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BRUNO BEZERRA CAVALCANTI GODOI
A INFLUNCIA DE ROBERTO CAMPOS NA ECONOMIA BRASILEIRA (1945-2001)
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Econmica da Universidade de So Paulo, para obteno do grau de Mestre em Histria Econmica. Orientador: Prof. Dr. Nelson Hideiki Nozoe
So Paulo SP 2007
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BRUNO BEZERRA CAVALCANTI GODOI
A INFLUNCIA DE ROBERTO CAMPOS NA ECONOMIA BRASILEIRA (1945-2001).
Dissertao submetida Comisso Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Ps-Graduao em Histria Econmica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo como requisito para obteno do grau de Mestre em Histria Econmica. Aprovada em 10 de fevereiro de 2007.
BANCA EXAMINADORA
________________________________ Prof. Dr. Nelson Hideiki Nozoe Faculdade de Economia e Administrao Universidade de So Paulo Orientador ________________________________ Prof. Dr. Jlio Pires Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. ________________________________ Prof. Dr. Jos Flvio Motta Faculdade de Economia e Administrao Universidade de So Paulo
iii
AGRADECIMENTOS
Essa dissertao possui a participao de vrias pessoas, sem as quais no poderia t-
la realizado.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao meu pai, Jos Maria Godoi e minha
me, Maria Auxiliadora, por terem me motivado a fazer o programa de ps-graduao
mesmo nos momentos mais difceis e por sua orientao na seleo e ao longo da ps.
Igualmente importante foi o meu orientador, Prof. Nelson Nozoe, que sempre mostrou
boa vontade em me ajudar com um tema metodologicamente to nebuloso, como a histria
dos pensadores econmicos e da minha orientadora de iniciao cientfica, Profa. Maria
Luiza Tucci Carneiro, por ter introduzido a mim nos mtodos de trabalho do pesquisador,
muitas vezes desconhecido para os alunos de graduao. Ao Prof. Jlio Pires, pela
disposio em se exceder ao seu papel de avaliador na banca de qualificao e trazer
publicaes importantes, como a dissertao de Jos Eduardo Pimentel de Godoy Jnior, e
ao Prof. Jos Flvio Motta pela importncia de estudar o desenvolvimento histrico das
polticas econmicas, o que somente enriqueceu meu trabalho.
Tambm no posso ignorar a ajuda que amigos pessoais, que entendem de economia,
e me trouxeram insights importantes, como o Rui Csar, Yara Andrade e o Gercival. Nem a
Profa. Dra. Maria Helena Bezerra Cavalcanti Rockenbach, PhD. em Letras pela PUC-RS e
revisora do texto final. Finalmente, agradeo aos funcionrios do Centro de Pesquisas e
documentao da Fundao Getlio Vargas CPDOC, da Biblioteca Florestan Fernandes
(USP) e da Biblioteca da FEA-USP, pela boa vontade, pacincia e atendimento prestativo.
iv
No h histria que no seja contempornea
Benedetto Croce
v
RESUMO
O trabalho investiga o papel de Roberto Campos na histria econmica brasileira, por via
do estudo das suas publicaes e de suas decises como administrador pblico. Observa-se
que o principal mote de suas aes tornar o Brasil interessante ao capital estrangeiro e s
grandes multinacionais. Para realizar o projeto de tornar o Brasil interessante a essa elite,
ele advogava dois pacotes polticos distintos: um era o desenvolvimentismo no-
nacionalista, entre os anos 50 e 70, procurando conciliar o capital estrangeiro e a iniciativa
privada com um projeto de desenvolvimento econmico. O segundo era a defesa
intransigente do neoliberalismo nos anos 80 e 90.
Palavras-chave: Desenvolvimento Econmico Roberto Campos Economia Brasileira
Histria do Pensamento Econmico.
vi
ABSTRACT
This dissertation examines Roberto Campos role in the Brazilian economic history,
studying his decisions as public administrator and his publications. The greatest motivator
of his actions is to make Brazil an attractive country to the foreign multinationals. He
defended two kinds of national projects: the first was the non-nationalist developmental
state, between the fifties and the seventies, trying to conciliate the interests of foreign
capital with a developmental state. The second was the intransigent defense of
neoliberalism in the eighties and nineties.
Keywords: Economic Development Roberto Campos Brazilian Economy History of
Economic Thought.
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SUMRIO INTRODUO.....................................................................................................................1
CAPTULO 1 ORIGENS DO PENSAMENTO DE ROBERTO CAMPOS................6 1.1 - O Pensamento Econmico do Sculo XIX no Brasil................................................10 1.2 - O Incio da Industrializao no Brasil......................................................................16 1.3 - O Incio do Planejamento Governamental...............................................................19 1.4 - O Papel das Comisses Norte-Americanas no Desenvolvimento Brasileiro.........29 1.5 - A Influncia do Contexto em Roberto Campos.......................................................43
CAPTULO 2 DESENVOLVIMENTISMO NO-NACIONALISTA.......................52 2.1 - O Debate com o Pensamento Econmico entre 1945 e 1964...................................55 2.1.1 - Razes do desenvolvimento.......................................................................................56 2.1.2 - Papel do Estado e do Planejamento..........................................................................58 2.1.3 - Protecionismo............................................................................................................59 2.2 - A Proposta Desenvolvimentista No-Nacionalista...................................................66 2.3 Aspectos em Comum na Obra de Roberto Campos...............................................75 2.3.1 - Poltica Monetria.....................................................................................................79 2.3.2 - O Sistema Poltico.....................................................................................................82 2.4 - Roberto Campos na Direo do BNDE.....................................................................86 2.5 - O Plano de Ao Econmica Governamental..........................................................94 2.6 A Implementao do PAEG.....................................................................................100 2.7 Questo Agrria e o Estatuto da Terra...................................................................106
CAPTULO 3 A TRANSIO PARA O LIBERALISMO (1967-1990)..................111 3.1 Ideologias Econmicas do Regime Militar.............................................................112 3.2 - A Poltica Econmica dos anos do Regime Militar e da Redemocratizao.......118 3.3 - A Atuao de Roberto Campos...............................................................................128
CAPITULO 4 ROBERTO CAMPOS COMO DEFENSOR DOS INTERESSES DO CAPITAL FINANCEIRO................................................................................................141 4.1- A Origem e os Resultados das Reformas Neoliberais.............................................143 4.2 O Papel do Imperialismo nas Reformas do Livre Mercado..................................157 4.3 Roberto Campos: Intelectual Orgnico do Neoliberalismo..................................164 4.4 Avaliao do Pensamento de Roberto Campos nos Anos 90.................................173
CAPTULO 5 O PROJETO DE DISTOPIA LIBERAL............................................175 5.1 A Sociedade de Mont Plerin..................................................................................178 5.2 A Defesa Radical da Liberdade Econmica...........................................................181 5.3 Se h Monoplios, que estes sejam Privados.........................................................182 5.4 - Sistema de Vales-Educao......................................................................................184 5.5 - Impostos Igualitrios e Simplificados.....................................................................187 5.6 - A Distribuio de Renda no Neoliberalismo..........................................................189 5.7 - A Questo do Planejamento Econmico.................................................................190
viii
CONSIDERAES FINAIS...........................................................................................194
REFERNCIAS................................................................................................................198
ix
NDICE DE TABELAS Tabela 1 Despesa Setorial Prevista e Realizada no Plano SALTE....................................33 Tabela 2 Distribuio dos Financiamentos Propostos pela Comisso Mista Brasil-Estados Unidos...................................................................................................................................40 Tabela 3 Propostas das Misses Norte-americanas e as aes de Roberto Campos.........50 Tabela 4 Dficit Pblico em 1964 e previso do PAEG para 1965, em Cr$ bilhes...................................................................................................................................95
Tabela 5 - Comparativo entre o ndice de inflao IPCA e o Over-Selic em Momentos Selecionados, em %...........................................................................................................122. Tabela 6 - Taxa de Juros de Curto Prazo e Classificao de Risco em Outubro de 2001.....................................................................................................................................150
Tabela 7- Profisses de Maior Crescimento no Nmero de Vagas nos EUA, em milhares...............................................................................................................................153
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INTRODUO.
O objetivo dessa dissertao investigar o papel que Roberto Campos (1997-2001) exerceu
no Brasil da segunda metade do sculo XX.
Nesse perodo, ele tomou decises, de carter crucial, a partir dos cargos da administrao
pblica brasileira que ocupou, como: Conselheiro econmico da Comisso Mista Brasil-Estados
Unidos (CMBEU), diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (atual BNDES),
entre 1953 e 1954, presidente do BNDE entre 1958 e 1959, Ministro do Planejamento, entre 1964
e 1967. Alm disso, foi senador pelo estado do Mato Grosso entre 1983 e 1989, deputado federal
de 1990 a 1998, embaixador do Brasil nos Estados Unidos entre 1961 e 1963 e embaixador do
Brasil no Reino Unido at 1982.
Nesses cargos, ele tomou vrias medidas de impacto na economia brasileira: o Fundo de
Garantia por Tempo de Servio, a correo monetria, o Banco Nacional da Habitao, o Banco
Central1, o Estatuto da Terra e o Plano de Ao Econmica Geral (PAEG), o plano econmico do
governo Castello Branco.
Alm disso, teve uma produo intelectual profcua. Publicou 26 livros, dentre os quais a
Antologia do Bom Senso, Do Outro Lado da Cerca e sua autobiografia, a Lanterna na
Popa. Escreveu colunas regulares nos jornais O Estado de So Paulo e O Globo, ministrou
palestras na Escola Superior de Guerra e na faculdade do IBMEC (Instituto Brasileiro do
Mercado de Capitais) e foi membro da Academia Brasileira de Letras.
Campos reconhecido como um dos principais pensadores brasileiros e referncia para
muitos economistas liberais brasileiros. LOZARDO (2004), por exemplo, afirma que o
responsvel pelo sucesso econmico dos pases do sul asitico, como Coria do Sul, Cingapura,
Taiwan e China foi a colocao, em prtica, do iderio de Campos: baixa carga tributria,
oramento pblico equilibrado, poltica de insero competitiva na economia mundial,
facilidades tributrias para pequenas e mdias empresas e benefcios para a produo de bens de
alto valor agregado.
1 O Banco Central do Brasil uma das instituies criadas durante o perodo em que Roberto Campos esteve frente do Ministrio do Planejamento. Foi institudo pela Lei 4595/64, promulgada em 31 de dezembro de 1964. No mesmo dia, tambm foi promulgada a Lei 4380/64, fundando o Banco Nacional da Habitao. O BNH foi incorporado pela Caixa Econmica Federal por fora do Decreto 2291/86. O Fundo de Garantia por Tempo de Servio surgiu pela lei no. 5107/66.
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Apesar de ter tido todo esse impacto na realidade econmica brasileira, ele recebeu pouca
ateno por parte da historiografia.
As pesquisas acerca do pensamento econmico brasileiro ainda so incipientes e h poucos
pesquisadores voltados a este assunto. Os trabalhos seminais nesta rea so os de
BIELSCHOWSKY (1988), MANTEGA (1985) e de SOLA (1982), descrevendo o espectro
ideolgico e a trajetria dos tecnocratas brasileiros que comandaram o projeto desenvolvimentista
aps a Segunda Guerra Mundial. Porm, eles apenas mencionam Roberto Campos em passant,
procurando, em sua abrangncia, obter conhecimentos sobre todos os pensadores econmicos do
perodo.
Recentemente, porm, comearam a ser divulgados estudos sobre personagens mais
especficas, de nossa Histria, como os dedicados a Celso Furtado. Sobre ele h uma hipertrofia
de teses. Temos conhecimento na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da USP, de
apenas algumas como a de CEPEDA (1998), DANTAS (1999) e KALVAN (2000).
H quatro excees notrias: a dissertao de Mestrado de ABRAHO (1998) e o livro de
BORGES (1996), sobre Eugnio Gudin, a dissertao de GODOY JNIOR (2006) e a nica obra
publicada sobre Roberto Campos, o livro de PEREZ (1999).
Na dissertao de mestrado de GODOY JNIOR (2006), realizado um estudo especfico
da teoria da tributao e da inflao feita por duas personagens da direita brasileira: Roberto
Campos e Otvio Gouveia de Bulhes. Porm, independente dos seus mritos, o escopo da
dissertao restrito somente s questes da tributao e inflao, evitando outros aspectos do
pensamento e aes de Roberto Campos e sem relacionar com o contexto histrico do perodo
estudado.
J PEREZ (1999) se detm no tratamento de fatos empricos baseados nos conceitos da
filosofia poltica, ignorando a atuao de Campos e seu pensamento econmico. Esta pode talvez
ser uma viso satisfatria dentro das categorias da cincia poltica, que a rea de especialidade
do autor. Porm, ela no consegue explicar outros aspectos importantes do pensamento de
Roberto Campos nem pode se encaixar na metodologia da histria econmica.
Alm disso, no podemos examinar Roberto Campos apenas sob uma perspectiva, com
riscos da produo acadmica transformar-se em uma doutrina absoluta. Somente a diversidade
de ngulos permite uma compreenso adequada da dimenso das obras de Campos.
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necessrio, portanto, um trabalho que contemple a personagem histrica sob outras
perspectivas, se possvel, inovadoras.
Finalmente, ao estudamos Roberto Campos, passamos a compreender como a histria
econmica pode, atravs de seus conhecimentos, ajudar a romper com o marasmo econmico do
Brasil. Vivemos em uma poca de crise e decepo, em termos de poltica econmica, cujo
marco inicial bastante definido: o ano de 1979. A partir dessa poca e at o presente, 2006, a
economia brasileira foi marcada pelo baixo crescimento, crises constantes e recesses,
destacando-se as de 1981-83, 1990 e a de 2003.
Ao longo do sculo XX, at o final do regime militar, o imaginrio coletivo brasileiro tinha
uma forte perspectiva de que o Brasil atingiria os nveis de vida e consumo dos pases
industrializados. Mas a crise crnica dos anos 80 destruiu essa expectativa. A prpria imprensa
denomina os anos 80 como a dcada perdida e a dos 90 como a dcada desperdiada.
Os jovens foram especialmente atingidos pelo fim dessa perspectiva otimista. O
crescimento da produtividade, dos padres de vida e a disponibilidade de trabalho levavam, a
dcadas passadas, crena coletiva na mobilidade social ascendente, ainda que de forma
desigual. Mas isso desapareceu com a dcada perdida. A tica do trabalho tornou-se anacrnica
com o crescimento do desemprego, com a longa espera para a obteno de uma colocao, com a
mobilidade social descendente tornando-se padro, e com a busca de estratgias individuais de
sobrevivncia prevalecendo sobre a prosperidade coletiva. Em segmentos cada vez mais amplos
da sociedade brasileira, surge uma sociedade sem esperanas de futuro, conduzindo
criminalidade.
Poucas vezes, a intelectualidade brasileira dirigiu seus esforos no sentido de romper como
marasmo econmico. Tanto que desenvolvimento econmico tornou-se quase um termo de
baixo calo. Roberto Campos, no entanto, foi um dos pensadores que tentou explicar a crise
brasileira de forma otimista. Para ele, se o Brasil adotasse a agenda neoliberal e tivesse a atitude
de lev-la s ltimas conseqncias, as foras produtivas seriam liberadas das amarras que,
supostamente, o Estado estava lhe colocando e o crescimento rpido do pas seria retomado.
Aparentemente, esta uma viso otimista que contrasta com o fatalismo dos tericos da
dependncia. E uma das motivaes para realizarmos esta dissertao foi examinarmos se essa
proposta de Campos ainda faria sentido na realidade.
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Roberto Campos idealizava um Brasil integrado e atraente para o capital internacional e
para os grandes oligoplios. Todo seu pensamento e aes encontram paralelos anteriores com o
discurso das empresas multinacionais e agncias multilaterais. A atuao de Campos foi
desempenhada de duas formas.
Primeiramente, entre 1945 e 1967, ele procurou criar uma forma de desenvolvimento no-
nacionalista, em que o capital internacional seria permitido e auxiliado com dinheiro pblico,
predomnio da empresa privada, desestatizao, equilbrio oramentrio do governo e a criao
de um grande banco para catalisar o processo de industrializao, o BNDES.
Numa segunda fase, ele foi o grande defensor das polticas de reduo do Estado que foram
denominadas Consenso de Washington, como medidas como: reduo do governo, liberdade de
fluxo de capitais, controle do dficit pblico, privatizao das empresas estatais, garantia legal
dos direitos de propriedade e reduo dos direitos sociais.
Para realizarmos esse estudo, lemos e tentamos analisar quase toda a literatura escrita pelo
prprio Roberto Campos, da dcada de 40 at os anos 90 (geralmente compilaes de artigos de
jornal/palestras e a sua autobiografia, A Lanterna na Popa) e parte dos documentos oficiais das
instituies que ele tinha papel de destaque (BNDES, Ministrio do Planejamento, Comisso
Mista Brasil-Estados Unidos etc).
Sobre o papel exercido por Roberto Campos na histria, acreditamos que ele tenha tido
uma dupla funo, similar de Celso Furtado: primeiro de influenciador. Era um pensador, cujas
idias foram amplamente publicadas, escrevia em jornais e tentava aplicar suas idias em
problemas brasileiros concretos. O segundo papel seria de tcnico. Ele tentava utilizar seu
conhecimento para elaborar e implementar polticas pblicas baseadas nas idias que ele
defendia, frente de instituies da alta administrao estatal.
Presidentes de diversas tendncias polticas empregavam Roberto Campos quando era
conveniente. Joo Goulart, embora fosse da esquerda, chamou Campos para ocupar o cargo de
embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Ele passava aos norte-americanos uma imagem de
muito respeito ao capital estrangeiro, embora, muitas vezes, Goulart tenha tomado medidas
contrrias s empresas multinacionais. Roberto Campos, nesse caso, tinha de se desdobrar entre
pedir emprstimos e atrair investimentos, ao mesmo tempo em que o governo cancelava
concesses dos oligoplios multinacionais. Em outros casos, como no governo de Juscelino
Kubitscheck, a tendncia desenvolvimentista do governo precisava de algum com
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conhecimentos sobre financiamento de longo prazo para a indstria e atrao de empresas
multinacionais. Devido a essa habilidade, Roberto Campos tornou-se presidente do BNDE.
A dissertao est dividida em cinco captulos. O primeiro captulo estuda o surgimento do
desenvolvimentismo no Brasil e as condies necessrias para a formao de um pensador do
padro de Roberto Campos. O segundo analisa os primeiros anos de Campos na administrao
pblica, destacando-se a fundao do BNDES e de sua passagem como Ministro do
Planejamento. O terceiro refere-se transio de Campos para uma posio neoliberal, enquanto
vivia na Inglaterra, durante os anos 70, e o governo de Margaret Thatcher. O quarto trata da
apologia que Campos fez em relao s polticas neoliberais nos anos 80 e 90 e, finalmente, o
quinto discute como o projeto neoliberal de Campos nesse momento previa a alterao de toda a
ordem social, para aproximar-se do modelo capitalista radical defendido pelos autores
neoliberais, como Hayek, Milton Friedman e Ludwig von Mises.
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CAPTULO 1 ORIGENS DO PENSAMENTO DE ROBERTO CAMPOS.
O objetivo do primeiro captulo estudar as condies histricas, no Brasil, que permitiram
o surgimento de um tcnico do desenvolvimento econmico como Roberto Campos.
Em 1850, as elites brasileiras no desejavam a industrializao do Brasil, alegando que
polticas necessrias para promov-la, como protecionismo, aumentariam os custos da agricultura
agro-exportadora.
Essa idia somente passou a ser questionada na Guerra do Paraguai. Para vencer o
confronto com um oponente militarmente superior, o governo teve que estruturar tecnicamente
as Foras Armadas, criando academias, escolas de engenharia e modernizando todo o aparato
militar.
A classe mdia que se formou nesse contexto, devido necessidade de quadros qualificados
para dirigir o aparelho militar, tornou-se fora poltica independente e passou a se mobilizar pela
industrializao, pois a entendia como fundamental para o futuro do Exrcito e do Brasil. O
movimento perdurou at a Repblica Velha, na forma do tenentismo, que promoveu diversas
rebelies militares, como a do Forte de Copacabana.
No incio do sculo XX, surgiram as primeiras atividades industriais no Brasil,
concentrando-se nas cidades de So Paulo e do Rio de Janeiro, alm das primeiras greves,
destacando-se as de 1917 e 1919. Os empresrios industriais tornaram-se atores importantes no
cenrio poltico e passaram a dividir o poder com as oligarquias rurais2. Essa industrializao
tinha carter espontneo e procurava produzir aqui os bens importados.
2 A palavra correta dividir e no disputar o poder, j que a tendncia geral no foi um confronto direto entre empresrios rurais e industriais, mas uma aliana entre ambos. Os industriais casavam-se com os cafeicultores e, ao longo da dcada de 20, os industriais apoiavam politicamente as oligarquias. Roberto Simonsen apoiava, nos anos 20, o Partido Republicano Paulista.
Mal esboada a disputa, as principais associaes industriais de So Paulo esboavam um manifesto, com data de 30 de julho de 1929, publicado com grande destaque na primeira pgina do Correio Paulistano, apoiando a candidatura Jlio Prestes. O documento era assinado, sem designao de nomes, pelo Centro das Indstrias de So Paulo, Centro dos Industriais de Fiao e Tecelagem, Centro das Indstrias de Papelo, Centro do Comrcio e da Indstria de Madeiras de So Paulo, Centro dos Industriais de Papel do Estado de So Paulo, Unio dos Fabricantes Nacionais de Papel, Associao dos Industriais e Comerciantes Grficos, Centro dos Industriais de Calados de So Paulo.(FAUSTO, 1970, p. 29)
A revoluo de 30 retirou do governo essa aliana entre industriais e cafeicultores. Esse vazio de poder foi ocupado por Getlio Vargas, que primeiro procurou aliar-se temporariamente aos lderes tenentistas. Foi somente aps reprimir a Revoluo Constitucionalista de 1932 que Vargas procurou atender aos interesses dessas duas classes aliadas, industriais e cafeicultores.
Vargas procurou satisfazer a ambos os grupos. Aos cafeicultores foi dada a poltica de valorizao do caf, de estabilizao cambial, alm de compra e queima de caf. Sobre a poltica de defesa do caf, veja SILBER, Simo. Anlise da Poltica Econmica e do Comportamento da Economia Brasileira Durante o Perodo 1929-1939. In:
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Muitos representantes comerciais de produtos estrangeiros (como o Conde Francisco
Matarazzo, que comeou importando banha de porco) e proprietrios de oficinas de reparos
perceberam, no incio do sculo XX, que, devido dificuldade de importao, causada pelas
crises cambiais, seria mais lucrativo produzir aqui os bens que vinham do exterior de forma
irregular. Alm disso, eles conheciam os produtos estrangeiros, pois j tinham experincia prvia
como importadores e tcnicos de manuteno destes.
Quanto mais riquezas acumulavam, esses industriais passaram a criar associaes para
defender seus interesses, como a CIFTSP (Central da Indstria de Fiao e Tecidos de So Paulo)
e a Conferncia das Classes Produtoras. E tambm passaram a ter projeo poltica, desejando
um Estado que promovesse o desenvolvimento do setor secundrio.
A fora desses grupos de presso levou, a partir da segunda metade dos anos 30, o
presidente Vargas a tomar as primeiras medidas em favor de uma industrializao regulada pelo
Estado, como a racionalizao da administrao pblica via DASP e o surgimento do primeiro
plano econmico, o Plano Especial.
Acrescenta-se a isso o surgimento de vrios rgos administrativos, fundados durante a
primeira metade da dcada de 30, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) e
o Conselho Federal de Comrcio Exterior (CFCE), que permitiu melhorar a qualidade tcnica do
Estado e aumentar a participao dos empresrios industriais nas instncias decisrias.
Aps a Segunda Guerra Mundial, na segunda metade dos anos 40, o Brasil protestou contra
a falta de ajuda norte-americana para a Amrica Latina, em comparao com o apoio generoso
concedido Europa pelo Plano Marshall. Os Estados Unidos decidiram enviar ao Brasil misses
tcnicas, com a Misso Cooke, a Abbink e a Comisso Mista Brasil-Estados Unidos (CMBEU).
Nelas, sugeriu-se o mtodo do planejamento de forma tecnicamente sofisticada com base no
BARROS, Jos Roberto Mendona de, VERSIANI, Flvio Rabelo. Formao Econmica do Brasil: A Experincia da Industrializao. So Paulo: Saraiva, 1977.
Em conseqncia do crescimento do setor secundrio, a participao relativa dos empresrios industriais, liderados por Roberto Cochrane Simonsen, passou a crescer. Em resposta presso maior destes, o governo Vargas inovou em fazer o Estado estimular a industrializao de forma racional.
Examinaremos esse processo em detalhes mais adiante nesse captulo. Mas pode-se dizer que esse desenvolvimentismo teve quatro vetores: 1) Criao da Companhia Siderrgica Nacional; 2) criao de rgos voltados coleta de dados econmicos e populacionais, como o IBGE; 3) surgimento da administrao pblica racionalizada, por meio do DASP (Departamento Administrativo do Servio Pblico), cuja principal conseqncia foi a formao de um funcionalismo pblico profissional, recrutada via concursos pblicos (que se tornaram obrigatrios na Constituio de 1934) e sujeita a avaliaes de desempenho e 4) surgimento de um ncleo de entidades da administrao pblica responsveis por efetuar o planejamento, como o CFCE (Conselho Federal de Comrcio Exterior), o CMN (Comit de Mobilizao Nacional) e outros.
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clculo de custo-benefcio, o que era ento uma novidade. Tambm se entendia que a interveno
do Estado na economia deveria ser feita de um modo que fosse compatvel com o capital
estrangeiro e com a iniciativa privada.
A aplicao prtica dessas comisses passou a ser feita por intermdio da fundao de um
banco pblico, BNDE, em 1952, que seria responsvel por financiar os projetos considerados
prioritrios.
nesse contexto que Roberto Campos comeou a atuar. Nascido em 1917 ingressou para a
diplomacia em 1938. Durante vrios anos, ele passou por diversos departamentos como o
almoxarifado e a criptografia. Porm, a partir de 1942, com o desenrolar da Segunda Guerra
Mundial, ele atuou nos Estados Unidos, sendo responsvel pela aquisio de materiais norte-
americanos para o Brasil.
Ao mesmo tempo, cursou o Mestrado em Economia na Universidade da Columbia, tendo
escrito a dissertao Algumas Inferncias Relativas Propagao Internacional dos Ciclos
Econmicos. Por ter sido o nico diplomata com treinamento formal em economia, foi
designado como Conselheiro Econmico da CMBEU.
Nesse cargo, Campos teve contato com as idias do Banco Mundial e do Eximbank para o
planejamento econmico, por meio de amizades pessoais com seus diretores, como Dean
Acheson, por exemplo.
Para essas instituies multilaterais, deveria haver poltica industrial, mas o planejamento
deveria ser limitado a alguns setores que impedissem o desenvolvimento como um todo, os
pontos de estrangulamento, e os projetos que retirariam esses gargalos deveriam ser definidos e
financiados com base em anlise tcnica rigorosa. As atividades produtivas seriam
preferencialmente executadas por meio do setor privado e a inflao deveria ser combatida.
Existia um paralelismo muito grande entre o pensamento das Comisses Mistas e a concepo
que BIELSCHOWSKY (2000) chamaria de desenvolvimentismo no-nacionalista, da qual
Campos foi o principal defensor.
O duplo processo de formao das comisses mistas e o surgimento do Estado
desenvolvimentista consolidaram-se na dcada de 50. Em 1952, o BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econmico e Social) seria fundado com o objetivo de colocar na prtica as
prescries previstas nos relatrios da Comisso Mista Brasil-Estados Unidos. Posteriormente,
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novos planos seriam lanados, como o Plano de Metas e, paulatinamente, o Estado cresceria em
suas responsabilidades at que, nos anos 60, ele tinha controle total da economia:
No plano poltico-institucional sobressai como dado bsico a profunda transformao qualitativa do Estado, resultante da poltica de desenvolvimento industrial, ao longo dos anos 50. J se viu, pginas atrs, a ampliao quantitativa de sua presena no sistema econmico; agora interessa pr em evidncia a penetrao e conseqente mudana qualitativa de sua figura e da ordem institucional decorrente do alargamento horizontal e vertical de suas funes. Assim, convm listarmos as aes permitidas ao setor pblico nos anos atuais, para pr em destaque a extenso, a diversidade e a profundidade de sua ao no funcionamento do sistema econmico brasileiro.
O setor pblico proprietrio e empresrio das atividades de transportes martimo-fluvial e ferrovirio, e de produo e refino de petrleo e combustveis atmicos. Controla a maior parcela do setor siderrgico e caminha a passos largos para se constituir no principal produtor de energia eltrica. Intervm diretamente nas atividades dos principais setores exportveis, e ele mesmo o principal produtor e exportador de minrio de ferro. Regula direta e indiretamente o mercado cambial. Devido a preceito constitucional, o regulador direto de atividades de extrao do subsolo, vias de comunicao e canais de radiodifuso, cujo direito de explorar cede, mediante concesses, ao setor privado. , isoladamente, o maior banqueiro comercial, outorgando, aproximadamente, 35% do crdito geral ao setor privado, atravs do Banco do Brasil, e maior parcela do crdito agrcola. Via outras agncias financeiras especializadas concede o total de crdito cooperativo, e financiamentos em longo prazo. Fixa salrios, taxas de juros, aluguis, e preos dos principais gneros de subsistncia. Determina os preos mnimos para a agricultura e comea a construir e operar importante sistema de armazenagem e comercializao destes bens. Dispes de todos os poderes para tributar. Exerce controle sobre os fluxos monetrios. Produz lcalis e caminhes. Participa amplamente da formao interna de capital. Regula atividades de seguro, disciplina as cooperativas agrcolas. Realiza toda a comercializao da borracha nativa produzida no Pas. Orienta a composio das inverses privadas, intervm no mercado de capitais. Como se v, o Estado brasileiro dispes de variados e importantes poderes.
Ocorreu, por assim dizer, uma estatizao formal da Economia, que implica na existncia de um estado importante, produtor direto nos setores estratgicos da economia e controlador indireto de substanciais faixas de deciso privada. Foi visivelmente alterado o balano do poder, agora inclinado a favor do setor pblico. Como seria de esperar. Tal fato tem recentemente suscitado uma reao empresarial, ainda que tal alargamento das funes do setor pblico tivesse redundado basicamente em seu benefcio. Talvez essa reao seja inspirada pelo temor de um salto dialtico, pelo qual o acmulo quantitativo de novas funes tenha
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engendrado ou esteja em vias de engendrar um ente com qualidades novas (LESSA, 1975, p. 174) 3.
So dois, portanto, os processos da histria econmica brasileira que formariam a
influncia exercida por Roberto Campos, dos anos 50 at o final do governo Castello Branco: 1) a
presso exercida por uma burguesia industrial ascendente por um Estado que motivasse o
desenvolvimento, assim aumentando a rentabilidade dos empreendimentos; e 2) as misses
norte-americanas.
Passemos agora a discutir essa gnese do governo como motor da atividade econmica,
entendendo que essa foi a chave para compreenso da influncia que Roberto Campos teve na
direo dos rumos da nao.
1.1 - O Pensamento Econmico do Sculo XIX no Brasil.
Durante o Imprio e a Primeira Repblica, a concepo econmica mais importante era de
que o Brasil deveria continuar a ser um pas agrcola, pois no havia interesse na indstria por
parte das elites, como fica claro pela timidez da proteo alfandegria4.
3 LESSA, Carlos. Quinze anos de Poltica Econmica no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1975, p.1 74. 4 Quando observamos a histria do sculo XIX, constata-se que, em todas as naes com xito em se industrializar, naquele momento histrico, no era possvel desenvolver o setor secundrio sem recorrer-se a uma poltica de proteo alfandegria, por trs motivos: 1. Ganhos de escala: Os pases pioneiros na industrializao, como a Inglaterra, Frana e Blgica, por j comerciarem seus produtos ao redor do mundo, terem mercados cativos e capital abundante, produziam em quantidades muitas maiores e, portanto, a preos muito mais baixos. 2. Curvas de aprendizagem: O pioneiro tambm tinha a vantagem de j possuir todo o conhecimento necessrio para produzir. Os demais retardatrios teriam de passar um tempo de aprendizagem intensiva veloz, para ter os mesmos nveis de preo e qualidade em muito menos tempo, queimando etapas. 3. Imobilidade industrial: At o final da Segunda Guerra Mundial, havia vantagens para as grandes empresas industriais manterem-se em seus locais de origem, como Lancashire, na Inglaterra, o Vale do Ruhr, na Alemanha ou a regio dos Grandes Lagos, nos Estados Unidos, pois, nesses lugares, as fbricas tinham tudo o que fosse necessrio mo: proximidade com um mercado consumidor de maior poder aquisitivo, pessoal mais qualificado, transportes navais, fluviais e ferrovirios mais eficientes e fornecedores prximos. Somente a matria-prima que precisava ser adquirida em locais distantes com custos melhores.
Houve regies industriais nos pases subdesenvolvidos que fugiam dessa regra, mas eram esparsas excees. Por exemplo, as cidades porturias, como Buenos Aires, Sydney, Bombaim, Saigon e Hong Kong. Mesmo no Brasil, tivemos empreendedores como Irineu Evangelista de Souza (o Mau) ou Lus Tarqunio. Nesse contexto, somente havia uma forma de industrializar: taxas alfandegrias elevadas aos produtos nacionais.
Essa situao somente alterou-se com a sada espontnea das grandes plantas manufatureiras dos pases centrais para a periferia, aproveitando-se da mo-de-obra barata e impostos favorveis desses ltimos. Em caso contrrio, os custos maiores e a falta de conhecimentos tcnicos impediriam a industrializao. Sobre o
11
No havia, antes da Repblica, preocupao em industrializar o pas. A elite estava
convicta da vocao agrcola do Brasil. Por isso, o pensamento econmico do Brasil, no imprio,
foi dominado pelo liberalismo econmico, cujos principais defensores eram o Visconde de Cairu
e Tavares Bastos.
Para o Visconde de Cairu (Jos Maria da Silva Lisboa), em Princpios de Economia
Poltica e em Princpio de Direito Mercantil, o livre comrcio permitiria o mximo de
prosperidade possvel. As economias dos diversos pases teriam a tendncia natural de produzir
certos tipos de produtos e, caso os pases se especializassem em suas vantagens comparativas,
haveria prosperidade para todos.
A natureza seja ela civil, csmica, fsica ou moral, seguiria uma ordem invarivel
determinada por Deus. As naes tambm ficariam melhores se aceitassem essa ordem do que
enfrent-la artificialmente. No campo do comrcio, o sistema mercantilista de monoplios
impediu a emergncia dessa ordem natural. Ou seja, o Brasil tenderia a produzir cana-de-acar e
a Inglaterra, a produo de tecidos. Se essa ordem fosse aceita, ambos seriam beneficiados. E
para que ela fosse estabelecida, seria necessrio ter liberdade em todos os campos da vida (com
exceo, claro, da escravido que, para Cairu, deveria ser mantida)5.
O Estado, nessa concepo, deveria ficar limitado administrao da justia, defesa
nacional e a manter servios pblicos.
Segundo Tavares Bastos, o Brasil no teria vocao industrial. Ir contra isso equivaleria a
uma luta contra a prpria natureza. Alm disso, no havia mercado interno suficiente. Para o
crescimento desse mercado, foram sugeridas justamente polticas em favor da agricultura:
imigrao internacional, melhoria dos transportes, livre concorrncia. Polticas, como a de
subveno companhia de navegao, de Irineu Evangelista de Souza, foram severamente
criticadas por ele. Tambm foi atacada a tarifa Alves Branco:
protecionismo do sculo XIX e da primeira metade do XX, ver a obra de LIST, Georg Friedrich. Sistema Nacional de Economia Poltica. So Paulo: Abril Cultural, 1983. 5 As idias do Visconde de Cairu eram semelhantes ao princpio das vantagens comparativas de David Ricardo, mas escritas de outra maneira. Segundo esse modelo, cada pas deveria especializar-se em produzir o que sabe fazer melhor, obtendo-se assim custos de produo menores. Para conhecer mais esse modelo, vide, SAYAD, Joo, SILBER, Simo. Noes de Comrcio Internacional. In: EQUIPE DE PROFESSORES DA USP. Manual de Economia. 3 ed. 5a. Tiragem. So Paulo: Editora Saraiva, 1998. P. 459-483, MLLER, Antnio. Manual de Economia Bsica. 1ed. So Paulo: Vozes, 2004 ou RICARDO, David. Princpios de Economia Poltica e de Tributao. 2. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1978.
12
Invocando, a seguir, a autoridade do Visconde de Cairu e trazendo
baila os velhos argumentos fisiocratas, opinava que o Brasil devia se restringir agricultura e indstria extrativa por serem, no pas, as mais racionais e lucrativas e, acreditando serem mais felizes as populaes rurais do que a urbana, aconselhvel ser mais desejvel promover a democracia rural do que aumentar a populao operria das cidades. O que, porm, os adversrios de uma poltica protecionista receavam, antes de tudo, era de que a industrializao agravasse o problema da falta de mo-de-obra e encarecesse os preos dos gneros de primeira necessidade (LUZ, 1978, p. 54)6.
Mas devemos ressaltar que havia outras barreiras industrializao, como falta de mo-de-
obra (pois o Brasil ainda era escravista), carncia de um mercado de capitais e competio com o
setor agroexportador por emprstimos bancrios.
Havia, entretanto, algum setor que era auxiliado pelo governo? Sim, as fbricas nacionais,
estabelecimentos que recebiam iseno de impostos de importao de matrias primas, existindo
desde a vinda da famlia real, em 1808. Mas eram poucas. Em 1852, segundo as estatsticas de
LUZ (1978, p. 36), havia apenas 26 delas.
A poltica econmica oscilava entre o aumento dos direitos alfandegrios, com o objetivo
de aumentar a arrecadao do governo e equilibrar as contas pblicas (pois a alfndega era uma
das principais fontes de renda do Estado) e a reduo da alquota, atendendo aos interesses dos
latifundirios, que queriam preos baixos para os insumos agrcolas e mantimentos importados.
O Tratado de 19 de fevereiro de 1810 concedia Gr-Bretanha uma taxa alfandegria
especial de 15%. Pelo Decreto de 28 de setembro de 1828, essa mesma alquota foi estendida s
mercadorias importadas de todas as demais naes.
Uma vez passado o prazo de vigncia desses acordos, houve a oportunidade de aumentar
mais uma vez os direitos. Em 1844, com autorizao da Assemblia Nacional, o Ministro da
Fazenda, Alves Branco, aumentou as tarifas aduaneiras. Pelo Decreto 376, de 12 de agosto de
1844, a maioria dos bens era taxada em 30 %. Outros, como produtos que possuam similares
nacionais ou eram gneros de primeira necessidade, tinham taxao que variava entre 2 % e 60
%, conforme o produto.
Entre 1857 e 1860, mais uma vez, as tarifas de importao foram reduzidas, com o objetivo
de baratear o acesso a gneros de primeira necessidade e implementos agrcolas. Naquele
6 LUZ, Ncia Vilela. A Luta Pela Industrializao do Brasil. So Paulo: Alfa-mega, 1978, p. 54.
13
momento, o Brasil passava por uma crise econmica grave, resultante do fim do trfico de
escravos e de epidemias (causando grande carncia de mo-de-obra), e de uma onda inflacionria
resultante da descoberta de minas de ouro na Califrnia, na Sibria e na Austrlia.
Alm da reduo das tarifas, o governo imperial procurou enfrentar a crise por meio de
outras medidas como: a) construo de estradas de ferro e de rodagem; b) implementao da
colonizao estrangeira; e c) aumento do nvel das tcnicas agrcolas. As alquotas foram
mantidas at o incio da Guerra do Paraguai, pois a prosperidade permitia uma arrecadao que
cobria os custos da administrao pblica.
Porm, a entrada na Guerra do Paraguai, em 1864, aumentou os gastos pblicos. O governo
promulgou a Lei 1507, de 29 de setembro de 1867, cobrando os direitos alfandegrios em ouro, o
que aumentava a arrecadao. A taxa mdia cresceu novamente, aumentando-se para 30%7.
Em 1869, os impostos alfandegrios ficariam ainda mais elevados, com o estabelecimento
da Tarifa Itabora, que majorava as alquotas para uma mdia de 40 % e sobretaxa de 5%. At o
fim do Imprio, as diversas leis tributrias, como a Tarifa Rio Branco (1874), a Tarifa Ouro Preto
(1880, revisada em 1887), remarcavam as alquotas at que, em 1889, na Tarifa Joo Alfredo, a
tarifa modal chegou a 48%, com exceo de gneros de primeira necessidade e matrias-primas,
cujos valores foram alterados conforme o cmbio.
Apesar desse crescimento das taxas aduaneiras, podemos verificar em LUZ (1978), que as
tarifas alfandegrias, no Brasil Imperial, tinham o objetivo primordial de arrecadar recursos para
o Estado. No protegiam a indstria nacional.
VILLELA (2005) mostrou como a proteo efetiva, no Segundo Reinado, era fraca. Por
meio de equaes economtricas, possvel ver que as tarifas no influenciavam a demanda por
bens importados. A taxa de cmbio valorizada, o crescimento do PIB real e a queda do preo dos
produtos importados evitavam que a tributao encarecesse os bens produzidos no exterior.
Aps a Guerra do Paraguai, surgiram intelectuais na elite brasileira a favor da
industrializao, como Amaro Cavalcanti, Serzedelo Correia e Joaquim Murtinho. Para eles, a
manufatura seria a nica maneira de absorver o contingente de pessoas sem ocupao definida
que estava crescendo nas principais cidades, alm de diminuir a dependncia em relao s
oscilaes dos preos do caf e da cana-de-acar no mercado internacional.
7 Cf. LUZ, 1978, p. 80.
14
Esse pensamento surgiu, na poca, em razo da preocupao com o crescimento rpido da
populao excluda do sistema econmico, alm da emergncia de uma nova classe mdia a partir
do oficialato militar da Guerra do Paraguai.
A excluso social fica clara com os dados expostos em CARVALHO (2005, p. 76): a
estrutura de classes do Rio de Janeiro, capital da Repblica, entre 1890 e 1906 tinha um topo
extremamente restrito (de banqueiros, capitalistas e proprietrios) e uma base muito ampla, em
que 50% da populao economicamente ativa no tinha ocupao definida, vivendo da economia
informal, pequenos furtos, trabalhos eventuais e comrcio ambulante. Mesmo Buenos Aires, em
1887, j tinha um amplo contingente ocupado no setor secundrio, chegando a 40,7% da
populao8.
Alm disso, a elite passou por uma sutil renovao, com o surgimento de uma classe
mdia9, graduada em escolas militares e de engenharia, que passou a contestar o domnio das
aristocracias rurais e dos bacharis em Direito e a acreditar que o pas deveria seguir outros
rumos:
Os oficiais no tinham sido recrutados da aristocracia rural, mas sim das cidades e durante a Guerra do Paraguai eles desenvolveram um ressentimento contra os bacharis10 produzidos pelas instituies educacionais tradicionais. Eles estavam insatisfeitos com sua condio e olhavam para o futuro com esperana de uma nova era. Ligados a esses tambm foi um novo grupo de engenheiros, civis que iniciaram suas carreiras como engenheiros militares ou foram treinados na Escola Central, criada em 1858, e renomeada Escola Politcnica em 1874.
Os novos interesses foram divorciados da terra e cticos dos valores aristocrticos. A completa dominao das relaes pessoais passou a enfraquecer nas cidades e nostlgicas palavras passaram a ser proferidas sobre os bons dias do passado em contraste com o que Joaquim Nabuco, em sua autobiografia, denominou o instinto mercenrio de nosso tempo. A idia de que os homens deveriam ter uma
8 Fonte: CARVALHO, Jos Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. 3 ed. 15a. Reimpresso. So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 78. 9 A sociedade brasileira, ao longo de todo o sculo XIX, foi marcada por sua imobilidade. Podemos observar essa tendncia quando se percebe que a educao, uma das possveis formas de ascenso social, era muito restrita. E qualquer posio de destaque tinha de ser obtida com base em conexes pessoais/familiares. Um Brasileiro referiu a esse fenmeno como a influncia dos sobrenomes apropriados. Outros reclamavam de homens elevados a altas posies por conexes.. Isso era to freqente que o princpio ingls de colocar o homem certo no local certo era completamente desconhecido (GRAHAM, 1972, p. 17).
A presena dessa classe mdia formada nas escolas de engenharia e que tinha atingido suas posies devido ao exrcito mostrava que, embora a idia de meritocracia ainda fosse distante, pelo menos havia um grupo social que comeava a ascender por merecimento e a colocar em questo a hegemonia da elite tradicional descendente de grandes proprietrios rurais formados em Direito e Medicina, que dominavam a administrao pblica. 10 Grifo do autor.
15
posio social conforme suas habilidades passou a receber maior aceitao (GRAHAM, 1972, p. 33)11.
Nessa situao, em que surgiam tentativas de renovao, ainda que tmidas, o liberalismo
econmico tornou-se mais flexvel, emergindo pensadores a favor da industrializao no Brasil,
a saber:
1. Felcio dos Santos: Para ele, era necessrio um protecionismo aduaneiro favorecendo
determinados setores mais apropriados realidade nacional, pois o Brasil no poderia continuar
tendo uma posio colonial perante as outras naes, alm de ter muitos recursos naturais
subaproveitados.
2. Amaro Cavalcanti: Era tambm um advogado do protecionismo, pois considerava intolervel o
desequilbrio da balana de pagamentos, alm do fato de que a indstria seria fonte perene de
riqueza, empregos e bem-estar, enquanto a agricultura era uma atividade precria e irregular
condicionada s variaes climticas e do elemento humano. Porm, ele entendia que a
participao direta do governo na economia, por meio de empresas estatais, era desnecessria.
3. Serzedelo Correia: Militar e poltico12, Serzedelo tambm defendia um protecionismo, mas
privilegiando setores de processamento de matrias-primas, como fiao a produtos acabados,
como tecelagem. Ao mesmo tempo, considerava que outras medidas tambm seriam necessrias,
como a modernizao na arrecadao fiscal, reorganizao do crdito e o desenvolvimento dos
transportes. A manufatura tiraria o Brasil da dependncia econmica em relao aos pases
centrais.
Em reao a esse grupo desenvolvimentista, emergiu um grupo de polticos nacionalistas
radicais, que rejeitavam totalmente o capital estrangeiro e a imigrao. Eles se opunham aos
11 GRAHAM, Richard. Great Britain and the Onset of Modernization in Brazil. London: Cambridge University Press, 1972, p. 33. Traduo nossa. 12 Serzedelo era o arquetpico membro de famlia pobre, mas que pde ascender socialmente por via do Exrcito. rfo aos 11 anos, alistou-se como soldado raso, mas cursou a Escola Militar da Corte com distino. Por ter feito o curso de artilharia e de Estado-maior, tornou-se professor da Escola Militar. Seu apoio poltico ao General Deodoro da Fonseca no golpe que estabeleceu a Repblica levou-o ao cargo de Ministro da Guerra. Posteriormente, foi deputado pelo Par e nomeado governador do Paran.
16
industrialistas acima discutidos, que eram a favor do investimento estrangeiro. Os mais
xenfobos eram Felisbelo Freire e Alberto Torres.
Os nacionalistas tiveram uma atuao forte quando, em 1912, o americano Percival
Farquhar investiu em grandes empreendimentos no Brasil. Ele era proprietrio da concesso da
mina de ferro de Itabira, comprou a permisso da Estrada de Ferro Madeira-Mamor e tinha
planos de construir uma ferrovia ligando o Rio Grande do Sul e So Paulo, trazendo um grande
influxo de produtos argentinos, como carne, cereais, fruta, l e alfafa.
O sucesso das empresas de Percival chocou o pas, causando uma forte reao contra as
empresas estrangeiras. Diversos editoriais foram publicados em So Paulo e no Rio de Janeiro.
Proferiram-se diversos discursos no poder legislativo contra Percival, por deputados como Rafael
Pinheiro e Maurcio de Lacerda e por senadores como Alfredo Ellis, entre outros. At mesmo o
deputado Pandi Calgeras, tradicionalmente pr-capital internacional, juntou-se ao movimento.
Acreditava-se que os estrangeiros acabariam por dominar toda a economia.
1.2 - O Incio da Industrializao no Brasil.
O perodo da Repblica Velha foi marcado por ser o incio da industrializao brasileira e,
ao mesmo tempo, resultante do acordo entre industriais e fazendeiros.
Dividiremos esse argumento em duas partes: em primeiro lugar, por mostrar como a
industrializao iniciou-se no com o governo Vargas, mas sim durante a Repblica Velha. Mais
adiante, quando for analisado o governo Vargas, mostraremos como ele foi marcado pelo incio
do planejamento para acelerar a industrializao, mas no pelo surgimento do setor
manufatureiro. Em segundo lugar, por apontar que embora a indstria tenha surgido de uma
forma espontnea e com maquinrio rudimentar, ela se ligou aos cafeicultores, pois ainda no
tinha fora poltica para defender seus interesses de forma autnoma.
Podemos encontrar traos de uma industrializao no Brasil desde o incio do sculo XX. O
primeiro ncleo fabril foi o Rio de Janeiro, seguido por So Paulo. Segundo as estatsticas de
GREMAUD, SAES E TONETO JNIOR (1997, p. 66), em 1907, 49% da produo industrial
concentrava-se nessas duas cidades, com 33 % de todas a indstrias no Rio de Janeiro e 16% em
So Paulo. J em 1920, encontramos uma concentrao maior em So Paulo: 33 % do setor
17
secundrio estavam em So Paulo e 20%, no Rio de Janeiro, perfazendo 52% do total. O aumento
da atividade industrial em So Paulo e seu declnio no Rio de Janeiro ocorreram em razo da
crise do setor cafeeiro no Vale do Paraba e da pujana deste no Oeste paulista. A elite
cafeicultora era quem fornecia o capital necessrio para as fbricas. Havia tambm fbricas em
outros lugares do Brasil, como no Rio Grande do Sul, Minas Gerais e algumas usinas aucareiras
no Nordeste.
Quais seriam os motivos dessa industrializao? Primeiro, como se pode ver em DEAN
(1971), deve-se a iniciativa de trs setores da burguesia nacional:
1. Comerciantes que fabricavam aqui os produtos de difcil importao, como pregos, caldeiras e
cerveja. Em alguns casos, eram montadas, no Brasil, sees de produtos estrangeiros. Oscar
Muller, aps a Primeira Guerra Mundial, passou a produzir tubos para os fabricantes de creme
dental.
Em geral, esses negociantes tinham posio privilegiada, pois estavam entre os poucos que
tinham conhecimento comercial prtico sobre o mercado brasileiro. Mesmo os fabricantes
independentes tinham de vender para eles, no para os varejistas. Normalmente, o crdito era
fornecido por essas casas. Muitas vezes, quando vendiam uma marca de outro pas, acabavam
obtendo licena das mesmas para produzir no Brasil.
2. Imigrantes, j dotados de experincia empresarial nos seus pases de origem, apostando no
mercado brasileiro. Entre eles, destacou-se Francisco Matarazzo, um italiano, que chegou ao
Brasil com 25 anos de idade, em 1881. Em Sorocaba, apoiado por comerciantes locais, passou a
produzir e vender banha de porco. Em 1890, mudou-se para So Paulo e estabeleceu uma casa
comercial vendendo farinha de trigo e banha. Teve grande sucesso ao montar uma fbrica de
gordura enlatada. Depois disso, partiu para novos empreendimentos em farinha de trigo, sacaria,
tecelagem e conservas. Integrou verticalmente seus negcios, ao fazer todas as etapas do processo
fabril. Tinha docas prprias, litografia para fazer os rtulos, serraria para fazer caixas e oficinas
de reparo. Tambm possuiu fazendas de cana-de-acar e de gado.
3. Cafeicultores, que procuravam formas de investir seus capitais excedentes, geralmente com o
casamento de um industrial imigrante bem-sucedido com uma filha de latifundirio do caf.
18
Tais alianas concediam benefcios mtuos: o industrial obtinha capitais para seus negcios
e status social melhorado, 13 e o cafeicultor expandia seus lucros ao ser scio dos imigrantes.
Outro fator, ainda segundo DEAN (1971, p. 252-254) seria o fim do trabalho escravo.
Como o trabalho tornava-se assalariado, as pessoas comearam a obter remunerao em dinheiro,
e essa massa monetria em circulao aumentou a demanda por mercadorias.
Um terceiro motivo seria uma macroeconomia favorvel. Para MELLO (1986, p. 107-108),
o ciclo de preos dos cafeicultores sempre favorecia o investimento na indstria. Quando o caf
estava em alta e, portanto, o mil-ris se valorizava, parte dos lucros era aplicada na indstria, pois
os bens de capital tornavam-se baratos. J quando o mil-ris era desvalorizado, os bens de
consumo tornavam-se muito caros, criando-se o espao para se produzir no Brasil os bens
importados. Isso explica porque o crescimento industrial foi relativamente constante durante a
Primeira Repblica, como mostram os dados de GREMAUD, SAES E TONETO JNIOR (1997
p. 75). Entre 1912 e 1920, o valor das exportaes de caf oscilou muito. De um ndice 100 em
1912, chegou a cair para 62,7 em 1914 e a subir para 157,3 em 1919. J a produo industrial
teve crescimento constante. Passou de 100, em 1912, para 147, 2 em 1920.
O valor da produo total de So Paulo era de 110.000 contos de ris, sendo 189.000 contos
em 1910 e 274.000 em 1915, mas sofreu uma estagnao entre as dcadas de 1920 e 194014.
Segundo as estatsticas de LUZ (1978), os ativos das empresas, formados entre 1888 e
1889, atingiam 402.610.000$000, enquanto nos sessenta e quatro anos anteriores, era um valor
quase equivalente, de 410.879.000$000. Houve uma especulao desenfreada com o surgimento
de empresas de toda sorte, que pediam todo tipo de auxlio do governo. Mas, em 1892, estas
empresas j estavam falidas.
VILLELA e SUZIGAN (1973) encontraram momentos de crise cambial e dficit fiscal ao
longo da Repblica Velha. Por exemplo, nos perodos de 1898 a 1900 e de 1914 a 1917, houve
queda nos valores das exportaes de caf e conseqente aumento das taxas de cmbio. Ao
mesmo tempo, o Estado precisava pagar a dvida externa e, portanto, aumentar a arrecadao. O
principal gerador de tributos, ao longo da Primeira Repblica, ainda era a aduana. Em 1908,
13 Os empresrios estrangeiros eram vistos com desdm pelo restante da elite, pois no tinham sobrenomes tradicionais. Os italianos, por exemplo, tinham o apelido depreciativo de carcamanos. Por isso, tentaram obter prestgio casando as filhas com as famlias cafeeiras. Eduardo Prado casou-se com Renata Crespi, filha de Rodolfo Crespi. J Filomena Matarazzo, neta do patriarca Francisco Matarazzo, casou-se com Joo Lage, em 1945, como mostrado por DEAN (1971), numa cerimnia extremamente luxuosa, denominada de casamento do sculo. 14 Cf. DEAN, 1971, p. 91.
19
ainda segundo VILLELA e SUZIGAN (1973, p 40), essa era a fonte de 70 % da receita
governamental. Assim, a tendncia era de sempre elevar as tarifas alfandegrias. Embora essa
no fosse a inteno, o valor elevado dessas tarifas acabava tendo efeito protecionista. Ao mesmo
tempo, os momentos de queda do preo do caf no mercado externo causavam carncia de
divisas, deixando o pas sem capacidade de importar.
A histria do incio do sculo XX evidencia no s uma oposio entre os cafeicultores e
industriais, mas uma aliana, por via de casamentos ou por troca de favores. Normalmente,
durante a Primeira Repblica, os fazendeiros eram mais fortes, pois traziam as divisas em moedas
estrangeiras, ao exportar caf, alm de dominarem a poltica, via controle do clientelismo
eleitoral. Desde 1916 at o final da Repblica, as classes produtoras apoiaram todos os
candidatos a governador de So Paulo, entre 1916 e 1930. Altino Arantes expulsou os
agitadores trabalhistas e tanto Washington Lus quanto Jlio Prestes intercederam em favor dos
fabricantes, s custas dos importadores. Os industriais no formavam a vanguarda do
reformismo poltico nem na ambiciosa classe mdia; ao contrrio, eles identificavam-se com a
situao e tudo o que ela supunha (DEAN, 1971, p. 151)15. Os principais rivais dos industriais
eram os importadores, no os plantadores de caf.
Mesmo assim, ao longo da Repblica Velha, encontram-se os primeiros sinais de atividade
das associaes de empresrios industriais, como a criao da CIFTSP (Confederao das
Indstrias de Fiao e Tecidos de So Paulo), liderada por Roberto Simonsen.
1.3 - O Incio do Planejamento Governamental.
O primeiro governo de Getlio Vargas, de 1930 a 1945, foi um marco para a idia de
planejamento. Foi nesse momento que o Estado passou por um processo de racionalizao que
resultaria posteriormente no controle administrativo das principais reas da economia.
Foi em seu governo que o nmero de instituies passou a proliferar dentro do Estado
Brasileiro: Em 1938, foi criado o DASP (Departamento Administrativo do Servio Pblico) e,
logo no ano de 1939, surgiu o Plano Especial, o primeiro oramento separado com o objetivo de
modernizar a infra-estrutura.
15 DEAN, Warren. A Industrializao de So Paulo (1880-1945). So Paulo: DIFEL, EDUSP, 1971, p. 171.
20
Assim, a histria permite descartar dois achismos, ditos muito freqentemente, acerca desse
momento da histria, a saber: 1) que, no governo Vargas, o Brasil passou de agrcola para
industrial ou 2) de que Vargas conseguiu, devido vontade poltica e a uma suposta viso
iluminada do futuro do Brasil, derrubar as oligarquias cafeeiras retrgradas que impediriam o
desenvolvimento industrial.
O primeiro pode ser rebatido pelo fato de o Brasil j estar em fase de industrializao no
incio do sculo XX, como vimos, ainda que pouco incentivada por medidas governamentais.
Porm, embora o Brasil j tivesse algumas indstrias, a poltica governamental de queima
do caf durante a Grande Depresso acelerou o processo. Segundo FURTADO (1987), como a
oferta de caf no mercado internacional foi reduzida, os preos caram menos do que aconteceria
sem a queima. A renda nacional foi pouco reduzida, mantendo-se a demanda. Ao mesmo tempo,
embora houvesse procura por bens e servios, no havia produtos importados disponveis, pois a
queda das exportaes causou carncia de divisas. Em outras palavras, havia consumidores
nacionais, mas no como satisfaz-los. Assim, surgiram amplas oportunidades para as
manufaturas brasileiras. Tratava-se do processo de industrializao com substituio de
importaes, pois foi motivada pelas restries do setor externo.
O Brasil recuperou-se rapidamente da Grande Depresso, segundo as estatsticas de
GREMAUD, SAES E TONETO JNIOR (1997 p. 173). Em 1933, os indicadores de produo
industrial j tinham recuperado os mesmos nveis anteriores a 1929. As falncias de fbricas dos
pases centrais tambm permitiam que fossem adquiridos mquinas e equipamentos importados
usados com preos muito baixos.
O segundo refutado ao observarmos que Getlio Vargas foi Ministro das Finanas do
governo Washington Lus, de fazer parte das oligarquias gachas (portanto, recebendo apoio
federal por meio da poltica dos governadores).
Como exps FAUSTO (1972), havia apoio poltico das elites cafeicultoras e dos
empresrios industriais, como Roberto Simonsen, que fizeram acordo com os antigos membros
do Partido Republicano Paulista para colocar Vargas no poder.
Embora no seja possvel entender Getlio Vargas como opositor radical da Repblica
Velha nem seu governo como divisor de guas na economia brasileira, da agricultura para a
indstria, podemos observar, a partir do Estado Novo, uma clara tendncia racionalizao do
Estado e a mudanas profundas em sua configurao, com o objetivo de modernizar a economia.
21
Getlio Vargas destacou-se por atender a reivindicaes de grupos diversos ao mesmo
tempo, sem dar a nenhum deles o domnio completo do Estado. Roberto Simonsen chegou a ser
chamado pelo presidente para apresentar um projeto nacional de desenvolvimento, mas que foi
derrubado pelo Relatrio Gudin, na conhecida controvrsia Simonsen-Gudin.
Em 1930, no havia ainda um sistema nacional de administrao pblica, mas sim alguns
ministrios e rgos que cuidavam de setores especficos, como a Superintendncia de Defesa da
Borracha, criada em 1912. As estatsticas eram todas feitas pela empresa Hollerith, de Valentim
Bouas, representante da IBM no Brasil. Mas, ainda no governo provisrio, esse quadro passou a
mudar:
No governo provisrio, a necessria organizao burocrtica do aparelho de Estado e a centralizao do poder poltico nas mos de Vargas funcionavam de maneira complementar. No aspecto organizao, durante o ano de 1931 foram criados: o Ministrio do Trabalho, os servios de estatstica em vrios ministrios, o Conselho Nacional do Caf, a Comisso de Estudos Financeiros e Econmicos de Estados e municpios, a Carteira de Cmbio do Banco do Brasil, com monoplio na compra de letras de importao, o Instituto do Cacau da Bahia. No captulo centralizao, no mesmo perodo, foram adotadas as seguintes medidas: um nico decreto aposentou seis ministros do STF, foi criado o Departamento Oficial de Publicidade, semente do DIP, o Cdigo dos Interventores, e a instncia da justia extraordinria evoluiu, do Tribunal Especial, criado em 1930, para a Junta das Sanes, a 28 de maro, e para a Comisso de Correio Administrativa a 21 de setembro. (BALESTRIERO, 1996, p. 21).16
O Brasil precisava ser reconstitudo em novas bases, planejadora na economia, autoritria e
corporativista na poltica. Entre seus principais defensores, estavam intelectuais como Oliveira
Vianna, Francisco Campos, Plnio Salgado e Azevedo Amaral.
Para esses, os liberais criaram uma concepo idealizada do Brasil e criaram um arcabouo
jurdico e poltico de acordo com ela (Brasil legal). Mas esse modelo ignorava os reais problemas
do pas: misria, coronelismo, falsa democracia, ignorncia do povo e atraso econmico (A
verdadeira situao da nao eles denominavam o Brasil real).
O liberalismo e as oligarquias representavam o status quo de uma concepo que impedia
o progresso do Brasil, pois era oligrquica, localista e de mentalidade tradicional. Para sair dessa
situao, a sociedade brasileira deveria ser colocada sob controle do Estado.
16 BALESTRIERO, Geraldo. Gnese do Planejamento Econmico no Brasil. Tese de Doutoramento apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria Econmica da Universidade de So Paulo. So Paulo: 1996, p. 21.
22
Este centralizaria o poder, criando um Executivo forte para romper com a poltica
oligrquica e localista. Por outro lado, o Estado passaria por um processo de racionalizao. As
decises no deveriam mais ser polticas, que sempre eram vistas como parciais e
retrgradas, mas sim tomadas com base cientfica, para definir planos bem elaborados sobre
como restaurar a economia. Alm disso, a sociedade estava tornando-se complexa demais, sendo
preciso colocar tcnicos devidamente preparados para dirigir o pas.
O primeiro documento, que analisou a economia brasileira como um todo e defendeu um
maior papel do Estado na economia, foi o Relatrio Niemeyer, em 1931. Otto Niemeyer foi
convidado pelo governo a propor solues para o Brasil superar a Grande Depresso.
Em seu relatrio, Niemeyer defendia que o Brasil deveria diversificar as exportaes de
produtos agrcolas, com o objetivo de ser menos dependente do caf e de suas flutuaes. O caf
era responsvel por 70% das exportaes e 10% do PNB brasileiro em 193017. A partir de ento,
os recursos obtidos pela venda de produtos agrcolas deveriam ser carreados para a criao de
novas indstrias.
Getlio Vargas foi centralizando o poder, retirando a independncia dos governos
estaduais. Por exemplo, eles no podiam mais negociar emprstimos diretamente no exterior. No
lugar dos governadores, foram colocados interventores, nomeados diretamente pelo Presidente
da Repblica. Os cafeicultores receberam ateno especial com polticas direcionadas para
garantir os seus lucros, como a poltica de queima do caf. Porm, perderam boa parte do poder
poltico.
Ainda durante o governo constitucional, surgiu uma instituio de grande importncia para
a criao do aparelho planejador, que foi o Conselho Federal de Comrcio Exterior (CFCE),
criado pelo Decreto 24.429, de 20 de junho de 1934. Ele tinha a funo original de organizar o
comrcio internacional, mas acabou por exceder-se e passou a ser um grande agente controlador
da economia. Nesse momento, o discurso de abertura dos trabalhos do CFCE j mostrava o
carter desenvolvimentista do governo:
Em sua instalao, a 6 de agosto de 1934, Vargas discursou condenando a maneira pela qual os governos anteriores procuravam resolver os problemas do comrcio exterior do Brasil, adotando frmulas empricas, adotando mtodos apriorsticos e sem base na realidade. Pregou a vantagem de um rgo centralizador, para onde
17 Cf. BAER (1996, p. 50),
23
convergissem e de onde irradiassem todas as medidas de estmulo e defesa de nossa produo e da sua colocao nos mercados nacionais e estrangeiros. Afirmou, finalmente, que a situao de crise no pas impunha ao governo o dever precpuo de organizar a economia brasileira, aumentando, dentro do territrio nacional e no estrangeiro, o escoamento dos nossos produtos18 (FONSECA, 1989, p. 206).
Esse conselho tornou-se muito poderoso, porque tinha participao de vrios membros das
associaes industriais (ento conhecidas como associaes de classes produtoras).
Esses empresrios, membros do CFCE, acabaram por deliberar em reas de competncia
to diversas como comrcio exterior, poltica econmica, agricultura, indstria, extrao vegetal,
transportes e eletricidade.
Outra importante agncia do governo Vargas foi o DASP (Departamento Administrativo
do Servio Pblico), instalado em 1938. Tinha grande poder sobre a administrao pblica, pois
era o rgo responsvel por elaborar as regras de funcionamento dos diferentes setores da
administrao. As duas regras mais importantes foram: a) a obrigatoriedade de recrutar os
funcionrios efetivos por meio de concurso pblico; e b) a avaliao padronizada de desempenho
do funcionalismo. Ao DASP tambm competia elaborar o Oramento Geral da Unio, assessorar
o Presidente da Repblica em relao aos projetos de lei e uniformizar o material utilizado nas
diversas reparties. Havia tambm os daspinhos com o objetivo de fazer a mesma
racionalizao administrativa em nvel estadual, assumindo um papel de super ministrio.
Em 1939, o DASP elaborou e colocou em prtica o Plano Especial de Obras Pblicas e
Reaparelhamento da Defesa Nacional. Esse tinha carter qinqenal, de 1939 a 1944. E tinha
carter militar, como podemos observar pelo oramento deste, privilegiando os ministrios da
Guerra, de Viao e a siderurgia. Do total a ser gasto, 57,97% da verba era dirigida aos
ministrios militares; 6,58%, a siderurgia; 4,2%, ao Ministrio da Agricultura; e 2,11%, ao da
Justia.
A receita prevista era de 3 milhes de contos de ris (mas que foi superada em 2,1%).
Desse montante, 59,46% do valor foi obtido via imposto sobre transaes cambiais; 23,25% de
lucros de operaes financeiras especiais do Tesouro; 7,10% de Obrigaes do Tesouro; 2,52 de
juros da conta especial de depsito do Banco do Brasil; 1,95% de cambiais produzidos de
18 FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: O Capitalismo em Construo (1906-1954). 1ed. So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 206.
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remessa de ouro para o exterior. Essa receita foi adicionada de 162 mil contos de indenizaes
no previstas19.
O Plano Especial foi inovador por ser o primeiro plano geral para a atividade produtiva
brasileira. Ele definiu claramente a origem dos recursos a serem dispendidos, embora no fosse
muito claro quanto s atividades em que seriam utilizados. Apenas definiu os rgos estatais
responsveis por administrar as verbas. Na realidade, era um oramento especial com o objetivo
de resolver os problemas urgentes de abastecimento causados pela guerra.
Em dezembro de 1943, o presidente da Comisso do Oramento, Lus Simes Lopes,
props que o Plano Especial fosse continuado para depois de 1944. O Plano de Obras e
Equipamentos (POE) tinha como objetivo continuar o Plano Especial e ganhou fora de lei pelo
decreto de Getlio Vargas, em 29 de dezembro de 1943.
O POE diminua, muito, os gastos militares em relao ao Plano Especial, tornando-se um
plano de obras e equipamentos. Conforme BALESTRIERO (1998, p. 34), a maior parte das
despesas do POE era voltada ao Ministrio da Viao, no mais s pastas militares, significando
um grande aumento das obras de transporte. O POE foi abortado em 1946, devido mudana de
prioridades do governo Dutra.
No final do primeiro governo Vargas, houve a conhecida controvrsia entre Roberto
Simonsen e Eugnio Gudin sobre o planejamento brasileiro. Gudin era contra, Simonsen a favor.
O texto inicial do debate foi apresentado, em agosto de 1944, ao Conselho Nacional de
Poltica Industrial e Comercial (CNPIC). Depois, o Relatrio de Gudin foi Comisso de
Planejamento Econmico, com uma rplica de Simonsen e uma trplica de Gudin. A Segunda
Guerra Mundial aproximava-se do final.
O Ministro do Trabalho, Indstria e Comrcio, Alexandre Marcondes Filho, props ao
Conselho Federal do Comrcio Exterior a formao de uma nova comisso, a Comisso Nacional
de Poltica Industrial e Comercial, a CNPIC, subordinada ao Ministrio do Trabalho, Indstria e
Comrcio, que tivesse o objetivo de gerar um plano geral sobre toda a economia. Ele acabou
sendo institudo, pelo Decreto-Lei 5892, de 10 de novembro de 1943.
A CNPIC tinha seis representantes dos ministrios, alm de mais quatro das associaes
industriais. Os seguintes membros representavam os industriais: Euvaldo Lodi, Braslio
Machado, Joo DAudt de Oliveira e Roberto Simonsen. O presidente da Repblica indicou os
19 Cf. BALESTRIERO (1998, p. 30).
25
seguintes membros: Ari Torres, Berto Conde, Joo Pinheiro Filho, Oton Lynd Bezerra de Melo e
Francisco Clementino de San Tiago Dantas.
A realizao mais importante do CNPIC (que era subordinado ao Ministro do Trabalho,
enquanto o CFCE reportava-se ao Presidente da Repblica) foi o Relatrio Simonsen. Em seu
relatrio, Roberto Simonsen propunha reformas que desenvolvessem a agricultura, a indstria e o
comrcio, apoiado numa coordenao governamental. Foram citados vrios problemas j
descritos pela Misso Cooke, como a carncia de transportes, energia, capitais e mo-de-obra
especializada. Simonsen ainda alegava a necessidade de um banco de investimentos, que fizesse
financiamentos de longa durao, tambm apontada pela Misso Cooke. Era o incio da
controvrsia sobre o planejamento na economia brasileira.
Logo que o CNPIC foi formado, em 1944, uma de suas primeiras preocupaes foi a
definio de linhas gerais para uma poltica industrial e comercial. Roberto Simonsen, na poca
o principal lder dos industriais, apresentou um relatrio com sugestes sobre como criar um
plano geral para a economia brasileira, com base nas escassas estatsticas disponveis na poca.
Esse relatrio recebeu o ttulo de A Planificao da Economia Brasileira.
Simonsen, no desenvolvimento de seu relatrio, seguiu a direo apontada pelo 1o.
Congresso Brasileiro de Economia, realizado no Rio de Janeiro, em 1943. Citando a Misso
Cooke, mostrou que a indstria seria a nica forma de gerar progresso para todos. A renda
nacional seria (conforme os dados deficientes do Ministrio do Trabalho de ento, que levou
Eugnio Gudin a contestar a sustentao tcnica do relatrio) muito pequena, de
aproximadamente 160 bilhes de cruzeiros, 25 vezes menos que a dos Estados Unidos, e a
populao estaria crescendo continuamente, sem oportunidades de trabalho. Alm disso, haveria
a reivindicao de direitos econmicos essenciais, devido ao desejo de um padro de vida mais
elevado. No haveria forma de cresc-la simplesmente com o livre mercado. Para Simonsen,
seria necessrio planificar a economia, com base nas experincias da Unio Sovitica e da
Turquia, que ele considerava positivas.
Ele defendeu que o plano deveria contemplar a eletrificao, a moderna agricultura,
reorganizao do sistema de transportes, melhorando-se, assim, a infra-estrutura. Haveria
financiamentos para fbricas em setores-chave, como metalurgia e qumica e criao de escolas
tcnicas.
26
Mas, de que fontes surgiriam os recursos necessrios? O programa seria iniciado com o
emprego de pelo menos 50% das reservas brasileiras no exterior e seriam pedidos diversos
financiamentos aos Estados Unidos. Quanto ao grau de interveno estatal, bastaria o governo
discutir a questo com as entidades de classe. Resumindo, as idias principais do Relatrio
Simonsen seriam:
1. A renda nacional muito baixa.
2. Seria necessrio quadruplic-la em curto prazo.
3. O setor privado e o mercado no seriam suficientes para haver esse crescimento.
4. O governo deveria promover um processo de guerra econmica.
Depois, o relatrio foi discutido no plenrio do CNPIC e o processo, encaminhado a uma
comisso, especialmente constituda, composta pelos ministros Euvaldo Lodi, Joo Daudt de
Oliveira, Heitor Grillo e Santiago Dantas.
Esse grupo entendia a necessidade do planejamento, pois combateria o pauperismo, alm de
ser ideologicamente neutro, podendo ser feito mesmo dentro do capitalismo e da democracia.
Tambm foram discutidos nessa comisso os rgos de planificao. Propunha-se um conselho
superior, com a participao de ministros e Chefes do Estado Maior das Foras Armadas. Este
seria subordinado somente s grandes diretrizes nacionais, que se transformariam em termos
tcnicos.
O presidente Vargas encaminhou o processo para a Comisso de Desenvolvimento, onde
recebeu a opinio de Eugnio Gudin, ento presidente desse Conselho, que lhe respondeu, em
23 de maro de 1945, com o texto Rumos da Poltica Econmica.
Citando o Relatrio Simonsen, Gudin mostrou como o clculo de Simonsen acerca da renda
nacional carecia de fundamentao tcnica confivel. Essa crtica foi ampla, abrangendo desde o
conceito de renda at os detalhes dela decorrentes, criticando o trabalho de Simonsen por ter
muitas falhas metodolgicas.
27
O desenvolvimento veloz da URSS foi s custas de um nvel de vida baixssimo dos
trabalhadores, totalitarismo e da falta de liberdade de escolha da profisso. O Decreto da URSS
de 10 de julho de 1940 estabelece a pena de 5 a 8 anos de priso para os chefes, engenheiros ou
tcnicos responsveis pela simples ineficincia da produo. (SIMONSEN E GUDIN, 1977, p.
72).20
O planejamento, para Gudin, era visto como um desvio perigoso e resultante de uma
mstica de plano, desenvolvida pelo New Deal e por interesses reacionrios. Para ele, o Estado
deveria fazer as regras, mas no jogar. A atuao governamental deveria restringir-se a:
1. Privatizao das empresas na mo do Estado.
2. Legislao de defesa da concorrncia.
3. Criao do Banco Central para controlar a emisso monetria e evitar a inflao.
4. Igualdade de tratamento legal para as empresas nacionais e estrangeiras.
5. Tarifas aduaneiras temporrias, mas que posteriormente possam viver sem a proteo.
6. Abertura de escolas tcnicas.
A administrao estatal na economia encontraria terreno favorvel em, aproximadamente,
trs atores polticos principais, para Gudin: a) os comunistas (por conduzirem socializao dos
meios produtivos); b) os burocratas (pelo interesse em aumentar sua esfera de poder); e c) os
interesses reacionrios (que lucrariam com a eliminao da liberdade de competio e com o
sacrifcio dos consumidores).
Roberto Cochrane Simonsen respondeu s criticas de Gudin com o artigo O Planejamento
da Economia Brasileira. Em seu artigo, Simonsen resumia o seu primeiro texto e reforava-o
com argumentos a favor do planejamento. Segundo ele, aps a Segunda Guerra Mundial, seria
20 GUDIN, Eugnio; SIMONSEN, Roberto Cochrane. A Controvrsia do Planejamento na Economia Brasileira. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1977, p. 72.
28
necessrio substituir a economia de mobilizao por outra forma de planejamento para evitar uma
crise de propores assustadoras. E isso seria compatvel com uma economia capitalista. A
experincia sovitica traria coisas diferentes, historicamente entrelaadas. O planejamento seria
politicamente neutro, tanto que Estados Unidos e Inglaterra praticaram-no mesmo antes da
Grande Depresso dos anos 30:
O governo norte-americano interveio desde 1887 no campo industrial, criando a Interstaste Commercial Commission, para fiscalizar a poltica ferroviria. Mais tarde, a Federal Power Commission e a Federal Communication Commision passaram a controlar os servios de transporte sobre gua, os oleodutos, as empresas de eletricidade, telgrafo, telefone e rdio. E, no entanto, o Sr. Gudin, pg. 47, diz que ali ainda se cogita da criao de um rgo semelhante ao nosso Conselho de guas e Energia Eltrica.
O Public Utility Holding Company Act legisla sobre as holdings, cujo registro obrigatrio na Security and Exchange Commission, que exerce o controle sobre as organizaes financeiras. A Lei Sherman representa a interveno do Estado em relao a trusts e monoplios. E a Federal Trade Commission foi criada para tornar efetiva essa ao.
Em 1933, o NIRA representou a interveno mxima nas indstrias, com o intuito de proporcionar trabalho aos desempregados, incrementar o poder aquisitivo das massas e abolir a concorrncia desleal, mediante atos de planejamento industrial. (GUDIN; SIMONSEN, 1977, p. 184).21
Empresas estatais seriam perfeitamente compatveis com a iniciativa privada e com a
liberdade individual. Sem protecionismo, os pases hoje de Primeiro Mundo no teriam se
industrializado. As tarifas protecionistas adotadas por mais de 120 anos nos Estados Unidos
nada mais foram do que um instrumento de planejamento, almejando a larga intensificao de sua
grandeza (SIMONSEN E GUDIN, 1977, p. 182).22
A rplica de Simonsen desvia-se para o campo pessoal, pois acusava Gudin de agredir
insolitamente o modesto autor do relatrio. (Simonsen e Gudin, 1977 p. 157).23
Eugnio Gudin respondeu a Simonsen com a Carta Comisso de Planejamento. Nessa
carta ele reafirmou a crtica ao conceito de renda nacional, aponta o risco do governo, aps a
guerra, de prorrogar a situao excepcional de economia de mobilizao e nega a acusao de
21 GUDIN, Eugnio; SIMONSEN, Roberto. Controvrsia Sobre o Planejamento na Economia Brasileira. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1977, p. 184. 22 Ibid, p. 182. 23 Ibid, p. 157.
29
Simonsen de que estaria movendo guerra indstria nacional. As Federaes Industriais, sim,
teriam interesse em causar confuso para manter o protecionismo e assim atingir lucros
astronmicos com a remoo da competio.
1.4 - O Papel das Comisses Norte-Americanas no Desenvolvimento Brasileiro.
A Misso Cooke foi a primeira visita tcnica norte-americana no Brasil, ocorrida em 1942,
com o objetivo de estudar a economia brasileira e propor solues para desenvolver seus setores
principais.
Ela foi criada por duas razes, a saber: 1) preparar o Brasil para a participao na Segunda
Guerra Mundial e 2) aproximar o Brasil da esfera de influncia norte-americana.
A misso escreveu seu relatrio apenas alguns meses antes da entrada do Brasil no
confronto blico. No final de 1941, as tropas norte-americanas estacionavam no Nordeste, antes
mesmo da permisso brasileira, como afirmou FAUSTO (2001, p. 211). Ou seja, o governo
norte-americano j pressupunha a participao do Brasil na guerra e a necessidade de se propor
medidas para montar uma economia voltada mobilizao.
Mas, para participar de uma disputa blica com a escala da Segunda Guerra Mundial, era
necessrio que o pas planejasse uma infra-estrutura industrial compatvel com o esforo de
mobilizao. Era necessrio fazer crescer rapidamente a produo de combustveis, produtos
qumicos (principalmente cido sulfrico e soda custica), txteis e mesmo caf solvel. Os
transportes areos, navais e as estradas deveriam permitir um deslocamento gil de tropas e
insumos. Aqui temos o primeiro motivo da Misso Cooke: fazer do Brasil uma pea integrante
dos Aliados.
No relatrio A Misso Cooke no Brasil, h freqentes menes a uma futura
mobilizao. Na pg. 61, acerca do Rio So Francisco, importante fazer alteraes no sistema
de transporte por razes estratgicas: O Brasil deve afastar das regies costeiras no apenas sua
populao como alguns empreendimentos necessrios guerra. (FUNDAO GETLO
VARGAS, 1949, p. 61).24
24 FUNDAO GETLIO VARGAS. A Misso Cooke no Brasil. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1949, p. 61.
30
A misso foi liderada por Morris Cooke, assistidos pelos seguintes tcnicos norte-
americanos: Charles Bonillo, James Boyle (Secretrio Executivo), Judson Dickerman, Corwin
Edwards (Chefe do Pessoal), Frank Hudson, William Kemnitzer, William Lichtner (Chefe dos
Tcnicos), Joseph Rothmeyer, Alex Tennant, Kenneth Watson (Representante do Conselho de
Produo) Donald Woodard e Raymond Hall (Assistente Administrativo).
O relatrio da Misso Cooke apresentou as deficincias setoriais da economia brasileira e
monografias sobre como melhorar esses setores. As reas discutidas foram: uso de avies de
carga, transportes, combustveis, petrleo, eletricidade, txteis, papel, minerao, qumicos,
educao, equipamento eltrico, mobilizao e traduo de obras tcnicas norte-americanas.
Todos esses setores eram de dimenses muito diminutas para o Brasil ajudar na
mobilizao militar. As viagens na Amaznia, que normalmente duravam mais de dois meses,
poderiam ser feitas em alguns dias, caso o transporte de barcos fosse substitudo pelo planador.
Isso era importante para poder transportar vrios minerais estratgicos, como mica, titnio e
quartzo, cujas reservas encontravam-se floresta adentro.
As ferrovias precisariam de urgente reforma, como bitolas nicas, substituio dos
dormentes e aumento dos carregamentos mdios. O material rodante que se mantinha em
operao mesmo depois de ultrapassada sua vida til precisaria ser transformado em sucata,
devido escassez de metal, e substitudo por vages novos.
Quanto aos combustveis, seria essencial diminuir a dependncia de carvo estrangeiro e
petrleo (esses itens eram ento predominantemente importados). Motivar-se-ia a gerao de
eletricidade com a volta de permisso das empresas privadas estrangeiras para construo de
novas usinas e correo das tarifas.
Em relao s indstrias de consumo, seria necessrio aperfeioamento tcnico,
m