a exaustão das cidades _ rogério proença leite

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A EXAUSTO DAS CIDADES Antienobrecimento e intervenes urbanas em cidades brasileiras e portuguesas* Rogerio Proena Leite

IntroduoAs razes de uma anlise comparativa entre Brasil e Portugal, nomeadamente no que se refere s intervenes urbanas em cidades histricas, tm um duplo valor heurstico para os estudos urbanos contemporneos. Primeiro, por permitir cotejar um aspecto tcito do mtodo comparativo, qual seja, o de vericar as semelhanas e as dessemelhanas* Uma primeira verso desse artigo, resultado de pesquisa realizada com bolsa do CNPq, foi apresentada na Mesa Redonda Vises de Cidade: percursos tericos e dinmicas de pesquisa, no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia da SBS, 2009; mesa coordenada por Lucia Bogus e com a participao de Carlos Fortuna, Brasilmar Numes e Irlys Barreira. Gostaria de agradecer s excelentes criticas dos pareceristas da RBCS, cujas sugestes foram todas incorporadas ao texto.

Artigo recebido em maio/2009 Aprovado em fevereiro/2010

de experincias que foram relativamente similares em seus ns pretendidos, mas que resultaram em prticas de interveno e usos singulares do espao em cada caso. Segundo, por possibilitar avanar no renamento dos marcos conceituais que hoje se denomina de gentrication (enobrecimento). A reexo aqui proposta tem como referentes empricos as experincias de interveno urbana nas cidades brasileiras de Recife e Salvador, e nas cidades portuguesas de vora e Porto. Naturalmente muitos outros casos no Brasil e em Portugal poderiam ser tomados como objeto de estudo, a exemplo dos casos de Fortaleza, Belm e do Maranho, no Brasil; e de Lisboa, Sintra e Coimbra, em Portugal. A escolha dessas cidades justica-se por uma razo prtica e outra tcnica. A razo prtica decorre do necessrio recorte da pesquisa que ora desenvolvo, uma vez que o leque de experincias semelhantes no Brasil tem se alargado muito. A razo tcnica justica-se pelo foco metoRBCS Vol. 25 n 72 fevereiro/2010

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REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N 72ao analisar como o termo retm certa polissemia a partir dos diferentes autores que o utilizam. Desde o seu primeiro enunciado, em 1964, pela sociloga britnica Ruth Glass em London: aspects of change, o termo tem sido usado para designar diferentes formas de interveno urbana, que variam dos processos de regenerao, reabilitao ou revitalizao de reas ou stios patrimoniais de alto valor histrico sejam eles residenciais ou no s prticas contemporneas de reestruturao urbana em larga escala que criam reas enobrecidas, sejam para abrigar empresas multinacionais nos chamados megaedifcios inteligentes, sejam para erguer condomnios residenciais de luxo para as classes mdias e altas (Smith, 1996; Less et al., 2008). H muitas razes para o interesse crescente acerca dos estudos sobre os processos de enobrecimento urbano, como ressalta Loretta Less, Tom Slater e Elvin Wily (2008), a partir dos estudos de Cris Hamnett e de Brian Berry e Larry Bourne. A lista dos diferentes interesses acadmicos pelo fenmeno no chega a surpreender, mas curioso como eles destoam em seus signicados, que variam do entendimento de que as prticas de enobrecimento so uma expresso do neoliberalismo no urbanismo e do entrelaamento dos processos de globalizao; idia de que seriam formas particulares de reinveno dos recursos simblicos das cidades no contexto contemporneo Em todo caso, tais processos so considerados importantes aportes tericos sobre polticas urbanas, que se conguram como campo de batalha disciplinar para a geograa, a sociologia e a arquitetura (Less et al., 2008). Em outra perspectiva, as prticas de enobrecimento ganham relevo por serem consideradas expresses ps-modernas do planejamento urbano contemporneo. Autores como Harvey (1992), Zukin (1995), Featherstone (1995) e Jameson (1997) tm apostado nessa hiptese, amparados em certas caractersticas estticas e funcionais predominantes nesses processos, tais como forte apelo visual, reinterpretaes justapostas de estilos arquitetnicos, nfase na monumentalidade e na perspectiva mercadolgica no trato do patrimnio histrico. Resguardadas as diferenas que marcam os distintos tipos de enobrecimento urbano, pode-se dizer que eles consistem em um tipo especco de

dolgico adotado, voltado a estudar casos que tm sido, com razovel consenso pelos estudiosos do tema, considerados paradigmticos dos processos de enobrecimento. Gostaria tambm de esclarecer que no objetivo deste trabalho realizar um amplo estudo comparado de casos. Ao contrrio, a inteno proposta discutir mais as caractersticas dos processos de interveno do que os seus produtos em si. Dessa feita, os casos aqui utilizados servem como rebatimento emprico de uma reexo que venho tentando sistematizar acerca dos processos contemporneos de enobrecimento urbano, sobretudo no que se refere s prticas de consumo cultural do patrimnio histrico e formao dos espaos pblicos em suas interfaces com os usos e contra-usos desses espaos enobrecidos (Leite, 2007). "gentricados" A formao das paisagens espetacularizadas, ou para usar a expresso de Sharon Zukin (1995), as paisagens de poder, ganha contornos cenogrcos em decorrncia de alguns fatores esttico-funcionais e polticos, os quais constituem os aspectos centrais que gostaria aqui de analisar comparativamente. Dessa forma, pretendo neste artigo abordar duas caractersticas que me parecem centrais e recorrentes nos processos de enobrecimento: [1] a espetacularizao da cultura; [2] a formao de socioespacialidades e a construo de um espao pblico fragmentado, marcadamente multipolarizado pelo que chamei de contra-usos (Leite, 2007). Pretendo argumentar que a conuncia desses dois fatores, quando reincidentes, pode contribuir para fazer desses espaos lugares de disputas prticas e simblicas que resultam numa espcie de contrarevanche da cidade, que esvazia as prticas interativas e desertica os espaos antes enobrecidos.

Paisagens espetacularizadasNo demais iniciar sublinhando que esses processos de enobrecimento esto marcados por muitas controvrsias conceituais. Embora com vrias dcadas de uso, o termo ainda relativamente difuso e se presta a explicaes acerca de situaes empricas muito distintas, que no raramente causam o incmodo ao qual se refere Silvana Rubino (2003),

A EXAUSTO DAS CIDADESinterveno urbana que altera a paisagem urbana por meio da acentuao ou da transformao arquitetnica com forte apelo visual, adequando a nova paisagem s demandas de valorizao imobiliria, de segurana, ordenamento e limpeza urbana voltadas ao uso ou reapropriao por parte das classes mdias e altas, que resulta em espaos com forte inexo segregacionista mediante demarcaes socioespaciais que fomentam a fragmentao do espao em diferentes lugares (Leite, 2009). Quando os espaos so stios ou centros histricos, os processos de enobrecimento agregam outras caractersticas, a exemplo do reforo simblico de alguma idia de pertencimento ao lugar ainda que difusa , por meio da retradicionalizao da cultura local; ao mesmo tempo que distendem as possibilidades de visitao e interao com esses espaos histricos, ao promoverem a destradicionalizao do patrimnio (Fortuna, 1997), a espetacularizao da cultura e sua insero na cultura de consumo (Featherstone, 1995). Outro aspecto central nesses processos de enobrecimento a pretenso, ao menos em nvel discursivo, de reativar aquilo que os urbanistas costumam chamar de espao pblico. Embora para as cincias sociais esse conceito retenha uma maior complexidade terica (Leite, 2002), uma vez que o espao pblico como categoria analtica da vida urbana tem como elementos constitutivos os conitos e as diferentes demandas da cultura urbana contempornea, os gestores urbanos o entendem como um espao aberto de convivncia, no raramente confundindo-o com logradouro pblico. A despeito dessa diferenciao conceitual, parte substantiva dos projetos de enobrecimento refere-se s possibilidades de retorno ao centro das cidades e a uma vida pblica de caladas seguras e vitrines lustrosas, quase numa espcie de nostalgia de uma belle poque perdida. O modelo continua a reproduzir tardiamente o princpio da higienizao social da Paris de Haussmann, agora de forma alterada e adequada cultura de consumo da sociedade contempornea. Parte dos estudos de casos sobre diferentes experincias de enobrecimento no Brasil e em Portugal (Fortuna, 1997; Pinho, 1997; Scocuglia, 2004; Ferreira, 2005; Rubino, 2003; Botelho, 2006; Peixoto, 2006; Tamaso, 2007; Barreira, 2007; Leite,

752007; Bezerra, 2008) sinaliza para convergncias das caractersticas acima destacadas. Se as aproximaes observveis nesses estudos no permitem ainda generalizaes conceituais robustas, fornecem indicadores para um incio de reexo comparada acerca das ressonncias dos processos de enobrecimento em diferentes contextos urbanos. Os quatro casos que tomo aqui como referentes empricos para a inexo analtica proposta reforam certas caractersticas reincidentes nesses processos, ao mesmo tempo em que permitem observar variaes e dessemelhanas tpicas e singulares dos diferentes casos. Recife e Salvador, embora tivessem residncias perifricas poca dos seus processos de enobrecimento, as prticas que ali predominavam foram tipicamente o que se pode chamar de enobrecimento de visitao, como sugere a pesquisadora francesa Bidou-Zachariasen (2006). Esse tipo de interveno tem forte apelo turstico e nenhuma interveno voltada a recuperar moradias da populao de baixa renda que residualmente habitava aqueles stios. O aspecto residencial dessa modalidade ocorre pela criao de hotis de luxo, onde antes eram casares em franca deteriorao fsica. Essa modalidade de enobrecimento, que predominante no Brasil, reete a realidade de decadncia dos centros histricos brasileiros e do movimento migratrio residencial para reas mais afastadas da cidade. As cidades portuguesas do Porto e vora enquadram-se em outro tipo de enobrecimento, muito tpico das cidades histricas europias, que se pode denominar enobrecimento residencial. Embora os bairros porturios da rea da cidade do Porto, sobretudo a rea Ribeira-Barredo, igualmente a Recife e Salvador, tivessem uma situao perifrica de residncias das camadas mais baixas, havia uma populao residente mais densa do que nos casos brasileiros. Em vora, a situao era mais caracteristicamente residencial, uma vez que o ncleo histrico da cidade mantinha uma populao residente relativamente estvel, ainda que predominantemente idosa.1 Essas diferenciaes entre as cidades aqui elencadas, contudo, no so excludentes. A rigor, as quatro cidades mantinham caractersticas residenciais em diferentes nveis de adensamento e igualmente

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REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N 72servios e da promoo de uma oferta extensiva de cultura, lazer e entretenimento para as classes mdias e altas. Em geral, a situao que antecede essas intervenes caracterizada por um declnio abrangente do stio, tanto em seu aspecto fsico (deteriorao das edicaes, do mobilirio urbano e da infra-estrutura sanitria, entre outros aspectos), como em seu aspecto simblico (decaimento da importncia do stio em relao a outras reas da cidade; perda de centralidade e crescente representao social negativa, muitas vezes relacionada com a insegurana e o carter inspito e marginal do local). A despeito desse diagnstico problemtico, essas reas mantm forte signicado para a histria da cidade, exatamente por terem sido locais de grande visibilidade e importncia econmica, poltica e cultural. O bairro do Recife o marco zero da cidade e foi o ncleo original que deu origem ao primeiro plano urbanstico de Recife, por intermdio do holands Maurcio de Nassau, e que, aps a retomada do domnio portugus, se constituiu em um dos mais importantes centros nanceiros da colnia, em virtude de seu porto e da economia aucareira. No incio do sculo XX, foi agregado um considervel valor urbanstico e arquitetnico, por ter o bairro passado pela mais ampla e polmica reforma brasileira ao estilo da belle poque da Paris de Haussmann, que o reconstruiu no estilo ecltico (Leite, 2007). Mesmo em sua fase mais decadente, o bairro do Recife manteve no imaginrio local a sua importncia histrica, por ter sido o local onde a cidade se originou. Mais do que isso, para o ufanismo recifense, ali mais do que o centro do pas. Na ltima interveno no bairro, foi inscrita no cho do Marco Zero a signicativa frase: eu vi o mundo...ele comeava no Recife.2 O centro Histrico de Salvador foi, por sua vez, um local de grande importncia para o comrcio colonial-escravista na cidade fundada em 1549 por Tom de Sousa, o primeiro governador-geral do Brasil. Regio predominantemente residencial da cidade, teve destaque inclusive pela sua posio elevada em relao parte baixa da cidade, reforando as necessidades de defesa da rea. O Pelourinho, situado no centro dessa parte alta da cidade,

foram objeto de intervenes voltadas transformao do patrimnio histrico em mercadoria para o consumo cultural. Sobre esse aspecto, uma das diferenas entre os casos o tipo de resultado pretendido em relao permanncia ou no dos moradores antigos. Em outras palavras, incorporaram-se em seus projetos de interveno aes voltadas recuperao das condies residenciais de permanncia dos moradores. Este um aspecto importante para a anlise dos processos de enobrecimento por duas razes: pelo atribudo carter segregacionista dessa forma de interveno urbana que em muitos casos inviabiliza a permanncia dos moradores antigos e pela inteno de alterar os usos dos espaos para adequ-los s demandas do mercado. Naturalmente no estou aqui a sugerir que o urbanismo em geral refm dos interesses do mercado, mas to-somente pretendo assinalar um tipo especico de poltica urbana que tem se proliferado em todo o mundo, voltada a uma acentuada perspectiva mercadolgica no trato das cidades e dos patrimnios. Poderamos destacar, grosso modo, que as principais etapas pelas quais passam esses centros histricos se iniciam com a plena existncia do centro como estrutura funcional da vida urbana que agrega as primeiras manifestaes de uma cultura urbana. Em um segundo momento, por vrios fatores relacionados com a crescente urbanizao, eles perdem sua importncia socioeconmica, sendo estigmatizados e desvalorizados socialmente. Numa etapa seguinte, reclamam e adquirem identidade patrimonial, reinserindo-se na pauta das polticas urbanas. nesse momento que ocorrem as intervenes que no raramente resultam em prticas de enobrecimento, mediante a reinveno do patrimnio e a construo de uma nova imagem da cidade. Os centros ou stios histricos passam a ter seu atribudo valor patrimonial e transformamse em foco nodal de intensivas polticas urbanas e macios investimentos pblicos e privados (Leite e Peixoto, 2009).

A espetacularizao da culturaO enobrecimento por via da requalicao de stios histricos se d mediante a instalao de

A EXAUSTO DAS CIDADEStornou-se, no primeiro quartel do sculo XX, uma regio de grande sociabilidade urbana, para onde convergiam as principais prticas comerciais locais. De modo semelhante ao Recife, a regio do Pelourinho, mesmo deteriorada por volta das primeiras dcadas da segunda metade do sculo XX, manteve sua reserva de importncia simblica, tanto pelo seu patrimnio arquitetnico como por sua centralidade histrica. No demais lembrar que, na passagem das comemoraes dos 500 anos do descobrimento do pas, foi veiculada uma propaganda em rede nacional de televiso, tendo ao fundo imagens do Pelourinho j revitalizado, que dizia: Bahia: o Brasil nasceu aqui. A cidade do Porto, em Portugal, foi igualmente um centro estratgico na economia de toda a regio do Douro, em virtude da intensa vida social e comercial do local. Como se costuma dizer em Portugal, Lisboa diverte-se, o Porto trabalha, Coimbra estuda, Braga reza. A atribuio de valor cidade com base nas atividades comerciais antiga e se relaciona com a prpria fundao da cidade, considerada pelos seus patrcios o bero da nao portuguesa. Essa representao decorre de uma espcie de mito da fundao, no qual atribuda cidade a origem do nome do pas, em funo da independncia do Condado Portucalense, que teria originado a palavra Portugal, pelas expresses toponmicas porto e cale (Fortuna e Silva, 2002). Considerada a Manchester portuguesa, Porto reteve esse imaginrio de uma cidade ativa, liberal e progressista. Mesmo no contexto de declnio dos usos de seus bairros histricos, sobretudo a partir dos anos de 1960 com uma considervel reduo de sua populao residente,3 o Porto manteve sua centralidade em decorrncia da forte inexo histrica que permeia a imagem da cidade. vora , possivelmente, uma das mais antigas cidades histricas de Portugal. Sua origem est supostamente ligada romanizao da Provncia da Lusitnia, cujo processo a teria elevado condio de municipium Ebora Liberalitas Julia pelo Imperador Jlio Csar, quando da explorao da pennsula ibrica (Cmera Municipal de vora, 1997). Com vestgios arqueolgicos romanos e um rico conjunto arquitetnico, vora, com seus palcios e igrejas, foi no medievo uma importante cidadela murada,

77residncia de nobres e reis de Portugal. Seu rico acervo contm exemplares da arte e arquitetura renascentista, islmica, gtica, manuelina, barroca e neoclssica. Situada na regio do Alentejo, paira sobre vora a idia que teria sido a capital do pas (Cmara Municipal de vora, 1997). O contexto cotidiano da cidade antes das recentes intervenes era marcado por uma imagem de cidade estagnada, pequena e tradicionalista, com a predominncia de pequenas famlias e grupos de inuncia (Fortuna, 1997). Nos anos de 1980, exatamente no contexto em que ocorre a acentuao dos processos de patrimonializao e enobrecimento em vrias cidades do mundo, inicia-se em vora as intervenes que iriam transform-la em plo atrativo de lazer e turismo, mediante o que Carlos Fortuna (1997) denominou destradicionalizao da imagem da cidade. Essas transformaes, que culminaram, em 1986, com a elevao de vora categoria de Patrimnio Mundial pela Unesco, representaram, na perspectiva analtica de Paulo Peixoto (1997), uma pioneira experincia, em Portugal, do uso dos recursos patrimoniais para a insero global da cidade. A destradicionalizao a que se refere Fortuna consiste em um estratgico mecanismo do planejamento urbano contemporneo, voltado revalorizao da cultura e do patrimnio com vistas adequao das cidades ao contexto de concorrncia intercidades: [...] a destradicionalizao um processo social pelo qual as cidades e as sociedades se modernizam, ao sujeitar anteriores valores, signicados e aces a uma nova lgica interpretativa da interveno. Essa destradicionalizao movida pela necessidade de revalorizar os seus recursos, reais ou potenciais, como forma de se reposicionar no mercado da concorrncia inter-cidades, cada vez mais competitivo (Fortuna, 1997, p. 234). Esse processo, portanto, no signica o abandono da tradio, mas sua reelaborao luz das demandas mercadolgicas que permeiam as intervenes urbanas contemporneas, sejam elas do tipo gentrication ou no. Nos casos em que as intervenes podem ser consideradas enobrecedoras,

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REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N 72rem almejado os mesmo resultados, qual seja, a destradicionalizao dos seus patrimnios para a insero dos seus respectivos centros histricos na concorrncia intercidades, o discurso brasileiro foi mais abertamente voltado criao de espaos de espetculo urbano, talvez porque a dimenso residencial do Recife e de Salvador era menos acentuada. Por outro lado, a preocupao portuguesa em no criar meros cenrios no evitou que a destradicionalizao ocorresse no Porto e em vora, promovendo inclusive a mesma espetacularizao da cultura dos casos brasileiros. "caricatura" da cultura + monumentalizao O que entendo por espetacularizao daarquitetnica cul tura a acentuao ou a criao de traos culturaisc o n e que objetivam caracterizar a singularidade de um espao urbano por um forte apelo visual e prticas sociais momentneas, com vistas apreenso consumvel da histria e da cultura na forma de uma mercadoria. A idia de espetacularizao da cultura sempre esteve presente, nas mais diversas formas, nos processos de interveno urbana. A monumentalidade arquitetnica talvez seja a mais conhecida delas, e tem sido a parte mais notvel e constitutiva desse discurso espetacular que certas reformas intentam imprimir, em busca de maior visibilidade, distino e apelo esttico. A perspectiva que alia monumentalidade e visibilidade no nova: tem estado presente h muito no urbanismo, a exemplo da conhecida reforma de Haussmann, em Paris, e das intervenes de Otto Wagner, na Viena do Ringstrasse (Schorske, 1990). Contudo, a monumentalidade arquitetnica e urbanstica no a nica forma de espetacularizao da cultura. No Brasil, o forte apelo da suposta e discutvel autenticidade da cultura popular tem sido um dos mais poderosos recursos para a retradicionalizao desses espaos enobrecidos, em uma perspectiva espetacular e mercadolgica da cultura. O processo bastante conhecido: como j pude observar anteriormente quando estudei o Bairro do Recife (Leite, 2007), a ao consiste em fomentar a apresentao de manifestaes da cultura local, como forma de ativar certos parmetros de legitimidade cultural desses espaos. Entretanto, muitas vezes so manifestaes que nada tm a ver com a localidade e que so apresentadas como tpicas,

essa destradicionalizao se radicaliza ao seu ponto mximo, com a possibilidade de uma completa alterao dos sentidos atribudos ao patrimnio, sendo inclusive acrescidos valores antes inexistentes. E, em decorrncia disso, permitem alteraes profundas nos usos e nos usurios, atingindo, sobretudo, antigos moradores que, em geral, so alvos de uma almejada substituio por outros mais adequados aos novos usos pretendidos pela interveno. Em certos casos, essa alterao ganha contornos drsticos com a expulso de antigos usurios, congurando o que Certeau chamou de curetagem social (Certeau, 1994). Noutras situaes, pode ocorrer a busca por moradores e usurios com novos pers, sem descartar, contudo, aqueles j existentes. Esse o caso em menor grau do Porto, que manteve parte dos seus moradores usuais, e, em maior grau, de vora, que investe at hoje na atrao de moradores mais jovens, em virtude da alta idade da populao residente. Deve-se, nesse ponto, sublinhar uma diferena signicativa entre os casos brasileiros e portugueses, que pode ser considerado em atenuante conceitual para o enquadramento das experincias portuguesas no tipo de interveno enobrecedora. Dada as caractersticas residenciais do Porto e de vora, o tipo de enobrecimento que ali pode ter ocorrido apresentou uma preocupao menos incisiva com a substituio de moradores, como foram os casos do Recife e de Salvador. A propsito, o Estudo sobre o Despovoamento dos Centros Histricos da Rede Atlante, projeto que visa melhorar as cidades Atlnticas Patrimnio Mundial da Unesco, do qual fazem parte Porto e vora, tem em nota introdutria uma importante observao em defesa da habitabilidade dos centros histricos: A teatralizao do espao urbano, onde o patrimnio serve unicamente de cenrio para eventos culturais ou para enquadrar as fotograas dos turistas, no aceite pela rede das cidades que trabalham em conjunto uma srie de temas que pretendem contribuir para a revitalizao dos centros histricos (Atlante, 2005). No deixa de ser interessante observar que, a despeito dos processos brasileiros e portugueses te-

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a m de criar esses possveis lastros de identidade. nitria. Velhos casares foram transformados em O problema que, de fato, trata-se to-somente hotis, lojas de vinho e artesanato, pubs e sosticade uma espetacularizao retradicionalizada, na dos restaurantes. As rotinas cotidianas mudaram: medida em que o objetivo criar uma identidade intensicada a presena de turistas, os prprios tematizada (Costa, 2002) para estimular consumihabitantes das cidades passaram a freqentar esses dores. O objetivo , em ltima anlise, atrair novos espaos com mais regularidade, aps terem sido usurios, tendo como referncia as possibilidades transformados em locais de encontro, de festas e de consumo do espao na forma do acesso a bares e restaurantes ou do consumo simblico dessas manifestaes artstico-culturais. Dessa feita, a noo de espetacularizao da ressignicao dos valores culturais e do patrimnio - exagero visual cultura aqui sugerida derivativa do conceito de destradicionalizao, pelo fato de que supe uma "caricatura" do espao urbano e das pra'ticas sociais. ressignicao dos valores culturais e do patrimnio, mas a extrapola na direo de uma exacerbao visual e cenogrca do espao urbano e das prticas sociais voltadas ao consumo simblico. As principais ressonncias da espetacularizao da cultura nos processos de enobrecimento, sejam eles residenciais ou no, permanecem numa forte demarcao socioespacial da vida pblica, uma vez que os usurios so espacialmente orientados em suas interaes cotidianas, em funo dos usos desejados/pretendidos para aqueles espaos intervindos. No raramente, essa demarcao incide sobre a forma de estar nesses espaos, cujas sociabilidades pblicas esto fortemente marcadas pelas possibilidades ou impossibilidades de interao, aspecto sobre o qual me deterei no tpico seguinte. A espetacularizao da cultura nas quatro cidades se deu em moldes semelhantes em todas a partir do nal dos anos de 1980, perodo em que comeou a se multiplicar esse tipo de interveno em muitas cidades americanas e europias. A busca da monumentalidade visual reforou os aspectos cenogrcos dos espaos mediante a restaurao das edicaes com forte nfase nas fachadas e nos efeitos de luz ou mediante intensa publicidade sobre as potencialidades tursticas dos locais. O incremento das atividades artstico-culturais reforou a ambientao voltada s atividades de lazer, consumo e entretenimento. Aps as intervenes e as aes de restauro, as reas consideradas inspitas e deterioradas dessas cidades ganharam novos mobilirios urbanos, O espao pblico como espetculo urbano. nova iluminao e algumas melhorias na rede saRua do Bom Jesus. Foto do autor, 1999.

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REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N 72cados para outras reas da cidade, e o contraste visvel ao transeunte entre os espaos intervindos e as reas do entorno que no sofreram interveno. Nos casos citados, o acesso aos espaos enobrecidos se d necessariamente por ruas e praas que caram fora do permetro revitalizado, anunciando a face real da cidade, com as edicaes deterioradas em estado natural de envelhecimento, com as ruas pouco iluminadas e sem recursos adicionais de vigilncia humana e eletrnica. Esse aspecto refora o carter cenogrco para quem chega a p a essas localidades. Os itinerrios urbanos que orientam os deslocamentos so anunciados de um tipo de planejamento estratgico que est mais preocupado com a imagem a ser exposta do que com a integrao dos seus moradores renovao do patrimnio edicado (Peixoto, 2006). O caso de vora tem uma variante em relao s demais cidades em foco. As intervenes ocorreram especicamente no centro histrico, que se constitui na pequena parte murada da cidade, fato que atenuou os contrastes entre reas revitalizadas e as no-intervindas. Assim, ao se percorrer o centro histrico de vora tem-se a impresso de uma interveno mais completa e cuidadosa. Ademais, a descoberta de vestgios arqueolgicos romanos, a exemplo da casa de banhos no interior onde funciona a Cmara Municipal de vora, certamente contribuiu para uma interveno restauradora mais focada em aspectos histricos. Contudo, vora no evitou a espetacularizao da sua cultura. Foram redescobertas suas potencialidades atrativas, o que a tornou um importante ponto da rota do turismo histrico da Europa. Com nfase na sua tpica gastronomia alentenjana e singular conjunto arquitetnico de vrios sculos, vora se reinventou como uma das mais importantes cidades histricas da Europa, fato reforado pelo reconhecimento da Unesco de seu estatuto de patrimnio da humanidade (Fortuna, 1997; Peixoto, 1997). Em todos os casos referidos, houve uma considervel reanimao do comrcio local, a insero das cidades nos uxos tursticos nacionais e internacionais, a reativao dos usos do espao e das sociabilidades urbanas, o realce das caractersticas monumentais do patrimnio, associado ao forte apelo visual dos conjuntos arquitetnicos, e a reva-

de novas sociabilidades urbanas. O bairro do Recife transformou-se numa importante centralidade do ufanismo pernambucano, convergindo para o seu velho centro atividades de cunho cultural e poltico, com direito a homenagens a Maurcio de Nassau (outrora, um invasor) e reativao da memria de um bairro que fora holands (Leite, 2007). At hoje, o bairro se presta a megaeventos artsticos, ainda que suas atividades tenham se arrefecido consideravelmente. O centro histrico de Salvador sofreu uma discutida interveno, revelia dos rgos ociais de preservao, que alterou rpida e supercialmente as fachadas do casario, pintados com cores berrantes. Com forte apelo publicitrio, o centro foi transformado em local de referncia da baianidade, numa carnavalizao consumvel de uma negritude feliz e harmoniosa, bem distinta da dura realidade da maioria da populao negra da periferia de Salvador. O Pelourinho, ou simplesmente Pel, como conhecido, transformou-se num local de convergncia simblica de uma idia de Bahia, fortemente marcada por uma imagem turstica (Fernandes et al., 1995; Pinho, 1997). Com o projeto Porto Feliz, a cidade do Porto reverteu a imagem decadente da Ribeira e seu entorno, criando um espao de encontros festivos e animao cultural, imprimindo forte visibilidade antiga rea porturia. Sobretudo a partir da criao do Comissariado para a Renovao Urbana da rea da Ribeira-Barredo Cruarb, as intervenes ganharam corpo alargando-se para a outra margem do Rio Douro e atingindo parte da rea porturia de Vila Nova de Gaia. As duas cidades criaram suas prprias dinmicas competitivas, mas ao nal uma se beneciou da revitalizao da outra. Como uma imagem a se reetir pelas guas do rio, criou-se uma espcie de Miraporto em contraponto freguesia Miragaia, bairro famoso da cidade do Porto. Uma importante nota se faz necessria nesse momento. Os processos de interveno no Recife, em Salvador, no Porto e na Vila Nova de Gaia apresentam duas conhecidas caractersticas dos processos de enobrecimento: o realojamento de antigos moradores que, sob o argumento da iminncia de desabamento de algumas edicaes, foram deslo-

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A cidade como mercadoria: Centro Histrico de Salvador. Foto do autor, 2006.

Paisagem cenogrca: a Ribeira do Porto. Foto do autor, 2007.

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A histria como espetculo. Acima, centro de vora; abaixo, Templo de Diana, resqucios do Municipium Ebora Liberalitas Julia.

A EXAUSTO DAS CIDADESlorizao das particularidades histricas, revelando casos tpicos de destradicionalizao e espetacularizao da cultura e do patrimnio.

83Uma concluso parece bvia ao se comparar esses processos: independentemente dos contextos e das variaes, o tipo de interveno voltada destradicionalizao e espetacularizao da cultura e do patrimnio restringe-se s possibilidades interativas, em decorrncia do menor ou maior grau de socioespacialidades criadas. O problema que o modelo, na forma como concebido, no escapa da armadilha que ele prprio criou: para criar nichos de consumo, precisa selecionar usurios; ao inibir certos usos que seriam contrrios ao pretendido para esses espaos, fragiliza a pretendida harmonia urbana ao gerar reaes diversas que muitas vezes ganham a conotao do que sugeri ser uma ttica simblica de contestao e afrontamento, na forma denominada contra-usos (Leite, 2007). No cabe aqui propor nenhum receiturio para solues do problema, mas parece claro que intervenes enobrecedoras, em suas formas mais tpicas, esbarram em uma inviabilidade tcita: os diferentes interesses e motivaes sociais para os processos interativos no cabem em um modelo urbanstico que almeja um nico uso predominante. Em alguns casos, a soluo encontrada para minimizar os efeitos dos contra-usos foi demarcar ainda mais radicalmente os espaos intervindos, criando diferentes zonas de animao cultural. O caso do Recife ilustra bem essa igualmente equivocada soluo. No auge do seu processo, a prefeitura municipal criou diferentes plos de animao em zonas distintas do antigo bairro, como forma de atender os diferentes pblicos consumidores existentes. Em um primeiro momento, parecia que a idia daria certo, uma vez que reforou as distncias fronteirias entre os diferentes lugares do bairro. Mas as zonas de contato permaneceram uidas, as fronteiras negociadas foram se desfazendo e logo se viam pontos de tenso, na medida em que usos de uma rea acabavam se transformando em contra-usos em outra. Essas permeabilidades urbanas so inevitveis nesses processos. Em Salvador, estudo recente demonstrou como a pequena Favela da Rocinha, incrustada no Centro Histrico da cidade, adentrava o espao enobrecido do Pelourinho, da mesma forma que este ltimo resvalava nas sociabilidades da favela (Arajo, 2007). Situao semelhante podia ser observada no Recife, com os conitos e as

SocioespacialidadesUma das principais ressonncias negativas das intervenes urbanas enobrecedoras e que afeta sua sustentabilidade inerente sua prpria estratgia urbanstica: a criao de uma forte demarcao socioespacial dos usos do espao. um dilema insolvel. Para reativar os usos do local e restabelecer nichos de consumo diferenciado para atrair consumidores, essas intervenes apostam na requalicao dos espaos, criando fronteiras relativamente bem demarcadas entre diferentes usurios. No raramente, excluindo parte signicativa da populao local, impossibilitada de interagir nesses espaos, em virtude da forte inexo mercadolgica que os elitiza. Em conseqncia, so criadas pelos no-usurios zonas de instabilidade que circundam esses espaos, ou neles adentram, instituindo pontos de tenso pela disputa prtica e simblica da cidade. Penso que esse fato decorre tambm de outras razes, entre elas a ultrapassada idia de que o patrimnio cultural capaz de forjar um nico sentido de pertencimento a toda uma populao, servindo de fator de coeso social. Estudos consistentes sobre os signicados polissmicos do patrimnio (Canclini, 1997; Arantes, 1997; Fortuna, 1998) j demonstraram o grau de complexidade simblica que um patrimnio pode ter para diferentes grupos sociais. Diferentes formas de apropriao ocorrem quando esses espaos so intervindos, de acordo com a forma com que os distintos usurios se vem ali representados. Ademais, uma forma de conito latente entre moradores e usurios visitantes se estabelece quando ocorrem essas intervenes, razo pela qual dicilmente esse tipo de interveno se sustenta por muito tempo. Seja porque os moradores antigos, ainda que residuais, no se vem beneciados pelas intervenes (casos do Recife, de Salvador e do Porto), seja porque a presena dos novos usurios altera as rotinas cotidianas, imprimindo certo dinamismo nem sempre desejado por parte da populao local (caso de vora).

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permeabilidades entre a Favela do Rato e a rea enobrecida (Souza, 2007) ou no processo de revitalizao da Praia de Iracema, com a favela Poo da Draga (Sousa, 2007; Bezerra, 2008). O Porto no tem favelas no sentido brasileiro, mas os antigos moradores da Ribeira que permaneceram em suas residncias no pareciam estar muito contentes com o cenrio em que o bairro se transformou. Quando das minhas pesquisas de campo no Porto, presenciei a inslita cena de uma moradora reclamar em voz alta do barulho e da presena incmoda de tantos visitantes a rodear sua casa. Obviamente que nem todas as aes de animao cultural serviram para alimentar essas desmarcaes sociosimblicas da vida pblica. Dois eventos ilustram iniciativas menos segregadoras que contriburam para reativar um certo esprito de convivncia pblica. Em vora, o evento Viva a Rua! contribuiu para alterar a paisagem cultural da cidade, promovendo, segundo Carlos Fortuna (1997), uma certa democratizao do espao aberto, numa cidade to marcada pela convivncia nas esferas da domesticidade. No Recife, tambm existiu algo semelhante, denominado Domingo na Rua, evento que promovia certa convivncia pblica de diferentes camadas sociais, sem demarcaes sociais muito rgidas. Contudo, essas manifestaes so excees regra dos processos de gentrication, caracterizadamente voltados a demarcaes socioespaciais mais denidas e excludentes. Quando me rero s (im)possibilidades ou restries interao nos espaos espetacularizados, penso, sobretudo, nos constrangimentos sociais advindos dos processos de enobrecimento. A sosticao de certos espaos, com restaurantes e hotis de luxo, a adequao extensiva dos espaos para turistas e a pouca ateno dada aos moradores e usurios locais parecem contribuir signicativamente para a criao de pontos de tenso que, se permanecerem de modo reincidente, culminam numa certa congurao espacial conitante, que pode ser uma varivel importante para se compreender o declnio subseqente que esses espaos enobrecidos acabam por sofrer. Esse aspecto remete diretamente o debate ao entendimento sobre os processos construtivos dos espaos pblicos nesses contextos enobrecidos.

Antigas residncias que permaneceram na Ribeira do Porto. Foto do autor, 2007.

Creio ser ainda oportuno diferenciar o que para as cincias sociais se constitui um espao pblico. Ao contrrio das concepes correntes no urbanismo, o conceito de espao pblico aqui operado no o confunde com o espao urbano de natureza pblica. Como j pude desenvolver em trabalho anterior (Leite, 2007), a noo aqui utilizada se refere a uma categoria analtica da sociologia que o v como um espao interativo construdo a partir das interfaces entre espao e ao. Embora se constitua no espao urbano, possvel entender o espao pblico como algo que ultrapassa a rua; como um conjunto de prticas que se estruturam num certo lugar. Como espao social, um espao pblico no existe a priori apenas como rua (que, ao contrrio, sempre rua, vazia ou no), mas se estrutura pela presena de aes que lhe atribuem sentidos. Dessa feita, retomo uma denio proposta anteriormente, com a qual entendo o espao pblico como uma categoria sociolgica constituda pelas prticas que atribuem sentidos diferenciados e estruturam dspares lugares, cujos usos das demarcaes fsicas e simblicas no espao os qualicam e lhes atribuem diferentes e assimtricos sentidos de pertencimento, orientando aes sociais e sendo por elas delimitados reexivamente. Como espao de poder, o espao pblico locus de pertencimentos, com possibilidades diversas de vnculos e atribuies de signicados; e no est obviamente imune s assimetrias do poder e das desigualdades sociais que perpassam sua construo social.

A EXAUSTO DAS CIDADESA questo que se problematiza a partir dessa categoria como uma noo de espao pblico que insiste na liberal noo cvica de convivncia, tpico dos projetos de revitalizao urbana, no Brasil ou em Portugal, pode se manter em meio s disputas e dissenses que caracterizam esses espaos enobrecidos.

85cas. A espacializada e conitante cultura urbana contempornea precipita e expressa relaes de poder, tenses e disputas que caracterizam a vida social, qualicando e diferenciando certos espaos da vida urbana cotidiana como espaos pblicos. Seria normativamente vlido e desejvel que as pessoas e os grupos se dispusessem a conviver com o outro, respeitando a diferena. Mas nem sempre assim, e nem sempre pode ser assim, razo pela qual as dissenses so to insurgentes, parecendo que esto a solapar a vida pblica na cidade contempornea. A proliferao da diferena, contudo, constitutiva da vida social (Deleuze, 2006), e creio que ainda prefervel a possibilidade de desentendimento que assegura um tipo de espao pblico na contemporaneidade impossibilidade do encontro com o estranho (Sennett, 1976). Como j pude sugerir em outra ocasio (Leite, 2009), os diferentes modos da vida na cultura contempornea nem sempre so de fato reconciliveis. Porm, persistem itinerrios sociais nos quais os encontros com o diferente so por vezes inevitveis ou mesmo desejados. Essa quase inevitabilidade ocorre precisamente mediante as prticas, sobretudo as do tipo tticos, que ocorrem justamente nos espaos certeaunianos, cujas zonas fronteirias permitem que surja a insinuao que perturba o cotidiano e desaa o espao disciplinar, tomando a forma de contra-usos. A desterritorializao urbana a que se refere Guattari (1985) reconhece o sentido predominantemente desordenado da cultura urbana contempornea, tal qual reconhece Certeau o carter polifrmico do andante que inscreve, nos passos pela cidade, os diferentes jogos de astcia do agir. O grau de disperso de signicados atribudos aos espaos e a multiplicidade de estilos de vida tornam voltil a rigidez dos lugares que parecem ceder presso dos espaos como lugar praticados. So essas zonas fronteirias e os conitos advindos dos lugares identitrios que contribuem para a formao dos espaos pblicos em reas enobrecidas e carregam a marca da cidade contempornea: catica, desordenada, marcada por contra-usos. Nesses espaos intervalares, muitas vezes marcados pela efemeridade, a negociao socioespacial fundamental, a violncia latente, o conito inevitvel: mas neles esto possibilidades concretas da expe-

Consideraes naisUma das importantes repercusses dessas polticas urbanas revela-se na concepo de um espao pblico ordenado, higienizado e minimizado de seus aspectos conituosos, no qual o patrimnio cada vez mais apresentado como a expresso material de uma idia pacca de espao pblico, construdo com base em uma suposta idia de passado comum e de tradies compartilhadas (Leite e Peixoto, 2009). Constatada a inevitvel fragmentao desses espaos em lugares de disputa, a questo fundamental responder em que medida um espao pblico pode ser constitudo no interstcio dos lugares que demarcam espacial e simbolicamente as diferentes identidades. Para Simmel, as possibilidades de coexistncia entre diferentes grupos somente poderiam ocorrer no espao que existe entre os lugares, porque a coexistncia se verica siempre realmente entre los dos lugares del espacio, en el que cada cual ocupa un sitio designado y que slo l llena (1986, p. 646). Quando sugiro que os entrelugares conguram e qualicam os espaos urbanos como espaos pblicos, exatamente porque so eles que se tornam locais de visibilidade, de disputas simblicas, prticas de consumo e da busca de reconhecimento pblico da diferena. Esse tipo de espao resulta de uma espcie de desentendimento (Rancire, 1996) entre os sentidos construdos pelos lugares que reetem diferentes e desiguais representaes, relaes sociais e modalidades de interao. Em decorrncia do processo de descentramento do sujeito (Hall, 2006), da fragmentao do espao urbano e das fortes assimetrias que conguram as relaes de poder na cidade, essas interaes que ocorrem em tais espaos pblicos no poderiam ser pac-

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A Ribeira do Porto vazia: cena de um domingo noite. Foto do autor, 2007.

rimentao do imprevisvel. So neles que corre a vida cotidiana e ainda persiste a rica possibilidade do encontro com o estranho na experincia urbana contempornea (Leite, 2009). No sendo isso, a alternativa que se revela pela observao emprica do estado atual desses stios histricos revitalizados um lento e inexorvel esvaziamento, numa espcie de antienobrecimento gradual pela impossibilidade de o modelo de gentrication absorver essas demandas assimtricas pelos usos do espao. A noo de antienobrecimento aqui sugerida pretende designar especicamente o processo terminal das reas enobrecidas, quando cessam suas possibilidades atrativas e funcionais. Refere-se, portanto, etapa subseqente ao enobrecimento, caracterizada pelo arrefecimento dos usos esperados pelas polticas urbanas. Etapa que se poderia chamar de fase ps-revanchista (Leite e Peixoto, 2009), que atinge o auge do contexto de patrimonializao e de suas vulnerabilidades, e encerra um desfecho inevitvel e indesejado para gestores e capital. Sugestivamente, esse ps-revanchismo sinaliza, por outro lado, uma abertura da cidade queles que no tinham espao nas polticas de enobrecimento. Contudo, o alto preo por essa curiosa e tardia incluso social a volta desses espaos a condies de esvaziamento e deteriorao crescentes. exceo dos grandes eventos, sobretudo as festas populares como o carnaval brasileiro, o bairro do Recife se esvaziou e pouco resta da efervescncia que marcou o auge do seu processo de enobreci-

mento; o Pelourinho em Salvador parece ter esgotado suas capacidades atrativas; a Ribeira do Porto mais parece um cais abandonado, quase s escuras nas noites de domingo. vora permanece em sua busca por novos moradores que assegurem e justiquem o contnuo investimento para manter a cidade, mas parece caminhar igualmente para uma indesejvel estagnao. De tudo isso possvel apreender que algo parece no estar se encaixando muito bem: ou as prticas urbansticas esto deletrias demais ao supor ser possvel criar uma cidade sem levar em conta as diferenas entre as pessoas em suas rotinas cotidianas, ou a vida urbana por denio fugidia a controles excessivos, posto que o locus fundamental do dissenso que anima a vida pblica. Descono que as duas razes tenham pertinncia. Ambas retm considervel alcance explicativo para se entender as dinmicas contraditrias da cultura urbana contempornea. Mas uma terceira hiptese comea a reclamar maior ateno, quando esses processos resultam numa espcie de retorno ao abandono inicial: por que no incluir nas polticas urbanas mecanismos que assegurem que certas edicaes envelheam com a dignidade de uma runa preservada como runa? Por que perseguir com tanta obsesso a idia de uma cidade esteticamente ordenada, higienizada e pacca, preferencialmente sem as marcas da histria incrustadas no patrimnio histrico envelhecido, quando as dinmicas sociais insistem em revelar que a cidade no passvel de

A EXAUSTO DAS CIDADESuma colonizao to incisa dos espaos pblicos (Fortuna, 2002) como pretendem esses modelos de interveno urbana? Embora no seja recomendvel, no incomum terminar uma reexo com outras tantas dvidas que as respostas anteriormente alcanadas geraram. Contudo, no estou propondo que a runa seja uma alternativa aos espaos enobrecidos: apenas estou sublinhando que os agentes, sejam eles residentes ou no, no so passivos diante dessas intervenes. Que se leve mais em conta suas aspiraes, suas vises de mundo construdas no curso da vida cotidiana, suas representaes sobre o patrimnio e os lugares simblicos por meio dos quais constroem suas mltiplas identidades. E ndo a reexo lembrando mais uma vez uma pertinente sugesto analtica que deveria anteceder a elaborao das polticas de enobrecimento: preciso pensar em pessoas utilizando e transformando os espaos em que vivem. [...] Paisagens vazias podem ser enganadoras (Arantes, 1997).

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Notas1 Em relao a vora, devemos ainda ponderar em que medida de fato poderamos denominar o processo ocorrido como enobrecimento. Certas caractersticas tpicas desses processos esto ausentes, a exemplo da substituio de moradores. Contudo, o forte apelo visual das intervenes ali realizadas, somado ao esforo de tornar o patrimnio histrico da cidade atrativo para o circuito de consumo turstico e cultural, torna o processo bastante prximo das polticas de enobrecimento. O desenho do piso, com a rosa dos ventos e a referida frase, foi concepo do artista plstico pernambucano Ccero Dias, radicado em Paris e falecido recentemente, baseado em sua prpria obra. Segundo dados da Rede Atlante (2005), entre 1940 e 2001, a populao residente na regio histrica do Porto baixou de 16% para 5% da populao total da cidade.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMSA EXAUSTO DAS CIDADES: ANTIENOBRECIMENTO E INTERVENES URBANAS EM CIDADES BRASILEIRAS E PORTUGUESAS Rogerio Proena Leite Palavras-chaves: Cidades; Enobrecimento; Patrimnio cultural. Este artigo pretende explorar as aproximaes e as divergncias das experincias de enobrecimento urbano em cidades histricas brasileiras e portuguesas, tendo como referentes empricos os casos das cidades de Recife, Salvador, vora e Porto. A condio semiperifrica que, embora em moldes distintos, caracteriza o enquadramento dos dois pases no sistema econmico e poltico internacional, permite explorar a maneira como essas tendncias se manifestam em diferentes contextos, ao tempo em que as aproximaes e os distanciamentos que marcam a relao histrica entre o Brasil e Portugal abrem outras possibilidades analticas sobre a compreenso dos modos como se cruzam essas inuncias contemporneas de enobrecimento. THE EXHAUSTION OF CITIES: COUNTER-GENTRIFICATION AND URBAN INTERVENTIONS IN PORTUGUESE AND BRAZILIAN CITIES Rogerio Proena Leite Keywords: Cities; Gentrication; Cultural heritage. This article aims to explore the differences of approaches and experiences of historical cities in urban ennoblement Brazilian and Portuguese historical cities, with the empirical cases in the cities of Recife, Salvador, Porto and vora. The semi-condition that, although in different ways, characterizes the framework of the two countries in international economic and political system, allows exploring how these trends are felt at the time that the approximations and the distances that characterize the relationship history between Brazil and Portugal open other possibilities on the analytical understanding of the ways to cross these contemporary gentrication inuences.

175LPUISEMENT DES VILLES: ANTI-ANOBLISSEMENT ET INTERVENTIONS URBAINES DANS DES VILLES BRSILIENNES ET PORTUGAISES Rogerio Proena Leite Mots-cls: Villes; Anoblissement; Patrimoine culturel. Le but de cet article et dexplorer les rapprochements et les divergences des expriences danoblissement urbain dans des villes historiques brsiliennes et portugaises. Les rfrences empiriques ont t les cas des villes de Recife, Salvador, vora et Porto. La condition semi-priphrique qui caractrise, malgr les modles diffrents, lenquadrement des deux pays dans le systme conomique et politique international, permet dexplorer la manire dont ces tendances se manifestent selon diffrents contextes, tandis que les rapprochements et les loignements qui marquent les rapports historiques entre le Brsil et le Portugal ouvrent dautres possibilits analytiques la comprhension des manires dont se croisent ces inuences contemporaines danoblissement.