a ilusao dos inocentes wladimir_pomar

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A ILUSÃO DOS INOCENTES 1994 © Wladimir Pomar 1- edição: novembro de 1994 © EDITORA PAGINA ABERTA LTDA. ISBN 85-85328-86-X A ILUSÃO DOS INOCENTES

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A ILUSO DOS INOCENTES

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A ILUSO DOS INOCENTES

1994 Wladimir Pomar

1- edio: novembro de 1994

Editora Pagina Aberta Ltda.ISBN 85-85328-86-XA ILUSO DOS INOCENTESWladimir Pomar

TTSCRITTASumrio

I. 5Relembrando os motivos

14II.

HYPERLINK \l "_Toc259137056" No melhor dos mundos

20III. Caindo na real

24Onde pangloss tem razo

29O lado escuro

37Vale de lagrimas

47A mancha pauper1zante

51A globalizao conflituosa

61A morte do trabalho

70IV. O sonho dos justos

72Refazendo os elos

78As utopias filantrpicas

82A ilustrao utpica

85As utopias marxistas

90A critica de marx

94V. Rompendo com o presente

98Conceitos malditos

105Relembrando o passado

112Pecados capitais

125A barbarizao do presente

135Tigres heterodoxos

139Socialismo sobrante

152VI. Limites e possibilidades

O fracasso do triunfo ....................................................................................................158 Continuidade e rupturas ...................................................162Rupturas e continuidade .............................................171176VII. A transio possvel

Estado socializante.............................................179A socializao do mercado .............................................187Risco calculado .....................................................................................................201A socializao democrtica .............................................204O renascimento do trabalho...................................................................................209214VIII Deixando em aberto

Fontes......................................................................................................................................216AdvertnciaEste texto dedicado, principalmente s pessoas que no tiveram formao acadmica ou mesmo universitria. Por isso, para facilitar sua leitura, evitamos ao mximo utilizar termos tcnicos pouco conhecidos, embora nem sempre isso tenha sido possvel. Tambm usamos a transcrio livre de trechos de obras de outros autores, com os quais concordamos ou polemizamos, de modo a torn-los mais compreensveis aos leitores. As obras, revistas ou jornais dos quais as citaes foram retiradas encontram-se numa bibliografia no final do livro.

I

Relembrando os motivosFoi no terceiro trimestre de 1990 que percorri, durante trs meses, os antigos pases socialistas do Leste europeu. Era um tempo confuso, de mudanas que se sucediam com muita rapidez. Os governos comunistas e/ou socialistas da Polnia, Tchecoeslovaquia, Hungria, Bulgria, Romnia e Alemanha Oriental haviam rudo sob a presso de grandes movimentos populares e do olhar complacente ou do empurro solidrio das principais lideranas soviticas. O Muro de Berlim, que simbolizava mais do que qualquer outra coisa a diviso entre os dois sistemas sociais e polticos, fora derrubado e abrira as comportas para a reunificao alem e a integrao da parte oriental ao conjunto da Europa e do Ocidente.

A Iugoslvia e a Albnia, que em passado ainda recente viviam s turras em virtude das estreitas relaes da primeira com os pases ocidentais, pareciam agentar o tranco. Entretanto, eram evidentes os sinais, muito vivos, de que a situao iria deteriorar-se e que esses pases poderiam explodir em convulses ainda mais graves. A Unio Sovitica, por seu turno, continuava alardeando as vantagens da glasnost e da perestroika. E Gorbachev parecia acreditar, piamente, que elas contriburam para a reforma e o reforamento do socialismo. Mas a tambm os indcios da desorganizao econmica e social e da fermentao poltica eram muito fortes para ser ignorados.

O furaco que desestabilizara as sociedades da Europa central e oriental no arrefecera seu mpeto. Tudo indicava que deveria estender-se pelos Blcs e pelo mais antigo pas socialista. Mas no era s nessa parte do mundo que ele causava estragos de toda ordem. Comunistas, socialistas e anticapitalistas dos mais diferentes e longnquos pases do mundo sentiam-se perplexos e sem condies de explicar coerentemente os acontecimentos do leste europeu. J normalmente atomizado, o movimento socialista dispersou-se ainda mais nas tentativas, as mais disparatadas, de avaliar as causas e as conseqncias do desmoronamento do sistema sovitico.

Por toda parte, assistia-se a um furor inusitado no descarte de Marx e do marxismo, na adoo da modernidade capitalista como a posio mais radical e inovadora e na inflexo para o neoliberalismo como o politicamente mais correto. No foram somente os povos do leste europeu que acreditavam no milagre do mercado e passaram a viver a iluso de uma rpida evoluo de suas condies de vida para os padres ocidentais, como se ocidentais fossem unicamente os altos padres de consumo dos pases ricos. Muitos socialistas sucumbiram iluso dos inocentes e tambm passaram a acreditar na suposta nova ordem mundial capitalista de paz, prosperidade e democracia.

Alguns, por outro lado, acreditavam haver enxergado a mo imperialista nos acontecimentos e ainda nutriam a esperana de uma recuperao a partir da prpria Unio Sovitica. Outros, mais realistas, voltavam-se para a social-democracia como a tbua de salvao das conquistas sociais, reais ou fictcias, do antigo regime. A maioria, entre perplexa e desorientada, perguntava-se o que realmente acontecera. J no unha mais certeza de que o socialismo fora algo de bom ocorrido na histria humana. Que tivesse futuro, nem falar.Foi nesse contexto e sob o impacto de observaes in loco, que foram escritos e publicados, ainda em 1991, Rasgando a cortina e A miragem do mercado.Rasgando a cortina, combina reportagem de viagem com um breve anlise do socialismo naqueles pases, das causas de seu fracasso e das iluses que o mercado capitalista fizera florescer entre suas populaes. Descarta a idia de que tais pases no teriam sido socialistas, entre outras razes por consider-la uma fuga ao enfrentamento do problema. Tambm no aceita a tese da conspirao imperialista. Mesmo acreditando que o imperialismo sempre conspirou para derrubar o socialismo, defende um ponto de vista mais plausvel. O que fracassou naqueles pases foi um tipo especfico de socialismo, o tipo sovitico, por sua incapacidade de reformar-se e superar as contradies que gerou em seu processo de construo.Por isso mesmo, no aceita que a vitria saboreada pelo capitalismo seja uma vitria definitiva. O sistema de produo-para-lucro, como chama Carson, no capaz de proporcionar prosperidade, paz e democracia a toda a humanidade. Em sua expanso cclica, o capital coloca os seres humanos, cada vez mais, diante da necessidade de optar entre a destruio, a barbrie e o socialismo.A miragem do mercado, escrito antes da desagregao da Unio Sovitica, procura desenvolver mais extensamente essas idias. No aceita fantasias em torno da possibilidade de reverter a situao nos antigos regimes socialistas de tipo sovitico. Recoloca em evidncia a frrea lgica do capital, que no pode deixar dvidas sobre o que se deve esperar de seu domnio. As mudanas que continuavam a ocorrer na Europa oriental reforavam as tendncias ao mercado capitalista, desagregao nacional, ampliao da misria e ao ressurgimento da luta de classes. Ao derrubar o tipo sovitico de socialismo, o capital deveria marcar os anos vindouros pelo agravamento de suas prprias contradies internas e pelo renascimento de novas variantes de socialismo.A ironia da histria que o prprio capital, sempre as voltas com suas tentativas de sufocar a luta de classes e matar o socialismo, exala o socialismo por todos os poros. Por isso mesmo, o ltimo captulo de A miragem do mercado trata da recuperao da esperana, da possibilidade de que o futuro venha a pertencer ao socialismo. O que no se esperava que muitas das tendncias apontadas nesse texto e no anterior, que na poca pareciam barcos navegando contra a corrente, se confirmassem de forma to precisa e to veloz, contradizendo a maioria das anlises que vislumbravam um novo e eterno nvel de desenvolvimento capitalista.As dificuldades na anexao da Alemanha Oriental; a diviso da Tchecoslovquia em dois estados independentes; a desagregao e extino da Unio Sovitica; a transformao da Albnia; a guerra fratricida entre as etnias da antiga Iugoslvia, Rssia, Armnia, Azerbaijo, Gergia, Tajiquisto e em outras regies dessa parte do mundo; a expanso do desemprego e da misria de massa, em contraste com a acumulao selvagem da nova riqueza capitalista em todos os pases do antigo socialismo europeu; a permanente instabilidade poltica e a substituio da participao popular, que marcara a derrubada dos regimes socialistas, por novos tipos de autoritarismo liberal; tudo isso tornou incertas e sombrias as to ansiadas paz, prosperidade e democracia que a implantao do mercado capitalista prometera. No menos veloz foi a extenso da crise do socialismo europeu oriental ao capitalismo ocidental e japons. O que parecia uma crise estrutural exclusiva do socialismo transformou-se, muito rapidamente, numa crise geral do sistema capitalista mundial. Os ventos recessivos, que h muito sopravam da periferia do sistema, atingiram os pases centrais, levantando as fuligens acumuladas pelo alastramento da misria de massa. A xenofobia e as rivalidades tnicas e religiosas passaram a manchar as vitrines coloridas com as quais os bolses de riqueza do mundo atraem os povos para as delcias do capital.E natural, assim, que este novo texto comece relembrando as iluses suscitadas pelo capitalismo com a derrocada do socialismo sovitico. Elas impregnaram os inocentes no s dos antigos pases socialistas, como tambm da maioria dos pases do mundo. Os arautos do capital prometeram o melhor dos mundos para os povos libertos do comunismo. E tambm para seus prprios povos, supostamente libertos do medo do comunismo. Nas mais diferentes regies do planeta, conseguiram ressuscitar Pangloss, famoso personagem de Voltaire criado para ridicularizar o sistema feudal e para quem tudo estava sempre bem, no melhor dos mundos.Foi um tempo em que pulularam panglossianos de todos os matizes liberais e socialistas. Estes, arrependidos de haver tentado o assalto aos cus, procuraram adaptar-se moda predominante e apagar a linha de distino entre capitalismo e socialismo. Aqueles, explorando ao mximo as oportunidades abertas pela derrocada do socialismo na Europa central e oriental. Esforaram-se para tornar verdades absolutas suas promessas de paz na Terra, superioridade da democracia liberal e das virtudes do capital, fim das guerras e da luta de classes e eternidade capitalista. Esse mundo panglossiano no , porm, o mundo real. verdade que os novos Panglosses aparentam boa dose de razo quando falam entusiasmados da expanso capitalista. Esta foi capaz de criar um novo mercado mundial, novos padres de produtividade e um novo estgio da concorrncia, sob os auspcios da terceira revoluo tecnolgica conhecida pela humanidade. Criou sociedades de bem-estar (welfare states) e uma vasta produo global capaz de atender s necessidades alimentares e de conforto de toda a humanidade. E fez florescer e disseminar a democracia, em que todos so iguais perante as leis e tm as mesmas oportunidades, pelo menos formalmente.Contraditoriamente, esse tambm o mundo que transformou continentes inteiros em repositrios de refugos e de estoques de fora de trabalho desempregada ou subempregada, vivendo na misria mais deprimente, uma verdadeira chaga pestilenta. o mundo que assiste impiedosa disseminao dessa chaga pelos antigos pases do socialismo europeu e pelos prprios pases ricos. A mancha da pauperizao absoluta, que parecia fadada a ser enterrada com o socialismo e o marxismo que a previu, volta a assustar os idelogos do capital porque no mais consegue ficar restrita aos pases e regies relegados ao atraso.To assustadora quanto o alastramento da misria de massa parece ser a acelerao de algumas tendncias desse mundo, que poderamos chamar de tendncias longas. Certamente, algumas apontam para condies reputadas como favorveis aos povos do planeta, dando razo a Pangloss multipolaridade econmica e poltica; continuidade da revoluo tecnolgica e elevao da produtividade; ampliao das demandas democrticas e do pluralismo poltico; despertar da ateno ecolgica. Outras, porm, apontam para a destruio e a barbrie: hegemonia militar dos Estados Unidos; expanso do desemprego tecnolgico ou estrutural e correspondente morte do trabalho; intensificao da guerra comercial, formao de blocos regionais e aumento do protecionismo; concentrao das riquezas, terras e capitais nas mos de estratos cada vez mais reduzidos da populao mundial; disseminao dos conflitos de baixa intensidade; novas ameaas democracia e ressurgimento de diferentes formas de autoritarismo; persistncia das ameaas de desastres ecolgicos.

Esse mundo capitalista real e contraditrio, carregado de antagonismos, a origem das desgraas da humanidade desde que se firmou como sistema dominante. Mas , tambm, a origem de muitos de seus benefcios e de seus sonhos e utopias em construir um mundo melhor. Alis, a humanidade teima em sonhar um mundo livre e justo desde os primrdios de sua civilizao. Nas mitologias egpcia, chinesa e grega da antiguidade, o sonho de libertar-se do domnio das foras da natureza levou os homens a sofrimentos de toda ordem. Durante o Imprio Romano, escravos, cristos e povos brbaros insurgiram-se na busca da liberdade, adotando um sistema comunitrio que j se tornara irremediavelmente parte do passado. O mximo que conseguiram foi evoluir da opresso escravista para a no menos opressiva proteo feudal.

Os oprimidos do feudalismo, na sua vez, depois de muitos levantes, acreditaram na igualdade, fraternidade e liberdade que a burguesia lhes ofereceu. Deram-lhe suporte para destruir o antigo regime e implantar o capitalismo, em que todos teriam as mesmas condies para vencer na vida. Resvalaram, porm, num novo tipo de opresso e sofrimento. Mais uma vez, como se estivessem eternamente busca do Santo Graal da liberdade e da justia, foram levados a novos sonhos e a novas utopias, comunistas e socialistas.

Recuperamos essas manifestaes dos sonhos dos justos, provocadas pelas contradies do mundo real. Quisemos mostrar no s sua constante aproximao da justia e da liberdade almejadas, mas tambm desmistificar a idia de que tais sonhos e utopias seriam uma inveno de Marx e Engels.

O que nos obrigou a reavaliar as crticas de Marx, tanto ao sistema capitalista quanto a diversas utopias de sua poca. Marx foi o primeiro pensador a afirmar que a transformao de um tipo de sociedade em outra era fruto do desenvolvimento das contradies dessa sociedade e no das utopias dos homens, por mais justas e libertrias que estas fossem. Para demonstrar essa teoria, usou-a como mtodo para estudar o capitalismo no pas em que mais se desenvolvera a Inglaterra. E concluiu que esse sistema econmico e social gerava contradies prprias que deveriam transform-lo, ao amadurecerem, numa sociedade de novo tipo. Chamou-a socialismo (fase inicial) e comunismo (fase superior), talvez em homenagem aos utpicos que criticara.

Apesar de sua averso s utopias, Marx no chegou a se livrar completamente delas. Enxergou as contradies do capitalismo desenvolvido na Inglaterra, Frana e Alemanha muito antes que elas tivessem realmente ocorrido. Como conseqncia, sups prematuramente que estavam dadas as condies para a revoluo social. E no deu a importncia devida ao do Estado burgus para minorar as crises cclicas do capitalismo. Nem possibilidade de ocorrerem revolues anticapitalistas em pases onde as foras produtivas e as relaes capitalistas ainda se encontravam atrasadas.

Marx tambm acusado de outras utopias, como a de haver sonhado com a abundncia. Com base na tendncia de desenvolvimento das foras produtivas sociais, ele previu uma era de to alta produtividade que seria possvel um tempo mnimo de trabalho necessrio e a satisfao de todas as necessidades materiais e culturais de cada elemento singular da sociedade. Estariam dadas, a, as condies para a emergncia de um novo homem, profissional e culturalmente polivalente.

A dura realidade do socialismo implantado em diversas partes do mundo teria desmentido no s tais utopias como tambm todas as contribuies de Marx no campo da economia, da filosofia e da poltica. Os liberais (mas no s eles) simplesmente relegaram Marx ao monturo da histria. Estariam mortos ele e sua doutrina, e ponto final. Diante dessa pretensa e at mesmo possvel verdade, os socialistas so compelidos a rever toda a elaborao terica marxista. Precisam repass-la no teste da comprovao, verificando suas potencialidades na anlise das experincias concretas de setenta anos de construo da nova sociedade.

Hobsbawn tem razo quando diz que, pela primeira vez, os socialistas se vem obrigados a pensar sobre o socialismo. Afinal, o desenvolvimento desigual do capitalismo colocou para o movi mento socialista dos pases avanados mudanas na forma do Estado e nos padres de explorao dos trabalhadores no previstas na anlise feita por Marx. Diante das concesses da burguesia, da diminuio da misria de massa e do aumento do poder social dos trabalhadores, os socialistas desses pases foramtentados a empreender um longo caminho de reformas, at mesmo na esperana de que, nesse processo, seria possvel civilizar e humanizar o capitalismo.

Por outro lado, esse mesmo desenvolvimento desigual apresentou para os trabalhadores de muitos pases atrasados um problema novo e inusitado, igualmente no previsto por Marx. As burguesias desses pases mostraram-se incapazes de realizar ou completar sua prpria revoluo. Os socialistas foram, assim, tentados a dirigir e realizar uma revoluo poltica, cujas bases econmicas e sociais ainda se encontravam circunscritas ao mbito do capital. Condies polticas especficas introduziram nessa revoluo um forte componente anticapitalista, que a empurrava rumo ao socialismo. Isso fez as experincias socialistas que conhecemos se transformarem, ao contrrio do que Marx pensara, num perodo de tentativas de passagem de sociedades capitalistas atrasadas, e no desenvolvidas, a um novo tipo de sociedade, ps-capitalista.

Essa rasteira da histria trincou o socialismo em duas grandes tendncias principais, embora cada uma delas tenha comportado inmeras e variadas tendncias secundrias. A primeira delas, a social-democracia, procurou responder s contradies concretas das sociedades capitalistas desenvolvidas, que haviam atingido a fase do capital financeiro e do imperialismo e se beneficiavam de uma expanso sem precedentes. A segunda, que chamo de socialista revolucionria, embora consciente de que essa conceituao pode gerar polmica, foi predominante nos pases capitalistas mais atrasados, nas colnias e semi-colnias. Em geral, mesmo seguindo caminhos diferenciados de pas para pas, procurou responder s aspiraes de modernizao de seus pases, que sofriam as agruras da espoliao imperialista, s vezes combinada com um desenvolvimento capitalista selvagem.

Ambas enfrentavam contradies que no podiam ser previstas e ambas sofreram, e sofrem ainda hoje, adversidades que parecem intransponveis. Que lies os socialistas podem extrair dessas experincias? A anlise de Marx sobre o sistema capitalista continua vlida? Ou o capitalismo ter triunfado definitivamente, como proclamam os liberais?

Procuro dar algumas respostas a essas questes. Em primeiro lugar volto a falar, de outra forma, das tendncias principais do mundo real em que vivemos, das quais destaco a barbarizaro que vai predominando na maioria das sociedades existentes. Mas sou obrigado a destacar, da mesma forma, no meio dessas tendncias e sofrendo sua influncia, alguns fenmenos que parecem fugir das regras. Os pequenos Tigres Asiticos, que tiveram um desenvolvimento capitalista acelerado na ltima dcada, diferenciam-se em vrios aspectos do modelo capitalista ocidental e ainda no perderam todo o impulso. Por outro lado, apesar de toda a morte anunciada do socialismo, sobram pases que teimam em ser chamados socialistas. A China segue um longo curso de reformas e desenvolvimento desde 1978. O Vietn ingressou num caminho idntico pelo menos desde 1986. Cuba e Coria do Norte realizam movimentos de adaptao ao momento e as previses de desmoronamento imediato de seus regimes tm sido paulatinamente adiadas. Embora muita gente boa duvide da natureza socialista desses regimes e, como no caso da China, afirme que l exista um sistema capitalista ditatorial sob um invlucro socialista, seria no mnimo anticientfico deixar de examin-los mais atentamente. Pelo menos deve-se tentar responder por que as reformas empreendidas por esses pases no desembocaram no mesmo desastre social e poltico da perestroika sovitica.

Penso que todas essas experincias, tanto as que sucumbiram quanto as que obraram, podem ser teis para o futuro da luta socialista. Mesmo porque as iluses sobre a eternidade do capitalismo so fugazes. Seus limites so cada vez mais visveis,aproximando-se perigosamente das hipteses de Marx. O que tem levado alguns pensadores marxistas a supor que o capitalismo seja incapaz de algum novo tipo de expanso. Isso colocaria a humanidade definitivamente diante da necessidade de optarentre a destruio ou o comunismo.

Ao contrrio dessa hiptese, procuro trabalhar a possibilidade de desenvolvimentos intermedirios ou transies que completem as chamadas tarefas da revoluo burguesa e incorporem elementos socialistas ao novo processo de modernizao. Mesmo no atual estgio alcanado pelo capitalismo, no acredito que a humanidade seja incapaz de livrar-se da opo de tudo ou nada. Penso, ao contrrio, que as contradies do capitalismo em escala mundial abrem campo pra o surgimento de novas variantes de socialismo, tanto nos pases desenvolvidos quanto nos demais.

Se essa hiptese for verdadeira, os socialistas tero de retomar toda a antiga discusso sobre a relao da revoluo poltica com a revoluo econmica, sobre a violncia e as rupturas, sobre a relao entre reformas e revoluo, sobre as possibilidades da democracia poltica e sobre as Unhas da transio possvel, agora levando em conta todo o acervo de experincias histricas acumuladas nos ltimos cem anos ou mais. O socialismo apresenta-se cada vez mais como um processo em que continuidade e rupturas esto entrelaadas de forma complexa, sofrendo o peso fundamental das realidades nacionais em que ocorrem, apesar de todo o avano da internacionalizao ou globalizao capitalista.

As vias para romper com o domnio do capital e ingressar nessa sociedade de transio tero de ser examinadas abertamente. No passado, foram tentados tanto o caminho revolucionrio quanto o caminho pacfico-institucional. Alega-se hoje que somente o caminho pacfico-institucional teria validade. Alm das mudanas ocorridas no Estado, abrindo campo para reformas progressivas na sociedade, a violncia, revolucionria ou no, teria demonstrado uma vocao inevitvel para a ditadura e o autoritarismo. Qualquer que seja a possibilidade mais vivel dessas hipteses, no se pode ignorar que a reestruturao do Estado e da propriedade, indispensvel para ingressar em qualquer processo de transio socialista, gera tenses que nenhuma transformao social, reformista ou no, deve deixar de prevenir.

Nessas condies, todas as possveis variantes de socialismo, como demonstraram suas tentativas de reforma, fracassadas ou que tiveram sucesso, muito provavelmente tero que combinar um forte papel gestor e orientador do Estado (atravs do planejamento e de outros mecanismos de interveno econmica e poltica) com boas doses de mercado. Isso deve significar, necessariamente, a existncia de diferentes tipos de propriedade e gesto empresarial, a participao no mercado mundial, a revolucionarizao permanente das foras produtivas e a elevao da produo. Uma mistura desse tipo, mesmo tendendo a aumentar a socializao das foras produtivas, deve continuar produzindo desigualdades e polarizaes. E gerando, por sua vez, demandas e conflitos sociais e polticos nem sempre de fcil soluo.

Nesse processo, a socializao da poltica deve ganhar um significado e uma importncia que no experimentou em nenhuma das tentativas socialistas anteriores. Isso no significa que basta querer para ter resolvida a dicotomia democracia-ditadura. A disputa real pela hegemonia e pelo consenso, a resistncia das antigas classes dominantes, a implementao de polticas incorretas, as presses sociais concretas, a disputa ideolgica e a configurao de uma nova cultura socialista, tudo isso vai influir sobre a luta poltica real e permitir ou no uma democratizao mais intensa da sociedade. De qualquer modo, tornou-se bastante evidente que uma das tarefas mais importantes de todos os socialistas consiste na recuperao da bandeira e do carisma democrtico para seu campo.

Em linhas gerais, as diversas variantes de socialismo devero enfrentar alguns grandes desafios que o capitalismo no resolveu, ou resolveu de forma limitada e parcial, e que as experincias socialistas s agora comeam a se colocar. Em primeiro lugar, o tratamento a ser dado s desigualdades e polarizaes, uma das consequncias naturais da ao do mercado. Em segundo lugar, o enfrentamento da questo do desemprego estrutural, resultado igualmente natural do desenvolvimento tecnolgico e cientfico e da elevao da produtividade do trabalho. Ele aponta para a necessidade de institucionalizar progressivamente o direito ao no-trabalho, com todas as conseqncias que isso deve trazer ao funcionamento da sociedade. E, em terceiro lugar, a construo de uma cultura e uma democracia que todos os membros da sociedade possam usufruir de modo ativo e participativo. Dizendo de outro modo, a linha geral da transio socialista mais provvel a da construo articulada de ampla base material de cunho social, sobre a qual possa se sustentar uma vida cultural e poltica apropriada pelo conjunto dos indivduos dessa sociedade.

Desse modo, o sonho socialista continua vivo. Talvez por isso, este texto no tenha concluses. Esforcei-me somente para abrir espaos de discusso sobre o futuro da luta socialista, a partir das experincias vividas e das tendncias, cada dia, mais ntidas, de desenvolvimento do capitalismo. Entre a barbrie e a destruio capitalistas, de um lado, e as tentativas de construir uma nova sociedade, socialista, menos injusta e menos desigual, de outro, ainda acho que vale a pena optar pelo socialismo. Os inocentes e justos deste nosso mundo podero desvencilhar-se das iluses e miragens do mercado capitalista e retomar a luta socialista, como alternativa de sobrevivncia. E muito mais cedo do que se poderia esperar, como j possvel certificar em diversas partes do mundo.

IINo melhor dos mundos

O desmoronamento dos regimes socialistas do leste europeu parece haver exercido um efeito mgico sobre o nimo das pessoas em muitas regies do mundo. Num passe ilusionista, fez renascer o terno e crdulo Pangloss, personagem que Voltaire tornou famoso em seu romance Cndido. Para Pangloss, tudo estava sempre bem no melhor dos mundos. No rastro do estrondoso fim do socialismo e da festejada morte do marxismo, multiplicaram-se Panglosses e panglossianos por toda parte, de todos os matizes. Panglosses e panglossianos capitalistas, liberais, neoliberais e nem tanto. Panglosses e panglossianos socialistas, social democratas, democratas e neodemocratas. Panglosses e panglossianos do meio-termo, amarelos por dentro e rosa por fora, ou vice-versa. Todos, quase sem exceo, prevendo uma nova era, uma nova modernidade, um tempo em que afinal as coisas iriam ajustar-se e tudo passaria a fluir harmoniosamente.

Nunca mais seremos escravos! O brado de Sandor Petofi, poeta e revolucionrio hngaro de 1848, ressoou na Budapeste de 1989, durante os funerais de Imre Nagy, de uma forma ao mesmo tempo irnica e sarcstica. Nagy fora um lder comunista, assassinado pelo regime socialista, aps a invaso de 1956. E, em 1990, Vaclav Havei, tambm poeta e escritor, transformado em presidente da Tchecoslovquia na crista das manifestaes populares que derrubaram o regime, proclamou com ingnua sinceridade: Povo, teu governo voltou a ti!

Francis Fukuyama, um at ento obscuro funcionrio do Departamento de Estado dos Estados Unidos, talvez tenha se tornado o mais famoso e o mais radical da primeira leva de panglossianos capitalistas. Ele no deixou por menos: a vitria do capitalismo sobre o socialismo teria sido a vitria sem ressalvas do liberalismo econmico e poltico, o triunfo do Ocidente, da idia ocidental, assinalando o fim da histria como tal. Ainda segundo ele, no restando mais conflitos fundamentais dentro da sociedade, tornar-se-iam claros os contornos do "estado homogneo universal", uma feliz combinao de democracia liberal na esfera poltica com fcil acesso a videocassetes e estreos na economia. A democracia liberal seria a forma de organizao social que apresenta reais perspectivas de convivncia democrtica, progresso econmico, ampliao do bem-estar e paz internacional.

Essas teses tiveram grande repercusso em todo o mundo. A mdia capitalista empenhou-se em difundi-las largamente, sob os mais diferentes pretextos. Fukuyama transformou-se num conferencista solicitado pelas mais seletas audincias do mundo rico de cada pas. Mesmo assim, suas teses foram consideradas medocres at por outros panglossianos. Elas poderiam no ser levadas a srio, colocando em risco a explorao positiva da vitria capitalista. Afinal, como explicitou Ralph Dahrendorf, era preciso enunciar inequivocamente que o socialismo morrera e que nenhuma de suas variantes poderia ressuscitar. E isso deveria ser feito com argumentos convincentes.

Timothy Ash, que chegou a participar ativamente dos acontecimentos no leste europeu, afirmou categoricamente que o movimento operrio internacional no mais existia. Para ele, entre todas as idias bem experimentadas, cujo tempo chegara com os levantes populares daquela parte do mundo, a mais importante seria a descoberta fundamental da modernidade, a sociedade aberta, um tipo de sociedade defendida pelos liberais radicais e que, teoricamente, nada teria a ver com o capitalismo.A euforia capitalista era de tal ordem, e a presso dos Panglosses da vida to consistente, que um socialista como Eric Hobsbawn teve de reconhecer que o medo capitalista da instabilidade de seu sistema e por uma alternativa sovitica fora reduzido consideravelmente. A diminuio da classe operria industrial, o declnio de seus movimentos e a redescoberta da autoconfiana modificaram o nimo do capitalismo. Nessas condies, Jeffrey Sachs no se incomoda em reconhecer, ao contrrio de Fukuyama, que o colapso do comunismo talvez no tenha acabado com a histria. O importante seria propalar que tal colapso certamente tornou possvel uma era de paz e prosperidade.

Paz, prosperidade, democracia, sociedade aberta, capitalismo virtuoso, pensamento positivo, alegria, muita alegria, no melhor dos mundos, onde tudo vai bem, esse deveria ser o marketing panglossiano da vitoriosa faanha do cavaleiro capitalista sobre o drago comunista (ou socialista, para a propaganda tanto faz). Como diria Liberatore, o panglossiano criado por Jacob Gorender para exprimir o conjunto das idias liberais, o capitalismo moderno dispensa guerras e conquistas coloniais: o imperialismo seria um tipo de expansionismo arcaico, estranho natureza do capital. Este, segundo Schumpeter, teria introduzido a racionalidade em todas as esferas da vida social e precisaria de ambiente de paz para o florescimento de seus negcios. Depois de tudo isso, estamos quase convencidos de que as desgraas que a histria nos apresenta foram causadas pela ausncia ou pelo desenvolvimento insuficiente do capital. Ainda bem que Pangloss nos garante que agora a vitria definitiva e eterna do sistema de produo-para-lucro.

Dahrendorf assegura, no entanto, a continuidade dos conflitos sociais. Estes s podem ser administrados e dirimidos dentro das regras de jogo aceitas por trabalhadores, empresrios e governo, conduzindo a solues adequadas s sociedades abertas e no s sociedades capitalistas. As lgrimas de 1989, derramadas na Europa central e oriental, em sua maioria teriam sido lgrimas de alegria, mas no para cair sob o sistema capitalista.

Mas, baseado em sua prpria vivncia dos acontecimentos dessa parte do mundo, Ash garante que a aspirao de suas populaes era a constituio de uma autntica economia capitalista de mercado. Para ele parecia certo, no incio de 90, que haveria uma nova Europa, um lugar diferente para os pases outrora descritos como europeus orientais e, pelo menos, para uma Alemanha menos dividida. A Comunidade Europia, com sua autoconfiana recuperada, havia reiterado seu objetivo de constituir um nico mercado at fins de 1992. Seriam corporificadas assim as quatro liberdades do movimento de bens, servios, capital e pessoas.

Nada mais certo, ento, como Fizeram todos os panglossianos, do que propalar aos quatro cantos as necessidades recuperadoras do Leste europeu e dos mercados novos, com centenas de milhes de pessoas. Lester Thurow garantiu que a Europa central e oriental estava tentando fazer uma coisa que o mundo capitalista nunca fizera comear o jogo de mercado honestamente.

Premido por essa nova aura, o presidente Bush teria mesmo de prometer uma Amrica mais bondosa, mais suave, como fez para que todos ouvissem. Estavam dadas, desse modo, todas as condies para o capitalismo experimentar uma nova era de expanso global, a ser acompanhada de uma crescente ampliao do mercado de trabalho e do poder social dos trabalhadores. Dahreridorf curva-se a essa perspectiva, anunciando que deveria sobrar um nico mundo com pretenses srias ao desenvolvimento e hegemonia. O primeiro e o segundo mundos deveriam reunir-se em algo que ainda no teria nem nome nem nmero, mas seria simplesmente o Mundo. Na mesma linha de raciocnio, John Naisbitt previa que o mundo, em poucos anos, se transformaria numa economia global prspera. Um mundo em que, de acordo com Ash, a cidadania e a sociedade civil seriam os faris da nova marcha para a liberdade.

O grito por uma autntica economia de mercado teria mobilizado a esperana das massas dos antigos pases socialistas quanto a uma elevao rpida do nvel de vida, plenamente possvel com a colaborao e os investimentos do primeiro mundo. Enquanto Liberatore supe que o progresso dos pases desenvolvidos se transmitiria aos pases atrasados, Thurow confiava que o sistema americano seria adotado em toda parte e duraria eternamente. E, em caso de dvida, Fukuyama aconselhava que se tomassem os Tigres Asiticos como exemplo de que possvel alcanar a igualdade sob o capitalismo.

Isso correspondia plenamente s aspiraes dos povos dos antigos pases socialistas. Ash confirma que eles queriam ser cidados, mas tambm ser de classe mdia, no mesmo sentido que a maioria dos cidados da metade mais afortunada da Europa era de classe mdia. Gluksmann assegura que a esquerda russa, esquerda significando aqui o setor avanado da sociedade, quer o capitalismo com direitos humanos, j que fora da privatizao dos circuitos comerciais no existe salvao. E Ash reitera que em toda a Europa do leste brotava o mesmo modelo fundamental, ocidental e europeu: democracia parlamentar, domnio da lei, economia de mercado. No existiria uma terceira via. Nem mesmo o socialismo de rosto humano. Era a concepo de normalidade que parecia estar conquistando triunfantemente o mundo.

Liberatore garante que o capitalismo possui elasticidade para absorver crises e para subir a patamares sempre mais elevados de bem-estar e de organizao social. O intenso progresso dos pases onde o capitalismo realmente funciona teria permitido que os trabalhadores alcanassem padres de vida surpreendentes. Eles disporiam de assistncia mdica to boa quanto a dos patres e gozariam as frias nos pases estrangeiros. A automao teria tornado o trabalho manual extenuante mais interessante e lucrativo.

No bojo desse triunfalismo desbragado, os pases do terceiro mundo eram aconselhados a mirar-se no espelho mexicano. Tambm l o receiturio neoliberal do mercado livre estaria produzindo milagres: a receita fiscal se elevara de 8,7% do PIB, em 1982, para 10,6% em 1992. Com o corte de despesas e a venda de estatais para o setor privado, os gastos pblicos haviam diminudo de 44,5% para 30%, no mesmo perodo. O dficit pblico fora reduzido de 16,9% para 1,9% do PIB, enquanto a inflao cara de 131,8% em 1987 para 23,3% em 1991. E, mais importante do que tudo, o PIB crescera 2,9% em 1989 e 4,8% em 1991.

A Venezuela tambm seguira o mesmo receiturio de privatizaes, abertura da economia e reduo do dficit pblico, conseguindo alcanar em 1991 um crescimento econmico de 9,8%. Como diria Ash e tantos outros panglossianos liberais: todos sabem que a economia de livre-mercado funciona, sendo capaz de resolver todos os problemas se lhe permitirem gerar um crescimento suficiente.

Diante dessa avassaladora onda triunfante do sistema de produo-para-lucro, muitos socialistas procuraram aproveitar o embalo e aderir ao otimismo de Pangloss. Alguns, como Zalasvskaia, asseguram que do ponto de vista dos princpios, o critrio de escolha das formas econmicas a medida com que elas contribuem para elevar a eficincia da produo. Aquelas que melhor resolvem essa tarefa devem ser consideradas socialistas. Talvez com esse mesmo tipo de pensamento reducionista, Alfonso Guerra, subsecretrio geral do Partido Socialista Operrio Espanhol, tenha se sentido vontade para dizer, tranqilamente, que o socialismo e o capitalismo se transformaram e no mais se opem. Para ele, a sociedade do futuro dever ser uma sociedade aberta, na qual o direito diferena ser um dos principais direitos.

Dahrendorf refora essa idia e reitera que os pases do Leste no teriam alijado o comunismo para aceitar o capitalismo. Teriam derrubado um sistema fechado para criar uma sociedade aberta. Para ser exato, a sociedade aberta, porque embora possa haver muitos sistemas s haveria uma sociedade aberta. Nessa sociedade aberta, o importante que a propriedade privada esteja disponvel como uma opo e seja protegida, que seja impedida a generalizao dos monoplios, embora sejam aceitveis estradas-de-ferro de propriedade do Estado. Nem a administrao da demanda a l Keynes nem a seguridade social a l Beveridge seriam constitucionalmente incompatveis com a sociedade aberta. Entretanto, contratos legalmente protegidos deveriam ser uma garantia para a existncia de mercados.

Para no parecer utpico, Dahrendorf d alguns exemplos de sociedades abertas, sociedades que teriam rompido os estreitos limites do sistema capitalista. Cita a Gr-Bretanha como uma antiga sociedade aberta; assegura que a economia japonesa dificilmente pode ser considerada capitalista; estima que a Alemanha dificilmente ser compatvel com a publicamente defendida economia de mercado. E, para finalizar os exemplos concretos, diz que a Sucia no seria decididamente, em sentido estrito, um pas capitalista.

Os panglossianos capitalistas e socialistas podem at divergir, em vrios aspectos, sobre o tipo exato de sociedade que desejariam. Afinal, ningum perfeito e, apesar das loas em torno da sociedade aberta, o que os Democratas Livres hngaros desejam mesmo o livre-mercado. O prprio Ash reconhece que essa a mais recente utopia da Europa central e oriental. De qualquer modo, embora divergindo quanto ao futuro, todos esses panglossianos afirmam que no h democracia socialista. Haveria apenas democracia, a multipartidria e parlamentar. No haveria legalidade socialista, mas unicamente a legalidade, o domnio da lei, garantida pela independncia do Judicirio, ancorada na Constituio. No haveria economia socialista, mas somente economia; no uma economia de mercado socialista, mas uma economia de mercado social, como proclamou Ludwig Ehrard, o reconstrutor da economia alem do ps-guerra.

Todos esses panglossianos previram o fim das guerras, da luta de classes e da violncia, a disseminao da democracia parlamentar como a nica maneira de garantir a justia social e a consolidao das virtudes da modernidade capitalista. A pauta de ao desses panglossianos, liberais ou socialistas, subordinou-se pauta de ao do mundo do capital, na suposio de que este se transformara e passara a trabalhar por uma nova ordem internacional mais justa e mais humanitria.

Ash tranqilizava que, na pior das hipteses, poderiam ainda advir novos ditadores no leste europeu, mas seriam ditadores diferentes. Tambm achava que poderiam surgir novamente conflitos tnicos, mas que a primavera das naes da Europa central e oriental no seria, necessariamente, uma primavera do nacionalismo. Gorbachev, por seu turno, estava convencido que todos ns, no mundo atual, temos uma dependncia mtua e nos tornamos cada vez mais indispensveis uns aos outros. Como proceder para acabar com a fome e a misria em vastas reas da Terra? Somente o trabalho conjunto poderia trazer benefcio para a humanidade.

Por isso, acrescentava o mesmo Gorbachev, pela primeira vez na histria, tornou-se exigncia vital a idia de se elaborar normas de poltica internacional baseadas na tica e na moral, comuns a toda a humanidade, ao mesmo tempo que se humanizam as relaes entre Estados soberanos. Haveria mundo mais risonho e belo que esse sonhado pelo Pangloss que foi o principal dirigente da ex-Unio Sovitica no perodo de sua desagregao?

Por tudo isso talvez seja til retornar, mais uma vez, s opinies de Fukuyama. Ciente de que sua tese de fim da histria causara muitos embaraos aos prprios liberais, procurou explicar-se melhor. O fim da histria, acrescentou, dar lugar a um tempo muito triste. A luta pelo reconhecimento, a disposio de arriscar a prpria vida por um objetivo puramente abstrato, a luta ideolgica mundial que gerou ousadia, coragem, imaginao e idealismo, ser substituda pelo clculo econmico, a soluo interminvel de problemas tcnicos, preocupaes ambientais e a satisfao de sofisticadas demandas de consumidores, quase certamente em torno de videocassetes e estreos de nova gerao.

Sem dar-se conta, ou talvez por completo desconhecimento, Fukuyama faz da suposta fase definitiva do capitalismo a mesma caricatura que muitos marxistas vulgares faziam da futura sociedade comunista prevista por Marx. De qualquer modo, at esse mundo triste e insosso, do fim da histria de Fukuyama, seria bem menos pior que o verdadeiro mundo que temos realmente frente.III

Caindo na realPobre Pangloss. O mundo real em que vivemos no e bem o mundo que pensa ser sua volta. verdade que do mesmo modo que a Lua possui um lado brilhante, este mundo real apresenta vises panglossianas inegveis, criadas pela expanso do capital. Este foi competente em criar sociedades avanadas, de bem-estar social, amplas condies de consumo de massa e poderoso desenvolvimento tcnico e cientifico. Estados Unidos, Europa Ocidental e Central, naes nrdicas, Japo, Canad e Austrlia so exemplos de riqueza e opulncia que enchem os olhos dos Panglosses de todos os tipos. E tambm daqueles que no alcanaram seus padres de vida.

Alm disso, o capital foi capaz de criar um novo mercado mundial, transformando nosso planeta numa aldeia global nica, onde as leis que valem so as leis que valem so as leis do modo de produo capitalista. A internacionalizao ou globalizao da economia fora as fronteiras nacionais, massifica as comunicaes e as informaes, universaliza padres de vida e trabalho e rompe com corporativismos e provincianismos. Mais do que isso, impe um padro de produtividade que se transforma em desafio para todas as sociedades nacionais com alguma pretenso de fornecer a seus povos uma vida digna e confortvel.

Finalmente, e no menos importante, os pases capitalistas desenvolvidos ou centrais foram capazes de assimilar regimes polticos democrtico-liberais que, apesar de suas limitaes, representam as conquistas das lutas de seus povos pela cidadania, por maiores liberdades civis e polticas. Essa assimilao teve um papel importante na ampliao da perspectiva democrtica para o resto do mundo, em particular para aqueles pases capitalistas e socialistas de regimes autoritrios e/ou despticos.

No sem razo, Pangloss se extasia com essas breves pinceladas do brilho capitalista e cerra as plpebras para o lado escuro de seu mundo real. Basta, porm, entreabrir os olhos para enxergar as outras conseqncias da expanso capitalista. Paul Kennedy reconhece que agora nos damos conta de que o mundo no est vivendo uma nova ordem, e sim uma ordem fraturada. Nesta, o fosso que separa os pases ricos dos pobres est aumentando e as pessoas percebem mais suas diferenas que suas semelhanas.

O terceiro mundo foi transformado em repositrio do refugo e do exrcito industrial de reserva do mercado capitalista mundial, com todos os dramas e tragdias que isso pode significar. Quase todos os pases desse mundo abandonado pela sorte, mesmo os que chegaram a trilhar a industrializao capitalista, assistiram a seu crescimento econmico ser acompanhado de uma ampliao persistente da pobreza e da misria de massa. E aquelas naes que tentaram enveredar por um provvel caminho no-capitalista ou de orientao socialista foram submetidas a bloqueios, guerras civis e intervenes militares que, em diversos casos, inviabilizaram qualquer progresso econmico e poltico alternativo mais consistente. Em praticamente todos eles, a dcada de 80 foi particularmente perversa e trgica. Seus povos viram-se naufragados em mares de misria e violncia incompatveis com a capacidade produtiva e com o nvel de cultura alcanados pelo conjunto da humanidade.

No menos terrvel vem sendo a reconverso do socialismo da Europa central e oriental. Ao fracassar na reforma de seu socialismo sovitico, o at ento considerado segundo mundo viu-se inapelavelmente atrado pela fora e pujana dos pases capitalistas centrais, assim como pelas promessas dos lderes ocidentais. Mergulhou, ento, de ponta-cabea, como faria Pangloss tranqilamente, no sistema de livre mercado do capital. O resultado tem sido uma persistente desorganizao econmica, combinada com desagregao social, conflitos tnicos e religiosos e instabilidade poltica. O antigo segundo mundo est perdendo seu status anterior e se incorporando com armas e bagagens ao terceiro mundo.

Pouco adianta que Ash lastime que os tesouros encontrados no Leste socialista, como companheirismo, tempo e espao para msica e literatura srias, comunho crist na sua forma pura e original, qualidade no relacionamento entre homens e mulheres e um etos de solidariedade, sejam varridos na corrida que ele considera perfeitamente compreensvel pela afluncia. Mesmo no perodo ureo de Pangloss, logo aps os acontecimentos de 1989, Ash se perguntava quantos, dos que puderam sobreviver a quarenta anos de comunismo, seriam capazes de sobreviver a um ou mais anos de capitalismo. No por acaso ele citava Arpad Goncz, um velho militante hngaro, que afirmava estar feliz por ter vivido para ver o fim daquele desastre, mas querer morrer antes de ver o comeo do prximo.

Naquele momento, Pangloss sem dvida diria que era preciso, acima de tudo, ser otimista. O primeiro mundo continuava esbanjando riqueza e bem-estar. A misria fora erradicada e at os pobres tinham padres dignos de vida. Mais cedo ou mais tarde, completaria, os demais pases do mundo aprendero com as tcnicas e os mtodos avanados do mundo desenvolvido e superaro todos os problemas. Como sempre, tudo ir bem no melhor dos mundos.

Pobre Pangloss. Mesmo ento, Hobsbawn concordava com o historiador hngaro que considerava terminado o curto sculo XX (1914-1990), mas assinalava que o sculo XXI deveria enfrentar, pelo menos, trs problemas de longo prazo que j estavam piorando: o crescimento do fosso entre o mundo rico e o pobre (e, provavelmente, dentro do mundo rico, entre seus ricos e seus pobres); a elevao do racismo e da xenofobia; e a crise ecolgica do globo, que afeta a todos. A curto prazo, seria possvel constatar instabilidade na Europa, ressurgimento das rivalidades e conflitos nacionais e a instabilidade da democracia liberal imposta aos pases do Leste europeu.

O que nem mesmo Hobsbawn pode prever que, em muito pouco tempo e bem antes da chegada do sculo XXI, a vitria esmagadora do capitalismo sobre o socialismo sovitico iria afundar o vencedor numa crise que colocaria mostra seu reverso perverso e destrutivo. Uma crise aparentemente brusca e inesperada, se levarmos em conta a era dourada de expanso que o capital viveu nos ltimos vinte e poucos anos. Nesse perodo ele conheceu, como sempre, ciclos de recesso e crescimento, mas nenhuma expanso foi to vigorosa e ampla quanto a que teve lugar nos anos 70 e 80. O desemprego e a pobreza nos pases centrais era, ento, to residual que levou Norberto Bobbio a dizer que, neles, a sociedade dos 2/3 dirige e prospera sem ter nada a temer do 1/3 de pobres-diabos que nela vive e vegeta. Bobbio s chama a ateno para ter em mente que o resto do mundo, os 2/3 (ou 4/5 ou 9/10) da sociedade, est do outro lado.

A atual recesso nos pases centrais, que no deixou de lado sequer o dinmico Japo, est apresentando, porm, um assustador crescimento da misria de massa no corao da riqueza. Com uma caracterstica atroz: a misria no apenas resultado do desemprego recessivo, mas tambm do desemprego causado pela revoluo tcnico-cientfica e sua propenso a poupar mo-de-obra. Em outras palavras, o capital ingressou numa fase tecnolgica em que a retomada do ciclo de crescimento no garantia da diminuio substancial do desemprego e, portanto, da misria. To consistente vem sendo esse desemprego estrutural ou tecnolgico nos pases centrais que reconhecido como fenmeno estonteante por grande parte dos cientistas sociais e polticos. Seu alastramento acabar recolocando em discusso a tese de Marx, tantas vezes rechaada como inconsistente e superada, da pauperizao dos trabalhadores.

Bem vistas as coisas, como disse Ash, o ano de 1989 terminar por surgir, aos participantes e aos historiadores, como um' breve momento brilhante entre os sofrimentos de ontem e os de (hoje e) amanh. Ao contrrio do que supunham os panglossianos, o capitalismo mundial est longe de apresentar qualquer perspectiva real de paz, prosperidade e convivncia harmoniosa. As tendncias de longo prazo, com as quais ele vem marcando o tempo presente, so bastante contraditrias e, em diversos casos, antagnicas. A globalizao dos mercados tem sido acompanhada, por exemplo, de um intenso processo de concentrao de empresas e de centralizao e oligopolizao da economia. A caracterstica principal dos capitais, centralizados em alguns poucos pases, seu controle sobre poderosas redes internacionais de produo e distribuio, que s podem se expandir se tiverem livre trnsito pelas fronteiras que separam os pases. A escala alcanada por esses capitais, com ao sobre todo o mundo, tende a unificar os pases, num nico mundo, conforme disse Dahrendorf.

Paradoxalmente, esses mesmos capitais que exigem fronteiras abertas para. suas atividades, crescentemente quebram as regras que regulam o mercado mundial. Estabelecem medidas protecionistas em seus prprios pases-sedes (ou em blocos regionais dos quais participam), em relao aos capitais de fora. Como natural, os pases de desenvolvimento tardio e insuficiente, que no alcanaram o patamar dos pases centrais, vivem o drama de abrir-se completamente ao do capitalismo desenvolvido ou adotar medidas protecionistas do mesmo tipo. Assim, embora se d como certo e inexorvel o processo de integrao internacional, no se pode desprezar as foras centrfugas que agem no sentido da multipolaridade e de defesa dos capitais nacionais, inclusive como forma de manuteno da soberania poltica.

Nesse processo conflitante, o dficit comercial dos Estados Unidos e, agora, da Alemanha, o supervit do Japo e outras disparidades no intercmbio externo entre os pases esto criando um forte desequilbrio estrutural no comrcio internacional, desequilbrio que Thurow compara s foras gravitacionais de um buraco negro no espao. Ele considera que nunca os dficits e supervits foram to grandes e duradouros, distorcendo a prpria natureza da economia mundial. Prev que nenhum pas pode continuar indefinidamente administrando dficits comerciais e que os Estados Unidos (que precisam tomar emprestados 200 bilhes de dlares por ano para financiar o dficit comercial e pagar os juros da dvida), assim como os demais deficitrios, em algum momento devero adotar medidas para superar sua crise.

Em outras palavras, mais cedo ou mais tarde os Estados Unidos devero tomar o remdio amargo que costumam receitar aos outros: cortar taxas de crescimento, reduzir importaes, desvalorizar sua moeda, criar novas barreiras comerciais e alcanar supervits comerciais. Se os Estados Unidos empreenderem esse caminho e alcanarem um supervit de 100 bilhes de dlares, isso pode significar, de acordo com Thurow, 2,5 milhes de novos postos de trabalho no territrio americano. E, consequentemente, um forte desequilbrio de emprego no resto do mundo.

Embora essas projees de Thurow sejam muito lineares, no h dvida de que elas expressam, de um modo ou de outro, as dificuldades com as quais economistas e outros cientistas sociais se defrontam diante das atuais tendncias longas do sistema de produo-para-lucro. Essas tendncias tm como base, ao mesmo tempo agindo sobre elas, trs movimentos conjugados do capital mundial, com maior dinamismo nos pases centrais, mas tambm atuando nos pases perifricos. Em primeiro lugar, a substituio da fora de trabalho mais cara por outra mais barata, atravs da utilizao do trabalho feminino (e tambm infantil, como na Itlia) e dos imigrantes (como na Europa, Estados Unidos e agora at no Japo e Argentina). Em segundo lugar, pela exportao das plantas industriais de uso intensivo de mo-de-obra ou poluentes para pases onde a fora de trabalho mais barata e a legislao ambiental mais permissiva (como o caso das transferncias de firmas americanas para o Mxico). Em terceiro lugar, a aplicao acelerada de novas tecnologias, fornecidas pela terceira revoluo tcnico-cientfica da produo, e de novas formas de organizao do processo produtivo. Todos esses movimentos, tendo o terceiro como principal, destinam-se a cortar custos e elevar a produtividade a nveis jamais alcanados em qualquer poca anterior.

A aplicao acelerada de novas tecnologias e novas formas de organizao do trabalho vem determinando uma verdadeira revoluo na produo e nas relaes do trabalho. Mudanas estruturais de envergadura em todas as sociedades regidas pelo modo de produo capitalista apontam para a morte do trabalho de forma crescente e inapelvel. As modificaes do perfil produtivo, com nfase na produo do desperdcio e do destrutivo, abrindo campo para desastres ecolgicos e para a morte massiva pela fome, pela misria e pelas guerras, esto diretamente relacionadas s transformaes que o capital tem imprimido s suas foras produtivas.

Pangloss diria que as tendncias favorveis acabaro se impondo. Afinal, elas apontam para um mundo bem diferente do atual. O problema so as tendncias desfavorveis. Mas, para no demonstrar intolerncia, caiamos na real por onde Pangloss tem razo.

ONDE PANGLOSS TEM RAZO

O esmagamento do nazismo e do fascismo, na Segunda Guerra Mundial, no resultou, como todos esperavam, num mundo de paz. Mal acabara o conflito que causou mais de 50 milhes de mortos, a ameaa de choques entre os dois sistemas em que o planeta se partira capitalismo e socialismo ou comunismo passou a pesar sobre todos os povos. Uma Guerra Fria, com perigo de coliso nuclear, foi declarada entre os dois campos. Uma disputa irreconcilivel se espraiou por todos os terrenos da atividade humana. O mais simples dos gestos passou a exprimir, verdadeiramente ou no, uma conotao ideolgica e poltica a um dos campos em luta.Durante algum tempo, o sistema socialista pareceu levar vantagem. A presena militar sovitica na Europa centro-oriental dera uma contribuio decisiva para a instalao de governos e regimes chamados de democracia-popular nos pases recm-libertados da ocupao nazista nessa parte do mundo. A Unio Sovitica tambm dava mostras de grande potencialidade ao recuperar rapidamente sua economia, devastada pela guerra. Suas novas conquistas cientficas e tecnolgicas, particularmente na corrida espacial, sua propalada igualdade social e seu apoio s lutas de descolonizao exerciam grande atrao sobre povos e pases.

Alguns desses povos e pases realizaram revolues vitoriosas e se incorporaram via de construo socialista, cujo modelo era a prpria Unio Sovitica. China, Vietn, Laos, Cuba, Angola, Moambique, Guin-Bissau, Cabo Verde, Etipia juntaram-se ao que se convencionou chamar de campo socialista. Outros, como Arglia, Iraque, Birmnia, Zmbia, Congo, Lbia, Burkina Faso, Tanznia, Imen do Sul, Somlia, Sria, buscavam uma via no-capitalista ou de orientao socialista. Fortes movimentos de cunho socialista ocorriam em praticamente todas as regies do planeta. A marcha para o socialismo apresentava-se como inexorvel.

Apesar dos Panglosses socialistas dessa poca, j ento erguiam-se vozes e problemas alertando para o fato de que nem tudo ia bem no campo socialista. Iugoslvia e China haviam rompido com o modelo sovitico de desenvolvimento, a primeira ainda na dcada de 40 e a segunda no final dos anos 50, sem que isso pudesse ser analisado em toda a sua extenso e com a iseno necessria. A Guerra Fria impedia variantes fora dos dois plos, embaando as vises e o raciocnio. A Iugoslvia foi alijada das relaes entre os pases socialistas como revisionista e traidora, e a China acabou seguindo o mesmo caminho no incio dos anos 60.

Hoje sabemos o resultado da disputa entre os campos socialista e capitalista. Os fatores de fracasso do socialismo sovitico foram examinados em Rasgando a cortina e A miragem do mercado, mas voltaremos a nos referir a eles mais adiante. No momento, porm, ser mais til avaliar os fatores que levaram o capitalismo a vencer a parada e que do razo ao otimismo de Pangloss. Afinal, o capitalismo no teria conseguido uma vitria to significativa, mesmo relativa, se fosse completamente desprovido de qualquer atrativo e de qualidades positivas que lhe dessem fora e hegemonia.

A maioria dos estudiosos concorda que o capitalismo contou com dois trunfos fundamentais em sua disputa com o mundo socialista. Primeiro, sob a hegemonia dos Estados Unidos, nico pas capitalista desenvolvido que sara consideravelmente reforado da Segunda Guerra Mundial, as demais potncias industriais do Ocidente e o Japo aceitaram sufocar a concorrncia cega que antes existira entre elas e estabelecer uma colaborao estreita para enfrentar o perigo vermelho. Thurow reconhece que as necessidades militares impediram que os conflitos econmicos assumissem propores incontrolveis. Eles foram sufocados e subordinados estratgia de enfrentamento contra o socialismo.Segundo, em grande parte com base na premissa anterior, os Estados Unidos e demais pases capitalistas avanados empreenderam a reconstruo do mercado capitalista mundial em novos moldes. Embora a fora militar continuasse exercendo importante papel em toda a estratgia anti-sovitica e de conteno dos movimentos socialistas, a utilizao de mecanismos econmicos de expanso e integrao ganhou uma dimenso desconhecida da histria mundial do sistema capitalista.

Esses trunfos permitiram transformar o fordismo americano no padro industrial das economias recuperadas da Europa e do Japo. Em especial na Europa ocidental, foram erigidas novas sociedades de consumo de massa, que concederam a seus povos Estados de bem-estar social, com altos e crescentes rendimentos para seus assalariados, sistemas de seguridade e outros benefcios. Em conseqncia, diminuram as desigualdades sociais e aumentaram as oportunidades de vida.

Tudo isso, como disse Hobsbawn, foi resultado do medo. Medo dos pobres e dos maiores e bem organizados blocos de cidados dos Estados industrializados os trabalhadores. Foi o medo de uma alternativa que realmente existia e poderia espraiar-se notavelmente na forma do comunismo sovitico. Foi ainda o medo da prpria instabilidade do sistema que levou os pases; centrais a fazer tantas concesses a seus trabalhadores.

Os motivos podem ter sido outros. Mas, quaisquer que tenham sido, o fato que o capitalismo foi. capaz de criar: Estados de bem-restar, nos quais o poder social dos: trabalhadores igualmente se expandiu: Nos vinte e poucos anos que abrangem essa primeira onda de expanso capitalista do ps-guerra, os Estados Unidos alcanaram um produto nacional bruto superior a 1 trilho de dlares, o Japo 201 bilhes de dlares, a Alemanha Ocidental 173 bilhes de dlares, a Frana 151 bilhes de dlares e a Inglaterra 125 bilhes de dlares. A manuteno de altas taxas de emprego, combinada com a seguridade social, permitiu aos trabalhadores um padro de vida relativamente elevado e uma distribuio mais equitativa da renda per capita, que chegou a 4.949 dlares nos Estados Unidos, 2.860 na Alemanha Ocidental, 2.990 na Frana, 2.250 na Inglaterra e 1.940 no Japo.

Embora o Japo mantivesse polticas salariais e sociais mais restritivas, no seu caso isso era compensado em boa parte pelo sistema de emprego vitalcio. Mas h ainda outros indicadores que, embora no demonstrem cabalmente o pleno desenvolvimento humano, apontam para a pujana e o bem-estar alcanados pelos pases capitalistas centrais. A escolarizao de terceiro grau, por exemplo, no final da dcada de 60 era de mais de 50% nos Estados Unidos, mais de 20% na Alemanha Ocidental e entre 14% e 20% na Frana, Japo e Inglaterra. Se tomarmos o nmero de televisores como indicativo da posse de bens de consumo durveis, sua proporo por mil habitantes era de mais de quatrocentos nos Estados Unidos, mais de trezentos na Alemanha Ocidental, Inglaterra e Japo e mais de duzentos na Frana.

Para efeito de comparao podemos tomar o Brasil, que entrara recentemente num processo acelerado de industrializao. Em 1970 seu produto interno bruto crescera paia 43 bilhes de dlares, sua renda per capita chegara a 450 dlares, a escolarizao de terceiro grau era de 5,3% e o nmero de televisores por mil habitantes era de 64. Podemos tambm considerar a Unio Sovitica, o pas industrialmente mais desenvolvido do campo socialista, onde o produto material lquido (produto interno bruto menos o valor dos consumos intermedirios) era superior a trezentos bilhes de dlares. L, a renda per capita mdia era, ento, de 1,5 mil dlares, a escolarizao de terceiro grau 25% e 143 o nmero de televisores por mil habitantes.

Essa pujana capitalista pode, alm disso, ser aferida pelo fato de que em poucos anos aps a guerra, as antigas potncias industriais europias e o Japo passaram a seguir os passos do capital americano, retomando suas caractersticas de exportadores de mercadorias e de capitais. As empresas dos pases desenvolvidos disseminaram-se pelo resto do mundo, desde a dcada de 50, comandando processos de industrializao tardia e de absoro do modo capitalista de produo em pases atrasados. Alguns desses pases, que adotaram a via de desenvolvimento capitalista na segunda metade deste sculo, chegaram a alcanar taxas de crescimento superiores s dos pases desenvolvidos e de vrios dos pases socialistas. No incio dos anos 70, o Brasil apresentava uma taxa anual de crescimento de 8,3%, o Ir 9,8%, a Turquia 7,2%, a Coria do Sul 10,6%, a Tailndia 7,4% e o Iraque 10,8%. Entre os pases centrais, o mais dinmico era o Japo (7,6%) e, entre os socialistas, a Polnia (7,6%).

A expanso foi, sem dvida, muito desigual, mas o capitalismo criou realmente um mercado mundial, do qual os prprios pases socialistas no puderam escapar, como comprova Luis Fernandes. Com isso, aconteceu uma ampliao sem precedentes do comrcio internacional de mercadorias e um crescimento acentuado dos investimentos de capital em todo o mundo. No final da dcada de 60, as exportaes mundiais alcanaram a cifra de 302 bilhes de dlares, quase dobrando em relao aos vinte anos anteriores. Os pases centrais detinham mais de 70% desse montante (45% s os europeus), enquanto os pases em vias de desenvolvimento ficavam com 17% e o Leste europeu com 6%.

Se Pangloss j tinha motivos de sobra para regozijar-se com os progressos que vo do fim da Segunda Guerra Mundial at 1970, a partir de ento ele deve ter entrado em estado de graa. Apesar das crises recessivas enfrentadas em 1974-75 e 1980-82, os pases industrializados centrais realizaram verdadeiros saltos nesgas duas dcadas. Em 1991 o produto nacional bruto dos Estados Unidos tinha alcanado o volume de 5,6 trilhes de dlares, sendo seguido pelo Japo (3,3 trilhes), Alemanha Ocidental (1,5 trilho), Frana (1,1 trilho) e Inglaterra (966 bilhes). Em outras palavras, no espao que vai de 1970 a 1990, o produto nacional americano cresceu cinco vezes, o japons quinze vezes, o alemo nove vezes, o francs sete e o ingls oito vezes. E fcil verificar que os capitais alemo e japons expandiram-se mais rapidamente que os demais. Por outro lado, se considerarmos a Comunidade Europia, formada no final da dcada de 60, ela soma hoje um produto interno superior a 5,7 trilhes de dlares, tendo ultrapassado os Estados Unidos.

O comrcio internacional viveu uma verdadeira exploso, passando dos 302 bilhes de 1970 para 3,35 trilhes de dlares em 1990, ou seja, um crescimento de 11 vezes. interessante notar que, enquanto os Estados Unidos reduziram sua participao nesse comrcio em 3,6%, a Europa e o Japo aumentaram a sua na mesma proporo. Os pases em desenvolvimento, por sua vez, elevaram sua parte de 17% para 24%, enquanto os pases socialistas tiveram uma queda de mais de 4%.

O fluxo de capitais tambm foi muito intenso no perodo, mas sofreu algumas interferncias dignas de nota. Nos anos anteriores a 1980, o fluxo de capitais dos pases centrais para os pases em vias de desenvolvimento foi sempre positivo. Em 1980, por exemplo, as transferncias lquidas de recursos daqueles pases para o terceiro mundo foram de 37 bilhes de dlares. Entre 1980 e 1990 houve, porm, uma inverso e o fluxo dirigiu-se em boa parte dos pases em desenvolvimento para os centrais. Em 1985 esse desinvestimento chegou a 4,6 bilhes de dlares e em 1988 a 5,8 bilhes de dlares. Estima-se que nesse perodo o fluxo de capitais tenha circulado entre os prprios pases centrais, cujos mercados afluentes poderiam consumir mais rapidamente a produo gerada pelas novas tecnologias e estas, por sua vez, passaram a representar mercados de alta potencialidade para os investimentos de capital. Na verdade, como disse Giovani Arrighi, esse perodo marca o momento em que o mercado mundial parece haver se tornado, progressivamente, uma fora autnoma que nenhum Estado, inclusive os Estados Unidos, poderia controlar dentro de seus limites. Dahrendorf reconhece nas empresas transnacionais a grande fora produtiva que tornou irremediavelmente ultrapassadas as velhas relaes de produo nacionais. Organizaram-se poderosos conglomerados financeiros, industriais e comerciais, empurrados por fuses, compras, participaes, joint ventures e outros mecanismos de movimentao de capitais. Forado por esse processo interior do sistema de produo-para-lucro, o mundo parecia passar por um grande movimento de reunificao que deveria empurrar o campo socialista para profundas redefinies.

O capitalismo dos pases avanados, acompanhado por seu congnere de algumas outras naes de desenvolvimento tardio na sia e Amrica Latina, propiciou assim uma expanso sem precedentes da capacidade produtiva mundial. Mesmo na agricultura, que jamais conseguiu acompanhar as taxas de crescimento da indstria e dos servios, ficando limitada a uma mdia de 2,5% ao ano nesse perodo, o modo de produo do capital conseguiu aumentar a disponibilidade alimentar per capita mundial de 2,5 mil para 2,6 mil calorias. Isso representa, na, prtica, 1,1 mil calorias a mais do que cada indivduo do planeta tem consumido, em mdia, para sobreviver. O capitalismo vem demonstrando, apesar de todas as distores produtivas causadas pela busca cega do lucro, que possvel desenvolver uma base de produo material capaz de atender s necessidades de todos os seres humanos.

Esse aumento da capacidade produtiva se deve essencialmente rpida elevao da produtividade, propiciada pela revoluo tcnico-cientfica dos ltimos vinte anos, e sofreguido com que as empresas se lanaram na atividade de cortar custos para enfrentar a competitividade no mercado internacional. Com a rpida evoluo das cincias e de suas aplicaes tecnolgicas, a expanso capitalista e seu mercado mundial assumiram um carter avassalador. A cincia consolidou-se como a principal fora produtiva, impulsionando novos e poderosos avanos na informtica, microeletrnica, biotecnologia, novos materiais, telecomunicaes, automao e transportes. E, consequentemente, introduziu mudanas profundas na fora de trabalho nos sistemas de produo e em suas formas de organizao, nos padres de consumo, no papel crescente da educao e investigao cientfica e tcnica e na globalizao da economia.

O Japo foi o pas capitalista desenvolvido que mais rapidamente incorporou esses avanos e mudanas em seu processo produtivo. Possuindo cerca de trezentos mil robs industriais (contra uns quarenta mil dos Estados Unidos), superou o fordismo, que havia se generalizado no perodo anterior, e imps ao mercado mundial um novo patamar de competitividade. Elevou a produtividade e a eficincia a nveis desconhecidos da histria capitalista de revolucionarizao constante das foras produtivas.

Esses novos padres de produtividade e eficincia do capital tornaram-se os principais desafios que levaram a sucumbir tanto o socialismo europeu oriental como muitos dos pases que se encontravam em vias de desenvolvimento capitalista. E quase certo que durante as dcadas vindouras a elevao da produtividade do trabalho interferir cada vez mais em todos os problemas evolutivos enfrentados pela humanidade.

O capital foi capaz, ainda, de mostrar muita segurana na exportao de sua democracia liberal. Simplesmente desprezando suas limitaes e sua histria, o capital conseguiu transformar a democracia liberal numa bandeira capaz de atrair no s os povos dos pases em que tinha a hegemonia, mas tambm os dos pases do Leste socialista e de todo o mundo. Particularmente nos ltimos quinze anos, houve uma sensvel diminuio dos pases regidos por ditaduras abertas ou governos autoritrios. Uma persistente introduo de elementos da democracia (eleies, um homem um voto, representao parlamentar, diviso e separao de poderes, imprio da lei, etc.) acompanhou as mudanas polticas registradas em boa parte do mundo. Usando sua democracia liberal como mercadoria abundante, o capital produziu um verdadeiro dumping sobre grande parte dos regimes polticos diferentes disseminados pelo planeta. Estimulou movimentos contrrios, desorganizou-os e, em vrios casos, conseguiu a sua demolio.

Esse o lado panglossiano do capital. Um lado que, paradoxalmente, est cada vez mais prximo do tipo ideal de capitalismo previsto por Marx. Pelo menos o que reconhecem estudiosos menos deslumbrados, que conseguem enxergar no s o lado brilhante e visvel desse mito, mas tambm seu lado escuro e sombrio.

O LADO ESCURO

Os pases atrasados do ponto de vista capitalista viveram seu momento de Pangloss nas dcadas de 50 a 70. Deslumbrados com a rpida recuperao ps-guerra da Europa Ocidental e do Japo e com as ofertas de capitais externos para trilharem o caminho da industrializao, nutriram a esperana de que com isso pudessem superar suas tradicionais condies de atraso, pobreza e misria. Idealizando a construo de sociedades ricas, diversos desses pases na Amrica Latina, sia e frica ingressaram, a partir da segunda metade dos anos 50, na via de desenvolvimento capitalista acelerado.

Evidentemente, cada pas e cada regio apresentaram resultados que tinham muito a ver com suas prprias condies fsicas e histricas. Alguns, por exemplo, realizaram reformas agrrias que, de uma forma ou de outra, permitiram a incorporao de elementos da revoluo verde em sua estrutura agrcola e propiciaram melhorias na produo, incorporando contingentes razoveis do antigo campesinato na vida econmica e social. Outros realizaram a mesma revoluo agrcola atravs de um intenso processo de mecanizao dos campos, gerando fortes fluxos migratrios das zonas rurais para as cidades ou para novas reas de colonizao, alcanando tambm razoveis incrementos da produo, embora sem ampliao significativa de seu mercado interno. Em geral, quase todos esses pases conseguiram performances notveis nos ritmos de crescimento de seu produto global, reforando a impresso de que poderiam igualar-se aos pases desenvolvidos. Entretanto, escurecendo essas tendncias positivas, a maioria esmagadora dos novos pases industrializados jamais chegou a construir algo parecido com as sociedades de bem-estar e consumo de massa dos pases centrais. Ao contrrio, deram surgimento a sociedades industriais de segunda linha, nas quais parcelas considerveis da populao ficaram marginalizadas do sistema produtivo e dos padres de consumo que tal sistema criou.

lgico que o crescimento econmico e o conseqente aumento do produto interno bruto fizeram com que a renda mdia per capita se elevasse. Durante os anos 70, a taxa mdia anual de crescimento dos pases em desenvolvimento chegou a 5,5%, apesar da crise de 1974-75. Na Amrica Latina, o aumento da renda mdia per capita anual manteve-se em 3,8%.

Isso poderia levar suposio panglossiana de que os habitantes dessas naes se beneficiaram do crescimento econmico de forma mais ou menos idntica, para no falar equitativa. Na verdade, a renda gerada pelo desenvolvimento foi distribuda de forma extremamente desigual. No Brasil, por exemplo, conforme dados compilados por Dedecca e Brando, a parcela de renda apropriada pelos 50% dos trabalhadores mais pobres caiu de 17,4% em 1960 para 12,6% em 1980.

Usando somente os indicadores de renda, o Banco Mundial calculou que o planeta contava, em 1991, com cerca de 1,16 bilhes de pobres, espalhados principalmente pelos pases do mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento. Sabe-se que se forem levados em conta outros indicadores, como moradia, instruo, acesso sade e alimentao, o nmero de pobres mundiais deve triplicar. O relatrio das Naes Unidas, de 1990, constata a existncia de 1 bilho de pessoas em pobreza extrema ou absoluta, 900 milhes de analfabetos, 2 bilhes sem gua potvel, 100 milhes de sem-teto, 800 milhes de famintos, 150milhes de crianas desnutridas e 14 milhes de crianas mortas anualmente antes de completar 5 dias de nascidas.Pangloss poderia dizer que, afinal de contas, o capitalismo nada tem a ver com isso. At mesmo um crtico feroz desse modo de produo, ao qual chama de sistema produtor de mercadorias, como Robert Kurz, chegou concluso de que hoje o que faz sofrer as massas do terceiro mundo no a provada explorao capitalista de seu trabalho, mas sim, ao contrrio, a ausncia dessa explorao. Roberto Campos, defensor perseverante do capitalismo neoliberal ou conservador, vive repetindo isso exausto. Como diria Pangloss, o capitalismo a ser tomado como parmetro deve ser o dos pases centrais. O resto... bem, o resto.

TheEconomist disse mais ou menos a mesma coisa ao saudar a Amrica Latina por estar deixando para trs seu velho estilo. Que estilo seria esse? Para The Economist, o estilo de construir indstrias por trs de altas barreiras tarifrias para atingir a auto-suficincia; de desencorajar investimentos estrangeiros por serem imperialistas; de no dar ateno s exportaes; de deixar os dficits fiscais crescerem; de assumir empresas quase falidas do setor privado nas quais empregos estariam em perigo; e de levantar elevados emprstimos junto a bancos estrangeiros. The Economist, em outras palavras, est dizendo que agora a Amrica Latina ingressa verdadeiramente no mundo do capital, o mundo supostamente maravilhoso das sociedades afluentes. O que a Amrica Latina fez antes teria sido um descaminho. Algum teria dado para ela e para os demais pases do terceiro mundo a receita errada.

Pode at ser que Kurz esteja se referindo queles pases em que no ocorreram sequer processos de industrializao no ps-guerra. So pases que alguns autores se negam mesmo a situar no terceiro mundo, preferindo empurr-los para um quarto mundo sem eira nem beira. So pases ou regies da sia Meridional, frica do Norte, frica Subsaariana e Amrica Latina onde as relaes assalariadas de produo ainda no se enraizaram firmemente. Thurow considera que o desaparecimento de qualquer desses pases passaria desapercebido e no iria influir em nada no desenvolvimento da economia mundial. Apesar disso, tais regies h muito esto condicionadas e subordinadas pelo mercado mundial capitalista e por sua explorao. O capitalismo determina suas vidas e Kurz certamente no ignora esse fato.

Se Kurz deu um cochilo, The Economist, ao contrrio, sabe exatamente do que se trata. A histria da Amrica Latina nos ltimos quarenta e tantos anos justamente a histria da consolidao do modo de produo capitalista na maioria de seus pases. Do mesmo modo que os demais pases em desenvolvimento do terceiro mundo, eles experimentaram em toda a sua extenso e intensidade a explorao direta do sistema produtor de mercadorias. A rigor, no exclusivamente de seu capitalismo, mas especialmente do capitalismo exportado pelos pases centrais.

A construo da indstria moderna nesses pases contou fundamentalmente com investimentos estrangeiros. Eles arreganharam suas portas e derrubaram suas barreiras tarifrias para permitir que os capitais salvadores do primeiro mundo se implantassem em seus solos e multiplicassem os supostos frutos milagrosos de bonana e bem-estar. Em qualquer uma das naes do terceiro mundo fcil verificar a predominncia das empresas estrangeiras nos principais ramos produtivos. Para isso, os Estados nacionais e suas empresas estatais encarregaram-se da construo da infraestrutura (energia, transportes, comunicaes), indispensvel implantao e funcionamento das unidades industriais. Se mais tarde essas naes voltaram a levantar barreiras tarifrias, isso se deveu principalmente aos interesses e presses das prprias empresas estrangeiras, no sentido de manter mercados cativos e a salvo da concorrncia com outras multinacionais.

Fazia parte dos interesses do capital das naes centrais investir em regies atrasadas. Esses investimentos tm representado uma das principais medidas compensatrias encontradas pelo capital para fazer frente tendncia de queda de sua taxa mdia de lucro. A exportao de plantas industriais menos rentveis e, em geral, poluentes para os pases em desenvolvimento, foi parte do processo geral de exportao de capitais e mercadorias dos pases centrais no ps-guerra. Por esse meio, aproveitavam-se das vantagens de mo-de-obra e matrias-primas mais baratas para elevar as taxas de lucro e atender quela necessidade compensatria.

Falando em outros termos, em seu processo de expanso permanente, o capital cresce tanto em profundidade ou verticalmente, elevando a produtividade, aumentando a parcela do capital constante e a extrao da mais-valia relativa, quanto em extenso ou horizontalmente, aceitando nveis inferiores de produtividade, grande participao do capital varivel e a extrao da mais-valia absoluta.

verdade que o processo de recuperao dos pases centrais aps a Segunda Guerra Mundial e, depois, as demandas de investimentos determinadas pela revoluo cientfica e tecnolgica, direcionaram os fluxos de capitais principalmente entre os prprios pases centrais. Mesmo assim, os pases em desenvolvimento do terceiro mundo mantiveram por quase duas dcadas uma participao significativa nos fluxos de investimentos diretos provenientes do primeiro mundo, chegando a 42% do total em 1975. O capital sempre manteve, em todo o perodo, sua tendncia para produzir peas e equipamentos menos sofisticados em pases onde matrias-primas e fora de trabalho podiam ser encontradas a preos mais baixos.

A inflexo nessa tendncia s ocorreu a partir de meados dos anos 70. Os fluxos de investimentos dos pases centrais para os pases da periferia do sistema passaram a diminuir de forma acentuada, chegando mesmo a mudar de sentido nos anos 80, quando o fluxo de capitais dos pases pobres para os ricos se elevou a 450 bilhes de dlares. Desde ento, a contratao de emprstimos externos pelo setor pblico passou a desempenhar papel mais importante na manuteno de taxas positivas de desenvolvimento no terceiro (e tambm no segundo) mundo. Isso se tornou possvel em particular porque o sistema financeiro internacional se apropriara de grande volume de dlares que a alta do petrleo concentrara momentaneamente nos pases rabes produtores. Criou-se todo tipo de facilidade para emprestar esse dinheiro aos pases necessitados.

The Economist tem razo ao responsabilizar os pases do terceiro e do quarto mundos pelo levantamento de emprstimos em bancos estrangeiros, sem ter condies para sald-los e, pior, pelo uso indevido que muitas vezes praticaram com o dinheiro obtido. Bilhes de dlares escoaram pelas malhas da corrupo, indo engordar as riquezas das classes ou fraes de classe que dominavam a economia e o poder poltico desses pases. No esqueamos que na luta para derrotar a Unio Sovitica e o socialismo, a sagrada aliana dos pases centrais capitalistas aceitava todo tipo de aliado, desde que mantivesse o poder e no tivesse escrpulos para esmagar o inimigo vermelho.

The Economist omite maliciosamente a parte de responsabilidade que cabe aos pases centrais na orgia financeira em que se transformou o endividamento externo durante a dcada de 70. De qualquer modo, o resultado de tudo foi que a dvida dos pases em desenvolvimento, que era de 62 bilhes de dlares em 1970, saltou para 572,8 bilhes em 1980. Em grande parte porque o pagamento dos juros e servios da dvida era facilitado pela oferta de novos crditos pelos bancos internacionais.

Em 1979 a dvida teve um acrscimo ainda mais rpido porque os juros praticados pelos Estados Unidos foram elevados bruscamente e de forma unilateral, resultando num crescimento inusitado dos pagamentos lquidos que os pases devedores tinham que desembolsar. Essa situao acabou levando o Mxico a decretar a moratria, em 1982. Em contrapartida, o sistema financeiro internacional suspendeu os emprstimos voluntrios que praticava e colocou o Fundo Monetrio Internacional (FMI) como xerife responsvel por programas de ajuste financeiro e econmico, que os devedores deveriam aplicar para ter direito a novos emprstimos.

Os pases em desenvolvimento entraram nos anos 80, dessa forma, com problemas de toda ordem, em especial na balana de pagamentos com o exterior. Foram obrigados a comprimir substancialmente seu consumo interno, suas importaes e suas taxas de investimento, ao mesmo tempo que faziam esforos desesperados para elevar suas exportaes, com o fito de fazer frente aos encargos da dvida externa. Isso explica, em parte, por que os pases em desenvolvimento elevaram sua participao no comrcio internacional e ainda conseguiram manter taxas positivas de crescimento durante os anos 80 (3,8%), embora bem inferiores s do passado.

Assim, ao contrrio do que afirma The Economist, as economias do terceiro mundo chegaram a ser qualificadas de economias exportadoras durante a dcada de 80, na busca de divisas com as quais pudessem saldar os juros e servios da dvida externa. Apesar de haver comprometido valores que, em alguns casos, chegaram de 10 a 15 bilhes de dlares anuais, esses pases viram sua dvida total mais que dobrar entre 1980 e 1990. Transferiram cerca de 200 bilhes de dlares para pagamento de juros, mas mesmo assim sua dvida externa atingiu a cifra astronmica de 1,28 trilho de dlares em 1990.

Uma situao dessas teria, inevitavelmente, que desarranjar as economias dos pases devedores. Para sustentar as taxas de crescimento destinadas a alimentar as exportaes, foi necessrio combinar generosos incentivos fiscais com subsdios e outras formas de estmulo s exportaes, incluindo investimentos financiados pelo Tesouro nacional. O dficit pblico tornou-se um pesadelo, coadjuvado e realimentado pela inflao. Os setores no exportadores sofreram uma vertiginosa queda em suas atividades produtivas. Governos assumiram empresas falidas do setor privado para salvar os capitalistas, no os empregados. Em 1990, a mdia de produo por habitante, na Amrica Latina, havia voltado aos nveis de 1976, configurando os anos 80 como uma dcada perdida. Perdida principalmente porque esses pases no tiveram condies de investir em novas plantas industriais e, muito menos, em pesquisa e desenvolvimento (para no falar em educao), ficando impossibilitados de enfrentar com o mnimo de condies soberanas os desafios que comearam a ser colocados pela revoluo tcnico-cientfica.

No incio dos anos 90, o fosso que separa os pases ricos dos pases pobres havia se alargado tragicamente. Enquanto a renda per capita dos pases centrais tinha ultrapassado a casa dos 20 mil dlares anuais, a dos pases em desenvolvimento (como Brasil, ndia, Mxico, Ir e outros), excetuando os Tigres Asiticos, no chegara a 3 mil dlares. E a dos pases do chamado quarto mundo (Bangladesh, Zaire, Zmbia, Bolvia) no chegava a mil dlares. Embora, como j dissemos, a renda per capita no seja um indicador completamente vlido para medir o desenvolvimento humano de um pas, ela pode dar uma idia de como as desigualdades entre os diversos povos havia se alargado. Uma coisa, porm, era comum a todas as naes em desenvolvimento e subdesenvolvidas: o empobrecimento havia se espraiado de forma assustadora. Os ajustes estruturais das economias em desenvolvimento, impostos pelo FMI (reequilbrio da balana do pagamentos, contrao do consumo interno e reduo do dficit pblico, com cortes nos investimentos sociais), aprofundaram a misria e tornaram ainda mais desastrosos seus efeitos recessivos. O outro lado da vitrine mexicana, por exemplo, sempre apresentada como modelo de ajuste a ser seguido, era deprimente: dficits na balana comercial (cerca de 8 bilhes de dlares em 1991), achatamento do salrio mnimo (que, em 1990, chegou a 42% do de 1982) e perda do poder de compra dos salrios mais altos em torno de 20%.

Em todo o terceiro mundo, o desemprego atingiu parcelas significativas da fora de trabalho (em alguns casos, at 30%), fazendo emergir exrcitos de indigentes de vrios milhes de seres. As epidemias de fome em diversas regies da sia, frica e Amrica Latina tornaram-se fato corriqueiro no noticirio internacional. Surtos de violncia aparentemente imotivados passaram a explodir em todas as regies que se encontram no lado escuro do mundo dominado pelo capital.

Em 1991 e 1992 as economias em desenvolvimento voltaram a dar indcios de crescimento, embora lento e instvel, particularmente na Amrica Latina e sia. Eles coincidem com os ajustes estruturais dos pases centrais, que foram os pases pobres a realizar aberturas ainda mais amplas para receber os segmentos industriais menos rentveis, mais poluentes, mais exigentes de mo-de-obra, energia e matrias-primas e cujos mercados no apresentam a potencialidade de antes. Apesar de toda a retrica modernizadora, essas so as condies bsicas do primeiro mundo para que os pases do terceiro se habilitem a receber novos investimentos. O mesmo The Economist, que hipocritamente pretende dar lies de moral aos pases atrasados, referindo-se a um polmico memorandum de Lawrence Summers, economista-chefe do Banco Mundial, concorda que a migrao de indstrias para o terceiro mundo, incluindo indstrias sujas, de fato desejvel.

Os argumentos de Summers enquadram-se totalmente na lgica econmica do sistema de produo-para-lucro. Ela mostra que o custo econmico da poluio depende dos ganhos no realizados, devido a mortes e doenas. Como nos pases pobres esses custos so mais baixos, as indstrias sujas teriam maiores ganhos. Alm disso, os custos crescem desproporcionalmente em relao ao aumento da poluio. Como os pases pobres apresentam lugares mais limpos, a transferncia de indstrias poluentes para esses lugares reverteria em reduo de custos. Finalmente, como o valor agregado do meio ambiente sadio aumenta de acordo com a renda, a populao dos pases pobres seria beneficiada com a transferncia da poluio dos pases ricos. O pior que essa, digamos, teoria do benefcio da poluio no se destina a justificar uma ao futura. H muito tempo, no s as indstrias poluentes dos pases centrais vm sendo exportadas para o terceiro e quarto mundos (quem se esquece do desastre da indstria da Union Carbide, em Boppal, na ndia?), mas os prprios rejeitos txicos dos Estados Unidos, Comunidade Europia e Japo (s os Estados Unidos produzem 200 a 400 milhes de toneladas de lixo txico) so exportados para pases da sia, frica, Amrica Latina e Europa Oriental, a preos que variam entre 40 e mil dlares a tonelada. H pouco, os movimentos ecolgicos descobriram exportaes de materiais txicos para o Brasil, usados criminosamente na produo de fertilizantes.

Thurow considera que os fracassos do terceiro mundo superam em muito os sucessos do primeiro mundo. Suas matrias-primas tero mercados cada vez menores porque a revoluo de materiais cientficos usa um nmero cada vez menor de recursos naturais por unidade do produto nacional bruto. Essa reduo tem provocado sensveis quedas nos preos das matrias-primas. Em 1990, esses preos foram 30% inferiores aos de 1988 e quase 40% abaixo do que foram em 1970, a preos corrigidos. Por outro lado, ainda segundo Thurow, a Amrica Latina e a frica no podero crescer se tiverem que saldar dvidas na proporo das existentes.

Os reajustes estruturais dos pases ri