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A LINGUAGEM E A APRENDIZAGEM DO DESENHO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE 1 VIERA, Fabio Daniel 2 -UNOCHAPECÓ ALVES, Solange Maria 3 -UFFS Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo A reflexão contida neste texto traduz um recorte construído a partir da pesquisa de origem, cujo objeto central é a aprendizagem do desenho por estudantes de Design de Moda de uma universidade da região oeste de Santa Catarina. Esta necessidade surgiu ao avaliar as formas de ensino-aprendizagem em um grupo de deferentes estudantes, que eram submetidas a um mesmo método de ensino. Empreende-se aqui, sobretudo, uma contribuição para pensar sobre o processo de ensino e de aprendizagem em desenho e seu apoio como fator de desenvolvimento humano, com base nas referências teórica-orientadoras da análise e em dados iniciais coletados junto a dois estudantes do referido curso. A tarefa de ler e compreender os desafios enfrentados por estudantes de desenho se coloca como fulcral para docentes e para o processo pedagógico como um todo, devido o fato de fazer parte da trajetória do aluno do início ao final de sua formação acadêmica. Considerando o desenho uma linguagem, elemento de expressão e comunicação e tendo como base a teoria histórico- cultural, especialmente as contribuições de Vigotski sobre linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, este artigo analisa possíveis relações entre traços e trajetórias dos sujeitos, compreende o aprendizado do desenho como resultado de sínteses construídas pelos estudantes na relação com seus pares e com as experiências sociais e culturais condicionadas historicamente e nas quais se inserem. Adotaram-se métodos de coleta de dados, entrevistas e observação por meio de registro de diário das aulas, alem de análise visual para desenvolvimento de texto descritivo, tendo como base os fundamentos da linguagem visual, observando as características visuais dos desenhos. 1 Artigo escrito com base numa primeira análise decorrente de pesquisa sobre a aprendizagem da linguagem do desenho em Design de Moda como Trabalho de Conclusão de Curso latu senso realizada para fins de obtenção do grau de especialista em Docência na Educação Superior. 2 Graduado em Artes Visuais, docente do curso de Design da Unochapecó. Estudante do curso de pós-graduação latu senso em Docência na Educação Superior. Email: <[email protected]>. 3 Professora Dra. em Educação com área de pesquisa em Psicologia e Educação. Docente da UFFS- Universidade Federal da Fronteira Sul. Orientadora da pesquisa que dá origem a este texto. Email: <[email protected]>.

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A LINGUAGEM E A APRENDIZAGEM DO DESENHO NA

EDUCAÇÃO SUPERIOR: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE1

VIERA, Fabio Daniel2-UNOCHAPECÓ

ALVES, Solange Maria3-UFFS

Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo A reflexão contida neste texto traduz um recorte construído a partir da pesquisa de origem, cujo objeto central é a aprendizagem do desenho por estudantes de Design de Moda de uma universidade da região oeste de Santa Catarina. Esta necessidade surgiu ao avaliar as formas de ensino-aprendizagem em um grupo de deferentes estudantes, que eram submetidas a um mesmo método de ensino. Empreende-se aqui, sobretudo, uma contribuição para pensar sobre o processo de ensino e de aprendizagem em desenho e seu apoio como fator de desenvolvimento humano, com base nas referências teórica-orientadoras da análise e em dados iniciais coletados junto a dois estudantes do referido curso. A tarefa de ler e compreender os desafios enfrentados por estudantes de desenho se coloca como fulcral para docentes e para o processo pedagógico como um todo, devido o fato de fazer parte da trajetória do aluno do início ao final de sua formação acadêmica. Considerando o desenho uma linguagem, elemento de expressão e comunicação e tendo como base a teoria histórico-cultural, especialmente as contribuições de Vigotski sobre linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, este artigo analisa possíveis relações entre traços e trajetórias dos sujeitos, compreende o aprendizado do desenho como resultado de sínteses construídas pelos estudantes na relação com seus pares e com as experiências sociais e culturais condicionadas historicamente e nas quais se inserem. Adotaram-se métodos de coleta de dados, entrevistas e observação por meio de registro de diário das aulas, alem de análise visual para desenvolvimento de texto descritivo, tendo como base os fundamentos da linguagem visual, observando as características visuais dos desenhos.

1 Artigo escrito com base numa primeira análise decorrente de pesquisa sobre a aprendizagem da linguagem do desenho em Design de Moda como Trabalho de Conclusão de Curso latu senso realizada para fins de obtenção do grau de especialista em Docência na Educação Superior. 2 Graduado em Artes Visuais, docente do curso de Design da Unochapecó. Estudante do curso de pós-graduação latu senso em Docência na Educação Superior. Email: <[email protected]>. 3 Professora Dra. em Educação com área de pesquisa em Psicologia e Educação. Docente da UFFS- Universidade Federal da Fronteira Sul. Orientadora da pesquisa que dá origem a este texto. Email: <[email protected]>.

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Palavras-chave: Linguagem. Abordagem Histórica - Cultural. Educação.

Introdução

Em termos gerais, quando se fala em aprender a desenhar, no âmbito da educação

escolar, é comum encontrar quem conceba esse como o ato de desenhar coisas, um dom, uma

atividade ligada ao lúdico, ao prazer, a uma criatividade inata, pertencente ao sujeito. Sendo

inata, alguns a possuem e outros não. Por isso, pouco se pode fazer para mudar situações em

que aprender a desenhar seja a pauta principal. Concomitante, pode ser percebido por meio de

relatos dispostos em livros ou revistas do seguimento, que a compreensão por parte de alguns

sobre a aprendizagem de desenho é uma medida simples, basta observar e representar. Para

isso, é preciso apenas forçar a percepção visual dos discentes. Mas quando eles não

conseguem aprimorar as técnicas ministradas, torna-se para o estudante algo extremamente

difícil e enfadonho.

Edwards (2000) relata a mediação no ensino do desenho como algo similar a ensinar

alguém a andar de bicicleta. Seria simples dizer: “monte, pedale, se equilibre e siga em

frente”. Esta reflexão pode ser relacionada com um formato de ensino do desenho tradicional,

em que uma explicação básica de como fazer o desenho deveria bastar. Um exemplo é a

expressão “clichê”: “Basta olhar o original e copiar para o papel!”. Mas, na realidade, pode

não solucionar as dificuldades dos alunos.

Mas não é tão simples. Mesmo entre autores que pesquisam e reflitam sobre o tema, as

significações variam. Hallawell (1994, p. 3) afirma: “O desenho é uma interpretação de

qualquer realidade, seja visual ou emocional, por intermédio da representação gráfica. Para

isso, é preciso dominar a gramática e a sintaxe da linguagem visual, empreendida na

representação.” Para complementar as palavras de Hallawell, é preciso conhecer e dominar

elementos para um trabalho visual, como noções de luz e sombra, linhas, formas, pontos,

cores e texturas. Desenhar, então, se configura como uma linguagem. Isso coloca, para quem

ensina desenho, o desafio de compreender a relação entre linguagem e o aprendizado do

desenho. Isto demanda, por sua vez, uma leitura acerca do papel da linguagem no

desenvolvimento humano, ou seja, no desenvolvimento de modos tipicamente humanos de

organização cognitiva, como a abstração, a compreensão, a análise, a síntese, a classificação

e, no caso do desenho, elementos de estética e criação artística.

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Isso remete a outros fundamentos teóricos, que vão além dos modelos tradicionais

e/ou tecnicistas de ensino e de aprendizagem para os quais, em geral, basta seguir o modelo,

reproduzir as informações dadas pelo docente e criar pouco. Mais do que uma técnica,

desenho é uma linguagem. Sob este prisma, encontramos em Vigotski4 a base teórica capaz de

elucidar essa relação entre linguagem e aprendizado do desenho. Nas palavras de Vigotski5

(2009, p. 11): “A função da linguagem é a comunicativa. A linguagem é, antes de tudo um

meio de comunicação social, de enunciação e compreensão.”

Sob a influência do materialismo histórico-dialético, a psicologia histórico-cultural de

Vigotski e colaboradores alerta que a linguagem não é um fenômeno isolado. Tal como a

consciência, a linguagem é produto da necessidade de intercâmbio entre os homens no

processo de trabalho.

O trabalho, primeiro, depois a palavra articulada, constituíram-se nos dois principais fatores que atuaram na transformação gradual do cérebro do macaco em cérebro humano que, não obstante sua semelhança, é consideravelmente superior a ele quanto ao tamanho e a perfeição. (ENGELS, 1990, p. 25).

Assim como o trabalho, a linguagem irá desempenhar, no desenvolvimento humano, a

função de um poderoso instrumento de mediação homem-mundo, à medida que permite a

transmissão de saberes e o aprendizado de novas formas de relações. Os sistemas de signos

(linguagem, escrita, sistema numérico etc.), bem como o sistema de instrumentos, são criados

pela sociedade ao longo do curso da história humana e mudam a forma social e o nível do seu

desenvolvimento cultural. De acordo com Palangana (1994, p. 23):

4 Psicólogo russo, nascido em 1896 e falecido em 1934. Tendo vivido a União Soviética revolucionária (1917), empenhou-se em construir uma psicologia igualmente revolucionária, capaz de compreender o humano como resultado de múltiplas relações sociais historicamente circunstanciadas. Nesse processo, a linguagem assume papel central como signo construído socialmente cuja tarefa central é a mediação simbólica que, em última análise, é constitutiva do ser humano. A palavra “signo” organiza o pensamento, dá forma à cognição. Junto com Alessander Luria e Alexei Leontiev, Lev Vigotski se tornou o mais eminente nome da teoria histórico-cultural de desenvolvimento humano. 5 Várias têm sido as formas de grafia para o nome desse autor, a partir da transliteração do alfabeto russo, dependendo do lugar e das formas linguísticas adotadas. É o caso da grafia Vygotsky, bastante utilizada nas traduções estadunidenses e inglesas. Por sua vez, nas edições espanholas tem prevalecido a grafia Vygotski; na Alemanha, Wygotski. Contudo, em obras do campo da psicologia, publicadas pela editora estatal soviética dos idos vividos por este autor – a Editora Progresso, de Moscou -, traduzidas diretamente para o espanhol, bem como em edições recentes publicadas no Brasil, verifica-se a adoção da grafia Vigotski. Assim, preservadas as grafias adotadas pelo referencial consultado para este estudo, esta última se define com opção gráfica para o texto e o conteúdo em questão.

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A linguagem coloca-se, pois, como causa e como conseqüência do desenvolvimento do cérebro e de seus assessores imediatos: os órgãos dos sentidos. Se o trabalho criou o órgão e a função, há que se considerar também o inverso. A consciência, dotada de uma crescente capacidade de discernimento e abstração, atuou na atividade prática e na linguagem, imprimindo-lhe horizontes que não mais coincidem com os precedentes, justamente por estarem ambos – objetos físicos e simbólicos – sendo aperfeiçoados.

Infere-se, pois, que o instrumento simboliza a atividade humana, o ato de

transformação na natureza pelo homem que, ao fazê-lo, modifica a si próprio. Corroborando

com Alves (2012), para a perspectiva histórico-cultural, o trabalho – compreendido como

atividade vital humana – cria a condição para o aparecimento e o desenvolvimento da

linguagem, à medida que, em sendo as relações de trabalho relações coletivas, sociais,

precisam ser comunicadas, dispostas a esse coletivo. Nasce a linguagem como elemento de

comunicação e de generalização e como construto social desde a origem. Assim, nas palavras

de Alves (2012, p. 131), “[...] a relação entre pensamento e linguagem constitui terreno fértil

quando se objetiva conhecer e compreender o homem como um todo, desde que essa relação

seja ela própria compreendida como sendo resultado das formas concretas de organização da

vida em sociedade.”

Nesta mesma direção, de acordo com Teixeira (2005, p. 95), para Vigotski e a teoria

histórico-cultural do desenvolvimento humano,

[...] as ideias e as representações da consciência estão entrelaçadas com a atividade prático-sensorial do homem. Isto é, o homem reage ao meio, sim, mas se trata de um meio muito mais criado por ele mesmo, por sua atividade social, do que um meio ‘in natura’. Além disso, o meio criado humanamente implica o desenvolvimento de um psiquismo que é, por isso, social. Isto é, o meio no qual se desenvolve o psiquismo é cultural por excelência: social, dizendo-se por outra palavra.

Então, se as ideias, as representações, estão entrelaçadas com a atividade prático-

sensorial do ser humano e se tais representações são feituras da linguagem como signo

mediador do psiquismo e, de outro lado, se o desenho é uma linguagem e desenhar requer

habilidade de transpor a imagem, materializar a imagem no traço por meio da atividade

prática e sensitiva, então temos os elementos centrais para compreender a relação entre

linguagem de aprendizado do desenho. Desta forma, é possível embasar as análises do

aprendizado do desenho, com o pensamento dos alunos em relação à linguagem que estão

desenvolvendo. O desenho voltado para o Design de Moda, com foco na figuração da

anatomia humana, pode representar, de forma gestual, técnica ou reflexiva, o pensamento do

indivíduo que a executa.

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Entre os princípios metodológicos apresentados por Vigotski (1998, p. 74), em

especial o que consta no texto “Problemas de Método”, o pesquisador propõe o estudo de

processos e não de produtos, “é somente em movimento que um corpo mostra o que é”.

Vigotski discute que é a partir do movimento de processo de aprendizagem que um sujeito se

mostra como é, argumenta pela necessidade de valorizar o histórico-cultural de cada

indivíduo, como um percurso de transformações que envolvem o presente e influenciam nas

projeções futuras.

Baseando-se neste conjunto complexo de fatores, podemos dizer que o meio e o

contato com outras pessoas influenciam no desenvolvimento do sujeito. Se relacionarmos a

ideia de que os alunos atuais passaram por outras etapas da vida, como a infância e a

adolescência, e que durante essas etapas obtiveram influências sociais e diferentes

experiências, surge a pergunta: é possível haver relações entre a linguagem do desenho no

desenvolvimento desses estudantes?

A linguagem do desenho pode ser considerada, primeiramente, um processo mental

antes de ser material, assim como a fala, que está diretamente ligada ao pensamento.

Entretanto, é preciso buscar no discurso dos alunos como eles compreendem e se relacionam

com o aprendizado dessa linguagem.

Como este estudo possui a problematização de identificar os desafios enfrentados

pelos estudantes durante o aprendizado nas disciplinas de Desenho de Moda, reflexões de

Edwards, Vigotski e os demais autores apresentados podem ser considerados coerentes para

que se obtenha o alcance dos objetivos propostos.

Olhando o Desenho Sob a Lente Histórico-Cultural: Análise Preliminar

As falas destacadas neste texto possuem como principal interesse identificar nos

desenhos dos alunos características visuais que possam ser relacionadas com seu aprendizado.

Para captar essas características, é preciso estudar e entender os fundamentos da linguagem

visual. Segundo Perazzo (1997, p. 10): “As imagens, assim como as palavras, têm sentidos

múltiplos. A linguagem visual também produz sentidos e, para entendê-los, é preciso

conhecer sua estrutura, seus elementos constitutivos.”

Observar desenhos requer captar características visuais. Este processo pode

proporcionar um estudo mais detalhado sobre os trabalhos desenvolvidos pelos alunos. Para

Arnheim (2000, p. 36): “Ver significa captar algumas características proeminentes dos objetos

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– o azul do céu, a curva do pescoço do cisne, a retangularidade do livro, o brilho de um

pedaço de metal, a retitude do cigarro.” O autor apresenta possibilidades de narrativas visuais

ao observar objetos, imagens ou cenários. Esta possibilidade de narrativa também pode existir

e auxiliar no momento de avaliar um desenho.

Para o andamento da pesquisa, os alunos mencionados serão identificados pela

nomenclatura A, para o aluno que apresentou dificuldades, e B, para o aluno que demonstrou

facilidades para desenhar. Concomitante, deve ser levado em consideração que ambos

manifestaram igual interesse em aprender ou praticar desenho com o propósito de tentar

superar suas dificuldades e melhorar a qualidade de suas produções.

Para dar continuidade, foi realizada, no segundo semestre de 2012 com os alunos

observados, uma entrevista com dez perguntas sobre possíveis influências para a

aprendizagem do desenho. O objetivo é buscar informações sobre as relações sócio-históricas

ligadas ao desenvolvimento da linguagem do desenho. Estas, de certo modo, podem ser

associadas aos desafios hoje enfrentados para o exercício de uma linguagem fundamental para

o futuro profissional de Design de Moda.

Uma das perguntas conferidas, questão número 3. Havia relação com o desenho em casa?

Com sua família, ou amigos?

Reposta da aluna A: “Não! Não tinha incentivo e nenhuma referência que me influenciasse a

observação para desenhar.”

Resposta da aluna B: “Sim! Com meu pai e minha irmã. Meu pai sempre gostou de desenhar,

fazer caricaturas, desenhar com base em outros desenhos, isso me incentivou a gostar de

desenhar. Minha irmã, apesar de mais nova, também gosta de desenhar, agora faz curso de

desenho e trocamos experiências.”

Analisando as respostas das alunas, primeiramente surge a ideia de que a aluna B

obteve em sua trajetória histórica mais informações e incentivo do que a aluna A, e esta

relação pode influenciar hoje o aprendizado e a maneira de desenhar. Mas as respostas sobre

os desafios, dificuldades e facilidades encontradas para o aprendizado estão muito mais

aprofundadas e enraizadas no desenvolvimento humano do que aparentam estar.

Segundo informações descritas no diário de registro das aulas – realizado com a

função de recolher informações sobre o comportamento e a reação dos alunos e ao seu

desempenho –, o conteúdo recomendado para a primeira aula da disciplina de Desenho de

Moda I, realizada dia 3 de agosto de 2011, se baseou na produção individual de um desenho

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da figura humana, desenhado naturalmente conforme a experiência e o conhecimento de cada

um, sem influências do professor ou de materiais para observação, como figuras impressas,

fotografias, manequins, bonecos antropométricos ou modelo vivo.

A intenção da atividade se destinou a observar as produções individuais e identificar

os alunos que apresentassem facilidades ou dificuldades para desenhar. Além de buscar em

suas memórias, a maneira como interpretam a figura humana e a representam por intermédio

da linguagem do desenho. Segundo Vigotski (1998, p. 67), “[...] a memória, mais do que o

pensamento abstrato, é característica definitiva dos primeiros estágios do desenvolvimento

cognitivo.” Compreende-se, a partir da fala do autor, que a memória é muito abrangente e

significativa para o desenvolvimento das funções estruturais da representação.

Os alunos observados são jovens entre 18 e 20 anos, dispostos a passarem pelo mesmo

processo de aprendizagem. Trazem consigo toda uma carga de experiências histórico-culturais

e recordações sobre experiências que obtiveram durante a infância. Estas experiências podem

ser relacionadas com o aprendizado da linguagem do desenho no presente, concomitante, a

projeções futuras.

As imagens expostas na sequência do texto apresentam exemplos das produções

desenvolvidas pelos alunos, durante as aulas mencionadas. A seguir, segue narrativa de

análise visual, embasada nos fundamentos da linguagem visual, permitindo fazer uma leitura

sobre os desenhos e relacionando falas dos alunos e citações de Vigotski. Segue os primeiros

desenhos dos alunos observados nas Figuras 1 e 2.

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Figura 1 – Desenho da aluna A. Figura 2 – Desenho da aluna B.

Podemos observar que a figura 1, realizada pela aluna A, representa um desenho de

uma imagem feminina. O corpo se encontra levemente inclinado fora do eixo de equilíbrio, os

traços da parte superior do desenho são mais fortes, marcando principalmente a silhueta do

quadril. Para representar o cabelo, a aluna executou inúmeros riscos formando um volume

acentuado sobre a cabeça arredondada. Percebe-se a tentativa de definir mãos e pés, sendo

resumido a um único contorno. Embora o desenho não apresente destreza técnica da

representação da figura humana, não pode ser retirado o crédito de ser um traço impactante e

expressivo.

A imagem número 2 apresenta um desenho com tentativa de movimentos nos

membros superiores e inferiores. O corpo está equilibrado e vestido, o rosto está definido de

forma simétrica, podendo ser percebido um início de estilização no traço. Os olhos são mais

alongados e marcados, como se estivem maquiados. A figura, desenvolvida pela aluna B,

também representa uma imagem feminina. Em ambos os exemplos se nota a verbalização,

usando a linguagem do desenho para a representação gráfica dos sentidos, resultando em uma

figura também do mesmo sexo. Segundo Vigotski (1998, p. 150): “A representação simbólica

primária deve ser atribuída à fala e é utilizando-a como base que todos os outros sistemas de

signos são criados.”

Na aula em que as figuras apresentadas foram realizadas, não havia ainda ocorrido um

questionamento sobre as experiências dos alunos em relação a linguagem do desenho. No

decorrer do semestre, iniciou-se, então, uma análise de como os acadêmicos se comportavam

diante dos exercícios propostos. Registrado no diário das aulas do dia 21 de setembro de

2011, a aluna A demonstrou muito interesse em praticar desenho, agiu com tranquilidade e

ergueu seu trabalho para mostrar aos colegas. Conforme registros, a aluna trouxe os

exercícios quase completos para avaliação do professor, procurou interagir com a turma rindo

e conversando enquanto desenhava. Em certo momento, ergueu seu desenho mostrando para

todos os colegas dizendo: “Acho que tem alguma coisa errada, mas não consigo identificar.”

Podemos dizer que a aluna expressa sua dificuldade e solicita ajuda (dicas)

espontaneamente para os colegas. Neste sentido, Vigotski (1998, p. 63) afirma: “[...] é o

pensamento verbal que nos ajuda a organizar a realidade em que vivemos.”

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Com base nas palavras de Vigotski, é possível dizer que há alunos de desenho em

Design de Moda que se veem diante da necessidade de aprendê-lo. Para isso, precisam se

adaptar à realidade em que estão inseridos. Como a satisfação das necessidades e o impulso

para a adaptação são vinculados entre si, os alunos se deparam diante de situações que os

obrigam a determinado aprendizado. Neste sentido:

O impulso para a satisfação das necessidades e o impulso para a adaptação à realidade não podem ser considerados como coisas separadas entre si e mutuamente opostas. Uma necessidade só pode ser verdadeiramente satisfeita mediante certa adaptação a realidade. (VIGOTSKI, 1998, p. 26).

Podemos inferir, com base nessa leitura, que a aluna verifica o resultado de seu

desenho e manifesta sua dificuldade para a turma, busca em seus colegas opiniões para

auxiliar na adaptação à realidade em que está inserida.

Nesta mesma aula, a aluna B realizou os exercícios propostos sem demonstrar

dificuldades. Após um determinado tempo, optou em fazer um intervalo, voltou para a sala e

continuou a desenhar. Em nenhum momento se queixou, solicitou orientações do professor ou

manifestou preocupações para os colegas sobre o que estava produzindo.

O que concerne esta etapa da pesquisa é observar as características dos desenhos

desenvolvidos pelos alunos, com o objetivo de perceber suas dificuldades e facilidades para o

ato da representação. Segundo Oliveira (2004, p. 55): “[...] o desenvolvimento individual se

dá no interior de uma determinada situação histórico-cultural, que fornece aos sujeitos, e com

eles constantemente reelabora, conteúdos culturais, artefatos materiais e simbólicos,

interpretações, significados, modos de agir, de pensar e de sentir.”

Podemos dizer, como já o fizemos antes, que as experiências passadas dos alunos

podem influenciar no aprendizado presente e refletir no futuro. Para trazer possibilidades de

reflexões e finalizar este fragmento de pesquisa, mais uma questão da entrevista pode ser

vinculada ao texto.

A pergunta conferida, questão número 4: Como foi sua relação com o desenho na

escola?

Resposta da aluna A: “Normalmente pintava desenhos prontos, ou ligava os pontinhos para

formar o desenho e depois pintava. Nas datas comemorativas, coelho de páscoa, dia das

mães, dos pais, das crianças, São João, dia do índio, do soldado, da água e da árvore. Até a

quinta série era uma professora para todas as matérias.”

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Resposta da aluna B: “Foi boa, tive uma ótima professora de artes até a 1ª série do ensino

médio, depois tive incentivo dos demais professores que tive desta matéria.”

Considerando que as relações com a linguagem do desenho podem surgir em várias

etapas da vida, na infância ou na adolescência, em locais de convivência, como a escola por

intermédio de colegas e professores, ou em casa, por meio de familiares e amigos, podemos

dizer que estas influências passadas refletem no aprendizado atual dos alunos. Segundo

Vigotski (1998, p. 40): “O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa por

intermédio de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de

desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história

social.” Podemos dizer, com base nas palavras de Vigotski, que o desenvolvimento humano

possui ligação com a história individual e social. Neste caso, avaliando as respostas das

alunas, se nota que obtiveram contatos diferentes com o desenho em suas trajetórias escolares.

Estas reflexões fazem com que surjam novas perguntas, ocasionando novas questões

para pesquisa. Portanto, o que as diferenças histórico-sociais podem influenciar no

aprendizado do desenho hoje?

Ao analisar os desenhos das alunas percebesse uma evolução individual, mas que

ocorre em coletividade e em um mesmo processo de aprendizagem. Concomitante, podemos

dizer que entre os desafios para a aprendizagem está o contato do aluno com o resultado de

seu trabalho, que exige reflexão e análise sobre seu próprio desempenho. Está no domínio da

gramática e da sintaxe da linguagem visual, que requer prática e condições para se auto-

avaliar.

Considerações Finais

Levando em consideração que este artigo representa apenas um fragmento de uma

pesquisa mais abrangente, podemos considerar que entre os desafios que estudantes de Design

de Moda enfrentam para aprender desenho está a superação dos limites em relação ao contato

com a linguagem exercida em seu histórico social e cultural. Estas indagações não nos

respondem com certeza, mas obrigam uma busca mais aprofundada, aliada a pesquisas sobre

o desenvolvimento humano e as vivências histórico-culturais.

Para aprender desenho, os alunos precisam praticar as experiências apreendidas durante as

aulas. Essas práticas não se referem somente ao ato de desenhar tecnicamente, mas consistem

também no ato de observar e analisar detalhes ligados aos fundamentos da linguagem visual.

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O aluno que exerce funções além da sala de aula, envolvendo estas percepções, se sente, ao

que parece, mais seguro para desenvolver a prática do desenho durante seu aprendizado.

O ambiente em que ocorre o aprendizado envolve professor e alunos, promove o

contato entre colegas durante um mesmo processo de aprendizagem. Como os alunos trazem

para a sala de aula suas relações histórico-culturais, iniciam o aprendizado com resultados

diferentes, e muitas vezes o resultado do aprendizado do outro sugere comparações. Contudo,

para corroborar este texto, as avaliações realizadas pelo docente não devem ser comparativas,

e sim individuais, conforme a evolução de cada um. Compreende-se, também, que a falta de

estímulo pode prejudicar a expressão e o ato de criar por meio da linguagem do desenho. As

contribuições empreendidas neste texto sugerem o início de um debate, que valoriza o

aprendizado do desenho como linguagem de ação do trabalho, concebida nos conceitos do

materialismo histórico-dialético, construído social e historicamente nas relações humanas.

REFERÊNCIAS

ALVES, Solange Maria. Freire e Vigotski: um diálogo entre a pedagogia freireana e a psicologia histórico-cultural. Chapecó (SC): Argos, 2012. ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. Editorial de Vicente di Grado, com participação de Emiko Sooma. 13. ed. São Paulo: Pioneira, 2000. (Biblioteca Pioneira de arte, arquitetura e urbanismo). EDWARDS, Betty. Desenhando com o lado direito do cérebro. Tradução Ricardo Silveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. ENGELS, Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em Homem. 4. ed. São Paulo: Global, 1990. HALLAWELL, Philip Charles. À Mão Livre: a linguagem do desenho. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1994. OLIVEIRA, Marta Kohl de. Ciclos de vida: algumas questões sobre a psicologia do adulto. educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 2, maio/ago. 2004. PALANGANA, Isilda C. Desenvolvimento e Aprendizagem em Piaget e Vygotsky: a relevância do social. São Paulo: Pléxus, 1994. PERAZZO, Luiz Fernando. Elementos da forma. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 1997. TEIXEIRA, Edival. Vigotski e o materialismo dialético: uma introdução aos fundamentos filosóficos da psicologia histórico-cultural. Pato Branco: FADEP, 2005.

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VIGOTSKI, Lev Semenovitch. A Construção do Pensamento e Linguagem. Tradução Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

______. A formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Organização Michael Cole et al. Tradução José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Psicologia e Pedagogia).