequados de armas combinadas (combined arms), com os ciclos de vida dos equipamentos e dos materiais e com o fluxo de autoaperfeioamento e adaptao dos arranjos de C3I.C. A prontido das foras armadas assim a quinta dinmica, que conecta as dinmicas anteriores e explicita a sua continuidade no tempo. H sempre o risco de se tomar foras armadas como exclusivamente orientadas para o momento do combate, infinitamente prontas para a luta. A dinmica da prontido relembra que as coisas no so bem assim e liga o instante da entrada da fora em combate, na guerra, com o cotidiano das foras armadas na paz. Foras armadas no so fichinhas em um jogo com valores e capacidades fixas: so organizaes que tm que ser treinadas e aperfeioadas ao mesmo tempo em que precisam estar em condies de combater. H pelo menos quatro dimenses na questo da prontido. Cada uma delas depende das demais, mas exige entendimentos e prioridades prprios. A primeira, de mais fcil apreenso, a prontido ttica. Ela corresponde ao momento em que uma dada unidade militar destrava seus armamentos, ocupa suas posies de combate e se prepara para um combate iminente. Costuma-se perder de vista o quanto o stress, o sono, a fadiga e o fastio podem arrefecer a ateno e os reflexos dos que precisam estar em estado de mximo alerta com um aviso de poucos minutos ou nenhum aviso. Com efeito, existem limites intransponveis para o tempo em que se pode manter uma unidade em prontido ttica: minutos ou, no mximo, horas. sabido que um navio no sustenta postos de combate por mais que uma centena de minutos, perdendo capacidade a cada momento; um peloto de trinta homens pode sustentar sua preparao mxima quando responder com eficcia contra um ataque por alguns minutos, antes que a ateno dos soldados se perca; um operador de radar de quem se exige total concentrao no acompanhamento de dezenas de registros tem seu mximo desempenho durante os primeiros trinta minutos a partir de sua assuno do posto, declinando a partir deste limite e ficando intil em poucas horas. Assim, necessrio estabelecer e incorporar mecanismos e procedimentos cujo nico

27

propsito o de permitir que a prontido ttica se estabelea o mais prximo possvel do incio do combate e se sustente pelo maior tempo possvel. A segunda a prontido operacional. Ela corresponde ao estado em que uma dada unidade militar est pronta para a ao imediata, pronta para assumir um regime de prontido ttica imediatamente: seus quadros esto completos, adequadamente treinados e instrudos sobre suas possibilidades de ao; seu equipamento est disponvel e pronto nas quantidades julgadas adequadas; sua estrutura de C3I.C est capacitada a receber instrues e utilizar-se das armas combinadas (combined arms) para produzir resultados militares exitosos; seus estoques de todo tipo esto adequadamente supridos para dar conta das demandas do ato de combater. A prontido operacional no um estado, mas sim um arco de um ciclo: o ciclo que vai desde a unidade que treina e prepara suas tropas e equipamentos, adquire gradualmente prontido operacional, sustenta-a por um perodo limitado de tempo e ento a perde na medida em que pessoas so transferidas entre unidades e os equipamentos necessitam de manuteno mais extensa do que a cotidiana. O planejamento da prontido operacional militar gira em torno do bom seqenciamento das unidades ao longo deste ciclo, seja pela alternncia de unidades prontas, seja pelo superdimensionamento de estruturas para permitir que pelo menos uma parte substancial nem sempre a mesma da unidade esteja permanentemente pronta. A terceira dimenso da prontido exige uma viso um pouco mais abstrata: a prontido estrutural corresponde aos esqueletos de unidades que so mantidos de tal forma que o simples influxo de tropas e equipamentos possa produzir rapidamente unidades operacionalmente prontas. Estas estruturas contm aquele elemento que o mais dispendioso em tempo e recursos: os quadros de oficiais, sargentos e praas especializados, as estruturas organizacionais que instruem as armas combinadas (combined arms), os vnculos de C3I.C e os ncleos de equipamentos e materiais minimamente necessrios para a logstica da transio entre esqueleto e fora. H infinita discusso sobre a correta dosagem de quadros necessrios para que uma unidade, e por extenso a fora, tenham de fato prontido estrutural; da mesma forma, uma deciso difcil e tpica de uma poltica de defesa consistente qual seja a durao aceitvel do perodo de incorporao de tropas e equipamentos, bem como as quantidades de pessoas (reservistas?) e equipamentos (estoques?) necessrios para efetuar uma transio eficiente e eficaz entre a unidade estruturalmente e a operacionalmente pronta. A quarta dimenso da prontido ainda mais abstrata, e, para muitos, uma idia obsoleta. Trata-se da prontido mobilizacional, isto , os arranjos de toda ordem que permitam que os recursos nacionais do tempo de paz possam ser eficaz e eficientemente convertidos nas tropas e equipamentos necessrios ao completamento e expanso das unidades. A prontido mobilizacional corresponderia, assim, ao conceito clssico dos arranjos, meios e modos da mobilizao; mas vai mais alm ao determinar o sustento de estruturas, na paz, capazes de efetu-la quando necessrio. A dvida sobre sua atualidade deriva de duas percepes distintas: a primeira, de que conflitos armados no ps-Guerra Fria sero resolvidos em prazos muito inferiores ao de qualquer mobilizao concebvel; a segunda, de que a densidade de treinamento nas tropas e de tecnologia nos equipamentos e requisitos logsticos inviabiliza uma converso de pessoal ou indstrias desde as suas atividades de tempo de paz em qualquer prazo. Consideramos que a primeira perspectiva, da curta durao de eventuais conflitos, essencialmente mas no exclusivamente poltica, suscetvel, tanto quanto esta, s

28

mudanas bruscas que a caracterizam. H, de fato, uma base logstica que afirma que os conflitos sero curtos porque os estoques de munies modernas so limitados, e seu esgotamento impediria a continuidade da luta. Mas se houver vontade poltica dependendo do que estiver em jogo , a luta continua, ainda que com armas menos sofisticadas do que o ideal ou, ao menos, correspondentes capacidade tcnico-tecnolgica das sociedades em guerra. Esta considerao logstica serve de ponte para a segunda perspectiva, e pareceria mais slida e decisiva que a anterior. Consideramos que essa segunda perspectiva, da alta densidade tecnolgica dos meios de fora, essencialmente mas no exclusivamente logstica, mas est sujeita mesma ressalva poltica que a anterior. De fato, a especificidade do preparo militar mais bsico sugere prazos longos que questionam uma mobilizao fcil de tropas no-profissionais; da m