a indisciplina e a violÊncia escolar adriane vasti
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A INDISCIPLINA E A VIOLÊNCIA ESCOLAR
Adriane Vasti Gonçalves NEGRÃO1 José Luiz GUIMARÃES2
Resumo: Este artigo apresenta os resultados do projeto de pesquisa intitulado “Violência e Indisciplina Escolar: Uma Análise Institucional em Busca de Alternativas”, desenvolvido durante o ano de 2004, numa Escola da Rede Pública Estadual de Ensino na cidade de Assis. Nesta escola, a exemplo do que tem acontecido na Educação, de maneira geral, constatou-se como uma de suas principais queixas, o problema da violência e indisciplina escolar, sendo estas consideradas como importantes empecilhos para o processo de ensino-aprendizagem. Durante a realização da pesquisa, buscou-se a identificação de elementos que permitissem a compreensão das implicações institucionais, com o objetivo de perceber o aparelho escolar enquanto um organismo social. A partir de sessões de observação e entrevistas realizadas com alunos, professores e coordenadores, investigaram-se as concepções dominantes de autoridade e poder para, desta forma, analisar os conteúdos das práticas institucionais que pudessem estar relacionadas à violência e à indisciplina escolar.
Palavras-chave: ambiente escolar; violência; indisciplina; professores; alunos.
Revisitando Conceitos
Atualmente, as diversas modalidades de violência engendradas na sociedade
atingem, além dos espaços privados, àqueles de domínio público. Os efeitos desta violência
acabam por afetar praticamente todos os contextos institucionais, entre eles, a escola.
Ao estudarmos questões referentes à díade violência/indisciplina, circunscrita aos
estabelecimentos escolares formais, procuramos ter como um dos pontos de orientação um
conceito ampliado de violência, visto que esta tradicionalmente é percebida preferencialmente
enquanto danos físicos e materiais. O conceito de violência oferecido por Chauí (1985) é bastante
abrangente, sobretudo ao ser utilizado na análise de instituições:
Entendemos por violência uma realização determinada das relações de forças, tanto em termos de classes sociais, quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. (CHAUÍ, 1985, p. 35).
1 Aluna do Curso de Psicologia da FCL – Assis/UNESP e pesquisadora do Núcleo de Violência e Relações de Gênero, da mesma
instituição. 2 Assistente Doutor do Curso de Psicologia da FCL – Assis/UNESP, Vice-coordenador do Programa de Pós-graduação em Psicologia e
do Núcleo de Violência e Relações de Gênero, da mesma instituição.
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Julgamos importante o estudo e reflexão sobre o fenômeno da violência/indisciplina
escolar de forma simultânea, pois ambos conceitos parecem estar entrelaçados, segundo a
percepção de grande parte dos educadores. E mesmo na literatura especializada, há divergências
quanto à conceituação e diferenciação dos termos.
Abramovay e Ruas (2003) apontam que um dos fatores que dificulta a análise da
violência escolar é que não existe consenso sobre o significado da violência. A caracterização da
violência pode variar em função do estabelecimento escolar, bem como por quem é descrita, se
por professores, alunos, diretores, etc, havendo, também,variações em função da idade e sexo.
Silva (2003), ao definir indisciplina escolar, afirma que todas as vezes que um aluno
desrespeita as regras da instituição é considerado indisciplinado. Ainda para este autor, a violência
é considerada também uma forma de indisciplina, a mais preocupante na atualidade.
Segundo Charlot (1997), o conceito de violência escolar pode ser classificado em
níveis. No primeiro deles, estaria a violência propriamente dita, cuja definição mais se aproxima
daquela do senso comum, representada por golpes, ferimentos, violência sexual, roubos, crimes,
vandalismo, etc. O segundo nível seria o das incivilidades, cuja forma de expressão seriam as
humilhações, as palavras grosseiras, a falta de respeito, etc. Finalmente, no terceiro nível,
teríamos a violência simbólica ou institucional, compreendida como a falta de sentido de
permanecer na escola por tantos anos; o ensino como um desprazer, que obriga o jovem a
aprender matérias e conteúdos alheios aos seus interesses; as imposições de uma sociedade que
não sabe acolher os seus jovens no mercado de trabalho; a violência das relações de poder entre
professores e alunos. Igualmente, também é a negação da identidade e da satisfação profissional
dos professores, a obrigação de suportar o absenteísmo e a indiferença dos alunos.
La Taille (2002) referindo-se ao conceito de indisciplina, toma-o como sinônimo de
moral, sendo esta o respeito pelas leis que são consideradas obrigatórias. Logo, se disciplina
significa respeito às leis, podemos concluir que indisciplina, corresponde justamente à
desobediência das leis (ou regras). Esta definição de indisciplina está em conformidade com
grande parte do que pensam e dizem os professores.
No livro Violência nas Escolas (ABRAMOVAY e RUA, 2003), que traz o
mapeamento do fenômeno da violência escolar em treze capitais brasileiras, o conceito de
violência é utilizado de forma bastante abrangente pelas autoras. Entre outras formas de violência,
discorrem sobre aquela que é praticada contra a pessoa, incluindo aí as questões de gênero e
racismo. É uma demonstração de que o fenômeno começa a ser analisado além de suas
demonstrações físicas.
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Ainda que haja significativas diferenças entre autores de diversos países e de
conceituação, podemos perceber que existe um consenso no que tange às causas, sendo estas
consideradas multifatoriais, tratando-se de um verdadeiro sincretismo causal. Justamente por ser
caracterizado por sua complexidade, o fenômeno da violência e indisciplina escolar requer,
portanto, estudos interdisciplinares que se proponham a buscar possíveis alternativas, bem como
a compreensão de questões com as quais tenha alguma interface.
Aquino (1996a) ao tratar o assunto, aponta que “um olhar sócio-histórico, tendo
como um apoio os condicionantes culturais, poderá desenhar novas configurações, caracterizando
o problema enquanto interdisciplinar, transversal à Pedagogia e devendo ser tratado por um maior
número de áreas em torno das ciências da educação” (p.41).
Atualmente é possível encontrarmos um aumento no número de pesquisas sobre o
fenômeno da violência. Contudo, Sposito (2002) afirma que mesmo após o advento da
democratização do país, quando o tema alcançou o debate público, a quantidade de produção
científica ainda é incipiente e apenas nos últimos anos é que ela tem sido fomentada, sobretudo
nas instituições de ensino superior e em algumas organizações não governamentais.
Ao considerarmos a transversalidade que perpassa o fenômeno violência/
indisciplina escolar, acreditamos que a Psicologia, a qual detém como uma de suas contribuições
vitais a compreensão das relações humanas, pode se constituir num campo de conhecimento que,
ao dar voz à instituição, pode potencializar a busca de dispositivos eficientes e viáveis.
Vejamos o que nos diz Guirado (1987) ao refletir sobre a questão do objeto e da
especificidade do trabalho institucional do psicólogo:
(...) o papel do psicólogo define-se como o de mobilizar a construção e apropriação por parte do sujeito de um conhecimento sobre si nas relações que vivencia. Deste ponto de vista (clínico), o objeto da Psicologia são as relações; mas não as que materialmente se dão e sim, tal como imaginadas, percebidas, representadas pelo sujeito. O que caracteriza especificamente o humano e psicológico não são as habilidades e capacidades dos indivíduos, tomadas como coisas em si, mas sim o universo de suas representações e afetos. A intervenção do psicólogo deverá se inscrever a este universo. (GUIRADO,1987, p. 71).
Contudo, o saber psicológico tem, tradicionalmente, sido utilizado de maneiras
equivocadas e questionáveis, ao buscar problematizar a questão da violência no cotidiano escolar.
Nosso objetivo não é nos aprofundarmos na exposição de teorias psicológicas,
porém, ser-nos-á de alguma utilidade determos nosso olhar sobre alguns pontos essenciais das
principais teorias que influenciaram profundamente os discursos pedagógicos formais, as quais
têm sido utilizadas como referências para explicar e também tentar resolver a problemática da
violência escolar.
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A Psicanálise, teoria desenvolvida por Sigmund Freud, tem disponíveis, segundo
Mezan (1992), pelo menos, três vertentes que explicam o fenômeno da violência.
A vertente mais naturalista teria como representantes Freud e Melanie Klein, para
quem, ressalvadas pequenas diferenças de ênfase, a agressividade é inata ao ser humano, que
busca manifestar-se e satisfazer-se por meio da destrutividade e autodestrutividade. Esta energia
natural (agressividade), utilizando mecanismos psíquicos, seria deslocada para atividades
socialmente aceitas, o que seria possível a partir de um funcionamento relativamente saudável dos
mecanismos de canalização de energia.
Existem, ainda, duas outras vertentes que concebem a violência mais como
decorrência de fatores sociais. Estas vertentes têm como principais representantes Winnicott e
Lacan, respectivamente. Para o primeiro, a violência é uma reação à frustração. Assim, quando
um indivíduo se encontra em situação de intensa frustração, essa violência pode vir à tona. Já
para Lacan, que relaciona a violência e a agressividade à ruptura da imagem narcísica, algum
acontecimento interno ou externo que ataque a imagem que a pessoa tem de si, pode resultar em
manifestações de agressividade, que teriam a finalidade de restaurar a auto-imagem.
Para uma conceituação mais abrangente do que seja a violência, é sempre útil
revisitar a teoria do desenvolvimento moral de Piaget (1932). Para este epistemólogo, a moral é
um processo evolutivo que pode ser descrito por fases, desenvolvendo-se quantitativa e
qualitativamente no indivíduo. Segundo esta teoria, o indivíduo não é uma entidade isolada,
tampouco, a sociedade é um todo. Ambos são produtos de relações interindividuais, ou seja, são
relações sociointeracionistas. Portanto, a maneira de se comportar é o resultado da relação que o
indivíduo estabeleceu com o meio social. Logo, o sujeito indisciplinado e violento não teria obtido
êxito em seu desenvolvimento moral. Moral aqui é concebida como conjunto de regras e valores
que visam à harmonia da sociedade.
Ao analisarmos as teses psicanalíticas e piagetianas, não se pretende questionar
suas validades ou contrapô-las, mas como se tratam de teorias que obtiveram grande adesão no
campo educacional, cabe averiguar qual tem sido a aplicabilidade de ambas na compreensão da
indisciplina e da violência.
Pela psicanálise, podemos depreender que há determinadas características inatas
ao ser humano, o que justificaria a existência de estruturas de personalidades mais propícias à
violência. É improvável que possamos negar o fato de que as instituições brasileiras estejam
sendo ineficientes em canalizar a agressividade inerente ao ser humano em meios socialmente
aceitos. Ou então, ignorarmos que o nível de suportabilidade à frustração parece estar no limiar da
sociedade, devido à falta de perspectiva de mudanças. Contudo, tanto as teorias de cunho mais
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individualizantes quanto as de teor mais socializantes, concebem as causas da
violência/indisciplina como tendo caráter exógeno às práticas institucionais escolares. O mesmo se
aplica à teoria piagetiana, da qual podemos inferir que o indivíduo indisciplinado o é pela forma
específica de se relacionar com as regras sociais. Nesta teoria, o meio social é o elemento que
teria falhado em auxiliar adequadamente o indivíduo a se relacionar com as leis.
Parece, pois, pertinente questionarmos como estas abordagens teóricas clássicas,
tanto aquelas que buscam no indivíduo determinantes para a violência, quanto as teorias que
tratam a escola como depositária dos males do campo social, têm contribuído para a busca de
meios efetivos para minimizar os efeitos desta problemática.
Atentemos para o que diz Aquino (1999) sobre o sociologismo/psicologismo que
permeia o raciocínio de grande parte dos educadores que se propõem a problematizar a violência
do contexto escolar:
De um modo ou de outro, contudo a escola e seus atores constitutivos, principalmente o professor, parecem tornar-se reféns de sobredeterminações que em muito lhes ultrapassam, restando-lhes um misto de resignação, desconforto e, inevitavelmente, desincumbência perante os efeitos de violência no cotidiano prático, posto que a gênese do fenômeno e, por extensão, seu manejo teórico-metodológico residiriam fora ou para além, dos muros escolares. (p. 8).
No nosso modo de ver, a Psicologia pode ir além de constatações de cunho
deterministas ao analisar as dinâmicas presentes nos relacionamentos entre professores e alunos.
E porque assim cremos, utilizamos como referenciais teóricos orientadores desta pesquisa a
Análise e a Psicologia Institucional, as quais favorecem a uma compreensão mais verossímil dos
efeitos produzidos pelas relações institucionais em contextos escolares específicos.
Para Rodrigues e Souza (1987, p. 32) “o objetivo da Análise Institucional seria trazer
à luz essa dialética instituinte-instituído, de maneira generalizada (em todos os âmbitos sociais e
realizada por todos). Para tanto, ela pode intervir em estabelecimentos e com dispositivos, mas
sempre visando apreender a instituição em seu sentido ativo”.
Já com relação à forma de atuação profissional, aquiescemos com Neves (1987,
p.57) para quem o papel do psicólogo seria o de “suscitar o aparecimento de conflitos e
contradições existentes no interior da sociedade e das instituições, rusgando as forças instituintes
que, a todo o momento, as instituições tentam capturar objetivando a manutenção do status quo”.
Completando a tríade de conceitos fundamentais sobre os quais se orientou a
execução deste trabalho, adotamos o conceito de instituição em conformidade com Guirado
(1997):
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Estamos definindo as instituições como relações ou práticas sociais que tendem a se repetir e que, enquanto se repetem legitimam-se. Existem, sempre, em nome de um ‘algo’ abstrato, o que chamamos de seu objeto. Por exemplo, a medicina pode ser considerada, segundo nossa definição, uma instituição e seu objeto, pode-se dizer, é a saúde. As instituições fazem-se, sempre também, pela ação de seus agentes e de sua clientela. De tal forma que não há vida social fora das instituições e sequer há instituição fora do fazer de seus atores. (Guirado, 1997, p.34).
DESENVOLVIMENTO E RESULTADOS
Como já foi assinalado, a realização desta pesquisa objetivou uma reflexão sobre o
fenômeno da violência e da indisciplina ocorridas em instituições escolares formais e o tratamento
dispensado para resolução destas questões específicas e outras a elas relacionadas, no interior
das mesmas instituições.
Cabe ainda sublinharmos que, no nosso ver, a escola, com todas as críticas
pertinentes que a ela se possa fazer, constitui-se como espaço de produção, e como tal, pode vir a
ser espaço de reflexão e fazer crítico.
Conforme adverte Guirado (1996), para pensarmos na violência escolar
contemporânea é imprescindível que se retire o discurso do eixo das culpabilizações localizadas.
Dessa forma, ao darmos voz aos sujeitos institucionais, buscamos investigar os atravessamentos
advindos das redes de poder previamente estabelecidas, ou seja, os efeitos que regulam os
modos de relações entre os sujeitos.
Por meio deste olhar sobre as instituições, a escola pode deixar de ser vista como
tendo caráter essencialmente passivo e passar a ser vista como produtora de relações e práticas
sociais específicas.
Guimarães (1996) observa que é possível haver uma compreensão
descentralizadora na análise dos fenômenos escolares ao afirmar que “a instituição escolar não
pode ser vista apenas como reprodutora das experiências de opressão, de violência, de conflitos,
advindas do plano macroestrutural”. Para a autora, “é importante argumentar que, apesar dos
mecanismos de reprodução social e cultural, as escolas também produzem sua própria violência e
sua própria indisciplina” (p. 77).
Com esta perspectiva, do ponto de vista metodológico, utilizou-se para a para a
coleta de dados a realização de entrevistas com os sujeitos institucionais, ou seja, alunos,
professores e técnicos, precedidas por sessões de observações. Tais observações foram
realizadas durante as aulas, nos intervalos, em eventos extra-curriculares e em horários de
trabalho pedagógico (HTPs).
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Os professores entrevistados ministravam aulas para o segundo ciclo do Ensino
Fundamental, ou seja, de 5a a 8a séries, além do Ensino Médio e do Supletivo. Nossos
questionamentos buscaram ter como centro a relação dos professores com seus alunos do Ensino
Fundamental, embora, segundo nosso ponto de vista, a problemática da violência/indisciplina
extrapole a questão etária, justamente por se tratar de uma produção institucional. Todos
trabalhavam apenas na rede pública. A faixa etária estava na média de 40 anos e a média salarial
em torno de 1200 reais.
Os alunos entrevistados estavam matriculados entre a 5a a 8a série do Ensino
Fundamental, na faixa etária entre 11 e 17 anos e as entrevistas foram realizadas a através da
técnica de Grupo Focal, que é uma técnica de coleta de dados utilizada em pesquisas qualitativas
que procuram analisar as opiniões, crenças, percepções e atitudes dos sujeitos em relação a um
assunto e suas reações frente a um grupo de pessoas (KRUEGER, 1988).
A escolha de uma técnica que permitisse analisar a percepção dos alunos
adolescentes sobre as suas experiências no cotidiano escolar e em pequenos grupos é de
especial relevância, uma vez que os adolescentes tendem a aderir facilmente aos grupos fazendo
deles seu habitat natural e seu meio de expressão (BUCHER, 1992; ZIMERMAN; OSÓRIO,
1997)3.
Durante as entrevistas, com o objetivo de descontrair e facilitar a interação,
solicitamos ainda aos alunos que fizessem um desenho que representasse algo que julgassem
importante para eles na escola. As entrevistas foram gravadas, para melhor aproveitamento dos
conteúdos, com o consentimento dos participantes e após a adoção de todos os procedimentos
éticos recomendados para pesquisas deste tipo.
Após a transcrição, a análise para a seleção e categorização dos conteúdos pautou-
se em alguns focos vitais que evidenciassem as representações dominantes, tais como as
concepções de professor, aluno, escola, disciplina/indisciplina e violência.
Nesta tarefa de análise dos discursos, procuramos nos ater à premissa de que os
conteúdos discursivos são sustentados por lugares institucionais específicos, como resultantes de
relações produtivas, na perspectiva Aquino (1996, p.47) para quem “quando o sujeito fala, o lugar
institucional discursa”.
Isto posto, passaremos adiante a destacar e analisar alguns trechos selecionados
dos discursos obtidos durante as entrevistas, os quais mostraram-se significativos e
representativos na identificação de focos aparentemente relacionados à violência e à indisciplina.
3 Para maior aprofundamento sobre a utilização de Grupos Focais ver, ainda, Carlini-Cotrim,1995 e Minayo, 2000 e Gondim, 2003.
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Os alunos discursam...
Além dos trechos destacados por sua recorrência, foram selecionados, também,
outros que consideramos indicativos de sentidos que interpenetram a relação professor aluno e
suas implicações com a violência e indisciplina. O mesmo parâmetro foi utilizado para a análise
dos discursos docentes.
Concepções de Aluno
Nessa escola tem todo tipo de aluno. Tem aluno que é bom, e tem aluno que é tranqueira. (...) Tem aluno burro e aluno inteligente. Eu acho que eu não sou um aluno da turma dos ruins, porque minhas notas são boas... mas eu converso na sala de aula, então não posso dizer que sou bom, bom mesmo. Mas não dá, tem hora que você tem que levantar, aí já viu né... A aula tá cansativa e você tem que ficar ali. Só que tem aluno que é ruim mesmo, não respeita o professor, os colegas, não faz lição. Esses assim é que estragam a escola.
Eu falo mais na hora certa, tem hora pra tudo... A professora X deixa a gente falar depois que acabou a lição. (...) Na parte de nota eu sou mais ou menos. Eu tô com nota baixa em Matemática. Eu nunca fui muito boa em Matemática. Não é que eu não sou inteligente. Mas na parte de comportamento eu sou boa.
Por meio desses fragmentos discursivos, podemos identificar as representações
que os alunos têm de si próprios, os lugares a serem ocupados e nos quais podem ou não
transitar.
Os entrevistados revelaram localizar na normatização, elementos que regulam suas
ações e relações. Ser um bom ou mau aluno está pautado por referenciais moralizantes, os quais
são evidenciados por seus comportamentos, e ainda por referenciais cognitivos.
A disciplinarização parece exercer papel crucial, sendo uma espécie de termômetro.
Ser bom aluno está diretamente relacionado ao quanto o aluno se ajuste às normas, do que são
exemplos: não conversar ou só fazê-lo na hora certa, respeitar ao professor e aos colegas, não se
movimentar na sala de aula, etc. Mas, para ser bom aluno mesmo, é necessário estar apto
cognitivamente, o que pode ser traduzido por ‘ser inteligente’ ou ‘ter boas notas’. Verificamos então
que os lugares a serem ocupados pelos alunos são permeados essencialmente pela regulação
dos movimentos dos corpos, da linguagem, bem como pela intelectualidade e rendimento escolar.
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Concepções de Professor
Eles [os professores] são bem mais experientes que nós. Eles tentam te dar
conselho, aí você pensa: ‘não vai dar certo’, vou fazer do meu jeito, que vai dar
certo. Aí acaba dando errado, e aí você lembra. Eu devia ter obedecido àquele
conselho que ia ser melhor pra mim.
Tem professor que você não trouxe a lição feita, a gente tenta explicar, ele
ignora.
Não quer nem saber. Ignora. Agora têm umas professoras que são diferentes.
Elas já escutam, já dão conselho, já fala: ‘não pode isso, pode aquilo, isso daqui
é certo, isso é errado’. Aconselha.
Tem professor que deixa a classe fazer bagunça, é porque ele não consegue
fazer a gente ficar quieto. Aí quem é bagunceiro se aproveita. Esse professor não
é muito bom, porque a gente nem consegue ouvir o que ele tá falando e nem dá
pra aprender nada.
A melhor professora que tem aqui é a B. Ela ensina bem, explica e conversa com
a gente.
O professor que não respeita a gente, só grita e qualquer coisa já vai xingando.
Só fica enchendo a lousa pra ver se a gente pára de falar.
As representações que os alunos têm do locus a ser ocupado pelo professor
também são entrecortadas pelo estratagema da norma disciplinatória. Os alunos demonstraram ter
expectativas, fundamentalmente, em torno do controle disciplinar. Quando o professor não o faz,
ele não pode ser considerado bom, havendo, também, demanda pelo professor paternal, que
aconselha e conversa com a gente.
Se o professor que ensina bem e explica está associado à figura do amigo, os
alunos se sentem desrespeitados quando o professor apresenta os atributos idealizados. A figura
do aluno passivo e obediente paira sobre os discursos. Contudo, suspeitamos que a
desobediência às normas apresenta-se como uma alternativa para o controle de suas condutas.
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Concepções de Escola
Eu gosto daqui, não vou falar que não. Aqui você tem que andar na sua. Se você já olha pro outro, pode dar confusão.
Eu gosto dos meus colegas, da turma. Olha, eu venho mais para ver meus colegas, eu moro longe, fico lá isolado. Então eu gosto de vir para conversar, trocar umas idéias. É que eu quase não saio.
Eu acho que o diretor é legal. Só que ele não faz bem a tarefa dele. O aluno leva ocorrência, mas não dá em nada. Ele só dá umas tarefas pro aluno e mais nada. Por isso que essa escola não é boa.
A escola, ela significa fonte do saber. Se estudar, um dia você pode ser chamado pra trabalhar num emprego bom. Se você não estudar, vai ser pior pra você. Você tem que estudar.
Quando solicitamos aos alunos que retratassem, através de desenhos, algo que
julgassem ser importante para eles no ambiente escolar, os temas mais freqüentes foram aqueles
que apresentavam atividades de caráter lúdico ou esportivo.
Nesta categoria, apareceram várias representações de um torneio de jogos
intercalasses, cenas de atividades realizadas em projetos, tais como de dança e informática e
outras práticas relacionadas ao projeto “Escola da Família”4.
A segunda categoria que mais apareceu foi a dos “desafetos na escola”, tendo sido
retratadas cenas de discussões com o inspetor de alunos, de expulsão pela falta de uniforme, de
expulsão da sala de aula, de brigas entre alunos, entre outros.
A terceira categoria representava os bons afetos que os alunos nutriam pela escola,
com especial destaque para um desenho intitulado “escola fonte do saber” e outros, em que a
escola estava rodeada por coraçõezinhos, revelando conceitos caricaturados.
Em alguns relatos, percebemos nitidamente que os alunos nutrem a expectativa que
haja de fato disciplinarização, sob pena de, assim não ocorrendo, a escola não ser considerada
boa.
Ainda que a escola seja retratada com lugares demarcados, evocando assim
imagens idealizadas como a do professor detentor de poder e do aluno submisso, parece que
surgem linhas de fuga, como a transgressão de regras, havendo, também aí, a reivindicação por
respeito.
As representações dominantes do papel da escola, não remetem à sua função de
transmissão de conteúdos formais. Antes, tanto pelos relatos, como pelos desenhos, a escola é
4 Trata-se de projeto, implantado pela Secretaria Estadual de Educação, que visa a manter a escola aberta à comunidade nos finais de
semanas, para a prática de diversas atividades, de natureza lúdica, esportiva e cultural, desenvolvidas por técnicos e monitores, especialmente contratados para esta finalidade.
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tida como um espaço para encontros afetivos, permitindo acreditar que existam, ainda, resquícios
da imagem do professor-mestre e da escola fonte de saber, ainda que sob formas e expressões
frágeis e caricaturadas, uma vez que estas funções já não pareçam ser prioritárias.
Esta escola, espera-se, seja a ponte para a entrada no mercado de trabalho.
Concepções de Disciplina/Indisciplina e Violência
Eu me acho bagunceira porque eu converso demais. Não tanto por levantar. A minha bagunça é porque não consigo escutar as coisas e ficar quieta. Eles [os professores] acham que podem xingar, gritar com a gente. Ele vem falar as coisas pra mim, aí eu respondo, tenho que andar, já estresso.
Eu faço um pouco de bagunça, mas as minhas notas são boas, nas provas eu vou bem.
Aqueles alunos [os disciplinados] dá raiva deles, você puxa um assunto e eles nem falam com a gente. Dá raiva. Eles vêm todo dia na escola.
Se tirar certos alunos daqui, uns que são mais sem educação, essa escola fica boa.
Questionados sobre o que havia de pior na escola, a maioria disse ser a indisciplina,
também referida como a bagunça. A segunda resposta mais recorrente referia-se às condições
precárias da escola tais como a falta de materiais didáticos e falta de higiene.
Os discursos parecem conter a tônica fundante na culpa da indisciplina, sendo a
responsabilidade pela sua ocorrência atribuída de forma polarizada, com variações quanto aos
culpados, podendo ser o aluno, o professor ou o diretor.
A indisciplina está associada à quebra de normas, que são essencialmente
reguladoras de atitudes. Possuem um teor moral, enquanto as normas regem a linguagem e o
movimento dos corpos.
A maioria não percebe a existência de violência na escola, deixando transparecer
que esta evidência se associa, basicamente, a danos físicos, o que é possível depreender de
trechos, como: tem violência sim, tem uns alunos que só de você olhar, já querem brigar, bater.
Eles ameaçam que vão te pegar na rua e (...) já teve briga aqui sim.
As dificuldades de comunicação dos alunos, em sugerir atitudes para que a
disciplina melhorasse, revelam-se sob a forma de recados para os professores, em relatos como
os que seguem: Eu queria falar um monte de coisas pra eles. Ai se eu pudesse! (...) Não adianta,
eles ficarem falando o tempo todo com a gente, humilhando, falando pra gente melhorar. Eles têm
que melhorar primeiro.
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Outros questionaram a utilização dos registros que a escola faz ao sugerir que esse
negócio do livro de ocorrência não dá em nada. Os pais nem vêm aqui. (...) Eu acho que tinha que
levar pro Conselho Tutelar. Ainda que tem que ter uma testemunha quando tiver confusão na
classe. Porque a gente sempre perde. O diretor só acredita nos professores. Tinha que avaliar os
dois lados. [Quem poderia ser essa testemunha?] Podia ser um aluno bom, ele ia ser do lado dos
alunos.
O cenário-escola parece bipartido entre o lado dos alunos versus o lado dos
professores, revelando-se um espaço vivido sob tensão onde, na aparente escassez de recursos
para minimizar os conflitos, apela-se até para um terceiro, como o Conselho Tutelar.
Notamos também um anseio pelo diálogo entre professores e alunos. Durante este
ponto da discussão, alguns alunos relataram casos pessoais, em que se sentiram não
compreendidos ou injustiçados, reivindicando que a gente podia se reunir assim outras vezes pra
conversar.
Os professores discursam...
Utilizamos os mesmos critérios adotados em relação aos alunos para a análise do
material colhido com os professores, além dos relatos de representantes da direção e da
coordenação, uma vez que há similaridade nas relações entre estes e o alunado.
Concepções de Aluno
Pra mim o pior tipo de aluno é aquele indiferente. Às vezes você vem com uma expectativa tão grande, prepara aquela aula legal, pra promover um trabalho coletivo. (...) Tem aqueles poucos que querem fazer. Você chama, convida, mas eles não vêm.
O aluno ideal é aquele que participa de tudo. Que faz o que se propõe. (...) É aquele aluno crítico. O bom também é você ter aquele aluno que te conteste.
A gente percebe que não pode se limitar só aos conteúdos das disciplinas. Aqui nessa escola, os alunos são na maioria de classe baixa e têm o problema da desestrutura familiar. E eles trazem isso pra dentro da escola. (...)
Então a gente sabe que têm alunos que usam drogas, já teve menina grávida de 13 anos... Então você percebe que a desinformação deles é muito grande. A gente então tem que sentar, conversar. (...) Mas o ideal mesmo seria uma dupla de policiais dentro de cada escola.
O aluno mais difícil de você trabalhar é aquele que não te respeita. Ele te vê comoum qualquer. Ele não quer aprender e não adianta, porque ele não tem compromisso com nada. (...) Não faz a lição, nem copia, sai da sala sem pedir... O que acontece é que eles não têm consciência da importância de estudar. Faltou a base familiar, que é pra dar base pro caráter e pra vida.
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Os discursos dos professores exprimem essencialmente a existência de duas
classes de alunos: os bons e os maus, havendo aí um parâmetro moralizante. As características
presentes nos bons alunos são as consideradas ideais para que se concretize o pacto institucional.
Logo, o aluno normatizado é o bom aluno. Desta forma, por meio da obediência discente, os
professores por sua vez, podem manter-se hegemonicamente em seus lugares.
O crivo da carência cultural e econômica é utilizado para justificar o desnivelamento
de conduta e de aproveitamento escolar existente entre os alunos e, pior ainda, pelo desinteresse
que alguns apresentam. Fica evidente que o desinteresse do aluno parece ser, também, um
regulador da motivação nos professores, os quais não têm encontrado estratégias eficientes para
driblá-lo e, dessa forma, permitem que se materialize, nas suas representações, a incômoda
percepção de que a escola, sua clientela, seus conteúdos e agentes, já não conseguem ocupar os
mesmos lugares de outrora.
Concepções de Professor
Hoje pra você conseguir educar o aluno em primeiro lugar você tem que ser psicóloga... Não dá mais pra ser como antigamente. (...) Hoje a gente é mãe também, é psicóloga, a gente sabe ouvir, mas sem atrapalhar o lado profissional.
A gente entra com um ideal depois você vê que não é nada daquilo. Você fica frustrado, mas eu nunca deixei de fazer a minha parte. Eu nunca deixo de falar que se eles quiserem uma situação melhor na vida, não tem jeito, tem que estudar mesmo.
O sistema foi mudando, hoje em dia a escola perdeu a sua autoridade. Os alunos não têm limites, mesmo que você coloque as regras, eles dificilmente vão aceitar.
A classe [dos professores] ganha mal, trabalha muito, tem a falta dos recursos didáticos. Às vezes tem que ter mais de um emprego pra poder dar uma vida com dignidade pra família. E o governo ainda vem dizer que a culpa da escola estar do jeito que tá é nossa. Quem é que tá vendo o nosso lado?
Hoje em dia é o aluno que manda na escola. A gente tá de mãos amarradas. (...) E a ‘promoção automática’, desestimula mais ainda os alunos, o bom e o mau. O mau porque sabe que não vai reprovar mesmo, e os bons porque se esforçam e vêem que os outros que não fazem nada vão passar do mesmo jeito.
A maior parte dos professores tem, sobre si mesmos, a representação que os
colocam como responsáveis pela formação do caráter dos alunos, em detrimento da função de
transmissores de saberes científicos específicos, o que, por não lograrem êxito na árdua tarefa da
disciplinarização moralizante, tem lhes causado frustrações.
Na realidade, o professor se mostra investido de múltiplas funções, que vão desde
preparar para o mercado de trabalho, a fim de promover mobilidade social, até, suprir carências
afetivas, e estas são prioridades que se situam fora do espaço escolar.
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Tal como no discurso dos alunos, também aos professores, parece que a escola
está divida em lados opostos. Eles se sentem destituídos de autoridade e poder e mencionam
como agravante/causa a promoção automática, pois teriam perdido um aparentemente eficaz
dispositivo de coerção.
Outro aspecto importante é a percepção que os profissionais têm sobre
determinadas políticas públicas, por cujo desenvolvimento são responsáveis. Tal fato fica evidente
e ganha contornos de dramaticidade pela falta de preparo e de condições adequadas • menos
por culpa deles, do que da Secretaria Estadual de Educação • para atuarem com o dispos itivo da
progressão continuada, equivocadamente entendida, apenas, como promoção automática. Outros
fatores apontados, como as condições precárias de trabalho e os baixos salários, também
despontam como fatores que atrapalham e desgastam o desempenho dos professores.
Concepções de Escola
Hoje as coisas são bem mais difíceis. Antes a maioria tinha interesse. Hoje não, só 10% quer saber de alguma coisa.
Se os pais participassem mais da vida dos filhos, eu acho que eles teriam mais motivação e iriam saber que o pai está ciente de tudo o que ele faz e o que ele não faz.
Eu acho que a família é o lugar onde se deve aprender os valores. (...) Hoje, querem transferir para a escola uma função que não é dela. A função da escola é preparar o aluno pra profissão.
Falam que a Educação na minha época era pelo medo, decoreba. Mas que eu saiba, ninguém ficou traumatizado. Só sei que a escola era um lugar de ordem, respeito, isso sim tinha.
Muitos alunos já chegam aqui com certos vícios, frutos da convivência familiar. Acham que o que você está falando é bobagem. A gente tenta passar tanto valores como matéria, mas eles não querem.
Da mesma forma que os professores atribuem a si mesmos funções que extrapolam
conteúdos científicos, as funções da escola parecem evocar imagens de uma entidade onipotente,
o que acaba por resultar num misto de contradição e frustração, já os resultados estão aquém dos
esperados.
Apenas em um depoimento encontramos uma manifestação de aparente resistência
quanto à função moralizante da escola, já que para a professora que o enunciou, o objetivo
primordial da escola deve ser a preparação profissional. Esta perspectiva e concepção são
comuns a professores e alunos e pode ser entendida como um subproduto virtuoso do que seria a
função moralizante a escola.
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A escola é concebida como refratária à conjuntura social, representando um espaço
onde predominam interesses opostos: entre os seus principais atores, revelados na constatação
de que os professores querem passar [valores e matéria], mas eles [os alunos] não querem, numa
eloqüente confirmação do que vimos descrevendo, quanto ao papel, ainda, marcante da
disciplinarização como pano de fundo e elemento constitutivo para o processo educativo.
Concepções de Disciplina/Indisciplina e Violência
Pra mim o aluno que é desinteressado acaba sendo um aluno indisciplinado. Por que ele não está envolvido com as atividades propostas, e a tendência dele é arrumar o que fazer.
Têm salas que é difícil você dar aula. Simplesmente, eles dizem que não vão fazernada e não fazem. (...) Tem gritaria, querem te enfrentar. E na idade deles, você vai obrigar? A maioria não teve apoio em casa, é difícil você conseguir mudar o comportamento deles.
De um modo geral, eu poderia dizer que os meninos são piores, são mais agressivos. Mas eu acho que a indisciplina na menina é diferente, é mais ligada à parte sexual. Hoje são elas que dão em cima dos meninos. E sai briga entre elas, geralmente por causa de menino.
Alguns que têm problemas de aprendizagem, acabam sendo indisciplinados. (...) Tem aluno que eu acho que não aprende por causa da indisciplina, mas pra outros parece que é o inverso.
O ideal seria uma dupla de policiais dentro de cada escola.
Eu acho que toda escola deveria ter um psicólogo. (...) Pelo menos para os casos mais difíceis, para aquele aluno problema. Na verdade precisava de um médico, um dentista em cada escola.
Violência mesmo a gente não tem aqui. Algumas vezes acontece uma briga entre eles, mas nada que não dê para controlar. O que ainda ocorre é que de vez em quando aparece uma porta quebrada, uma cadeira, esse tipo de coisa.
A indisciplina teve representações que, em síntese, referem-se a toda conduta
desviante, podendo referir-se tanto a atitudes abertas de enfrentamento, a não valorização da
escola bem como à expressão da sexualidade, revelando filtros diferentes para meninos e
meninas, no que toca a comportamentos sexuais adequados.
O desinteresse apresentado pelos professores é tido como um dos principais fatores
causadores da indisciplina e as suas origens seriam exteriores ao ambiente escolar, atribuídas a
fatores socioeconômicos e a insuficiência das políticas governamentais. Neste contexto, todas as
sugestões de soluções para o problema excluem um olhar mais voltado para a relação professor-
aluno, confirmando o caráter exógeno adotado na atribuição de responsabilidades, presente em
grande parte dos depoimentos. As expectativas de mudanças se localizam do lado de fora, sendo
recorrentes e justificáveis as solicitações aos especialistas, aos pais, ao Conselho Tutelar, à
polícia e, num plano mais distante, ao governo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS [1]
Embora, neste trabalho tenhamos elencado em categorias a análise dos discursos
discentes e docentes, cabe ressaltar que os sentidos das falas se entrecruzam intensamente.
Portanto, quando o sujeito discursa sobre a percepção que tem de si, está falando também de
como o outro é percebido, bem como dos efeitos destas relações, o que significa dizer que as
diversas práticas aqui analisadas não podem ser concebidas como de autoria autônomas, mas sim
institucionais.
Por uma questão de tempo e de operacionalização da pesquisa, os lugares
docentes e discentes foram identificados de forma polarizada, o que resultou numa certa falta de
mobilidade legitimadora dos papéis estereotipados do professor normatizador e o aluno
normatizado. Entretanto, constatou-se que o controle é mútuo, havendo assim uma regulação das
condutas de ambos.
A disciplinarização, com viés moralizante e/ou psicologizante, parece ser o pano de
fundo da ação pedagógica, substituindo se é que um dia ele existiu • o compromisso com
saberes científicos, que deixou de ser objetivo fundamental.
Embora pareça haver consciência de que há um certo fracasso no cumprimento das
funções atribuídas pelos professores a si próprios, aos alunos e à escola, os dispositivos utilizados
contribuem para que a situação se mantenha.
Desta forma, a indisciplina/violência considerada como o grande mal que abala os
pilares da escola, parece se retroalimentar, já que clientela e agentes tornaram-se presos em seus
papéis-atitudes.
Foi possível depreendermos dos discursos que, tanto as causas, quanto as
soluções apontadas pelos agentes e pela clientela, localizam-se fora da relação professor-aluno,
tal como apontado em outros trabalhos científicos, nos quais a existência dos conflitos é atribuída
à conjuntura socioeconômica, às mudanças dos valores vigentes e até mesmo ao fracasso e/ou
ausência de políticas públicas para a área. Numa proporção bem menor, a raiz da indisciplina
também é concebida como conseqüência de carência afetiva.
Coerentemente, as soluções apresentadas também possuem caráter exógeno, a
partir da expectativa em torno de determinadas ações do governo ou da sociedade, o que, embora
não justifique, permite compreender a lógica dos encaminhamentos imaginados para alguns
casos, em que se admite a intervenção de especialistas e até da polícia.
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Diante da complexidade da trama das relações institucionais referentes às questões
relacionadas ao fenômeno da indisciplina/violência escolar, concluímos que os olhares e as ações
devem voltar-se para as relações instituintes/instituídas, com o objetivo de viabilizar a criação de
dispositivos coerentes com cada realidade institucional. É, sem dúvida, um caminho bastante
árido, mas, talvez, viável para a busca de alternativas para o cenário tão desgastado da Educação.
Nesta nova perspectiva, a escola poderá deixar de priorizar seus investimentos na esfera tutelar
para investir e apropriar-se de meios que potencializem a geração de sonhos e esperanças de
vida.
AGRADECIMENTOS: Agradecemos à Direção, professores e alunos da escola que colaboraram para a realização deste trabalho. Igualmente, agradecemos à PROGRAD e FUDUNESP que viabilizaram os recursos necessários para a pesquisa.
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