2. poltica econmica do gov provisrio

20
1 POLÍTICA CAMBIAL E INDUSTRIALIZAÇÃO NO GOVERNO PROVISÓRIO DE 1930: UMA REVISITA AOS PILARES INSTITUCIONAIS DO INÍCIO DO PSI 1 Área 2 História econômica JEL: N1 e N26 Cesar Rodrigues van der Laan 2 , André Moreira Cunha 3 , Pedro Cezar Dutra Fonseca 4 Resumo: Os anos 1930 constituem ponto crítico no desenvolvimento econômico do Brasil, assinalando a aceleração da industrialização. Este artigo aborda o período enfocando as mudanças institucionais introduzidas para reestruturar o mercado cambial e as transações externas, ao privilegiar, em adição à historiografia econômica, os pilares institucionais introduzidos pelo governo provisório varguista nessa área como resposta à crise externa. Palavras-chave: Economia brasileira. Balanço de pagamentos. Cobertura cambial. Processo de substituição de importações. Abstract: The 1930s constitute one milestone in the Brazilian economic development, as one accelerated industrialization process has started and became the dominant domestic policy. This paper reviews this period focusing the institutional changes restructuring exchange transactions, to curb financial flows and balance the external payments of the country. 1. Introdução A crise financeira global em curso tem renovado o interesse pelo estudo da crise de 1929, suas causas e conseqüências (Reinhart e Rogoff, 2008, Eichengreen, 2008). No início da década de 1930, verificou-se a ocorrência de fortes turbulências nas relações econômicas internacionais que desencadearam mudanças nas estruturas produtivas não apenas no Brasil como, em geral, nos demais países latino-americanos agrário-exportadores (Bastos 2008). No país, atrelados aos efeitos da Grande Depressão de 1929 sobre o mercado cambial e os fluxos externos, os anos seguintes testemunharam a passagem de um modelo de desenvolvimento “para fora” para um modelo de desenvolvimento “para dentro”, sob o qual a dinâmica econômica passa a ser industrializante e endógena, conforme a literatura tradicional (Furtado, 2007, Tavares, 1972). As medidas de governo, reativas às dificuldades externas, constituíram, nesse contexto, elemento essencial para a criação das condições institucionais necessárias ao desenvolvimento efetivo do chamado Processo de Substituição de Importações (PSI). Este artigo propõe-se a contribuir para a literatura do período ao enfocar as mudanças institucionais introduzidas para reconfigurar o funcionamento do mercado de câmbio e gerenciar os fluxos monetários externos. Ao revisitar o período dos anos 1930, visamos por em destaque, na historiografia econômica, o arcabouço legal do mercado de câmbio gestado como resposta ao quadro depressivo das contas externas imediatamente no pós-1929. Partimos da percepção de que a conexão entre essa inovação institucional e o processo de desenvolvimento que se inaugura nos anos 1930 pode ser mais bem esclarecida com a incorporação à análise dessas variáveis. Destaca-se que o então novo Governo Provisório varguista conseguiu imprimir uma nova institucionalidade legal, responsável por contribuir para a superação do estrangulamento externo (ou a recorrente escassez de divisas), em especial pela introdução da cobertura cambial das exportações 5 . São medidas que se inserem num quadro de mudanças institucionais de gerenciamento das contas externas que proporcionaram, em última análise, a mudança estrutural da economia e o desenvolvimento industrial doméstico seguinte. Apesar de, por exemplo, ser dado como verdadeiro que grande parte das receitas em moeda estrangeira geradas pelas exportações foi 1 As opiniões aqui expressas não coincidem, necessariamente, com a visão das instituições de origem dos autores. 2 Banco Central do Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Professor do PPGE-UFRGS e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]. 4 Professor Titular do Departamento de Ciências Econômicas e do PPGE-UFRGS; Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected] 5 Isto é, as receitas em moeda estrangeira das exportações passam a ser obrigatoriamente internalizadas.

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  • 1

    POLTICA CAMBIAL E INDUSTRIALIZAO NO GOVERNO PROVISRIO DE 1930:

    UMA REVISITA AOS PILARES INSTITUCIONAIS DO INCIO DO PSI1 rea 2 Histria econmica JEL: N1 e N26

    Cesar Rodrigues van der Laan2, Andr Moreira Cunha

    3, Pedro Cezar Dutra Fonseca

    4

    Resumo: Os anos 1930 constituem ponto crtico no desenvolvimento econmico do Brasil,

    assinalando a acelerao da industrializao. Este artigo aborda o perodo enfocando as mudanas

    institucionais introduzidas para reestruturar o mercado cambial e as transaes externas, ao

    privilegiar, em adio historiografia econmica, os pilares institucionais introduzidos pelo

    governo provisrio varguista nessa rea como resposta crise externa.

    Palavras-chave: Economia brasileira. Balano de pagamentos. Cobertura cambial. Processo de

    substituio de importaes.

    Abstract: The 1930s constitute one milestone in the Brazilian economic development, as one

    accelerated industrialization process has started and became the dominant domestic policy. This

    paper reviews this period focusing the institutional changes restructuring exchange transactions, to

    curb financial flows and balance the external payments of the country.

    1. Introduo

    A crise financeira global em curso tem renovado o interesse pelo estudo da crise de 1929,

    suas causas e conseqncias (Reinhart e Rogoff, 2008, Eichengreen, 2008). No incio da dcada de 1930, verificou-se a ocorrncia de fortes turbulncias nas relaes econmicas internacionais que

    desencadearam mudanas nas estruturas produtivas no apenas no Brasil como, em geral, nos

    demais pases latino-americanos agrrio-exportadores (Bastos 2008). No pas, atrelados aos efeitos

    da Grande Depresso de 1929 sobre o mercado cambial e os fluxos externos, os anos seguintes

    testemunharam a passagem de um modelo de desenvolvimento para fora para um modelo de desenvolvimento para dentro, sob o qual a dinmica econmica passa a ser industrializante e endgena, conforme a literatura tradicional (Furtado, 2007, Tavares, 1972). As medidas de governo,

    reativas s dificuldades externas, constituram, nesse contexto, elemento essencial para a criao

    das condies institucionais necessrias ao desenvolvimento efetivo do chamado Processo de

    Substituio de Importaes (PSI).

    Este artigo prope-se a contribuir para a literatura do perodo ao enfocar as mudanas

    institucionais introduzidas para reconfigurar o funcionamento do mercado de cmbio e gerenciar os

    fluxos monetrios externos. Ao revisitar o perodo dos anos 1930, visamos por em destaque, na

    historiografia econmica, o arcabouo legal do mercado de cmbio gestado como resposta ao

    quadro depressivo das contas externas imediatamente no ps-1929. Partimos da percepo de que a

    conexo entre essa inovao institucional e o processo de desenvolvimento que se inaugura nos

    anos 1930 pode ser mais bem esclarecida com a incorporao anlise dessas variveis.

    Destaca-se que o ento novo Governo Provisrio varguista conseguiu imprimir uma nova

    institucionalidade legal, responsvel por contribuir para a superao do estrangulamento externo (ou

    a recorrente escassez de divisas), em especial pela introduo da cobertura cambial das

    exportaes5. So medidas que se inserem num quadro de mudanas institucionais de

    gerenciamento das contas externas que proporcionaram, em ltima anlise, a mudana estrutural da

    economia e o desenvolvimento industrial domstico seguinte. Apesar de, por exemplo, ser dado

    como verdadeiro que grande parte das receitas em moeda estrangeira geradas pelas exportaes foi

    1 As opinies aqui expressas no coincidem, necessariamente, com a viso das instituies de origem dos autores. 2 Banco Central do Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Professor do PPGE-UFRGS e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]. 4 Professor Titular do Departamento de Cincias Econmicas e do PPGE-UFRGS; Pesquisador do CNPq. E-mail:

    [email protected] 5 Isto , as receitas em moeda estrangeira das exportaes passam a ser obrigatoriamente internalizadas.

  • 2

    canalizada, pelo governo, para a importao de maquinaria e equipamentos necessrios para o

    desenvolvimento industrial domstico, os instrumentos institucionais norteadores das mudanas no

    foram suficientemente detalhados, restando ainda espao para clarear suas origens e efeitos sobre a

    nova dinmica da economia brasileira.

    Parte-se do instrumental de anlise proposto pela economia institucional. Esta tem seus

    fundamentos nos trabalhos precursores de Veblen, Commons e Mitchell, no incio do sculo XX,

    partindo do pressuposto de que no se pode explicar o comportamento das pessoas nem o resultado

    econmico sem falar em instituies. A abordagem institucional entende, ento, que no se pode

    analisar uma economia apenas com foco no agente e com base no pressuposto da racionalidade

    substantiva, como o faz a teoria neoclssica. Esse entendimento induz a uma metodologia

    responsvel por incorporar anlise econmica os arranjos institucionais, ou sistemas de

    parmetros, os quais interagem e se moldam construindo as economias nacionais, com destaque

    ao do governo e, mais especificamente, a poltica econmica, a influenciar as transaes

    econmicas e, em ltima anlise, o resultado econmico. Por outro lado, contribuies mais

    recentes de Hodgson6 (2004a, 2004b, 2006, 2007), com o propsito de recuperar a influncia de

    Darwin em Veblen, contriburam para ressaltar a importncia da intencionalidade dos agentes

    econmicos na tomada de decises e nas opes - e, em decorrncia, nas trajetrias das sociedades.

    Torna-se relevante a concepo de sufficient reason, a qual associa intenes e resultados,

    propsitos e aes realizadas: As intenes humanas so parte da realidade social e as interaes sociais envolvem expectativas de pessoas ou indivduos em relao s intenes de outros

    indivduos (Conceio, 2010). Muitas aes algumas vezes tidas como espontneas na verdade tm sentido desvendado quando recuperado o contexto em que ocorreram, procedimento

    metodolgico que permite perceber sua correlao com outras aes (ou variveis), lembrando o

    que Veblen denominava causao cumulativa ou circular (Hodgson, 2004b, p. 346). De fato, a evoluo da economia mundial nas dcadas seguintes Grande Depresso foi

    determinada, em grande medida, pelas instituies nascidas da reao poltica e econmica quela

    crise. Novas instituies foram criadas, como o FMI e o Banco Mundial, um regime internacional

    de cmbio fixo centrado no dlar foi estabelecido, controles de capitais tornaram-se parte dos

    instrumentos de gesto financeira dos governos nacionais, polticas econmicas de recorte

    keynesiano e modelos de proteo social amplificados se disseminaram nos pases centrais (Block,

    1977; Eichengreen, 1996).

    O enfoque institucional indica, assim, que as instituies importam porque condicionam as

    diferentes trajetrias econmicas nos diversos ambientes nacionais. Portanto, possuem o carter de

    definir e moldar as transaes comerciais, constituindo-se num determinante relevante da

    performance econmica. Elas moldam os mercados, enraizando-os nas instituies polticas e

    sociais criadas pelo Estado ou pela sociedade, no podendo existir ou operar fora das regras e das

    instituies, estruturando compras e vendas e a prpria organizao da produo. Imprimem,

    portanto, uma regularidade ao sistema econmico, por meio do estabelecimento de um padro

    estvel, com reflexos por todo sistema de relaes econmicas. sob essa tica que abordamos a

    leitura das diretrizes cambiais emanadas no perodo, evidncias fundamentais para sua reconstruo

    histrica.

    O ensaio est organizado como segue. Alm desta introduo, a seo 2 apresenta um

    panorama da conjuntura externa e das principais medidas de poltica econmica descritas na

    literatura tradicional, com a finalidade de contextualizar a situao que levou edio das medidas

    institucionais especficas ao mercado de cmbio. A seo 3 descreve os normativos cambiais

    6 Intentions are real and intentions are causes but intentions do not require an entirely different notion of causality. The causes of intentions and their causal effects have to be explained, in terms that include the important role of mental prefiguration and

    judgement. But these mental aspects also involve movements of matter and transfers of energy or momentum, within the brain. They

    are special causal mechanisms but not an entirely different (teleological) category of cause (Hodgson, 2004a, p. 178)

  • 3

    propriamente ditos. J a seo 4, em um dilogo com a literatura, condensa evidncias sobre o

    incio da industrializao, correlacionando-as, sob a perspectiva analtica da economia institucional,

    com as mudanas na poltica cambial brasileira. A seo 5 refere-se aos comentrios finais, guisa

    de concluso.

    2. Os fluxos externos e a poltica cambial crvel no ps-crise de 1929

    Os efeitos da crise de 1929 podem ser vistos como consequncia da deflao de ativos no

    mercado financeiro americano, a qual afetou, de forma generalizada, a estrutura patrimonial de

    empresas, famlias e bancos, provocando forte retrao na atividade produtiva nos anos seguintes.

    Assim, a Grande Depresso alterou, de forma generalizada, os fluxos comerciais e financeiros

    mundiais. A crise financeira nas principais economias centrais arrefeceu a demanda por produtos de

    economias em desenvolvimento, ao mesmo tempo em que inviabilizou a manuteno dos fluxos

    financeiros de emprstimos nos nveis ento praticados, levando a defaults generalizados nos anos

    1930, dada a falta de liquidez externa. Na ausncia de um emprestador de ltima instncia operando

    em nvel global e diante do fechamento do mercado de capitais internacionais, o perodo registrou

    uma srie de moratrias de dvidas soberanas e acmulo de atrasados de pagamentos de

    compromissos internacionais (Eichengreen & Portes, 1985; Reinhart e Rogoff, 2008).

    Os problemas experimentados pelos pases devedores externos devem ser relacionados a tais

    distrbios da economia mundial, incluindo choques de taxas reais de juros (encarecendo novos

    endividamentos externos), flutuaes nos preos de commodities (como a queda de preo do caf) e

    as recesses nas regies centrais industrializadas7. Na ausncia de recuperao internacional, os

    preos dos produtos primrios continuaram caindo e, mesmo com os emprstimos conseguidos s

    pressas pelos governos dos pases exportadores durante os primeiros meses de 1930 para defender

    suas reservas, a magnitude de seus dficits em conta corrente acabariam por acentuar as perdas de

    ouro e evidenciar a inviabilidade poltica da enorme contrao monetria a elas associada. Um a um

    os pases da periferia foram obrigados a abandonar o padro-ouro e experimentar substanciais

    desvalorizaes cambiais, com efeitos depressivos adicionais sobre os preos internacionais de seus

    principais produtos de exportao.

    Inevitavelmente, esses efeitos atingiram a vulnervel estrutura produtiva brasileira da poca,

    largamente dependente das relaes externas e da monocultura cafeeira. A crise comea no Brasil j

    em meados de 1928 como resultado da reduo drstica de entrada de capitais, atrados pela maior

    expectativa de ganhos associado ao boom do mercado de aes de Wall Street (Abreu & Fritsch,

    1982), associada reduo da demanda externa e queda de preos dos produtos primrios. Isso

    afetou diretamente o balano de pagamentos, considerando ainda que a brutal queda dos preos de

    exportao no foi compensada pelo aumento do quantum exportado, haja vista a reduo da

    demanda externa. Segundo Baer (1988, p.16), a depresso dos anos 1930 teve severo efeito

    negativo sobre as exportaes brasileiras, cujo valor caiu de USD 445,9 milhes, em 1929, para

    USD 180,6 milhes em 1932. Essa reduo significativa dos fluxos de exportao, associada ao

    recuo do preo do caf, promoveu a queda da capacidade de importar, gerando repercusses

    negativas sobre o fluxo de capitais e a taxa de cmbio para a economia, no incio dos anos 1930.

    Segundo Abreu (1989), os termos de intercmbio sofreram uma deteriorao de cerca de

    30% e a capacidade de importar, de 40%, fazendo com que as reservas fossem exauridas j em

    1931. Com a perda de divisas, a j reduzida capacidade brasileira de importao declinou ainda

    mais (Skidmore, 1982). Em 1931, as importaes perfaziam um tero de seu valor de 1928, e as

    exportaes caram quase a metade (Fonseca, 2003a). Diante desse quadro, o Brasil foi o primeiro

    pas latino-americano a lanar mo do controle de cmbio e de outros controles diretos sobre as

    transaes externas (Baer, 1988). Esses controles, combinados com a depreciao da moeda

    brasileira que encarecia o preo interno dos bens importados, provocaram a queda das importaes

    7 A literatura terica e emprica tem reportado esta ligao, conforme explicitado na ampla pesquisa de Reinhart e Rogoff (2008).

  • 4

    do nvel de USD 378 milhes, em 1929, para USD 92 milhes, em 1932 (IBGE, 1986). Como

    resultado, houve uma expanso do saldo do balano comercial (grfico 1).

    A despeito de redues drsticas nas importaes (grfico 1), o balano de pagamentos

    voltou a apresentar dficit em 1933 e 34, forando, finalmente, o governo varguista a faltar com o

    pagamento dos seus dbitos exteriores em 1938 e 39 (Skidmore, 1982). Ao mesmo tempo, durante

    o perodo 1930-1936 houve uma reduo nos investimentos diretos estrangeiros (afetando a conta

    capital e financeira), associada s dificuldades que caracterizaram a economia internacional no

    perodo e a crise cambial brasileira. Os grficos espelham as mudanas relevantes no

    comportamento dos fluxos externos verificados no perodo:

    Grfico 1. Fluxos comerciais, saldo financeiro e do Balano de pagamentos (1929-39)

    $-

    $10

    $20

    $30

    $40

    $50

    $60

    $70

    $80

    $90

    $100

    1929 1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939

    Libr

    a Est

    erlin

    a (m

    ilhe

    s)

    Exports (FOB) Imports (CIF)

    -150

    -100

    -50

    0

    50

    100

    1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939USD

    milh

    es

    Conta capital e financeira Resultado global BP Fonte: sries histricas, Ipeadata.gov.br.

    No existem dados oficiais para as reservas soberanas do Brasil, mas Pelaez (1968) aponta

    que o pas possua reservas de trinta milhes de libras em divisas estrangeiras ao incio da crise, as

    quais foram varridas em seguida atravs de um movimento de hot money, ao lado da paralisia

    completa da entrada de capital estrangeiro. A gravidade das contas externas levou ao abandono do

    padro-ouro em meados de 1930, alm da desvalorizao entre 1930 e 1931 do mil-ris em torno de

    55%, dado que as reservas internacionais acumuladas durante o perodo anterior de grande

    endividamento externo foram dissipadas na defesa da paridade do mil-ris at fins de 1930, com o

    mercado internacional de capitais de longo prazo fechado para novos emprstimos a pases

    primrio-exportadores (Abreu, 1987).

    O prprio processo de desintegrao do padro ouro dentre os pases perifricos,

    acompanhado de crises polticas intensas em grande nmero dos pases, acabou tambm

    prejudicando a confiana dos investidores nos pases centrais. J na segunda metade de 1930, o

    volume de emprstimos a eles dirigidos retornou a nveis baixssimos dos quais no voltariam a

    recuperar-se (Abreu & Fritsch, 1982). Em setembro de 1931 a situao tornou-se insustentvel, e os

    pagamentos da dvida pblica externa foram suspensos. Em 1930-31, caracteriza-se a adoo de

    uma poltica cambial restritiva, decretando-se moratrias sucessivas em relao s dvidas em

    moeda estrangeira. O oramento de divisas para 1932 demonstra a perspectiva, em 1931, de

    continuidade de uma situao obviamente explosiva (Pelaez, 1968, p.33), estimado conforme segue:

    Tabela 1. Oramento de divisas para 1932 Necessidades cambiais Receitas

    Balana comercial 18.000.000

    Outras possveis entradas 1.000.000

    Pagamento da dvida 22.583.000

    Pagamento de crditos a CP concedidos ao

    Banco do Brasil por bancos estrangeiros

    6.550.000

    Remessa de lucros 12.000.000

    Remessa por parte de emigrantes 6.340.000

    SALDO 47.472.000 19.000.000

    Fonte: Pelaez (1968, p.33)

  • 5

    Esse quadro imps o reajustamento dos pagamentos efetivos capacidade de pagar, sendo

    negociado um novo acordo para a consolidao da dvida externa, um terceiro funding loan parcial

    em 1931, por trs anos. Esse novo emprstimo, que resultou de uma deciso unilateral das

    autoridades brasileiras, garantia os pagamentos integrais dos servios dos funding loans de 1898 e

    1914 e o pagamento dos juros dos outros emprstimos federais por trs anos. Na prtica, o novo

    funding loan foi um adiamento do problema estrutural externo atravs do aumento do total da

    dvida, com o Brasil acumulando atrasados em 1932-34.

    Em 1931, com a interrupo da entrada de capitais e com os compromissos da dvida

    externa montando a mais de vinte milhes de libras, sem contar as remessas de capitais particulares,

    as dificuldades cambiais se acentuaram8. Isso levou introduo, ainda naquele ano, da

    centralizao das operaes cambiais no Banco do Brasil, atravs do Decreto 20.451, que

    estabelecia a obrigatoriedade da venda de cambiais de exportao ao Banco do Brasil, juntamente

    com a introduo do critrio de prioridade na distribuio de cmbio (Abreu e Suzigan, 1973),

    dando preferncia a compras oficiais, pagamento do servio de dvida pblica e importaes

    oficiais.

    O perodo mais crtico ocorre pelo menos at 1934, quando foi afrouxado, o que pode, a

    nosso ver, estar atrelado s novas medidas condutoras das operaes externas (vide seo seguinte).

    Tais medidas, adotadas como decorrncia do desequilbrio do balano de pagamentos, implicaram

    reorientao da demanda em benefcio da produo domstica (Suzigan, 1994). Os dois primeiros

    anos da dcada de 1930 foram os mais difceis, mas em 1933, mesmo com o estrangulamento

    externo, a economia comeou a se recuperar, sob a liderana do setor industrial, que passou a

    crescer 11,2% anuais entre 1933-9 (Fonseca, 2003a)9.

    A influncia da taxa de cmbio no desempenho do setor industrial anterior dcada de

    1930, seja no crescimento da produo ou nos novos investimentos, capazes de impulsionar a

    capacidade produtiva (Versiani, 1977, p. 123). Todavia, nesta dcada deterioraram-se as relaes de

    trocas externas, o que contribuiu para imprimir nova reorientao estrutura produtiva da economia

    domstica. A renda da agricultura de exportao (e a capacidade de importar) reduzida, cujo setor

    cafeeiro se defrontava com uma inevitvel crise de superproduo. Da a verificao de constantes

    mecanismos de ajuste via desvalorizao cambial, quase contnua ao longo da dcada dos 30 (Silber, 1978, p.200), ao lado de controles de gerenciamento no mercado de divisas. Como

    subproduto dessas desvalorizaes e controles, reorientando a economia, o pas entrou em uma fase

    de industrializao que, alm de outras causas, teve nas desvalorizaes da taxa de cmbio e nas

    restries quantitativas um efetivo sistema de proteo.

    Essa situao especial no caso da indstria , em grande parte, explicada pelas condies

    dos fluxos cambiais durante a depresso. A rpida deteriorao das relaes de trocas levou logo a

    dificuldades com o balano de pagamentos, que dependia basicamente do saldo da balana

    comercial, uma vez que, a partir de 1931, cessaram as entradas de capitais (grfico 1). Apesar de a

    balana comercial ter apresentado saldos em 1931 e 1932, a demanda de divisas para atender ao

    servio da dvida externa causou dificuldades no mercado cambial, o que levou o Governo a

    estabelecer controles sobre os fluxos. Durante trs anos, a maioria das transaes foi realizada

    atravs do mercado oficial, com prioridade para as compras do Governo, o servio da dvida externa

    e as importaes prioritrias, com base nas medidas explicitadas na seo seguinte.

    Em 1934, os fluxos de pagamento do servio da dvida externa no tinham sido

    normalizados, e o Plano Aranha estabelecido para o acordo da dvida externa em 1934, reduzindo

    temporariamente o servio da dvida para 30%. Isso mostra a incapacidade do Estado brasileiro,

    dentre vrias economias com moedas inconversveis poca, de gerar divisas para manter o fluxo

    8 Pelaez (1968) aponta que a projeo da balana comercial de 1931 era de um supervit de apenas vinte milhes de libras, enquanto

    que somente o pagamento da dvida externa o pas teria que desembolsar 22.583.000 de libras. 9 Vide Furtado (2007) para a descrio clssica dessa mudana estrutural.

  • 6

    de compromissos externos (Abreu, 1987). As prprias evidncias apontadas por Silber (1978) e

    Pelaez (1968), ao exporem a existncia de um mercado no oficial de cmbio, caracterstico em

    economias com racionamento de divisas, retratam esse quadro de dificuldade nas transaes

    externas do pas. De fato, no incio de 1935, uma breve liberalidade na concesso de licenas para

    remeter lucros gerou uma nova crise cambial, levando a modificaes no mercado cambial.

    O novo regime cambial dual obrigava os bancos a repassar 35% das cambiais de exportao

    taxa oficial para o Banco do Brasil mais favorvel ao governo do que a taxa livre, para no sobrecarregar o oramento pblico para o uso no pagamento de compromissos oficiais em moeda estrangeira. Os restantes 65% eram negociados no mercado livre de divisas, que deveria suprir integralmente as divisas para importao de mercadorias. Ocorre que, at 1937, a garantia de uma

    oferta adequada de divisas que possibilitasse a liquidao de compromissos financeiros era um

    objetivo explcito da poltica econmica.

    As medidas, entretanto, no foram suficientes para garantir o nvel de importaes requerido

    pela taxa mnima de crescimento do produto que se presumia politicamente suportvel. Como

    medidas adicionais para reduzir a demanda por divisas foram acumulados importantes atrasados

    comerciais e financeiros bem como radicalmente reduzido o servio da dvida pblica externa

    (basicamente pblica) a mais importante forma de acomodao da economia brasileira em relao crise de balano de pagamentos. Em 1937, explicitou-se a contradio entre programas de

    investimentos pblicos, a prioridade na garantia das importaes essenciais ao reaparelhamento da economia e a manuteno dos pagamentos do servio da dvida, mesmo em escala reduzida.

    Em 1937, a deteriorao do balano de pagamentos e do clima poltico levou ao default da

    dvida pblica externa, somente equacionado com a segunda guerra, que criou condies

    necessrias para provocar um ajuste do estoque efetiva capacidade, econmica e poltica, de

    gerao de um excedente de divisas pelo pas (Abreu, 1987). Nesse contexto, Abreu (1992) ressalta

    que o controle cambial e de importaes depois de 1937 tornou-se o principal instrumento de

    poltica comercial externa. Em fins de 1937, aps o golpe de novembro, a escassez de divisas

    forou nova centralizao cambial, baseada em uma taxa nica desvalorizada, introduzindo-se um

    novo sistema de controle cambial similar ao vigente entre 1931 e 1934. A adoo dessa poltica foi

    justificada como conseqncia da reorientao da poltica cafeeira do Brasil, aps a deciso de se

    abandonar parcialmente a sustentao de preos seguida desde o princpio do sculo.

    A situao de estrangulamento externo s foi superada, temporariamente, com o quadro

    proporcionado pela Segunda Guerra. No Estado Novo, em 1937, o estrangulamento cambial

    obrigou o governo a suspender o pagamento da dvida externa e a estabelecer controles de cmbio,

    alm de manter uma taxa de cmbio desvalorizada. A guerra contribuiu para reverter esse quadro,

    ao dificultar as importaes e, diante do crescimento das exportaes aos pases aliados, propiciar

    saldo positivo nas transaes correntes. Isso permitiu a prtica temporria de polticas mais liberais,

    como a possibilidade de os exportadores poderem vender at 70% das divisas no mercado livre, e

    apenas 30% ao Banco do Brasil, (menos favorvel) taxa oficial de cmbio.

    Nesse perodo, ainda que a intencionalidade do governo para dar impulso ao PSI seja

    discutida na literatura (vide Fonseca, 2003b), conduziu-se de fato a ampliao da capacidade

    industrial instalada no pas, apoiada nas mudanas da situao externa e da poltica de governo. A

    modernizao autoritria de Abreu (1992) parte das medidas adotadas para enfrentar a situao de escassez de divisas, com reflexos sobre a estrutura produtiva domstica da economia brasileira. o

    perodo da metade inicial da dcada de 1930 que Suzigan (1984) considera como um momento

    decisivo para o desenvolvimento industrial brasileiro, alinhando-se a Furtado (2007). O ps-30

    caracteriza-se por um forte ativismo no mercado cambial.

    Mesmo que, como assinalou Furtado (2007), no tenham sido voltadas deliberadamente para

    a promoo do desenvolvimento industrial, as medidas de poltica econmica adotadas no ps-crise

    influenciaram a atividade industrial interna, especialmente as relativas ao comrcio exterior e

    polticas tarifrias. De fato, o governo desvalorizou a taxa cambial em 54% em 1931 e em 108% at

  • 7

    1935, em relao ao nvel de 1928-9. Com as importaes mais caras, a demanda interna transferiu-

    se em parte dos mercados externos para os produtos domsticos, dando atratividade maior de

    investimento do que no setor exportador. Ou seja, a poltica cambial teve a capacidade de canalizar

    a acumulao de capital para a oferta interna, ao alterar preos relativos e manter a demanda interna

    atendida por produo local. A promoo da cafeicultura vai perdendo fora ao longo da dcada,

    cedendo lugar para uma poltica de promoo do desenvolvimento industrial.

    O argumento dos choques adversos, associado a circunstncias desfavorveis no setor externo da economia, enseja a adoo de medidas para enfrentar a crise que acabam estimulando o

    crescimento da produo industrial. Suzigan (1984) j havia qualificado a importncia do

    gerenciamento do mercado cambial como fator relevante para o desenvolvimento da produo

    industrial domstica, ainda que no tenha se aprofundado nos instrumentos utilizados. Para

    aumentar a capacidade de produo domstica, particularmente na indstria de bens de consumo

    leves, seria necessrio importar bens de capital. Entretanto, em perodo de escassez de divisas, de

    limitada capacidade de importao, como seria possvel dar curso industrializao, esgotada a

    utilizao da capacidade instalada domstica? O crescimento industrial no derivou apenas da

    mudana de preos relativos como resultado das desvalorizaes na taxa de cmbio, mas tambm

    da interveno direta do governo no comrcio exterior, com controle sobre o mercado cambial e

    restries sobre importaes. Vale ressaltar que nessa conjuntura registram-se mudanas legais de

    vulto (como leis trabalhistas, duas constituies, reforma educacional, cdigos de Minas e de

    guas) e a criao de inmeras instituies, principalmente no aparelho do Estado (Draibe,1986),

    fatos que permitem levantar a hiptese de que o incentivo indstria no foi de todo espontneo, posto que as medidas na rea cambial se inserem em um contexto de inmeras aes que podem ser

    conectadas, pois voltadas a fins semelhantes, indo ao encontro do que Veblen denominaria causao

    cumulativa ou circular. Na seo seguinte, descrevemos os novos pilares institucionais do mercado cambial.

    3. A crise de 1929 e a construo da legislao cambial brasileira

    A origem da regulamentao cambial brasileira remonta a uma situao conjuntural crtica.

    Em vista da generalizada crise de liquidez, ou do que se chamou de dollar shortage, que vigorou at

    o fim da dcada de 1960, a maior parte dos pases emergentes adotou regimes cambiais complexos,

    altamente controlados10

    , com taxas mltiplas de cmbio e inmeras variedades de restries

    quantitativas e administrativas, alm das tarifrias, que vigorariam ainda por vrias dcadas (Franco

    & Demosthenes, 2004). O Brasil no foi exceo.

    Ainda que no se possa dizer que as transaes externas no fossem anteriormente objeto de

    regulao e controle por parte das autoridades pblicas, ocorreu aqui a inaugurao de um amplo

    perodo em que o controle cambial passou a dominar a esfera das transaes externas, apenas

    flexibilizado, em uma perspectiva de longo prazo, a partir dos anos 1990, quando uma conjuntura

    externa favorvel, de excesso de moeda conversvel, possibilita a reorganizao da estrutura de

    controles sobre os fluxos e transaes externas.

    Seguidas crises cambiais levaram o Brasil a montar um arcabouo jurdico bastante

    controlador e burocrtico. O carter endgeno dos chamados controles de capitais, tese posta por

    Cardoso e Goldfajn (1997) demonstra que a escassez de divisas em um pas no detentor de moeda

    conversvel leva a autoridade monetria a introduzir uma srie de controles cambiais, de forma a

    manter a normalidade dos fluxos de transaes da economia interna com o exterior o que naturalmente ocorre sob estresse em perodos de iliquidez internacional. a conjuntura mais ou

    10 Desde a crise de 1929, com maior intensidade no perodo do esforo de guerra, e com projees nos anos do imediato ps-guerra,

    quando os problemas de escassez de divisas revelaram a profundidade do esforo de reconstruo, pases centrais tambm adotaram

    vrios controles estatais sobre os fluxos financeiros externos, bem como sobre outras reas da economia. Tais reaes instabilidade

    provocada pela crise dos anos 1930 significaram um disseminado abandono s crenas liberais at ento vigentes, implicando na

    introduo de novas instituies e polticas econmicas (Block, 1977, Eichengreen, 1996).

  • 8

    menos favorvel, em termos de disponibilidade de moeda conversvel, que permite o afrouxamento

    ou o aperto das regras do mercado de cmbio, e a maior ou menor sada de divisas do pas. Assim,

    regras cambiais e taxas de cmbio so utilizadas, oscilando entre o maior e menor rigor em razo da

    conjuntura externa.

    De fato, poucos pases tm a capacidade de emitir moeda que exera a funo de meio de

    pagamento internacional (Eichengreen e Hausmann, 1999). Isso torna necessrio o equilbrio entre

    as receitas e as despesas nas transaes de um pas com o resto do mundo (Almeida, 1994), bem

    como o acompanhamento permanente do pagamento das transaes externas. No limite, em casos

    de desequilbrios, ocorre a adoo de mecanismos variados de controle cambial, exercidos por meio

    de racionamento de divisas (controle quantitativo), regime cambial, encargos financeiros

    (obrigatoriedade de depsitos no remunerados ou aquisio de ttulos governamentais como forma

    de encarecer as divisas e reduzir sua demanda) ou impostos sobre aquisio de divisas, restries

    sada de capitais para o exterior, e at mesmo a utilizao de sistemas de taxas mltiplas de cmbio.

    So todos expedientes j utilizados no pas, mais efetivamente a partir da dcada de 1930, quando

    se inaugura um longo perodo de falta de liquidez internacional, ensejando um gerenciamento mais

    eficaz das contas externas.

    A introduo do expediente da prtica do oramento de cmbio do pas nesse perodo

    tambm se insere nesse contexto, conjugando os esforos de coordenao entre o acompanhamento

    das disponibilidades cambiais e da emisso de licenas de importao. A lgica de regulao de

    qualquer mercado subentende que, sempre que se est diante de recursos escassos, preciso fazer

    um oramento, ou seja, planejar os gastos, como qualquer empresa faz, inclusive o Governo Federal

    com a elaborao do oramento pblico. Sob essa tica, o mesmo deve ser feito para lidar com um

    dos recursos mais escassos para os pases em desenvolvimento, que no nem moeda nacional nem

    ttulos pblicos (ambos de emisso domstica), mas sim a moeda estrangeira necessria para manter

    em funcionamento uma economia que necessita fazer compras e pagamentos no exterior. Medidas

    de controles se justificam quando h um racionamento de divisas devido a dificuldades crnicas de

    financiamento do balano de pagamentos. No Brasil, divisas sempre foram uma mercadoria rara. Da a construo de uma legislao cujo objetivo maior sempre foi o de racionar a utilizao da

    moeda estrangeira, canalizando-a para usos tidos como prioritrios, como a importao de gneros

    de primeira necessidade (Loyola, 2003). Particularmente, a dcada de 1930 um desses perodos crticos de falta de moeda

    conversvel que assolou no apenas o Brasil como todos demais pases agroexportadores poca,

    imprimindo a necessidade de solues de gerenciamento das contas externas do pas. A crise de

    1929, identificada como a pior crise financeira mundial de todos os tempos, levou, sobretudo,

    constatao de que o setor externo varivel primordial a ser administrada pelo Governo Federal,

    ainda que graus de liberdade sejam pequenos diante de iliquidez internacional crtica e de no

    conversibilidade da moeda nacional. nesse contexto, exposto na seo anterior, que se devem

    observar as medidas de governo impostas para o controle das transaes externas. A origem dos

    princpios fundamentais da centralizao cambial, da cobertura cambial e do curso forado a delimitada, cuja funcionalidade foi relevante para o equacionamento dos fluxos cambiais durante

    os vrios perodos de estresse de falta de divisas, caractersticos do pas at os anos 1990.

    De fato, a construo da legislao do mercado de cmbio do pas tem suas origens nas

    dificuldades externas vividas em decorrncia da crise de 1929. Vargas tomou posse como chefe do

    Governo Provisrio em novembro de 1930, quando o pas j se encontrava mergulhado em

    profunda crise econmica, que internacionalmente j havia sido iniciada h mais de um ano

    (Fonseca, 2003b). Tratava-se de um regime de exceo em que o Governo Provisrio exercia

    discricionariamente, em toda a sua plenitude, as funes e atribuies, no s do Poder Executivo,

    como tambm do Poder Legislativo. Com o Congresso fechado, pelos efeitos do movimento de

    1930, o novo governo passou a legislar atravs de decretos presidenciais, materialmente com fora

    de lei alguns ainda vigentes, reafirmadas na Constituio Federal de 1988. Foi assim que o

  • 9

    governo estruturou o mercado de cmbio, regulando os fluxos de oferta e demanda de divisas, com

    reflexos sobre a formao da taxa de cmbio. O controle cambial passou a fazer parte do

    vocabulrio corrente das transaes externas.

    O termo refere-se ao uso de medidas administrativas de gerenciamento do balano de

    pagamentos em todas suas contas. Ou seja, um conceito amplo, englobando a imposio de

    restries a transaes em moedas estrangeiras num sentido abrangente, podendo ser usado para

    controlar os fluxos da conta corrente do balano de pagamentos por exemplo, pela proibio da importao legal de um determinado bem , no se limitando a transaes da conta capital e financeira (Paula, 2003, p.5). O conceito tambm abrange todos os tipos de restries e regulaes

    que possam ser impostas no mercado cambial de forma ampla, inclusive o acesso dos participantes

    no mercado prerrogativa legal atribuda atualmente ao Banco Central. Alm disso, compreende as medidas no sentido de restringir as importaes e limitar os gastos com servios estrangeiros e com

    o movimento de capitais para exterior, referindo-se a transaes correntes ou financeiras. De fato, o

    BC, detentor do monoplio das operaes cambiais, pode e de fato restringe operaes de acordo

    com critrios variados, como volume e finalidade, alm de contar com o dispositivo,

    ocasionalmente acionado, da centralizao cambial (Franco, 1992, p.9), como ocorrido durante os

    anos 1980, derivado da prerrogativa do monoplio cambial11

    .

    A leitura literal do texto emanado no decreto 20.451, editado por Getlio Vargas em 28 de

    setembro de 1931, constitui fonte primria indispensvel para contextualizar as dificuldades vividas

    poca para o equacionamento das contas externas, ao estabelecer normas para as vendas de letras

    de exportao ou de valores transferidos do estrangeiro:

    O Chefe do Governo Provisrio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, atendendo anormalidade da atual situao e necessidade de centralizar as operaes de aquisio

    cambiria para o fim de evitar especulaes danosas aos interesses do Pas, decreta:

    Art. 1 As vendas de letras de exportao ou de valores transferidos do estrangeiro s

    podero ser feitas ao Banco do Brasil.

    Art. 2 As coberturas assim adquiridas sero distribudas periodicamente entre todos os

    bancos, para atender:

    1, a necessidades imprescindveis do Governo Federal, dos governos dos Estados ou dos

    municpios;

    2, importao de mercadorias;

    3, a outras necessidades, de acrdo com as determinaes vigentes.

    Assim, o artigo 1, do decreto 20.451, estabeleceu o monoplio do Banco do Brasil na

    compra de cambiais, o banco oficial que controlava e executava a poltica cambial conforme

    diretrizes do Governo Federal. O artigo 2 exps a hierarquia de necessidades de uso da cobertura

    cambial, ao priorizar as necessidades de divisas pelo governo, em suas trs esferas, seguida da

    importao geral de mercadorias, e posteriores necessidades conjunturais. O Brasil adotou, dessa

    forma, o chamado monoplio de cmbio, tornando defeso qualquer ingresso ou remessa de divisas que no transitasse ou fosse autorizado pelo Banco do Brasil, a quem competia,

    privativamente, a operacionalizao de converso de moedas.

    Portanto, a entrada e a sada de divisas passaram a ser centralizadas, controlando-se

    diretamente todo o fluxo de moeda estrangeira no mercado de cmbio. Isso permitiu a ordenao

    adequada das prioridades de pagamentos ao exterior dos setores pblico e privado. A grande

    vantagem do regime de monoplio de cmbio , de fato, utiliz-lo em perodos de escassez de

    11 O BC, com base na sua prerrogativa de monopolizador do cmbio e gerenciando um sistema de taxas administradas, determinou,

    atravs da Res. 851/83, a centralizao das operaes cambiais realizadas pelos bancos autorizados a operar no mercado, ainda

    reflexo do racionamento de divisas decorrente da crise cambial de 1982, aps o chamado setembro negro em que o pas parou de pagar os compromissos externos.

  • 10

    divisas, pois facilita o controle da entrada e sada de divisas por um rgo centralizador (Franco,

    2000). Em decorrncia, a prerrogativa do monoplio implicava a que os devedores brasileiros,

    desejosos de pagar compromissos externos, viessem ao centralizador para adquirir a moeda

    estrangeira, chegando a criar fila para remessas ao exterior, tornando a dvida externa privada tambm uma questo de pas. Posteriormente, a prerrogativa do monoplio foi retransmitida para a

    Sumoc12

    e, finalmente, ao Banco Central. Isso tambm lhe confere a possibilidade de utilizar o

    mecanismo de centralizao cambial em perodos de escassez de divisas, para o gerenciamento do

    mercado em perodos de crises13

    .

    Decorre do monoplio de cmbio a regulao do montante mantido em poder das

    instituies financeiras exercendo transaes com moeda estrangeira no pas. Isso permite

    autoridade monetria controlar o que se chama de posio de cmbio das instituies financeiras que operam em cmbio no Pas, conforme situao conjuntural das transaes externas bem como

    objetivos de poltica econmica. Basicamente, a posio de cmbio o resultado lquido do volume

    das operaes de compra e venda de moeda estrangeira realizadas pelas instituies

    autorizadas/credenciadas a operar em cmbio, expressando o saldo entre as compras e vendas de

    cmbio14

    . Constitui, assim, suporte para a autoridade monetria conduzir a poltica cambial,

    permitindo controlar o montante de divisas a ser mantido pelas instituies financeiras.

    Em seguida, o segundo pilar da legislao bsica foi erigido atravs da edio do decreto

    23.258, que pode ser interpretado como indicativo de que o monoplio cambial no Banco do Brasil

    no era instrumento suficiente para sustentar os fluxos externos se no houvesse cambiais no Brasil.

    Ou seja, se os exportadores, fonte bsica de divisas para o pas, no internalizassem as receitas de

    exportao em moeda estrangeira e vendessem-nas, no caso, ao Banco do Brasil. A ideia bsica

    surge no prembulo do texto legal, ao justificar a instituio de fiscalizao sobre os bancos no

    sentido de prevenir e coibir o jogo do cmbio, no interesse do bem pblico para assegurar apenas as operaes legtimas. Quais sejam, as transacionadas conforme a legislao em vigor, em

    estabelecimento autorizado, e com fundamentao econmica, j previsto na Lei 4.182, de 1920.

    Implicitamente, o decreto atribuiu autoridade cambial o poder discricionrio de designar que

    operaes eram permitidas.

    Ao mesmo tempo, o artigo 1o subentende o monoplio cambial do BB estabelecido

    anteriormente pelo decreto 20.451/31, dada a delegao dessa responsabilidade a agentes por ele

    autorizados. Sobretudo, a nova pea jurdica exps a prtica de operaes lesivas aos interesses

    nacionais, por entidades domiciliadas no pas, como forma de burla s prescries legais,

    subentendida a atuao das instituies financeiras atuantes no mercado de cmbio. o artigo 1

    que introduz a figura do cmbio ilegtimo no arcabouo legal brasileiro, constituindo o principal

    embasamento dos processos administrativos conduzidos nos ltimos anos pelo BC contra quem

    supostamente estaria em desacordo com essa norma. Mas o contedo principal est, certamente, na

    obrigao de os exportadores trazerem para o pas toda a receita obtida com as vendas externas. Isso

    se constituiu no mecanismo atravs do qual a instabilidade da receita comercial pode ser evitada.

    12 A Sumoc (Superintendncia da Moeda e do Crdito) foi criada pelo decreto-lei 7.293 (02/02/1945). 13 Particularmente a partir dos anos 1990, a figura do monoplio cambial se transformou num regime de repasse-cobertura, onde o BC intermediava todas as compras e vendas acima de certo valor, fora da chamada posio de cmbio dos bancos. Entretanto, ainda que em vigor, Giannetti & Garfalo (2005, p.11) entendem que, no governo Collor (1990), o modelo de monoplio cambial foi

    flexibilizado, quando se acabou com a obrigatoriedade do sistema de repasse de excedente de mercado e cobertura de demanda de

    mercado, o qual concentrava nas reservas internacionais do pas toda moeda estrangeira resultante das operaes externas. quando

    se acabou com a obrigatoriedade de o BC intervir diretamente na operacionalizao do regime cambial brasileiro, e o mercado

    interbancrio que passou a funcionar em seu lugar, independentemente e sem travas de volume, suprindo e consumindo o excedente e

    a falta de moeda entre as instituies financeiras. 14 Inicialmente, o objetivo da fixao de limites manuteno de moeda estrangeira pelos bancos foi o de transferir para a autoridade

    monetria a moeda estrangeira destinada constituio de reservas internacionais (Almeida, 1994, p.14). Atualmente, no h limite

    de moeda estrangeira no pas, devendo cada instituio financeira atentar para o gerenciamento de sua exposio cambial, nos termos

    da regulao prudencial de Basileia (vide Resoluo BC 3.488/07).

  • 11

    No limite, essa garantia de recursos ao PSI tambm foi, em ltima anlise, um instrumento

    que delineou efetivamente a possibilidade aos capitais privados de buscarem a inverso

    diversificada em atividades voltadas ao mercado interno onde havia maior possibilidade de lucro, frente crise do setor de exportao cafeeira (Fonseca, 2003b, p. 137), reconfigurando a estrutura

    produtiva domstica. A observao direta do desempenho das importaes no descarta a nossa

    hiptese de que as novas medidas cambiais estiveram efetivamente correlacionadas com as

    transaes realizadas, alm da reconstituio do nvel de renda interna. Os dados do IBGE (1986)

    apontam para 1933 justamente o ano de inverso da tendncia declinante de importaes, que

    passam de um nvel de USD 225 milhes em 1930 para o patamar de apenas USD 92 milhes em

    1932. Em 1933 houve uma recuperao de mais de 60% de seu valor, quando sobem para USD 148

    milhes, com recuperao posterior gradativa ao longo da dcada.

    Em especial, o Decreto 23.258, de 19 de outubro de 1933 constituiu uma das principais

    regras de gerenciamento cambial. Esse pilar uma norma recepcionada com fora de lei pelo regime constitucional de 1988 , dispe sobre o ilcito administrativo de sonegao cambial, estabelecendo originalmente, ipsis litteris, que:

    Art. 1 - So consideradas operaes de cmbio ilegtimas as realizadas entre bancos, pessoas naturais ou jurdicas, domiciliadas ou estabelecidas no pas, com quaisquer

    entidades do exterior, quando tais operaes no transitem pelos bancos habilitados a

    operar em cmbio, mediante prvia autorizao da fiscalizao bancria a cargo do

    Banco do Brasil.

    (...)

    Art. 3 - So passveis de penalidades as sonegaes de coberturas nos valores de

    exportao, bem como o aumento de preo de mercadorias importadas, para obteno de

    coberturas indevidas.

    Art. 5 - Fica revigorado o art. 56 da Lei n 4.440, de 31 de dezembro de 1921, que

    proibiu a exportao do ouro, prata e outros metais preciosos amoedados, em barras ou

    em artefatos15.

    essa a base legal de exigncia de cobertura cambial para as exportaes. Assim, obrigou

    os exportadores a vender a moeda estrangeira auferida em suas transaes ao BC ou a uma

    instituio por ele autorizada, evitando dessa forma uma fuga de capitais. Em paralelo conduo da poltica de manuteno das exportaes de caf, que representavam 71% das exportaes,

    voltou-se o governo para a manuteno da capacidade de importao, que abrangia uma variedade

    de bens de capital, matrias-primas, produtos intermedirios e bens de consumo durvel (Baer,

    1988, p.96). Ao editar o decreto 23.258 em 1933, o governo garantiu que a cobertura cambial das

    exportaes fornecesse as divisas necessrias para dar curso s importaes essenciais da economia domstica, medida com efeitos econmicos de carter muito mais de longo prazo do que

    a manuteno artificial da renda do setor cafeeiro.

    Importante ressaltar o indcio da prtica anterior corrente de induo da internalizao das

    divisas sobre os exportadores, como apontado por Franco & Demsthenes (2004), com o decreto

    formalizando-a. Num perodo crtico para o setor externo, o decreto foi a principal medida

    estabilizadora do mercado cambial, que passou a contar com uma entrada de dlares bastante

    previsvel e estvel, resultante do saldo comercial, (Almeida, 1994), independentemente de

    emprstimos externos, ento indisponveis. Nessa concepo, com a definio da fonte de oferta de

    divisas e com o controle da demanda de importaes e demais compromissos externos (havia

    controle tambm sobre os fluxos financeiros, em especial, relativos a obrigaes de emprstimos

    ingleses), o preo (a taxa de cmbio) pde ser administrado pelo governo. O mercado cambial e os

    15 Ainda que vigente, o Decreto 23.258/33, teve alterado o teor de seu artigo 3, flexibilizando-se a cobertura cambial atravs da

    edio da Medida Provisria 315/06, em 02.08.2006.

  • 12

    fluxos externos seriam acomodados atravs da regulao das quantidades de demanda e oferta de

    dlares, criando-se um ponto de equilbrio para as transaes registradas no balano de pagamentos.

    Ainda coube ao decreto 23.258/33 introduzir um novo paradigma institucional ao definir

    como operao ilegtima de cmbio aquela realizada fora do estabelecimento monopolista ou,

    posteriormente, fora de estabelecimento bancrio autorizado pelo detentor do monoplio de cmbio

    (hoje o BC), alm de consolidar a necessidade da cobertura cambial nas exportaes. Sob a nova

    institucionalidade, a sonegao de cobertura cambial, ou a prtica de sub ou superfaturamento no comrcio exterior, tambm passou a ser objeto de multa, a qual foi rotineiramente aplicada pelo

    Banco Central atravs de processos administrativos, at a mudana da norma em 2006.

    Implcito cobertura cambial, com a venda direta a banco autorizado ou diretamente ao

    monopolista, imprimiu tambm a vedao da chamada compensao privada de cmbio, que era o mecanismo pelo qual uma empresa poderia pagar importaes com recursos provenientes

    diretamente das exportaes, sem a necessidade de antes internar os dlares no pas. Os

    compromissos dos exportadores passariam pelo crivo do governo, entrando na fila de prioridade

    cambial da economia domstica. A esse respeito, Loyola (2005) ressalta que o prprio decreto

    20.451/31, ao criar a obrigao de que todas as operaes de cmbio passassem a ser conduzidas de

    forma individualizada no pas e por meio de instituies autorizadas pelo BC, acaba tambm

    configurando a vedao da compensao privada de cmbio, posteriormente expressamente

    proibido pelo artigo 10 do decreto 9.025/46.

    Por fim, nesse contexto de escassez de divisas, cabe ressaltar o artigo 5 do decreto, o qual

    revigorou o impedimento de exportao de ouro, prata e outros metais amoedados, constante no texto do art. 56 da Lei n 4.440, de 31 de dezembro de 1921. Surgem, assim, os princpios

    introduzidos na legislao em decorrncia da penria cambial que se seguiu queda do preo do caf nos mercados internacionais, como conseqncia da crise de 1929.

    Outra pea fundamental na legislao envolvendo as transaes monetrias no pas esteve

    no decreto 23.501, publicado em 27 de novembro de 1933. fonte primria para verificar a

    transio no apenas do pas como de pases centrais que abandonam o padro-ouro e passam a

    estipular o chamado curso forado do papel moeda como meio de troca oficial, meio de unidade e de referncia com poder liberatrio em contratos. Nessa ocasio, com a mudana no regime

    monetrio, eram finalmente resolvidas vrias dcadas de controvrsias monetrias, introduzindo-se

    um sistema monetrio baseado na moeda fiduciria inconversvel, o curso forado. O decreto 23.501/33, depois renovado praticamente sem alteraes pelo decreto-lei 857/69, ainda em pleno

    vigor, vedava a estipulao de pagamento em ouro ou moeda estrangeira para transaes entre

    residentes.

    Assim, o decreto declara nula qualquer estipulao de pagamento em ouro, ou em determinada espcie de moeda, ou por qualquer meio tendente a recusar ou restringir, nos seus

    efeitos, o curso forado do mil ris papel. A prpria contextualizao do decreto feita em sua introduo fonte rica de informaes da conjuntura econmica da poca, junto do papel do

    Estado. Ali se ressalta a funo essencial e privativa do Estado de criar e defender sua moeda,

    assegurando-lhe seu poder liberatrio (contratual); a atribuio inerente soberania do Estado em

    decretar o curso forado do papel moeda, como providncia de ordem pblica; ressaltando, ainda, que em qusi tdas as naes tem sido decretada a nulidade da clusula ouro e de outros processos artificiosos de pagamento, que importem na repulsa ao meio circulante. Frana, Inglaterra e Estados Unidos adotaram rigorosas medidas similares, para evitar, ou sustar, a depreciao de sua

    moeda papel, alm dos pases cujos sistemas monetrios sofreram profundo abalo pela crise de

    1929, dada a desvalorizao qusi total de sua moeda fiduciria. Assim, nos EUA, qualquer obrigao anteriormente contrada, embora nela se contenha

    semelhante disposio, ser resgatada pelo pagamento dlar por dlar, em qualquer moeda metlica

    ou papel de curso legal". Ou seja, estabeleceu-se a retroatividade de tais medidas, da mesma forma

    que o estabelecido na Alemanha, Blgica, Romnia, Grcia, Bulgria, Frana, dando amparo legal

  • 13

    para que todas as somas estipuladas para pagamento em espcie pudessem ser pagas em moeda de

    curso forado, no obstante as clusulas ou disposies distintas anteriores. No Brasil, passou a no

    ter amparo legal qualquer clusula, conveno ou artifcio, que visasse subttrair o credor ao regime do papel moeda de curso forado, recusando-lhe ou diminuindo-Ihe o poder liberatrio integral, que

    o Estado em sua soberania lhe conferiu. O decreto traz o seguinte teor:

    Art. 1 nula qualquer estipulao de pagamento em ouro, ou em determinada espcie de moeda, ou por qualquer meio tendente a recusar ou restringir, nos seus efeitos, o

    curso forado do mil ris papel.

    Art. 2 A partir da publicao dste decreto, vedada, sob pena de nulidade, nos

    contratos exeqveis no Brasil, a estipulao de pagamento em moeda que no seja a

    corrente, pelo seu valor legal.

    Atravs dessa disposio, o curso forado da moeda nacional, estabelecido na dcada de 1930 pelo decreto 23.501/33, posteriormente consolidado pelo decreto-lei 857, de 11/09/1969, e

    confirmado pelas leis 9.069/95 (Plano Real) e 10.192/01, tambm uma norma bsica do modelo

    cambial do vigente, imprescindvel para a viso completa da regulao cambial do pas. Atravs

    dele, passa a no existir amparo legal estipulao contratual de pagamento em ouro ou em moeda

    estrangeira no pas, que restrinjam ou recusem nos seus efeitos o curso legal da moeda. Ou seja,

    suspende-se a efetividade da chamada clusula-ouro do ento texto do cdigo civil (par. 1, art. 947), que permitia que partes privadas liquidassem dvidas com moedas estrangeiras. No limite,

    pode-se dizer que essa disposio base para a aferio de eventuais ganhos de senhoriagem pelo governo, defendido por Arida (2003, p.153), ao se posicionar contra a ampliao da

    conversibilidade da moeda no nvel das transaes internas, afastando a utilizao de moedas

    estrangeiras no territrio nacional.

    De forma geral, pode-se creditar a tais medidas, o fato de, em parte, o impacto da depresso

    sobre o produto real brasileiro ter sido relativamente modesto, quando comparado com os outros

    pases, especialmente os desenvolvidos. Sua queda foi de 5,3% de 1929 a 1931, o pior ano da

    recesso. Em 1932 o PIB cresceu de fato 4% e, j em 1933, em torno de 9%. Certamente o

    abandono do padro-ouro em 1930, rompendo com a vinculao entre choques externos e a base

    monetria, evitou uma situao mais adversa economia domstica, dando maior grau de liberdade

    poltica econmica, ao lado da poltica de manuteno de renda do setor cafeeiro. Cortou-se,

    sobretudo, a dependncia da estabilidade domstica em relao ao movimento de entrada de capitais

    estrangeiros. A base monetria caiu at o incio de 1931, mas passou a crescer significativamente a

    partir 1931, desatrelada do cenrio externo. A queda dos preos domsticos concentrou-se em 1930

    e 1931, praticamente estabilizando-se em 1932-33. No se pode descontextualizar a edio do

    decreto 23.501 desse quadro, provavelmente imprimindo os efeitos legais necessrios para

    estabelecer, de jure, o novo padro monetrio no conversvel em ouro.

    Os referidos textos legais so marcas, portanto, da transio de uma economia primrio-

    exportadora baseada no caf, com um regime cambial e comercial relativamente livre, para uma

    economia voltada para dentro, com controles mais estritos sobre as transaes externas. O quadro

    seguinte condensa os pilares bsicos, alguns mais enfatizados e conhecidos, ressaltados por uns ou

    por outros, mas certamente cada qual com seu papel fundamental para a configurao atual do

    regime cambial do pas:

    Tabela 2. Quadro-resumo da legislao cambial bsica

    Norma Ementa

    Decreto 20.451/31 Estabelece regime de monoplio cambial

    Decreto 23.258/33 Institui obrigatoriedade de cobertura cambial

    Decreto 23.501/33 Institui o curso forado da moeda nacional Fonte: elaborao prpria

    4. As Medidas Cambiais e o Processo de Substituio de Importaes

  • 14

    At a dcada de 1930, embora se registrem tarifas alfandegrias das quais no se pode

    descartar efeito protecionista (Versiani, 1977, p.123, 132), de forma geral o Governo Federal teve

    pouca relevncia na definio de polticas de maior envergadura voltadas industrializao do pas

    (Baer, 1988), capazes de mudar a estrutura produtiva domstica, cujo dinamismo se apoiava no

    setor agrrio-exportador. A transformao na base poltica aps o movimento revolucionrio de

    1930 constitui varivel-chave para explicar a reorientao da poltica econmica (Dallaqua, 1985, Fonseca, 1989, Leopoldi, 2000). No se pode, portanto, descontextualizar a edio dos decretos

    reguladores do mercado cambial da escassez de divisas como tambm do objetivo de poltica

    econmica do governo Vargas, ao qual se subordina. O padro cambial mais desregulamentado

    anterior, mantido com suficiente lastro em moeda conversvel ou ouro para garantir a moeda local e

    que permitia pouco controle cambial, de fato no mais se sustenta com a iliquidez internacional.

    Como observa Fritsch (1992), no apenas o sistema poltico que se desintegra com a

    Revoluo de 1930. Termina tambm o modo caracteristicamente liberal de gesto dos fluxos

    comerciais e financeiros entre a economia brasileira e a economia mundial. O gigantesco

    desequilbrio externo que se prolonga pelo incio dos anos 1930 fora a imposio de restries

    cambiais e controles de importaes, resultando em duradoura ruptura da forma tradicional de

    insero do Brasil na economia mundial. Nessas circunstncias de dollar shortage, o PSI daria

    continuidade busca da auto-suficincia, regulando-se o mercado cambial de forma restritiva, poupadora de recursos externos e sob a noo de controles cambiais, que s seria transformado e liberalizado de forma muito gradual no final do sculo.

    Assim, a nova institucionalidade cambial, estabelecendo e, ao mesmo tempo, restringindo as

    escolhas e os comportamentos possveis dos indivduos (Strachman, 2002), imprimiu estabilidade

    economia domstica, abarcando as transformaes ocorridas nos mercados e sinalizando novas

    orientaes. Constituiu-se, sobretudo, num mecanismo mitigador de incerteza, impondo

    coordenao ao sistema econmico (North, 1991). De fato, como Silber (1978) ressalta, a poltica

    cambial est dentre as aes do governo que explicam o comportamento da economia brasileira e,

    particularmente, da industrializao na dcada de 1930, ao lado daquelas relacionadas com a

    conhecida poltica de defesa do caf.

    O decreto 23.258/33 atribuiu, formalmente, papel s exportaes agrcolas para a

    acumulao industrial, no sentido de prover divisas para compra de bens de capital e/ou bens de

    consumo (Dallaqua, 1985). um estgio de construo das bases internas na economia para superar a diviso internacional clssica do trabalho que impunha aos pases primrio-exportadores a

    exportao de produtos agrcolas para proporcionar capacidade de importao de bens

    industrializados dos pases avanados. No caso, um estgio avanado, pois a natureza da relao

    entre exportao e importao muda de mera geradora de divisas mantenedora de uma relao

    esttica internacional para se tornar engrenagem de superao do atraso econmico, quando a

    capacidade de importar fator limitante da acumulao industrial.

    uma demanda adicional ao setor agrrio-exportador, complexa, que passa pela interveno

    ativa do Estado, pelo decreto 23.258, no domnio das relaes econmicas setoriais, para satisfazer

    novos requerimentos e minimizar as restries expanso do capital industrial. essa a soluo tpica dos anos 1930 apontada por Pelaez (1968). Com base na centralizao no Banco do Brasil de todas transaes com o exterior, nos termos de decreto 20.451, os exportadores vendiam-lhe

    oficialmente as cambiais, repassadas de acordo com o estabelecido pelo decreto 23.258. Somente

    ento se concediam licenas de importao, distribuindo as divisas conforme as necessidades da economia (p.33).

    De fato, a crescente industrializao brasileira requeria uma expanso de importaes de

    matrias-primas como carvo e petrleo, tanto quanto de bens intermedirios e de capital que, por

    razes de tecnologia, pequena extenso de mercados, ou capacidade financeira, no podiam ser

    produzidos internamente. O fato que, no contexto de mudanas na estrutura produtiva do Pas nos

    anos 1930, a capacidade de importar foi mantida no por exportaes crescentes (grfico 1), mas

  • 15

    por mudanas institucionais do mercado de cmbio, ao canalizar as receitas decrescentes de

    exportaes do pas. A tabela 3 mostra que o valor nominal de ambas, exportaes e importaes,

    declinou fortemente de 1928-9 para 1930-2, s se recuperando parcialmente entre 1940-5 as exportaes ganham fora durante a segunda guerra, enquanto as importaes mantm-se

    reprimidas.

    Tabela 3. Balano de pagamentos e composio das importaes (1928-45)

    1928-9 1930-2 1933-9 1940-5

    Exportaes (USD milhes) 467 248 292 453

    Importaes (USD milhes) 378 144 214 242

    Composio das Importaes (%) 100* 100 100 100

    Bens de consumo 21.3 17.1 17.6 12.6

    Matrias-primas 52.8 55.9 52.1 52.5

    Bens intermedirios e de capital** 25.9 27.0 30.3 34.9 Fonte: Dallaqua (1985, p.67). *: refere-se ao perodo 1924-9; **: inclui combustveis e lubrificantes.

    A observao dos textos normativos expostos demonstra que o processo de industrializao

    que se realizou antes da II Guerra Mundial esteve atrelado a polticas governamentais, que

    acabaram estimulando as atividades industriais. As mudanas estruturais na economia brasileira ao

    longo da dcada de 1930, so identificadas, de uma forma mais ampla ou restrita, por praticamente

    todos estudos sobre o perodo - vide, por exemplo, o estudo recente de Marson (2008). H,

    entretanto, que se identificar aspectos especficos daquela poltica econmica, voltada construo

    de uma aparente autonomia econmica, que decorre tanto do papel condutor assumido pelo Estado,

    atrelado a um projeto de desenvolvimento nacional, quanto da irrelevncia dos fluxos de investimentos estrangeiros diretos. A prpria descontinuidade do projeto de defesa de caf, na

    segunda metade da dcada de 1930, aponta para a consolidao de novos rumos de poltica

    econmica.

    Assim, a edio do decreto 23.258 pode ter alcanado seu objetivo de curtssimo prazo,

    provavelmente com efeitos tempestivos sobre a situao adversa no mercado de cmbio poca,

    que no permitia a canalizao das divisas nos termos das prioridades estabelecidas pelo governo,

    as quais expressamente incluam as importaes essenciais. Tal hiptese bastante plausvel. Caso

    se considere que, no longo prazo, no haja dvidas quanto eficcia da norma legal, posto que

    contribuiu decisivamente para estruturar o funcionamento do mercado de cmbio at que a

    flexibilizao da norma em 2006, no h por que duvidar de sua eficcia no curto prazo. Um

    mercado menor, com bancos operando em poucas praas no Rio de Janeiro e So Paulo, era de mais

    fcil assimilao e controle das normas.

    Como Furtado identificava, (2007, p.210), a procura por bens de capital cresceu exatamente numa etapa em que as possibilidades de importao eram as mais precrias possveis. Os dados do crescimento da produo industrial apontam que o perodo caracterizou-se pela ampliao da

    capacidade industrial instalada no pas, a despeito do estrangulamento externo e das dificuldades de

    acesso a cambiais. Com isso, a participao das importaes na oferta total caiu de 45% em 1928

    para 20% em 1939 (Suzigan, 1994), denotando o efetivo PSI. Dentre os dados disponveis, Suzigan

    (1994) mostra uma evoluo da mecanizao da indstria, ainda que as inverses tenham sido

    reduzidas no incio da dcada at seu ponto mais crtico em 1932. Na tabela, pode-se constatar a

    evoluo, em valores. Entre 1929 e 32, houve uma reduo no volume exportado (ao Brasil). A

    partir de 1933, tal tendncia inverte-se, voltando a crescer as exportaes, o que corrobora a

    hiptese de uma associao com a disponibilidade de cambiais no mercado domstico, com os

    bancos intermediadores de moeda estrangeira observando o decreto 23.258/33.

    A tabela mostra a evoluo efetiva das exportaes de mquinas dos principais pases

    produtores poca (Reino Unido, EUA, Alemanha e Frana), para a indstria metal-mecnica

    brasileira, para os anos de 1928 a 39. Em especial, o saldo nas importaes entre 1932 e 1933

  • 16

    parece se inserir nessa interpretao proposta. O perodo caracterizado, portanto, pela introduo e

    aperfeioamento contnuo do parque industrial brasileiro, responsvel por transformaes na

    estrutura produtiva.

    Tabela 4. Inverses na indstria metal-mecnica (1928-39) Ano Valores (mil-ris) ndice (1929=100)

    1928 181.367 95

    1929 191.679 100

    1930 190.191 99

    1931 55.461 29

    1932 30.989 16

    1933 109.437 57

    1934 144.777 76

    1935 199.957 104

    1936 298.125 156

    1937 306.673 160

    1938 482.119 252

    1939 344.269 180

    1930-34 530.855

    1935-39 1.631.143

    Fonte: Suzigan 1994.

    Abreu (1987) tambm ressalta que, durante os anos 1930, a produo industrial continuou a

    crescer, alcanando, no fim da dcada, nveis mais de 60% acima dos de 1929. O perodo 1932-9

    correspondeu, assim, a um boom industrial, fato possvel graas proteo proporcionada pelas

    persistentes dificuldades no comrcio externo e, certamente, resultado da manuteno do fluxo de

    importaes, ainda que em nvel menor, dado o novo arcabouo institucional. Os dados parecem

    confirmar essa anlise:

    Tabela 5. Produo Industrial e Comrcio Exterior (1929-39) Ano Prod industrial (1939=100) M (USD milhes) X (USD milhes)

    1929 65 378 407

    1930 63 225,5 319,4

    1931 64 116,5 244,0

    1932 61 92,8 179,4

    1933 67 148,2 216,8

    1934 70 184,8 292,8

    1935 83 196,5 269,5

    1936 82 196,4 320,6

    1937 89 279,2 346,8

    1938 100 246,5 294,3

    1939 105 261 218,0

    Fonte: Baer (1988), para produo industrial; IBGE (1986), dados FOB.

    Certamente, o surto de industrializao que Skidmore (1982) classifica inicialmente como

    espontneo foi auxiliado, num segundo momento, por uma poltica ento consciente de interveno estatal, medida que o repdio do Estado Novo ao liberalismo poltico associa-se a sua

    determinao de tambm se afastar do liberalismo econmico. Isso imprime sentido de

    direcionismo econmico s medidas cambiais em tela. Os empresrios particulares eram, assim,

    estimulados a prosseguir com os seus prprios esforos, enquanto o Governo Federal ampliava a

    sua autoridade para dirigir a economia por dois modos principais: a manipulao de incentivos, por impostos, controles de cmbio, cotas de importao, controles de crdito e exigncias salariais;

    e a interveno direta, atravs de investimentos pblicos, em setores como ferrovias, navegao,

    servios pblicos e indstrias bsicas, como o petrleo e o ao (Bastos, 2007).

  • 17

    Naturalmente, o PSI impulsiona a formao de uma estrutura produtiva mais complexa nas

    dcadas seguintes, sob a lgica da perspectiva analtica institucional de path dependence.

    Sobretudo, com base na estrutura produtiva agrrio-exportadora que se constri a industrializao,

    a qual assumiu a funo de provedor de poupana para financiar investimentos industriais, dado o

    excedente do setor cafeeiro que no suportava mais inverses e que passa a se diversificar em

    outros ramos da economia, alm da funo de fornecedor de divisas atravs das exportaes

    (Dallaqua, 1985). A anlise da nova legislao cambial varguista insere-se nesse quadro terico, e vem ressaltar as medidas de governo, implantadas para o gerenciamento do mercado cambial, com

    reflexos econmicos at perodo mais recente. Vale dizer, so os mecanismos de transformao que

    formaram o estgio econmico seguinte, engendrando as transformaes no plano econmico entre

    um perodo e o prximo, num nexo de causalidade no sentido vebleniano.

    A pergunta implcita se o desenvolvimento econmico nacional, que sempre teve no

    estrangulamento externo uma importante barreira a ser administrada, poderia ter assumido o mesmo

    caminho sem a instrumentalizao do decreto 23.258. Ou seja, se o resultado (de desenvolvimento)

    teria sido o mesmo, dado que a varivel cmbio sempre foi fator relevante em termos de poltica

    econmica para um pas perifrico, operando em sistema de moedas descentralizadas. Uma resposta

    passa pela observao da condio fundamental para implementar a industrializao substitutiva

    que passou certamente pelo enfrentamento das limitaes externas. Em primeiro lugar, para que no

    se produzisse na pauta de importaes uma rigidez que no deixasse margem para a entrada de

    novos produtos e, especialmente, de bens de capital necessrios expanso da capacidade produtiva

    (Mello, 1982, p.93). Outro obstculo dizia respeito ao comportamento da capacidade para importar.

    As altas taxas de formao de capital e a composio de investimentos necessria a uma rpida

    diversificao e integrao do aparelho produtivo exigiam que as limitaes do setor externo

    fossem no mximo relativas, i.e., que houvesse uma certa expanso das importaes, embora a uma

    taxa inferior do crescimento do produto.

    Isso exigia gerenciamento sobre as transaes externas. A problemtica da industrializao

    certamente passou pelo equacionamento da gerao de divisas necessrias a sustentar o fluxo de

    importaes subjacentes. A questo se apia na anlise do setor externo, no desafio do

    estrangulamento externo a que o Pas respondeu com um ajuste baseado no crescimento industrial

    interno. Assim, nos perodos em que houve srias dificuldades para importar, a taxa de acumulao

    real industrial no podia crescer, ainda que a taxa de lucro efetiva tenha aumentado, estimulada,

    inclusive, pela elevao de grau de proteo (Mello, 1982, p.108). Nas circunstncias das primeiras

    etapas do PSI, em que havia o predomnio de necessidade de grandes inverses de capital, do risco

    e incerteza inerente aos negcios e de tecnologia praticamente no disponvel, o Estado certamente

    foi fator decisivo para a realizao do processo, ao facilit-lo ao mximo. Ou seja, garantindo o

    mercado interno protegido contra importaes concorrentes, investindo em infra-estrutura e

    impedindo o fortalecimento do poder de barganha dos trabalhadores, que poderia surgir com um

    sindicalismo independente (Mello, 1982, p.114). Mas, alm disso e no menos importante,

    garantindo tambm a canalizao de moeda conversvel para a indstria dar curso s necessidades

    de importaes subjacentes ao processo de industrializao.

    Houve, de fato, uma priorizao do setor industrial no padro de acumulao, que ao mesmo

    tempo impunha limites objetivos ao econmica do Estado, ao impedi-lo de manter em dia suas

    obrigaes externas, por canalizar as cambiais para o setor industrial em expanso. No se pode

    visualizar os textos legais sem atentar para esse fato correlacionado. Assim, o Estado no podia

    dispor de uma parcela considervel da capacidade para importar, ao ocup-la com a operao e

    expanso da indstria leve, numa situao em que eram reduzidas as possibilidades de

    financiamento externo (Mello, 1982).

    Importante tambm observar a caracterstica da dcada de 1930, de ausncia de

    multinacionais que poderiam ter investido no Brasil, superando questes de mobilizao de capitais

    e de suficincia de capacidade de importao. De 1930 a 1946 no foi particularmente favorvel

  • 18

    exportao de capital. Durante os anos de crise nas economias centrais (cujos efeitos foram mais

    prolongados do que no Brasil), o capital oligopolista passou por severas restries financeiras

    decorrentes de fortes quedas de vendas e quebra de margem de lucro. No ps-depresso,

    investimentos internos absorveram a maior parte do excedente de capital monetrio nas economias

    centrais, e logo depois estourava a Guerra.

    Assim, o perodo caracteriza-se pela disseminao de padres de crescimento mais voltados

    aos mercados domsticos e, em vrios casos, sob regime de fora, com os Estados nacionais

    assumindo posio de destaque nas decises e rumos econmicos dos pases, inclusive com o nus

    de gerenciamento dos atrasados financeiros externos. atravs das medidas institucionais descritas

    na seo 3 que o poder pblico, visando a defender a economia domstica diante da magnitude da

    crise externa dos anos 1930, estabeleceu condies para a ampliao do setor industrial voltado ao

    mercado interno (Fonseca, 2003b, p.138). Os resultados so parte da histria.

    5. Comentrios Finais

    O presente artigo partiu da percepo de que ainda havia espao, com relao

    historiografia econmica tradicional, para explorar, aspectos relevantes das ligaes entre as

    inovaes institucionais que passaram a regular o mercado cambial e as relaes financeiras

    externas brasileiras nos anos 1930 e o modelo de desenvolvimento que ento se inaugurou. Buscou-

    se, assim, contribuir identificando os mecanismos iniciais adotados pelo governo varguista durante

    a gnese do PSI, atravs da edio de importantes medidas de controle sobre o mercado cambial no

    incio dos anos 1930. A recorrncia a novas fontes primrias para embasar novos estudos

    contribuem para alargar a pesquisa de histria econmica do perodo em tela, explorando os

    acontecimentos relevantes que foram anteriores introduo da sistematizao das contas nacionais

    no ps-II Guerra, portanto carente de dados oficiais mais amplos e confiveis.

    Apesar de se aceitar que ocorreram transformaes institucionais em suporte ao PSI, a

    literatura de histria econmica brasileira para o perodo varguista, at anos recentes, pouco se

    debruara sobre os instrumentos e medidas institucionais utilizados que marcam a histria

    econmica, e cambial em particular. Entretanto, grande parte da histria econmica dos anos 1930

    evidencia reiteradas tentativas de ajustar o balano de pagamentos e, portanto, da prpria economia

    domstica s novas condies externas. O equilbrio econmico anterior, rompido pela crise

    cambial, levou implementao de uma srie de medidas transformadoras. Ou seja, polticas de

    regulao do mercado cambial, configurando o novo ordenamento legal das transaes externas na

    economia brasileira, como se procurou mostrar. O Brasil passou, assim, da crise de 29 para o

    crescimento induzido pelo Estado, certamente contando com as novas diretrizes norteadoras das

    transaes cambiais.

    Como se enfatizou, as medidas tiveram alcance imediato no reordenamento dos fluxos

    externos, trazendo baila a relao indissocivel entre o estrangulamento externo e o PSI.

    Ressaltamos mecanismos institucionais que passaram a comandar a forma de interao entre o setor

    agrrio-exportador e o setor industrial substituidor de importaes, em especial o Decreto 23.258.

    Este normativo, particularmente, contribuiu para a superao conjuntural, ou, em outras palavras,

    para o equacionamento pragmtico institucional voltado ao gerenciamento dos desequilbrios nas

    contas externas do balano de pagamentos do pas. Ao garantir a fonte de moeda conversvel ao

    pas e sujeitar, em ltima instncia, o setor exportador aos anseios desenvolvimentistas de

    industrializao, constituiu-se no mecanismo viabilizador efetivo da etapa histrica de

    desenvolvimento econmico baseado na substituio de importaes. No se pode, portanto,

    desconsiderar essa relao entre a situao do setor externo, o volume de divisas disponvel e a

    capacidade de sustentao das importaes. O Decreto 23.258, ao garantir recursos externos

    necessrios para executar o PSI, constitui, em ltima anlise, o elo institucional de ligao entre o

    setor exportador e o industrial. A envergadura de seu impacto e o fato de associar-se, em uma

    mesma conjuntura, a outras medidas governamentais com propsitos semelhantes, trazem consigo a

    possibilidade de ser interpretado no apenas como uma medida de estabilizao decorrente da

  • 19

    administrao do balano de pagamentos sob a imposio da crise, mas tambm como uma medida

    que contribuiu para o processo emergente de industrializao. Neste sentido, a intencionalidade

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