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Marcos Amado Gonçalves da Silva A LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO: (DES)ENCONTROS COM O NOVO PARADIGMA Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Cuiabá 2008

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Marcos Amado Gonçalves da Silva

A LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO:

(DES)ENCONTROS COM O NOVO PARADIGMA

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT

Cuiabá 2008

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Marcos Amado Gonçalves da Silva

A LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO:

(DES)ENCONTROS COM O NOVO PARADIGMA

Dissertação apresentada ao Programa Mestrado em Estudos de Linguagem (MEEL), do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de concentração: Estudos Lingüísticos

Orientadora: Profª Drª Maria Inês Pagliarini Cox.

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Cuiabá

2008

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FICHA CATALOGRÁFICA S586l Silva, Marcos Amado Gonçalves da A língua portuguesa no ensino médio: (des)en-

contros com o novo paradigma / Marcos Amado Gonçalves da Silva. – 2008.

144p. : il. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de

Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem, 2007. “Orientação: Prof.ª Dr.ª Maria Inês Pagliarini Cox”.

CDU – 811.134.3:373.5 Índice para Catálogo Sistemático 1. Língua portuguesa – Ensino médio 2. Língua portuguesa – Ensino – Novo paradigma 3. Currículo – Ensino médio – Parâmetros nacionais 4. Língua portuguesa – Ensino – Mudanças educacionais

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DEDICATÓRIA

À memória de Paulo Freire, no ano em que se completa o

primeiro decênio de sua morte, para que nunca se extinga

seu grito de liberdade e autonomia do povo brasileiro e de

todos os povos do mundo.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Drª Maria Inês Pagliarini Cox, por sua orientação paciente e por

todos os momentos de alegria que me proporcionou, todas as vezes que ajudou meu

texto a consolidar-se, como expressão de minha prática.

À Professora Drª Ana Antonia de Assis Peterson, por sua amizade e estímulo à

concretização desse trabalho.

À Professora Drª Maria Rosa Petroni, examinadora interna, e ao Professor

Dr.Edson Carlos Romualdo, examinador externo da Universidade Estadual de Maringá,

meus agradecimentos por aceitarem fazer parte da banca examinadora e por suas

valiosas contribuições ao tempo da qualificação, um tempo de fazer e refazer.

Aos Professores entrevistados, à Professora da sala de aula observada e a seus

alunos, pela generosidade em me permitirem invadir seu espaço e captar boa parte da

alma deste trabalho.

Por fim à minha família e especialmente à minha netinha Luisa que, ao chegar,

sem acento no “i”, já diz a que veio, enchendo-me de inspiração e esperança nas vozes

que os homens possam vir a proferir, em favor de um mundo sempre vivo e solidário.

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RESUMO

SILVA, Marcos Amado Gonçalves da. A língua portuguesa no ensino médio: (des)encontros com o novo paradigma.

Este estudo, de natureza qualitativa, teve por objetivo investigar o processo de

apropriação do novo paradigma de ensino de língua portuguesa, consolidado em

documentos oficiais como Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

(DCNEM/1998), Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM/1999),

Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM/2006), por uma escola da rede

pública de ensino de Cuiabá, a Escola Cidade Verde. Por meio da investigação em

ambiente natural, do exame do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, de

entrevistas formais e informais com professores de português e da observação de aulas

numa turma de primeiro ano, buscamos perscrutar se o novo paradigma vem permeando

as práticas pedagógicas cotidianas dos professores de língua portuguesa. Objetivamos

responder as seguintes perguntas de pesquisa: Quais as linhas mestras do novo

paradigma de ensino de língua portuguesa para o ensino médio, oficializado pelos

PCNEM e OCEM?; Como professores de língua portuguesa do ensino médio se

posicionam em relação ao novo paradigma de ensino, ao proporem o Projeto Político

Pedagógico e elaborarem seus planos de curso?; Como professores se pronunciam sobre

a ruptura paradigmática do ensino de língua portuguesa, quando convidados a falar

sobre ela em entrevista?; Está o novo paradigma de ensino de língua portuguesa

presente no cotidiano das aulas de uma turma de 1º. ano de ensino médio? Em que

medida? O conjunto das informações recolhidas nos permite afirmar que o discurso de

mudança encontra-se circulante no universo da escola alvo, tendo sido objeto de

inclusão no documento do PPP da escola. Contudo, o diálogo com o novo paradigma

situa-se num estágio inicial, instaurando uma crise em relação à prática tradicional

assentada na reflexão sobre a língua, mas ainda vacilante para balizar uma prática

comprometida com desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos. Há um

descompasso entre o dizer e o fazer dos professores. Infelizmente, não podemos afirmar

que vimos o discurso da mudança refletir-se significativamente nas práticas cotidianas

das aulas de língua portuguesa observadas.

PALAVRAS-CHAVE: apropriação do novo paradigma de ensino da língua portuguesa, Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, mudanças educacionais.

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ABSTRACT

SILVA, M. A. G. da. The brazilian portuguese in the secondary school: appropriation of the new paradigm.

This qualitative study aimed at investigating the process of appropriation of the new

Brazilian Portuguese teaching paradigm by a public school. The new paradigm has

been consolidated by the official government documents such as the National

Curriculum Policy for the Secondary Teaching (DCNEM/1998), the National

Curriculum Standards of the Secondary School Teaching (PCNEM/1999), and the

Curriculum Guides for the Secondary School Teaching (OCEM/2006). The study was

conducted by examining the Pedagogical Political Project (PPP) of the school, by the

use of formal and informal interviews with teachers of Brazilian Portuguese and class

observation in the first year. We explored whether the new paradigm is pervading the

daily pedagogical practices of teachers of Brazilian Portuguese. Our aim was to answer

the following questions: What are the principal directions of the new paradigm of the

Brazilian Portuguese teaching for the Secondary School Teaching officialized by the

PCNEM and OCEM? How do teachers of Brazilian Portuguese language of the

Secondary School position themselves with respect to the new teaching paradigm as

they propose the Pedagogical Political Project and elaborate their course syllabuses?

How do teachers speak up about the paradigmatic rupture of the teaching of Brazilian

Portuguese when invited to talk about it during an interview? Is the new paradigm of

Brazilian Portuguese teaching present in the daily classes of the first year of secondary

school? To what extent? The conjunction of information collected allows us to state that

the discourse of change circulates around the universe of the target school and was

included in the Pedagogical Political Project of the school. However, the dialogue with

the new paradigm is located in the initial stage launching a crisis in relation to the

traditional practice founded in the reflection about a language but still tottering to

demarcate a practice committed with the development of the students communicative

competence. There is a mismatch between the teachers speech and action.

Unfortunately, we cannot state that we saw the discourse of change put in action in the

daily practice of the Brazilian Portuguese language classes observed.

KEYWORDS: appropriation of the new Brazilian Portuguese teaching paradigm, National Curriculum Standards of the Secondary School Teaching, educational changes.

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Lista de figuras

Figura 1 – Universo de Pesquisa 21

Figura 2 - Empenho de um indivíduo durante o processo de adoção 127

Lista de quadros

Quadro 1: Atividades de produção e recepção de textos 48

Quadro 2: Atividades de análise 49

Quadro 3: Proposta de conteúdo de língua portuguesa para o 1º. Ano 79

Quadro 4: Planos de curso de língua portuguesa para o 1º. Ano 82

Lista de Siglas

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

DCNEM – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

PCNEF – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental

OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino Médio

PPP – Projeto Político Pedagógico

PNLEM – Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio

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S U M Á R I O INTRODUÇÃO 01 CAPÍTULO I PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 09 1.1 Objetivos 09 1.2 Perguntas de Pesquisa 10 1.3 Locus e sujeitos da pesquisa 11 1.3.1 A escola investigada 11 1.3.2 Os sujeitos ouvidos 14 1.3.3 A turma observada 15 1.4 Metodologia 16 1.5 Técnicas usadas para a coleta de dados 20 1.6 Cartografia 20 1.7 Processo de pesquisa 21 CAPÍTULO II DOCUMENTOS MINISTERIAIS EM VIGOR E A LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO 25 2.1 A democratização do acesso à escola e a crise da educação pública 26 2.2 A fermentação do novo paradigma do ensino de língua portuguesa 29 2.3 A área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias 39 2.4 Os conhecimentos de língua portuguesa 44 CAPÍTULO III O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 51 3.1 Da estrutura do PPP 52 3.2 Da concepção do PPP 53 3.3 Do diagnóstico 54 3.4 Da concepção de educação 60 3.5 Da organização curricular 67 3.6 Da área de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias 72 3.6.1 Da Língua Portuguesa 73 3.7 Um balanço final 85 CAPÍTULO IV O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: DO CONCEBIDO AO REALIZADO 88 4.1 O novo paradigma de ensino de língua portuguesa na fala de professores 88

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4.1.1 A compreensão do novo paradigma 90 4.1.2 Obstáculos à implementação do novo paradigma 99

4.2 O ensino de língua portuguesa em ato 103

4.2.1 Um sobrevôo pelo observado nas aulas 114

CONSIDERAÇÕES FINAIS 121 BIBLIOGRAFIA 131 ANEXOS 136

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Os deuses condenaram Sísifo a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso. Pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança. (Camus, 2005 : 135).

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INTRODUÇÃO

Este estudo começou a nascer muito antes de ter início o meu1 trabalho como

professor. Foi fecundado pelo desejo de sentido que povoava minha alma de criança em

seus primeiros contatos com a escola. Transformou-se em angústia por não vislumbrar

esforços de transformação ganhando espaço no coletivo da escola pública, em meus

quase trinta anos de experiência no magistério de ensino fundamental e médio. Contudo,

sempre resisti e recusei-me à desesperança! As reflexões aqui feitas se alimentam de

percepções do que é possível fazer e pretendem deixar registrado o quão é importante

que esse possível extrapole o nível das experiências individuais dos bons professores e

professoras, que povoam a memória de minha travessia pelas escolas, como aluno e

como professor, mas sempre aprendiz.

Iniciei minha carreira no magistério como professor de língua portuguesa no

antigo curso profissionalizante de magistério em nível de 2° grau, em 1980. Em termos

de formação acadêmica, eu possuía apenas um curso de licenciatura curta em Artes

Industriais, realizado no Centro de Educação Técnica da Bahia (CETEBA),

posteriormente incorporado à Universidade do Estado da Bahia, iniciativa do governo

da ditadura militar, para suprir a demanda de mão de obra qualificada, ou seja, de

professores de ensino fundamental, para o projeto das escolas polivalentes, apresentado

como suporte ao ideário de uma educação de base tecnicista, defendida pelo governo

por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) 5692, como solução para o

desenvolvimento e o progresso do país.

Não me considerava – e ainda não me considero – um bom professor. Prefiro

sentir-me e ver-me compromissado e empenhado em fazer o meu melhor. Nessa

perspectiva, incomodava-me ter que avaliar meus alunos por um viés reprodutivista.

Não sabia fazer de outra forma, mas entusiasmava-me quando, apesar do professor,

surgiam manifestações originais ou questionadoras, além do costumeiro ramerrão do

certo ou do errado. Alunos e eu cumpríamos uma agenda de conteúdos repetidos e

engessados, para atingir como objetivo uma avaliação que premiava essencialmente a

reprodução, pondo-me sobre as costas, ao final de cada ano, o peso das reprovações.

1 Ao longo da Introdução, conscientemente, alternei a redação em primeira pessoa do singular, para narrar pontos de vista singulares, e em primeira pessoa do plural, para incluir o ponto de vista de outros atores sociais, como minha orientadora, meus alunos, colegas da área, professores entrevistados etc. Nos demais capítulos, uso a primeira pessoa do plural, por considerar que falo sempre na companhia de outras vozes.

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Como reação a essa prática educacional que muito nos incomodava, paralelamente à

condição de professor da escola pública, juntamente com um grupo de pais de algumas

crianças em idade escolar, abrimos uma escola em 1984, filiada à Campanha Nacional

de Escolas da Comunidade (CNEC), cuja preocupação deveria ser uma educação

holística, voltada para a formação de um ser humano sensível e crítico de sua própria

realidade. O trato com os conteúdos procurava dar ênfase à sua realização prática,

contextualizada na realidade da comunidade em que se inseria a escola. Se em ciências

o tema era a água potável, lá ia a classe com a professora estudar sobre o assunto na

estação de tratamento da cidade. Se em história falávamos de liberdade, Zumbi ganhava

tanta relevância quanto Tiradentes, além de ser assunto propício à pesquisa, em vista do

silêncio imposto à sua luta contra a escravização do negro nas versões oficiais

constantes dos livros didáticos.

Nascia daí minha inclinação para o ensino baseado em projetos, muito antes de

eles se tornarem a palavra de ordem na pedagogia. Ao final de dois anos de

alfabetização, as professoras, encarregadas dessa etapa, apresentavam no fim do período

letivo, ao invés de notas e resultados de provas, pequenos livrinhos elaborados pelos

alunos, contando as histórias significativas para eles. Eram histórias escritas a lápis com

suas próprias letras, originais em sua simplicidade de relato do cotidiano, concretização

na forma escrita, talvez, de suas primeiras experiências de reflexão sobre o vivido.

Carreguei, então, para a escola pública o que a liberdade da prática educativa

realizada em outro espaço, sem muitos dos entraves burocráticos, ajudou a aclarar. A

metodologia de projetos possibilitava que tanto professores como alunos determinassem

mais claramente os sentidos de seu trabalho, propiciando uma melhor revisão e

organização curricular, reduzindo o efeito da fragmentação do conhecimento,

decorrente da divisão disciplinar. O trabalho pedagógico nucleado por projetos impingia

à educação básica a noção de construção do conhecimento por meio de atividades de

pesquisa, e, especificamente, no caso de ensino da língua portuguesa, a prática de uma

metodologia capaz de favorecer no aluno a percepção da importância da língua materna

em seu cotidiano. Quanto a mim, o caminho aberto pelos projetos fortalecia a crença de

que a experiência educacional em sala de aula pode ser algo vivo e conseqüente,

assentado no sonho de uma vida mais prazerosa, criativa e politicamente construída.

Em 2001, ao terminar a licenciatura em Letras iniciada em 1999 na Universidade

de Cuiabá (UNIC), mais me aproximei do trabalho com o texto, existencializado sob a

forma de gêneros do discurso. Ainda não havia sido apresentado a Bakhtin, o que só foi

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acontecer em 2004, por ocasião de um curso de especialização, voltado para o ensino de

línguas, realizado na Universidade Federal de Mato Grosso. Ao realizarmos, em 2001,

uma oficina de texto com duração de quatro semanas em uma escola da rede pública,

com um grupo de aproximadamente 16 alunos de ensino fundamental e médio,

escolhemos os temas sobre os quais iríamos escrever. Como a escola, naquele ano,

havia escolhido como tema gerador para suas atividades “Cidadania e Meio Ambiente”,

propusemos à turma que fossem desenvolvidas duas linhas de pesquisa: uma, para os

alunos do ensino fundamental, que levantasse todas as histórias referentes a entidades

mitológicas da região amazônica em geral e a outra, para o ensino médio, que

procurasse na mitologia grega tudo que se referisse à relação dos deuses com a natureza

e a criação do universo. Na etapa inicial, foi realizada uma produção textual ligada aos

gêneros primários de que nos fala Bakhtin (2003), composta pelo relato de “causos” e

histórias por eles ouvidas no trabalho de campo. Na etapa seguinte, os alunos decidiram

fazer um pequeno livro de histórias em quadrinhos em torno de um personagem

inspirado no mito do boto. Nesse momento, as histórias ouvidas mediante relato (gênero

primário) foram re-textualizadas e passaram a integrar textos do gênero secundário.

Quer dizer, mesmo desconhecendo teorias acerca de gêneros discursivos, mesmo

desconhecendo Bakhtin e seus seguidores, realizava um trabalho pedagógico que

prenunciava o novo paradigma de ensino de línguas.

Coincidindo com o percurso que eu, como professor de língua portuguesa,

inventava intuitivamente, no início da década de 1980, começavam a circular, nos meios

acadêmicos, novas idéias e propostas para o ensino de línguas, urdidas no espaço da

lingüística da enunciação. Se a lingüística da língua, desenvolvida na primeira metade

do século XX, pouco abalara a tradição gramatical que, desde tempos imemoriais,

timbrava o ensino de línguas, a lingüística da enunciação, desenvolvida na segunda

metade, encorajou gestos de ruptura com o instituído e de fermentação de um novo

paradigma de ensino. Não podemos ignorar também o estímulo advindo dos ventos da

propalada abertura política que sopravam a favor de mudanças sensíveis à cara da nova

clientela da educação pública brasileira, até então ignorada pelos currículos oficiais.

O conceito de interação social emerge como uma perspectiva promissora tanto

no pensamento da língua(gem) como objeto de ensino quanto como meio de ensino,

afinal toda relação de ensino-aprendizagem tem como fulcro a interação, e onde há

interação, há linguagem. Destarte, a concepção de linguagem como forma de interação

social contrapõe-se às concepções de linguagem como expressão do pensamento e como

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instrumento de comunicação. A concepção de linguagem como expressão do

pensamento subsidiou o ensino da língua enraizado na tradição greco-latina, apoiado na

lógica e na gramática normativa e balizado por um padrão lingüístico ideal, o qual

passou a funcionar, independentemente das circunstâncias históricas, como um

princípio categórico de avaliação dos usos lingüísticos em “certos” ou “errados”. Esse

modelo privilegia o trabalho com a forma – a frase, a palavra e seus constituintes

menores – na crença de que o domínio da forma resulta em uso correto. A forma é o

revestimento para o pensamento que acontece fora da linguagem. Assim, escrever bem

significa pensar bem e traduzir corretamente o pensamento em palavras. Já a vertente

que defende a linguagem como instrumento de comunicação não mira a enunciação com

um olhar interativo, apesar de lastrear-se socialmente, ao dizer que a língua serve de

instrumento de comunicação por constituir-se num sistema formal – um código –

comum a todos os falantes de uma dada comunidade lingüística. Para essa corrente, a

enunciação se vale de um emissor que tem a seu dispor apenas signos e estruturas

presentes no sistema lingüístico. Por conceber a língua como um sistema fechado e

estático, nega-lhe a incompletude e a dinâmica das interações, determinadas pelas

diversas práticas sociais.

Ao elegermos a interação verbal como verdadeira substância da língua, no lugar

de emissor e receptor passivos a produzir palavras e frases, deparamo-nos com os

interlocutores e suas enunciações, consubstanciadas em textos. Tomamos o texto como

resultado de práticas sociais dinamicamente constituídas por uma dada comunidade

lingüística, em diferentes esferas de utilização da língua, correspondendo a tipos

relativamente estáveis de discurso, a que Bakhtin (2003) chama de gênero do discurso.

Em torno da concepção de linguagem como interação social, o novo paradigma

de ensino de língua materna vai se constituindo, primeiro como um ruidoso debate

encetado por lingüistas em freguesias outras que o espaço das universidades e depois

como uma proposta oficial. De acordo com o novo paradigma em construção, o objetivo

do ensino de língua materna é enriquecer o repertório de gêneros discursivos dos alunos

para que eles possam atuar como cidadãos e profissionais nos mais diversos encontros

sociais, públicos ou privados. Assim, os gêneros são eleitos os objetos de ensino e os

textos, as unidades de trabalho pedagógico.

Os documentos ministeriais das décadas de 1990 e 2000 – Lei de Diretrizes e

Base da Educação Nacional 9394 (LDB 9394/96), Diretrizes Curriculares Nacionais

para o Ensino Médio (DCNEM/1998), Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino

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Médio (PCNEM/1999), Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM/2006),

dentre outros – catalisaram as discussões que circulavam nos mais diversos espaços da

educação brasileira à época. Vale ressaltar que, paradoxalmente, apesar de instrumentos

legais, tais documentos encorajam a proposição de alternativas próprias de organização

curricular.

Passados quase dez anos da publicação de alguns desses documentos,

perguntamo-nos pelas transformações que se processaram na escola sob a égide da

oficialização do novo paradigma. Ora, acreditamos que, independentemente das

péssimas condições de trabalho a que está submetido o profissional da educação, o

caráter eminentemente relacional do ensinar-aprender faz do professor um profissional

do sentido. Daí o professor comprometido com sua lida cotidiana não escapar de

perguntas contundentes ao fim de cada dia de trabalho. Por que sou professor? O que fiz

hoje que deu sentido ao meu trabalho? O que preciso corrigir amanhã e finalmente o

que aprendi hoje e o que descobri que não sei? Essas indagações estão subjacentes à

proposta de mudança de uma educação prescritiva para uma educação dialógica e talvez

sejam o móvel da reflexão sobre o que é ser professor hoje, envolvendo uma quebra

hierárquica que cabe, principalmente, ao professor realizar. Não é uma postura de

adesão formal ao politicamente correto. É uma disposição emocional para aprender no

percurso de cada aula, uma competência para saber ajudar o aprendente em suas

escolhas, por já ter percorrido muitos caminhos que levam à construção de reais

situações de aprendizagem. Em suma, tal postura está na base de todo o eixo de

mudança proposta academicamente e consubstanciada posteriormente nos documentos

oficiais citados acima. Saber como a comunidade escolar tem reagido a essas propostas

é a problemática de que me ocupo no decurso deste trabalho, focalizando, sobremaneira,

o olhar dos professores. Não pretendo encontrar os culpados do fracasso na educação

básica brasileira com seus efeitos nefastos na formação universitária e na vida

profissional. Pretendo apenas me aproximar do diálogo entabulado pelas propostas e

práticas vigentes de ensino de língua portuguesa numa comunidade escolar específica e

as propostas oficiais, subsidiadas por um aporte teórico consistente e reconhecidamente

sensível à construção de uma sociedade autônoma e democrática.

Minha investigação se processou em contexto natural, mais precisamente, numa

escola pública de ensino médio da cidade de Cuiabá. A opção pelo ensino médio se

deveu, primeiro, à experiência que tenho em relação a esse nível de ensino e, segundo, à

escassez de trabalhos de pesquisa sobre o ensino médio. Por exemplo, há várias

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pesquisas que investigam o impacto do novo paradigma de ensino de língua portuguesa

em salas de aula mato-grossenses, mas quase todas voltadas para o nível fundamental,

principalmente, para o 1º. e 2º. Ciclos. Barros (2000) assina o trabalho Vovô ainda vê a

uva?: a prática de uma alfabetizadora nos tempos dos PCNs; Silva (2000), o trabalho

Leitura e escrita: as práticas e as concepções de uma alfabetizadora; Covezzi (2003), o

trabalho Os PCNs entre os professores de língua estrangeira do ensino fundamental da

rede pública em Cuiabá; Batista (2005), o trabalho Projeto de trabalho, seqüência

didática e gênero do discurso: o artigo de opinião em atividades de leitura e escrita no

Ensino Fundamental; Melo (2006), o trabalho, Propaganda impressa: prática de leitura

e produção textual em perspectiva discursiva, todos eles tendo por campo de pesquisa o

ensino fundamental. Sobre o ensino médio, há o trabalho de Gonçalves (2002) – Um

galo sozinho não tece uma manhã: os professores e os textos no cotidiano de aulas de

língua portuguesa do 2º ano do ensino médio regular e o de Constantino (2007),

exclusivamente sobre o livro didático – As propostas de produção escrita dos livros

didáticos de língua portuguesa do ensino médio: um olhar enunciativo-discursivo.

Minha pesquisa, desenvolvida numa escola pública de ensino médio,

concentrou-se numa classe de 1º. ano, nas aulas de língua portuguesa. À guisa de

contextualização, além da observação de 20 aulas, foram realizadas quatro entrevistas

com professoras de língua portuguesa do ensino médio, incluindo a professora da sala

observada, com quem conversei muitas vezes, ao longo da pesquisa empírica. A

investigação incluiu ainda exame e análise do Projeto Político Pedagógico (PPP) da

escola, de planos de curso de língua portuguesa e de outros materiais usados nas aulas.

Também documentos oficiais que formalizam propostas para o ensino médio, tais como

LDB 9394, DCNEM, PCNEM e OCEM, incorporam-se aos dados de análise.

O relato estrutura-se, a partir da presente Introdução, em quatro capítulos e uma

conclusão, num movimento que pretende retratar a convergência-divergência

paradigmática na passagem do proposto em nível macro (Ministério de Educação) para

o realizado em nível micro (uma sala num estabelecimento de ensino médio). Embora

reconheçamos que, entre a instância nacional e a particular da escola, haja várias

instâncias intermediárias, como as secretarias estaduais e municipais de educação, com

papel fundamental na implementação de propostas oficiais, neste trabalho não as

incluímos em nosso campo de investigação, uma vez que a duração do mestrado seria

incompatível com uma pesquisa assim abrangente.

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O primeiro capítulo, Procedimentos metodológicos, contempla os objetivos da

pesquisa, define o lócus, apresenta os sujeitos, descreve a metodologia e as técnicas

usadas para a coleta de dados e cartografa o processo de investigação em todas as suas

dimensões. Esse capítulo deve funcionar como um roteiro para a incursão pelo texto em

todos os seus desdobramentos.

O segundo capítulo, Documentos ministeriais em vigor e a língua portuguesa no

ensino médio, relembra a proposta oficial veiculada nas DCNEM, PCNEM e OCEM,

buscando mostrar como o discurso da nova crítica toma corpo no âmbito desses

documentos. Da concepção abrangente de educação, a discussão passa a focalizar a

proposta para a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, afunilando-se, em

última instância, para os conhecimentos de língua portuguesa.

O terceiro capítulo, O Projeto Político Pedagógico e o ensino de língua

portuguesa, trata da concepção de educação presente no PPP da escola pesquisada,

focalizando o diálogo com o princípios postulados para o ensino médio pelos

documentos ministeriais em vigor. A atenção se volta para a organização curricular e a

seleção das competências e habilidades, notadamente na área de linguagens e, mais

especificamente, de língua portuguesa. Faz-se um contraponto entre a proposta local e a

proposta nacional.

O quarto capítulo, O ensino de língua portuguesa: do concebido ao realizado,

concentra-se na leitura dos dados coletados pelo pesquisador mediante observações de

aulas (registradas em diário de campo) e entrevistas com professores de língua

portuguesa da escola. O capítulo visa a perfilar a interpretação que os professores de

português da escola dão à proposta oficial em nível de discurso e de prática cotidiana. A

análise das aulas concentra-se nos conteúdos trabalhados ao longo da observação.

Nas Considerações Finais, refletimos sobre os resultados descortinados pela

investigação, assim como sobre a atitude da comunidade escolar e dos professores em

relação às orientações oficiais e até mesmo em relação ao pactuado localmente por meio

do PPP. Deixamos aflorar nossa emoção em realizar esse estudo, falando da esperança

que ele nos trouxe e do sentido para nossa vida, somado aos tantos sentidos

teimosamente buscados em todos os dias de nossa experiência docente.

7

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Contra o positivismo, o qual pára no fenômeno — ‘há apenas fatos’ –, eu diria: não, fatos é precisamente o que não há, apenas interpretações. (Nietzsche, 1982 : 32 e 33).

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Capítulo I Procedimentos metodológicos

Este capítulo deve funcionar como uma carta de navegação para a travessia da

dissertação como um todo. Nele buscamos responder a questões como: o que

estudamos, para que estudamos, o que queremos descobrir, onde vamos investigar, que

atores vamos ver e ouvir, a quem vamos perguntar, que caminho vamos tomar para nos

aproximarmos do cotidiano escolar tecido por esses atores, que procedimentos

adotamos para captar os discursos sobre os quais nos debruçaremos?

1.1 Objetivos

Levando em consideração as propostas que os documentos oficiais DCNEM,

PCNEM e OCEM põem em circulação, nas décadas de 1990 e 2000, no cenário

brasileiro, no que diz respeito ao ensino da língua portuguesa, e preocupados com a

penetração e a conseqüência de reformas encetadas a partir da superestrutura do sistema

educacional, buscamos identificar, por meio da observação, descrição e interpretação de

um contexto escolar singular, o grau de apropriação, pelas comunidades locais, das

diretrizes, parâmetros e orientações curriculares nacionais. Para tanto, traçamos os

seguintes objetivos:

1. 1. 1 Objetivo Geral

• Avaliar o impacto do novo paradigma de ensino da língua portuguesa,

consolidado através dos documentos DCNEM, PCNEM e OCEM, na prática

cotidiana de uma escola de ensino médio em Cuiabá.

1. 1. 2 Objetivos Específicos

• Destrinçar as linhas mestras do novo paradigma de ensino de língua portuguesa

consoante os documentos PCNEM e OCEM.

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• Avaliar o posicionamento do Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola

investigada em relação às principais orientações dos documentos PCNEM e OCEM.

• Perscrutar a posição de professores de língua portuguesa da escola quanto à

constituição do novo paradigma de ensino, mediante análise de planos de curso

constantes do PPP.

• Perscrutar a posição de professores de língua portuguesa da escola quanto à

constituição do novo paradigma de ensino, mediante análise de depoimentos obtidos

por meio de entrevistas.

• Observar, descrever e analisar a prática em sala de aula de um professor da

escola, focalizando o diálogo ou não com o novo paradigma de ensino da língua

materna.

1.2 Perguntas de pesquisa

Tendo em vista os objetivos norteadores do estudo, propusemos quatro

perguntas a eles correlatas, já que nossa pesquisa, seguindo o caminho interpretativo,

indaga-se sobre o que está acontecendo num determinado contexto e sobre o significado

do que está acontecendo para os atores sociais envolvidos:

• Quais as linhas mestras do novo paradigma de ensino de língua portuguesa

para o ensino médio, oficializado pelos PCNEM e OCEM?

• Como professores de língua portuguesa do ensino médio se posicionam em

relação ao novo paradigma de ensino, ao proporem o Projeto Político Pedagógico e

elaborarem seus planos de curso?

• Como professores se pronunciam sobre a ruptura paradigmática do ensino de

língua portuguesa, quando convidados a falar sobre ela em entrevista?

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• Está o novo paradigma de ensino de língua portuguesa presente no cotidiano

das aulas de uma turma de 1º. ano de ensino médio?

1.3 Locus e sujeitos da pesquisa

1.3.1 A escola investigada

Nossa pesquisa realizou-se na Escola Cidade Verde2, uma escola pública

estadual. Foi construída em 1970, num momento em que governar bem, segundo o PPP

(p. 19), significava “construir grandes obras”. O projeto arquitetônico, embora moderno,

e o material escolhido, concreto armado, constituem mais uma das tantas obras

construídas em Cuiabá que atestam a insensatez da engenharia moderna quando

comparada com o bom senso dos construtores dos velhos casarões de adobe, com pé-

direito alto e cobertura de telha de barro, adequados ao clima quente (Tropical

Continental Semi-úmido) da região. Até hoje é uma construção inacabada. Foi instituída

como Centro Educacional pela Lei nº 2.993 de 09 de Junho de 1970, publicada no

Diário Oficial de 10 de Junho do mesmo ano.

Situa-se num bairro de classe média adjacente ao centro de Cuiabá. A escola

praticamente não é freqüentada pelos filhos dos moradores do bairro, esses estudam na

rede particular de ensino da cidade, apesar da fama (do passado) de ser um

estabelecimento que oferece educação de qualidade. Contudo, sua localização central

facilita o acesso daqueles alunos que dependem de ônibus para chegar à escola.

Conforme o PPP/2005, a escola atende a uma clientela originária de quarenta e três

bairros periféricos e até mesmo de outros municípios vizinhos. O corpo discente da

escola é composto por aproximadamente 2.400 alunos, provindos em sua maioria das

camadas mais pobres da população. Trata-se, portanto, de uma escola pública de grande

porte.

Atualmente, a escola conta em seu quadro com um total de 88 professores.

Desses, 67 encontram-se em sala de aula, 07 em readaptação de função desempenhando

atividades auxiliares da coordenação, 07 em situação de prestação de serviços a outros

órgãos ou escolas do estado ou do município e 07 desempenhando funções de

coordenação pedagógica, do laboratório de informática ou na direção da escola.

2 À guisa de desidentificação da escola onde realizamos a pesquisa, designamo-la ficticiamente de Escola Cidade Verde.

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O corpo técnico-administrativo é composto por 18 funcionários, dos quais 08

desempenham função propriamente administrativa, como secretário e auxiliares da

secretaria, responsável pela biblioteca e administrador escolar. Os outros 10 integram as

funções que compõem o chamado apoio administrativo, responsável pelo setor de

nutrição (merenda escolar), limpeza e vigilância.

A escola possui 24 salas de aula, 01 biblioteca, 01 anfiteatro, 01 cozinha, 01 sala

para professores, 02 salas para coordenação pedagógica, 01 sala para secretaria, 01 sala

da direção, 01 sala de setor pessoal, 01 sala para xerox, 01 laboratório de informática,

02 laboratórios de ciências (física e biologia), 02 banheiros femininos (01 no 1º piso e

01 no 2º piso), 02 banheiros masculinos (01 no 1° piso e 01 no 2° piso), 01 sala de

depósito para merenda, 02 banheiros para professores no 2° piso, 01 sala de vídeo, 01

almoxarifado, 01 sala para o grêmio estudantil, 01 cantina terceirizada, 01 quadra de

esportes coberta, 01 quadra de esportes descoberta, 02 vestiários, um masculino e outro

feminino, desativados.

A escola dispõe de 03 TVs e dois vídeos montados em carrinhos para serem

deslocados para as salas de aula, guardados na sala da coordenação, e um amplificador

com mesa de som de oito canais na sala do grêmio, usado pelos alunos no intervalo das

aulas para transmitir música para o pátio interno. As salas de aula, além de carteiras

para os alunos, uma mesa com cadeira para o professor e quadro de giz, dispõem de dois

armários de aço com duas portas mantidas trancadas (as chaves ficam sob a guarda dos

professores), onde ficam armazenados os livros didáticos, já que os alunos não têm

permissão para levá-los para casa, bem como dicionários escolares, distribuídos pelo

MEC gratuitamente. Na sala de vídeo, encontram-se 03 retro-projetores, 01 TV 29”, 01

vídeo-cassete, 01 DVD e 35 cadeiras. No anfiteatro ficam 01 TV 29”, 01 DVD e um

data-show.

A sala de informática dispõe de 29 computadores terminais e mais 03 usados

como servidores, 03 impressoras, 01 armário de aço, 02 mesas grandes, 20 mesas

pequenas, 02 aparelhos de ar condicionado, 20 cadeiras giratórias e um quadro branco.

Além das salas de aula costumeiras, há as salas de línguas inglesa e espanhola, assim

mobiliadas: a sala de inglês é equipada com 02 ventiladores de teto, 22

carteiras/mesinhas com cadeiras e 01 tela para retro-projetor; a sala de espanhol possui

02 aparelhos de ar condicionado, 02 ventiladores de teto, 22 carteiras/mesinhas com

cadeiras e 01 aparelho de som. Deve-se a existência dessas salas ao projeto de língua

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estrangeira implantado em 2000, pelo qual a disciplina passou a ser ministrada no

período oposto ao turno normal da turma.

A escola atende à Educação Básica. Nos períodos matutino e vespertino, oferece

ensino fundamental (a partir da 7ª. Série) e ensino médio propedêutico de 03 anos,

estruturados em regime seriado, anual, na forma regular. No período noturno, oferece

Educação de Jovens e Adultos (EJA), nas etapas fundamental e médio. No ensino

fundamental, a carga-horária anual é de 880 h, com jornadas escolares de 04 aulas de 60

minutos cada. No ensino médio, a carga-horária anual é de 960 h, também com jornadas

escolares de 04 aulas de 60 minutos cada. Porém, as aulas de língua estrangeira e

educação física são em turno inverso ao freqüentado regularmente pelo aluno.

Em 2005, foi implantado o projeto de sala-ambiente na Escola Cidade Verde. Ao

ser informado sobre esse tipo de organização por uma colega de mestrado, sentimo-nos

provocados a observar se essa forma de organizar o ambiente pedagógico interferia,

positivamente ou não, nos resultados da ação ali desenvolvida. Passamos a acalentar a

idéia de realizar um estudo comparativo entre a sala-ambiente para ensino de língua

materna, proposta na/pela Escola Cidade Verde, e uma sala convencional em outra

escola de ensino médio da rede pública de Cuiabá, destinada às aulas de todas as

disciplinas. Imaginamos, em princípio, que uma sala-ambiente de língua portuguesa

poderia favorecer a prática efetiva da linguagem, como recomendam os PCNEM e as

OCEM. Instigou-nos a referência feita no título do Capítulo II do PPP, que apresenta a

sala ambiente como uma opção didática capaz de favorecer uma prática interdisciplinar

nas atividades da escola. De que maneira isso se daria? Eis a pergunta que nos

impulsionava a essa investigação.

No item Procedimentos Metodológicos (PPP: 188), o projeto de sala-ambiente é

dito favorecer a implantação de uma “postura pedagógica problematizadora e

contextualizada que possibilita ao aluno o desenvolvimento cognitivo constante através

da relação teoria reflexão-teoria realidade” e propiciar a organização do currículo por

meio de projetos que promovam a tomada de decisão, a autonomia e a responsabilidade.

Essa apresentação nos cativou a ponto de escolhermos esta escola.

Contudo, ao procedermos à leitura do projeto da sala-ambiente, vimos nosso

entusiasmo de pesquisador começar a murchar diante das motivações apresentadas

como justificativa para sua instalação. Quer dizer, não é como suporte mais adequado

para implementar uma proposta pedagógica que a sala-ambiente foi criada, mas como

forma de evitar deslocamento, dispersão e violência de alunos (não conseguimos atinar

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para a diferença entre um tipo de espaço e outro como desencadeador da violência) e

trabalho braçal do professor.

Nós, professores e alunos, achamos trabalhoso ter que ficar trocando de sala a cada aula, além de consideramos que este fato causa desânimo. Os professores estão sempre carregando seus materiais ‘pra lá e pra cá’ e os alunos se dispersando. Isto porque as salas tradicionais levam a situações desencadeadoras de violências... (Projeto Sala Ambiente, anexo PPP: 12).

Iniciamos nossa pesquisa de campo, observando uma sala-ambiente, destinada

ao ensino de língua materna. Contudo, nada notamos em sua organização e

funcionamento que a diferenciasse de uma sala tradicional, a não ser o fato de o

professor receber todas as suas turmas no mesmo local. Essa constatação, feita logo nas

primeiras sessões de observação, acabou por influenciar no rumo da pesquisa. Se nada a

diferenciava de uma sala convencional, não havia razão para compará-la com uma sala

convencional. Assim, desiludidos quanto ao suposto diferencial e potencial pedagógico

da sala-ambiente, optamos por ficar apenas na Escola Cidade Verde, onde já estávamos

realizando a pesquisa. Não cheguei a buscar a segunda escola que seria comparada com

a Escola Cidade Verde. O projeto inicial mudava de rumo.

1.3.2 Os sujeitos ouvidos

A Escola conta com 12 professores de língua portuguesa em regime de 30 horas

semanais, das quais 20 são de efetivo exercício em sala de aula. Todos são graduados

em Letras com habilitação em língua portuguesa e uma língua estrangeira ou literatura.

Todos possuem pós-graduação, em nível de especialização, sendo que uma é mestranda

em Estudos da Linguagem e outro doutor em Lingüística Aplicada. Apenas quatro

desses professores não trabalham em mais de um turno nessa ou em outra(s) escola(s).

Foram entrevistados 03 professores, além da regente da turma observada. Tais

professores são referidos, neste trabalho, como professora A, professor B, professora C

e professora D. O único critério considerado para a escolha dos informantes foi o fato de

ministrarem aulas ou trabalharem com língua portuguesa, além, é claro, da concordância

em conceder a entrevista ao pesquisador.

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1.3.3 A turma observada

Observamos uma turma de 1º ano do ensino médio do período matutino.

Supúnhamos que, num 1º. ano, poderíamos ter mais oportunidade de observar de que

maneira os conhecimentos do ensino fundamental são acionados na continuidade dos

estudos, de que maneira o professor aborda/considera os conhecimentos específicos do

curso anterior na interação com os conhecimentos do ensino médio que se inicia.

Importava-nos saber se a idéia de complementação dos estudos, conforme parametrizam

os PCNEM, é levada em consideração pelo professor em sua negociação com o aluno.

Também importava aproveitar a oportunidade de perceber até que ponto o projeto da

escola estabelece uma projeção de continuidade desses estudos, a partir do 1º ano para

os seguintes, principalmente na perspectiva da interdisciplinaridade, visando aos

objetivos de integração dos conhecimentos, aliada ao desenvolvimento de competências

capazes de propiciar ao estudante do ensino médio habilidades básicas para o trabalho e

exercício da cidadania.

A turma conta com 36 alunos matriculados, porém, no período em que

freqüentamos a sala para realizar a observação, assistiam às aulas entre 20 e 26 alunos.

A idade média da turma situa-se na faixa dos 16,4 anos de idade, registrando um nível

de defasagem da relação idade/curso pretendida, (15 anos para o primeiro ano), de

aproximadamente um ano e meio. No dia do registro dos dados sócio-econômicos 20

alunos compareceram à aula. Se considerarmos que 09 estão na faixa entre 17 e 18 anos,

concluímos que quase 50% da classe engrossam o índice de defasagem idade/turma.

São alunos provenientes de famílias cujos pais exercem profissões como motorista,

vendedor, pedreiro, empregada doméstica, pequeno comerciante, auxiliar de escritório,

mecânico, etc. e, em sua grande maioria, residem em bairros periféricos da capital.

Dentre eles existem alguns que se interessam por música, havendo um integrante de

uma banda heavy metal, bastante caracterizado como membro dessa tribo urbana, com

quem desenvolvemos conversas informais bastante elucidativas sobre a realidade da

escola.

A professora de língua portuguesa da turma tem graduação em Letras pela

Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com habilitação em língua portuguesa e

literatura, e especialização em lingüística histórica, sendo também bacharel em ciências

econômicas. Ministra aulas no sistema público estadual de Mato Grosso há sete anos,

mas atua no ensino privado desde 1984. Apesar de, no processo interativo em sala de

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aula, suas atitudes não manifestarem crença na capacidade de seus alunos realizarem

bons trabalhos, não chega, contudo, a inibi-los no campo da expressão. Pareceu-nos,

pelas observações em sala de aula, que eles não se sentem oprimidos ao comunicarem

suas impressões e opiniões, fazendo uso inclusive de gírias quando sentem necessidade

de serem mais enfáticos no que dizem. A professora publicou em 2002 um manual

intitulado Arte de se Virar na Arte, ligado a sua atividade de produção de eventos

culturais, em que traça instruções práticas destinadas a ajudar o espectador a assistir um

espetáculo teatral ou show artístico. Conforme consta na apresentação do manual, a

professora participa, desde a década de 1970, da montagem, como atriz ou como

diretora, de espetáculos de teatro amador em Cuiabá, tendo sido premiada, em 2001, no

I Festival de Teatro do Colégio São Gonçalo.

1.4 Metodologia

Nossa pesquisa foi realizada num contexto natural, focalizando as singularidades

espaço-temporais e subjetividades envolvidas na produção dos significados. Destarte, o

investigador, observador e intérprete de palavras e ações, contextualizadas no cenário

nacional das mudanças paradigmáticas em educação escolar e particularmente no

ensino-aprendizagem de língua portuguesa, no ambiente da Escola Cidade Verde e da

sala de aula, constituiu-se, olhos e ouvidos atentos, no principal instrumento de

pesquisa. Por propormo-nos a perscrutar o mundo da vida escolar na sua acontecência,

sem categorias de análise e instrumentos fechados previamente estabelecidos, optamos

por metodologias de perfil qualitativo.

Nosso interesse em observar, registrar e descrever a interação cotidiana daquela

comunidade escolar com o novo paradigma de ensino da língua portuguesa, consolidado

nos documentos oficiais (DCNEM, PCNEM e OCEM), reforçou nossa escolha por essa

metodologia, tendo em vista seu caráter eminentemente interpretativo. Uma

metodologia de natureza interpretativa poderia revelar melhor o modo como essa

comunidade de professores vem traduzindo, intercompreendendo na prática os

postulados do novo paradigma. Afinal, alinhamo-nos com aqueles que acreditam que, se

não em todos os campos científicos, ao menos naqueles das ciências humanas e sociais,

todo conhecimento é sempre perspectivado por um ponto de vista. As “verdades” têm a

cor dos óculos que usamos para examinar os fenômenos. Se mudamos a cor dos óculos,

a verdade muda. Como afirmam Bogdan e Biklen (1994: 45), “não é possível raciocinar

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ou conceptualizar para além da localização do eu num contexto histórico-social

específico; desta forma, esta perspectiva enfatiza a interpretação e a escrita como

características centrais da investigação”.

Como nos ensina Erickson (1990: 97), a pesquisa qualitativa/interpretativa parte

do princípio de que: a) os homens atribuem significados aos fenômenos e objetos físicos

e comportamentais que os envolvem no ambiente em que vivem; b) as ações humanas

em relação a tais objetos são motivadas por essas interpretações; c) as interpretações

feitas por eles são tomadas como qualidades atuais e reais dos objetos percebidos. Para

dizer de outro modo, os homens vêem o mundo cotidiano como real, vêem os

significados que imputam aos objetos como qualidades a eles inerentes. Na vida prática,

são compelidos a agir como “realistas ingênuos”, ou seja, a acreditar na realidade tal

como ela se impõe ao olhar à primeira vista. Pressupondo o ilusório desse realismo, a

pesquisa interpretativa incita a estranhar o óbvio, a desvelar a invisibilidade do

cotidiano, aspectos fundamentais para compreender o “estar sendo” e as possibilidades

de “vir a ser” dos grupos sociais. Os homens que convivem num mesmo espaço-tempo

precisam, pois, ser estudados em termos dos sentidos que compartilham em seus

encontros sociais.

De acordo com Bogdan e Biklen (1994), cinco características definem os

métodos qualitativos: investigação em ambiente natural, postura descritiva, focalização

do processo, procedimento indutivo e a relevância do significado.

Primeiro: a fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o

investigador o principal instrumento (Bogdan e Biklen, 1994: 47 e 48). O investigador

deve freqüentar e permanecer no campo da pesquisa tanto tempo quanto for necessário

para apreender e compreender as ações no seu ambiente habitual de ocorrência. As

ações são melhor compreendidas quando inseridas no contexto histórico e no

movimento de realização. Divorciar as ações de seu contexto imediato e mediato de

realização é perder de vista o significado. Assume-se que a observação feita pelo

próprio pesquisador é mais adequada para compreensão holística do que a aplicação

anônima de instrumentos de pesquisa previamente preparados. Ver e ouvir, que se

traduzem em observar e perguntar, são as principais vias de acesso aos dados

qualitativos. Estar com os atores sociais, ver o que fazem e ouvir o que dizem, captar as

interpretações que os levam a agir de um modo e não de outro, são os principais

procedimentos de pesquisa.

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Convictos de que era preciso, além de observar e conversar com a professora da

turma escolhida, ouvir mais alguns professores de português, escolhemos, dentre as

opções oferecidas pela pesquisa qualitativa, como método de captação do discurso dos

sujeitos, a entrevista. A entrevista apresenta-se como um recurso bastante adequado

para a coleta de “dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao

investigador desenvolver intuitivamente uma idéia sobre como os sujeitos interpretam

aspectos do mundo” (Bogdan e Biklen, 1994: 134).

Dentre as modalidades de entrevista, optamos, em vista dos objetivos da

investigação, pela entrevista episódica, tal como fora desenvolvida por Flick (2003:

115). Na entrevista episódica, as palavras-chave são memória episódica e semântica, o

que permite ao sujeito mesclar, nas narrativas, situações vividas e conceitos. A

narrativa, neste caso, é vista como uma forma de significar experiências, episódios

vivenciados, e de refletir sobre as questões conceituais que envolvem os

acontecimentos. Segundo o autor, para atender seus princípios, o roteiro da entrevista

episódica deve:

1) mencionar situações concretas em que se pode pressupor que os entrevistados possuam determinadas experiências; 2) ser suficientemente aberto para permitir que o entrevistado selecione os episódios ou situações que ele quer contar, e também para decidir que forma de apresentação ele quer dar (por exemplo, uma narrativa, uma descrição). O ponto de referência deve ser a relevância subjetiva da situação para o entrevistado (Flick, 2003: 117). Segundo: a pesquisa interpretativa é descritiva (Bogdan e Biklen, 1994: 48 e

49). Isso significa que a coleta de dados é uma coleta de palavras e imagens e não de

números. O acervo de dados é composto de episódios, notas de campo, entrevistas

transcritas, fotografias, documentos institucionais e pessoais etc. O pesquisador não

pode perder de vista que cada detalhe é relevante para a interpretação. Nada é trivial

quando se trata de recompor o universo onde as ações se desenrolam e significam isso

ou aquilo. A ênfase é na descrição da situação, cuidando-se para não distorcer os fatos

com julgamentos, hipóteses, preconceitos. Dizer “o que é” e não “o que deve ser” é a

atitude esperada de um pesquisador qualitativamente orientado.

Terceiro: os processos, mais do que os produtos, são o alvo da investigação

interpretativa (Bogdan e Biklen, 1994: 49 e 50). A ênfase nos processos favorece a

percepção de como os atores sociais negociam os significados. Esse tipo de estudo

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focaliza a formação de crenças e concepções, perguntando-se como elas passaram a

fazer parte daquilo que se considera ser o senso comum. Apesar de haver regras

presidindo as interações sociais, as pessoas não agem como autômatos. Como diz

Erickson (1990: 107), elas agem e interpretam as ações dos outros de acordo com regras

culturais que, durante a interação, são vivificadas situacionalmente de modos

específicos. As culturas não são estáticas. Só a observação do processo pode dar conta

desse traço essencial da cultura.

Quarto: a indução é a principal forma de análise dos dados (Bogdan e Biklen,

1994: 50). Não adotando o procedimento dedutivo, o pesquisador não recolhe os dados

com o propósito de testar – confirmar ou refutar – hipóteses preconcebidas. Realiza uma

coleta ampla de dados e tenta compreendê-los sem perder de vista o viés interpretativo

dos atores sociais que os geraram e só então esboça generalizações. As teorias, quando

surgem, surgem de baixo para cima. São designadas como “teorias fundamentadas” e

vistas como mais adequadas do que as teorias apriorísticas, por não enformarem e/ou

deformarem a visão do observador. A análise começa com a conjetura de asserções

básicas que evidenciariam padrões de generalização e prossegue com escrutínio de todo

o corpus em busca de evidências confirmatórias ou desconfirmatórias. À medida que

asserções são desconfirmadas, recomeça-se o ajuste. Esse método de rever a evidência,

tendo em vista a asserção e vice e versa, é conhecido como método comparativo

recursivo de identificação e análise, ou método indutivo analítico.

Quinto: o significado é de importância vital na abordagem interpretativa

(Bogdan e Biklen, 1994: 50 e 51). As perguntas nucleares a uma investigação dessa

natureza são: O que está acontecendo aqui, especificamente? O que esses

acontecimentos significam para as pessoas neles engajadas? (Erickson, 1990: 92).

Como insiste Erickson (1990), o objeto desse tipo de pesquisa não é o comportamento

(puro ato físico), mas a ação (ato físico mais as perspectivas de significado

compartilhadas pelos atores sociais engajados na interação):

O objeto da pesquisa social interpretativa é a ação, não o comportamento. Isso se deve a um postulado acerca da natureza da causa na vida social. Se as pessoas agem com base em suas interpretações das ações dos outros, então as interpretações são em si mesmas causais para elas. Isso não é verdadeiro com relação à natureza, e, assim, nas ciências naturais, os cientistas não têm de descobrir os significados do ponto de vista dos atores sociais. A bola de bilhar não interpreta o seu ambiente. Mas os homens em sociedade sim, e diferentes homens o interpretam diferentemente. Eles atribuem significados às ações dos

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outros e agem de acordo com as suas interpretações. Assim, a natureza da causa na sociedade humana torna-se muito diferente da natureza da causa no mundo físico e biológico, como também a natureza da uniformidade nas ações sociais rotineiras. Porque tais ações baseiam-se em interpretações, estão sempre abertas à possibilidade de reinterpretação e mudança (Erickson, 1990: 98).

1.5 Técnicas usadas para a coleta de dados

Os dados foram obtidos através de:

• Coleta de documentos e materiais:

DCNEM, PCNEM e OCEM;

Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola (versão 2006 e dados da

revisão/2007);

Planos de curso de professores de português do primeiro ano do

ensino médio;

Materiais didáticos diversos.

• Observação de aulas de língua portuguesa na turma escolhida:

Registro das ações em diário de campo.

• Entrevistas:

Entrevistas formais, gravadas em áudio, com 04 professores de

português do ensino médio;

Entrevistas informais, de tom conversacional, com a professora de

português regente da turma escolhida, para triangular perspectivas de

significado.

1.6 Cartografia

A pesquisa partiu de um contexto macro, aqui representado pelos documentos

nacionais DCNEM, PCNEM e OCEM que pautam o ensino médio, focalizando,

sobremaneira, os princípios nucleares ao ensino de língua portuguesa. Em seguida,

procurou observar se o PPP da escola dialoga com a proposta oficial e reconhece a

mudança de paradigma em relação ao ensino de português como língua materna. Após a

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leitura do PPP, a pesquisa mergulhou no universo dos professores propriamente,

mediante a leitura de planos de curso de língua portuguesa para o primeiro ano do

ensino médio. Finalmente, a pesquisa adentrou o universo de uma sala de aula de

primeiro ano, buscando perscrutar a posição da professora regente e inquiriu outros

professores de português do ensino médio da escola em relação ao novo paradigma. O

movimento realizado foi do geral para o particular e do proposto para o praticado. O

conjunto de círculos encaixados, a seguir, permite visualizar o universo da pesquisa.

Figura 1: Universo de pesquisa

1.7 Processo de pesquisa

Se considerarmos as primeiras conversas informais, quando procuramos a

Escola Cidade Verde, motivados pela informação de sua organização em forma de sala-

ambiente, iniciamos nossa investigação em novembro de 2006. Na época, contatamos

uma professora de português e, ao expormos nossa proposta de pesquisa, fomos

alertados por ela de que não iríamos encontrar os contrastes esperados, já que a sala-

ambiente era apenas um “capricho da coordenação da escola”, nada havendo de

mudança em relação ao arranjo tradicional, além da denominação. Ruminando essa

observação desalentadora da professora, aguardamos o início do ano letivo de 2007 para

iniciarmos efetivamente nossa pesquisa de campo. Por razões de ordem pessoal,

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tivemos que adiar a observação por um mês. Não começamos em fevereiro, no início do

ano letivo de 2007, e, sim, em março.

Iniciamos a observação propriamente dita, acompanhando uma turma de

primeiro ano da professora com quem havíamos conversado no ano anterior, quando

procuramos a escola para solicitar autorização para a realização da pesquisa. Após

algumas sessões, confirmávamos o prognóstico dessa professora: a aludida sala-

ambiente não alterava em nada a prática pedagógica habitual nas aulas de língua

portuguesa. Mesmo assim, continuamos na Escola Cidade Verde, pois já havíamos

obtido a permissão para a realização da pesquisa e iniciado a observação. Com isso,

nossa investigação passaria a contemplar o diálogo com o novo paradigma em várias

instâncias: na prática da professora em sala de aula, o PPP da escola, os planos de curso

de professores de língua portuguesa e depoimentos de profissionais da área.

Perguntávamo-nos sobre como as mudanças paradigmáticas no ensino-aprendizagem de

língua portuguesa se refletiam em tais instâncias do cotidiano escolar.

A observação em sala prosseguiu até junho de 2007, totalizando 20 aulas. A

etapa seguinte seria a de entrevistas com professores de português do ensino médio. Não

conseguimos realizar as entrevistas em julho, em virtude de ser o período de férias

escolar. Tivemos dificuldade para agendar as entrevistas com os professores, pela

sobrecarga de trabalho e também pela desconfiança/resistência natural com relação à

situação de inquérito de pesquisa. Apenas em setembro conseguimos realizar a

entrevista formal (a entrevista durou 62 minutos) com a professora da sala que

observamos e só em outubro com outros professores de língua portuguesa. Enquanto

aguardávamos a ocasião para realizar tais entrevistas e concluir a etapa de pesquisa de

campo, iniciamos o processo de redação da dissertação, debruçando-nos sobre a análise

dos documentos oficiais de âmbito nacional (LDB, PCNEM e OCEM) e dos

documentos locais da escola (PPP e planos de curso de língua portuguesa), que resultou

nos capítulos 2 e 3 respectivamente. No final de outubro de 2007, demos por encerrada

nossa pesquisa de campo, ainda que insatisfeitos com o número de professores

entrevistados. Depois de organizar as notas de aula, transcrever as entrevistas gravadas

em áudio e proceder à análise do conjunto de dados captados pelo pesquisador por meio

dos olhos e dos ouvidos, iniciamos a redação do último capítulo do presente trabalho.

Ao iniciar essa pesquisa pensávamos que, como observadores, seríamos meros

instrumentos para captação e registro de dados. Entretanto, ao focalizarmos o desenrolar

das ações e ao buscarmos os significados social, histórica e culturalmente construídos

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por intermédio dessas ações, começamos a perceber que registrar como os sujeitos de

nossa pesquisa vêem e interpretam o mundo em que vivem corresponde a entender

como eles se estruturam socialmente e interpretam a própria realidade. Descrever o que

se mostra na superfície não é tudo o que o investigador qualitativo deve fazer; ele

precisa “ir além do que os atores locais entendem explicitamente, identificando os

sentidos que estão fora do alcance da consciência dos atores locais e revelando o

currículo oculto a fim de que esse possa ser encarado criticamente por professores”

(Erickson, 2001: 13).

A escolha da metodologia qualitativa, hermeneuticamente orientada, revelou-se

adequada para acompanhar o desenrolar das ações e dos discursos na escola investigada,

num momento em que essa comunidade, como as demais no país, vivenciam profundas

mudanças na concepção do que seja educar para o tempo presente, um tempo onde nada

é fixo, um tempo onde aprender a aprender e não a estocar conhecimentos é a grande

meta da educação escolar. Acreditamos que o caminho trilhado nos permitiu escutar os

conflitos, as contradições entre o antigo e o novo paradigma educacional.

Não queremos dizer com isso que metodologias quali-quantitativas ou

quantitativas não poderiam revelar aspectos relevantes da questão investigada. A opção

por métodos qualitativos se deve ao fato de desejarmos entrar em campo sem uma

definição a priori e fechada das categorias de investigação, de desejarmos construir a

investigação no seu desenrolar. As categorias deveriam surgir da própria familiaridade

com as práticas observadas no contexto natural do ensino de língua portuguesa em uma

escola dada. Por exemplo, só no momento da análise das notas de campo, decidimos

que o elemento que melhor revelaria a relação da professora observada com o novo

paradigma seriam os conteúdos trabalhados na aula.

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(...) as orientações e os referenciais novos que os PCNs puseram em circulação nas escolas e nos programas de formação de professores – à medida que, como referenciais que são, não apresentam propostas operacionalizadas – geram inúmeras dúvidas quanto a como pensar o ensino dos gêneros escritos e orais e como encaminhá-lo de maneira satisfatória: dúvidas sobre o modo de pensar e o modo de fazer esse ensino de novos objetos (Rojo & Cordeiro, 2004: 12).

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Capítulo II

Documentos ministeriais em vigor e a língua portuguesa no ensino médio

O Ensino Médio, a partir de 1996 pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional 9394, definido como “etapa final da educação básica”, tem como finalidades:

I) a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II) a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III) o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV) a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina ( Art. 35 ).

As esferas do trabalho e da cidadania apresentam-se como contextos, por

excelência, para o exercício interminável da capacidade de aprender, exigida pela

velocidade vertiginosa com que as mudanças se processam no mundo contemporâneo.

É, pois, sob o signo da abertura e da inclinação para a aprendizagem constante que o

ensino médio deve se fazer.

Diferentemente da filosofia pragmática e tecnicista que presidiu a Lei 5692/71 e

conferia ao 2º grau o cunho profissionalizante, embora esse propósito nunca tenha saído

do papel, a Lei 9394/96 prima por uma educação integral, tendo como “finalidade o

pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para trabalho” (Art. 2º ), enfatizando o caráter formativo da Educação

Básica, da qual o Ensino Médio passa a ser parte. Fortemente enraizada em

conhecimentos sócio-antropológicos, originários das discussões em pauta nas ciências

humanas e sociais, a Lei enfatiza princípios como:

igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; valorização da experiência extra-escolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais (Art. 3º ).

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Em síntese, ecos do vigoroso debate, travado nas universidades brasileiras, ao

longo da década de 1980 e começo da de 1990, sobre os rumos da educação pós-

ditadura militar, fazem-se ouvir por entre as letras da Lei 9394. Essa lei catalisa a

reflexão feita por educadores como Freire (1996, 1982, 1996a, 1996b), Saviani (1991,

1988, 1982), Chauí (1989a, 1989b), Cunha (1991), Gadotti (1980), Vieira (1980),

dentre outros.

Destrinçando as linhas gerais da educação esboçadas pela LDB 9394, o

Ministério da Educação lança uma série de documentos complementares. Interessam-

nos aqui aqueles relativos ao Ensino Médio: Diretrizes Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio (DCNEM/1998), Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio

(PCNEM/1999), Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM/2006). No que

diz respeito ao ensino de língua portuguesa como língua materna, tais documentos

igualmente refletem o ideário revolucionário urdido na arena das universidades

brasileiras, mais precisamente, no espaço dos cursos de Letras, ao longo da década de

1980. Assim, antes de nos debruçarmos sobre tais documentos, recordemos o momento

de efervescência de idéias que os precede.

2.1 A democratização do acesso à escola e a crise da educação pública

A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira – LDB 4024 –,

publicada em 1961, trazia à tona a necessidade de democratização da educação básica,

garantindo o acesso de toda a criança à escola. A Lei refletia, de um lado, as lutas dos

trabalhadores pelo direito ao ensino público, ao longo da primeira metade do século

XX, e, de outro, a própria percepção das elites econômicas de que a mão de obra para o

Brasil moderno, urbano e industrial não podia ser de todo analfabeta. Ironicamente, são

os militares que, descaracterizando os princípios democráticos promovidos pela LDB

4024, no período posterior a 1964, implantam políticas de ampliação do acesso das

classes trabalhadoras à escola pública, afinal o Brasil vivia sob os ares da ideologia

desenvolvimentista e a pecha de país subdesenvolvido incomodava muito àqueles que

tinham de justificar a nossa péssima posição no ranking internacional de indicadores

educacionais. Contemporaneamente, o problema do acesso à escola está próximo da

superação. Nas últimas décadas, cada governo que assume o comando se “esmera” em

propor “o” programa que irá erradicar o analfabetismo do país. A iminente solução para

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o problema da quantidade de vagas para escolarização básica não encerra, contudo, a

crise da educação pública no Brasil.

Formas mais sutis de exclusão se constroem no corpo desse “acesso garantido”,

ensejando discussões que se obrigam mais profundas por serem ideologicamente

disfarçadas. A escola, que se prontifica a receber as classes populares em seu espaço,

fala uma linguagem diferente dessa nova clientela. Mais que isso, apresenta uma

proposta de homogeneização baseada em padrões e normas que devem ser alcançados

como ideais de conquista e ascensão social, dissociadas das lutas e confrontos históricos

da classe trabalhadora, em sua busca de expressão política e cidadania. O

distanciamento provocado pelo que a escola oferece e as novas contingências

determinadas pelo acesso em massa desses novos atores sociais vêm posicionar-se na

base do que se convencionou identificar como a crise da educação brasileira. Os jovens

das classes populares encontram uma escola prescritiva de valores, que não

correspondem aos seus nem à realidade de suas buscas. Seus desejos não são

valorizados, por se manifestarem diversos daqueles do novo ambiente que lhes deu

acesso. O estímulo à negação de si mesmos se expressa em proibições, classificações,

escolhas estranhas que deverão fazer em nome da conquista de um mundo no qual não

se reconhecem. As minorias dominantes valorizam sua variedade lingüística, elevando-a

à categoria de língua portuguesa. Todas as variedades que não correspondem a esse

padrão são estigmatizadas como defeituosas, impuras, erradas. Essa é a primeira e

dramática impressão de quem, desterritorializado do seu domínio social, não consegue

se sentir efetivamente acolhido no novo espaço institucionalizado para ser o espaço de

aquisição de conhecimentos. Sujeito conflituado em sua relação com o mundo,

impactado por mudanças, duvida de seu próprio desejo de felicidade e realização

humana. Seduzido e aprisionado pelo que não entende, continua, entretanto, iludido

pelo ideal da conquista possível de um espaço de ser. Mas muito amiúde fracassa. Por

que fracassa? Fracassa porque a escola insiste em permanecer indiferente às diferenças.

Como diz Perrenoud (2001: 19), “há várias décadas a escola vem transformando as

desigualdades sociais e culturais em desigualdades de resultados escolares, devido à sua

indiferença pelas diferenças”. É em Bourdieu que Perrenoud se ancora para sustentar

sua tese de que a indiferença às diferenças gera fracasso escolar:

Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore no conteúdo do

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ensino transmitido, nos métodos e nas técnicas de transmissão e nos critérios de julgamento, as desigualdades culturais entre crianças das diferentes classes sociais: em outras palavras, tratando todos os alunos, por mais desiguais que sejam de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar, na verdade, sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura. A igualdade formal que regula a prática pedagógica serve, na verdade, de máscara e de justificativa à indiferença para com as desigualdades reais diante do ensino da cultura ensinada ou, mais exatamente, exigida (Bourdieu, 1998: 53). Consoante Cox (2003), no caso específico da língua materna, o paradigma

gramatical “eficiente” para ensinar a norma padrão aos filhos das elites, que já vinham

para a escola falando variedades lingüísticas bastante próximas daquela que eles

deveriam aprender pela educação formal, redunda em um descomunal fracasso quando

aplicado aos filhos das classes populares. Desejando, pois, realizar uma educação

sensível aos saberes trazidos por essa clientela, a vertente educacional progressista, que

viceja no cenário sócio-político convulsionado dos anos 70 e 80, fortalecendo o debate

em torno de uma educação comprometida com a formação de cidadãos politicamente

emancipados, que possam trabalhar na construção de uma sociedade livre, justa e

igualitária, propõe uma pedagogia culturalmente sensível que deve se deslocar das

práticas simbólicas hegemônicas opressivas e se abrir, compreensiva e amorosamente,

para as práticas simbólicas periféricas, com o desejo não mais de substituir o estilo

comunicativo das crianças, mas de diversificá-lo, expandi-lo, potencializá-lo.

Desde o final da década de 1970, lingüistas têm argumentado favoravelmente à

adoção de uma pedagogia culturalmente sensível. O termo foi cunhado por Erickson

(1987), mas os fundamentos de uma tal pedagogia já haviam sido anunciados pelo

próprio Hymes (1972), ao sugerir que a escola trabalhasse “a partir de condições

socioculturais e sociolingüísticas das crianças” e não a partir do pressuposto de que as

crianças das classes populares são “lingüisticamente deficientes” e nada sabem que

possa ser o ponto de partida para a educação formal:

As crianças podem de fato ser “lingüisticamente deficientes” se a linguagem de sua competência natural não é a da escola; se os contextos que estimulam ou permitem o uso desta competência estiverem ausentes da escola; se os propósitos com que usam a língua e as formas como o fazem estão ausentes ou proibidas na escola. A situação das crianças, sem dúvida, é muito pior do que uma situação de deficiência se sua competência normal é punida na escola. Podemos falar mais apropriadamente de “repressão” (Hymes, 1972: xx, xxi).

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Os alunos das camadas populares trazem consigo para a escola a diversidade

cultural e lingüística, perturbadora da homogeneidade purista pequeno-burguesa, branca

e europeizada, sugerindo que professores e educadores comprometidos com suas tarefas

assumam novas posturas diante das diferenças. Aquele sujeito, impactado e deslocado

no novo espaço que lhe prescreve uma outra conduta, sinaliza, por suas diferenças

culturais e dialetais, a necessidade de que o descrevam/entendam. É como se dissesse a

todos: eu falo, resolvo, articulo, construo meu mundo e interpreto minhas relações,

portanto, eu falo uma língua que não pode ser ignorada, jogada fora. Como uma esfinge

da contemporaneidade lingüística propõe seu enigma: decifra-me e descreva-me. Em

tese, a pedagogia culturalmente sensível aceita o desafio de decifrar a esfinge. O

educador aceita o desafio de primeiro aprender para então ensinar. Entende que a

interação professor-aluno – fulcro da aprendizagem – é uma via de mão dupla, é uma

troca de saberes. Praticar uma pedagogia assim concebida é, em primeiro lugar,

legitimar a competência lingüística e comunicativa com que os educandos chegam à

escola, permitindo que eles adentrem, de corpo e alma, o espaço da sala de aula, e, em

segundo, propiciar-lhes um contato intenso com as práticas comunicativas,

sobremaneira, as práticas de letramento, às quais não têm acesso fora do espaço

destinado à educação formal. Se, por um lado, a crise aqui esboçada indicava a

premência de soluções, por outro, o desenvolvimento da lingüística discursiva sugeria

caminhos possíveis.

2.2 A fermentação do novo paradigma do ensino de língua portuguesa

Em finais da década de 1960, o ensino de língua portuguesa que priorizava a

gramática, “talvez por força da tradição do ensino jesuítico que persistiu do século XVI

até as primeiras décadas do século XX” (Soares, 2002: 168), dá mostras de sua

ineficácia frente às exigências dessa nova realidade, desenhada pelo processo de

democratização do acesso à escola, desencadeando um longo processo de reflexão sobre

as práticas pedagógicas dos professores em sua tarefa de “ensinar” a língua. De início

limitadas à esfera do pedagógico, as discussões propagam-se para outras dimensões da

disciplina, estimuladas, sobremaneira, pelo desenvolvimento das ciências lingüísticas.

Na década de 1970, segundo Soares (2002), o regime militar, com o intuito de

adequar a escola aos pressupostos político-ideológicos da ditadura, promoveu uma

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reforma através da lei 5692/71, que visava a contemplar o ideal de desenvolvimento e

nação então previsto. Nesse contexto, a língua passou a ser vista como instrumento

desse desenvolvimento. A própria denominação dada à disciplina no âmbito do então

criado primeiro grau, Comunicação e Expressão, de uma certa forma daria a medida do

objetivo de seu ensino, política e ideologicamente alicerçado na concepção de língua

como comunicação. Propunha-se o deslocamento do eixo da disciplina do estudo sobre

a língua para um estudo do uso da língua como instrumento de comunicação.

Introduziram-se nos livros didáticos textos ligados às práticas sociais cotidianas,

minimizando o critério puramente literário adotado nos livros anteriores à reforma.

Como afirma Soares (2002: 170): “Artigos de jornal, histórias em quadrinho, textos

não-verbais, publicidade e humor passam a conviver com os textos literários”. Contudo,

efetivamente, o que ocorreu foi a substituição de uma metalinguagem por outra, em

lugar da teoria gramatical passou-se a ensinar teoria de comunicação. Ao invés de

identificar sujeitos e predicados, o aluno passava a identificar os elementos da

comunicação (emissor, receptor, código etc.) e as funções da linguagem. A

comunicação propriamente continuava fora da sala de aula.

Na década de 1980, sob os ares da redemocratização do país, as disciplinas

Comunicação e Expressão e Comunicação em Língua Portuguesa (1º grau – séries: 1ª/4ª

e 5ª/8ª respectivamente), bem como Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (2º grau),

retornam à denominação Língua Portuguesa. Na visão de Soares (2002: 171), o retorno

à designação clássica significava

uma rejeição à concepção de língua e de ensino de língua que já não encontrava apoio nem no contexto político-ideológico da segunda metade dessa década (redemocratização do país), nem nas novas teorias desenvolvidas na área das ciências lingüísticas que então começavam a chegar ao campo do ensino da língua materna.

O retorno à denominação clássica não significava, contudo, um desejo de retorno

ao paradigma da tradição gramatical. Aliás, desde o final da década de 1970, um novo

paradigma de ensino de língua materna vinha se engendrando, impulsionado pelos

novos ramos da lingüística que transcendiam os limites estreitos da “forma” para

abarcar também os “usos” da língua. A lingüística imanente, em desenvolvimento desde

o início do século XX, pouco perturbara o paradigma gramatical, assentado na

concepção da linguagem como expressão do pensamento; na redução da língua à norma

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padrão de que decorre a polarização lingüística certo versus errado; na primazia da

modalidade escrita; na confusão entre língua, escrita, norma padrão e gramática; no

postulado de que a reflexão sobre unidades lingüísticas descontextualizadas não-

superiores à frase, amparada na metalinguagem da gramática tradicional, resulta em

bom uso da língua; na postura prescritiva e purista que renega todos os usos lingüísticos

não conformes ao esquadro da norma padrão. Como a gramática tradicional, a

lingüística imanente não transcendeu o nível da frase e não superou a prática de isolar a

“forma” do “uso” e de privilegiar a “forma”, na suposição de que a língua é, primeiro,

“forma” e, depois, “uso”. A postulação do sistema homogêneo oposto à fala

heterogênea, na consagrada dicotomia saussureana langue/parole, bem como a

concepção de língua como código e instrumento de comunicação não chegaram a

representar uma ameaça ao monolingüismo da norma padrão e a desestabilizar o

paradigma gramatical. Inúmeros estudos, alinhados com as lingüísticas de tendência

enunciativo-discursiva em desenvolvimento a partir da década de 1960, desencadearam

uma fervorosa polêmica em torno da inadequação do paradigma gramatical ao ensino de

língua materna, destacando-se, no Brasil, os trabalhos de Pécora (1983), Britto (1983),

Geraldi (1981, 1984, 1997), Possenti (1984), Soares (1986), Gnerre (1985), dentre

outros.

A crítica à concepção de linguagem como comunicação é, freqüentes vezes, feita

na companhia de Mikhail Bakhtin, cuja obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”

começa a circular nas universidades brasileiras no final da década de 1970, apesar de

publicada, em Leningrado, em 1929-1930. Bakhtin (2004) assume uma postura

dialógica, interacionista, contrapondo-se às duas correntes lingüísticas do início do

século XX, denominadas por ele de subjetivismo idealista e objetivismo abstrato. Pela

expressão subjetivismo idealista, ele se refere à concepção clássica da linguagem como

expressão do pensamento, realçando, contudo, a perspectiva da estilístico-literária, que

explica a originalidade, a criatividade da obra de arte, recorrendo à noção de expressão,

interpretada como “enunciação individual”, à maneira do romantismo. O autor concorda

com a posição de acentuar a enunciação, entendida como a substância real da língua, e

não o sistema inerte, mas discorda que ela seja individual, que ela se organize nas

profundezas da alma individual, que brote do interior, que se faça de dentro para fora.

Como marxista que é, põe a filosofia idealista de cabeça para baixo, invertendo os eixos

idéia-realidade, indivíduo-sociedade e pensamento-linguagem. É peremptório ao

afirmar que “a consciência individual não é o arquiteto da superestrutura ideológica,

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mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos” (Bakhtin, 2004: 36)

e mais que “não é a atividade mental que organiza a expressão verbal, mas, ao contrário,

é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua

orientação” (Bakhtin, 2004: 112). A consciência individual, privada de sua substância

semiótica e ideológica, é oca. Para ele, dizer que a enunciação é individual é uma

contradictio in adjecto (Bakhtin, 2004: 127), uma vez que enunciar necessariamente

implica o outro, mesmo quando se trata de um monólogo. Enunciar é uma atividade

responsiva em todos os momentos: antes, durante e depois. Locutor e interlocutor se

encontram/interagem nos signos, que são territórios semiótica e ideologicamente

compartilhados. Os signos constituem uma realidade interindividual. Por isso Bakhtin

(2004: 121) é contundente na rejeição ao subjetivismo individualista:

Assim, a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo individualista deve ser completamente rejeitada. O centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo. Só o grito inarticulado de um animal procede do interior, do aparelho fisiológico do indivíduo isolado. É uma reação fisiológica pura e ideologicamente não marcada. Pelo contrário, a enunciação humana mais primitiva, ainda que realizada por um organismo individual, é, do ponto de vista do seu conteúdo, de sua significação, organizada fora do indivíduo pelas condições extra-orgânicas do meio social. A enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social...

Em relação ao subjetivismo idealista, o que desagrada Bakhtin não é o fato de a

linguagem ser vista como expressão e sim o fato de a expressão ser vista pelo viés

individualista, psicológico. Quanto ao objetivismo abstrato, o alvo da crítica não é a

expressão, pois ela é colocada de lado por essa corrente, que, como vimos acima, separa

a língua da fala e elege a língua como objeto de estudo. A expressão pertenceria à fala.

A crítica recai sobre o fato de a língua, como sistema, ser tratada como um corpo morto,

isolado do todo dinâmico da enunciação, esta inseparável do fluxo linguageiro que

permeia as mais diversas práticas sociais. Tal concepção é, para ele, um artifício teórico,

fruto de abstração científica e monografias acadêmicas. Ela não dá conta do real da

língua que se apresenta instável, dinâmica, histórica, plurívoca, inacabada, aberta ao

mundo da vida. A visão da língua como um sistema abstrato estaria ligada à herança

filológica de que o pensamento lingüístico ocidental não consegue se desvencilhar. Quer

dizer, o estudo das línguas vivas estaria glosando os procedimentos práticos e teóricos

aplicados ao estudo das línguas mortas conservadas em documentos escritos. O

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pensamento filológico nasce e nutre-se dos cadáveres das línguas escritas no que é

imitado pelo pensamento lingüístico. Nos termos do próprio autor:

Os imperativos da filologia engendraram a lingüística, acalentaram-na e deixaram dentro de suas fraldas a flauta da filologia. Essa flauta tem por função despertar os mortos. Mas essa flauta carece da potência necessária para dominar a fala viva, com sua evolução permanente. (...) Em toda parte, a lingüística é filha da filologia. Submetida aos imperativos desta, a lingüística (...) elaborou seus métodos e categorias trabalhando com monólogos mortos, ou melhor, com um corpus de enunciações desse tipo (inscrições em monumentos antigos), cujo único ponto em comum é o uso da mesma língua (Bakhtin, 2004: 97 e 98).

Para essa corrente, caracteristicamente racionalista por considerar a língua uma

convenção arbitrária, o que mais importa é a própria relação “de signo para signo no

interior de um sistema fechado, ou seja: a lógica interna do próprio sistema de signos,

independentemente das significações ideológicas que a ele se ligam” (Bakhtin, 2004:

83). O ponto de vista do receptor prevalece sobre o do emissor, já que a língua como

convenção arbitrária constitui-se num fato objetivo externo e independente da

consciência individual. Ao locutor cabe fazer suas escolhas dentro de um sistema

fechado de signos previamente convencionados para produzir sentidos específicos. Essa

concepção de signo autoriza a interpretação do ato de compreender como mera

decodificação da mensagem. Quer dizer, uma mensagem unívoca codificada por um

emissor pode ser decodificada por um receptor que compartilhe do mesmo sistema de

signos. Posição radicalmente diferente é a de Bakhtin, para quem “o signo é um

fenômeno ideológico por excelência” (2004: 36) e como tal “reflete e refrata a realidade

em transformação” (2004: 41). De acordo com o autor, se o signo refrata a realidade é

porque é “a arena onde se desenvolve a luta de classes”, onde valores contraditórios se

confrontam. Diz ele:

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados.(...) A palavra é capaz de registrar as fases mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (Bakhtin, 2004: 41).

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Bakhtin desloca, pois, o estudo da língua da palavra ou frase isolada para o

estudo da palavra em seu contexto particular e em uma situação precisa de realização da

linguagem verbal, em que o sinal é completamente absorvido pelo signo e o

reconhecimento pela compreensão. O que Saussure e seus seguidores chamavam de

signo ele chama de sinal e o sinal espera não uma atitude compreensiva e responsiva,

mas apenas ser reconhecido/identificado. “A forma lingüística não tem substância

própria. Só pode isolar-se, abstratamente, do todo dinâmico da fala, da enunciação,

quando serve a determinados objetivos lingüísticos”, assevera Bakhtin (2004: 105).

Contrapondo-se a essa prática teórico-metodológica, o autor é enfático ao recomendar

que, ao estudarmos a língua(gem), não separemos a ideologia da realidade material do

signo; não dissociemos o signo das formas concretas da comunicação social e não

apartemos a comunicação e suas formas de sua base material (2004: 44). Se a forma

lingüística não tem substância própria e a palavra ganha significados conforme os

contextos em que é usada, então, até em um mesmo contexto de interação face a face,

por exemplo, ela tende a ganhar sempre novos valores/sentidos em função das

negociações que dinamicamente se processam. Quando uma mesma palavra figura em

dois contextos conflitantes, esses contextos encontram-se em interação e fornecem à

palavra acentos avaliativos diferenciados. São esses acentos que dão à enunciação a

indicação de acordo ou desacordo com alguma coisa. Os falantes circulam pela

possibilidade polissêmica da palavra, para mudarem seu acento avaliativo em função do

contexto ou da possibilidade de acordo, que o conflito ininterrupto, presente no

processo de interação, estabelece para os locutores.

Em Bakhtin, a noção de signo não se confunde com a noção de palavra ou

morfema, como em Saussure, nem também se limita à linguagem verbal ou às

linguagens propriamente. Para ele, o signo é muito mais amplo: tudo o que é ideológico

é semiótico. O signo resulta de um processo de conversão de um objeto físico que “sem

deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar uma outra

realidade” (2004: 31). Um instrumento, um produto de consumo, um elemento da

natureza podem ser transformados em signos. Assim, ao lado do universo material há

um universo de signos que corresponde a um universo ideológico. O autor cita o

exemplo do pão e do vinho, que, como produtos de consumo, não são signos, mas que

se tornam signos à medida que integram a ideologia cristã. Contudo, a palavra é um

signo especial, porque é desde sempre um signo ideológico. Faz parte de sua natureza

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ser um signo ideológico. Além de ser “um fenômeno ideológico por excelência” (2004:

36), um “signo puro”, a palavra é também o mais neutro dos signos. Diz Bakhtin:

Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. O signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer função ideológica: estética, científica, moral, religiosa (Bakhtin, 2004: 36 e 37 ─ grifo do autor).

Podemos dizer que a descoberta de Bakhtin e a virada pragmática da lingüística

são acontecimentos contemporâneos nas universidades brasileiras, acontecimentos

muitas vezes postos em diálogo explícito por nossos lingüistas, mas não raro mantidos à

parte, a título de algum posicionamento purista veemente reivindicado por um ou outro

intelectual. Como vimos, o acontecimento da lingüística imanente em nada alterou os

rumos do ensino de língua materna, mas, mal as lingüísticas do uso, as lingüísticas

enunciativas, começam a se esboçar no cenário acadêmico, uma revolução

paradigmática no ensino de língua materna começa a se engendrar. Além da teoria da

enunciação social de Bakhtin, os conhecimentos que viriam convulsionar o ensino

gramatical originavam-se na sociolingüística, na lingüística textual e na análise de

discurso, ciências da segunda metade do século XX.

No começo da década de 1960, Labov, nos Estados Unidos, fundou a

sociolingüística, reconceituando a língua como um sistema heterogêneo, composto de

variantes lingüísticas que se correlacionam a fatores extralingüísticos. Essa concepção

abala o reinado absoluto do princípio categórico de avaliação dos usos lingüísticos em

“certos” e “errados”, dando lugar a um princípio relativista que os avalia em adequados

e inadequados em função de variáveis contextuais. Com a sociolingüística, aprendemos

que todo falante é polilíngüe em sua própria língua, ou, como diz Paquette (2001: 253),

que todo falante é “polirregistral”. Assim, o principio da “correção” cederia seu lugar

para o de “adequação”, tal como proposto pelo sociolingüista norte-americano Dell

Hymes (1972), que cunhou o termo simultaneamente à proposição do conceito de

“competência comunicativa”, complementar ao conceito de “competência lingüística”,

postulado por Chomsky na década de 1960. Enquanto o conceito de competência

lingüística responde apenas pela boa formação gramatical das sentenças, gerando a

categoria avaliativa gramatical/agramatical (que não equivale à categoria certo/errado),

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o conceito de competência comunicativa, além das regras sintáticas de formação de

sentenças, responde pelas habilidades de uso da língua. Segundo Hymes (1972: 281),

quatro condições devem ser usadas para avaliar a eficiência comunicativa de um

enunciado: 1) se o enunciado é formalmente possível; 2) se o enunciado é viável em

virtude dos meios de implementação disponíveis; 3) se o enunciado é apropriado em

relação ao contexto no qual é usado e avaliado e 4) se o enunciado é realizado e o que

acarreta quando executado. Interpretando Hymes, Bortoni-Ricardo (2004: 73) afirma

que “o falante não só aplica as regras para obter sentenças bem formadas, mas também

faz uso de normas de adequação definidas em sua cultura. São essas normas que lhe

dizem quando e como monitorar o seu estilo". Quer dizer, o conceito de competência

comunicativa põe as muitas normas lingüísticas de uma língua em co-relação com a

situação, com o interlocutor e com o assunto. A “adequação” resulta, pois, da sintonia

entre normas lingüísticas e normas sócio-culturais, ao passo que a “inadequação” resulta

da falta de sintonia entre esses dois tipos de norma. Em textos que buscam fazer a

transposição do conceito de competência comunicativa ao ensino de língua materna,

abundam metáforas como esta – É tão inadequado ir a uma cerimônia de formatura de

biquíni e short, quanto ir à praia de vestido longo e terno e gravata! – para ilustrar

visualmente o conceito de inadequação. Tais metáforas querem significar que o ensino

de língua materna não deve visar à correção da língua errada do aluno, não deve visar

ao uso de terno e gravata em todas as situações, mas à ampliação de sua competência

comunicativa pela aquisição de registros que ele ainda não domina.

Embora a sociolingüística admita que a heterogeneidade lingüística é inerente ao

sistema, continua a privilegiar a forma. Não sem razão, define “variante” como

alteração da forma que não afeta o sentido. A forma, opondo-se ao uso e ao sentido, só

viria a ser destronada pela análise de discurso, que também entra em cena na década de

1960, não nos Estados Unidos, mas na França, ligada ao nome de Pêcheux (1969 e

1975). Subsumindo a concepção interacional de linguagem, a análise de discurso inverte

a direção dos estudos lingüísticos e desloca a ênfase da língua como sistema abstrato

para a língua em funcionamento e da forma para o sentido. As unidades da língua em

funcionamento não são frases, palavras, morfemas ou fonemas isolados e

descontextualizados, mas textos que atualizam gêneros discursivos próprios das esferas

de atividades de uma dada formação sócio-histórico-ideológica. Embora por caminhos

diferentes, Pêcheux e Bakhtin comungam da concepção de que o sentido não está na

palavra em estado de dicionário, mas sim na ideologia. Pêcheux (1975) não vincula o

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sentido diretamente à ideologia como o faz Bakhtin, mas sim ao discurso que, por sua

vez, se remete ao complexo de formações ideológicas em relações contraditórias.

Contemporânea da sociolingüística e da análise de discurso, a lingüística textual

também avulta como um dos pilares do novo paradigma de ensino de língua materna,

sobretudo os trabalhos de Halliday e Hasan (1976) acerca da textualidade. Tais autores

definem o texto com base no conceito de textura. Todo texto apresenta textura, quer

dizer, funciona como uma unidade semântica em relação à situação em que é produzido.

A textura é tanto intratextual quanto contextual. O aspecto responsável pela textura no

intratexto é a coesão. A coesão faz do texto um todo de significação. É, pois, um

conceito relacional que pretende explicar as articulações de significado entre as partes

de um texto, sem que esteja implicada qualquer homologia com as estruturas da

gramática frasal. Pode-se dizer que há coesão quando a interpretação de alguma parte do

texto pressupõe a retomada de outra. Além da coesão, o outro aspecto da textura diz

respeito à relação entre o texto e o contexto de situação. As características situacionais

de um texto constituem o registro. Quanto mais perfilado um contexto, tanto mais

predizíveis seus acontecimentos textuais. Esse aspecto da textura é comumente referido

como coerência e envolve uma competência enciclopédica acerca dos scripts que

desempenhamos em nossa vida cotidiana. Os scripts nos permitem antecipar sentidos e

preencher os vazios do texto.

Assim, estimulado pelos avanços da lingüística, o novo paradigma propõe que o

ensino de língua materna inverta o eixo reflexão=>uso para o eixo

uso=>reflexão=>uso. O uso é elevado à condição de princípio e fim do ensino de

língua materna; a reflexão é realizada para trazer à consciência um saber que se domina

pela prática. O objeto de ensino não devem ser as frases e seus constituintes e nem a

metalinguagem usada para descrevê-las, mas sim os gêneros discursivos e os textos que

os atualizam, tomados como unidades de trabalho, afinal os interlocutores, ao

interagirem, produzem textos. Apoiando-nos em Maingueneau (2001: 43), poderíamos

dizer que o ensino de língua materna visa a expandir a competência genérica dos alunos,

ou seja, a capacidade de se comportarem “como convém nos múltiplos gêneros

discursivos”.

Geraldi (1997: 119), um dos lingüistas com atuação decisiva na formação do

novo paradigma, afirma que a língua pode ser encarada por dois ângulos: “ou é vista

como instrumento de comunicação, como meio de troca de mensagens entre as pessoas,

ou é tomada como objeto de estudo, como um sistema cujos mecanismos estruturais se

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procura identificar e descrever”. Segundo ele, a partir dessas perspectivas, resultam dois

objetivos a que o professor poderá se propor em sua tarefa de ensinar a língua:

ou o objetivo será desenvolver no aluno as habilidades de expressão e compreensão de mensagens ─ o uso da língua ─ ou o objetivo será o conhecimento do sistema lingüístico ─ o saber a respeito da língua. É exercendo a linguagem que o aluno se preparará para deduzir ele mesmo a teoria de suas leis. Não aterrá-lo com o aparato de uma ciência, que disfarça a sua esterilidade sob a fantasmagoria das palavras, mas simplesmente induzi-lo a adquirir concepção racional do que já sabe por hábito, e repete maquinalmente. (...) levar o aluno à consciência da língua só depois de ter ele a posse da língua (Geraldi, 1997: 119 e 120 ─ grifo do autor).

Com esse autor, patenteia-se, no decorrer da década de oitenta, o tripé das

práticas: prática de produção de textos, prática de leitura de textos e prática de análise

lingüística, como unidades básicas do ensino de língua. A prática de produção de textos

é o coração do ensino-aprendizagem de língua. Isso porque, no texto, a língua “se revela

em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas, quer enquanto discurso que se

remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de enunciação

marcada pela temporalidade e suas dimensões” (Geraldi,1997: 135). Atualmente, como

afirma Brandão (2000: 17), é quase consensual que o ensino de línguas deve estar

centrado no texto. Porém, a decisão de fazer dos gêneros discursivos a matéria das aulas

de língua materna é uma forma de afastar o fantasma do casuísmo que vem rondando o

trabalho com o texto, visto “como material anódino, indiferenciado, a ser trabalhado de

forma homogênea” (Brandão, 2000: 17).

E, mais uma vez, é a Bakhtin que se recorre para a conceituação de gênero. O

autor enfatiza que todas as práticas sociais envolvem a utilização da língua. Se múltiplas

são as esferas de atividade humana, múltiplos são os usos da língua. Os usos efetuam-se

através de textos concretos que têm por referência gêneros do discurso, definidos como

“tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2003: 262), correspondentes a

uma mesma esfera de práticas sociais e, portanto, a uma mesma esfera de utilização da

língua. Como as esferas de atividade humana de uma sociedade se transformam no

tempo e no espaço, também os gêneros de discurso o fazem.

Segundo Bakhtin (2003: 261 a 269), os gêneros do discurso definem-se pelo

tema, pela composição e pelo estilo: “tema” é tudo aquilo que se pode dizer num

discurso, os sentidos que constrói e põe em circulação; “composição” é a arquitetura, o

formato, a estrutura organizacional dos textos como um todo; “estilo” é a forma

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resultante da seleção dos recursos lingüísticos (fonológicos, morfológicos, lexicais,

sintáticos etc). Estes três elementos, definindo-se pela singularidade de uma esfera de

comunicação, articulam-se de modo inextricável. Enfim, “se não existissem os gêneros

do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no

processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a

comunicação verbal seria quase impossível” (Bakhtin, 2003: 283), tamanho o esforço

cognitivo que seria necessário para inventar, adamicamente, o próprio verbo. Isso não

quer dizer que os gêneros sejam formas fixas, fossilizadas, que impedem a mudança.

Esse vigoroso debate acadêmico dos anos 70 e 80, suscitado pela mudança

paradigmática da lingüística na segunda metade do século XX, inaugurou uma nova

forma de olhar a educação lingüística, uma forma livre de preconceito, livre do estigma

do certo e do errado e preocupada em realizar um ensino produtor de competências e

não castrador/emudecedor da língua materna do aluno. Essa nova forma de olhar foi

absorvida pelos documentos oficiais editados nos anos 90, dentre eles aqueles relativos

ao ensino médio.

2.3 A área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias

A Lei 9394 forneceu, portanto, os fundamentos legais que orientam a proposta

de reforma curricular do ensino médio. Porém, coube à Resolução nº 03/98 criar as

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM). Reafirmando o

propósito de ser uma educação integral e não uma mera preparação para exames

vestibulares, as DCNEM têm por fundamentos filosóficos o tripé: 1) estética da

sensibilidade (que valoriza o criativo, o curioso e favorece o trabalho autônomo, não

padronizado); 2) política da igualdade (que busca a solidariedade e respeita a

diversidade, sendo base da cidadania); 3) ética da identidade (que promove a autonomia

do educando, da escola, das propostas pedagógicas etc.). Esse tripé não se harmoniza

com um ensino enciclopedista que reduza a aprendizagem ao armazenamento de saberes

instituídos como verdadeiros. Por isso, as DCNEM concebem o conhecimento como

construção coletiva e a aprendizagem como formação de competências em torno de três

eixos: Representação e Comunicação, Investigação e Compreensão, Contextualização

Sócio-cultural. A preocupação em formar competências e habilidades vincula-se a uma

proposta de educação integral que contemple a vida em sociedade, a atividade produtiva

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e as experiências subjetivas. Competências duram e funcionam para além da rotina e da

vida escolar. Nesse aspecto, as DCNEM alinham-se com as quatro premissas apontadas

pela UNESCO como eixos estruturais da educação na sociedade moderna: aprender a

conhecer, aprender a fazer, aprender a viver, aprender a ser. Trata-se de uma educação

que deve perseguir não a memorização de conhecimentos em via de superação, mas sim

a formação de competências básicas que permitam continuar aprendendo sempre. Em

tal processo, é condição necessária que os conteúdos sejam significativos do ponto de

vista do educando e, portanto, contextualizados e tratados de forma interdisciplinar.

Tendo em vista tais princípios, as DCNEM propõem que o ensino médio se estruture em

três grandes áreas: (i) Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias,

(ii) Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e (iii) Ciências Humanas e suas

Tecnologias (Art. 10).

O arranjo por área resume a proposta de interação entre os componentes do

currículo e constitui uma estratégia pedagógica para assegurar ao aluno a compreensão

dos fenômenos naturais e sociais de onde o conhecimento escolar foi extraído e onde

deve ser aplicado. A interdisciplinaridade e a contextualização atuam no sentido de

desenvolver nos alunos as seguintes competências: vincular a educação ao mundo do

trabalho e à prática social; compreender significados; ser capaz de continuar

aprendendo; preparar-se para o trabalho e o exercício da cidadania; ter autonomia

intelectual e pensamento crítico; ter flexibilidade para adaptar-se a novas condições de

ocupação; compreender os fundamentos científicos e tecnológicos dos processos

produtivos; relacionar teoria e prática.

A interdisciplinaridade, como forma de fazer interagir os conhecimentos no

âmbito das disciplinas escolares, é matéria de regulamentação legal, constante do artigo

8º. das DCNEM, que a justifica mediante os seguintes argumentos: I) todo

conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conhecimentos, que pode ser

de questionamento, de negação, de complementação, de ampliação, de iluminação de

aspectos não distinguidos; II) a integração de conhecimentos permite, no estudo de

problemas concretos, ir da descrição à análise, explicação, previsão e intervenção, por

meio de projetos de investigação e/ou ação; III) a interação de conhecimentos permite

ampliar a visão parcial e arbitrária da realidade inerente à ordem disciplinar; IV) a

complementaridade de conhecimentos facilita o desenvolvimento intelectual, social,

afetivo e profissional de modo mais amplo e integrado; V) a interação entre

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conhecimentos, competências e valores, converge para o exercício pleno da cidadania e

para a inserção flexível no mundo do trabalho. Quanto à contextualização,

regulamentada pelo artigo 9º., a lei indica que: I) a transposição dos conhecimentos

produzidos no escopo da ciência para a situação de ensino deve se harmonizar com a

experiência do aluno para poder ser significativa para ele; II) a aplicação dos

conhecimentos constituídos na escola às situações da vida cotidiana deve revelar

empoderamento e emancipação do aluno em relação à experiência espontânea,

permitindo-lhe distanciar-se dela, compreendê-la, criticá-la e transformá-la.

Nos termos das DCNEM, a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias

volta-se para a formação de competências relativas à capacidade humana de constituir

significados coletivos, por meio de variados sistemas e códigos, compartilhados de

acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade. Tais competências

são relevantes para a aquisição e formalização de todos os conteúdos curriculares, assim

como para a constituição da identidade e exercício da cidadania. Assim, como as

DCNEM complementam as disposições da LDB 9394 para o ensino médio, os PCNEM

complementam as DCNEM.

Consoante os PCNEM, as disciplinas Língua Portuguesa, Língua Estrangeira

Moderna, Arte, Educação Física e Informática, ao integrarem a área de Linguagens,

Códigos e suas Tecnologias, favorecem, por suas características comuns, a articulação

interna da área e possibilitam a estruturação de uma base comum de conhecimentos

diversificados, representados por diferentes modos de manifestação da linguagem.

Conquanto as linguagens divirjam no plano da expressão, no suporte e nos instrumentos

de que se servem, convergem no plano do conteúdo. “A fala, a escrita, os movimentos

corporais, a arte estão intimamente ligados à cognição, à percepção, à ação, sendo

expressões da cultura. Todos os sistemas procuram tornar os significados

comunicáveis” (PCNEM: 191). “A principal razão de qualquer ato de linguagem é a

produção de sentido” (PCNEM: 125). O conceito de linguagem como forma social de

interação e de significação da realidade, capaz de produzir sentidos sócio-

historicamente constituídos, é o que norteia a escolha das disciplinas agrupadas pela

área, onde a “língua materna desempenha o papel de viabilizar a compreensão e o

encontro dos discursos utilizados em diferentes esferas da vida social. É com a língua e

pela língua que as formas sociais arbitrárias de visão e divisão de mundo são utilizadas

como instrumentos de conhecimento e comunicação” (PCNEM: 191). A articulação

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entre os conhecimentos da área é, assim, possibilitada pelo uso sistemático da língua em

ações de produção textual, construídas interacionalmente nas mais diversas esferas de

atividades sociais e, conseqüentemente, comunicativas.

A área busca refletir o entendimento de que as linguagens se interrelacionam nas

práticas sociais e na história. Entende que as linguagens se estruturam de forma

semelhante, independentemente do código de que se utilizam, organizando o

conhecimento e a comunicação a partir de “elementos (léxico) e relações (regras)

significativas”. Concebe as linguagens e seus códigos em sua inserção dinâmica no

tempo e no espaço onde estão sujeitos a implicações de caráter histórico, sociológico e

antropológico. Não perde de vista suas relações com as práticas sociais em sentido lato

e produtivas em sentido estrito, levando em consideração a emancipação do aluno,

como cidadão, em um mundo letrado e simbólico. Como o mundo contemporâneo é o

mundo da ubiqüidade da informação, um mundo essencialmente simbólico, o domínio

das linguagens em suas relações/combinações complexas é condição necessária à

participação ativa – à participação efetivamente cidadã – na vida social.

O ensino médio, ao contemplar objetivos tão amplos quanto a formação humana

e social do indivíduo, pretende que o curso seja um espaço em que os conhecimentos a

serem adquiridos e os já adquiridos em etapas anteriores ganhem significação,

propiciando a aquisição por parte do aluno, e para toda a sua vida, de eficazes

instrumentos de aprendizagem, que lhe permitam problematizar e refletir sobre a

realidade e negociar significados com os outros, exercitando sua autonomia e

construindo-se como cidadão. Um ensino centrado apenas na informação e transmissão

de conteúdos disciplinares não seria capaz de contemplar tão vastas demandas. Daí, os

novos programas para o curso apoiarem-se na construção de conhecimentos e

competências essenciais, que visam à inserção do aluno no sistema educacional e na

conseqüente transição para o universo profissional. Destarte, a área de Linguagens,

Códigos e suas Tecnologias, objetiva a constituição de competências e habilidades que

permitam ao educando:

• Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade, pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação;

• Analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função,

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organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção;

• Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas;

• Respeitar e preservar as diferentes manifestações de linguagem utilizadas por diferentes grupos sociais, em suas esferas de socialização, usufruir do patrimônio nacional e internacional, com suas diferentes visões de mundo e construir categorias de diferenciação, apreciação e criação;

• Utilizar-se das linguagens como meio de expressão, informação e comunicação em situações intersubjetivas, que exijam graus de distanciamento e reflexão sobre os contextos e estatutos de interlocutores; e saber colocar-se como protagonista no processo de produção/recepção.

• Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade.

• Conhecer e usar língua(s) estrangeira(s) moderna(s) como instrumento de acesso a informações e a outras culturas e grupos sociais.

• Entender os princípios das tecnologias da comunicação e da informação, associá-las aos conhecimentos científicos, às linguagens que lhes dão suporte e aos problemas que se propõem solucionar.

• Entender o impacto das tecnologias da comunicação e da informação na sua vida, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.

• Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida”. (PCNEM: 125 a 134).

Esse elenco de competências não deve funcionar como uma camisa de força para

a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, afinal a LDB, erigindo-se sob o

princípio da flexibilidade e da autonomia, abre a possibilidade de muitas formas de

organização do ensino médio. As DCNEM (p.83) assinalam que devemos usar tais

princípios “para estimular identidades escolares mais libertas da padronização

burocrática, que formulem e implementem propostas pedagógicas próprias (...)”. A

definição de quais competências, habilidades, conceitos e conteúdos irão estruturar as

dinâmicas de aprendizagem deve se dar no âmbito dos programas de cada escola,

obedecendo-se a critérios de contextualização, considerada a reflexão do corpo de

professores e da comunidade escolar como um todo, incluindo as famílias dos alunos,

que, no cenário de sua experiência cotidiana, devem opinar sobre os recortes a serem

efetuados, no sentido de explicitar os significados da vivência escolar, articulados com

os objetivos do curso.

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2.3 Os conhecimentos de língua portuguesa

Se, em épocas anteriores, a língua portuguesa ocupava praticamente sozinha o

espaço destinado às linguagens na grade curricular, contemporaneamente, o fenômeno

da multimodalidade, que se impõe como traço característico da sociedade da

informação, não permite mais que ela se enclausure em seus limites disciplinares. Não

sem razão, os PCNEM falam em “conhecimentos” de língua portuguesa e não em

“disciplina”. O domínio lingüístico constitui um quinhão muito importante na área de

Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, assumindo a função de articulador dos

diferentes sistemas de comunicação, mas não reina mais absoluto. O documento propõe

que as competências e habilidades a serem desenvolvidas se organizem pelo tripé:

Representação e Comunicação, Investigação e Compreensão e Contextualização Sócio-

cultural. O eixo Representação e Comunicação agrupa as seguintes competências:

I)confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes manifestações da linguagem verbal; II) compreender a língua materna como geradora de significação e integradora da organização de mundo e da própria identidade” (PCNEM: 145).

Já o eixo Investigação e Compreensão tem em vista competências como:

I)analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando textos/contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo com as condições de produção/recepção; II) recuperar, pelo estudo do texto literário, as formas instituídas de construção do imaginário coletivo, o patrimônio representativo da cultura e as classificações preservadas e divulgadas, no eixo temporal e espacial; III) dominar os componentes estruturais da linguagem verbal compreendendo sua diversidade e IV) articular as redes de diferenças e semelhanças entre a língua oral e escrita e seus códigos sociais, contextuais e lingüísticos” (PCNEM: 145).

Finalmente, o eixo da Contextualização Sócio-cultural proporciona que as competências

de Representação e Comunicação, bem como as de Investigação e Compreensão

desenvolvam-se de modo sensível aos aspectos sócio-histórico-culturais expressos e

representados lingüisticamente no mundo do aluno. “A língua deve estar situada no

emaranhado das relações humanas, nas quais o aluno está mergulhado” (PCNEM: 141).

O trabalho com a língua portuguesa, no sentido de garantir ao aluno a aquisição de

conhecimento efetivo, significativo e crítico sobre a realidade lingüística, requer o apoio

teórico da sociolingüística, da análise de discurso e de outras ciências lingüísticas que

têm por objeto o uso da língua. Apenas assim orientado, o trabalho com a língua

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portuguesa pode sustentar a inclusão social do aluno minoritarizado também por seu

modo de falar e pode igualmente combater preconceitos que assombram as diversas

formas de dizer do português do Brasil. O respeito às diferenças lingüísticas, o

reconhecimento de que a língua está sujeita à transformação e que evolui historicamente

nas trocas sociais, refletindo a visão de mundo dos seus usuários/falantes, em exercício

constante de significações e ressignificações, são aspectos que, ao serem abordados,

podem levar à adoção do ponto de vista de que toda língua é inerentemente heterogênea.

Ser heterogênea não é um defeito da língua, como quer nos fazer crer a ideologia purista

advogada pelo paradigma tradicional.

Partindo, pois, de uma concepção interacionista de linguagem verbal, os

PCNEM renegam o ensino da língua assentado no estudo da nomenclatura gramatical e

da língua morta, esquartejada em frases, palavras, morfemas etc., isolada da enunciação.

Vislumbram um trabalho com as práticas textuais inerentes às diversas práticas sociais.

O texto é, então, alçado à condição de “unidade básica da linguagem verbal,

compreendido como a fala e o discurso que se produz, e a função comunicativa, o

principal eixo de sua atualização e razão do ato lingüístico” (PCNEM: 139). No

deslocamento da forma para os usos da língua, o texto torna-se o ponto de partida e de

chegada de todos os procedimentos pedagógicos. Até mesmo o homem é visto como um

enredamento de textos. Afirma o documento:

O aluno deve ser considerado como produtor de textos, aquele que pode ser entendido pelos textos que produz e que o constituem como ser humano. O texto só existe na sociedade e é produto de uma história social e cultural, único em cada contexto, porque marca o diálogo entre os interlocutores que o produzem e entre os outros textos que o compõem. O homem é visto como um texto que constrói textos (PCNEM: 139).

O texto, assim considerado, revela a natureza social e interativa da linguagem.

Propõe ao aluno espaços de expressão e verbalização de seu mundo interior e do seu

entorno, reconhecendo sua própria linguagem e as outras linguagens que com ele

dialogam, nas diversas esferas sociais por onde obrigatoriamente transita em seu

processo de desenvolvimento. Abre espaço para que ele perceba a diversidade das

manifestações da linguagem. Chama seu olhar, metaforicamente, sobre os prédios e

fisionomias para que, ao vê-los como linguagens da história e da cultura, perceba-se

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capaz de ler o mundo à sua volta, interagindo com ele e com suas diferenças. Na

linguagem e no fenômeno interativo de sua construção, convida-o a reconhecer-se como

sujeito e objeto de sua própria transformação e da transformação do mundo. Incita-o

para que, através da fala ou da escrita, sistematize sua expressão, elaborando textos

nascidos do jogo dialógico do eu e do outro.

Os processos de aprender relacionam-se inextricavelmente às formas de ler os

objetos de conhecimento à disposição dos atores sociais envolvidos e orientam a

produção dos discursos em forma de textos verbais ou não-verbais, apoiados nesses

conhecimentos. Não se trata meramente de escrever sobre o que se leu, mas de fazer da

leitura e da escrita, práticas sociais viscerais. Significa transitar de uma prática escolar

centrada numa visão puramente técnica das atividades de leitura e escrita, em que o

professor limita essas atividades ao domínio do código utilizado, desvinculado da

prática social e da história, para a compreensão do texto concretizado nos diversos

gêneros discursivos materializados nas linguagens. Gêneros, como vimos na seção 2.2,

são formas estáveis, mas não imutáveis, de uso da língua em determinados contextos

sociais. Cada época tem seus gêneros. Os gêneros são, pois, marcados pela

historicidade. Alguns duram tanto tempo que parecem se eternizar, outros desaparecem

sem deixar rastros. Assim, o trabalho escolar com a língua avulta como uma

possibilidade de ampliar e diversificar o repertório de gêneros que integra a

competência comunicativa dos alunos, de modo a criar as condições para uma

participação ativa em todas as instâncias da vida pública.

A proposta de trabalho com os “conhecimentos de língua portuguesa” ganha um

reforço adicional com a publicação, em 2006, das Orientações Curriculares para o

Ensino Médio (OCEM), que reforçam os princípios postos pelos PCNEM no que tange

ao ensino de língua portuguesa, insistindo, contudo, na sua articulação com as demais

linguagens, por meio da proposta de letramento multimodal ou letramento

multissemiótico. Esse conceito amplia o sentido de letramento para outras práticas

linguageiras que extrapolam o espaço da escrita stricto sensu. Nessa perspectiva, o

documento faz referência às diversas narrativas e aos espaços de onde elas emergem sob

a forma de gêneros discursivos, constituídos em múltiplas linguagens com diferentes

dimensões implicadas na produção de sentidos, refletindo também o propósito “de

possibilitar múltiplos letramentos” (OCEM: 28). A proposta de trabalho com a língua na

perspectiva da promoção de letramentos múltiplos subsume que:

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a leitura e a escrita como ferramentas de empoderamento e inclusão social. Some-se a isso que as práticas de linguagem a serem tomadas no espaço da escola não se restringem à palavra escrita nem se filiam apenas aos padrões socioculturais hegemônicos. Isso significa que o professor deve procurar, também, resgatar do contexto das comunidades em que a escola está inserida as práticas de linguagem e os respectivos textos que melhor representam sua realidade (OCEM: 28).

Se considerarmos as práticas sociais e, portanto, práticas simbólicas, como

fenômenos multimodais, complexificados ininterruptamente na sociedade

contemporânea, em que novas formas de interação estão sempre propondo novas

condições de realização dos discursos, inclusive em função das inovações tecnológicas,

temos de falar, necessariamente, de “letramentos”, no plural. Se, por multimodal,

entendermos as formas de representação de que as linguagens se utilizam para construir

o sentido e ainda acrescentarmos a noção de contexto indispensável à produção de

sentidos, mesmo que reduzamos nossa reflexão ao âmbito das linguagens verbais, (fala

ou escrita), veremos que o fenômeno da multimodalidade sempre se fez presente. Em

qualquer uma das formas, palavras nunca existiram sozinhas na constituição de

sentidos, e estes, uma vez constituídos, nunca se fizeram em textos isolados. Mesmo nos

manuais técnicos ou nas bulas de remédios existe um grau de informatividade que se

encontra além da simples estrutura organizacional das palavras comprometidas naquela

informação específica. Todo livro didático está prenhe de hipertextualidade, se

quisermos usar esse conceito. As trocas do diálogo, do debate regrado ou da simples

conversa informal, fazem uso de diferentes formas de representação em função dos

sentidos pretendidos pelos seus co-enunciadores, para não falarmos inclusive das

formas do silêncio, ou da página em branco numa organização tipográfica. Esses

aspectos, que não podem ser convenientemente tratados por uma abordagem técnica da

leitura e da escrita, são fundamentais se desejamos que o aluno assuma uma postura

reflexiva e consciente, uma postura de protagonista na ação coletiva de tessitura do

universo de práticas letradas e não de mero consumidor.

O que se defende, portanto, é a absoluta necessidade de se avocar e levar adiante o desafio de criar condições para que os alunos construam sua autonomia nas sociedades contemporâneas – tecnologicamente complexas e globalizadas – sem que, para isso, é claro, se vejam apartados da cultura e das demandas de suas comunidades. Isso significa dizer que a escola que se pretende efetivamente inclusiva e aberta à diversidade não pode ater-se ao letramento da letra, mas

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deve, isso sim, abrir-se para os múltiplos letramentos, que, envolvendo uma enorme variação de mídias, constroem-se de forma multissemiótica e híbrida – por exemplo, nos hipertextos na imprensa ou na internet, por vídeos e filmes, etc. Reitera-se que essa postura é condição para confrontar o aluno com práticas de linguagem que o levem a formar-se para o mundo do trabalho e para a cidadania com respeito pelas diferenças no modo de agir e de fazer sentido (OCEM: 29).

As OCEM salientam que a tarefa de precisar os conteúdos a serem trabalhados

durante as aulas cabe à comunidade escolar. Essa tarefa constitui uma parte substancial

na definição do PPP da escola, que é uma ação de natureza pedagógica e, sobretudo,

política, uma vez que comprometida com o projeto de cidadãos que se propõe a formar.

Apenas orientações muito gerais são fornecidas como a recomendação de que:

as escolas procurem organizar suas práticas de ensino por meio de agrupamentos de textos, segundo recortes variados, em razão das demandas locais, fundamentando-se no princípio de que o objeto de ensino privilegiado são os processos de produção de sentido para os textos, como materialidade de gêneros discursivos, à luz das diferentes dimensões pelas quais se constituem (OCEM: 36).

Em termos de procedimento pedagógico, o documento recomenda as seqüências

didáticas, assim como os projetos de intervenção, que devem contemplar tanto “os usos

da língua e suas formas de atualização nos eventos de interação (os gêneros do discurso)

como as questões relativas ao trabalho de análise lingüística e à análise do

funcionamento sociopragmático dos textos” (OCEM: 36). Reiterando a precedência do

uso sobre a forma, dois eixos são propostos e na seguinte direção PRÁTICAS DE

LINGUAGEM => ANÁLISE DOS FATORES DA VARIABILIDADE DAS (E NAS)

PRÁTICAS DE LINGUA(GEM). Em relação ao eixo das práticas, são sugeridas as

seguintes atividades em que a voz de Bakhtin ressoa em alto e bom som:

Quadro 1: Atividades de produção e recepção de textos Atividades de produção escrita e de leitura de textos gerados nas diferentes esferas de atividades sociais – públicas ou privadas Atividades de produção de textos (palestras, seminários, debates, teatro etc.) em eventos de oralidade Atividades de escuta de textos (palestras, seminários, debates etc.) em situação de leitura em voz alta Atividades de retextualização: produção escrita de textos a partir de outros textos, orais ou escritos, tomados como base ou fonte Atividades de reflexão sobre textos, orais e escritos, produzidos pelo próprio aluno (reelaboração) Síntese do Quadro 1, OCEM, p. 37-38

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Em relação ao eixo de análise, são sugeridas as seguintes atividades: Quadro 2: Atividades de análise Elementos pragmáticos envolvidos nas situações de interação em que emergem os gêneros em estudo e sua materialidade – os textos em análise Estratégias textualizadoras: uso de recursos lingüísticos em relação ao contexto, processos de coesão textual, composição textual, macroestrutura semântica, organização e progressão temática Mecanismos enunciativos: identificação dos pontos de vista dos enunciadores, modalização etc. Intertextualidade: estudo das diferentes relações intertextuais Ações de escrita: ortografia e acentuação, construção e reformulação e função e uso da topografia do texto Síntese do Quadro 2, OCEM, p. 38-39

Neste capítulo, relembramos os movimentos que compõem a reforma do ensino

médio desde o momento efervescente pós-ditadura que antecedeu a proposição e

promulgação da LDB 9394 até a publicação das DCNEM (1998), dos PCNEM (1999) e

das OCEM (2006), focalizando a questão do ensino-aprendizagem de língua

portuguesa. Qual é o impacto dessa reforma no cotidiano de uma escola de ensino

médio, mais e melhor explicitando, na proposta de trabalho com a língua portuguesa

esboçada pelo PPP da escola? Eis a questão de que nos ocuparemos no próximo

capítulo.

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Se os professores escutassem seus próprios protestos, ou inclusive simplesmente deixassem espaço e valorizassem suas próprias perguntas, isso bastaria para provocar um estalo na armadura do sistema educativo (Alicia Fernandez, apud Costa, 2007: 127).

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Capítulo III

O Projeto Político Pedagógico e o ensino de língua portuguesa

A oficialização das diretrizes, parâmetros e orientações curriculares para o

ensino médio, por meio dos documentos DCNEM, PCNEM e OCEM, não deve ser

interpretada como um óbice à autonomia das escolas, embora tais documentos sejam

freqüentemente criticados sob a alegação de fechamento. Vamos iniciar este capítulo,

relembrando momentos de tais documentos em que, textualmente, os princípios de

flexibilidade e autonomia, inspirados na LDB 9394, são invocados como desejáveis.

Tais documentos encorajam os sistemas e estabelecimentos de ensino médio, na

proposição do PPP, a ousarem formas de organização (seriação, estrutura curricular,

eleição e seqüência dos conteúdos etc.) com identidade própria, “libertas da

padronização burocrática”.

A eficácia das diretrizes supõe a existência de autonomia das instâncias regionais dos sistemas de ensino público e sobretudo dos estabelecimentos. A autonomia das escolas é, mais que uma diretriz, um mandamento da LDB. (...) a LDB vincula autonomia e proposta pedagógica. Na verdade, a proposta pedagógica é a forma pela qual a autonomia se exerce. E a proposta pedagógica não é uma “norma”, nem um documento ou formulário a ser preenchido. Não obedece a prazos formais nem deve seguir especificações padronizadas. Sua eficácia depende de conseguir pôr em prática um processo permanente de mobilização de “corações e mentes” para alcançar objetivos compartilhados. (...) O futuro está aberto para o aparecimento de muitas formas de organização do Ensino Médio, sob o princípio da flexibilidade e da autonomia consagrados pela LDB. Teremos de usar essa vantagem para estimular identidades escolares mais libertas da padronização burocrática, que formulem e implementem propostas pedagógicas próprias, inclusive a articulação do Ensino Médio com a Educação Profissional. (...) O exercício pleno da autonomia se manifesta na formulação de uma proposta pedagógica própria, direito de toda instituição escolar. Essa vinculação deve ser permanentemente reforçada, buscando evitar que as instâncias centrais do sistema educacional burocratizem e ritualizem aquilo que no espírito da lei deve ser, antes de mais nada, expressão da liberdade e iniciativa, e que por essa razão não pode prescindir do protagonismo de todos os elementos da escola, em especial dos professores (DCNEM: 82, 83 e 84).

Não se deve pensar numa espécie de unificação do ensino, mas, sim, no atendimento às diversidades, aos interesses locais e às necessidades do mercado de trabalho no qual se insere ou virá a inserir-se o aluno (PCNEM: 149).

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Saliente-se, assim, que cabe à escola, juntamente com os professores, precisar os conteúdos a serem transformados em objetos de ensino e de aprendizagem bem como os procedimentos por meio dos quais se efetivará a operacionalização. A assunção desse expediente pela escola é algo de fundamental importância na organização de seu projeto pedagógico, uma vez que a proposição de conteúdos a serem ensinados em qualquer modalidade assim como a abordagem metodológica que lhes deve ser conferida são uma ação que traz à cena, de uma maneira ou de outra, a concepção que a escola possui de aluno e de professor e do que vem a ser ensinar e aprender (OCEM: p. 35)

À escuta de insistentes apelos convidando os estabelecimentos escolares a

exercerem os princípios de autonomia e flexibilidade na proposição de seu Projeto

Político Pedagógico (PPP), vamos destrinçar o PPP da Escola Cidade Verde,

focalizando, em primeiro lugar, aspectos gerais, válidos para todos os níveis de ensino,

em segundo, aspectos relativos ao ensino médio e, em terceiro, o tratamento reservado

aos conhecimentos de língua portuguesa. A análise é feita com base no PPP relativo aos

anos de 2006 e 2007. No percurso da análise, constatamos que o PPP de 2007 é

praticamente o mesmo de 2006, com algumas poucas mudanças de ordem formal, não

indiciando qualquer processo de avaliação da proposta do ano anterior.

3.1 Da estrutura do PPP

A julgar pelo sumário, o PPP da Escola Cidade Verde deveria estar formalmente

organizado em dezessete itens, a saber: I.Título, II. Identificação do Município, III.

Identificação da Instituição, IV. Diagnóstico, V. Justificativa, VI. Objetivos Gerais e

Específicos, VII. Caracterização da Instituição, VIII. Organização Administrativa, IX.

Organização Pedagógica, X. Política de Capacitação Continuada, XI. Programação das

Atividades da Escola, XII. Processos e Estratégias de Comunicação, XIII. Projetos

Especiais, XIV. Avaliação da Instituição, XV. Avaliação e Atualização do PPP, XVI.

Data e Assinatura dos Responsáveis, XVII. Bibliografia.

Contudo, ao folhearmos o documento, de 255 páginas, constatamos que as partes

contidas no seu interior não correspondem exatamente àquelas anunciadas no sumário, o

que torna difícil a consulta e a análise do texto, dificuldade agravada pela falta de

indicação de páginas no índice. Não vamos comentar item por item do PPP, mas pinçar

aqueles que se mostram oportunos à percepção da atitude da comunidade escolar em

relação ao novo paradigma de ensino oficializado pelos documentos DCNEM, PCNEM

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e OCEM. Análise mais detalhada merecerá o tratamento dispensado ao ensino de língua

portuguesa no âmbito desse documento.

3.2 Da concepção do PPP

Já no Título – PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO/UM COMPROMISSO

DE TODOS – o documento sinaliza que sua realização deva ser fruto de ação coletiva

da comunidade escolar. Esse princípio é reforçado também na Justificativa. Citando

Ilma Veiga (sem a devida referência), o documento afirma que o PPP não pode ser um

ajuntamento de planos de ensino e atividades, à guisa de mero cumprimento

burocrático de uma demanda feita por órgãos superiores. Seu destino não pode ser o

arquivo da escola ou da SEC.

Textualmente, o PPP é definido como “uma forma de organização do trabalho

pedagógico, que busca meios de superar as dificuldades para cumprir seu dever social e

garantir os direitos dos educandos, (...) oportunizando a vivência democrática

necessária para a participação de todos no processo decisório da escola” (p. 12).

Conforme o documento, o PPP “deve nascer do grupo de profissionais que trabalha na

escola e contribuir para o seu fortalecimento e para construção da sua identidade e de

sua autonomia” (p. 12). Quer dizer, o PPP é o espaço que o coletivo de trabalho de

uma escola tem para exercitar sua autonomia na construção de propostas pedagógicas

com identidade própria, é o espaço, por assim dizer, para ousar experiências singulares

com responsabilidade e compromisso social.

Assim, na compreensão do que seja um PPP, podemos afirmar que, ao menos na

letra, há afinidade entre o previsto pelos documentos oficiais, como ilustram os

excertos acima citados, e o projeto apresentado pela Escola Cidade Verde. Nele, é

ressaltado o princípio nuclear ao documento que é o de perfilar a prática educativa da

escola como um compromisso coletivo, como um processo decisório que envolve a

participação de toda a comunidade.

Implicitamente, o PPP figura como o veículo de uma proposta pedagógica

inovadora que, para se efetivar, precisa da “mudança de postura por parte de todos os

envolvidos” (p. 12). Assim, “a cooperação profissional”, “a conciliação de

competências”, “o apoio mútuo” são apontados como atitudes esperadas na introdução

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de novas práticas que podem levar a problemas imprevisíveis. Ademais, o documento é

apresentado como um apontar de “rumos” e “direção” na “reorganização” e

“condução” do trabalho pelo corpo de professores da escola.

3.3 Do diagnóstico

O item “Diagnóstico”, enumerando principalmente aspectos tidos como

“problemas”, parece sugerir a existência de uma patologia institucional, que, se não

tratada, pode fazer falhar qualquer proposta pedagógica. Os problemas apontados,

contudo, não parecem advir de procedimentos de observação, discussão e análise da

realidade da escola, procedimentos indispensáveis a qualquer diagnóstico que pretenda

localizar obstáculos ao sucesso das ações pedagógicas e resultar na instalação de

medidas capazes de resolvê-los. Os problemas enumerados referem-se às pessoas

(alunos, professores, pais, gestores e auxiliares administrativos) direta ou indiretamente

envolvidas na educação e à infra-estrutura da escola.

Como ponto de partida, em suas primeiras linhas, o diagnóstico evoca o passado

da Escola Cidade Verde, freqüentada pelos filhos da elite cuiabana, por “ser uma

referência em educação em Mato Grosso” (p. 8). Contrastando com a clientela dos anos

dourados, a sua atual clientela “é formada por alunos oriundos da periferia da cidade de

Cuiabá” (p. 8), que, mesmo não residindo no bairro de classe média onde está situada a

escola, a procuram na expectativa de receber um ensino de melhor qualidade do que o

recebido nas escolas dos bairros onde moram, bairros populares. Nesse discurso, parece

vigorar a crença de que o ensino em escolas de periferia é forçosamente inferior àquele

oferecido em escolas situadas em bairros centrais e de classe média.

O “diagnóstico” pauta-se por essa perspectiva saudosista que, renegando o

presente, pinta os alunos, que não são mais filhos da elite cuiabana, como os

verdadeiros problemas da escola. Suas atitudes, consoante o PPP, contradizem a

propalada intenção de buscar a escola como forma de ingressar no ensino superior ou no

mercado de trabalho: os educandos preferem “ficar nos corredores a assistirem às aulas,

têm uma cultura formada pela televisão, negam a importância do passado, da história, os

costumes sociais e a hierarquia dos valores, não têm limites, são individualistas e

agressivos” (p.8). Tal perfil seria fruto da atual situação sócio-político-econômica do

país, caracterizada por:

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famílias desestruturadas e ausentes da escola; cultura individualista; predomínio da aparência sobre o ser; ausência de valores e limites; descompromisso para com a educação; desinteresse pela participação política; desvalorização profissional do magistério, com dupla ou tripla jornada de trabalho; influência dos meios de comunicação; aumento da corrupção; tráfico de drogas (PPP, p. 8 e 9).

Contraditoriamente, o mesmo diagnóstico, que perfilou retrato tão perverso do

aluno, é capaz de afirmar que ele

1º. é participativo naquilo que lhe interessa, trabalha bem em grupo, tendo preferência por atividades recreativas e esportivas, pois a maioria vive em bairros que não são atendidos por políticas sociais;

2º. é aberto ao mundo real e tem facilidade para lidar com tecnologia e a modernidade em todas as suas dimensões;

3º. é interessado em atividades que envolvem músicas, teatro e dança; 4º. é curioso, pois demonstra interesse em aulas que estabelecem relação teoria e

prática (PPP, p. 8 e 9).

Quer dizer, diante de algo que lhe seja significativo e relevante, o aluno pode

revelar-se interessado e envolvido. Ainda que pelo avesso, esse diagnóstico nos permite

ver a falta de sintonia entre a clientela real e clientela ideal postulada pelo PPP da escola

analisada.

As quatro características não chegam a positivar o perfil traçado pela escola

sobre seus alunos. Indica mais uma concessão, já que ninguém pode ser tão ruim assim,

mas, pelas contradições que traz à tona, revela o caráter mais de avaliação sobre o perfil

traçado, do que um levantamento criterioso de características sócio-econômicas ou

culturais. Por exemplo, ao dizer, primeiro, que o aluno não se interessa pelas aulas

preferindo ficar no corredor, e, depois, que participa daquilo que realmente lhe

interessa, a escola admite que suas aulas são desinteressantes e confessa sua

incompetência em construir atividades significativas e atraentes, com objetivos

racionalmente contextualizados. Fica implícito que o aluno deve se interessar por

qualquer aula, a despeito das recomendações presentes nas DCNEM, que, evocando a

LDB, ressalta a característica da lei em possibilitar que escolas e sistemas possam

desenvolver arranjos institucionais e curriculares inovadores (PCNEM: 73), que

favoreçam uma educação cujo principal objetivo seja a formação de competências

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básicas para o desenvolvimento contínuo do educando e a partir da abordagem de

conteúdos significativos, contextualizados e tratados de forma interdisciplinar.

Ao afirmarem que eles gostam de atividades recreativas e esportivas por viverem

em bairros não atendidos por políticas sociais, afirmam implicitamente que existem

bairros que o são, o que não chega a ser uma realidade. Conhecemos bairros de classe

média em Cuiabá que não possuem nenhuma atividade que possa ser classificada como

política social. Assusta-nos o enquadramento social da clientela da Escola Cidade Verde

feita pelo PPP, por acreditarmos que alguma coisa bem maior que a carência explicitada

está subjacente ao gosto pelas atividades cooperativas. Não é por carência que eles

gostam de conviver e sim por vocação humana. A percepção dessa realidade é tarefa de

uma escola que se pretende sensível às diferenças e ao diverso. Escutemos Maturana

(1998), ao nos falar de razão e emoção. Esperar que os outros reajam racionalmente,

apenas porque achamos que a característica básica do ser humano é a razão, é lançar

antolhos sobre o que é humano, em detrimento da emoção que fica “desvalorizada como

algo animal ou como algo que nega o racional” (Maturana, 1998: 15). Dessa forma,

negamos o entrelaçamento cotidiano entre emoção e razão constitutivos de nosso viver

humano. A emoção das atividades esportivas e recreativas nasce do fenômeno da

cooperação existencializada na sensação do indivíduo coletivamente constituído. Assim,

a cultura individualista citada no PPP, como um dos elementos que compõe o perfil do

estudante da Escola Cidade Verde, não se sustenta diante desse contradito.

Estamos diante de um jovem – aberto ao mundo, às revoluções tecnológicas e às

revoluções dos costumes – que faz jus ao qualificativo “moderno” e promete um

amanhã de muitas esperanças e com muitas coisas para ensinar a essa escola, que teima

em avaliá-lo como incapaz e social e culturalmente periférico, para não dizer marginal.

Esse jovem também se interessa por música, teatro e dança, além de ser muito curioso

com tudo o que consegue significar para ele, possibilitando-lhe estabelecer relações da

teoria com a prática, competência pretendida pelas DCNEM. A organização do ensino

médio por áreas de conhecimento, viabilizando a articulação interna entre as disciplinas

da área e a externa entre os conhecimentos das três áreas, visa ao desenvolvimento de

competências específicas, dentre elas a relação entre teoria e prática e a vinculação da

educação ao mundo do trabalho e à prática social. Entretanto, para o PPP, a relação

teoria/prática é algo que só acontece no campo de algumas disciplinas como química,

física e biologia, contrariando o art. 9º das DCNEM, ao propor a interdisciplinaridade

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como forma de fazer interagir os conhecimentos no âmbito das disciplinas escolares,

mediante a convicção de que “todo conhecimento mantém um diálogo permanente com

outros conhecimentos”. Além do mais, desenvolvermos habilidades de execução prática

de conhecimentos ou demonstrarmos curiosidade em conhecer o que nos intriga são

coisas que fazemos normalmente, apesar da escola, uma vez que essa, inúmeras vezes,

em suas tentativas de padronizar e homogeneizar comportamentos e atitudes,

impiedosamente tem castrado disposições tão afetivamente situadas nos impulsos e

derivas naturais de nossa juventude.

Em relação ao corpo docente e à administração, o documento aponta a

desarticulação entre professores e entre esses e a direção e a coordenação pedagógica.

Assinala a disfunção da coordenação pedagógica que se deixa absorver completamente

pela questão disciplinar, ao invés de tratar da implementação dos objetivos

educacionais. Aliás, “os objetivos não são claros” e falta “firmeza de propósito por parte

da equipe gestora para definir, cobrar e exigir resultados das ações” (p. 9). Declarações

como essas lançam uma ponta de desconfiança em relação ao sucesso na implementação

de uma proposta coletiva como o PPP. Se há contradições, dissensões, descompassos,

entre os diversos atores, remota é a possibilidade de um pacto comum. O documento

faz observações acerca do alto índice de professores faltosos e descompromissados com

a educação, com a instituição e principalmente com os alunos. Lamentavelmente, o

descompromisso do professor produz, como reflexo, descompromisso no aluno. Sobre o

desempenho dos funcionários de secretaria, afirma-se a inabilidade dos mais velhos em

lidar com as novas tecnologias, deficiência que é compensada com o auxílio dos mais

novos. Há também uma asserção acerca da marginalização dos funcionários do processo

pedagógico da escola, com um alheamento entre o corpo técnico-administrativo e o

corpo docente.

Segundo o PPP, “os pais” desempenham um papel merecedor de “comentários à

parte”, já que “o sucesso dos alunos na aprendizagem depende essencialmente do

envolvimento dos pais no processo” (p. 10). Ao apontar a relevância da atuação dos

pais, o texto faz referência a um conhecimento de causa adquirido em 30 anos de

experiência educacional, mas as afirmações não transcendem o nível do senso comum.

Em que lugar do documento se encontram registradas as observações realizadas, ao

longo de três décadas de prática educacional, acerca de pais que acompanham e pais

que não acompanham o trabalho de seus filhos na escola?

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Pelo trabalho que a escola faz há mais de 30 anos, pela experiência e observações realizadas ao longo desses anos, comprova-se que alunos, cujos pais acompanham seriamente sua trajetória escolar, são bem sucedidos na escola. Os pais estão ausentes da escola, não comparecem para fazer matrícula, para conhecer a escola, nem para saber a produção dos filhos. A grande maioria diz que não tem tempo, apenas “joga” o filho na escola, são convocados e não comparecem (PPP: 10 ─ grifo nosso).

Assim, mediante a asserção de que o sucesso na trajetória escolar é proporcional

ao envolvimento “sério” da família na educação, o diagnóstico lamenta que os pais

compareçam à escola apenas à época da matrícula. Nomeando a atitude relapsa de

“jogar” os filhos na escola e não mais atender às convocações da professora,

coordenação ou direção, encontram-se possíveis explicações para as atitudes e

comportamentos negativos dos alunos que os levam à reprovação ou à desistência. A

luta diária pela sobrevivência, travada pelos pais é lembrada, mas não justifica a falta de

interesse pela educação dos filhos. Se, por um lado, o diagnóstico culpa os pais pelo

fracasso dos filhos, por outro, paradoxalmente, a eles atribui reivindicações como:

“cumprimento do calendário escolar”, “cumprimento da carga-horária de aula pelos

docentes”, “organização das atividades”, “aulas mais criativas, estabelecendo relação

teoria/prática” e “rotina organizada”, cobranças que denotam conhecimento de causa do

estado da educação pública atual, envolvimento e não desinteresse pela vida escolar dos

filhos.

Além do mais, conforme nos incita a LDB, a participação dos pais, leia-se

família como comunidade escolar, não pode se restringir a um registro burocrático do

pai que vai à escola para saber como está indo o filho, ou à convocação bimestral para

que, sentados em posição hierarquicamente inferior aos professores, diretores,

coordenadores e administradores escolares, ouçam todas as reclamações sobre seus

rebentos e constatem, com os próprios olhos e ouvidos, o rendimento sofrível dos filhos

na carreira escolar. Nos termos da lei, a participação da família significa muito mais,

significa “integração”:

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Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as de seu sistema de ensino, terão a incumbência de:

I ─ ..........................................................................................................................

VI ─ articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola (LDB: 42).

Articular-se, visando a uma integração plena com a comunidade, sugere que a

escola, na proposição do PPP, defina as políticas que possibilitem a instalação de tal

processo. Conforme as DCNEM (p. 104), o professor é o protagonista do currículo a ser

trabalhado. Compete a ele apropriar-se dos princípios legais, políticos, filosóficos e

pedagógicos que balizam a definição do currículo. É pelo currículo, estabelecido como

fruto da discussão instalada pelo corpo docente acerca do que/como ensinar, que os

caminhos da integração sugerida no tópico da lei acima citada podem ser encontrados.

Trazer a família para a escola não significa necessariamente ter a presença física

constante de todos os pais na escola escarafunchando a vida dos filhos, mais

controlando-os do que com eles vivendo. Essa presença melhor se realiza no diálogo

com os saberes culturais produzidos pelas famílias e pela comunidade onde se inserem,

mais e melhor pela prática de uma pedagogia sensível ao mundo dos alunos.

A julgar pelo diagnóstico relativo às pessoas envolvidas no processo

educacional, a história contemporânea da Escola Cidade Verde é uma história de

desinteresse, descompromisso, desarticulação, disfunção, o prefixo “des-” indicando

“separação”, “privação”, “ação contrária”, “negação” e o prefixo “dis-”, realização

anômala. Quer dizer, para entrar no compasso do PPP, de projeto de educação

compartilhado por e de responsabilidade de todos os membros da comunidade escolar, o

caminho é longo, exigindo muita determinação.

No que diz respeito à infra-estrutura, o diagnóstico aponta a necessidade de

resolver o problema da “rede elétrica antiga que não suporta mais carga”, da “falta de

segurança dos alunos na entrada e saída da escola” e das “péssimas condições dos

banheiros da quadra de esporte”.

Finalizando as observações sobre o item Diagnóstico, parece-nos que o PPP da

Escola Cidade Verde é pouco rigoroso quanto à recomendação de que, antecedendo a

proposição de metas, haja uma avaliação criteriosa e conseqüente, assim como uma

avaliação das ações empreendidas para sanar os problemas detectados. As tomadas de

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decisão e as práticas delas resultantes não podem cair no vazio, como é de praxe

acontecer no campo da educação. Recordemos, de saída, a posição das DCNEM:

A proposta pedagógica, antes de tudo, deve ser simples: O projeto pedagógico da escola é apenas uma oportunidade para que algumas coisas aconteçam, e dentre elas, o seguinte: tomada de consciência dos principais problemas da escola, das possibilidades de solução e definição das responsabilidades coletivas e pessoais para eliminar ou atenuar as falhas detectadas. (...) A proposta pedagógica deve ser acompanhada por procedimentos de avaliação de processos e produtos, divulgação dos resultados e mecanismos de prestação de contas (DCNEM: 85 – grifo original do documento).

3.4 Da concepção de educação

Não há, no PPP, uma seção destinada propriamente à concepção de educação.

Todavia, alguns itens como Diagnóstico, Justificativa (subdividido em Princípios

Pedagógicos e Filosofia), Objetivos Gerais e Específicos e Metas, nos permitem perfilar

a concepção de educação almejada pela comunidade da Escola Cidade Verde.

O item Justificativa anuncia um trabalho pedagógico capaz de “atender as

necessidades do educando, condizentes com o mundo contemporâneo” (p.13). Para isso,

ressalta que sua prática pedagógica será inspirada nas teorias sócio-interacionistas, uma

vez que tais “teorias pressupõem o aluno um ser operante, crítico, ativo, autônomo, que

tem uma história de vida e vive num mundo real” (PPP : 13). Coerente com esses

pressupostos, o PPP propõe que educador e educando adotem uma atitude

investigatória, que leve em consideração aspectos sociais, econômicos e culturais, para a

construção de um conhecimento científico, que possa se reverter em prática

transformadora da realidade vivida pelo aluno. Ao menos no espírito da letra, a

educação intencionada pelo corpo docente não é aquela bancária, que deseja depositar

conhecimentos na mente desprovida de capital cultural dos alunos, mas aquela que quer

com eles trocar conhecimentos por meio da interação, bem como transformar situações

sócio-econômico-culturais opressivas. A versão de 2007 assim se refere à construção

do processo educativo:

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Nessa ótica, propomos construir um processo educativo, onde educador e educando, numa atitude investigatória, trabalhe o conhecimento científico estabelecendo relações com o conhecimento sócio-econômico-cultural de forma que o educando alie o conhecimento à prática para entender e intervir na realidade em que vive (PPP/2007: 3).

Causa estranheza, pois, a postulação de uma concepção sócio-interacionista de

educação, que leve em conta na construção do saber científico, os conhecimentos

aprendidos mediante socialização na família e na comunidade, e, ao mesmo tempo, uma

avaliação tão negativa da onipresença da televisão e dos meios de comunicação de

massa na formação cultural das crianças e jovens da contemporaneidade, como a

encontrada no item Diagnóstico. Afirma textualmente o PPP que a “formação cultural é

adquirida através da televisão, ‘a cultura da televisão’ (...) resultante dos meios de

comunicação” (p.8). Recusar-se a fazer uma avaliação concernida do papel dos meios

de comunicação hoje, sob a alegação da menoridade da cultura de massa, é virar as

costas para aquilo que de fato “é”, é partir daquilo que, supostamente, “deveria ser”, o

que contradiz a concepção de educação professada. Implicitamente parece vigorar sob

essa crítica a polarização entre cultura de massa e cultura erudita, a primeira situada no

pólo negativo, no pólo do indesejável. Essa atitude está na contramão dos princípios

pregados pelos documentos lidos no segundo capítulo, que, sensíveis às características

da cultura contemporânea, propõem que uma das áreas de conhecimento do ensino

médio seja “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”.

A televisão não pode ser criticada para além de seu papel de janela, por onde

entramos em contato com leituras de mundo. Trata-se de possibilitar a discussão do que

a televisão nos dá a ler por meio da espetacularização da cultura, conforme (Debord,

1997; Baronas, 2003), e não classificá-la a priori como condenável. Desde que a

antropologia existe como ciência social, a formação cultural de uma pessoa nunca

poderá ser dita fruto exclusivo da televisão e da cultura de massa. No máximo,

poderíamos dizer que a formação cultural da sociedade contemporânea é fortemente,

mas não unicamente, influenciada por tais agências. Isso seria ignorar a cultura como

algo essencial à hominização, como elemento de diferenciação entre o homem e os

animais irracionais. Seria ignorar que é por meio da cultura que a nossa existência se

transforma numa experiência coletiva de pertença a algo que nos é anterior e que nos

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identifica como membros naturais de um grupo, que é por meio da cultura que passamos

a ser reconhecidos como um “nós”, distinguindo-nos do “outro”.

No âmbito do PPP, há, pois, que se explicitar qual olhar e tratamento a

instituição vai dedicar à televisão e às outras mídias. Qual uso será feito dessas mídias

no espaço da escola? Considerar que seus alunos têm uma cultura formada apenas pela

televisão, é negá-los como sujeitos dinamicamente construídos na cultura e na história,

capazes de mudar o mundo e serem por ele mudados. A discussão sobre a ubiqüidade

dos meios de comunicação de massa no contexto sócio-histórico da atualidade deve

tornar-se pauta dos currículos e atividades escolares, perpassando as diversas áreas do

conhecimento, como, aliás, sublinham os DCNEM em sua proposta de reforma

curricular e organização do ensino médio com base nos eixos histórico-cultural e

epistemológico:

Um eixo histórico-cultural dimensiona o valor histórico e social dos conhecimentos, tendo em vista o contexto da sociedade em constante mudança e submetendo o currículo a uma verdadeira prova de validade e de relevância social. Um eixo epistemológico reconstrói os procedimentos envolvidos nos processos de conhecimento, assegurando a eficácia desses processos e a abertura para novos conhecimentos (DCNEM: 30).

Assim, no capitalismo da alta-modernidade, no capitalismo da era da

informação, da globalização e da mundialização da cultura, a educação para a cidadania

precisa formar leitores críticos da produção da indústria cultural, funcionar como

instrumento de emancipação em relação à interpretação hegemônica da realidade que

legitima a desigualdade social. Cumpre à educação suscitar leituras críticas que

minimizem o poder das leituras predominantes nos meios de comunicação de massa,

leituras absorvidas por aquilo que chamamos de senso comum. Integrando o senso

comum, tais interpretações tendem a se naturalizar e valer como verdades eternas.

O item Justificativa enumera quatorze “princípios pedagógicos” que soam mais

como objetivos do que propriamente como princípios, como se pode constatar pela sua

leitura:

1º. Desenvolver a autonomia dos alunos, entendendo-a como capacidade de: saber posicionar-se mantendo uma postura ética; ter habilidade na elaboração de projetos; ser consciente da responsabilidade dos seus atos; buscar informações e saber organizá-las;

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2º. Oportunizar atividades que favoreçam a fala e a escrita como meios de organização e reconstrução das experiências compartilhadas pelos alunos; 3º. Considerar a adversidade dos alunos como elemento essencial para aprendizagem; (pensamos que o termo adversidade seja um equívoco, desejava-se dizer diversidade, comentário nosso). 4º. Criar espaços na sala de aula para a participação ativa dos alunos e para construção coletiva de novos significados a respeito do conhecimento trabalhado; 5º. Propiciar atividades que desenvolvam a capacidade criadora do aluno; 6º. Priorizar os alunos que apresentam dificuldades de ensino-aprendizagem e propor alternativas para solucionar as dificuldades; 7º. Acreditar que a função da avaliação não se restringe ao ato de atribuir notas, mas principalmente verificar o progresso do aluno; 8º. Compreender que qualquer método utilizado deverá possibilitar e respeitar o desenvolvimento próprio de cada aluno; 9º. Possibilitar ao aluno a produção de leitura e escrita de diversos tipos de textos, visando à competência necessária ao desenvolvimento humano; 10º. Considerar que os conteúdos veiculados na escola devem servir para desenvolver novas formas de aprender e interpretar a realidade; 11º. Criar situações de ensino e aprendizagem nas quais a relevância dos conteúdos culturais selecionados possa interagir e proporcionar processos de reconstrução do que já existe na estrutura cognitiva do aluno; 12º. Perceber que a contextualização amplia as possibilidades de interação entre as disciplinas ou áreas; 13º. Priorizar o diálogo com os demais professores da área de conhecimento, a fim de estabelecer conexões entre conhecimentos afins e 14º. Considerar que no processo de construção do saber, o erro é construtivo, não tem caráter desqualificador (PPP/2007: 14 e 15).

O conjunto de princípios postulado pelo PPP, acima enumerados, articula-se

coerentemente com os objetivos do ensino médio, nos termos do art. 35 da LDB

9394/96. Invoca como fundamental a conquista da autonomia pela educação: autonomia

para prosseguir nos estudos para além do período escolar, exigência do tempo presente

marcado pelo ritmo vertiginoso das mudanças; autonomia para propor projetos;

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autonomia para posicionar-se e expressar-se como cidadão (daí a relevância da

competência comunicativa); autonomia como emancipação e empoderamento diante das

injunções sociais e capacidade para transformá-las quando opressivas para certos

segmentos sociais; autonomia com responsabilidade social. Ademais, os princípios

pressupõem um aluno ativo e produtor de conhecimentos; a avaliação do processo de

construção do saber e não do produto, com o erro sendo interpretado como construtivo;

a interação entre conhecimento de mundo e conhecimento escolar; a interação entre

teoria e prática; a interação entre disciplinas de uma mesma área e de áreas diversas – a

chamada interdisciplinaridade. Nada, pois, parece destoar das orientações passadas

pelos documentos oficiais lidos no Capítulo II.

O item 3, “Considerar a adversidade dos alunos como elemento essencial para a

aprendizagem” (PPP/2006: 14 e PPP/2007: 3), merece um comentário à parte, já que o

que parecia ser um equívoco localizado de digitação/redação – em vez de

“diversidade”, “adversidade” – repete-se no item “Objetivos Específicos” nas duas

versões do PPP, como podemos atestar pelo transcrito:

• Desenvolver projetos interdisciplinares que envolvam a comunidade escolar contemplando as adversidades sócio-culturais do aluno. (PPP/2006: 17 e PPP/2007 : 4).

Diante dessa reincidência, descartamos a possibilidade de erro de digitação,

ainda mais porque, na versão de 2007, não foi realizada nenhuma correção, seja no sub-

item Princípios Pedagógicos (p. 3), seja no item Objetivos Específicos (p. 4). Parece

tratar-se, pois, de uma confusão de outra natureza, de um provável não discernimento da

diferença semântica entre os termos, o que coloca sob suspeita o grau de

comprometimento das pessoas com aquilo que enunciam. O que significa a palavra

“diversidade” no contexto das escolhas/decisões do PPP da escola? A que conceito de

fato se referem no PPP? Qual o real envolvimento de todos os atores com o conceito de

“diversidade”, conceito nuclear às DCNEM, aos PCNEM e às OCEM? Considerando a

ênfase que os PCNEM (p. 123) põem na afirmação de que “o respeito à diversidade é o

principal eixo da proposta”, em que medida a confusão entre “diversidade” e

“adversidade” no interior do PPP não sinaliza uma falta de familiaridade com os

documentos oficiais e um cumprimento meramente burocrático de obrigações

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institucionais? Essas e outras questões insistem em nos inquietar, mas quedam sem

respostas.

No PPP/2006, integram a Justificativa os sub-itens “Filosofia”, “Objetivos

Gerais e Específicos” e “ Metas”. No PPP/2007, observamos um re-arranjo desses itens.

Os “Objetivos Gerais e Específicos” são colocados logo após os “Princípios

Pedagógicos”. O que o documento chama de “Objetivos Gerais e Específicos”

assemelha-se a metas, como podemos constatar em:

1) Criar espaços e momentos que favoreçam a integração entre os diferentes segmentos da escola;

2) Implementar o projeto sala-do-professor, realizando estudos para que se faça renovações sobre a prática pedagógica visando diminuir o índice de desistência e repetência;

3) Desenvolver projetos interdisciplinares que envolvam a comunidade escolar contemplando as adversidades sócio-culturais do aluno;

4) Oferecer gradativamente condições favoráveis ao desenvolvimento do processo pedagógico articulando-as por áreas de conhecimento, superando a fragmentação do ensino;

5) Propiciar condições para o desenvolvimento de práticas educativas criativas que despertem o interesse dos educandos pelos estudos, diminuindo desta forma o índice de desistência e repetência;

6) Promover a avaliação contínua do Projeto Salas Ambientes para que a sala de aula se torne, cada vez mais, um verdadeiro laboratório para a produção professor-aluno;

7) Implementar o Projeto “Educação de Jovens e Adultos/EJA – Período Noturno” (PPP/2006: 17).

Em seguida, figura o item “Meta” que se confunde, pelo teor das asserções, com

o item “Objetivos”. Num novo item, denominado “Dos fins e Objetivos”, o PPP realiza

uma transcrição dos artigos 32 e 35 da LDB 9394/96, relativos, respectivamente, ao

ensino fundamental e médio. Quer dizer, duas seções do documento são destinadas ao

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item “Objetivo”, o que nos pode sugerir uma falta de organicidade da proposta, assim

como um processo de elaboração fragmentado, sem convergência das tarefas realizadas

provavelmente por grupos ou pessoas distintas.

O PPP/2006 estipula duas “Metas”:

1) Realizar estudos a respeito dos componentes curriculares, através dos projetos Sala-do-Professor e Eterno Aprendiz, envolvendo pelo menos 80% dos professores, no período 2007 a 2008, para organizar e desenvolver um currículo interdisciplinar; 2) Estabelecer padrões de desempenho para todas as séries do Ensino Fundamental e Médio (PPP/2006: 18).

Já o de 2007 apresenta cinco metas:

1) Reduzir índice de reprovação e evasão; 2) Melhorar a qualidade de ensino aprendizagem; 3) Incentivar a participação dos pais na escola; 4) Buscar parcerias internas e externas com a comunidade; 5) Melhoria da estrutura física (PPP/2007: 4).

Ao considerar as metas estabelecidas em 2007, podemos inferir que, durante o

ano letivo de 2006, houve alto índice de reprovação e evasão na escola, foi baixa a

qualidade de ensino aprendizagem, os pais continuam não participando etc. O que foi

detectado como motivo desses insucessos e os procedimentos que deveriam ser

adotados para reverter tal situação são aspectos não contemplados pela versão 2007 do

PPP. Sem isso não há metas, apenas retórica vazia para preencher o script de um

documento burocrático.

Quanto à “Filosofia”, o texto afirma que a escola, em consonância com a LDB

9394/96, propugna “por uma educação fundamentada nos princípios de uma sociedade

justa e democrática, com valores humanos, centrados no princípio da família, nas

habilidades artísticas e culturais, visando à formação do educando, para atuar como

agente transformador do processo social em que está inserido” (PPP/2007: 5). Em seu

art. 1º, a LDB deixa claro que a “educação abrange os processos formativos que se

desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de

ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas

manifestações culturais”. A lei insiste, em vários momentos, em que, numa sociedade

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democrática, a escola deve produzir uma educação essencialmente vinculada ao mundo

do trabalho e à prática social. É nítida a relevância atribuída aos processos e agências

não formais de educação articulados aos processos e agências formais. Queremos crer

que o “princípio de família” não significa a adoção do padrão que a classe média

reivindica como normal, e sim a acolhida da diversidade de arranjos familiares vividos

pelos alunos que povoam o universo da escola pública brasileira do século XXI.

Também nos foge à compreensão como esses valores humanos, além de centrados no

princípio da família, também são centradas em “habilidades” artísticas e culturais. O

que está sendo aqui chamado de “habilidades artísticas e culturais”? Seria uma alusão

aos “fundamentos estéticos, políticos e éticos do novo ensino médio brasileiro”, mais e

melhor, à “estética da sensibilidade”, postulada pelo DCNEM (p. 75), em contraposição

à estética da repetição e da padronização hegemônica? A “estética da sensibilidade”,

como substrato fundamental à construção de uma pedagogia libertadora, portadora da

riqueza de sons, cores e sabores de nosso país, aberta à diversidade cultural de nossos

alunos e professores,

não exclui outras estéticas, próprias de outros tempos e lugares. Como forma mais avançada de expressão ela as subassume, explica, entende, critica, contextualiza porque não convive com a exclusão, a intolerância e a intransigência (DCNEM : 76 – grifo original do documento). Assim, se há parentesco entre a expressão “habilidades artísticas e culturais”

(PPP) e “estética da sensibilidade” (DCNEM), o parentesco se faz por traços tênues,

quase intangíveis, tamanha a diferença de concepção que as caracteriza. Em linhas

gerais, podemos perceber o diálogo do PPP com os documentos oficiais no que diz

respeito à concepção de educação, mas configura-se como um diálogo superficial, sem

consistência e sem convicção.

3.5 Da organização curricular

A proposta de organização pedagógica da Escola Cidade Verde contida no PPP,

reflete, ao menos discursivamente, o consubstanciado nas DCNEM. Propõe uma

ressignificação do currículo escolar que rompa com a organização baseada em

“disciplinas isoladas” e “listagens de conteúdos” não significativos para a clientela,

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considerada a sua realidade sociocultural; em “roteiros repetitivos”, “procedimentos

indiferenciados” e “atitudes conformistas”; em métodos que acentuam “a exposição

verbal de conteúdos, a exercitação e a comprovação do que foi assimilado”. Segundo o

PPP, o maior desafio a ser encarado pela escola “é a busca de um conhecimento dialogal

que se impõe sobre um conhecimento enciclopedista e, ao mesmo tempo, a busca de um

processo pedagógico que garanta a seqüência curricular, para que os educandos possam

ampliar, aprofundar e modificar seu processo de compreensão de mundo”. Ressignificar

os conteúdos a partir da diversidade de conhecimentos trazidos pelos alunos não

significa “desvalorizar os conteúdos historicamente acumulados pela humanidade”, mas

vivificá-los por meio da interação entre eles (PPP/2007: 59 e 60).

Nos termos das DCNEM, dois princípios – um axiológico e outro pedagógico –

devem nortear a proposição do currículo de uma escola de ensino médio para que ela

possa preparar adequadamente a pessoa para o mundo do trabalho e para a vida em

sociedade como cidadão. O primeiro princípio, silenciado nas duas versões do PPP,

volta-se para a formação do cidadão e visa ao “fortalecimento dos laços de

solidariedade e tolerância recíproca, formação de valores, aprimoramento como pessoa

humana, formação ética e exercício da cidadania” (DCNEM: 104). O segundo, invocado

pelo PPP, estrutura-se em torno da “interdisciplinaridade” e “contextualização” e volta-

se principalmente para a preparação profissional, visando à formação de competências

para “vincular a educação ao mundo do trabalho e à prática social, compreender os

significados, continuar aprendendo, preparar-se para o trabalho e o exercício da

cidadania, ter flexibilidade para adaptar-se a novas condições de ocupação,

compreender os fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos e

relacionar teoria e prática” (DCNEM: 104). Tais princípios devem permear o tratamento

dos conteúdos de modo a formar as habilidades e competências acima projetadas.

As DCNEM, no tocante à interdisciplinaridade, chamam a atenção para alguns

critérios que devem ser observados na aplicação desse princípio pedagógico, alertando

para o cuidado de não transformá-la numa diluição dos conteúdos disciplinares em

generalidades ou numa mera justaposição de conteúdos. Por isso, é importante ter em

mente que o objeto de conhecimento proposto deve funcionar como eixo integrador das

muitas visões disciplinares que possam ser requisitadas no desenvolvimento de um

projeto de ensino. A proposição de um projeto de investigação e/ou de um plano de

intervenção é condição fundamental para uma prática interdisciplinar conseqüente.

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Nesse sentido é que a ação interdisciplinar deve refletir a “necessidade sentida pelas

escolas, professores e alunos de explicar, compreender, intervir, mudar, prever, algo que

desafia uma disciplina isolada atraindo a atenção de mais de um olhar sobre ele”

(DCNEM: 88).

Umas das formas de assegurar a interdisciplinaridade, conforme as DCNEM, é o

arranjo por áreas de conhecimento, que encoraja o descongestionamento curricular pela

eliminação do excesso de informações pulverizadas, em prol de uma seleção de

conteúdos que visem à formação de habilidades e competências. As áreas de

conhecimento favorecem a organicidade e o diálogo permanente dentro de cada área e

entre as áreas. À primeira vista, observamos a ação desse princípio de organização no

currículo da Escola Cidade Verde. O PPP assim se pronuncia acerca das áreas de

conhecimento:

(...) para possibilitar a apropriação do real, por parte dos educandos, optamos por trabalhar com uma organização das áreas do conhecimento, que permitam ler a realidade em suas múltiplas manifestações e onde se revelam, claramente, perspectivas interdisciplinares. Com esse intuito, reuniremos as disciplinas em três áreas de conhecimentos, que se inter-relacionam, articulando-se e integrando-se umas às outras, são elas: Linguagem, Ciências Humanas e Sociais e Matemática e Ciências da Natureza, com vistas a desenvolver competências, por acreditar ser requisito necessário para formar a nova pessoa humana, com capacidade para responder aos desafios da sociedade atual. Nessa ótica, para garantir a continuidade entre as diferentes séries, estaremos atentos às necessidades de: 1. Prever uma certa seqüência entre os conteúdos a serem trabalhados em cada série, estabelecendo a conexão de uma série para outra, respeitando o ritmo de aprendizagem dos alunos. 2. Priorizar, nas diversas áreas de conhecimento, aspectos do conhecimento que são significativos, dentre os acumulados pela humanidade. 3. Construir os conceitos e os demais processos de desenvolvimento dos educandos através da vivência e reflexão de suas diferentes dimensões na vida social, no processo de construção e aquisição do conhecimento e desenvolvimento do pensamento. 4. Estabelecer relações entre o desenvolvimento social e o desenvolvimento individual do educando, ou seja, não dissociar os aspectos cognitivos dos afetivos no ato de ensinar e aprender (PPP/2006: 63 e PPP/2007: 14). Quem se depara com tais enunciados não pode não pensar que o princípio da

reunião/interação dos conhecimentos por área está sendo levado em conta por aqueles

que estão construindo o PPP da Escola Cidade Verde. Contudo, prosseguindo na leitura

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do documento, percebemos que as três áreas propostas – Linguagem, Ciências da

Natureza e Matemática e Ciências Humanas e Sociais – vão funcionar aí mais como um

arranjo burocrático, uma caixa para encerrar disciplinas, do que propriamente como um

diálogo entre conhecimentos. Depois da retórica das áreas, os conhecimentos são

listados e apresentados em sua versão disciplinar clássica, sem qualquer proposta

conseqüente de trabalho interdisciplinar. Esse aspecto será abordado mais

detalhadamente nas seções seguintes.

Em consonância com os PCNEM, o PPP (p. 63) faz referência aos temas

transversais e considera “importante que os conteúdos escolares sejam vistos como

instrumentos culturais, à disposição da formação global dos educandos”. Entretanto,

nada demonstra que a transversalidade é vista como um princípio teórico capaz de

suscitar transformações tanto nas metodologias de ensino quanto na organização do

próprio currículo e seu desenvolvimento pedagógico. Alude a temas integrados à

proposta curricular, mas não diz como isso se processará. Acreditamos que os temas

transversais devem permear o currículo, mas não engessados na grade curricular, o que

não significa que dispense estudo e planejamento para que sua abordagem ocorra ao

longo de todo o ano letivo, ao invés de ficarem reservados a espaços eventuais como a

“Semana de Meio Ambiente”. O PPP também se refere à contextualização dos temas

transversais em relação às necessidades dos alunos (p. 63). Porém, não aborda a questão

da transversalidade por sua natureza interdisciplinar e transdisciplinar, ao propor as três

áreas de ensino.

Buscando entender a transversalidade como algo diferente das áreas

convencionais, diríamos que nessas a interdisciplinaridade acontece como relação de

diálogo entre as disciplinas em direção a uma postura de resgate de uma idéia de

totalidade do saber em que uma ciência complementa outra no processo de construção

do conhecimento. Os temas transversais, além de se valerem da interdisciplinaridade, no

sentido de que seus temas perpassam os conteúdos de várias disciplinas, sugerem uma

postura transdisciplinar, de quebra de fronteiras entre as disciplinas e de superação dos

limites estabelecidos pelas grades curriculares, na medida em que eles são temas

estabelecidos, segundo os PCN, a partir dos critérios de urgência e abrangência

nacional, favorecendo a compreensão da realidade e a participação social.

Acompanhando os documentos oficiais que postulam a inclusão dos temas transversais

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nas grades curriculares do ensino básico, o PPP atribui-lhes o papel de difundir valores

fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos e à democracia.

Seguindo a orientação dos PCNEF, o PPP categoriza os conteúdos escolares em

três grupos: conceituais, procedimentais e atitudinais. Todavia, não se divisa a atuação

desse princípio de classificação no elenco dos conteúdos, listados indistintamente.

Resume-se a fornecer uma definição para cada grupo de conteúdos, sem qualquer

retomada na operacionalização das matrizes curriculares sugeridas:

Conteúdos Conceituais – Envolvem a abordagem de conceitos, fatos e princípios. São os aportes teóricos disponíveis desde as diferentes áreas de conhecimentos e a organização de um conjunto de conceitos necessários para entender a realidade natural e social nas suas diversas dimensões. Conteúdos Procedimentais – Expressam um saber fazer, que envolve tomar decisões e realizar uma série de ações, de forma ordenada para atingir uma meta. Para ensinar procedimentos também se ensina um certo modo de agir, de pensar e produzir conhecimento. Conteúdos Atitudinais – Diz respeito às normas, valores e atitudes, que permeiam todo o conhecimento escolar. São os conteúdos que expressam ações éticas, valores e princípios na vida do homem, mulheres, sociedade, comunidades e grupos, com base no princípio de reciprocidade. Diz respeito aos direito, desejos e interesses dos outros, concretizados, nas relações com as pessoas, meio ambiente, animais e situações sociais diversas. Enfim, ensinar e aprender atitudes requer um posicionamento claro e consciente sobre o que e como se ensina na escola (PPP: 63).

Na trilha da proposta oficial, o PPP (p. 66 e 67) anuncia que seu objetivo

educacional não é a transmissão/estocagem de conhecimentos pura e simples, mas sim a

formação de habilidades e competências, sendo as habilidades “entendidas como

recursos necessários à construção da competência”. O PPP recorre à definição de

competência proposta por Perrenoud (sem referenciá-lo devidamente no corpo do texto

e na bibliografia) que engloba três ingredientes: capacidade, mobilização e recursos

intelectuais. A competência, nos termos do autor, “é a capacidade do sujeito (aluno) de

mobilizar um conjunto de recursos cognitivos, como saberes, habilidades e informações,

para solucionar com eficácia uma série de situações”. Consoante o PPP, para cumprir o

propósito de desenvolver competências, o professor deve mudar sua postura e enfrentar

o desafio de trabalhar de forma interdisciplinar na resolução de problemas e projetos.

Para resolver situações complexas, os alunos precisam ter recursos cognitivos, ou seja,

dominar conteúdos ligados à questão; conhecer a linguagem ou as linguagens

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específicas para abordar a situação complexa; reconhecer o contexto cultural, seus

valores no enfrentamento da situação complexa; os professores precisam criar um

ambiente educativo favorável, administrar suas emoções, seus problemas pessoais, suas

dificuldades familiares, seu temperamento, suas ansiedades, sentindo-se motivado para

estudar e aprender (sempre!), preparando o aluno para a vida, para competências.

Fazendo um balanço sumário da proposta de organização curricular pelo PPP da

Escola Cidade Verde, podemos afirmar que, em nível de discurso, ela se dobra sobre o

recomendado pelas DCNEM. Entretanto, à medida que o discurso vai sendo

operacionalizado em um conjunto de disciplinas e programas, essa afirmação inicial vai

sendo falseada. É o que veremos nas próximas páginas.

3.6 Da área de “Linguagem, Códigos e suas Tecnologias”

No PPP da Escola Cidade Verde, a área é designada, primeiro, como

“Linguagem”, segundo, como “Linguagem e suas Tecnologias” e somente na matriz

curricular figura como “Linguagem, Códigos e suas Tecnologias”, como propõem as

DCNEM. A área comporta as disciplinas – e não “conhecimentos de” – Língua

Portuguesa, Língua Estrangeira, Artes e Educação Física. A informática não faz parte

da área, o que é perfeitamente compreensível, pois as diretrizes devem ser entendidas

como “diretrizes” e não como “normas” a serem obedecidas. Afinal, há espaço para a

proposição de arranjos curriculares próprios, como pudemos ler nos excertos que abrem

o presente capítulo. O PPP atribui a essas disciplinas a finalidade de “capacitar o ser

humano para o uso dialógico das diferentes manifestações da linguagem, como forma

de construir o sujeito, a realidade e as próprias linguagens” (p. 65). Ampla é a

concepção do que seja linguagem, pois nomeia, além da linguagem verbal (oral e

escrita), outras manifestações não-verbais como: gestos, imagens, escultura, dança etc.

O PPP argumenta que o agrupamento por área é uma forma de evitar a

fragmentação dos conhecimentos, as disciplinas estanques e de construir estratégias de

trabalho interativas, que favoreçam a formação do sujeito histórico (p. 65). Na

compreensão genérica da finalidade da área em pauta, o PPP não destoa dos postulados

das DCNEM, PCNEM e OCEM. Contudo, é o avesso dessa concepção que veremos

operacionalizada, ao passarmos a analisar os conhecimentos de língua portuguesa que

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integram a área. Nunca o velho chavão, “a teoria é uma e a prática é outra”, foi tão

apropriado para designar uma situação como a aqui considerada.

3.6.1 Da língua portuguesa

A finalidade da disciplina língua portuguesa no ensino médio começa a ser

delineada pela LDB 9394/96. O art. 22 atribui à educação básica a função de

“desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o

exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos

superiores”. O art. 26, ao falar da base curricular nacional comum, legisla, no

parágrafo 1º, sobre a obrigatoriedade do estudo da Língua Portuguesa, na perspectiva

do conhecimento da realidade social e política do Brasil. O art. 36 e incisos destacam a

função da língua portuguesa como instrumento básico de comunicação, acesso ao

conhecimento e exercício da cidadania. Os PCNEM (p. 139) ressaltam a natureza

transdisciplinar da língua portuguesa como “linguagem entre as linguagens que

estrutura e é estruturada no social e que regula o pensamento para certo sentido”. O

ensino-aprendizagem de língua materna deve favorecer, pela interação verbal, o

desenvolvimento das capacidades cognitivas dos alunos. A linguagem verbal é vista

como a construção humana e histórica de um sistema lingüístico e comunicativo em um

mundo sócio-cultural (p. 139). Assim, priorizando a interação, os PCNEM postulam o

estudo da língua em seu funcionamento nas esferas sociais e comunicativas

correspondentes. Esse estudo tem como unidade básica o texto, compreendido como

discurso e como exemplar de um gênero. Em que medida tais balizas norteiam a

proposta para o trabalho com a língua, apresentada pelo PPP da Escola Cidade Verde?

Integrando um item designado como “Referências Curriculares das Áreas”, a

língua portuguesa é a primeira disciplina a ser mencionada. A função a ela atribuída é:

“desenvolver a competência comunicativa” (PPP/2006: 70), englobando duas outras

competências – a gramatical ou lingüística e a textual. O documento, invocando

Chomsky (sem referência), define competência lingüística como “capacidade que tem

todo usuário da língua de gerar seqüências lingüísticas gramaticais” e, invocando

Charolles (igualmente não referenciado devidamente), define a competência textual

como “a capacidade de, em situações de interação comunicativa, produzir e

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compreender textos considerados bem formados”. O PPP ainda cita Charolles para

destrinçar as três capacidades textuais básicas que compõem a competência textual:

a)Capacidade formativa, que possibilita aos usuários da língua produzir e compreender um número de textos que seria potencialmente ilimitado e, além disso, avaliar a boa ou má formação de um texto dado, ou que poderia equivaler mais ou menos a ser capaz de dizer se uma seqüência lingüística dada é ou não um texto, dentro da língua em uso; b) Capacidade transformativa, que possibilita aos usuários da língua modificar, de diferentes maneiras (reformular, parafrasear, resumir, etc.) e com diferentes fins, um texto e também julgar se o produto dessas modificações é adequado ao texto sobre o qual a modificação foi feita; c) Capacidade qualificativa, que possibilita aos usuários da língua dizer a que tipo de texto pertence um dado texto, seguindo naturalmente uma determinada tipologia (PPP/2006: 70 e 71).

Todavia, no que vem a seguir, não se faz mais referência a estas capacidades,

elas se perdem no limbo do PPP. Destaquemos também que nenhuma referência é feita

ao conceito de competência comunicativa, proposto pelo sociolingüista norte-americano

Hymes (1972), conforme exposto no capítulo II desta dissertação, apesar de o PPP

aludir a este conceito para definir a função do ensino de língua portuguesa.

Mediante a advertência de que para o “ensino da língua materna é importante

conceituar a linguagem e a língua” (p. 71), uma vez que a concepção adotada determina

o que e o como se ensina, o PPP revisita as três concepções de linguagem: como

expressão do pensamento, como comunicação e como interação, esta última a defendida

e adotada pelo PPP, ao menos como declaração de princípio. Segundo o documento, a

linguagem vista como interação se amplia, em relação às duas concepções anteriores,

por apresentar um indivíduo que, além de traduzir e exteriorizar um pensamento e usar a

linguagem para transmitir adequadamente informações, também é apresentado como um

interlocutor, capaz de agir sobre o outro, influenciar e ser influenciado por ele. O PPP

valoriza essa concepção sobre as demais por reconhecer que nela a linguagem é vista

como lugar de interação humana, como diálogo em sentido amplo. A comunicação

existe na medida em que os efeitos de sentidos entre os interlocutores se dão em função

de sua realização em determinado contexto sócio-histórico e ideológico. Como

argumento de autoridade, acompanhando uma prática rotineira entre aqueles que

falam/escrevem interpelados pelo novo paradigma de ensino de língua materna, o PPP

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cita textualmente um trecho de Bakhtin (2004) em que o autor fala da interação verbal

como a realidade fundamental da linguagem:

a verdadeira substância da linguagem não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação ou pelas enunciações. A interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da linguagem (Bakhtin, 1986: 123, apud PPP/2006: 72).

Aderindo à concepção de linguagem como interação, os professores percebem

que terão de estabelecer diálogo com a lingüística da enunciação, compreendendo a

lingüística textual, a análise de discurso, a análise da conversação e a semântica

argumentativa (PPP : 72), uma vez que a gramática tradicional e a lingüística imanente

não podem ancorar um trabalho nucleado pelo texto como materialidade de gêneros do

discurso. Até então ficamos com a expectativa de que o ensino da Língua Portuguesa

na Escola Cidade Verde alçara o gênero discursivo à condição de objeto de ensino e o

texto à condição de unidade básica de trabalho com a linguagem verbal, como propõem

os PCNEM (p. 139) e as OCEM (p. 36), mas não é isso que veremos no desenrolar do

item “Referências curriculares”.

Após revisitar as concepções de linguagem, o PPP (p.73 a 75) revisita também

as concepções de gramática: normativa (conjunto de regras que deve ser seguido),

descritiva (conjunto de regras depreendidas dos dados pelo lingüista) e internalizada

(“um conjunto de variedades, utilizadas pela sociedade de acordo com o exigido em

situações de interação comunicativa em que o usuário da língua está engajado e, a

gramática, como um conjunto de regras que o falante de fato aprendeu e das quais lança

mão ao falar”).

Confessando adotar a concepção de gramática internalizada, o documento faz

alusão ao critério sociolingüístico de adequação/inadequação da variedade lingüística

ao contexto sócio-histórico-ideológico da interação comunicativa (PPP: 75). É estranho

que esse critério de avaliação dos usos da língua apareça apenas agora, já que ele foi

proposto por Hymes (1972), paralelamente ao conceito de competência comunicativa.

A missão da escola, na perspectiva da sociolingüística, seria não a de corrigir a suposta

linguagem errada dos alunos, mas sim a de ampliar-lhes os recursos comunicativos, de

modo a capacitá-los a “atender às convenções sociais, que definem o uso lingüístico

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adequado a cada gênero textual, a cada tarefa comunicativa, a cada tipo de interação”

(Bortoni-Ricardo, 2004: 75).

O PPP não indica como pretende articular o conhecimento lingüístico

internalizado, adquirido principalmente por meio do uso oral da língua, mas também

utilizado na escrita, com aqueles aprendidos pelo letramento, aqui visto como o

conjunto de práticas que capacitam o aluno a participar ativamente da cultura escrita.

Não fica claro como procurará ampliar a competência comunicativa dos alunos de

modo a que não lhes faltem recursos (discursivos, textuais, morfossintáticos, lexicais,

fonéticos etc) para adequar o discurso a cada situação, principalmente àquelas que

demandam grau elevado de formalidade discursiva em situações de interação. A escola

não pode se furtar à responsabilidade de propiciar a apropriação desses recursos por

parte dos seus alunos e o PPP teria necessariamente de indicar como pretende fazê-lo.

Na seção seguinte, o PPP lista uma série de competências e habilidades a serem

desenvolvidas no ensino da Língua Portuguesa. A leitura do elenco de habilidades nos

coloca ora diante de uma proposta que se afina com o novo paradigma de ensino de

língua materna, ora diante de uma proposta que recai na tradição gramatical. A simples

listagem de habilidades não se diferencia das listagens de objetivos, nos clássicos

“planejamentos anuais” do ancient régime, conduzidos solitariamente pelo professor de

cada disciplina. As mudanças de atitude e práticas se solidificam em escolhas

pedagógicas claras e bem definidas, como por exemplo, definições de temáticas para

nuclear projetos, que viabilizem ações de cunho interdisciplinar, promovendo e

articulando o trabalho nas disciplinas, com o intuito de desenvolver competências.

Os PCNEM (p. 145) propõem três conjuntos de competências e habilidades:

comunicar e representar, investigar e compreender e contextualizar social e

historicamente os conhecimentos. O desenvolvimento dessas competências e

habilidades transcende cada disciplina e mesmo as áreas e se representa como um feixe

coerentemente articulado. Para usar uma metáfora conhecida, competências e

habilidades se completam como a mão (competência) e os dedos (habilidades): uma

não tem sentido sem as outras. Examinando o rol de competências e habilidades

proposto pelo PPP e transcritas logo abaixo, no tocante ao trabalho com a língua

portuguesa, percebemos que algumas delas constituem cópias ou paráfrases daquelas

listadas pelos PCNEM (p.145). Vejamos:

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1. Conceituar, identificar intenções e situações de uso da linguagem em seus diversos tipos de contexto.

2. Analisar os recursos expressivos da linguagem verbal relacionando texto

e contexto de uso.

3. Distinguir e adequar a linguagem ao contexto.

4. Escolher uma variante lingüística entre as disponíveis na língua.

5. Identificar e analisar níveis de linguagem e fazer uso adequado em situações comunicativas.

6. Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes manifestações

da linguagem verbal e não verbal.

7. Distinguir gramática descritiva e normativa, a partir da adequação ou não a situações de uso.

8. Considerar as diferenças entre língua oral e escrita.

9. Registrar adequadamente a ortografia, morfologia e sintaxe.

10. Explicar e conhecer as origens da língua portuguesa.

11. Identificar e reconhecer os elementos constitutivos e os processos de

formação das palavras.

12. Aprender conteúdos gramaticais e lingüísticos e fazer uso adequado na escrita.

13. Compreender em que medida os enunciados refletem a forma de ser,

pensar, agir e sentir de quem os produz.

14. Utilizar os mecanismos de coerência e coesão na produção textual.

15. Identificar, analisar e empregar recursos próprios ao padrão escrito na organização textual.

16. Descobrir intenções e estabelecer distinções nos diversos gêneros

textuais.

17. Identificar e compreender os modos de organização dos textos e as relações entre sentido e contexto.

18. Compor diferentes tipos de textos, atentando para seus elementos

estruturais próprios.

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19. Conceituar literatura.

20. Reconhecer a linguagem literária através da leitura comparativa de textos.

21. Identificar recursos expressivos e analisá-los nos textos em uso.

22. Identificar um texto literário e seus componentes.

23. Reconhecer características típicas de uma narrativa ficcional (narrador,

personagem, espaço, tempo, conflito e desfecho)

24. Reconhecer recursos prosódicos freqüentes em texto poéticos (ritmo, rimas, aliterações, e outros).

25. Avaliar a propriedade da incorporação de dados da realidade na

construção do universo ficcional.

26. Comparar textos de diferentes gêneros quanto ao seu aspecto temático e os recursos formais utilizados pelo autor.

27. Identificar manifestações culturais no eixo temporal, reconhecendo

momentos de tradição e ruptura.

28. Emitir juízo crítico sobre essas manifestações.

29. Reconhecer características típicas de um texto descritivo e seus elementos.

30. Reconhecer características típicas de um texto dissertativo e seus

elementos. 31. Analisar diferentes abordagens de um mesmo tema em diferentes

produções.

32. Reconhecer as características de cada estilo de época. (PPP/2006 e PPP/2007: 83 e 84).

Não teríamos dificuldade para distribuir muitas das habilidades pelas três

categorias mencionadas anteriormente. Como as habilidades não são estanques, podem

figurar num e noutro grupo ao mesmo tempo. As habilidades 3, 4 e 6, dentre outras, são

indispensáveis para a comunicação e a representação. As habilidades 1, 2 e 17, dentre

outras, perfazem a competência da investigação e compreensão. Já as habilidades 1, 13

e 25, dentre outras, fazem parte da competência da contextualização sócio-histórica dos

conhecimentos. Contudo, teríamos muita dificuldade para categorizar algumas das

habilidades sugeridas, uma vez que recaem no trabalho com a forma lingüística sem

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subordiná-la ao uso, como as habilidades 9, 10, 11 e 12, dentre outras. Há também

contradição entre pontos de vista. Ora parece vigorar uma proposta embasada em

gêneros (conforme 16), ora uma proposta embasada em tipos (conforme 29 e 30).

Ademais, quando cotejamos as habilidades e competências listadas nos PCNEM com

aquelas listadas no PPP, percebemos algumas ausências no último, como a

compreensão e a aplicação das novas tecnologias de comunicação e da informação no

estudo, no trabalho e outras esferas de atividades sociais, bem como a articulação da

linguagem verbal com outras formas de linguagem, um fenômeno corriqueiro na

contemporaneidade. Aliás, por essa razão, as OCEM optaram por falar em letramento

multimodal ou multissemiótico. Porém, o PPP não faz qualquer menção a essa

proposta, talvez por se tratar de um documento publicado em 2006.

Finalmente chegamos ao momento do PPP em que a proposta de conteúdos para

o ensino médio é apresentada. O documento fornece três listas de conteúdo de língua

portuguesa, uma para cada ano, e, inesperadamente, passa a designar a disciplina como

“literatura”. Ao nos depararmos com tal lista, ficamos com a sensação de que, por um

processo de amnésia, os ensinamentos do novo paradigma de ensino de língua materna

foram apagados da memória do corpo docente da escola. O que vemos é uma listagem

de conteúdos desvinculados das habilidades e competências, que poderia figurar em

qualquer plano de curso orientado pelo paradigma tradicional. Também os princípios

da interdisciplinaridade e da contextualização caem no esquecimento. O que vemos

abaixo não revela a menor sombra da ousadia permitida e até encorajada pelos

documentos oficiais, conforme excertos citados no início deste capítulo. Eis o que

vemos:

Quadro 3: Proposta de conteúdo de língua portuguesa para o 1º. Ano

LITERATURA

CONTEÚDO – 1º ANO

• O que é literatura?

• Recursos literários e formais.

• Os gêneros, estilos e épocas literárias.

• Figuras de linguagem.

• Trovadorismo.

• Humanismo.

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• Classicismo.

• Quinhentismo.

• Barroco

• Arcadismo ou Neoclassicismo.

• Os elementos da comunicação e as funções da linguagem.

• Coerência e coesão textual.

• Técnicas argumentativas.

• Parágrafo.

• Fonética, fala e língua.

• Ortografia.

• Estrutura e formação das palavras.

• Leitura e Produção de texto

• Narrativos

• Descritivos

• Dissertativos

Intriga-nos que esse conjunto de conhecimentos receba a designação de

Literatura. Parece-nos mais razoável a língua englobar a literatura e não o contrário.

Até poderíamos entender uma proposta que ousasse trabalhar o ensino de língua

portuguesa a partir da literatura numa perspectiva de letramento, mas não é isso que

visualizamos quando examinamos o programa. A literatura encabeça o programa, mas é

a velha historiografia que vemos reiterada nos conteúdos e não uma prática efetiva de

leitura do texto literário. Além disso, soa-nos estranho que não se preveja um diálogo

da literatura com outras artes, uma vez que são conhecimentos que integram uma

mesma área. Quer dizer, uma proposta de ensino que, em páginas anteriores, sinalizou

para uma abordagem discursiva, com o propósito de fazer do texto a unidade básica de

estudo da língua, não poderia incorrer numa visão segmentada dos estudos de língua e

literatura, de literatura e outras artes.

Quanto aos conteúdos de língua, listados após aqueles de literatura, percebemos

tratar-se de uma junção não orgânica de conhecimentos originários de lugares diversos:

“elementos da comunicação e funções da linguagem” advêm da teoria da comunicação;

“coerência e coesão e técnicas argumentativas” advêm da lingüística textual e da

análise de discurso; “fonética, fala e língua” advêm da lingüística estruturalista;

“parágrafo, ortografia, estrutura e formação das palavras” advêm da gramática

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tradicional; “leitura e produção de texto” advêm da lingüística aplicada; já a tipologia

descrição, narração e dissertação advêm da gramática tradicional. Não se trata de fazer

uma apologia do purismo teórico. Vemos como possível a realização de uma

convergência teórica, desde que denote trabalho consciente. Pela forma como são

listados os conteúdos, sem qualquer referência às habilidades e competências, ficamos

com a impressão de que o trabalho com a metalinguagem terá precedência sobre o

trabalho com a linguagem. Essa impressão torna-se ainda mais forte ao nos depararmos

com as atividades de produção textual listadas em último lugar no rol de conteúdos.

Parece-nos persistir a crença de que o indivíduo precisa primeiro dominar a forma para

ser capaz de produzir um texto. Tal listagem é incongruente com uma proposta que

toma o texto como unidade básica de ensino. Não queremos dizer que os conteúdos

gramaticais não devessem estar listados, mas que deveriam estar vinculados a ações

pedagógicas a serem implementadas no sentido de desenvolver competências de uso da

língua nas mais variadas esferas sociais, públicas e privadas. Em outras palavras, seria

perguntar-se pelo porquê de determinados conteúdos terem de ser estudados. Essa é

uma ruptura básica e indispensável para que a nova proposta de ensino médio,

veiculada pelos documentos DCNEM, PCNEM e OCEM, comece a se tornar letra viva.

A desconfiança quanto ao caráter de contrato coletivo efetivamente pactuado

pelo grupo de professores da escola torna-se mais forte quando nos debruçamos sobre

alguns planos de curso de língua portuguesa relativos ao ano de 2006, coletados por

ocasião da pesquisa de campo. Os três planos abaixo são todos do 1º ano do ensino

médio. Cada um deles organiza-se segundo um script diferente. O plano 1 traz dados de

identificação da disciplina, as habilidades e competências listadas no PPP, objetivo

geral, conteúdo programático, avaliação e bibliografia. O plano 2 traz dados de

identificação da disciplina, conteúdo programático, objetivos específicos, estratégias,

avaliação e objetivo geral. O plano 3 traz dados de identificação da disciplina, ementa,

função da disciplina, objetivos, conteúdo programático distribuído por bimestre,

metodologia, avaliação e bibliografia. A ordem de menção dos itens é a mesma de

aparecimento no plano de curso. Comparando os conteúdos propostos nos três planos,

não conseguimos vislumbrar uma equipe tentando pôr em prática um projeto para a

língua portuguesa urdido a muitas mãos. O que se sobressai é a solidão de professores

trabalhando isoladamente – os planos de curso não evidenciam qualquer espécie de

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diálogo entre eles. Todos se aproximam do conteúdo listado no PPP, uns mais, outros

menos. Vejamos:

Quadro 4: Planos de curso de língua portuguesa para o 1º. ano Plano 1 Objetivo Geral: Desenvolver a competência comunicativa dos alunos enquanto falante, escritor, ouvinte e leitor da língua portuguesa, favorecendo duas outras competências: a gramatical ou lingüística e a textual.

Plano 2 Objetivo geral: Desenvolver um trabalho de linguagem que leve o aluno a observar, perceber, descobrir sobre o mundo, interagir com seu semelhante através do uso funcional da linguagem.

Plano 3 Objetivo Geral: desenvolver habilidades e competências nos procedimentos necessários à elaboração de textos e interpretação, construídos a partir de normas determinadas e com fins a que se destinam.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

-Como fazer projeto

-Resumo e fichamento

-Diferença entre língua e linguagem

-Origem da linguagem

-Origem da língua portuguesa

-Fala, escrita, língua

-Textos verbais e não-verbais

-Os elementos da comunicação

-As funções da linguagem

-Fonética – fonema, letra, tonicidade, número de sílabas, encontros vocálicos

-Ortografia (emprego de mas/mais, por/pôr, mal/mau, por que/por quê/porque/porquê e outras)

-Estrutura e formação de palavras

-Leitura e interpretação dos diferentes tipos e gêneros textuais

-Coerência e coesão textual e o uso de conectivos como forma de coesão textual

-Tipos e gêneros textuais

-Estrutura de diferentes tipos e gêneros de textos

-O texto narrativo: estrutura e construção

-O texto descritivo: estrutura e construção

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

1-Linguagem, língua e fala

-Variedades lingüísticas

-Condições de produção

-Funções da linguagem

2-Leitura e estudo de textos de fontes diversas

-Marcas textuais

-Intertextualidade

-Relação entre texto e contexto

-Tipologia textual

3-Produção textual

-Estruturação e linguagem dos diversos tipos de textos

-Produção de propagandas, reportagens, críticas

-A argumentação

4-Gramática

-Coesão textual

-Coerência textual

-Concordância verbal

5-Elaboração de textos científicos

-Resumo

-Resenha

-Bibliografia

CONTEÚDO

Unidade I – 1º. Bimestre

1-Elementos de Comunicação

-Linguagem, língua e fala

-Norma culta

-Funções da linguagem

2-Fonologia

-Fonemas e letras

-Classificação dos fonemas

3-Introdução à literatura

-Denotação e conotação

4-Figuras de linguagem

-Figuras do pensamento

-Figuras de palavras

5-Produção de texto

-As várias linguagens

-A força da palavra escrita

Unidade II – 2º. Bimestre

1-Classificação das palavras quanto ao número de sílabas.

-Encontros vocálicos e consonantais

-Dígrafo

-Hiato

2-Gêneros literários

-Lírico, dramático e narrativo

3-Produção de leitura e texto

-Pensar, ler e escrever

4-Desenvolvimento do projeto para a amostra cultural

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-A descrição em outros tipos de texto

-Produção de textos narrativos, descritivos e narrativo-descritivos em diversos gêneros

-O que é literatura? -Recursos literários e formais.

-Os gêneros, estilos e épocas

literárias.

-Trovadorismo.

-Humanismo.

-Classicismo.

-Quinhentismo.

-Barroco

-Arcadismo ou Neoclassicismo.

para a amostra cultural

Unidade III – 3º. Bimestre

1-Ortografia

-Emprego de letras

2-Quinhentismo

-Periodização da literatura

3-Produção e leitura de texto

-Defeitos de um texto

4-Desenvolvimento do projeto para a amostra cultural

Unidade IV– 4º. Bimestre

1-Estrutura das palavras

-Elementos mórficos

-Radicais, prefixos e sufixos

-Derivação, composição

2-Barroco e arcadismo

-características

3-Produção de texto

-Narraçaõ, descrição e dissertação

4-Contextualização e apresentação do projeto para a amostra cultural.

Os três planos, apesar de diferirem quanto aos conteúdos de língua portuguesa

incluídos no currículo do 1º ano, assemelham-se na prática fragmentária de misturar

aleatoriamente tópicos originários de disciplinas e teorias diversas, repetindo o modelo

praticado pelo PPP. Deparamo-nos com uma miscelânea de assuntos que não nos

permite entrever a que vêm, a não ser seguir o velho ramerrão do ensino de língua

materna. Nenhum dos planos se configura como uma proposta pedagógica orgânica,

visando a desenvolver no aluno a competência comunicativa, como anunciado no item

“função da disciplina” no escopo do PPP. Nenhum deles faz dos gêneros discursivos a

sua matéria primeira e dos textos a unidade de trabalho por excelência. O conceito de

gênero, emparelhado com o de tipo, é usado de uma forma esquiva e confusa. Não nos

é possível visualizar com clareza que gêneros serão trabalhados no 1º ano, já que o

termo “produção de textos” não ganha maiores especificações. Apenas o plano 2 tateia

algo que pode ser entendido como gênero, embora chame de “tipos de textos” ou

simplesmente “textos”. A prioridade não é para as atividades de língua(gem), mas para

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as atividades de metalinguagem. A chamada “produção de texto” vem sempre na

rabeira dos programas. Mesmo quando os planos fazem menção a conceitos/noções da

lingüística textual e da análise de discurso, parece-nos que o propósito almejado é o

domínio do conceito em si mesmo, já que eles não são subordinados a uma prática

efetiva de linguagem, voltada para o desenvolvimento da competência genérica dos

alunos. Assim, a leitura e a produção de textos parecem constituir-se em práticas

gratuitas, uma vez que não convergem para finalidades, mais e melhor, para

competências claramente especificadas. Não há o menor sinal de uma tentativa de

organização das práticas de ensino “por meio de agrupamento de textos (...) como

materialidades de gêneros discursivos”, conforme OCEM (p. 36).

No tocante à literatura, também priorizam o domínio da metalinguagem e não o

letramento, a familiarização e a formação do gosto pelos gêneros literários. Embora a

língua portuguesa faça parte da área “Linguagem, Códigos e suas Tecnologias”, apenas

o plano 1 traz um tópico sobre a relação entre o verbal e não-verbal. Predomina o

trabalho com a linguagem verbal na modalidade escrita, apesar de tanto os PCNEM

quanto as OCEM recomendarem o trabalho com a produção e a recepção de textos em

eventos de escrita tanto quanto em eventos de oralidade, assim como o trabalho com os

gêneros multimodais.

Impossível não nos perguntarmos pela relevância e significado, para aquela

clientela, de certos temas listados no programa, como, por exemplo, a dicotomia

saussureana língua/fala, transformada numa tricotomia língua/fala/escrita. Temas assim

complexos, que demandam um diálogo com a história do pensamento lingüístico,

certamente estarão sujeitos a um tratamento superficial e muitas vezes atravessado,

resultando inacessíveis à compreensão dos alunos. Aliás, a presença extemporânea do

termo “escrita” ao lado do termo “fala” nos faz imaginar que o último esteja sendo

tomado não em sua acepção conceitual que englobaria também os usos da escrita, mas

na acepção de senso comum. Diante disso, somos levados a relembrar o princípio da

contextualização do ensino. Às vezes ficamos com a sensação de que se age com os

alunos do ensino médio como se eles fossem alunos de Letras, submetendo-os ao

domínio enciclopédico de conhecimentos originários do vasto campo da micro e da

macrolingüística, assim como da gramática tradicional.

Enfim, o que vemos por intermédio dos planos – e a leitura aqui feita está longe

de ser exaustiva – sugere um desencontro e não um encontro de propósitos para pôr a

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funcionar um projeto comum pactuado na elaboração do PPP. O que vemos não é uma

história de protagonismo educacional, mas sim de aquiescência ao instituído, de

conformismo. O que vemos nos planos contradiz os indícios de mudança percebidos no

texto do PPP.

3.7 Um balanço final

Sobrevoando o percurso que fizemos até aqui, podemos supor que o PPP esboça

uma tentativa, ainda que frágil, de sintonizar a prática educacional da Escola Cidade

Verde com as concepções e princípios postulados pelos documentos oficiais

(LDB/9394, DCNEM, PCNEM e OCEM). Contudo, essa tentativa não se sustenta à

medida que a exigência de conversão das letras em ações se impõe. Quanto mais os

professores são chamados a realizar a transposição didático-pedagógica dos

conhecimentos produzidos no campo da lingüística do texto e do discurso para balizar

práticas efetivas de linguagem, quanto mais são chamados a descer do céu à terra, mais

tendem a se escorar nos procedimentos familiares do paradigma gramatical. Por mais

desalentador que seja, não podemos dizer que a revolução paradigmática do ensino de

língua portuguesa que propõe a inversão dos pólos forma-uso para uso-forma esteja

próxima de se consumar.

Um aspecto que nos faz desconfiar de que o PPP da Escola Cidade Verde seja

um mero documento ou formulário preenchido mecanicamente para cumprir obrigações

burocráticas, uma peça de ficção, e não um plano de trabalho que mobiliza

permanentemente os “corações e mentes”, conforme DCNEM (p. 82), para alcançar

objetivos compartilhados por toda a comunidade escolar, é ausência de um processo de

avaliação entre a versão de 2006 e aquela de 2007. Não é possível detectar nenhum

procedimento de análise, realizado pelos profissionais da escola, que propiciasse

identificar em que medida o projeto pactuado pela comunidade escolar, com seus

objetivos e finalidades, tivesse saído do papel e da gaveta. A falta de referência a

procedimentos dessa natureza reforça nossa impressão de que a revisão de 2007 do PPP

resumiu-se a uma correção formal (longe de ser exaustiva), alheia a procedimentos

coletivos de reflexão e análise da realidade da escola e, portanto, sem maiores

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conseqüências no que se refere à aplicação da concepção alardeada como inspiradora da

prática da escola.

Em vista dessa percepção, indagamos os professores da Escola Cidade Verde

que nos concederam entrevistas acerca dos trabalhos de escritura do PPP em 2006 e de

sua revisão em 2007. As falas são contraditórias entre si no que se refere ao

envolvimento coletivo da comunidade escolar na elaboração de tal documento norteador

das práticas educacionais:

1. Discutiu toda a área, né, agora não lembro as propostas, foi nas primeiras

semanas, nós discutimos intensamente, foram mostrados pontos, o que era pra mudar, o que não era... (Entrevista com a Professora A).

2. Ah! Eu não me lembro de grandes discussões, não, alguma coisa eu me lembro

sobre língua estrangeira que tem o projeto funcionando, mas grandes discussões não lembro, não... (Entrevista com a Professora C).

3. Houve uma discussão bastante acirrada, sobre os projetos e do próprio corpo do

PPP, uma avaliação institucional. Alguns pontos foram reavaliados, modificados, essa questão de habilidades e competências, cada área discutiu se era isso mesmo, a escola fez pesquisa com os alunos de conteúdos, de aprendizagem, da própria aplicação daquele conteúdo para a vida prática deles, além de analisar os resultados de aprovação, de reprovação, de desistência, de evasão e de transferência, foram discutidos os conteúdos e as habilidades e competências que foi trabalhado em cada área, isso foi dividido por área e depois abriu o quadro para todos, agora vou frisar mais uma vez, isso aconteceu em fevereiro, mas nós não tínhamos todos os professores ainda aqui, esse ano especificamente nós temos muitos professores contratados e isso ocasiona um pouco de confusão. (Entrevista com a Professora D).

No excerto 1, a Profa. A afirma a existência de um processo coletivo de

discussão do PPP pela área no início do ano letivo, mas paradoxalmente não se lembra

do que propuseram. No excerto 2, a Profa. C contradiz, de uma certa maneira, a posição

enunciada em 1. No excerto 3, a Profa. D reafirma o enunciado de A, mas recorda-se de

que teriam discutido por área a “questão das habilidades e competências”, embora

permanece num nível genérico. A Profa. D é enfática ao assinalar que a discussão fica

comprometida pelo alto índice de professores contratados no corpo docente, uma vez

que o planejamento ocorre em fevereiro quando tais professores ainda não chegaram à

escola. Essa desafinação de vozes em torno do PPP aumenta a sensação de estarmos

diante não de um contrato coletivo, mas de uma peça montada artificiosamente para

cumprir um mandato vindo de instâncias superiores, sem conseqüência alguma para a

vida da Escola.

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O mundo não existe anteriormente a uma forma que lhe dê seu perfil. Ou existe, mas como algo amorfo, desordenado e sem delimitações e, portanto, sem sentido. Não há uma experiência humana não mediada pela forma e a cultura é, justamente, um conjunto de esquemas de mediação, um conjunto de formas que delimitam e dão perfil às coisas, às pessoas e, inclusive, a nós mesmos. A cultura, e especialmente, a linguagem, é algo que faz com que o mundo esteja aberto para nós. Mas quando uma forma converte-se em fórmula, em bordão, em rotina, então o mundo se torna fechado e falsificado. (...) às vezes, há tantos bordões que nada está aberto. Nenhuma possibilidade de experiência (LARROSA, 1998, p. 59).

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Capítulo IV

O ensino de língua portuguesa: do concebido ao realizado

Neste capítulo, buscamos explicitar como professores de língua portuguesa do

ensino médio da escola Cidade Verde vêem-se envolvidos pelo discurso da nova crítica

catalisado pelos PCNEM/OCEM. Para tanto, vamos examinar o conjunto de enunciados

obtidos por meio de entrevistas e transcritos, assim como as notas de observação de

vinte (20) aulas em uma turma de 1º. Ano.

Entrevistamos quatro professores de língua portuguesa do ensino médio, sendo

um deles – a professora A – regente da turma observada. A condição que presidiu a

escolha dos informantes era estar em exercício na sala de aula. Um deles, o professor B,

entretanto, não preencheu, plenamente, esse perfil. Esse professor encontrava-se

afastado para a realização de curso de doutorado, tendo retornado à escola em meados

de 2007. Na sua volta, fora incumbido da coordenação do laboratório de informática e

desincumbido de aulas propriamente. Porém, o professor mostrou-se interessado em nos

conceder entrevista, ao que respondemos positivamente, mesmo porque ele iniciava,

com colegas da área de linguagem, a formação de um grupo de estudos para discutir

temas atinentes ao novo paradigma, como gêneros discursivos, por exemplo. Quanto aos

demais, a professora C ministra aula para o 2º ano e a professora D para o 1º e 3º anos.

Os professores A, B, C e D são todos efetivos no sistema público de ensino desde 2000.

4.1 O novo paradigma de ensino de língua portuguesa na fala de professores

Saber como ressoam as mudanças paradigmáticas abordadas por nós no capítulo

II e tentar definir em que medida os principais postulados dessa proposta encontram-se

incorporados ao exercício diário de reflexão dos professores complementam, a nosso

ver, a abordagem sobre o coletivo da escola, iniciada com a leitura do PPP, no capítulo

III. Os professores, ao serem perguntados sobre mudanças em sua prática pedagógica,

seja em relação a estratégias de ensino ou a concepções sobre o que ensinar, procuram

passar a idéia de que os PCNEM/OCEM subsidiam em última instância tal prática,

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subsumindo, portanto, que há mudanças. Contudo, o discurso proferido sobre a questão

deixa dúvidas sobre profundidade do mergulho nos documentos oficiais. Ouçamo-los:

⎯ ... já discutimos um pouco sobre os PCNs e tal... temos que colocar... inclusive os planos nossos de aula são direcionados aos PCNs... mas a prática... temos todo um processo de... plano de curso... o plano da área de linguagens no início do bimestre a gente faz toda aquela... ham... é... todo projeto... enfim tenta-se colocar os PCNs... (En: prof. A)

⎯ De fato isso não acontece. Não só na escola Cidade Verde, mas em toda... enfim... mesmo na universidade eu não vejo em hipótese alguma algum sinal de implantação de mudanças paradigmáticas. ( En: prof. B)

⎯ Esses planos a gente não tem acesso a eles. Se você quiser saber alguma coisa deles você vai na internet porque oficialmente nunca veio para nós. Eu não sei se o governo federal mandou para as escolas ou não. Nunca chegou na minha mão... nem do ensino fundamental nem do médio. Na verdade é sugerido “tem que trabalhar conforme os planos”. Mas nunca foi feito um planejamento baseado neles. (En: prof. C).

No depoimento titubeante da professora A e no depoimento assertivo da C,

evidencia-se a não existência de uma postura de implantação efetiva dos pressupostos

dos PCNEM/OCEM por parte da escola. Expressões como: “temos que colocar”, “tem

que trabalhar conforme os planos” indiciam a consciência dos professores em relação às

injunções governamentais para colocar os currículos locais, por meio dos planos de

curso, em sintonia com os PCNEM/OCEM. Todavia, a fala peremptória da professora C

afirma a inexistência de um planejamento conscientemente elaborado. Nem a ação

primeira, que é a de ter o(s) documento(s) em mão, para folhear, ler, conhecer, foi

cumprida satisfatoriamente, diz a professora. O professor B afirma igualmente de forma

categórica que a implantação do novo paradigma não está ocorrendo na Escola Cidade

Verde, acrescentado que nisso eles estão em numerosa companhia, já que nem a

universidade o faz de fato. Quer dizer, o diálogo com o novo paradigma, quando há, é

tímido, desapaixonado, incapaz de mobilizar os professores e derrubar as muralhas do já

quase eternizado paradigma gramatical.

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4.1.1 A compreensão do novo paradigma

As discussões são pontuais, tangenciais, não entram no cerne do novo paradigma

– uma ou outra palavra evocam as mudanças, diz o professor B. Certamente, ele deve

estar se referindo aos bordões da moda mediante os quais as propostas oficiais passam a

ser inconsequentemente lembradas, como: temas transversais, competências e

habilidades, gêneros, dentre outros, todos fora do contexto.

⎯ ... eu não observo a existência de discussões em um nível coletivo. Eu não observo isso ainda. São questões ainda pontuais. Há um discurso. ...há uma quebra... algumas palavras que evidenciam um discurso de mudança. Mas, de fato, isso é muito mais um tema do que de alguma proposta de mudança. (En: prof. B).

Quando a professora A discorre sobre os PCNEM, a avaliação que o professor B

faz do nível de compreensão da proposta parece ecoar em seu enunciado, já que temas

são pontuados, sem que uma visão global da proposta seja construída.

⎯ Os PCN diz: habilitar o aluno a ler, escrever, a pensar né?... e isso nós estamos tentando conseguir... isso é o que?... Não ficar engessado, falando só de gramática, engessado falando só de... só de... um elemento lingüístico... então... nós estamos tentando através de leitura, através de produção de texto chegar melhor no aluno, usando as habilidades e competências deles de uma forma que não seja mais engessada como era antes. Então quando nós pensamos matéria nós estamos pensando o que nós queremos para nossos alunos, ta? Qual o objetivo nosso em relação à língua portuguesa? Porque é difícil, você sabe... você é professor também de língua... é difícil você falar... sair de lá... língua padrão... não existe... nós já sabemos pela lingüística que tem essas variedades e... (En: prof A).

Esse enunciado evidencia que o discurso da mudança chegou ao cotidiano do

ensino de língua portuguesa. Porém, as questões axiais são veiculadas sem o vigor

necessário, anunciadas como itens de uma agenda politicamente correta: habilitar o

aluno a ler, a escrever e a pensar; libertar-se do ensino prescritivo baseado, “engessado”,

na gramática tradicional; aproximar-se dos alunos por meio de atividades de leitura e

produção textual, “‘usando’ as habilidades e competências deles”. Pressente-se a tensão

entre o paradigma tradicional que fazia do domínio de conteúdo gramatical – a matéria

– um fim em si mesmo e o novo paradigma que subordina as matérias às habilidades e

competências – “o que nós queremos para nossos alunos?” “Qual o objetivo nosso em

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relação à língua portuguesa?”. A simples menção ao termo língua faz o tópico deslizar

das competências e habilidades para a questão da norma padrão, cuja propriedade e

existência vêm sendo discutidas pela lingüística que afirma a heterogeneidade da língua.

A norma padrão, nos termos da sociolingüística, é um modelo ideal que não

corresponde à fala real de nenhum grupo social. É nesse sentido que ela não existe.

Sociolingüistas como Marcos Bagno (2001) preferem falar em norma culta, mais e

melhor, em variedades cultas, uma vez que “toda língua, qualquer língua, em qualquer

momento histórico, em qualquer lugar do mundo, nunca é uma coisa compacta,

monolítica, uniforme” (p. 41). A fala da professora A também não deixa pistas sobre a

necessidade de articular os conhecimentos acerca das variedades com os gêneros

discursivos. O uso de uma ou outra variedade depende do gênero em pauta.

A professora D refere-se aos conceitos de habilidade e competência como mais

um modismo do final da década de 1990, isolando-os da proposta global de mudança.

Segundo a professora, esse modismo, como outros, oferece dificuldade de compreensão

aos professores que têm de converter conceitos em atividades práticas dirigidas aos

alunos.

⎯ (...) E essa questão de habilidade e competência que também entrou na moda a partir de 98/99, o PCN tenta explicar um pouco, porém, como eu disse, falei, na concepção de gêneros textuais, o professor tem dificuldade de entendimento do que é habilidade, do que é competência e como trabalhar isso com o aluno. (En: prof. D).

A professora D, ao falar dos PCN, evoca um discurso de senso comum que

procura desqualificar a proposta, alegando o seu direcionamento à clientela escolar da

região sudeste:

⎯ Porém, na minha opinião, como eles foram escritos baseados principalmente nas escolas do sudeste, então pras regiões a gente tem que adequar muitas coisas dos PCN pra poder ele dar certo né...? também porque ele é um pouco utópico em alguns pontos. Veja bem... nós temos... nós estamos falando de língua, da língua materna, mas a nossa língua, a língua portuguesa, ela tem uma variante muito grande da fala pra escrita, do texto escrito para o texto falado e a partir disso... isso pode faltar... muitas controvérsias, muitos problemas na aprendizagem do aluno. (En: prof. D).

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Essa versão mereceria ser criticamente confrontada com uma leitura própria do

documento, para que a posição de respeito à diversidade cultural e lingüística pudesse

ser percebida, assim como o alinhamento com a pedagogia culturalmente sensível. A

fala da professora não leva em conta que contextualizar situações é um dos principais

parâmetros da proposta oficial. A professora está certa, ao dizer que a língua portuguesa

apresenta variantes entre o texto falado e o escrito, mas a variação não se restringe às

modalidades oral e escrita, ela ocorre também internamente a cada uma dessas

modalidades. Não é adequado, no atual estágio de desenvolvimento dos conhecimentos

lingüísticos, supor que a escrita é homogênea e invariável. Essa mudança de percepção

certamente acompanharia um trabalho pedagógico criteriosamente nucleado pelos

gêneros discursivos, levando o aprendiz a compreender que falamos/escrevemos uma

mesma língua que admite diversas formas de expressão e desenvolvendo a habilidade de

se expressar adequadamente nos diversos contextos, ou seja, a enriquecendo sua

competência comunicativa pelo domínio de novos gêneros. Dessa forma, através dos

gêneros, as esferas sociais de sua realização são reconhecidas e as diversas formas de

expressão lingüística admitidas e contextualizadas. Assim, podemos falar do estudo da

língua materna no espectro amplo de uso=>reflexão=>uso. Articulada aos gêneros

discursivos, a diversidade lingüística deixa de ser um problema, mas a essência mesma

do trabalho com a língua. A diversidade lingüística só avulta como problema se o

objetivo da educação escolar for purificar a língua, uniformizá-la.

A fala da professora D alude também a um outro discurso que, com muita

freqüência, é apresentado à guisa de contestação da sociolingüística que recomenda uma

postura sensível em relação à realidade lingüística da clientela escolar. Vejamos:

⎯ (...) Ensinar português a partir da realidade para o cotidiano do aluno. Mas, há uma controvérsia muito grande, porque parte do pressuposto, a partir do PCN que a gente tem de trabalhar a língua portuguesa e as outras áreas para o cotidiano do aluno. Você trabalha a partir da realidade, você trabalha o texto que interessa para aquela faixa etária. Quando esse aluno chega num estágio que tá pleiteando uma vaga na Universidade Pública ele não é aprovado porque lá no vestibular ele precisa ter conhecimento da norma culta da língua padrão, porque de certa forma isso também é cobrado dele lá. Muitas vezes tem professor que fala: “vamos trabalhar a realidade do aluno”, mas fica só naquilo, não faz esse parâmetro paralelo. (...) Posso trabalhar a realidade do aluno, posso trabalhar gêneros textuais, mas eu tenho que fazer um paralelo com a língua culta, tem que fazer, adequar a linguagem deles. (En: prof. D).

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Quando a sociolingüística recomenda a pedagogia sensível à diversidade cultural

e lingüística do aluno, ela não pensa em confinamento à realidade do aluno, mas em

diálogo com a realidade do aluno. Os lingüistas não dizem que a norma padrão não deve

ser ensinada na escola básica. O que eles dizem é que ela deve ser revista em termos dos

usos reais, deve ser aproximada da norma culta (conforme critérios do NURC) e que seu

ensino não pode ignorar a língua materna do aluno e nem se reduzir à reflexão

metalingüística, mas se fazer a partir do uso. E o uso, de acordo com os PCNEM,

reenvia aos gêneros. Sem dúvida, é mais difícil deslocar-se para o campo da lingüística

e compreender sua posição, estando do lado de dentro, do que ficar na periferia e

enviesar a sua posição, repetindo o enunciado de que ela encoraja o abandono da norma

culta, impedindo a emancipação dos alunos e levando ao insucesso nos concursos

públicos. A professora enuncia a palavra chave da pedagogia culturalmente sensível:

“fazer um paralelo” entre o que o aluno já sabe e o que ele não sabe. Se, por um lado, a

referência aos textos que respondem à realidade do aluno demonstra uma compreensão

apropriada da concepção de gênero, por outro, ao enunciar algo como “Posso trabalhar a

realidade do aluno, posso trabalhar gêneros textuais, mas eu tenho que fazer um paralelo

com a língua culta, tem que fazer, adequar a linguagem deles”, a professora parece

separar o trabalho com o gênero do trabalho com a norma culta, vacilando na orientação

de que a reflexão sobre a língua se subordine ao uso. Assim, a norma culta seria

trabalhada na dependência dos gêneros que a impõem como um dos componentes do

estilo e não à parte.

No que diz respeito às áreas de conhecimento, vimos que o PPP da escola

apresenta uma matriz curricular com as disciplinas habituais distribuídas em três áreas

(ver anexo 1), conforme a proposta dos PCNEM. Contudo, na prática, como diz a

professora C, o ensino não funciona por área e sim, isoladamente, por disciplina. Isso se

deve à falta de autonomia dos professores e à dificuldade de compreender como

articular conhecimentos habitualmente separados, como é o caso das línguas, artes e

educação física, abrigados pela área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. A

afinidade entre a língua portuguesa e as artes pode até ser visualizada, mas a educação

física soa-lhe completamente estranha nessa área:

⎯ Pois é... a gente só pensa sobre isso quando alguém pergunta... o que você acha...? Fala-se que é por área, mas na verdade não é. As disciplinas da área são dadas cada uma isoladamente e pronto. (...) Eu não sei como faria. Isso é colocado, mas na prática não funciona por área. É uma coisa colocada de cima

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pra baixo e a realidade da escola não favorece. A parte administrativa exige coisas. O conteúdo do 1° ano é esse..., o do 2° ano é esse..., porque que é esse? Língua portuguesa faz parte da área de linguagem. A disciplina de artes que também é da área... acontece algum trabalho em conjunto entre essas disciplinas porque há uma afinidade entre os profissionais. Então são ocorrências pontuais. Não porque seja planejado para ser assim. Educação física, por exemplo, ninguém entende educação física como linguagem e nunca foi trabalhado isso... de que forma... de que maneira? Mas a educação física está dentro da linguagem. Como perceber a linguagem na educação física? Entende? (En: prof C) Ao entender que a proposição da área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias

pelos PCNEM oferece aos professores do ensino médio dificuldade de compreensão

quanto à sua natureza de linguagem, perguntei-lhe se essa concepção lograva um

melhor entendimento. Eis sua resposta:

⎯ Não... não está claro não. É como eu falei... na verdade aponta-se os PCNEM quando se faz necessário por alguma motivação. Esses PCNEM não estão sendo trabalhados na escola... o que se trabalha deles é o que automaticamente já encontramos nos livros didáticos e pelo que circula sobre trabalhar linguagem etc. (En: prof. C) A professora nos diz que o contato com a proposta é indireto e assistemático.

Quer dizer, os PCNEM não têm sido matéria de estudo entre os professores, eles só

entram na escola por meio de uma tradução dos autores do livro didático que,

certamente, não são os melhores intérpretes. Pelo dito, sua discussão não chega nem à

episódica semana pedagógica do início do ano letivo quanto mais a uma prática

cotidiana de reflexão na comunidade escolar. Vemos, pois, que o discurso fácil de seu

descarte pode se instalar antes mesmo que a proposta tenha sido minimamente

compreendida.

A percepção da área e a concepção de linguagem parecem avultar um pouco

mais claras no discurso da professora A que fala em “linguagem total”, englobando a

verbal e as não-verbais. A língua é vista como um sistema menor dentro do maior que é

a linguagem. Contudo, o que lhe parece difícil é incorporar à prática de sala de aula, um

espaço marcado pela hegemonia da linguagem verbal, as demais linguagens. O difícil é

abrir mão dos bordões para trilhar novos caminhos.

⎯ Veja bem... a linguagem por exemplo: nós estamos trabalhando linguagem buscando no aluno o entendimento entre a verbal, a não-verbal, a linguagem em

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si, total... que tipo de linguagem ele pode usar nesse universo que ele tá ali... mas é difícil na prática. Porque a língua é inerente a cada um... pra pegar a concepção de língua portuguesa... língua como código... a linguagem é um sistema maior onde a língua esta inserida... então como fazer isso? Como desenvolver a prática nisso? Tá difícil. (En: prof. A). Ouvindo os professores sobre a percepção da área de Linguagens, Códigos e

suas Tecnologias, vislumbramos a necessidade de os cursos de Letras se renovarem

tendo em vista a evolução da linguagem em direção à multimodalidade. Hoje, até

mesmo o nome “Letras”, que remete a hegemonia da língua escrita, merece uma

releitura. Se Saussure (1975), pôde, à sua época, dedicar-se ao estudo exclusivo da

lingüística que ele dizia ser parte de uma semiologia geral, voltada para o estudo da

“vida dos signos no seio da vida social”, contemporaneamente um complexo de fatos

semiológicos se impõe aos pesquisadores e professores que lidam com a linguagem. O

descompasso entre a formação inicial e as demandas profissionais é, pois, evidente.

Nesse ponto retomamos parte da fala da professora A, transcrita à página 92,

para considerar outros aspectos:

⎯ ...habilitar o aluno a ler, escrever, a pensar né?... e isso nós estamos tentando conseguir... isso é o que?... Não ficar engessado, falando só de gramática, engessado falando só de... só de... um elemento lingüístico... então... nós estamos tentando através de leitura, através de produção de texto chegar melhor no aluno... Qual o objetivo nosso em relação à língua portuguesa? (En: prof A). Importa-nos pensar aqui a questão do texto como unidade básica do ensino da

língua materna e não como um simulacro de mudança para dizer que o ensino deixou de

ser “sobre” a língua para ser “da” língua, porque pôs o texto no lugar das palavras, das

frases, das normas e da metalinguagem. O texto pode entrar na sala de aula como um

disfarce para essa prática. Pode entrar como a muleta de uma prática sem rumo, depois

de perder as certezas do ensino gramatical – cada dia um texto diferente, num exercício

inconseqüente de leitura que leva a lugar algum. Pode entrar como exemplar de gêneros

avaliados como fundamentais à formação dos alunos para o mundo do trabalho e da

cidadania. O que diz a professora A sobre a noção de gênero?

⎯ A moda agora é falar de gênero, né...? O que é que nós estamos querendo? Cê vai em todo seminário, todo mundo tá com gênero, gênero... gênero literário. Mas nós não estamos conseguindo ter essa ampliação dessa concepção de

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linguagem, o que é que nós estamos querendo agora? Querendo trabalhar gêneros? Como colocar isso na realidade do aluno? Nós estamos buscando... nós estamos nos perguntando... é... nosso aluno... o que é que ele vai precisar de fora né... em termos de gênero o que ele tem que produzir como gênero? O que é que ele vai usar com mais freqüência. Se nós conseguirmos durante o ano, passar quatro ou cinco formas de gênero que ele vai utilizar, nós já vamos nos dar por satisfeitos, pelo menos nessa primeira arrancada né...? (En: prof. A).

A professora mostra-se consciente de que a palavra de ordem atual do ensino de

língua portuguesa é “gênero”. Porém, apesar de todo o rumor/debate em torno do tema,

os professores estão enfrentando dificuldade para ampliar a concepção de linguagem e

para levar isso à realidade do aluno. Ainda que indiretamente, a professora revela

perceber que a decisão acerca dos gêneros a serem trabalhados na escola precisa levar

em conta as necessidades de fora da escola.

⎯ Nós estamos discutindo... né...? a forma... primeiro essa distinção... né... gênero e tipo textual né... que o gênero discursivo, a obra... estamos estudando esse conceito... como nós já estamos vendo... o que nós queremos? Nós queremos passar isso pro aluno. De que forma...? nós não vamos conseguir dar conta de marcar todos os gêneros pra ele né... mas nós estamos pensando... (En: prof. A).

Em outro momento, a professora, embora não muito precisamente, parece se

remeter à distinção entre tipos textuais e gêneros, à maneira de Marcuschi (2002, p. 22-

23). Para esse autor, os tipos são construtos teóricos definidos por propriedades

lingüísticas, abrangendo um número pequeno de categorias como narração,

argumentação, exposição, descrição, injunção. Já os gêneros são “textos materializados

que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-

comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição

característica. Se os tipos são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros”. A

professora A parece igualmente vislumbrar que os gêneros recorrem aos tipos. No

exemplo da carta de apresentação, ela percebe que a carta pode envolver mais de um

tipo de seqüência, como a narração e a informação (o nome convencional seria

´exposição`), mas revela-se meio hesitante no uso dessa distinção.

⎯ (...) nós temos agora todos os tipos de gêneros... temos o que? Temos a resenha, temos o resumo, temos o artigo de opinião, né...? Todas essas formas de

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gêneros né... e como que ele vai usar isso no discurso dele. Certo? Pra ele querer contar uma história ele vai ter que usar o que? Um determinado gênero. Uma carta de apresentação, por exemplo, para um emprego. Nós vamos ter que usar a tipologia que gera a informação. A tipologia da narração pra descrever quem ele é, o que que ele pretende. Então nós estamos tentando buscar, dessa forma trabalhar as outras tipologias também com temas básicos. (En: prof. A). Elevado à condição de objeto, por excelência, do ensino/aprendizagem no

espaço-tempo da educação formal, o gênero textual inquieta outros professores da

Escola Cidade Verde, a exemplo da professora C, que revela sua dificuldade em

deslocar-se da tipologia restrita (narração, descrição e dissertação), consagrada pela

escola, para o campo dos gêneros em sua abertura imprevisível. Além disso, a

professora aponta um aspecto que não pode ser desconsiderado – não se trata apenas de

transpor conhecimentos sedimentados para a prática de sala de aula, pois, no que diz

respeito aos gêneros, os conhecimentos estão sendo produzidos pela lingüística agora e

o professor precisa lidar com essa falta de material de apoio, dispondo-se a enfrentar a

tarefa de realizar, ele mesmo, essa pesquisa básica que antecede a prática pedagógica

voltada para a apropriação de determinados gêneros pelos alunos.

⎯ Em nossa formação a compreensão de gênero que tínhamos estava ligada a tipologia. Agora é uma ampliação do que a gente compreendia anteriormente como gênero. Agora é essa abrangência de novos textos que estão permeando a vida da gente e que aí eu não tenho como classificar o que está sendo chamado de gênero. Então pra mim ainda... primeiro, novas possibilidades... tem alguns textos que eu tento perguntar e até me informar... ninguém consegue classificar que gênero que é... né... por exemplo: eu tenho uma receita... receituário médico; é esse o gênero? E tem alguns textos, quando você começa a trabalhar... que o aluno traz... que você não consegue classificar que gênero é... porque abriu (?) demais... e o próprio aluno estranha... eles falam: piada professora... piada... piada é um gênero? E eu não sei... também eu tive conversando com um pessoal da Unicamp e muitas coisas ainda estão pra ser categorizadas... Pois é, o gênero eu acho que abriu o leque das concepções... todas as formas de contato pessoal. (En: prof. C). Em seu depoimento a professora C alude ao desamparo experimentado pelos

professores ao buscarem novos caminhos. Mas, mesmo assim, considera que o trabalho

com gêneros muda a perspectiva de abordagem gramatical. Parece sugerir que, no

quadro dos gêneros, os conteúdos gramaticais, costumeiramente decorados, podem ser,

por meio de uma reflexão epilingüística (‘podemos perguntar’), investidos de uma

significação que não se evidenciava no ensino meramente gramatical.

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⎯ Então eu já consigo ver o gênero como forma de trabalhar a língua portuguesa... porque desde a faculdade a forma de trabalhar a gramática... essa aí não serve... porque através do gênero podemos perguntar porque o tempo verbal é assim..., porque pretérito, ao invés de ficar lá decorando os tempos verbais. (En: Prof. C). A professora A duvida que a gramática seja abordada conforme os PCN e afirma

que a metodologia é de cada professor. Identifica-se como uma professora que já foi

“gramatiqueira”, por uma formação universitária falha, e que hoje não é mais. Diz que

há professores que ainda são gramatiqueiros, ensinam “a gramática nua e crua”. Diante

dessa realidade, não adianta a escola dizer-se alinhada com os PCN. A proposta e a

organização curricular e os procedimentos metodológicos oficialmente adotados pela

escola são uma coisa e o trabalho dos professores que deveria ser motivo e

conseqüência da existência da escola é outra coisa. Ao falar da abordagem gramatical

deslocada para o texto, a professora A parece deslizar de uma posição apropriada, que

acomoda os conteúdos gramaticais ao tratamento do estilo, lembrando que o estilo

integra o tripé tema-composição-estilo, definidor do gênero segundo Bakhtin, para uma

posição em que o texto é mero pretexto para a exploração de conteúdos gramaticais,

nesse caso, uma posição não substancialmente diferente da gramatiqueira.

⎯ A gramática é dada conforme cada professor – duvido que seja conforme os PCN – a escola pode ser até que seja – tem professores que é gramatiqueiro como eu fui – eu nunca soube na universidade sobre isso, nunca soube que seria isso, isso agora – eu aprendi depois... tem professor que é gramatiqueiro... é gramática nua e crua... aqui é sujeito... aqui é predicado... outros não... outros passam através do texto os elementos estilísticos da forma... do gênero textual... “porque ele colocou substantivo assim? Porque não colocou substantivo abstrato? Porque trabalhou com verbo de ação e não verbo estático... é... de fenômeno.” Então tem uns que conseguem fazer com que a gramática auxilie o texto e outros gramatiqueiros. Através do texto... com certeza. Gramática só quando assim... não tem jeito... a gente para um pouco pra explicar conceito... mas muito rápido né... mas eu tento... o... o... muito em cima de texto né... somente gramática através do texto porque eu acho que a gramática é o texto não... não adianta você... já está comprovado que gramática separada... como eu falo, fora de texto... ninguém entende nada. (En: prof. A). Com relação à professora D, alguns aspectos de sua visão sobre gênero foram

abordados na página 92, quando tratamos de sua compreensão do que seja trabalhar a

partir da realidade do aluno. Naquele excerto, a professora indiciava uma dificuldade

em sujeitar o trabalho com a norma culta aos gêneros, tendendo a ver as duas coisas

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como coisas distintas, uma coisa e outra. No excerto abaixo, D também aponta que

trabalhar com gênero é uma questão de moda, para a qual não se acha preparada, uma

vez que a formação universitária, há dez anos, não dava subsídios para isso. Há dez

anos, o gênero não estava na moda e, por isso, não era matéria dos cursos de Letras.

Ainda hoje, pensamos, eles não estão presentes na maioria dos cursos de Letras que

resistem a se rever por dentro. Contudo, é interessante perceber que a professora divisa

o correto enfoque de gêneros como ‘conteúdo’.

⎯ Os PCN vêm, de certa forma, com esta questão de trabalhar gêneros textuais, que ele aponta como... vamos chamar de conteúdo ou de forma de trabalhar com a linguagem, (...) ...porque nós na universidade, a nossa formação, ela não dá o subsídio amplo (...) para trabalhar gêneros textuais. Principalmente quem se formou na minha época. Tem dez anos de colação de grau. Hoje em dia gêneros textuais estão muito na moda, mas, nessa época não era moda. (En: prof. D).

As impressões até aqui registradas revelam que os professores estão se

aproximando do novo paradigma, mas que a compreensão deles é ainda vacilante.

Livrar-se dos bordões que impedem a abertura a novos sentidos e experiências não é

fácil, mas não impossível. Neste momento, o que os professores de português não

podem deixar para depois é uma leitura densa dos documentos que lhes permita uma

compreensão efetiva e própria, sob pena de eles serem descartados mediante pechas que

não lhes cabem como: inadequação à clientela do sul-sudeste, negligência com a norma

culta, modismo etc.

No item seguinte, ouvimos os professores acerca dos fatores que, na opinião

deles, obstaculizam a implementação do novo paradigma.

4.1.2 Obstáculos à implementação do novo paradigma

Há uma quase unanimidade entre os professores em classificar os PCNEM como

utópicos, fora da realidade das escolas brasileiras das regiões periféricas. Quando falam

sobre os problemas que emperram a implementação do novo paradigma, os professores

enumeram pontos como: falta de acesso aos livros pelos alunos para que possam

realizar boas leituras, descompromisso dos professores, falta de apoio do governo para

qualificação profissional continuada, formação inicial inadequada nos cursos de

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graduação em Letras e o fato de as propostas de mudança não refletirem as necessidades

dos professores, sendo impostas de cima para baixo.

Para a professora A, a dificuldade em colocar os PCN em prática reside na sua

irrealidade – “ele é lindo no papel”, mas não pode funcionar porque os alunos não têm

acesso aos livros necessários ao desenvolvimento de suas habilidades e competências.

Em outro momento da entrevista, a professora avalia o PCN como “não ruim de tudo”,

quer dizer, avalia como ruim, embora de forma mitigada. Retifica sua avaliação,

dizendo que “ele só não tá funcionando”. Então enumera uma série de fatores

significativos para ele não funcionar. Menciona, em primeiro lugar, a falta de

comprometimento dos professores, citando, como exemplo, a baixa freqüência no curso

sobre gêneros organizado pelo professor B, bem como a resistência à mudança. Aliada a

esses fatores, está a questão do atual critério de distribuição de aulas (escolha da escola

por contagem de pontos) que induz a uma rotatividade de professores na escola,

impedindo a formação de um coletivo de trabalho afinado e comprometido com um

projeto. É bastante enfática com relação à idéia de que, para haver mudança em

educação, o trabalho precisa ser coletivo, pois “a escola é um conjunto”. O governo e a

escola precisam fazer a sua parte, assegurando a atualização constante dos professores,

já que a formação inicial pode não responder adequadamente às demandas da sala de

aula, num mundo que muda num ritmo vertiginoso.

⎯ estamos tentando mas ainda tá difícil... tá difícil em todos os setores, tanto do lado do aluno, como do professor, como da comunidade escolar... porque se você for analisar... colocar os PCN... ele é lindo no papel... lógico... com certeza! (ironia)... mas vamos colocar isso na prática... como que nós vamos atacar as habilidades e competências de nossos alunos né... se mal eles têm um livro pra comprar, mal eles têm um livro pra ler... a biblioteca nem sempre é suficiente... mas é a tentativa melhor. (En: prof. A). ⎯ e você não pode descartar completamente os PCN... porque ele não é ruim de tudo... ele só não tá funcionando. Por quê? Não sei. Tem vários fatores, tá...? Por quê que ele não funciona? É falta de comprometimento de certos profissionais da área... né? ... é..., pelo próprio sistema montado... hoje você é professor de uma turma, amanhã de outra... de outra... você não sabe aonde que você tá no outro ano, você não sabe nem se tá na escola que você se propôs a trabalhar. Então esse sistema de contagem de pontos dividiu muito os professores. É uma guerra... e... tem alguns que não tem comprometimento nenhum. Vão ali dar aula e pronto... não quer saber. Agora toda mudança é lenta. Radical mas é lenta. Cê vê aí... o curso que nós estamos fazendo de gêneros textuais. Nós somos de 10 a 15 professores de língua portuguesa. Só vão 4 ou 5 no curso. O pessoal não quer

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mudar, não quer mudança. Eu sou aberta a mudança. (...) Os PCN é bonito no papel, é legal no papel, mas praticamente, dentro da prática é difícil jogar isso”. (...) A escola é um conjunto. Governo tem que dar respaldo para o professor se atualizar não é? O governo tem... a escola também. Sozinho indivíduo nenhum faz nada. Principalmente em educação não se trabalha sozinho. É preciso atualizar sempre. ... minha formação foi insuficiente para o que é exigido hoje. Quando eu saí da faculdade talvez fosse suficiente... o que se pedia da profissão na época. (En: prof. A). A professora D menciona a falta de preparo do profissional para trabalhar a

questão das variedades lingüísticas, dos gêneros textuais, principalmente entre aqueles

professores formados há mais de dez anos, pois naquela época esses conteúdos não

eram devidamente contemplados nos currículos dos cursos de Letras. Segundo a

professora, a falta de embasamento teórico pode gerar equívocos na recepção dos PCN.

Reconhece, igualmente, a falta de interesse de alguns professores em se atualizar, já que

há uma farta bibliografia sobre temas como habilidades e competências e gêneros

textuais. Sua fala, concernidamente, nos passa a compreensão de que os estudos e as

oportunidades de qualificação são fundamentais para a implementação das mudanças.

Seu ponto de vista é bem próximo ao da professora A, coincidindo com o dela em

muitos aspectos:

⎯ ...o professor, o próprio professor, ele tem que se preparar um pouco para isso né...? porque nós na universidade, a nossa formação, ela não dá o subsídio amplo pra trabalhar essa variação lingüística, para trabalhar gêneros textuais. Principalmente quem formou na minha época. Tem dez anos de colação de grau, então... hoje em dia gêneros textuais tá muito na moda, mas, nessa época não era moda. Então a gente via? Via. Mas muito sucintamente, muito “en passant” como se diz. Então nós os professores um pouquinho mais velhos, mais antigos, temos que correr atrás dessa questão dos gêneros. (...) na concepção de gêneros textuais, o professor tem dificuldade de entendimento do que é habilidade, do que é competência e como trabalhar isso com o aluno. Na minha concepção também precisaria é... ter um pouco mais de estudo, ter apresentado um pouco com mais clareza, porque os PCN vieram mas como tudo que vem de cima pra baixo, ele vem com defasagem de aprendizagem do próprio professor. O professor não tem o embasamento teórico e aí ocorre os equívocos. (...) E às vezes professor, vamos ser bem sincero, o professor também não se interessa, porque hoje nós temos inúmeras obras de autores que têm trabalhado a questão das habilidades, competências, gênero textual e outras coisas, mas a alguns professores falta um pouco de interesse. (En: prof. D). A professora C, em seu depoimento, revela nunca ter tido acesso aos PCN. Se

aos professores nunca chegou sequer um exemplar dos PCN para ser lido, como pode,

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ele, vir a ser discutido? Mais do que revelar uma falha na distribuição dos documentos

oficiais que dizem respeito diretamente aos professores que estão em sala de aula e não

ocupando cargos em alguma instância administrativa, a fala da professora revela que

eles sequer são levados em conta nos planejamentos da escola. Esse aspecto reenvia ao

papel da equipe administrativa no acompanhamento das atividades de planejamento.

⎯ Esses planos a gente não tem acesso a eles. Se você quiser saber alguma coisa deles você vai na internet porque oficialmente nunca veio para nós. Eu não sei se o governo federal mandou para as escolas ou não. Nunca chegou na minha mão... nem do ensino fundamental nem do médio. Na verdade é sugerido “tem que trabalhar conforme os planos”. Mas nunca foi feito um planejamento baseado neles. (En: prof. C).

O depoimento do professor B destaca, sobremaneira, a inadequação da formação

inicial nos cursos de Letras, como obstáculo à implantação do novo paradigma. Para ele

não existe, na universidade, movimento significativo no sentido de adequar o currículo

aos postulados do novo projeto de ensino. Segundo o professor, a estrutura curricular

dos cursos de Letras ainda é “positivista” e fragmentada (disciplinas estanques). O

professor, ao nomear a “progressividade”, parece aludir também à prática habitual de

organização curricular parametrizada pelos níveis da língua (do menor nível para o

maior): fonologia, morfologia, sintaxe, privilegiando o domínio da gramática e da

lingüística imanente, em detrimento da lingüística da enunciação, da análise de discurso,

da lingüística textual que poderiam assegurar aos professores o embasamento teórico

necessário a um deslocamento mais seguro para o universo conceitual do novo

paradigma. Na falta dessa densidade teórica, o professor é levado a um “praticismo”

inconseqüente e incapaz de sustentar as novas orientações e de quebrar qualquer

paradigma.

⎯ mesmo na universidade eu não vejo em hipótese alguma algum sinal de implantação de mudanças paradigmáticas. O que se vê ainda é uma estrutura curricular bastante estreita, com uma visão positivista de ensino, uma idéia de graduação. O currículo de letras ele ainda passa por essa premissa, de língua portuguesa, essa idéia de progressividade que na verdade acaba não havendo um diálogo entre as disciplinas. (En: prof. B). ⎯ você só consegue quebrar paradigmas quando você tem uma forte... um sólido conhecimento teórico... caso contrário eu acho... esse praticismo... eu acho que isso não dá conta de quebra de paradigma. Quase sempre os

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professores tendem a admitir os mesmos valores... então eu não observo aqui... eu não consigo ainda perceber. (...) Palavras do tipo: gênero, terminologias da área da lingüística, diferentes temas da lingüística, que vêm aparecendo no momento presente mas só que isso aparece como palavras isoladas e que se contradizem ao longo do discurso... então você percebe que na verdade as pessoas que produziram esse material não acreditam nisso. Porque há a necessidade de apresentar para instâncias maiores, um papel, um trabalho feito e essa instância maior exige um determinado discurso. Não necessariamente que esse discurso seja de fato verdadeiro. Muitas vezes até a pessoa que vai analisar nessas instâncias não acredita naquele discurso, naquela proposta. Fazem porque é um modismo. (En: prof. B).

De uma certa maneira, B reafirma a percepção, expressa anteriormente por seus

colegas, de que os PCNEM têm como principal obstáculo a dificuldade de ser

compreendido por aqueles professores que não acompanharam os desdobramentos

recentes da lingüística enunciativa, pois é nessa seara que o novo paradigma se enraíza.

E as razões para essa desatualização, segundo os entrevistados, são várias: cursos de

Letras que não formaram/formam os professores adequadamente; formação continuada

inconseqüente ou inexistente; desinteresse e descompromisso dos próprios professores

etc. Diante desse quadro, constata-se a institucionalização de um ‘script’ ficcional, para

uma cena burocraticamente montada, tanto nas instâncias de circulação dos PCN na

comunidade escolar, com suas equipes pedagógicas e professores, quanto nas de

fiscalização a cargo das secretarias, por aceitarem como válidos os arranjos encontrados

pela pesquisa, nas formulações do PPP.

4.2 O ensino de língua portuguesa em ato

Iniciamos a observação das aulas de língua portuguesa, ministradas pela

professora A, na sala do primeiro ano Y, no período matutino, no dia 26 de março de

2007 e a encerramos em 04 de junho do mesmo ano. Ao todo, observamos 20 (vinte)

aulas. Antes de procedermos à análise do conjunto das aulas, tendo em vista o diálogo

com o novo paradigma de ensino de língua materna, apresentamos uma síntese de cada

uma delas.2

2 Optamos por incluir uma súmula dos registros de campo diários, primeiro, para sustentar nossa afirmação de que a prática cotidiana em sala de aula nada mudou e, segundo, pelo fato de não conseguirmos realizar gravações em áudio em razão do barulho do ambiente.

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Dia 26/03/2007 ⎯ (primeira aula) A professora, antes de iniciar propriamente a aula, esclarece-me que se encontra

trabalhando linguagem verbal e linguagem não-verbal. Mostra-me uma apostila do sistema OBJETIVO que tem esse título.

Então, dá início à aula, perguntando aos alunos quem completou os exercícios da apostila em casa. Somente 04 alunos respondem positivamente. A professora adverte que o assunto das atividades constará da prova escrita no próximo dia 11/04.

Em seguida, passa a explicar os conceitos de significado e significante, explorando-os com atividades da apostila. Relaciona significado com contexto da fala, passa a falar de palavras homônimas, mas não explora a relação que há com o tema anterior (significante igual, mas significado diferente). Na forma de pergunta dirigida à turma, a professora introduz o tema da conotação e denotação. Apresenta as palavras “comprimento” e “cumprimento”, perguntando a diferença de significado entre uma e outra. Como não apresenta o conceito de parônimo, os alunos podem ser levados a pensar que tal diferença é de ordem conotativa.

A professora volta a falar de palavras homônimas,e, então explica que, embora semelhantes, elas significam coisas diversas. Fala então de sinônimos e antônimos relacionando o primeiro com a noção de mesmo sentido das palavras, e, antônimos, com palavras de sentido diferente. Estratégia: Exposição oral, com perguntas dirigidas à turma, mas, antes que os alunos respondam, ela mesma o faz. Recursos didáticos: Lousa Apostila do sistema objetivo (livro didático adotado não é usado)

Dia 26/03/2007 ⎯ (segunda aula) No início da segunda aula, a professora transcreve na lousa a letra da música

ROMARIA de Renato Teixeira. Solicita aos alunos que a analisem, identificando: o nível de linguagem, a função predominante e o sentido conotativo que algumas palavras assumem no contexto da letra da música.

Para orientar a análise, escreveu na lousa três perguntas: 1) Qual a função da linguagem predominante no texto? Justifique. 2) Qual o nível da linguagem que se encontra no texto? Justifique. 3) Retire as palavras ou expressões com sentido conotativo explicando o

significado. Trabalha, então, a 1ª pergunta sobre a função da linguagem presente no texto,

buscando estabelecer a existência de uma função preponderante, no caso, a função poética. Toca o sinal para o final da aula, sem que a 2ª pergunta, sobre nível da linguagem, e a 3ª, sobre palavras com sentido conotativo, fossem discutidas. Não ficou determinado se os alunos deveriam fazer os exercícios em casa ou se continuaria na próxima aula. Estratégia: Exercício de análise Recursos didáticos: Lousa (com a transcrição da letra da música ROMARIA e as três perguntas da análise) Letra de música avulsa (livro didático adotado não é usado)

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Dia 30/03/2007 ⎯ (terceira aula) A professora dá início à aula sem concluir a atividade da aula anterior (as

perguntas 2 e 3), mas retoma a mesma proposta, aplicando-a, agora, à letra de outra música. Transcreve na lousa a letra VAI LEVANDO de Chico Buarque. Solicita aos alunos que a leiam e identifiquem as palavras que têm sentido conotativo e as que têm sentido denotativo, dando 05 minutos para a atividade. Enquanto isso, a professora realiza a chamada e comenta comigo o desinteresse geral da turma, que copiava nos cadernos a letra da música, entre interrupções e conversas paralelas uns com os outros, sobre os mais diversos assuntos. Passados 15 minutos e como ninguém demonstrasse ter terminado, a professora começa, ela mesma, a selecionar palavras e a discorrer sobre a questão solicitada aos alunos. Em seguida, liga o som e pede que os alunos ouçam a música. Finda a audição, a professora utiliza-se da música ouvida para realizar comparações entre a estética de sua época, à qual pertence a música ouvida, rica em conotações e metáforas e, a estética da época atual, a dos alunos, que faz pouco uso de metáforas, restringindo o uso das palavras ao significado denotativo, com pouca expressão subjetiva do autor. Pergunta sobre a função da linguagem preponderante no texto e discorre sobre denotação e conotação, relacionando o sentido conotativo das palavras com a formação de metáforas.

Encaminhando-se para o final da aula, a professora escreve na lousa as quatro questões abaixo transcritas, das quais resolve as duas primeiras. Encerra a aula sem esclarecer se as questões 3 e 4, ainda não discutidas, deveriam ser feitas por eles em casa ou se seriam concluídas na próxima aula. Questões:

1) Defina denotação e conotação. Justifique. 2) Dê os significados das palavras no texto: (anexo 2).

a) Brahma b) Lama c) Chama d) Ipanema e) Nó 3) A palavra “sistema” no verso 06 apresenta plurissignificado. Aponte alguns

significados que você conheça. 4)Qual a diferença básica do ponto de vista lingüístico que pode ser estabelecida entre as palavras lama e amal?

Estratégia: Exercício de análise (continuação); exposição oral em forma de perguntas dirigidas à turma e respondidas por ela mesma sobre a função de linguagem preponderante no texto e o sentido conotativo ou denotativo das palavras no texto. Recursos didáticos: Lousa (com a transcrição da letra da música VAI LEVANDO e das quatro questões acima citadas, dirigindo a análise). Audição de CD da música (livro didático adotado não é usado)

Dia 02/04/2007 ⎯ (quarta aula) Antes de iniciar a aula, a professora pergunta à classe quem tem alguma coisa

para lhe entregar. Dá início à aula distribuindo uma fotocópia com a figura de uma janela em dois momentos (anexo 3) e diz aos alunos que a figura é um exemplo de linguagem não-verbal. Seguindo a orientação que acompanha a figura, solicita que os alunos enumerem os elementos que a compõem, enquanto ela os relaciona na lousa. Após ter feito esse levantamento, pergunta aos alunos como os elementos da figura se relacionam entre si. Demonstra para os alunos que os elementos que compõem a figura

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e a maneira como são relacionados é o que constrói a linguagem não-verbal, por usar, figuras, ao invés de palavras, como na linguagem verbal. Em seguida, determina que os alunos produzam um texto escrito que represente o que a linguagem não-verbal das figuras expressa. Não faz nenhuma referência à noção de gênero ou se este seria de livre escolha dos alunos. Após dez minutos bate o final da aula. Estratégia: Perguntas dirigidas à turma sobre os elementos constituintes da figura distribuída aos alunos e sobre a articulação desses elementos e registro na lousa das respostas obtidas. Recursos didáticos: Lousa Fotocópia de figura de uma janela em dois momentos distribuída aos alunos e usada para explorar a linguagem não-verbal (livro didático adotado não é usado)

Dia 02/04/2007 ⎯ (quinta aula) A professora inicia a aula, pedindo para os alunos lerem o que escreveram sobre

a figura das janelas. Alguns lêem textos descritivos dos elementos da figura, à semelhança do trecho que se segue: “Vemos uma figura com uma janela entreaberta com uma cortina com estrelas que se encontra balançando por causa do vento. A parede ao lado da janela está sem reboco...”.

A professora dá início ao 2º momento da aula com a distribuição de folhas fotocopiadas, contendo uma letra de música e um texto em prosa. Trata-se da letra da canção DIARIAMENTE de Nando Reis e de um conto de Ricardo Ramos (anexo 4).

A professora não esclarece porque os dois textos estão juntos na mesma cópia. Revela-me que o objetivo principal é trabalhar a interpretação dos textos. Relata que sua intenção é trabalhar a compreensão dos alunos sobre o que seja linguagem, bem como trabalhar suas funções e níveis.

Nessa aula a professora explorou apenas a letra da música DIARIAMENTE de Nando Reis. Ela dirigiu-se à turma e sugeriu que eles fizessem uma primeira leitura, buscassem os sentidos presentes no léxico utilizado pelo autor e registrassem possíveis ocorrências de palavras desconhecidas, a serem pesquisadas no dicionário. A professora buscou estimular o trabalho, fazendo perguntas sobre o significado de palavras usadas no texto, principalmente de marcas comerciais que, na letra da música, ganham novo sentido. Estratégia: Leitura de alguns textos de alunos sobre o que foi pedido na aula anterior, perguntas dirigidas à turma sobre os elementos léxicos usados pelo autor de DIARIAMENTE e consulta ao dicionário para encontrar o significado de palavras desconhecidas presentes na letra da música. Recursos didáticos: Lousa (registro de palavras desconhecidas presentes na letra da música) Fotocópias de textos (livro didático adotado não é usado) Dicionário

Dia 16/04/2007 ⎯ (sexta aula) No início da aula, a professora faz uma explanação sobre o texto da prova e

avisa que as duas aulas daquele dia e a do dia seguinte seriam dedicadas à revisão para a

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prova, que já era uma prova substitutiva, uma vez que a maioria dos alunos não obteve média suficiente para fechar o bimestre. Explora o título da música SINAL FECHADO de Paulinho da Viola, usada como texto sobre o qual incide a maioria das questões da prova. Explica aos que o texto apresenta uma forma de diálogo, que é uma música e que música é um texto, um gênero. Pergunta para os alunos o significado da expressão sinal fechado. Como as respostas dizem respeito ao sinal de trânsito, esclarece que esse é o sentido denotativo que, no contexto da letra da música, produz outro sentido, daí, o sentido conotativo que a palavra ganha no texto. Faz considerações a respeito dos prejuízos de uma leitura mal feita, sem pontuação, que contribui para que o texto não seja entendido. Convida dois alunos a fazerem uma leitura, simulando o diálogo. Eles dirigem-se à frente da sala e, em pé, iniciam a leitura. A professora os interrompe para corrigir as imperfeições da leitura. Eles terminam a leitura, vão sentar-se e a professora continua expondo sobre as características estruturais do texto. Pergunta para a turma o que é função fática. Ninguém responde e a professora esclarece sobre a necessidade do aluno entender a teoria, dominar o conceito para depois entender o texto. Uma aluna procura no livro e lê o conceito de fático. A professora aponta as palavras do texto em questão que expressam a função fática, observando que esta é a função preponderante no texto. Em seguida discorre sobre outras funções, nomeando-as e caracterizando-as com base nos elementos da comunicação: a emotiva centrada no emissor, a apelativa centrada no receptor e a referencial na informação. Termina a aula reafirmando a necessidade de o aluno preocupar-se com todas essas teorias na hora de ler. Estratégia: Exposição oral, balizada pelo texto e questões da prova anterior. Recursos didáticos: Cópia da prova para desenvolver os comentários sobre as questões (livro didático adotado não é usado) (anexo 5)

Dia 16/04/2007 ⎯ (sétima aula) A professora continua a atividade de revisão para prova iniciada na primeira aula

do dia. Explana sobre o conceito de metalinguagem. Faz perguntas à turma para saber quem mais tem dúvida sobre as funções da linguagem. Pergunta e ela mesma responde sobre as características da função emotiva e de novo sobre conotação. Responde perguntas dos alunos sobre qual a mensagem do texto e sobre o nível da linguagem utilizado. Estratégia: Exposição oral, balizada pelo texto e questões da prova anterior. Recursos didáticos: Cópia da prova para desenvolver os comentários sobre as questões (livro didático adotado não é usado)

Dia 17/04/2007 ⎯ (oitava aula) A professora continua a revisão do conteúdo, baseada em questões da prova.

Retoma o último tópico da aula anterior, ou seja, nível da linguagem. Ela relaciona nível formal com nível culto da linguagem e este com a escrita e o nível coloquial com a fala. Embora relacione escrita com nível culto, ressalva que a forma escrita não determina que só a norma culta deva aí ser usada, podendo haver situações em que isso não ocorra. Refere-se então ao padrão culto da linguagem, definindo-o como aquele em que as

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normas gramaticais de ortografia são obedecidas. Traz casos de grafias incorretas como “caza” e concordâncias fora do padrão

culto, encontradas em textos escritos, afirmando que são marcas de oralidade. Reforça a necessidade de se adequar a linguagem à situação e diz que quando não conseguimos usar as normas, estamos fazendo uso de uma variante. Fica-me a impressão de que variedade é tudo aquilo que destoa da norma. Finalizando dá exemplos de variações ligadas à pronúncia regional, à condição social, à faixa etária e ao sexo e classifica a atitude rejeição a essas formas como preconceito lingüístico. Estratégia: Exposição oral. Recursos didáticos: Lousa (registro de palavras como “caza”); (livro didático adotado não é usado)

Dia 07/05/2007 ⎯ (nona aula) A aula começa com a leitura das notas do primeiro bimestre. A professora

anuncia que as duas aulas daquele dia abordarão como tema a distinção entre linguagem literária e linguagem comum e que, como fará uso do data-show, deslocar-se-ão para o auditório.

A professora pergunta para a turma o que já foi visto sobre linguagem, fala rapidamente sobre linguagem verbal e não verbal, diz que a verbal pode ser oral e escrita e menciona a existência dos gêneros. Diz que são inúmeros e destaca o gênero literário como o gênero da linguagem literária. Pergunta à turma o que é literatura e porque temos que estudá-la. Ninguém responde, ela insiste e apenas um aluno arrisca uma resposta: “É a que segue regras”. A professora não discute com o aluno a sua concepção de linguagem literária.

A professora projeta um quadro apresentando em duas colunas as diferenças entre linguagem comum e linguagem literária com o fim de caracterizar a linguagem literária como subjetiva, capaz de expressar funções emotivas e poéticas, de possibilitar o uso de figuras de linguagem e de ser polissêmica. Além dessas características referendou a ocorrência da intertextualidade como outra característica da linguagem literária que também é usada pela publicidade. Falou da sonoridade usada nos versos como outro recurso expressivo da linguagem literária e finalizou a aula. Estratégia: Exposição oral com perguntas retóricas dirigidas à turma Recursos didáticos: Quadros e cartazes projetados pelo data-show, acompanhados de explanação verbal (livro didático adotado não é usado) Dia 07/05/2007 ⎯ (décima aula)

A professora inicia a aula, retomando o assunto da aula anterior. Enumera então outros recursos expressivos da linguagem literária tais como possibilitar o uso da ordem inversa e fornece exemplos de textos literários com o sujeito posposto ao verbo. Fala da repetição e da rima e apresenta a literatura como a arte da palavra, similar à tinta na pintura, e, como instrumento de comunicação social e de interação, transmitindo conhecimentos e cultura de uma dada comunidade e permitindo que, por meio dela, se registrem costumes de diferentes povos e épocas. A professora apresenta, ainda, os gêneros literários, segundo a concepção aristotélica, que os classifica em lírico, épico e

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dramático. Em seguida, projeta dois textos: um literário e outro comum, à guisa de fixação

das características apontadas para o texto literário. O texto literário é o conhecido poema de Manuel Bandeira O BICHO e o texto comum, uma matéria da revista Cláudia sobre lixo.

Fala, então, de estilo como sendo a forma de que alguém se vale para escrever, estilo individual, ou aquele que identifica uma época, estilo de época. Finaliza a aula nomeando as escolas literárias de Portugal e Brasil, como representativas do estilo de época. Estratégia: Exposição oral Recursos didáticos: Projeção de quadros e textos por meio de data-show, ilustrando “ordem inversa”, do poema de Bandeira e de uma reportagem da revista Cláudia sobre o lixo (livro didático adotado não é usado)

Dia 08/05/2997 ⎯ (décima primeira aula) A professora inicia a aula, pedindo para os alunos abrirem o livro na página 27.

O capítulo trata das diferenças básicas entre linguagem literária e linguagem não-literária. Apresenta os dois textos que, na aula anterior, projetou pelo data-show, ou seja, o poema O BICHO de Manuel Bandeira e um trecho de uma reportagem sobre coleta seletiva de lixo, publicada na revista Claudia de maio de 1997.

A professora dirige-se à turma perguntando o que foi tratado na aula anterior. Ninguém responde. Ela insiste e surgem algumas respostas: linguagem..., texto literário... A professora faz uma rápida recapitulação do assunto. Faz perguntas sobre hábitos de leitura dos alunos. Ouve uma voz que diz não gostar de literatura. Retruca que não gostar é uma questão de hábito. Volta à página do livro e dá 05 minutos para que os alunos leiam os dois textos, enquanto ela faz a chamada. Concluída a chamada pergunta se eles leram e começa a fazer perguntas buscando a compreensão semântica do texto O BICHO de Manuel Bandeira. A aula chega ao fim, não dando tempo de a professora abordar o segundo texto. Então, ela incumbe os alunos de buscarem dois outros textos que, como esses, tratem do mesmo assunto, sob perspectivas diferentes, isto é, um literário e outro não-literário. Estratégia: Exercício de análise do poema O BICHO Recursos didáticos: Textos constantes da página 27 do livro didático adotado.

Dia 11/05/2007 ⎯ (décima segunda aula) A professora inicia a aula, perguntando aos alunos se terminaram a tarefa da

página 27 do livro. Solicita-lhes que observem, às páginas 28 e 29, reproduções de pinturas ilustrativas de várias épocas e estilos: cubismo, impressionismo, surrealismo, renascimento. Então retorna à questão da página 27. Procura demonstrar que os dois textos tratam do mesmo assunto, utilizando-se de formas diferentes. Chama a atenção para a característica polissêmica do texto literário e o compara com o outro texto, reportagem, que apenas relata um fato. Pergunta para os alunos para quem os textos foram escritos.

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A professora introduz a noção de intencionalidade e afirma que todo mundo, ao escrever ou falar um texto, sempre o dirige para alguém e diz para os alunos que este é o pensamento de Bakhtin que teria afirmado que todo o texto tem uma finalidade.

Prosseguindo, a professora vai à coluna “Troque idéias”, que faz parte do capítulo do livro. A coluna traz quatro questões sobre os textos, abordando finalidades, semelhanças, características e figuras de linguagem, presentes no texto poético, bem como o predomínio, neste, da emoção e da impressão pessoal. Também ressalta a figura da gradação que, no texto poético, funciona como recurso expressivo.

Então, a professora retoma, nas páginas 28 e 29 do livro, as reproduções de pinturas. Classifica-as como um tipo de linguagem não-verbal. Utiliza-se das reproduções de O BALCÃO, de Manet e da paródia de Magritte O BALCÃO DE MANET – PERSPECTIVA II, para situar a relação entre os dois quadros, balizada pelo texto e questões da prova anterior como uma reação do segundo, surrealismo, aos padrões estéticos do primeiro, impressionismo. Estratégia: Exercício de comparação entre textos literário e não-literária, com perguntas dirigidas à turma; observação e comentários sobre reproduções de pinturas ilustrativas de várias épocas e estilos. Recursos didáticos: Textos e pinturas das páginas 27, 28 e 29 do livro didático adotado.

Dia 14/05/2007 ⎯ (décima terceira aula) A professora inicia a aula, dirigindo-se a uma aluna que sempre falta e que não

estava na aula anterior e pede para ela resumir a aula passada. Diante da negativa da aluna, que diz não ter vindo à aula, a professora faz um resumo ela mesma e pergunta à turma quem ainda tem dúvida sobre o assunto dado. Uma aluna diz ter dúvida entre o que seja literário e não-literário. A professora usa o poema O BICHO e, através dele, retoma conceitos como conotação, metáfora e outros recursos expressivos presentes na linguagem do poema, sintetizando a interpretação realizada na aula anterior. Terminada a exposição, dá prosseguimento à aula.

A professora explica que, a partir dessa aula, o assunto será o poema. Fala de trovadorismo e de sua provável época (o século XII). Fala que nessa época os poemas eram cantados e que, no renascimento, a poesia e a música se separam. Abre o livro na página 45, onde se encontra a CANTIGA DE RIBEIRINHA e refere-se a ela, a título de exemplificação, sem se deter em sua leitura.

A professora dirige-se à lousa e transcreve um esquema intitulado TEXTO LITERÁRIO – POEMA. Em seguida enumera: características de um poema (causar prazer estético e estranhamento); recursos formais (métrica e rima); classificação das rimas e recursos expressivos (figuras de linguagem e figuras de sintaxe). Transcreve também uma quadrinha.

A professora utiliza-se desse esquema para definir cada um dos itens. Usa a quadrinha que transcreveu para demonstrar como se faz para classificar as rimas e estabelecer a métrica dos versos. Finaliza a aula, transcrevendo mais uma quadrinha para explorar as figuras de sintaxe: anáfora e aliteração. Estratégia: Aula expositiva Recursos didáticos:

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Transcrição na lousa de esquema para exposição verbal Esquema sobre as características do poema Utilização do livro didático adotado apenas como referência ao capítulo sobre trovadorismo

Dia 14/05/2007 ⎯ (décima quarta aula) A professora inicia a aula, falando de métrica e explicando a diferença entre

sílaba poética e sílaba gramatical. Escreve na lousa versos retirados de poemas e frases de texto em prosa, nos quais demonstra a ocorrência de figuras de linguagem diversas, ao mesmo tempo em que enuncia a definição de cada uma delas. Em seguida, transcreve um quarteto e começa a escansão de seus versos. Como última atividade da aula, distribui os livros e manda que os alunos leiam, na página 46, o SONETO DO AMOR TOTAL de Vinicius de Moraes, para responder às questões interpretativas constantes da página 47. Chega o final da aula e, embora os alunos não tenham concluído a atividade, ela pede os livros para guardar no armário. Os alunos não levam o livro para suas casas. Estratégia: Exposição oral sobre metrificação e figuras de linguagem exemplificadas nos textos Recursos didáticos: Lousa (transcrição de versos e frases para explicar metrificação e exemplificar figuras de linguagem) Livro didático adotado (leitura silenciosa e individual de poema SONETO DO AMOR TOTAL)

Dia 18/05/2007 ⎯ (décima quinta aula) A professora inicia a aula, retomando o assunto da aula anterior (metrificação e

versificação). Distribui os livros, solicita que os alunos abram-no na página 46 e respondam em 10 minutos as questões da página 47. Depois disso, começa a fazer perguntas sobre o que é o amor para os alunos. Obtém algumas respostas e volta ao soneto para dizer que o poeta também tem um amor. Em seguida, explica à turma o que é soneto. Pergunta aos alunos quem escandiu os versos do soneto e alguns começam a dizer quantas sílabas encontraram no primeiro verso. Como ninguém acertou, a professora transcreve o soneto começa a fazer a contagem dos versos na lousa. Ao concluir a contagem das sílabas do 2º versos, a aula termina e fica marcada a conclusão da escansão para a próxima aula. Estratégia: Exercícios de metrificação com perguntas sobre a temática do soneto Recursos didáticos: Lousa (com a transcrição do SONETO DO AMOR TOTAL) Livro didático (para acompanhamento da metrificação do soneto e resolução das atividades propostas no livro, sobre o soneto) Dia 21/05/2007 ⎯ (décima sexta aula)

A aula tem início com a retomada da contagem das silabas poéticas do soneto de Vinicius. A professora repete a explicação sobre a diferença entre sílaba poética e sílaba gramatical. Relaciona a sílaba poética a uma maior correspondência com o som ao se oralizar o verso, demonstrando a fusão de sons vocálicos, formando uma só sílaba poética, no lugar de duas sílabas gramaticais.

A professora questiona para/com a turma a razão de se estudar a métrica, que

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segunda ela, justifica-se por ser exigência de concursos e do próprio vestibular e também porque, depois de estudar métrica, sempre pensaremos no ritmo quando estivermos lendo versos.

A professora chama um aluno para fazer a escansão dos versos na lousa. Ele erra e a professora corrige todo o poema. A aula prossegue com a resolução das seis perguntas da página 47 do livro. As duas primeiras perguntas diziam respeito à métrica e ao esquema de rimas do poema de Vinícius. A 3ª questão trata do eu lírico do poema: De quem é a voz do poema? (Se é de um homem ou de uma mulher). Toca o final da aula e a professora dá um intervalo de cinco minutos, antes de começar a próxima aula. Estratégia: Exercícios de metrificação baseados na resolução de questões da página 47 do livro resolvidos pela professora na lousa. Recursos didáticos: Lousa com soneto transcrito Livro didático (para acompanhamento da metrificação e versificação do soneto e resolução das atividades propostas no livro, sobre o soneto)

Dia 21/05/2007 ⎯ (décima sétima aula) A professora dá início à aula, retomando a pergunta deixada em aberto no final

da aula anterior. Identifica para os alunos que a voz do poema é masculina, baseando-se no verso “Amo-te como amigo...”. A professora prossegue na resolução das questões do livro. A 4ª questão explora o efeito produzido pela repetição da expressão “amo-te”, no soneto. A professora explica que a repetição produz dá ênfase à afirmação do poeta, denominando a ocorrência de figura de linguagem, que classifica como paralelismo.

A questão 5 afirma: O eu-lírico manifesta o seu “amor total” com o soneto. E pergunta: De que maneira ele faz isso? A professora passa a pergunta para a turma e estabelece-se um pequeno debate entre alguns alunos, em que eles expressam suas opiniões sobre amor, sexo, amor materno, gravidez na adolescência etc.

A professora retoma o assunto da questão 5, dizendo que a poesia é a expressão do pensamento do autor, revelando sua visão de mundo. Encerra a aula, solicitando que cada um traga uma poesia da qual tenha gostado muito, para ler na próxima aula, ou, quem quiser, poderá também trazer uma de sua própria autoria. Estratégia: Exercício de análise baseado na resolução de questões da página 47 do livro Recursos didáticos: Lousa com soneto transcrito Livro didático (para resolução das atividades propostas no livro, sobre o soneto)

Dia 22/05/2007 ⎯ (décima oitava aula) A professora anuncia que a aula daquele dia será dedicada à audição de poesia.

Muitos alunos levantam a mão sinalizando que trouxeram poesias para serem lidas. Como ninguém se apresenta como voluntário para iniciar a leitura, a professora escolhe um aluno e pede para que ele leia. O aluno lê o título e depois o nome do autor, que a professora diz não conhecer. Manda o aluno ler. Ele lê o título e, de novo, a professora interrompe. Repete o título e pergunta para a turma se, pelo título, dá para deduzir o assunto do poema. Ouvem-se algumas divagações sobre o provável assunto, consumindo bastante o tempo da aula. Finalmente é dada a palavra para o aluno e ele lê

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todo o soneto. Após a leitura, a professora busca classificar o soneto, identificando-o como um possível representante do romantismo da 1ª fase, ou seja, do chamado “mal do século”. Toca o final da aula, não dando mais tempo para outras leituras. Estratégia: Palavra dada aos alunos para leitura de poesias e comentários da professora Recursos didáticos: Poemas trazidos pelos alunos (livro didático adotado não é usado) Dia 04/06/2007 ⎯ (décima nona aula)

A professora dá início à aula, cobrando a entrega de fichamento do livro POLUIÇÃO DO AR de autoria de Samuel e Branco Murgel, prescrito no início do ano, como atividade para a “semana do meio-ambiente”. Em seguida, a professora fez a entrega de exercícios de avaliação sobre trovadorismo, realizados no último dia 01/06/2007, passando a corrigi-los. O exercício constou da apresentação de dois textos. O primeiro era formado por dois tercetos de uma cantiga de amigo, transcritos juntos, sem espaço, como se fosse um sexteto. O segundo era uma estrofe de um soneto de Camões. As questões contemplaram mais os aspectos estruturais dos versos e menos a abordagem do trovadorismo como expressão de uma época. Foram analisados os tipos de rima, métrica e figuras usadas. Embora os dois textos tenham entre si uma diferença temporal de aproximadamente 300 anos, a professora não fez nenhuma referência ao motivo de terem sido apresentados juntos.

Finalizando a correção, a professora propõe que a cantiga de amigo seja interpretada conforme suas características. Dirige cinco perguntas à turma, mas ela mesma as responde, com o objetivo de interpretar a cantiga: 1 – Qual é a voz do eu lírico do poema? – meu amado – se é meu amado a voz é feminina. 2 – Qual o ambiente? A natureza – Os poetas ambientavam sua obra na natureza. 3 – O poeta tinha sempre um confidente que era para quem ele chorava suas dores. Quem era o confidente nessa cantiga? O mar de Vigo. 4 – E o amigo quem é? O amigo é o namorado. 5 – Qual é o tema do poema? O tema do amor sofrido e das saudades da amada que partiu. Transcreve na lousa o seguinte esquema de classificação da poesia trovadoresca, dando a aula por encerrada: ESQUEMA de classificação da poesia trovadoresca: Amigo Maldizer Lírica Satírica Amor Escárnio

Estratégia: Utilização de exercícios de avaliação aplicados em aula anterior Recursos didáticos Lousa (transcrição de versos da cantiga de amigo e estrofe de soneto de Camões, perguntas de versificação e metrificação sobre os versos e esquema de classificação da poesia trovadoresca) (livro didático adotado não é usado)

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Dia 04/06/2007 ⎯ (vigésima aula observada)

A partir dessa aula, instala-se na escola a semana do meio ambiente, tendo por temática o espaço interno da escola. Assim, na primeira parte da aula, a professora leu as “Normas para conservação da sala”, que consiste de um documento contendo 10 mandamentos, datado de 12 de fevereiro de 2007 e um pequeno regulamento que faz parte da ficha de inscrição dos fiscais de cada sala, contendo também uma programação dos três dias do evento “Semana do Meio Ambiente” (cópias em anexo). Também foi distribuída uma fotocópia de um texto, retirado do site, denominado Webventure – A Importância do Meio Ambiente, contendo a introdução de um artigo publicado nesse site por Romel Marques, que traz notícias sobre o meio ambiente, problemas de degradação e faz referência ao modelo de desenvolvimento que estimula essa degradação. Esse texto foi entregue para toda a escola para ser lido (cópia em anexo).

A professora escolheu dois alunos para atuarem como fiscais do lixo durante toda a semana. A função deles seria fiscalizar a sala quanto ao cumprimento das referidas normas. Essa fiscalização funcionaria como uma espécie de gincana, contando pontos para a sala e premiando aquela que obtivesse maior pontuação na observação das normas.

A professora expõe para os alunos que meio ambiente não é só a natureza, é também o espaço social em que coexistimos trabalhamos e moramos. Daí a escola considerar importante voltar-se para a questão do lixo tendo como metas três aspectos que a professora relaciona na lousa: “SEMANA DO MEIO AMBIENTE

1) Educação 2) Ação de melhoria 3) Coleta seletiva A professora pergunta para a classe o que é lixo, gerando diversas opiniões sobre

tópico colocado em discussão. Em seguida, os alunos são convidados a se dirigirem à área externa da escola onde uma palestra aconteceria. A professora não passou nenhuma orientação sobre a palestra que os alunos iriam assistir tais como: assunto, procedimentos de observação e registro em atividades de escuta ou se os alunos teriam que apresentar algum relatório após assistirem ao evento.

Fui até o local da palestra, uma área de circulação no sub-solo, onde desemboca a escada do piso superior, toda fechada e gradeada. Os alunos, sentados no chão, falavam todos ao mesmo tempo e alguns estavam de costas para o palestrante. Como o ambiente produzia muito eco, apesar do uso de microfone, pouco se conseguia entender do que o palestrante dizia. Praticamente deduzi que o assunto se referia ao tratamento dado ao lixo em Cuiabá, em função dos slides projetados e de uma ou outra palavra entreouvida. Estratégia: Exposição oral sobre meio ambiente com perguntas dirigidas à turma sobre o lixo Palestra Recursos didáticos: Lousa Normas para conservação da sala de aula (lida pela professora) e texto fotocopiado Projeção de slides com uso de microfone

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4.2.1 Um sobrevôo pelo observado nas aulas

Não pretendemos fazer aqui nenhuma generalização sobre o ensino de língua

portuguesa na atualidade, nem no âmbito universal, nem no âmbito particular de uma

escola e mesmo de uma professora. O que vimos em vinte aulas não nos autoriza

nenhuma generalização responsável. Contudo, podemos dizer que as vinte aulas

observadas privilegiaram atividades de reflexão sobre a língua em detrimento das

atividades de uso, à margem das recomendações dos PCNEM/OCEM que orientam o

enriquecimento da competência comunicativa dos alunos por meio de um trabalho

voltado à apropriação de gêneros que eles não podem adquirir espontaneamente pelo

convívio social. Em vista desse propósito, os documentos reiteram a precedência do uso

sobre a forma e apresentam a leitura e a produção textual, mais e melhor, o letramento

múltiplo, como um dos eixos fundamentais das práticas escolares de linguagem.

Durante o período em que estivemos na sala de aula, observamos a inversão

desse postulado, com o absoluto predomínio de atividades de análise e reconhecimento

metalingüístico. Observamos, igualmente, que o texto esteve presente em praticamente

todas as aulas, mas ele foi pretexto para o estudo de tópicos de semântica lexical, como

significado/significante, denotação/conotação, sinônimo/antônimo/homônimo; de

tópicos da teoria da comunicação, como funções e níveis da linguagem; de tópicos de

metrificação e versificação; de escolas literárias, como trovadorismo; de figuras de

linguagem etc., conceitos cujo domínio é tido como indispensável à interpretação de

textos, numa reafirmação patente da crença de que a reflexão sobre a língua deve

preceder o uso. Num único momento, houve uma produção de texto que consistia na

tradução de um texto em linguagem visual para a linguagem verbal. Numa ocasião em

que solicitara a dois alunos a leitura em voz alta da letra da música SINAL FECHADO,

estruturada à maneira de diálogo, a concepção de que a teoria precede a prática fica

bastante evidente na fala da professora. Ao interromper os alunos para corrigir a leitura,

ela assim se coloca:

Se você não lê direito perde a continuidade do pensamento. A estrutura do texto é de um diálogo. A função fática aqui é preponderante. O que é função fática? (ninguém responde). ⎯ Qual é a teoria? O conceito de função fática? (nenhuma resposta) ⎯ Você tem que entender o conceito para depois entender o texto. (fala da professora A – sexta aula observada – grifo nosso).

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Quer dizer, a conversa que ela busca entabular com os alunos não se configura

como uma interpretação atenta às condições sócio-históricas de aparecimento de um tal

texto, mas como um expediente para cobrar o domínio do que seja função fática. Não é

a atividade de leitura de um texto do gênero poético (letra de música) que de fato

importa nesse momento, mas sim a reprodução de conhecimentos metalingüísticos.

O texto, embora presente na sala de aula, não é trabalhado como texto, como

exemplar de um gênero ligado a uma esfera de atividade social e de comunicação. Sua

abordagem é casuística e alienada da história e das condições de sua produção,

funcionando como um reservatório de palavras e frases de que se pode lançar mão para

exemplificar conceitos lingüísticos. A unidade enfatizada nas aulas é a palavra, ou seja,

os signos. É nos signos e pelos signos que se procura chegar ao sentido do texto. E a

perspectiva teórica dominante é a estruturalista, que postula uma literalidade de base

para o signo em estado de léxico e de sistema, uma literalidade a que se pode sobrepor

um sentido conativo quando acionado por um autor para a construção de um texto. O

significado contextual procurado não é do texto, mas o da palavra. Quer dizer, o texto

entrou na sala de aula, mas nem por isso a palavra deixou de ser o pilar do trabalho com

a linguagem. Há, pois, um descompasso entre a perspectiva de trabalho com o sentido

observada nas aulas e aquela orientada pelo novo paradigma que não vincula a

significação ao signo stricto sensu e muito menos postula o sentido literal. Os sentidos

não estão nas palavras, mas nos discursos e se constroem por diferentes materialidades.

Nesse universo teórico, a literalidade não é a essência da palavra, mas um efeito de

sentido ligado à dominância de um discurso numa formação sócio-histórica dada.

Nas cenas que acompanhamos, a concepção de linguagem reinante tendeu mais

para a teoria da comunicação que a vê como código do que para a lingüística

enunciativa que a vê como interação humana, incrustada nas esferas de atividades

humanas e marcada pela historicidade inerente às formações sociais. Apesar de o PPP

(p. 72) da escola anunciar sua adesão à concepção de linguagem como interação e sua

articulação com a lingüística da enunciação, compreendendo a lingüística textual, a

análise do discurso, a análise da conversação e a semântica argumentativa, o que

verificamos na prática de sala de aula, tanto quanto nos planos de curso analisados no

capítulo III, é um empilhamento de conteúdos originários de todos os campos da

lingüística, sobremaneira, da teoria da comunicação, que vê a língua como código de

que o emissor lança mão para codificar uma mensagem que será decodificada pelo

destinatário que compartilha o domínio do mesmo código. Aliás, a teoria da

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comunicação entrou no currículo de Língua Portuguesa no momento (década de 1970)

em que ela virou Comunicação e Expressão. A Comunicação e Expressão já virou

Língua Portuguesa novamente, mas os conteúdos herdados daquela época continuam lá.

A superposição de conteúdos que permite adiar/evitar a difícil tarefa de decidir o que é

relevante para os fins a que a escolaridade se propõe é a tônica da história passada e

presente do ensino de língua materna. Essa prática cristalizada de fazer da disciplina

língua materna um depósito dos conhecimentos produzidos pelas ciências da linguagem,

que devem ser dominados e reproduzidos, satura os currículos com conteúdos

fragmentados e desarticulados que não dizem a que vem. Como nos planos de curso

analisados, a falta de organicidade, de coerência, de significância e de relevância dos

conteúdos é também visível no conjunto das aulas observadas. Nesse espírito, nem

mesmo os gêneros estão a salvo da possibilidade de virar, na sala de aula, um mero

objeto de pensamento que se acrescenta ao extenso rol de conteúdos lá tratados, de virar

uma forma lingüística esvaziada de sua função interlocutiva, sobre o qual os alunos

aprenderão a dizer uma porção de coisas, mas permanecendo na sua exterioridade.

Esse mesmo empilhamento enciclopédico de conteúdos é uma característica da

maioria dos livros didáticos atuais de Língua Portuguesa. O livro didático adotado pela

escola não foge à regra. Trata-se do livro “Língua Portuguesa – Ensino Médio”, volume

único, de autoria de Heloísa Harue Takazaki, publicado pela primeira vez em 2004, pela

Editora IBEP. O livro divide-se em 24 capítulos e mais duas extensas partes finais, uma

contendo uma revisão global da história da literatura e outra, uma discussão de alguns

temas lingüísticos, como concepções de linguagem, bem como uma sistematização dos

habituais conteúdos constantes das gramáticas tradicionais. Um sobrevôo pelos

capítulos revela que eles contemplam conhecimentos originários dos mais diversos

campos da lingüística, da gramática e da literatura. Por essa razão, apresenta-se

locupletado de conteúdos e poluído visualmente, diríamos, sem espaço para respiração.

Conforme o PNLEM (2005), citado por Constantino (2007: 66), esse livro

orienta-se por uma “concepção discursiva de linguagem, concebe a produção escrita

como processo, e as atividades contribuem para o desenvolvimento da proficiência em

escrita como também colaboram para a construção da cidadania do educando. A

avaliação também ressalta que texto e gênero são objetos de discussão e conceituação,

entretanto, termos como suporte e interlocutor ficam apenas subentendidos”.

Discordamos, em parte, da avaliação do PNLEM, pois o gênero não se constitui na

espinha dorsal do projeto de ensino-aprendizagem de língua portuguesa perfilado por

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esse livro. O gênero figura mais como um verbete dessa imensa enciclopédia que virou

o livro didático do que como o núcleo da proposta. Além disso, nas atividades de

produção textual, a noção de seqüência discursiva (narração, descrição, argumentação,

explicação e conversação) se sobressai em relação àquela de gênero, faltando nos

comandos, não raro, elementos como perfil do interlocutor, esferas de circulação,

suporte etc.

A crítica que fazemos em relação ao paradigma centrado no domínio de

conhecimentos taxonômicos produzidos pelas ciências da linguagem não significa que

negamos peremptoriamente qualquer forma de análise e a reflexão lingüística.

Entendemos que ela deve se subordinar a uma estilística dos gêneros, atrelada às

tonalidades dialógicas, ou seja, à relação interlocutiva. Consoante Bakhtin (2003, p.

320-321), a composição e, sobretudo, o estilo do enunciado dependem das respostas

dadas às questões “A quem se dirige o enunciado?” e “Como o locutor (ou o escritor)

percebe e imagina seu interlocutor?. Essas respostas determinarão a escolha do gênero

do enunciado, a escolha dos procedimentos composicionais e a escolha dos recursos

lingüísticos, ou seja, a escolha do estilo.

Embora A tenha falado em níveis de linguagem na primeira aula observada,

apenas na sétima aula tivemos a certeza de que ela se referia aos níveis coloquial e

formal da linguagem verbal. Utilizou-se mais uma vez da letra de Sinal Fechado para

demonstrar que os dois níveis encontravam-se presentes no texto, apesar de ser escrito.

Não muito precisamente relaciona o nível coloquial com a fala e o formal com a escrita,

embora reconheça que, dependendo do lugar de onde falamos, o nível formal também

poderá ser usado na fala. Na oitava aula observada, A retoma essa questão dos níveis da

linguagem para fazer mais uma relação, dessa vez com o padrão culto da linguagem,

definido como: “o padrão em que as normas gramaticais de ortografia e concordância

são obedecidas”. Referindo-se às grafias das palavras “casa” e “exame”, com a letra “z”,

respectivamente nos lugares de “s” e “x”, A afirma: “Quando encontramos essas

palavras grafadas dessa forma não quer dizer que seja um erro. A pessoa ao escrever

trouxe para a escrita o som da fala. É uma marca da oralidade”. Estabelece um paralelo

com os “erros” de concordância que, quando acontecem na escrita, também representam

marcas da oralidade. Continuando com esse exercício de metalinguagem, completa seu

raciocínio estabelecendo que, o padrão culto é a forma da língua usada em situações de

formalidade. Finalmente, vale registrar como A aborda a questão da variedade

lingüística. Para ela, variedade é tudo aquilo que não é norma:

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Quando na fala não “conseguimos” usar as normas, estamos fazendo uso de uma variante. São diversos os fatores que determinam a variante lingüística. Um deles é o geográfico. (fala da professora A – oitava aula observada – grifo nosso). Como vimos, para A, variedade é aquilo que foge da norma. O conceito de

variedade, portanto, se vê constrangido pela concepção de língua que postula a

existência de um padrão nuclear. As “variantes”, como diz A, constituem um

afastamento desse núcleo. Hoje, a sociolingüística prefere falar em “variedades”

lingüísticas e postular que a heterogeneidade está no coração do sistema e não na sua

periferia. Numa abordagem efetivamente nucleada pelos gêneros, o trabalho com os

níveis poderia ser adequadamente articulado com a questão do estilo que envolve a

manipulação dos recursos lingüísticos.

Por fim, resta-nos considerar o isolamento disciplinar da língua portuguesa, a

despeito de o PPP da Escola Cidade Verde, seguindo a orientação das DCNEM,

anunciar um trabalho interdisciplinar com a língua materna, integrando, juntamente com

a(s) línguas estrangeira(s), a educação artística, a educação física e a informática, a área

de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Num único momento, percebemos uma

tentativa de aproximação das artes por meio do trabalho com linguagens não-verbais

(reproduções de pinturas de várias épocas e escolas). Contudo, esse momento configura-

se como um momento isolado, e não como uma prática que reconhece as múltiplas

possibilidades semióticas que a contemporaneidade põe à disposição das práticas de

linguagem.

Assim, a educação lingüística que vimos descortinar-se diante de nossos olhos

está distante de realizar seu projeto de formar homens e mulheres emancipados,

autônomos, dinâmicos, para atuar num mundo que não pára de se transformar, tanto em

relação às esferas de trabalho quanto em relação às esferas da vida em sociedade.

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Ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a dignidade do educando, sua autonomia, sua identidade em processo, devo pensar também, como já salientei, em como ter uma prática educativa em que aquele respeito, que sei dever ter ao educando, se realize em lugar de ser negado. (Freire, 1996a/2007: 64).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Organizamos esta última parte de nosso trabalho em seis momentos. No

primeiro momento, fazemos uma síntese dos resultados, tendo como norte as quatro

perguntas de pesquisa. No segundo, buscamos fazer os resultados evidenciados pela

nossa pesquisa dialogar com os de outras que também investigaram a chegada do novo

paradigma a comunidades escolares da rede pública de educação básica em Mato

Grosso. No terceiro, refletimos, com o auxílio de Huberman (1973: 51), sobre o ritmo e

as fases das mudanças em educação. No quarto, buscamos levantar possíveis fatores que

obstaculizam o florescimento do novo paradigma. No quinto, avaliamos o processo de

investigação que culminou com a escritura desta dissertação, apontando suas limitações.

E, finalmente, no sexto, tentamos responder a prováveis perguntas/inquietações acerca

do sentido de uma tal pesquisa.

Relembremos nossas perguntas: 1. Quais as linhas mestras do novo paradigma

de ensino de língua portuguesa para o ensino médio, oficializado pelos PCNEM e

OCEM? 2. Como professores de língua portuguesa do ensino médio se posicionam em

relação ao novo paradigma de ensino, ao proporem o Projeto Político Pedagógico (PPP)

e elaborarem seus planos de curso? 3. Como professores se pronunciam sobre a ruptura

paradigmática do ensino de língua portuguesa, quando convidados a falar sobre ela em

entrevista? 4. Está o novo paradigma de ensino de língua portuguesa presente no

cotidiano das aulas de uma turma de 1º. ano de ensino médio? Em que medida?

Ao nos debruçarmos sobre as propostas oficiais que subsidiam o ensino de

língua portuguesa no ensino médio, primeiramente nos deparamos com as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), que se encarregam de uma

função fundamental. São elas que reafirmam e dão forma ao propósito, contido na LDB

9394/96, de tornar o ensino médio um curso de formação integral e não uma mera

preparação para exames vestibulares. Com esse norte, as DCNEM concebem o

conhecimento como uma construção coletiva e a aprendizagem como formação de

competências em torno de três eixos: Representação e Comunicação, Investigação e

Compreensão e Contextualização Sócio-Cultural. A formação de competências e

habilidades apresenta-se como alternativa ao ensino de conteúdos enciclopédicos,

baseados na memorização de conhecimentos. Nesse aspecto as DCNEM alinham-se

com as premissas apontadas pela UNESCO como eixos estruturais da educação nas

sociedades modernas, quais sejam: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a

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viver e aprender a ser, por meio de conteúdos significativos do ponto de vista do

educando, contextualizados e tratados de forma interdisciplinar. Tendo em vista tais

premissas, as DCNEM propõem um ensino médio estruturado em três grandes áreas,

resumindo, assim, a proposta de interação entre os componentes do currículo como

estratégia pedagógica, capaz de assegurar ao aluno a compreensão dos fenômenos

naturais e sociais de onde o conhecimento escolar foi extraído e onde deve ser aplicado.

Os PCNEM complementam as disposições das DCNEM e apresentam o conceito de

linguagem como forma social de interação e de significação da realidade, concebendo a

produção de sentidos sócio-historicamente e por diferentes materialidades o que

justifica o agrupamento das disciplinas na área de Linguagens, Códigos e suas

Tecnologias, onde a “língua materna desempenha o papel de viabilizar a compreensão e

o encontro dos discursos utilizados em diferentes esferas da vida social” (PCNEM:

191). Dessa forma, a articulação entre os conhecimentos da área é possibilitada pelo uso

sistemático da língua em ações de produção textual, construídas interacionalmente nas

mais diversas esferas das atividades sociais e comunicativas. No escopo dos PCNEM, a

língua portuguesa transcende seus antigos limites disciplinares e passa a integrar a área

de linguagens como articuladora dos diferentes sistemas de comunicação. Os três eixos,

apresentados acima pelas DCNEM, assumem o caráter de eixos organizadores das

atividades de desenvolvimento específico das competências e habilidades, que deverão

situar a língua no emaranhado das relações humanas, nas quais o aluno está mergulhado

(PCNEM: 141). Assim, os PCNEM e as OCEM, ao priorizar a interação, postulam o

estudo da língua em funcionamento nas práticas sociais. Automaticamente, a unidade

básica de estudo/ensino deixa de ser a palavra ou a frase para ser o texto, compreendido

como discurso e como exemplar de um gênero.

O PPP da Escola Cidade Verde afirma adotar a concepção de linguagem como

interação, atribuindo à língua portuguesa a função de “desenvolver a competência

comunicativa”, englobando duas outras competências – a gramatical ou lingüística e a

textual (PPP/2006: 70 e 71). Contudo, o PPP não esclarece como pretende ampliar a

competência comunicativa do aluno. Não diz como fará para dotá-lo de recursos que o

tornem capaz de adequar o discurso a cada situação, principalmente àquelas que

demandam grau elevado de formalidade discursiva em situações de interação. No item

“Referências Curriculares das Áreas”, a partir da página 70, o PPP lista uma série de

competências e habilidades a serem desenvolvidas no ensino de Língua Portuguesa, que

pouco se diferenciam das antigas listagens de objetivos dos clássicos “planejamentos

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anuais”, feitos para encher as gavetas das secretarias. Ao percorrermos com os olhos

essa listagem de competências e habilidades, vemo-nos ora diante de uma proposta

afinada com o novo paradigma, ora diante de uma proposta que recai na tradição

gramatical. Enfim, o PPP nos transmite a sensação de desestabilização das práticas

tradicionais de ensino da língua materna, mas sem deixar sinais à vista de que passos

firmes na adoção do novo paradigma estejam sendo dados. É tempo de instabilidade, de

vacilação. A listagem de conteúdos para o primeiro ano do ensino médio é apresentada

totalmente desvinculada da noção de habilidades e competências e dos princípios de

interdisciplinaridade ou contextualização que, referenciados no corpo do PPP, se

constituem em letra morta. Nessa listagem não divisamos nada que lembre remotamente

o propósito de fazer do PPP uma mobilização permanente de “corações e mentes”,

conforme DCNEM (p. 82), para alcançar objetivos compartilhados por toda a

comunidade escolar.

O novo paradigma ressoa distante no discurso dos professores de língua

portuguesa da Escola Cidade Verde. Sempre que questionados sobre o reflexo e o

impacto dos PCNEM em suas práticas, responderam esquivamente, apresentado

restrições diversas. A alguns deles, os PCNEM soam como uma imposição e a outros

como uma proposta alheia ao contexto das escolas do centro-oeste e orientada para as

do sudeste. Vêem-na como uma proposta muito bonita no papel, mas utópica, no sentido

mais negativo da palavra. Nenhuma abertura a alguma utopia a dar sentido e a re-

significar suas práticas profissionais. Texto é moda, gênero é moda, dizem os

professores. E o que é moda é nuvem passageira, não merece crédito, investimento.

Também são unânimes em afirmar que a formação que receberam na graduação não é

suficiente para que eles lidem com as novas propostas.

A observação da prática em sala de aula revelou-nos que o texto, embora nela

presente, não é trabalhado como texto, muito menos como exemplar de um gênero,

ligado a uma esfera de atividade social e de comunicação. A unidade enfatizada nas

aulas continua sendo a palavra, ou seja, os signos, mesmo que arrancados do texto. É

nos signos e pelos signos que se procura chegar ao sentido do texto. Quer dizer, o texto

entrou na sala de aula, mas nem por isso a palavra deixou de ser o pilar do trabalho com

a linguagem, revelando um descompasso entre a perspectiva do sentido observada nas

aulas e aquela orientada pelo novo paradigma. A concepção de linguagem reinante

tendeu mais para a teoria da comunicação que a vê como código do que para a

lingüística enunciativa que a vê como interação humana. O que verificamos na prática

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de sala de aula é um empilhamento enciclopédico de conteúdos originários de todos os

campos da lingüística, sobremaneira, da teoria da comunicação. Nessa visada, os

gêneros, certamente, figurarão no extenso rol de conteúdos contemplados pelos

currículos escolares, não como linguagem viva, mas como cadáveres.

Tais resultados corroboram aqueles evidenciados nas pesquisas realizadas por

Silva (2000), Barros (2000), Gonçalves (2002) e Covezzi (2003). A pesquisa de Silva,

referente às práticas e concepções de uma alfabetizadora, localiza, já nessa primeira

etapa da escolarização, a prevalência das atividades de reflexão sobre a língua em

detrimento das de uso, comprometendo o processo de letramento que deveria conduzir

as crianças a “lidar com desenvoltura com os gêneros textuais da escrita, quer como

leitoras quer como produtoras de texto” (p. 137). Em sua dissertação, referindo-se ao

tratamento que o texto recebe em sala de aula, constata que

...no cenário das aulas que observei (...) a oferta de textos é frugal. A unidade nuclear da prática pedagógica não é o texto, mas a família silábica. Os textos, quando presentes nos eventos de letramento, estão a serviço da família silábica. São textos produzidos exclusivamente para alfabetizar, para ensinar a técnica de transcodificação do oral para o escrito ou vice-versa (Silva, 2000: 136).

Barros (2000), que também realizou pesquisa no âmbito da alfabetização,

tratando do diálogo da alfabetizadora com os PCNs, chega à conclusão semelhante

quanto à não entrada deste nas salas de aula dos alfabetizadores observados em sua

prática cotidiana:

Em conjunto, as respostas às questões de pesquisa, evidenciaram um profundo descompasso entre as orientações teórico-metodológicas dos PCNS e a prática da professora. O trabalho cotidiano com a leitura e a escrita, visualizado na sala de (....) não refletia a concepção interacional de linguagem que constitui o cerne da nova proposta. Tratava-se de um trabalho ainda norteado pela concepção gramatical, centrado na forma e não no uso da língua. Em termos paradigmáticos, a prática da professora revela-se uma bem comportada prática tradicional (Barros, 2000: 127).

Outra não é a constatação de Gonçalves (2002), ao observar aulas de língua

portuguesa do 2º ano do ensino médio, em três escolas públicas do município de Barra

do Garças/MT:

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A interpretação dos dados revelou um profundo descompasso entre o novo paradigma de ensino de língua materna e a prática cotidiana de três dos quatro professores observados: na sala deles, o texto não é o fulcro do ensino-aprendizagem da língua e, mesmo nos eventos em que ele foi oferecido aos alunos, teve como propósito nuclear viabilizar o domínio de conceitos e regras lingüísticas. (...) a concepção de texto é a de uma estrutura que possibilita a descrição e a classificação gramatical (Gonçalves, 2002: viii). Covezzi (2003), em uma pesquisa sobre o ensino de língua estrangeira, concebeu

como principal propósito de sua pesquisa investigar de que modo se dava a recepção e

implantação dos PCNs na prática de professores do ensino fundamental. Diferentemente

das anteriores, essa pesquisa usou, como técnica de coleta de dados, apenas entrevistas

com roteiro aberto. Suas conclusões, porém, ratificam as anteriores, como podemos ler

no trecho abaixo:

...há pontos nucleares da proposta (PCNs), que não foram sequer citados pelos professores, por exemplo: os quatro eixos de conhecimento norteadores da distribuição dos conteúdos, o tema transversal variação lingüística, intimamente relacionado com a pluralidade cultural... (...) Na verdade, o que se percebe é uma relação periférica e tangencial com os PCNs. Não há evidências de que o documento tenha sido lido em profundidade e discutido exaustivamente a ponto de se sentirem à vontade para comentar, criticar ou implementar suas orientações. O que dizem não revela vínculo, adesão aos PCNs e muito menos compromisso e disposição para tirá-lo do papel (Covezzi, 2003: 113).

Em nossa pesquisa, o professor B afirma que “as discussões são pontuais,

tangenciais, não entram no cerne do novo paradigma, uma ou outra palavra evocam as

mudanças”. Para ele existe uma evocação de mudanças por meio de uma ou outra

palavra que lembra o novo paradigma. O discurso dos parâmetros, embora circule na

escola, não está efetivamente nela. Paráfrases povoam o discurso que se “deve” ter,

como parte de uma agenda politicamente correta: “‘habilitar o aluno a ler, a escrever e a

pensar;’ ‘libertar-se do ensino prescritivo baseado, engessado, na gramática tradicional;’

‘aproximar-se dos alunos por meio de atividades de leitura e produção textual,’ ‘usando’

as habilidades e competências deles’” (Capítulo IV: 90 – neste trabalho). Há, sim, uma

tensão que incomoda, desestabiliza, mas não o suficiente para que a mudança seja

visualizada num horizonte próximo.

Buscando entender esse descompasso entre o reconhecimento de que o

paradigma tradicional de ensino de língua portuguesa não resulta bem sucedido na

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educação lingüística da atual clientela da escola pública e a resistência à instauração de

um verdadeiro processo de mudança por parte de professores, recorremos a Huberman

(1973). Para ele, a mudança representa ruptura do hábito e da rotina, envolve pensar de

uma outra forma sobre coisas que sempre fizemos e que sempre foram feitas de uma

mesma forma por quem nos antecedeu. De acordo com ele (1973: 9 e 11), inovações em

educação são particularmente lentas e, para que sejam duradouras, é necessário que os

seguidores as assimilem e as adotem em razão de suas próprias buscas. Mudar exige pôr

em questão princípios e crenças, buscando superá-los. A mudança de atitudes, ao

admitir que outros métodos e práticas podem ser melhores do que os até então

praticados, é o que, segundo o autor, constitui-se no fator mais importante de todo o

processo de inovação. “A inovação é, pois, uma operação completa em si mesma cujo

objetivo é fazer instalar, aceitar e utilizar determinada mudança. Uma inovação deve

perdurar, ser amplamente utilizada e não perder as características iniciais” (Huberman,

1973: 17). Trata-se, portanto, de um processo envolvendo tomadas de decisão quanto a

factibilidade do que se pretende instaurar, com o objetivo de melhorar. Huberman

refere-se a seis etapas a serem vencidas pelo professor e por toda a escola para que uma

inovação seja efetivamente instalada e apresenta uma curva (Figura 2), onde essas

etapas – ligeiro empenho (início da tomada de consciência), empenho moderado (busca

de informações), grande empenho (busca ativa de informações e experimentação),

grande empenho (esforços para adotar a inovação), empenho decrescente (com o

costume e assimilação) e a inovação consolidada como hábito (se torna rotina e parte

aceita e automática do comportamento do adotante) – correspondem a níveis de

empenho dos envolvidos nas mudanças.

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Figura 2 – Empenho de um indivíduo durante o processo de adoção

Consideramos que os professores de língua portuguesa da Escola Cidade Verde

encontravam-se, no momento de nossa pesquisa, na primeira fase da curva,

demonstrando apenas “ligeiro empenho, início da tomada de consciência” no processo

de inovação. Suas declarações e atitudes revelam uma aproximação vacilante dos PCNs.

Esse confronto, contudo, alimenta uma inquietação que classificamos como o passo

inicial para o processo de mudança. Entretanto, muito nos preocupa o fato de já ter

passado uma década do lançamento dos PCNs e de suas questões axiais permanecerem

incompreendidas e, muitas vezes, serem rechaçadas levianamente sob a pecha de

modismo. Os professores não demonstram ter chegado nem ao nível 2, de empenho

moderado, com a disposição para buscar informações. É possível sair dessa etapa

inicial, dar mais passo rumo a transformação da inovação em prática sedimentada e

transformada em rotina? Acreditamos que sim. Porém, novas atitudes terão que permear

as ações tanto na macro-estrutura do sistema educacional quanto no micro-mundo da

comunidade escolar. O sistema educacional cai no descrédito, se orienta o professor a

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trabalhar autonomia e desenvolvimento de competências com seus alunos, mas ele

mesmo desrespeita o princípio de autonomia na sua relação com os professores. Quando

os professores da Escola Cidade Verde falam em “planos utópicos que vieram de cima

para baixo”, estão, na verdade, ressentidos de não serem tratados como sujeitos da

própria história. Não foram convocados para uma vigília de transformação e ainda se

sentem culpados por não terem condições de implementar as propostas repassadas a

eles. Covezzi (2003), muito apropriadamente, conclui:

Uma educação voltada para a tendência de formação crítico-reflexiva do professor não pode continuar a colocá-lo na posição de “bode-expiatório”, como se fosse o responsável pelos (des)caminhos do ensino. (...) cabe à formação continuada, em consonância com os problemas reais do cotidiano das escolas, dar o suporte teórico, oportunizar e provocar a reflexão constante sobre a prática, além de possibilitar tomadas de decisão bem fundamentadas para a transformação da ação pedagógica. Assim o professor agirá efetivamente como sujeito de seu saber e fazer (Covezzi, 2003: 116). Cox & Assis-Peterson, em recente artigo (no prelo), em que tratam do ensino da

língua inglesa na escola pública brasileira, também levantam a urgência de elevar os

professores à condição de protagonistas das mudanças educacionais.

Elevemos os professores da escola básica à posição de protagonistas das propostas de mudança. Não podemos mais agir sob o pressuposto de que o professorado é incapaz de visualizar/propor mudanças, portando-nos, como ironiza Foucault (1982: 70), como consciência e eloqüência. Os professores precisam se sentir co-autores dos projetos que têm de implementar em sua prática docente. Esse postulado implica que as reformas educacionais deixem de ser protagonizadas pelo Estado em aliança com intelectuais afinados politicamente com o(s) partido(s) que detenha(m) o poder no momento. Essa prática tem resultado em propostas que, teoricamente, vão muito além do que o professor aprendeu em sua formação universitária, propostas que pressupõem conhecimentos não dominados por ele. Um bom exemplo desse descompasso é o PCNEF e PCNEM que, no tocante ao ensino de LM e LE, incorporam os conhecimentos recentes da lingüística enunciativo-discursiva, conhecimentos que só agora começam a entrar nos currículos dos cursos de Letras. Tal como vêm sendo urdidas, as propostas se configuram muito mais como um diálogo com os pares da academia do que com aqueles que têm de ensinar a língua no cotidiano escolar. O professorado do ensino básico precisa tomar parte das propostas de mudança em todas as etapas; não pode mais ser o mero executor das reformas, aquele que é, freqüentes vezes, tachado de fazer falhar o mais consistente dos projetos (Cox & Assis-Peterson).

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A questão levantada pelas autoras está presente nos depoimentos de nossos

entrevistados. A professora C confessou nunca ter tido em mãos um exemplar dos

PCNEM para consulta. As OCEM sequer foram mencionadas pelos professores

entrevistados. Como se não bastasse os professores serem meros executores, são

abandonados à própria sorte, sem o apoio de nenhum trabalho de mediação. Os órgãos

governamentais, a despeito de encetarem os processos de mudança, paradoxalmente,

também se constituem em “entraves ao não responderem com responsabilidade pela

parte que lhes cabe” (Covezzi, 2003: 116).

Paulo Freire (1993) levanta uma questão que, historicamente, compõe a

fisionomia do(a) professor(a) no Brasil. Quando ainda não se admitia que a mulher

trabalhasse fora do lar, ser professora foi a única exceção durante muito tempo. Era-lhe

“concedida” a liberdade de ganhar para suas linhas e agulhas. Assim, remendaria as

meias do marido, sem precisar do dinheiro desse, para comprar o material. Freire

(1993), ao desvelar a armadilha ideológica da professora tia, chama a atenção para o

adocicamento da vida da professora, com a intenção de amaciar sua capacidade de luta

(p. 25). Adverte para a desvalorização profissional embutida no tratamento dado à

professora. Nada temos contra a figura da tia e tudo contra a transferência de

representações sociais, principalmente em relação à professora, como profissional,

transformada em um parente postiço. Outra armadilha ideológica embute-se na figura

do professor missionário. É a naturalização do salário de fome, refletindo a imagem da

desvalorização da profissão pela sociedade que, em troca, reconhece sua abnegação e

altruísmo, enredando-o com uma ideologia que manhosamente distorce sua tarefa

profissional, como tão bem enfatiza Freire (1993). O sentido de profissionalidade do

professor se enfraquece diante desse imaginário da tia e do missionário

Essas são questões que, acreditamos, emperram a implementação de qualquer

processo real de mudança, por melhor que sejam as propostas. O Brasil já passou por

muitas reformas educacionais. Nenhuma delas até agora seguiu um processo normal de

implementação e consolidação. Elas têm sido reiteradamente lançadas ao lixo na troca

de governo. Os atuais PCNs, PCNEM e OCEM, a despeito de serem portadores de

profundas e conseqüentes transformações paradigmáticas, correm o sério risco de serem

o próximo descarte e, o que é pior, em nome de um novo programa também fadado à

implosão.

As limitações de nossa pesquisa não nos autorizam a generalizar as conclusões

nem para o âmbito particular investigado, nem para outras situações de ensino da língua

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portuguesa. A exigüidade do tempo do mestrado não nos permitiu insistir na realização

de mais de uma entrevista com cada sujeito, nem observar outras salas de aula. A

primeira entrevista sempre é uma fonte potencial de dúvidas para futuras entrevistas.

Assim, nos vimos com apenas quatro entrevistas, incluindo a professora da sala

observada. Ao concluirmos a análise dessas, já estávamos em novembro e os

entrevistados, envolvidos com avaliação de final do ano, não se encontravam muito

dispostos a concederem novas entrevistas, para clarificarmos e aprofundarmos algumas

reflexões.

Apesar de a leitura que fazemos do processo de aproximação do novo paradigma

por professores da Escola Cidade Verde ser apenas só mais uma versão para

acontecimentos vividos no cotidiano escolar na contemporaneidade, acreditamos que o

que vimos, ouvimos e aqui relatamos pode contribuir para uma reflexão concernida,

responsável e conseqüente, envolvendo todas as instâncias relacionadas à mudança de

paradigma, dos propositores aos executores, passando pelos mediadores. Vemos este

trabalho como uma avaliação, em escala microscópica, da inconseqüência que marca as

ações do estado em relação à educação, com muito dinheiro público desperdiçado.

Realizamos uma pesquisa de natureza etnográfica, que não intervém no contexto

investigado. Contudo, percebemos que o tipo de pesquisa que poderia ajudar/empoderar

os professores a sair da fase inicial da inovação seria a colaborativa, aquela que

estabelece uma ponte efetiva entre a universidade e a escola básica. Não se trata apenas

de o pesquisador ir até uma escola de ensino fundamental ou médio e experimentar ele

mesmo uma bela proposta, mas de estabelecer um diálogo duradouro e responsável com

os professores reais da escola.

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A N E X O S

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