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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO E CONSULTORIA EMPRESARIAL
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Orientando: Rogério Luís Giaretton
Orientadora: Profa. Ms. Bárbara de Oliveira Cruvinel
A liberdade de contratar e a relativização do
pacta sunt servanda
Goiânia 2012
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Rogério Luís Giaretton
A liberdade de contratar e a relativização do
pacta sunt servanda
Artigo Científico apresentado na conclusão do curso de Pós-graduação em Direito e Consultoria Empresarial da Pontifícia Universidade Católica de Goiás -PUC/GOIÁS. Profa. Orientadora: Ms. Bárbara de
Oliveira Cruvinel
GOIÂNIA 2012
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A liberdade de contratar e a relativização do pacta sunt servanda
RESUMO
O contrato é o instrumento jurídico utilizado para promover a transferência e circulação de
bens e direitos entre as pessoas. Atualmente, muito mais do que simples instrumento de
circulação de riquezas, o contrato é visto como um produto da alteração da realidade social,
e a concepção do princípio da função social do contrato, inserido no art. 421, do Código
Civil Brasileiro, é fruto dessa nova realidade. O presente estudo tem a finalidade de analisar
a aplicação do princípio da função social como limitador da autonomia da vontade,
relativizando o princípio do pacta sunt servanda nos casos de descumprimento da lei. Como
a aplicação, entendimento e aprofundamento de todos os efeitos e implicações deste novo
preceito legal é matéria muito complexa, esta pesquisa busca entender como é possível
equilibrar os princípios da força obrigatória e da função social dos contratos, sem extinguir
o caráter da relação privada, evitando o prejuízo social advindo de tal relação.
Palavras-chave: Contrato; Princípios Contratuais; Obrigação; Função Social.
1 - INTRODUÇÃO
O Código Civil de 1916, não tratou com a mesma relevância que o atual Código
Civil os aspectos sociais que envolviam a formalização de um negócio jurídico. Isso ocorreu
porque na formação do antigo Código a sociedade havia saído recentemente de um período
escravagista e iniciado a República, não prestigiava, tal como ocorre hodiernamente,
princípios de visão mais humanista e social. Desta forma, os valores mais importantes na
época, eram a propriedade e o materialismo existencial, que de forma geral, indicavam o
individualismo e o conservadorismo da sociedade de então.
Somente após o período de democratização do país, que ocorreu após o ditatorial,
abriu-se um novo horizonte de necessidade e preocupação social com relação aos negócios
jurídicos celebrados na esfera civil brasileira.
Com o advento da Constituição da República de 1988 (CR/88) e em seguida do
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), a teoria contratual ganha novos contornos,
com a inserção de princípios constitucionais e valores sociais preconizados no Estado
Democrático de Direito, que introduzem uma reformulação na interpretação do direito
contratual.
Assim sendo, com a promulgação do Código Civil de 2002, a principiologia
contratual, é consagrada definitivamente no direito privado, notadamente no contratual, tendo
por fundamento as diretrizes da socialidade, eticidade e operabilidade, as quais afluem do
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princípio constitucional da solidariedade esculpido no artigo 3º, I, da Constituição da
República de 1988.
A predominância da destinação social sobre o individualismo foi estabelecida no
ordenamento brasileiro, com o advento do Código Civil de 2002, privilegiando e sobrepondo
o interesse coletivo ao privado, o legislador estabelece no art. 421 do Código Civil o princípio
da função social do contrato, o qual foi inspirado no art. 5º, inciso XXIII da Constituição
Federal, que limita o direito de propriedade ao atendimento da função social e, ainda, a
moderna função socioambiental da propriedade.
Entretanto, a lei não definiu objetivamente o conceito da “função social do contrato”,
por ter a característica de sistema aberto, configurando a expressão como um conceito
indeterminado do Direito, favorecendo a interpretação atemporal dos contratos podendo,
diante disso, ocorrerem várias interpretações, propiciando a declaração de nulidade de
determinadas cláusulas contratuais, e até mesmo de todo instrumento.
Assim, o pacta sunt servanda, princípio tradicional que traduz a obrigatoriedade do
cumprimento ao pacto advindo das relações contratuais fragilizou-se com a existência do
princípio da função social do contrato.
Imperioso é esclarecer que este trabalho busca esclarecer como o princípio da função
social do contrato pode conviver com o pacta sunt servanda, sem que o negócio jurídico
perca sua segurança e credibilidade.
Tratar-se-á inicialmente sobre a definição de contrato. Após isso, serão analisados os
princípios contratuais, suas atuações como preceitos fundamentais da formação contratual, e,
em alguns casos, como normas diretivas no ordenamento jurídico.
Em seguida, far-se-á uma análise do contrato no Estado liberal, e sob a ótica do
Estado social com a positivação da função social do contrato. Este tópico abordará ainda, a
análise da liberdade contratual prejudicando a função social do contrato, desenvolvendo-se
um breve apanhado sobre a terminologia do art. 421, do Código Civil Brasileiro de 2002.
Ao final tratar-se-á dos julgados e da construção jurisprudencial nos Tribunais
pátrios, demonstrando a aplicação do princípio da função social na vida dos jurisdicionados.
Esta pesquisa aplicará o método indutivo, empregando a técnica da pesquisa
bibliográfica, utilizando doutrinas, publicações on-line e legislações, visando abordar este
tema tão relevante e de interesse geral, para entendermos que atualmente não basta ter
vontade de contratar, capacidade para tanto e objeto lícito, que, além disso, é imprescindível
se verificar e antever os reflexos que tal contratação terá, com sua vigência, sobre os direitos
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coletivos ou transindividuais e, ainda, se isso será passível de eventual declaração de
nulidade, futuramente, pela colidência do pactuado com os fundamentos do princípio da
função social do contrato.
Teria ocorrido, então, a relativização do pacta sunt servanda de tal forma que a
segurança jurídica do cumprimento das obrigações, que se busca com a formalização do
contrato, estaria fragilizada de tal forma que não desse mais segurança, na total acepção deste
termo?
O pacta sunt servanda coexiste harmonicamente com as normas e fundamentos do
princípio da função social do contrato ou tal harmonia inexiste?
Além da resposta para estas dúvidas buscar-se-á discorrer de forma ampla sobre os
aspectos que envolvem a coexistência destes princípios no mundo jurídico.
2 - CONTRATO
Sabe-se que “contrato”, em sua essência, é instrumento de formalização das avenças
mutuamente ajustadas entre as partes. Entretanto, definir seu conceito não traduz a
simplicidade do que o instrumento que se pode vislumbrar inicialmente, numa visão
perfunctória, realmente significa. Logo então, faz-se necessário adentrar no pensamento dos
filodoutrinadores, que analisam, estudam e que acabam por definir, palavra por palavra, a
formação do melhor conceito do objeto do estudo realizado, neste caso, “contrato”.
2.1. O CONCEITO DE CONTRATO
A origem etimológica do vocábulo contrato conduz ao vínculo jurídico das vontades
com vistas a um objeto específico. O verbo contrahere conduz a contractus, que traz o sentido
de ajuste, convenção ou pacto, sendo um acordo de vontades criador de direitos e obrigações.
Venosa (2003, p. 361) ao definir o contrato, nos ensina:
Quando o homem usa de sua manifestação de vontade com a intenção precípua de
gerar efeitos jurídicos, a expressão dessa vontade constitui-se num negócio jurídico
[...] Será negócio jurídico, porém, “todo o ato lícito, que tenha por fim imediato
adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos” (grifos do autor).
Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 11), nos trazem uma definição mais cotidiana,
com vistas aos novos princípios regentes, de contratos, conforme segue:
[...] entendemos que o contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes
declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva,
autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a
autonomia das suas próprias vontades (grifos do autor). Pode-se inferir então que o contrato é a manifestação de vontades entre as partes
sobre o mesmo objeto, com o intuito de constituir, modificar, regular ou extinguir direitos e
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que observados os princípios regentes desta relação, terá validade o efeito jurídico desta
expressão obrigacional de vontades. É o trato em que duas ou mais pessoas assumem certos
compromissos ou obrigações, ou asseguram entre si algum direito.
De uma forma concisa, buscou-se trazer ao leitor visões diferentes de conceito de
contrato onde se pode perceber, dos ensinamentos doutrinários, que os mais modernos
trataram de introjetar os princípios sociais em suas conceituações. Buscar-se-á no próximo
tópico abordar sobre os princípios contratuais, conceituando “princípio”, classificando-os e
trazendo as características e particularidades de cada um.
3 - PRINCÍPIOS CONTRATUAIS
3.1. CONCEITO DE PRINCÍPIO
“Princípio” denota a noção de norma nuclear do sistema. Os princípios constituem os
preceitos fundamentais da formação contratual.
Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 27), definem princípio, da seguinte forma: “Por
princípio, entendam-se os ditames superiores, fundantes e simultaneamente informadores do
conjunto de regras do Direito Positivo. Pairam, pois, por sobre toda a legislação, dando-lhe
significado legitimador e validade jurídica”.
Princípios são os pilares de sustentação (existencial) do contrato, da lei, do direito,
enfim, de tudo o que juridicamente existe e se funda em princípios.
Os princípios são as fontes inspiradoras na formação das normas jurídicas. Estas são
elaboradas respeitando os ditames dos princípios. Barros (2005, p. 213/214) em sua obra,
diferencia o princípio, de uma norma jurídica, quando explica:
O princípio lança sua força sobre todo o ordenamento jurídico, atuando numa área
muito mais ampla do que a norma, pois esta se limita a regular situações específicas. Os princípios são as premissas éticas que inspiram a elaboração das normas
jurídicas. São mais do que normas, pois sua função primordial é servir como critério
de interpretação destas, devendo ser observados pelo legislador, quando elabora as
leis; pelos juízes, quando as aplica; e pelo cidadão, quando realiza o negócio
jurídico. Ainda, segundo BARROS (2005, p. 213) é importante ressaltar, que os princípios, às
vezes, podem estar contidos numa norma. Quando isso ocorre, dá-se a esta, o nome de norma
diretiva, pois orienta o hermeneuta, quando existe dúvida a cerca da adoção de uma ou outra
interpretação.
Alguns exemplos de normas diretivas são: o art. 422 CC, que traz os princípios da
probidade e boa-fé, e o art. 421 CC, que trata o princípio da função social, tema desta
pesquisa.
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3.2. CLASSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS
Importa referir que muito embora os princípios aqui trazidos sejam vistos e estudados
pela ótica contratualista, os mesmos tem raízes nos preceitos fundamentais da Carta Magna e
traduzem o espírito da Constituição Cidadã, em sua essência.
Não há unanimidade entre os doutrinadores, quanto à classificação dos princípios no
sistema contratual. Porém, destacam-se os seguintes princípios elencados na obra de
BARROS (2005, p. 214):
a) Princípio da autonomia da vontade;
b) Princípio da supremacia da ordem pública;
c) Princípio do consensualismo;
d)Princípio da obrigatoriedade ou pacta sunt servanda ou princípio da força
vinculante dos contratos;
e) Princípio da relatividade;
f) Princípio da boa-fé;
g) Princípio da função social.
Analisar-se-ão os princípios acima referidos com o condão de melhor compreensão
do assunto visando uma maior qualidade da pesquisa, para que as soluções apontadas sejam
validamente fundamentadas.
3.2.1. Princípio da autonomia da vontade
Na doutrina moderna esse princípio também é denominado de “princípio da
autonomia privada”. Representa um acordo de vontades livres e soberanas, não suscetível de
modificações geradas por terceiros que não fizessem parte da relação contratual. Ao sujeito é
atribuída a possibilidade de criar situações de direito subjetivo, pessoais ou reais. A
autonomia privada é vista como um poder, que lhe é reconhecido, de regulamentar os próprios
interesses, dentro de determinados parâmetros. Tal auto-regulamentação manifesta-se,
precipuamente, no campo do direito contratual. O contrato é, por excelência, o instrumento da
iniciativa privada.
A autonomia privada é tida como o fundamento da obrigatoriedade dos contratos,
porque é a expressão da liberdade individual. Em torno do conceito de autonomia privada
toda a dogmática do contrato se estrutura. O contrato aparece como o instrumento dessa
autonomia, o meio pelo qual ela se manifesta e se realiza.
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Nessa linha, BETTI (1969)1 afirma que a autonomia privada é reconhecida pela
ordem jurídica justamente "como pressuposto e causa geradora de relações jurídicas, já
disciplinadas, em abstrato e em geral, pelas normas dessa ordem jurídica... É, portanto,
reconhecida como atividade e potestas, criadora, modificadora ou extintora de relações
jurídicas entre particulares". A autonomia privada não pode ser entendida senão em conexão
com o conceito de contrato e este só pode ser apreendido em função daquela.
O princípio da autonomia privada é a tradução jurídica da liberdade de iniciativa
econômica. Ao sujeito é atribuída a possibilidade de criar situações de direito subjetivo,
pessoais ou reais. A autonomia privada é vista como um poder, que lhe é reconhecido, de
regulamentar os próprios interesses, dentro de determinados parâmetros. Tal auto-
regulamentação manifesta-se, precipuamente, no campo do direito contratual.
Importa lembrar que a liberdade é valor constitucional previsto em seu art. 3º, inciso
I, o qual reconhece como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária. No art. 5º caput da Carta Magna está garantido o direito à
liberdade como direito fundamental, bem como está fixado no inciso II deste mesmo artigo
que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”
e, mais adiante, no inciso XVII está assegurado o direito de livre associação para fins lícitos.
Vale frisar que atualmente, este princípio encontra-se limitado pela norma de ordem
pública. A interferência estatal mostra-se crescente e progressiva, nas relações contratuais
privadas.
Como é do conhecimento de todos a autonomia da vontade está presente no Código
Civil de 2002, e, é de fundamental importância para o direito contratual. Permite que as partes
se manifestem no plano pessoal, deliberando com quem deseja contratar e o conteúdo do
pacto.
3.2.2. Princípio da supremacia da ordem pública
Como já verificado no tópico anterior, a autonomia da vontade (autonomia privada) é
amparada por lei, porém, não tem caráter absoluto, estando submetida e controlada pelas
diretrizes estatais, ou seja, o princípio da supremacia da ordem pública verifica-se nessa
intervenção estatal a qual, observadas as disposições legais deve preponderar em detrimento
da vontade dos particulares contratantes.
1RIBAS, Christina Miranda. Em Torno da Autonomia Privada. Artigo publicado em maio de 1997 na Revista
Jurídica da Universidade Estadual de Ponta Grossa, através de pesquisa no site
<http://www.uepg.br/rj/a1v1at13.htm>; acesso em 28 de agosto de 2012 apud BETTI, Emilio. Teoria Geral do
Negócio Jurídico. Coimbra : Coimbra Editora, 1969.
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Os negócios quando submetidos às normas, bem como, aos bons costumes, resultam
na preservação da ordem pública, perfazendo o ato lícito e eficaz.
Como exemplo de preponderância e supremacia da ordem pública sobre o interesse
privado, cita-se o art. 496 do Código Civil que reza ser anulável venda de bens pertencentes à
ascendente para descendente sem a concordância dos demais e do cônjuge do alienante. Tal
norma visivelmente restringe a autonomia privada.
Por fim é relevante lembrar que a Constituição Federal protege os vulneráveis, de
igual forma, em detrimento da autonomia da vontade, em determinados casos, tais como, os
trabalhadores (art. 7º) e os consumidores (art. 5º inciso XXXII). Com relação aos aderentes,
como último exemplo tem-se a proteção legal assegurada pelas normas dos arts. 423 e 424 do
Código Civil de 2002.
Logo então, ao mesmo tempo em que a lei concede autonomia e liberdade aos
contratantes, acaba por restringir em determinadas situações tal autonomia, de forma que o
interesse público prevalecerá sobre tal autonomia de vontade. Seguindo a lógica do presente
estudo analisar-se-á em seguida o princípio do consensualismo.
3.2.3. Princípio do consensualismo
A vontade exteriorizada só gera perfeito acordo quando há consentimento mútuo,
assim, é necessária a convergência de vontades entre duas ou mais pessoas sobre um mesmo
objeto, para gerar um negócio jurídico.
O art. 107, do Código Civil Brasileiro, reporta-se ao princípio do consensualismo por
não exigir forma especial para o aperfeiçoamento da convenção:
Art. 107: A validade da declaração de vontade não dependerá de forma escrita,
senão quando a lei exigir.
Porém o princípio do consensualismo não é absoluto, as exceções à regra são os
contratos formais (solenes) ou reais. A lição de BARROS (2005, p. 222) esclarece que pelo
princípio do consensualismo, o acordo de vontades é suficiente para gerar a formação válida
do negócio. Porém apresenta duas exceções: os contratos solenes (que exigem forma escrita
para ter validade), e os contratos reais (que se formam com a entrega da coisa). Dentre os
contratos reais destacam-se: mútuo, comodato, penhor, depósito, e os de doações de pequeno
valor.
A criação do negócio jurídico depende inicialmente da vontade das partes em
contratar e do mútuo consenso sobre o pactuado, que não existindo forma prescrita em lei,
perfeita estará a convenção.
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Na sequencia discorrer-se-á sobre o princípio que é a base deste estudo para o qual
dedicar-se-á reservada atenção e o devido aprofundamento.
3.2.4. Princípio da obrigatoriedade ou pacta sunt servanda ou princípio da força vinculante
dos contratos
O termo latim pacta sunt servanda significa que os contratos existem para serem
cumpridos.
Na visão de RIZZARDO (2005, p. 24) a concepção filosófica da teoria clássica do
brocardo pacta sunt servanda, consagrava que as convenções legalmente formadas constituem
lei para aqueles que as celebram.
Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 38/39) lecionam que o princípio da força
obrigatória, manifestado especialmente na imodificabilidade ou intangibilidade dos termos do
contrato, tornou-se um instrumento de opressão econômica, que no decorrer do século XX
acentuou as desigualdades sociais, facilitando a opressão do fraco pelo forte. Assim, em época
como a atual, em que os contratos paritários cedem lugar aos contratos de adesão, a pacta sunt
servanda é temperada por mecanismos jurídicos de regulação do equilíbrio contratual, a
exemplo da teoria da imprevisão2.
O princípio da força obrigatória pode ser relativizado se o conteúdo do pacto divergir
com os demais princípios gerais do direito contratual. Carli (2005, p. 48/49), à respeito desta
matéria, acrescenta que:
A obrigatoriedade, todavia não é absoluta. Há que se respeitar a lei e, sobretudo,
outros princípios com os quais o da força obrigatória coexiste como o da Boa-fé, o
da Legalidade, o da Igualdade, entre tantos outros; afinal, os princípios gerais do
Direito integram um sistema harmônico. Assim, se pode dizer que pacta sunt servanda é o princípio segundo o contrato
obriga as partes nos limites da lei.
Sem a obrigatoriedade dos contratos, não teria segurança as relações negociais, pois
a palavra dos homens seria carente de força jurídica.
3.2.5. Princípio da relatividade
Acerca deste princípio, Barros (2005, p. 223) ensina que “de acordo com o princípio
da relatividade, o contrato só produz efeitos entre as partes. Não beneficia nem prejudica
terceiros. Assim, em regra, não se pode, por meio de um contrato, criar direitos e obrigações
para terceiros”.
2 Teoria da imprevisão consistente no reconhecimento de que a ocorrência de acontecimentos novos,
imprevisíveis pelas partes e a elas não-imputáveis, refletindo sobre a economia ou na execução do contrato, autorizam sua revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes.
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Em regra, o contrato só ata aqueles que dele pactuaram. Porém o ordenamento
jurídico trata algumas exceções que são trazidas nas obras de diversos doutrinadores.
De acordo com BARROS (2005, p. 223) as exceções do princípio da relatividade
são: a estipulação em favor de terceiro; a responsabilidade dos herdeiros quanto ao
cumprimento do contrato do de cujus, até as forças da herança; e o poder do consumidor
acionar judicialmente o fabricante, produtor, construtor ou importador, mesmo não tendo
contratado diretamente com eles, na hipótese de reparação de danos causados por defeitos ou
informações insuficientes do produto.
Para Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 40/41) retiram-se ainda outras exceções ao
princípio da relatividade, quais sejam: o contrato com pessoa a declarar, e ainda os casos onde
é necessária a “relativização do princípio da relatividade subjetiva”, por exemplo, quando se
constata a violação de regras de ordem pública e interesse social.
Outrossim, Venosa (2003, p. 377) acrescenta como exceções à este princípio as
convenções coletivas de trabalho e fideicomisso constituído por ato inter vivos.
Assim, estudadas essas definições, toma-se por lição, que o contrato não produz
efeito com relação a terceiros, exceto nos casos previstos em lei.
Não se poderia abordar o princípio da relativização sem que houvesse referência à
teoria da imprevisão (rebus sic stantibus), bem como, da teoria do rompimento da base
objetiva do negócio.
Trata-se de temas correlatos o pacta sunt servanda e a cláusula rebus sic stantibus.
Correlatos porque, embora por trilhas antagônicas, levam ao mesmo destino, que é a garantia
de um fim juridicamente protegido ou, pelo menos, almejado.
O primeiro para preservar a autonomia da vontade, a liberdade de contratar e a
segurança jurídica de que os instrumentos previstos no nosso ordenamento são confiáveis.
O segundo para proteger o bem comum, o equilíbrio contratual, a igualdade entre as
partes e a certeza de que o interesse particular não predominará sobre o social.
O princípio da força obrigatória (pacta...) é uma regra, cuja exceção tem merecido
cada vez mais a atenção do jurista pátrio. Versa sobre a vinculação das partes ao contrato,
como se norma legal fosse, tangenciando a imutabilidade.
Já a teoria da imprevisão (rebus...) constitui uma exceção, da qual a regra está a
merecer mais observação do legislador. Contempla a possibilidade de que um pacto seja
alterado, a despeito da obrigatoriedade, sempre que as circunstâncias que envolveram a sua
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formação não forem as mesmas no momento da execução, imprevisível e inimputavelmente,
de modo a prejudicar uma parte em benefício da outra.
Logo então a “cláusula rebus sic stantibus” nada mais é que a possibilidade de
revisão do contrato em vista de determinada situação imprevisível à época da pactuação a
qual trouxe onerosidade excessiva para uma parte em benefício da outra.
Quanto à isto, citando como exemplo, está pacificado na jurisprudência brasileira,
que os contratos de compra e venda de soja futura com preço fixado não são passíveis de
revisão, prevalecendo o pacta sunt servanda sobre a teoria rebus sic stantibus neste caso, sob
o fundamento de que neste tipo de negócio a mudança de preço é algo previsível e que isso
ocorre constantemente, em vista da volatilidade do mercado, às vezes ocorrendo o aumento do
preço e noutras vezes a diminuição. Veja-se a decisão do STJ:
DIREITO EMPRESARIAL - CONTRATOS - COMPRA E VENDA DE COISA
FUTURA (SOJA) - TEORIA DA IMPREVISÃO - ONEROSIDADE EXCESSIVA
- INAPLICABILIDADE - 1- Contratos empresariais não devem ser tratados da
mesma forma que contratos cíveis em geral ou contratos de consumo. Nestes
admite-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer os princípios da
autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças. 2- Direito Civil e Direito
Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e princípios
próprios. O fato de o Código Civil de 2002 ter submetido os contratos cíveis e
empresariais às mesmas regras gerais não significa que estes contratos sejam
essencialmente iguais. 3- O caso dos autos tem peculiaridades que impedem a
aplicação da teoria da imprevisão, de que trata o art. 478 do CC/2002: (i) os
contratos em discussão não são de execução continuada ou diferida, mas contratos
de compra e venda de coisa futura, a preço fixo, (ii) a alta do preço da soja não
tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas apenas reduziu o
lucro esperado pelo produtor rural e (iii) a variação cambial que alterou a cotação da
soja não configurou um acontecimento extraordinário e imprevisível, porque ambas
as partes contratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do
ramo e sabem que tais flutuações são possíveis. 5- Recurso especial conhecido e
provido. (STJ - REsp 936.741 - (2007/0065852-6) - Rel. Min. Antonio Carlos
Ferreira - DJe 08.03.2012 - p. 972).
A teoria do rompimento da base objetiva do negócio consubstancia-se na
possibilidade da revisão ou resolução do contrato em razão da vulnerabilidade do consumidor,
criando requisitos menos rígidos para isto, buscando dar maior proteção ao consumidor e
cumprimento à função social ao contrato.
O art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor, como corolário do princípio
constitucional de proteção ao consumidor, dispõe que é direito básico do consumidor a
modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua
revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. O referido
preceito legal, marco de uma nova fase do direito, que atribuiu ao contrato uma função social,
veio minorar e relativizar o vetusto princípio contratual da força obrigatória dos contratos
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(pacta sunt servanda), não consagra a teoria da imprevisão, mas sim a teoria do rompimento
da base objetiva do negócio jurídico. Nesta teoria, ao contrário da imprevisão, é despiciendo
investigar sobre a previsibilidade do fato econômico superveniente. E nem se deveria. Com
efeito, o fato pode até ser previsível, mas não é esperado, porque se esperado fosse, as partes
não contratariam.
Diante de tudo isto, pode-se concluir que o princípio da relativização restou abordado
com a amplitude necessário ao escopo do presente estudo onde buscou-se enfatizar as várias
formas de ocorrência, bem como a sua conceituação. Passar-se-á a percutir sobre o princípio
da boa-fé para que a contratação tenha plenitude de seus efeitos no mundo jurídico.
3.2.6. Princípio da boa-fé
O Código Civil brasileiro de 2002 trouxe uma relevante inovação no âmbito
contratual, ao introduzir o princípio da boa-fé no art. 422 em seu diploma legal. Sua redação
traz:
Art. 422: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Ao inserir este princípio no ordenamento jurídico, buscou o legislador minimizar os
efeitos da liberdade sem precedentes.
É consenso entre os doutrinadores a divisão da boa-fé em objetiva e subjetiva.
Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 64/65) assim as definem:
[...] faz-se necessário que estabeleçamos uma diagnose diferencial entre a boa-fé
objetiva e a boa-fé subjetiva. Esta última, de todos conhecida por estar visivelmente presente no Código Civil de
1916, consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do
agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do
vício que a inquina. Em geral, esse estado subjetivo deriva do reconhecimento da ignorância da agente a
respeito de determinada circunstância [...] Distingue-se, portanto, da boa-fé objetiva, a qual, tendo natureza de princípio
jurídico – delineado em um conceito jurídico indeterminado -, consiste em uma
verdadeira regra de comportamento, de fundo ético e exigibilidade jurídica. Venosa (2003, p. 379), aponta a boa-fé objetiva como regra de conduta:
Na boa-fé subjetiva, o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo
em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um estado
de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado. A boa fé objetiva, por outro lado, tem compreensão diversa. O intérprete parte de
um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando
em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se
traduz de forma perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo
com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos. Este estudo tem como foco a boa-fé objetiva, presente no art. 422 do Código Civil
como norma principiológica das relações contratuais restando certo que se não estiver
presente a boa-fé por parte de qualquer das partes na formalização do contrato o mesmo é
passível de revisão ou mesmo anulação. Tratar-se-á em seguida do princípio da função social
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e em seguida sua contraposição ao pacta sunt servanda, que é o principal tema do presente
estudo.
3.2.7. Princípio da função social
Os contratos possuem três funções primordiais, quais sejam: a econômica (ligada ao
fato do contrato ser instrumento de geração e circulação de riquezas na sociedade) a
pedagógica ou regulatória (fundada na possibilidade dos contratantes criarem direitos e
obrigações no intuito de regularem dadas situações) e a social, que se apresenta como uma
síntese das funções anteriores.
Trata-se de uma cláusula geral, positivada no artigo 421 e 2.035 parágrafo único do
Código Civil de 2002, e norteada pela diretriz da socialidade, a qual se apresenta como um
reflexo do princípio constitucional da solidariedade, consagrado no art. 3º, I, da Constituição
da República de 1988.
O art. 421, do Código Civil expressa que:
Art. 421: A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato. Dentre as principais inovações trazidas pelo atual Código Civil, a positivação da
função social, é sem dúvida a questão mais importante e mais obscura que existe em matéria
contratual. Este princípio veio ao encontro do fenômeno da socialidade já presente no direito
brasileiro, sob tendências jurisprudenciais, antes mesmo de existir o Código atual. Neste
aspecto lembram Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 45) que:
A socialização da idéia de contrato não é idéia nova. A partir do momento em que o Estado passou a adotar uma postura mais
intervencionista, abandonando o ultrapassado papel de mero expectador da
ambiência econômica, a função social do contrato ganhou contornos mais
específicos. Importa referir que um novo panorama só delineou-se a partir da Constituição de
1988, aperfeiçoando-se no Código Civil de 2002.
O ideal de justiça social trazido pela Constituição Federal de 1988 serviu de diretriz
para a inclusão do princípio da função social do contrato no instrumento civilista. Sobre esse
aspecto, elucida Reale (2003):
Um dos motivos determinantes desse mandamento resulta da Constituição de 1988,
a qual, nos incisos XXII e XXIII do Art.5, salvaguarda o direito de propriedade que
“atenderá a sua função social”. Ora, a realização da função social da propriedade
somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e
exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade. Nota-se que, assim como serviu para os jusnaturalistas instituírem o Estado liberal, o
direito de propriedade foi o propulsor do Estado social.
Diante de tal princípio, obriga-se entender o significado de função social, para assim
defini-lo. Theodoro Júnior (2004, p. 13) nos ensina:
14
Com efeito, função quer dizer “papel a desempenhar”, “obrigação a cumprir, pelo
indivíduo ou por uma instituição”. E social qualifica o que é “concernente à
sociedade”, “relativo à comunidade, ao conjunto dos cidadãos de um país”. Logo só
se pode pensar em função social do contrato, quando este instituto jurídico interfere
no domínio exterior aos contratantes, isto é, no meio social em que estes realizam o
negócio de seu interesse privado. Buscando o conceito de função social, BARROS (2005, p. 216) lembra que a lei não
define o que vem a ser função social do contrato. Desta forma, pode ser interpretado de
diversos modos, consistindo basicamente na prevalência do interesse coletivo sobre os
interesses individuais dos contratantes.
Para BARROS (2005, p. 217), haverá descumprimento do princípio da função social,
quando a prestação de uma das partes for exagerada ou desproporcional; quando houver
vantagem exagerada de uma das partes ou, quando se quebrar a base objetiva ou subjetiva do
contrato. Assim o contrato só cumprirá a sua função social quando for útil e justo.
Na visão de BARROS (2005, p. 217) existem alguns autores que defendem que a
desconformidade do contrato com sua função social pode ser corrigida pela revisão judicial do
contrato. Outros, por sua vez, pregam que não é cabível essa revisão, pois violaria o princípio
da autonomia da vontade, de modo que o juiz em vez de alterar cláusula deverá anulá-la, ou
em casos extremos, declarar nulo o próprio contrato.
Pode-se inferir do estudo realizado que as partes podem livremente contratar e que
pelo pacta sunt servanda, em princípio, o contrato “faz lei entre as partes”. Para plena
validade e eficácia do contrato, devem ser observadas as vedações legais que o tornam
anulável, conforme o caso, bem como que a contratação efetivada estará sujeita à revisão ou
até mesmo decretação da sua nulidade pelo Judiciário, sempre que ofender o ordenamento
jurídico e os princípios que regem o direito contratual.
4 - DO PACTA SUNT SERVANDA EM CONTRAPONTO AO PRINCÍPIO DA
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Visando analisar com a devida profundidade que este tema exige, em face de ser o
cerne sobre o qual se assenta o objetivo do presente estudo, buscar-se-á abordar sobre a
aplicação do princípio da função social como limitador da autonomia da vontade,
relativizando o princípio do pacta sunt servanda e, ainda, a análise sobre os efeitos gerados
por este “conflito” principiológico.
4.1. DO PACTA SUNT SERVANDA NO ESTADO LIBERAL
O contrato existente no Estado liberal era regido pela liberalidade da autonomia da
vontade. Este período foi marcado pelo individualismo, que limitava ao máximo a intervenção
15
estatal nas relações privadas, elevando os acordos à categoria de lei, obrigando as partes a
cumprirem o contratado (pacta sunt servanda).
A supremacia da vontade obrigava as partes a cumprir o acordo estabelecido, ainda
que seu conteúdo estivesse moldado de forma viciada. A vontade das partes, elevada ao status
de lei, validava o acordo que empregava esse artifício, pois assim estabeleceram (e aceitaram)
os contratantes.
Por não permitir a interferência estatal nas relações privadas, este sistema contratual
baseado na vontade e liberalidade das partes, consentia o favorecimento de uma das partes
sobre a outra, insurgindo a desigualdade entre eles. O modelo adotado no Estado liberal
sucumbiu aos anseios do Estado social, constituídos para atender aos apelos desta nova
realidade, buscando o equilíbrio econômico e a justiça contratual.
Vale destacar também, o que nos ensina Humberto Theodoro Júnior (2001):
Por meio das leis de ordem pública, o legislador desvia o contrato de seu leito
natural dentro das normas comuns dispositivas, para conduzi-lo ao comando daquilo
que a moderna doutrina chama de ”dirigismo contratual”, onde as imposições e
vedações são categóricas, não admitindo possam as partes revogá-las ou modificá-
las. O dirigismo contratual caracteriza-se pela intervenção do Estado por meio de
legislação específica com objetivo de valer a prevalência do interesse coletivo, protegendo o
economicamente mais fraco do domínio do poderoso, minimizando as desigualdades entre as
partes, dirigindo a atividade econômica e a atividade contratual de modo a corresponder às
exigências fundamentais da justiça social ou distributiva e da garantia a todos da existência
digna, garantindo a resolução do contrato por onerosidade excessiva ou em caso de perigo,
mesmo que contrarie a autonomia da vontade.
A autonomia da vontade, logo, a liberdade de contratar é direcionada pela
supremacia do bem-estar social e pela função social do contrato. O dirigismo do Estado nas
relações contratuais induz as partes a suplantar o sentimento egoístico necessário às relações
humanas em busca do melhor para a sociedade e do equilíbrio entre as partes. A intervenção
do Estado é necessária para garantir a prevalência dos interesses comuns e coletivos, bem
como, para preservar a igualdade dos direitos ou sua manutenção nas avenças, podendo o
desrespeito às cláusulas contratuais, levar a revisão ou resolução do contrato. Ao Estado cabe
estabelecer normas gerais com esse intuito. Ressaltamos, entretanto, que o vínculo das partes
ao contrato somente poderá sofrer intervenção pela autoridade judicial em certas
circunstâncias excepcionais ou extraordinárias, quando não for possível uma negociação que
estabeleça os interesses comuns entre as partes.
16
Nélson Nery Júnior (1991) esclarece o caráter relativo da intervenção do Estado
quando afirma:
O dirigismo contratual não se dá em qualquer situação, mas apenas nas relações
jurídicas consideradas como merecedoras de controle estatal para que seja mantido o
desejado equilíbrio entre as partes contratantes.
A intervenção do sistema jurídico em vigor ocorre também, nas questões atinentes a
ordem pública, por meio de legislação específica, nos casos, por exemplo, que dizem respeito
à organização familiar, vocação hereditária, organização política e administrativa do Estado.
Em função disso, identificamos que cada vez mais, a distinção entre o público e o
privado fica atenuada. Os espaços públicos e privados aproximam-se do direito social, cuja
função é patrocinar o bem-estar dos que compõem sua estrutura, ficando cada vez mais difícil
delimitar onde começa um e termina o outro.
A presença do Estado, subsidiando a produção e propiciando o crescimento da
economia firma-se na necessidade constante de limitar a liberdade de contratar e a liberdade
de iniciativa econômica, destituída de fins sociais, com objetivo de fortalecer a economia com
formas mais justas, igualitárias e distributivas, possibilitando a oportunidade real de acesso a
todos que desejem entrar no mercado.
A regulação da ordem econômica e social pela Constituição estabeleceu uma série de
mudanças para o direito civil, em especial ao contrato.
O dirigismo contratual se dá sob duas dimensões: público – quando é exercido pelo
Estado e privado – mediante as condições gerais dos contratos.
4.2. O CONTRATO COM A INTROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL
A positivação do princípio da função social possibilitou ao aplicador do direito
impedir que a liberdade contratual seja exercida de forma abusiva, garantindo o equilíbrio
entre os pactuantes, impedindo a prevalência da formação de contratos, como por exemplo,
com vícios de consentimento e prestações excessivamente onerosas para uma das partes.
Além do equilíbrio contratual, a função social traduz a ideia de que o negócio
pactuado deve atender a interesses sociais, ou seja, ser socialmente benéfico e justo, sem
acarretar prejuízos à coletividade.
Importa referir, ainda, que além de observar e cumprir os preceitos da função social,
de igual forma, o contrato deve ater-se à sua função socioambiental, em virtude de que se as
regras contratuais estabelecidas colidirem com interesses coletivos de caráter ambiental, de
17
igual forma, impor-se-á a relativização do que fora pactuado contratualmente para que não
haja prejuízo ao meio ambiente, que é direito constitucionalmente garantido à todos.3
Entendem Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 48) que com a ascensão da
intervenção estatal “(... omissis) Não se está pretendendo aniquilar os princípios da autonomia
da vontade (ou autonomia privada) ou do pacta sunt servanda, mas, apenas temperá-los,
tornando-os mais vocacionados ao bem-estar comum, sem prejuízo do progresso patrimonial
pretendido pelos contratantes”.
Obviamente que o princípio da função social não determinou o fim dos princípios da
autonomia da vontade e da força obrigatória, apenas serviu de instrumento regulador, para
limitar suas conseqüências.
O pacta sunt servanda encontra-se presente no ordenamento, logo, a vontade das
partes revestida da força obrigatória é o imperativo da relação contratual. A função social do
contrato não extinguiu esses preceitos clássicos, apenas atenuou seus reflexos em vista dos
interesses da coletividade.
4.3. DOS EFEITOS DO DESCUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL
Os doutrinadores revelam de forma diferenciada a abrangência do princípio da
Função Social do Contrato.
Pelos ensinamentos de BARROS (2005, p. 217), analisa-se que o contrato só cumpre
seu papel quando for simultaneamente útil e justo. A utilidade e a justiça devem ser analisadas
em face dos interesses metaindividuais4, do interesse individual relativo à dignidade humana e
de outros preceitos constitucionais. Assim, haverá descumprimento do princípio da função
social, quando a prestação de uma das partes for exagerada ou desproporcional; quando
houver vantagem exagerada de uma das partes; ou, quando se quebrar a base objetiva ou
subjetiva do contrato.
No entendimento de Alvim (apud SANTIAGO, 2005, p. 82) “o grande espaço da
função social já se observa no próprio código civil de 2002, através de outros institutos que
amenizam a dureza da visão liberal do contrato”.
3 CF/88 - Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 4 Os interesses metaindividuais ou transindividuais referem-se a um grupo de pessoas (como os
condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados do mesmo patrão).
18
Acrescenta Santos (apud SANTIAGO, 2005, p. 82), que “a função social do contrato
se caracteriza por inúmeras regras do Código Civil, reprimindo com veemência os atos não
socialmente desejados, no intuito de regularizar a conduta das partes à finalidade social dos
contratos”.
Boulos (apud SANTIAGO, 2005, p. 83) demonstra sua visão sobre esse aspecto:
A tutela da função social do contrato como princípio informador de todo o direito
contratual não se revela apenas no art. 421, do novo Código Civil, mas também em
outras tantas normas do Código que podem ser consideradas desdobramentos ou
aplicações do referido princípio, como, por exemplo, as normas que atribuem caráter
de nulidade relativa aos atos praticados em estado de perigo (art. 156), que
disciplinam a lesão (art. 157), que vedam a onerosidade excessiva (arts. 478-480)
etc.
Conforme se verifica, as doutrinas trazidas ampliam o efeito social relacionando
outras normas do ordenamento jurídico, em apoio à função social do contrato, como
desdobramento deste princípio. Outros doutrinadores, relacionam o princípio da boa-fé
objetiva como parte deste preceito. Para Nery Júnior (apud SANTIAGO, 2005, p. 82) “A boa-
fé objetiva, cláusula geral prevista no CC 422, decorre da função social do contrato, de modo
que tudo o que se disser sobre a boa-fé objetiva poderá ser considerado como integrante,
também, da cláusula geral da função social do contrato”.
Prestadas as devidas observações, pode-se dizer que estão em sintonia com a função
social, os contratos pautados em conformidade com os princípios: da boa-fé, da eticidade, do
equilíbrio econômico, da socialidade e da dignidade da pessoa humana. Portanto, ocorre o
descumprimento da função social do contrato, quando afastado algum dos princípios que o
englobam, sejam em face dos interesses individuais ou metaindividuais.
4.4. ANÁLISE DA TERMINOLOGIA DO ART. 421 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
A terminologia do art. 421 do Código Civil de 2002, é alvo de críticas e objeções de
muitos civilistas. Seu texto expressa que:
Art. 421: A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato. Hironaka (apud SANTIAGO, 2005, p. 90) enumera dois enormes problemas no
referido dispositivo legal, que ensejam modificação urgente, para alcançar a perfeita redação a
qual permita a total consagração do princípio da função social. Esses problemas são: a
menção à liberdade de contratar e a afirmação de que o princípio da função social é a razão do
exercício dessa liberdade.
19
A definição de Santiago (2005, p. 90/91) sobre o termo “liberdade de contratar” é
matéria que se aplica:
A liberdade de contratar, repita-se, implica a liberdade de decidir celebrar ou não, o
contrato, bem como a liberdade de escolher o outro contratante; já a liberdade
contratual é a liberdade de determinar o conteúdo do contrato, suas cláusulas, sendo
permitida legalmente, inclusive, a criação de contratos atípicos. O princípio da função social atinge a liberdade contratual. O indivíduo não fica
limitado no seu direito de celebrar ou não, um contrato com a pessoa de seu
interesse e de sua escolha. Mas, uma vez decidido a celebrar esse contrato, deve
fazê-lo de forma a não prejudicar a sociedade, respeitando um limite, a função social
do negócio, que pode ser ferida através do seu conteúdo. Percebe-se que a expressão “liberdade de contratar” encontra-se disposta
erroneamente no diploma legal, gerando imprecisão à norma.
Em segundo plano, porém não menos importante está o emprego da expressão “em
razão” que gera discussões fervorosas entre doutrinadores que filosoficamente buscam a
melhor interpretação e aplicação do significado desta expressão no contexto hermenêutico que
deve ser dado à norma.
Contrária a essa terminologia a doutrinadora Santiago (2005, p. 91) esclarece que:
[...] A liberdade contratual não é exercida em razão da função social do contrato, o
seu fundamento não é a função social. A liberdade contratual é exercida ainda em
razão do direito à liberdade, garantido constitucionalmente, que se manifesta, no
caso, pela autonomia privada. A função social apenas limita essa liberdade, não a
substitui [...] A razão de ser do contrato ainda é a autonomia privada, podendo dizer-se que o
próprio art. 421, do Código Civil, é o dispositivo legal estabelecendo expressamente
entre nós esse princípio, limitando-o, todavia, pela função social do contrato. Não se
pode dizer, simplesmente, que o objetivo desse artigo é estabelecer a função social
do contrato.
Retira-se por lição, disso, que a intenção do legislador era limitar o conteúdo do
negócio jurídico, e não um direito constitucionalmente garantido de contratar.
GODOY (2004, p. 120/121) refere que o deputado Ricardo Fiúza, relator do projeto
de alteração do novo Código Civil (Projeto n. 6.960, de 12-06-2002), inseriu na proposta
legislativa a sugestão de nova redação para o art. 421 para que este disponha: “a liberdade
contratual será exercida nos limites da função social do contrato”, a qual, segundo o autor, se
aprovada, restariam extintas as imprecisões deste princípio insculpido na norma atual do art.
421 do CC.
Total razão possui o Doutrinador Claudio Luiz Bueno Godoy ao referir que se
aprovado o projeto de alteração da redação do art. 421 do CC, restariam eliminadas as
incongruências da atual redação muito bem vistas pelos filodoutrinadores que discorreram
sobre o tema.
20
5 - A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL (ART. 421 DO CC) NOS
TRIBUNAIS
Verifica-se, então, no contexto deste estudo, que não há parâmetro concreto que
possa definir com precisão o que venha ser a função social do contrato.
Percebe-se que o art. 421 Código Civil não expressa a definição de função social e,
de igual forma não define sua aplicação.
Venosa (2003, p. 378/379) nos ensina que:
Diz-se que o novo Código constitui um sistema aberto, predominando o exame do
caso concreto na área contratual. Trilhando técnica moderna, esse estatuto erige
cláusulas gerais para os contratos. Nesse campo, realça-se o art. 421 referido [...].
Essa disposição constitui modalidade que a doutrina convencionou denominar
cláusula geral. Essa rotulação não nos dá perfeita idéia do conteúdo. A cláusula geral
não é, na verdade, geral. O que primordialmente a caracteriza é o emprego de
expressões ou termos vagos, cujo conteúdo é dirigido ao juiz, para que este tenha um
sentido norteador no trabalho da hermenêutica. Trata-se, portanto, de uma norma
mais propriamente dita genérica, a apontar uma exegese. Partindo dessa premissa, Miguel Reale ensina que a utilização da cláusula aberta
(geral) possibilita ao legislador assumir uma postura mais equilibrada, na positivação da
norma, propiciando ao julgador uma análise reflexiva e individual conforme o caso exposto:
Na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se
encontra perante três situações possíveis: ou dá maior relevância aos interesses
individuais, como ocorria no Código Civil de 1916, ou dá preferência aos valores
coletivos, promovendo a “socialização dos contratos”; ou, então, assume uma
posição intermédia, combinando o individual com o social de maneira
complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas
e concretas. Não há dúvida que foi essa terceira opção a preferida pelo legislador do
Código Civil de 2002. (www.miguelreale.com.br) Santiago (2005, p. 121) que essa avançada técnica legislativa garante maior
aplicabilidade da função social:
Nesse contexto de cláusulas gerais, a lei passa a ser vista não como um limite, mas,
como um ponto de partida para a criação e desenvolvimento do direito. As cláusulas
gerais, dotadas de grande abertura semântica, não pretendem uma resposta prévia a
todos os problemas da realidade, mas, que essas respostas sejam progressivamente
construídas pela jurisprudência. Uma vez instituída a função social como cláusula geral, o aplicador do direito ganha
importante ferramenta para fazer com que esta tenha aplicabilidade prática, ou seja,
operatividade. Pode-se perceber então que o legislador, ao conceber o princípio da função social,
reservou aos doutrinadores e julgadores a efetiva aplicação da norma. Diante disto se constata
que constituído sob o conceito de cláusula geral, possibilita ao magistrado empregar a
hermenêutica no julgamento de um caso específico, em benefício da coletividade e do
equilíbrio contratual.
21
5.1. DECISÕES DOS TRIBUNAIS E SÚMULAS APLICANDO O PRINCÍPIO DA
FUNÇÃO SOCIAL
O Tribunal de do Rio Grande do Sul em julgado proferido em março deste ano de
2012 julgou causa cujo objeto era a discussão sobre a validade e cumprimento de contrato,
contido em interesses meramente privados, sem reflexos diretos aos direitos coletivos e
transindividuais concedendo o direito das partes com observância dos ditames dos arts. 421 e
422 do CC, relativizando os princípios da autonomia privada e do pacta sunt servanda. In
verbis:
CONSUMIDOR - AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS - PEDIDO DE CANCELAMENTO DE CURSO ANTES
DA DATA DE SEU INÍCIO - DEVER DE PAGAMENTO DO VALOR
REFERENTE AO MATERIAL DIDÁTICO - AUSENTE A CONFIGURAÇÃO DE
VENDA CASADA - DANO MORAL INOCORRENTE - É inegável que a autora
contratou os serviços da ré, bem como que, antes de agendar qualquer aula, solicitou
a rescisão contratual. Para a formatação de um contrato há dois pontos importantes,
ou seja, a proposta, que vincula o proponente aos termos do que propôs, conforme
prevê o art. 427 do CC , e a aceitação, que é a concordância da parte contraente com
o que foi proposto, formando-se, assim, o pacto. Entretanto, certos requisitos devem
ser observados quando da contratação, dentre eles, os princípios da função social do
contrato e da boa-fé, consoante aludem os art. 421 e 422, ambos do Código Civil . A
autora não usufruiu dos serviços da requerida, o que torna possível a resolução do
contrato em relação ao suporte didático não utilizado. Entretanto, quanto ao material
didático adquirido, não comporta restituição, ainda que possível a rescisão
contratual, na medida em que o material restou à disposição da consumidora desde
logo. Ainda, não há abusividade na consecução do negócio conjuntamente
(venda/entrega de material didático e suporte didático pedagógico), principalmente
se não oferecida pela autora causa extintiva do negócio jurídico, por vício ou lesão.
Quanto aos danos morais, ausente, no caso, qualquer configuração de violação aos
direitos da personalidade da demandante a ensejar a pretendida indenização.
SENTENÇA MANTIDA PELOS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. RECURSO
DESPROVIDO. (www.tjrs.jus.br).
A Justiça de Santa Catarina em recente julgado proferido em março desde ano de
2012, julgou que antes da existência do CDC não se aplicam os ditames das normas
consumeristas, ressalvou e consagrou, entretanto, que vige, atualmente a mitigação do
princípio pacta sunt servanda diante da função social do contrato e da onerosidade excessiva
imposta nos contratos de adesão. Transcreve-se:
APELAÇÕES CÍVEIS - AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO C/C REPETIÇÃO
DE INDÉBITO - SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO (SFH) –
APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - CONTRATO
ANTERIOR – VIOLAÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO – PREVALÊNCIA
DO ART. 5º, INCISO XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO
DA IRRETROATIVIDADE – Aos contratos celebrados antes da vigência do
Código de Defesa do Consumidor não podem ser aplicados os ditames
consumeristas, haja vista o ato jurídico perfeito, nos termos do art. 5º, inciso
XXXVI, da Constituição Federal. PACTA SUNT SERVANDA - MITIGAÇÃO –
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E ONEROSIDADE EXCESSIVA -
POSSIBILIDADE DE REVISÃO CONTRATUAL - O direito hodierno permite a
mitigação do princípio pacta sunt servanda diante da função social do contrato e da
onerosidade excessiva imposta nos contratos de adesão. TABELA PRICE - FORMA
22
DE AMORTIZAÇÃO DE SALDO DEVEDOR QUE IMPLICA EM
CAPITALIZAÇÃO DE JUROS - AFASTAMENTO DEVIDO - ENUNCIADO VIII
DO GRUPO DE CÂMARAS DE DIREITO COMERCIAL - Conforme assentado
pelo Grupo de Câmaras de Direito Comercial em seu Enunciado VIII, mostra-se
ilegal a utilização da Tabela Price nos contratos celebrados sob à égide do Sistema
Financeiro de Habitação (SFH), uma vez que representa a capitalização dos juros.
REAJUSTE DAS PRESTAÇÕES DO CONTRATO – ELEIÇÃO DO PLANO DE
EQUIVALÊNCIA SALARIAL (PES) COMO FATOR DE CORREÇÃO DAS
PARCELAS – CONTRATO ANTERIOR À LEI Nº 8.004/1990 - OBSERVÂNCIA
DA VARIAÇÃO DO SALÁRIO DA CATEGORIA PROFISSIONAL DO
MUTUÁRIO DURANTE TODA A CONTRATUALIDADE - PRECEDENTES -
"Os reajustes das prestações da casa própria, nos contratos vinculados ao Plano de
Equivalência Salarial, segundo as regras do Sistema Financeiro de Habitação, devem
respeitar a variação do salário da categoria profissional do mutuário, salvo aquele
firmado com mutuário autônomo, hipótese em que deve ser observada a data de
celebração do contrato. Se anterior ao advento da Lei 8.004 , de 14/03/1990, que
revogou o § 4º do artigo 9º do Decreto-lei 2.164/84 , deve ser utilizado o mesmo
índice aplicado à variação do salário mínimo. Se posterior, deve ser aplicado o IPC
(AgRg no REsp 962162/SC, rel. Min. Antonio de Pádua Ribeiro) ÔNUS
SUCUMBENCIAIS. DISTRIBUIÇÃO PROPORCIONAL DAS CUSTAS
JUDICIAIS À SUCUMBÊNCIA DAS PARTES - CORRETA APLICAÇÃO DO
ART. 21, CAPUT, DO CPC - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA NESTE PONTO -
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - FIXAÇÃO DE PARÂMETROS DISTINTOS
PARA CONDENAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE – OFENSA AO ART. 125,
INCISO I, DO CPC – ADOÇÃO DO VALOR CORRIGIDO DA CAUSA PARA
FIXAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA PARA AMBOS OS LITIGANTES -
DISTRIBUIÇÃO DOS HONORÁRIOS EM 20% EM FAVOR DO AUTOR E 10%
À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - Para fins de condenação de honorários
advocatícios em caso de sucumbência recíproca deve ser adotado o mesmo
parâmetro na fixação da verba honorária, como forma de tratamento igualitário entre
as partes. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS. (www.tj.sc.gov.br).
Em recentíssima decisão, prolatada no mês passado (JUL/2012), o Egrégio Tribunal
de Justiça do Estado de Goiás, reconheceu o direito de ação de consumidor, bem como a
incidência dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, afirmando que
ordem pública é interessada na repressão ao exercício abusivo ou ilegal da autonomia da
vontade. In verbis:
APELAÇÃO CÍVEL - REVISIONAL C/C CONSIGNATÓRIA - SENTENÇA
TERMINATIVA - INTERESSE DE AGIR - PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
– FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO - DIREITO CONSTITUCIONAL DE
AÇÃO - UTILIDADE E NECESSIDADE DA INTERVENÇÃO JUDICIAL -
ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA - SENTENÇA DESCONSTITUÍDA - I-
Malgrado o fato de que o princípio da função social não deve servir de escudo para
que eventuais contratantes celebrem contratos com a intenção de inadimpli-los sob a
proteção judicial, não pode o estado vedar ao cidadão o direito constitucional de
ação, calcado na presunção de má-fé do consumidor, tão somente em virtude de
haver ajuizado demanda para a revisão de contrato bancário, tendo pago apenas 2
(DUAS) das prestações a que se obrigou. II- Se por um lado temos a boa-fé,
traduzida, no caso, na disposição sincera de cumprir contratos, seja qual for o seu
conteúdo, por outro lado, há de ser considerada a ordem pública interessada na
repressão ao exercício abusivo ou ilegal da autonomia da vontade. III- Atendendo a
ação aos pressupostos da necessidade e utilidade, indo ao encontro do exercício do
direito à revisão de cláusulas contratuais assegurado pelo art. 51 do código de defesa
do consumidor , denota-se o desacerto da sentença que obstou as pretensões nestes
autos deduzidas, porquanto presente o interesse processual apto a autorizar a
propositura da demandas. Recurso conhecido e provido. Sentença cassada. (TJGO -
23
AC 201091170177 - 4ª C.Cív. - Rel. Des. Kisleu Dias Maciel Filho - DJe
26.07.2012 - p. 409). (www.tjgo.jus.br).
Em sentido oposto, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que geralmente
expressa a inovação e promove a vanguarda de várias hermenêuticas e formas de julgar
atualmente existentes no país, em especial, quanto à direitos de interesse coletivo, julgou em
análise ao caso em concreto, pela inexistência de ofensa a função social em contrato paritário.
Ensina o magistrado que comprovado o equilíbrio contratual, não cabe a intervenção do
Estado na relação privada:
LOCAÇÃO. AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO E ARBITRAMENTO DE
MULTA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.
1. Não cabe a revisão de contrato de locação celebrado entre contratantes paritários,
sobretudo quando comprovadamente discutiram amplamente a cláusula cuja revisão
pretende o locador. Inexistência de hipossuficiência de uma das partes que justifique
a intervenção do Estado. 2. Caso em que, além da comprovação da existência de
tratativas paritárias, não restou demonstrada a existência de desequilíbrio contratual.
APELO DESPROVIDO. (www.tjrs.jus.br) Inspirado no princípio da função social do contrato o Egrégio Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, julgou que o contratado tem responsabilidade em face de terceiro
prejudicado:
Manifesta a legitimidade passiva da Seguradora, tendo em conta a função social do
contrato, prevista no art. 421, do Código Civil, que tem sua inspiração no princípio
constitucional da solidariedade, contemplado no art. 3º, I, da Constituição Federal,
não podendo assim a Seguradora demandada afirmar não apresentar qualquer
responsabilidade em face da terceira prejudicada por seu segurado. (www.tjrs.jus.br) São várias as súmulas consubstanciadas pelo princípio da função social do contrato,
permitindo a relativização do pacta sunt servanda.
Analisar-se-ão as Súmulas nº 302 e 308 do Superior Tribunal de Justiça como
exemplos.
Prevê a súmula n° 302 que “é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que
limita no tempo o internação hospitalar do segurado”.
A súmula somente consubstancia o que já vinha entendendo tanto a doutrina quanto a
jurisprudência. A abusividade da cláusula é flagrante, enquadrando-se inicialmente no art. 51,
I, da Lei n. 8.078/90, pela qual é nula a cláusula que exonerem ou atenuem a responsabilidade
do prestador do serviço. Além dessa previsão, a referida cláusula já era vedada expressamente
pela Portaria n. 3, de 19 de março de 1999, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério
da Justiça.
A cláusula de limitação de internação poderia também ser considerada abusiva pelo
que consta do art. 424 do atual Código Civil, já que o contrato em questão assume a forma de
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adesão, sendo o seu conteúdo imposto unilateralmente pela empresa de plano de saúde.
Isso porque o comando legal em questão prevê a nulidade absoluta, nos contratos de
adesão, das cláusulas que implicam em renúncia prévia a direito resultante da natureza do
negócio. Ora, pela referida cláusula está sendo limitado o uso do serviço pelo aderente, que é
o principal objetivo do contrato celebrado entre as partes.
Partindo-se para a análise principiológica da referida súmula, observa-se, de imediato,
que a mesma traz aplicação direta do princípio da função social dos contratos, relativizando a
força obrigatória (efeito inter partes).
Prevê a Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça que: “A hipoteca firmada entre a
construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra
e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Trata-se de súmula com
relevante enfoque sociológico.
Sabe-se que a hipoteca é um direito real de garantia sobre coisa alheia, que recai
principalmente sobre bens imóveis, tratada entre os arts. 1.473 a 1.505 do atual Código Civil.
Sem prejuízo dessas regras especiais, a codificação traz ainda regras gerais quanto aos direitos
reais de garantia, entre os seus artigos 1.419 a 1.430.
Pela análise dessas decisões abstrai-se que os julgadores aplicam o princípio da
função social do contrato viabilizando a relativização do pacta sunt servanda sempre que
comprovado o desequilíbrio entre as partes, ou, a ilicitude do ato.
6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, então, que o contrato sofreu várias transformações ao longo dos anos
adaptando-se aos valores econômicos e sociais do meio em que esteve inserido. Nesse
contexto, ele vigorou durante o período Estado liberal, aplicando soberanamente a autonomia
de vontade e do princípio da pacta sunt servanda, preponderando sempre o interesse
individual e privado.
No Estado liberal e durante o período da ditadura brasileira, a intervenção estatal nas
relações privadas era mínima, não existindo, portanto, mecanismos que regulassem o
equilíbrio contratual. Esse liberalismo sem limites com a preponderância do pacta sunt
servanda, desencadeava desequilíbrio econômico e social, em face de que acabava por
beneficiar as classes mais favorecidas e de maior intelectualidade sobre o interesse dos menos
cultos e de menor força no contrato.
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Com o nascimento do Estado social ocorreu a intervenção estatal visando trazer
maior equilíbrio entre as partes na contratação. A Constituição de 1988 com a previsão da
função social da propriedade e, logo em seguida o Código de Defesa do Consumidor que
trouxeram proteção aos reconhecidos como hipossuficientes na relação de consumo. Seguindo
tais moldes o Código Civil de 2002, acrescentou no livro das obrigações, os princípios da
função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Através deste estudo, pode-se notar que a existência do princípio da função social do
contrato foi a mais importante inovação, no âmbito contratual, trazida pelo Código Civil de
2002. Este princípio foi concebido nos anseios da nova realidade social, para resguardar os
interesses coletivos em detrimento da vontade individual.
Importa referir, conforme estudo dos princípios do direito contratual, realizado no
âmbito deste trabalho, que a autonomia privada na constituição do contrato, que cria a força
obrigatória de cumprimento ao estipulado, está mitigada pelo interesse social, pela
intervenção do Estado feita através de restrições legais que visam a proteção de direitos
específicos de partes que merecem tal proteção em vista de sua condição menos favorecida
nas relações obrigacionais. Logo então, quando o Estado entende necessário, efetiva a
regulamentação das relações para manter o devido equilíbrio jurídico-social e o fim precípuo
que é a pacificação social.
Resta evidente que o pacta sunt servanda se encontra presente no ordenamento,
diante disso, a força obrigatória do cumprimento do pacto contratual é o imperativo da relação
contratual. A função social do contrato não extinguiu esses preceitos clássicos, apenas
atenuou seus reflexos em vista dos interesses da coletividade.
Denota-se que, embora a força obrigatória se encontre atenuada, ela ainda faz parte
do sistema contratual, constituindo preceito fundamental para a formação do negócio jurídico.
Este princípio é imprescindível, pois obriga as partes a cumprir o acordo firmado,
acrescentando assim a devida credibilidade e segurança aos negócios.
Pode-se afirmar que estão em sintonia com o princípio da função social, os contratos
que respeitarem os princípios: da boa-fé, da eticidade, do equilíbrio econômico, da socialidade
e da dignidade da pessoa humana. À contrario sensu, ocorre o descumprimento da função
social do contrato, quando afastado qualquer um dos princípios que o englobam, seja em face
dos interesses individuais ou metaindividuais.
Por tratar-se de cláusula geral, a aplicabilidade do princípio da função social, é
matéria complexa dependendo de interpretação para ter efetividade e, diante disto, o papel do
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Juiz é de suma importância para que ocorra a hermenêutica correta em cada julgado, na
prática da justiça. Conforme se pode analisar dos julgados acima colacionados, o judiciário
brasileiro vem aplicando e dando efetividade aos princípios contratuais sociais, em especial, o
princípio da função social e da boa-fé objetiva, provendo o interesse de quem tem seus
direitos lesados pela infrigência ou inobservância de tais princípios.
7 – REFERÊNCIAS
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T.R.Cív. - Relª Maria Cláudia Mércio Cachapuz – Publicação em 28 de março de 2012.
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