ilusao de fusao na relacao do casal (jose otavio fagundes)

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Ofl SEGREDOS DE FAMÍLIA pedência do sujeito singular. Poderemos refletir em tor- no de uma herança dos traços abandonados da memó- ria familiar; estes "não-ditos familiares" têm como re- gra o segredo e, como foi assinalado por diversos co- legas, a partir da terceira geração pode criar uma nova regra: segredo que existe um segredo". Nesta perspectiva genealógica, não existe uma re- lação de causa e efeito, como seria o caso de uma epis- temologia linear. Podemos imaginar uma causalidade circular que se em diversos níveis de interação da fantasmática grupal. Bibliografia ANZIEU, D. Les enveloppes psychiques, Paris, Dunod, 1987. ErGUER, A. El parentesco Jantasmático, Buenos Aires, Amorrortu, 1990. FUSTIER-AUBERTEL. "La censure familial'', 3" Congrês de Therapie Familiale Psychanalytique, Lyon, 1991. GRANJON, E. "Quelques reflexions sur l'enveloppe genealogique familiale", Journées d'Etude C.O.R., France, 1986. KA.t:s, R. Le groupe et le sujet du groupe, Paris, Dunod, 1993. Rurz CORREA, O. "Aspectos da transferência-contra transferência na abordagem psicanalítica do grupo familiar", in RAMOS, Magdalena (Org.), Terapia de casal e família - o lugar do tera- peuta, São Paulo, Brasiliense, 1992. ,,! ILUSÃO DE FUSÃO NA RELAÇÃO DO CASAL José Otávio Fagundes Psiquiatra graduado pela Menninger School of Psychiatry, Topeka, Kansas, USA; psicanalista membro efetivo da Socieda- de Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da lnternational Psychoanalytical Association.

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Page 1: Ilusao de Fusao Na Relacao Do Casal (Jose Otavio Fagundes)

Ofl SEGREDOS DE FAMÍLIA

pedência do sujeito singular. Poderemos refletir em tor­no de uma herança dos traços abandonados da memó­ria familiar; estes "não-ditos familiares" têm como re­gra o segredo e, como já foi assinalado por diversos co­legas, a partir da terceira geração pode criar uma nova regra: "é segredo que existe um segredo".

Nesta perspectiva genealógica, não existe uma re­lação de causa e efeito, como seria o caso de uma epis­temologia linear. Podemos imaginar uma causalidade circular que se dá em diversos níveis de interação da fantasmática grupal.

Bibliografia

ANZIEU, D. Les enveloppes psychiques, Paris, Dunod, 1987. ErGUER, A. El parentesco Jantasmático, Buenos Aires, Amorrortu,

1990. FUSTIER-AUBERTEL. "La censure familial'', 3" Congrês de Therapie

Familiale Psychanalytique, Lyon, 1991. GRANJON, E. "Quelques reflexions sur l'enveloppe genealogique

familiale", Journées d'Etude C.O.R., France, 1986. KA.t:s, R. Le groupe et le sujet du groupe, Paris, Dunod, 1993. Rurz CORREA, O. "Aspectos da transferência-contra transferência

na abordagem psicanalítica do grupo familiar", in RAMOS, Magdalena (Org.), Terapia de casal e família - o lugar do tera­peuta, São Paulo, Brasiliense, 1992.

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ILUSÃO DE FUSÃO NA RELAÇÃO DO CASAL

José Otávio Fagundes

Psiquiatra graduado pela Menninger School of Psychiatry, Topeka, Kansas, USA; psicanalista membro efetivo da Socieda­de Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da lnternational Psychoanalytical Association.

Rosana
Texto digitado
in: Casal e Família como Paciente Magdalena Ramod (Org.) São Paulo: Editora Escuta; 1994.
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Introdução

O trabalho que tenho feito ao longo dos anos com casais, em psicoterapia de casal, levou-me a perceber que a relação íntima de um casal tem o poder de reativar intensamente as etapas evolutivas do desenvol­vimento emocional de cada um dos parceiros. Portan­to, o casal, ao ativar reciprocamente o mundo das rela­ções objetaisinternas, reativa também relações objetais primitivas. Se o casal não for capaz de lidar com esse fenômeno regressivo, vai haver um sério sofrimento da relação, com dificuldade para ambos experimentarem um relacionamento sexual e emocional maduro.

Dentre essas relações objetais primitivas/ quero, nes-. te trabalho, destacar a importância da vivência d.a "ilu· são de fusão", por considerá-la uma fantasia que tYpH·

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11Jl11Â(llll2 FUSÃO NA RELAÇÃO DO CASAL

n 'I 't • n IIH mu.itn freqüência. Se esta "ilusão de fusão" nilu fot· lidada satisfatoriamente pelo casal ao longo de ra•u l'dncionamento, ou através de uma análise indivi­d 11nl ou de casal, então cada um vai usar o outro con­linumnente e abusivamente para dar vazão a essa fan­lnsia. O resultado disso vai ser a regressão da relação pm:a um estado psíquico mais primitivo, do tipo narcí­sico. A "ilusão de fusão" como fantasia inconsciente po­derá gerar distorções na percepção um do outro, levan­do ambos a uma relação afetivamente pobre, sem ca­pacidade de contenção da possessividade, inveja e ciúmes; sem capacidade de empatia, doação e amor de um pelo outro, e sem capacidade de transcendência das barrei­ras do self (necessária para haver a união de um com o outro) . .Assim sendo, um vai se utilizar do outro, sobre­tudo para descarga de sua destrutividade e de seus con­flitos edipianos e pré-edipianos.

·Em meu trabalho anterior, "Ilusão de fusão e nar­cisismo" (1993), escrevi que, no narcisismo, o indivíduo recorre à união total com o objeto idealizado, como for­ma de manter sua onipotência narcísica, por medo de perder o objeto ideal, experimentar.inveja e cair no de­sespero, abandono e desintegração mental. Na onipo­tência narcísica, o sujeito se sente dono. do objeto idea­lizado e, assim, se sente poderoso. Ele lida com os ou­tros através desse "objeto fantasma", projetando neles o "objeto fantasma bom ou maus" e, como conseqüên­cia disso, não consegue ter um contato real com o ou­tro, ou não consegue ter um contato com o outro real, pois sua relação é com objetos parciais. Acredito ser útil

).

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retomar algumas idéias e referências bibliográficas que escrevi naquele trabalho:

Freud (1914) descreve o narcisismo pt•itn<lrio afinmmdo que, nos estágios mais primitivos, a criança não tem re.lação mnodo­nal com o objeto, mas apenas com o própril) se/f. Ele se 1·cfere ao objeto enquanto objeto das pulsões, e a relação ernocionnl, pro­priamente dita, com o objeto, se inicia mais tarde. Chama de mw­dsismo secundário àquele estado em que a. libido retornn ao ego depois de retirada dos objetos em que estava investida.

M. Klein (1946) diz aue uma característica típica das relações objetais e~quizÓides é a sua natureza narcísica, a qual deriva dos processos introjetivos e projetivos in­fantis. Ela mostra que os mecanismos básicos presen~ tes no .narcisismo são: negação, cisão, identificação projetiva, onipotência e idealização. Estas defesas são organizadas para lidar com a destrutividade da crian"' ça, o que existe desde o início de seu desenvolvimen­to. Projetada nos objetos externos, esta agressão não só os transforma em "maus"; como determina que eles se­jam sentidos como perseguidores. Klein discorda CJ.uan-: to à concepção de narcisismo primário de Freud, afir­mando que relações objetais já existem desde o início da vida. O primeiro objeto vem a ser o seio materno, que o bebê cinde em bom (gratificante) e mau (frustra"' dor). Como resultado desta cisão, separam-se amor 1.':~ ódio. Ela afirma que o primeiro objeto bom atua como ponto focal do ego, combatendo o processo de cisão c contribuindo para sua integração. Em nota de rod.npé deste artigo, ela menciona que Winnicott ahotda~ pot outro ângulo, o mesmo processo: ele mostra ctm:w nin~,

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11 UtiÂO DE f;USÃO NA RELAÇÃO DOCASAL

t••gnH.,~IIO P adaptação à realidade dependem essencial­mvtllf~ cht forma pela qual o bebê experimenta o amor e o:; cuidados maternos.

Klein conclui que a vida mental não pode se dar no vazio, pois onde não há relação de objeto também não há psiquismo. Há, para ela, estados auto-eróticos e narcísicos e não estágios. M. Klein (1952) escreve que a diferença entre a opinião de Freud e a dela é menor do que parece à primeira vista, pois o .uso que ele faz do termo "objeto" é o de objeto de um instinto, ao passo que ela amplia esse uso compreendendo relação objetai com aquela que envolve as emoções, as fantasias, as angústias e as defesas do bebê.

Winnicott (1945, 1951) aceita um estágio de narci­sismo primário que coincide com o que ele chama de desenvolvimento emocional primitivo (neste estágio, a criança não t~m mente e necéssita totalmente dos cui-

. dados maternos). Mas há um ponto em que Winnicott se aproxima de Klein, ao reconhecer que a criança, neste estágio, tem capacidade de criar o objeto, imaginando que há algo com o qual sua fome e suas necessidades podem ser satisfeitas. A mãe, ao dar o seio, oferece um ponto de coincidência qúe leva a criança a pensar que ela criou esse objeto. Neste sentido, esse objeto é parte da criança: não se modifica a estrutura narcísica, mas se cria algo novo que Winnicott chama de área de ilu­são. O bebê alucina (alucinação= percepção sem obje­to) o seio e, quando a mãe o dá, tem a ilusão (ilusão = percepção distorcida do objeto que existe) de que esse objeto foi criado por ele. Winnicott diz que a mãe tem a tarefa de ir paulatinamente desiludindo o bebê, e com

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isso a situação, de alucinatória, vai se transformando em ilusória e real. A relação de objeto se E:~stabelece des­ta forma: no momento em que o bebê percebe que o seio não é produto da própria criação, mas que tem au­tonomia, dá-:se a passagem da ilusão para. a realidade de objeto. Winnicott pensa que seu conceito de ilusão é prévio ao de fantasia inconsciente de Klein porque ainda não implica objeto.

Penso que estas concepções de Wirmico.tt são de .ex­trema importância, pois propõem a passagem da alu­cinação para a ilusão e para a realidade. Assim, a per­cepção do outro, tão necessária à vida do indivíduo, precisa encontrar seu lugar de passagem de .um outro fantasmagórico para um outro real.. Embora Winnicott fale desse estágio de ilusão como sendo um estágio de nar­cisismo primário, ele refere que, nesse estágio, .a crian­ça: cria o objeto i cria porque precisa de um objeto e não prescinde dele. A idéia de criar o objeto garante a ela a sensação d,e ter a posse dele e a defende do medo de perdê-lo, uma vez que o mesmo estaria dentro da pró­pria criança. Criar o objeto, sem dúvida, nos remete à idéia de união total com o objeto, de ser uno com ele, pois na vivência da.unidade estaria contida a gratifi­cação, a integração e a harmonia, e estaria excluída a frustração e a dor. Embora Winnicott diga que a rela­ção de objeto se estabelece quando a criança percebe que o objeto não é criação dela, no estágio de ilusão, há uma relação de objeto do tipo primitivo, porér.n, sempre relação de objeto. Nesse estágio de ilusão,~;.un objeto pode ser confundido com outro a fim d(;~ St1tÍflh~· zero sujeito. M. Milner (1955) chama ess<:1 procusso dt'

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fusão. Diz ela que "o processo de fusão se dá através da fantasia (inconsciente), porque é somente na fanta­sia (inconsciente) que dois objetos são fundidos em um. Entretanto, o conceito de fantasia não especifica tanto esse fenômeno; o termo ilusão é também necessário porque esta palavra implica que há mn.a relação afeti­va com um objeto externo, embora fantasmático, des­de que a pessoa, produzindo a fusão, acredita que o objeto secundário é o primário". Nesse mesmo texto, ela diz que, se a criança tem de ficar ciente prematura­mente de sua identidade separada, por nêcessidades não satisfeitas, ou a ilusão de união se torna caos ca­tastrófico em vez de felicidade cósmica ou é abando­nada e o desenvolvimento precoce do ego ocorre. Ela acredita que é preciso experimentar o estágio da fusão antes de se ter a noção de diferenciação.

M. Mahler (1968) escreve que relações objetais se de'­senvolvem a partir da fusão simbiótica com a mãe ou narcisismo primário; ela também se aproxima de Freud (1930) quando este dizia que a ocorrência de uma fu­são com o objeto primário propiciaria, ao ego, um sen­timento oceânico e uma busca de restauração do narcisismo.

A contribuição de R. Tagliacozzo e outros (1985) é muito interessante pois menciona que a organização fusional é uma modalidade narcísica e onipotente an­terior à posição esquizoparanóide de Klein. Escrevem que: "A clínica mostra oscilações fusão +1' identifica­ção projetiva que possivelmente precedem os movi­mentos inerentes à posição esquizoparanóide e que per­sistem no pensamento adulto como modalidade psíquica pri-

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JOSÉ OTÁVIO FAGUNDES TI

mordial, particularmente evidente no enamoramento, (grifo meu)

Pessoalmente, parto do ponto de que um se/f exíste desde.o nascimento, mas que para atualizar sua poten~ cialidade necessita de um objeto. A vivência de ttnid~ dade do sujeito só pode ser mantida através de um ou~ tro, alucinado ou não, que o sujeito irá buscar para re~ fazer sua unicidade. Proponho que, inicialmente, este outro é criado pelo sujeito através da "ilusão de fusão" e, a partir daí, vai havendo maior diferenciação do self. Dificuldades acentuadas nessa vivência fusional primá~ ria fazem com que o sujeito permaneça ou retorne ao estado nardsico de "ilusão de fusão". Na medida em que .ele alucinar e desejar o objeto, vai haver o uso da "ilusão de fusão" para criar e suprir uma relação1. Se, pelo contrário, o sujeito não alucinar e não desejar () objeto (alucinação negativa de Bion, 1967) numa. tenta~ tiva de anulá-lo, então vai haver um uso da "ilusão de fusão" para atacar sadicamente e destruir a relação2•

1. Relaciono isto com o que Green (1983) descreveu como MrciHIN mo de vida, e Rosenfeld (1987) como narcisismo libidinal. Freud (l9HI), anteriormente, já descrevera com genialidade o "duplo", umn divl~ilo do self (nos reflexos dos espelhos, nas sombras, nos espíritos pt·otottu·e:,), como proteção contra a destruição do ego e que surge a pal'tlr dn iilll.o amor do narcisismo primário. Mais tarde, esse duplo se expande nu itl~>.ll de ego e superego.

2. Relaciono isso com o que Green (1983) descreveu mmo NMdHÚ.I· mo negativo ou de morte, e Rosenfeld (1987) como 11<lrdsisnm !ll'l>lrullvP Freud (1919) também descrveu o "duplo" revet·st> qtw H!! lnn•t•l 11

terioso mensageiro da morte" e que tem conexão çom o t>~at''~'~'~'!l'.i 1i1.11

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78 ILUSÃO DE FUSÃO NA RELAÇÃO DO CASAL

Penso que o sentido de unicidade do sujeito existe desde o nascimento como um potencial vir-a-ser que vai se consolidando a partir das experiências emocio­nais, possibilitando que o sujeito adquira noção de si mes­mo como entidade separada, noção do outro como enti­dade separada e noção de sua integração com o outro.

A idealização do objeto que está implícita na "ilu­são de fusão" é, na verdade, a idealização de um obje­to interno que é tratado de forma fusional, isto é, de for­ma indiferenciada de si mesmo (self),

Esses conceitos que foram abordados no meu tra­balho a11terior, "Ilusão de fusão e narcisismo", referem­se à "ilusão de fusão" no indivíduo e sua implicação na relação psicanalítica. No trabalho que estou agora apresentando, quero expandir o conceito de '~ilusão de fusão" para a relação de casal e sua implicação na te­rapia de casal. Penso que um casal desenvolvendo uma relação emocional, mesmo que já tenha estabelecido a diferenciação self-objeto, em muitos momentos tem grandes chances de regredir e se iludir com uma vivên­cia fusional. O objeto interno de um vai ser, então, co­locado no parceiro através da fusão e da identificação projetiva. Como resultado disso, vai haver confusão entre o objeto interno de um e o objeto externo; outras vezes, o objeto interno de um se confunde com o obje­to interno do outro, gerando uma situação caótica e psi­cotizante. A fantasia de vivência fusional pode ficar secretamente encapsulada dentro do casal, como tam­bém pode aparecer de forma mais aberta. Através dis­to, cada um dos cônjuges ou tenta se apossar do outro num desejo libidinal onipotente, ou tenta excluir e des-

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valorizar o outro de forma destrutiva. O primeiro caso, vou chamar de "ilusão de fusão positiva" e, o segun­do, "ilusão de fusão negativa". O "objeto fantasma'', tanto idealizado quanto desvalorizado, é, sempre, um objeto de posse do indivíduo, um trunfo, investido de forma libidinal ou destrutiva para manter sua onipo­tência narcísica e ajudá-lo a se defender contra as suas limitações, frustrações e depressões. .

Kernberg (1980) escreve que o apaixonamento é uma disposição emocional complexa que integra a ex­citação sexual, a ternura, a identificação genital, a idealização amadurecida e o compromisso com uma relação objetai proftmda. Segtmdo ele, o indivíduo, para estabelecer relações amorosas normais, precisa desen­volver as seguintes condições:

1. a capacidade para ampliar e aprofundar a experiên­cia do ato sexual e do orgasmo com o erotismo se­xual proveniente da integração da agressividade com a bissexualidade (identificação homossexual sublima­tória);

2. uma relação objeta! profunda, o que inclui a trans­mutação dos esforços e dos conflitos pré-genitais sob a forma de ternura, interesse e gratidão e a capaci­dade para identificação genital com o parceiro, uni­das à identificação sublimatória com a figura paren­ta! do mesmo sexo (que, no entanto, é abandonada);

3. despersonificação, abstração e individualização- ou seja, amadurecimento- do superego, de modo que a moralidade infantil tenha se h·ansformado em va­lores éticos adultos, e uin sentimento de responsabi-

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lidade e de compromisso moral que reforça o com~ promisso emocional mútuo do casal. Kernberg con­clui que a obtenção da capacidade para se relacionar em profundidade com seu próprio self, e também com os outros, parece ser o pré-requisito básico para um relacionamento amadurecido e duradouro entre duas pessoas que se amam.

Desta forma, podemos pensar que, nos fenômenos de fusão regressiva, que confundem a diferenciação (j_.(j]Çf.,..,~n-(j_t::>T'f '.:\ l""!;!:!t.'t"'\!:1!1"11A~""-lo. n~'t"!:!l ~'t"Y\!:::111"1 f"\ 1"\111-1"/"\ oc+~ co1"1~-""'""'';/l AII.\.4.V V'-'';JJ W ..... 1<.4.1"'""""""""""' ...... ..._. .t"'".A.W ...... J.A.Lio .. -I..L V'-""-"""...., ""VIl-- .., ....... ~llooL

mente comprometida. Somente quando a experiência de um self distinto se acha consolidada é que a experiên­cia subjetiva de transcendência, através da união com o outro, é possível.

Apresentarei, agora, um caso clínico para ilustrar a vivência de "ilusão de fusão".

Caso Clínico

Fui procurado pelo casal Edu e Ana para terapia de casal porque viviam intensos conflitos conjugais, não conseguiam mais se falar e os filhos sofriam, envolvi­dos na situação. Estavam separados há mais de um mês. Apesar de desejarem. a separação de fato, não conseguiam realizá-la porque ambos a sabotavam. Edu, advogado de mais de 40 anos, apesar de estar moran­do fora de casa pela primeira vez em 15 anos de casa­mento, angustiava-se com sua nova situação e com a

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falta dos filhos. Ana, socióloga de mais de 30 anos, vi­via uma depressão acentuada por ter descoberto que o marido tinha tido amantes e por ele ter saído de casa. Ela estava sob tratamento antidepressivo. Ana vira, nos últimos cinco anos, seu mundo desabar após a çfesco­berta de alguns casos extraconjugais do marido. Ela sempre idealizara seu casamento e seu marido,:tendo conduzido sua vida em função dele. Essa intensa idea­lização fez com ela não percebesse, ou negasse, as inú­meras mostras de afastamento dele. Toda a negação e idealização de Ana estavam a serviço de uma "ilusão de fusão" que ela vinha mantendo com o marido. Tan­to assim, que ela foi mudando sua personalidade du­rante o. ~asamento para agradar a ele e, dessa forma, mantê-lo JUnto de si. Empregando palavras suas, ela constantemente "estendia o tapete vermelho para ele passar" e, com isso, desculpava-o de tudo. Assim, Ana mantinha uma "ilusão de fusão" com Edu, satisfazen..: do seus desejos e, desta forma, ela o tinha para si. Com isto, ela também negava seus ciümes e suas diferenç_as. Tratando-o como um rei, ela passava a se sentir a-i;ai­nha. Embora Ana tentasse se moldar, se amalgamar tão intensamente a Edu, ele se afastava e menos a respei­tava. Quando a realidade do casamento veio à tona, Ana caiu em depressão intensa por perceber um casa­mento que não existia e uma relação afetivamente po­bre e vazia de significados.

Edu, por sua vez, sempre tivera fobia de casamen­to, pois sempre temera que o casamento lhe tirasse a liberdade. Ele sonhava com uma vida totalmente livre, sem ligação amorosa com uma mulher. Por isso, sem.-

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pre tivera muitas namoradas ao mesmo tempo. Noivo de outra, passou a namorar Ana; tomou~a como confi­dente de suas ambivalências com a noiva e uma outra namorada. Ana não lhe cobrava nada, uma vez que era "liberal" e não se inco'modava com as atitudes dele. Graças a isso, Edu se sentiu confiante e se casou com ela. Fizeram um pacto: se houvesse traição, contariam tudo. Durante alguns anos, até o nascimento dos filhos, o casamento foi bem. Num certo momento, Edu foi se sentindo perseguido e angustiado porque estava ten­do um caso extraconjugal mais sério. Então, condoído de culpa, contou para a esposa, porque precisava que esta soubesse. Na terapia de casal, ficou evidente que sua confissão era um pedido de socorro para que ela percebesse o quanto estavam se afastando, o quanto precisavam salvar o relacionamento deles e percebes­sem a mentira em que ele vivia. Mas, na realidade, con­tar tudo significou o início da deterioração do casamen­to.,Nos anos seguintes, outros casos extraconjugais se sucederam até o momento da separação, quando pro­curaram terapia de casal para conversar um com o ou­tro e refletir sobre suas vidas.

Edu sempre buscava uma paixão fora do casamen­to, mas, mesmo que a encontrasse, não seguia em fren­te. Por trás desta atitude de Don Juan, aparecia uma pessoa insegura emocionalmente, que precisava se va­lorizar e se auto-afirmar através de suas conquistas amorosas. Ele não conseguia aprofundar nenhuma das suas relações, por medo de ficar enredado e preso. A prisão da qual Edu se queixava não era a do casamen­to, mas, sim, a prisão do seu mundo interno. Na ver-

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dade, ele precisava conquistar e dominar as mulheres, porque competia com elas e temia o poder delas. Ele temia valorizar uma mulher porque, se isso ocorresse, precisaria admitir as qualidades dela e se sentiria de­pendente. Ao contrário de Ana, Edu vivia uma "ilusão de fusão negativa", pois temia precisar de alguém e en­tão se amalgamar a ela, a ponto de perder sua própria identidade. Subjacente a isso, estavam seus temores. de fragilidade frente à figura de uma mãe pré-edipiana, onipotente e mágica. Então, a única maneira de lidar com um relacionamento amoroso era desvalorizando e controlando a pessoa desejada, para se garantir não ficar fascinado e subjugado a ela. Em conseqüência dis­so, ele vivia constantemente infeliz e solitário. Isso tam­bém se refletia no seu relacionamento com os filhos, que era distante e emocionalmente pobre. Sua dificuldade em assumir a paternidade estava ligada à sua rivalida­de edípica; sua competição e rebeldia com o pai causa­ram uma precária internalização da figura paterna. Como resultado disso, Edu era mais preocupado em provar sua genitalidade do que em desenvolver sua paternidade. No trabalho, liderando os funcionários, ele se sentia bem, porque aí suas ações eram objetivas e não surgia seu lado afetivo subjetivo.

Neste momento, parecem claras as diferenças e se­melhanças entre Edu e Ana. Enquanto ela vivia aber­tamente uma "ilusão de fusão" (positiva), ele vivia uma "ilusão de fusão" encoberta (negativa). Contudo, am­bos viviam as vicissitudes da "ilusão de fusão" e, por isso, também se compensavam afetivamente. Quando chegaram à terapia, a comunicação entre eles estava to-

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talmente interrompida e qualquer assunto era eivado de críticas, acusações, culpas, ciúmes e controle. O cli­ma do casal era francamente persecutório. As discus­sões eram sobre qualquer coisa e o controle em relação a dinheiro, que ele fazia sobre ela; eraintenso.

Muito do trabalho feito na terapia de casal, foi no sentido de trazer à tona estas angústias fusionais in­conscientes e lidar com elas, uma vez que as atitudes que ambos tomavam ao nível consciente não resolviam seus dilemas.

Após algumas semanas de terapia, Edu retornou para casa. Passaram muito tempo lidando com suas ambivalências em relação ao casamento, ora querendo recuperá-lo, ora querendo rompê-lo. Projetavam em mim a parte deles que queria a recuperação e, enquan­to faziam isso, "ensaiavam" que estavam separados. Ana agredia constantemente Edu pelas traições; na te­rapia, ela podia agora perceber o quanto de ciúmes e mágoa tivera durante todo o tempo em que vivera com ele, mas que havia ficado anestesiada,porque ela pre­cisava, por suas necessidades, montar um casamento "cor-de-rosa'' e feliz. Nas sessões, ela foi se dando con­ta do quanto mostrava uma pseudo-Ana no relaciona­mento com o marido, sempre temerosa de ofendê-lo e sempre querendo cuidar para que o casamento não aca­basse. Agora, porém, com a ajuda terapêutica, ela se sentia encorajada a mostrar para a Ana verdadeira que podia discordar do marido e ousar ter idéias próprias e diferentes das dele. Edu, por sua vez, pôde, nas ses­sões, tomar contato com seu medo de ficar dependen­te de Ana. Graças a isso, sua estrutura grandiosa foi

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sendo contestada, o que foi importante para que Ana percebesse que ele não era tão poderoso quanto ela ima­ginava e que ela não era tão desvalorizada quanto ele a fazia se sentir.

A análise do interjogo dos "objetos fantasmas" do casal foi revelando o quanto a separação tão desejada, que eles buscavam, não era a separação conjugal pro­priamente dita, nem a separação geográfica. Tratava­se do anseio de ambos para viverem uma separação e individualização ao nível emocionaL que ainda não ti­nham conseg~ido viver. Como não h;viamatingido a noção de um self individualizado, nem podido supor­tar a solidão disso, ambos fl.cavam envolvidos numa "ilusão de fusão" que os compactuava mentalmente numa só entidade. Viviam, um através da ''ilttsão de fusão positiva" e outro através da "ilusão de fusão ne­gativa'', uma fantasia que os empobrecia e esvaziava emocionalmente. Por isso, se sentiam tão infelizes e de­primidos numa relação conjugal de tipo nardsico. Não conseguiam viver seu self de forma sólida e individua­lizada, para, juntos, transporem suas individualidades e se unirem.

Estruturas psíquicas complexas não são mudadas facilmente através de "recomendações" e "conselhos" do terapeuta. Estas estruturas inconscientes precisam ser sistematicamente trabalhadas com o casal e mostra­das a eles durante os movimentos da sessão. A proposta da terapia de casal não era a de manter o casamento, mas sim a de ajudá-los a perceber como os seus medos inconscientes os levavam a não terem liberdade de es­colha e a se atropelarem um no outro, criando, assim,

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uma disfunção emocional. Edu já fazia psicoterapia in­dividual há alguns anos, e Ana já havia feito por algum tempo, tendo-a interrompido porque entendia que o marido a sabotava não querendo pagar. Através da te­rapia de casal, Ana procurott novamente terapia indi­vidual e Edu não mais se negou a pagar. . Apesar de Ana e Edu poderem trabalhar seus con­

flitos em uma análise individual, a realidade mostrou que os conflitos de cada um se misturavam e explodiam, sobretudo na relação conjugaL Com isto, esta relação ficava adoecida, precisando então de tratamento numa terapia de casal, pois aqui seus conflitos ficavam mais evidentes e podiam ser trabalhados terapeuticamente.

Como já disse, estruturas psíquicas inconscientes necessitam de um trabalho intenso. Não são algumas sessões que darão conta desse processo. Após dois anos de terapia, Ana já não tomava medicação antidepres­siva e se sentia menos magoada. Edu, por sua vez, dava mostras de querer investir na esposa e nos filhos, não trazendo atuações extraconjugais para a cena, como fa­zia antigamente. Ambos passaram a se comunicar me­lhor e, para eles, nosso trabalho parecia terminado. Pa­receu-me, porém, que isso poderia ser mais uma mon­tagem que eles estavam fazendo, em vez de ser uma situação verdadeira, uma vez que viviam uma apatia sexual que nunca viveram antes. Propus continuarmos. Após certo tempo, sobrevieram novas crises, mostran­do o quanto eles tinham anteriormente organizado uma relação de pseudo comunicação para manterem um re­lacionamento "faz-de-conta" e fugirem de uma situa­ção autêntica. Desta vez, apareceram sentimentos dife-

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rentes dos da. fase persecutória, quando havia posses­sividade, controle, ciúmes e culpa. Agora apareceram sentimentos mais realistas quando um não mais acu­sava o outro por seus temores ou por ver suas ilusões desfeitas. Estes sentimentos mais realistas se caracteri­zavam pela percepção de suas capacidades e limitações e uma maior individualização do outro. O importante desta última fase pela qual eles estão passando é que, enquanto casal, com suas desavenças e conflitos, um está mais capaz de tolerar as diferenças do outro sem exigir ou te:rrter qtte o outro seja corrto q·ueriam que fos­se, isto é, sem colocar no outro suas fantasias fusionais para manter a igualdade de ambos. Esta fase de tera­pia se caracteriza por uma maior liberdade de expres­são. Isto só foi possível através da libertação da mágoa e culpa inconsciente que um tinha em relação a seus objetos internos e em relação ao outro. Desfeitas as ilu­sões fusionais que enredavam um no "objeto fantasma" do outro, cada qual está agora podendo ter coragem de expressar seus sentimentos sem temores e, assim, estão desenvolvendo uma maior capacidade de respeito mú­tuo. Ana saiu do estado de depressão, autodesvalori­zação e masoquismo em que se encontrava. Edu saiu da culpa crônica que tinha por trair a esposa, o que equivale a dizer, culpa por sair da fusão com uma mãe pré-edipiana encarceradora. Ele passou a respeitá-la e valorizá-la mais e pôde também assumir seu papel de pai. Ambos, a partir disso, estão comunicando mais profundamente seus sentimentos e valorizando a Ver­dade entre eles. Atualmente, moram separados. A tris­teza da nova situação não provocou perturbação psí-

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quica nem para o casal nem para os filhos, porque, na realidade, a compreensão entre eles melhorou.

Terapia de casal não é um trabalho que visa sim­plesmente manter um casamento e levá-lo a um final feliz. Acredito mais na terapia de casal como um pro­cesso terapêutico que ajuda o casal a sair da mistura em que os dois se encontram, a partir da descoberta ou re­descoberta das particularidades e desejos de cada um. Se, a partir disso, um puder dividir seus sentimentos com o outro, se ligar mais no outro e encontrar um de­nominador comum, tanto melhor. Se não puderem, en­tão a terapia pode ajudá-los a encarar suas diferenças e enfrentar uma separàção mais realista.

Os sentimentos e desejos humanos são contraditó­rios e, portanto, o amor também o é. O trabalho com Edu e Ana está devolvendo a eles a percepção desta rea­lidade, do quanto "o amor está na interseção entre o desejo e a realidade" (parafraseando Octavio Paz in Kernberg). Na medida em que este casal trabalhou sua "ilusão de fusão", ambos saíram daposição rígida, dog­mática e mentirosa que assumiam e agora estão poden­do viver a liberdade de gostar ou 11.ão gostar um do ou­tro. Esta liberdade consiste na tolerância da contradi­ção e ambivalência dos seus sentimentos e na tolerân­cia do ciúme e da inveja. A partir disso, a onipotência narcísica deles diminuiu e agora estão podendo lidar melhor com suas diferenças e fragilidade humana.

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Considerações Finais

Na relação conjugal, o casal que não viveu uma su.., ficiente união com o objeto primário vai repetir esta re­lação primária de forma compulsiva. Um vai seduzir e envolver o outro até conseguir montar esse cenário pri­mitivo de sua vida. Feito isso, a relação não se dará de forma realista entre duas pessoas adultas, mas entre os "objetos fantasmas" de cada um projetados no outro, rnrn ("!'11':::1("t<:>l'{c::tir::~c:: f11Clinn"'i"' T T't'l'l on+Sn "',."'"'"" rlA f"\11-- ............. ._ ............... _ .. _.., ............. __ ..., ................ _.. .... _.,.....,. _.,.. ...... , _ ....... __ , 1"' ....... "' ... ~- -- _...._

tro, não necessariamente pelo outro, mas pelo que ele representa no mundo dos desejos e fantasias fusionais. Não obstante, um precisa do outro para montar o ce­nário primitivo, buscando sua possível resolução, e ca­minhar para um desenvolvimento mental.

Retomando algumas considerações, escrevi anterior­mente (1993) que:

O filósofo M. Buber (1919) refere que o desenvolvimento da criança é conectado indissoluvelmente com esta ânsia pelo Tu, com os preenchimentos e desapontamentos dessa ânsia de modo que "o homem se torna um Eu, através do Tu". Vejo a "ilusão de fusão" como um primeiro passo para isso.

Encontramos em Freud, desde o início de seus tra­balhos, a investigação do instinto sexual por ver nele a força propulsora da vida e de uma relação objetai. Em "Além do princípio do prazer" (1920), ele se utiliza do · mito de Platão no Symposium para falar desse desejo de unidade tão básico. Aí ele diz que a substância viva ao ter vida foi dividida em pequenas partículas, que desde então tentam se reunir através do instinto sexual.

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Freud se refere ao mito de Platão para lidar com a ori­gem deste instinto sexual que liga um ao outro: "a na­tureza humana original não era como agora, mas dife­rente. Os sexos eram três: homem-mulher, mulher-ho­mem e união dos dois, homem-mulher. Tudo deles era duplo. Eventualmente, Zeus decidiu cortar estes seres em dois, como uma maçã dividida em duas metades. Depois da divisão, as duas partes do homem, cada uma desejando a outra metade, se abraçaram ansiosos para se tornar uml/, Freud conclui que, por isso, passamos nossas vidas tentando encontrar nossas "metades" para tornar a abraçar e refazer a unidade.

Aqui, o mito3 se refere a um elemento de verdade4:

a pessoa como entidade única, mas precisando do ou­tro para se completar, para atualizar sua potencialida­de. O outro surge, aqui, como alguém necessário para a troca emocional, uma vez que "o homem sozinho não tinha satisfação". O outro surge, primeiro, para a satis­fação das necessidades e, com isso, se inicia o desen­volvimento mental.

3. Por que falamos das coisas através de mitos? Penso que é por­que o mito pertence à linguagem do inconsciente e tem um potencial revelador de realidades psíquicas.

4. Campbell (1990) escreve: "Seria o mito uma mentira? Não, mito não é mentira- mito é poesia, é algo metafórico. Mitologia é a penúlti­ma verdade: penúltima porque a última não pode ser transposta em pa­lavras. Está além das palavras, além das imagens. A mitologia lança a mente para aquilo que pode ser conhecido, mas não contado". Portan­to, quando o mito é compartilhado pelos seus aspectos universais, o su­jeito pode se tornar consciente de si mesmo e fazer contato com o outro.

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Mas o longo processo de individualização só pode ser alcançado se houver, no início, suficiente vivência da união do sujeito-objeto. Essa tmião está descrita no holding de Winnicott, na contenção das angústias atra­vés do revêrie de Bion e na gratificação dos impulsos de Freud. É o objeto com estes atributos que permite, ao sujeito, atualizar sua noção de unicidade. Embora inicialmente haja a unidade criança-mãe, não significa que ambos sejam fundidos -já são entidades separa­das cada qual com um modo próprio de ser. Aqueles que vivem bem a união primária toleram a separação com o objeto original e vão buscar novas uniões, ago­ra, de forma simbólica. Aqueles que não viveram ade­quadamente a união sujeito-objeto não toleram a sepa­ração do objeto original e vão procurar negar a sepa­ração através de uma alucinação ou "ilusão de fusão": ficam, então, aberta ou secretamente unidos a um ou­tro que funciona como um "outro-fantasma". Este "ou­tro fantasma" se torna um objeto interno particular da mente do sujeito, que o retém e com o qual se mistura indiferenciadamente, numa tentativa desesperada de ganhar a união e gratificação idealizadas. Se esta grati­ficação idealizada não correr, o "objeto fantasma" pode ser sentido como persecutório e cruel.

A busca de fusão é diferente da busca do outro de que nos fala o mito de Platão. Tornada num sentido concreto, esta união pode ser pensada como a busca de outra "metade igual" para refazer a fusão dos cor­pos do sujeito e objeto. Mas o mito nos fala da integra­ção do sujeito e objeto já autônomos. Tomada num sen­tido metafórico, essa integração poderia ser aquele es-

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tado transcendente que busca juntar os pólos opostos sem cindi-los: masculino e feminino, corpo e mente, ra­zão e emoção, nascimento e morte, dor e alegria, amor e ódio. Portanto, o mito não nos fala da simplista fu­são primitiva, mas de uma união simbólica que só pode ser alcançada após o longo processo de separação e to­lerância da ambivalência. A busca da fusão primária se­ria um processo regressivo, um processo onde se nega a diferenciação de si, do outro e das polaridades, numa tentativa de eludir a ~enar::~ci'io~ ~PI'i::~ 11m::~ rPl::~rfio nri-- -···· ... ,. .. · -.. ·--- -·~------, ---~r ------s---, ..... ~~--- ------- -----T--- ~--

mitiva e um não reconhecimento de si e do outro como pessoa diferenciada. A busca do outro seria um proces­so evolutivo, um processo de descoberta do objeto e de si mesmo como pessoas totais e não como metades um do outro. Essa união não seria a busca da similarida­de, mas da diferença. No mito, um busca o outro para se abraçar, mas cada um é um; precisa do outro e se integra no outro.

Quero concluir, neste presente trabalho, que a psi­coterapia de casal pode também ser propiciadora do desenvolvimento de uma relação geradora de símbo­los, ajudando o casal a tolerar e integrar a cisão das suas polaridades e ambivalências e ajudando-o a evo­luir de uma "ilusão de fusão" para uma união amoro­sa e uma relação baseada na Verdade.

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"As traduções das citações aqui apresentadas foram feitas pelo autor.

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Magdalena Ramos Sidney Kiyoshi Shaine

Magdalena Ramos é psicóloga formada pela Universidade Nacional de Buenos Aires, onde trabalhou como professora as­sistente nas cadeiras de Psicologia da Personalidade e de Psico­logia Clínica. Professora do Núcleo de Terapia Familiar da Fa­culdade de Psicologia da PUC-SP. Coordenadora do curso de "Casal e família à luz da psicanálise" no Instituto Sedes Sapientiae; autora do livro Introdução à terapia familiar, Ática, e organizadora do livro Terapia de casal e família, Brasiliense.

Sidney .Kiyoshi Shaine é psicólogo pelo Instituto de Psico~ logia da USP; psicólogo judiciário atuando nas Varas de Famí­lia e Sucessões do Fórum Central do Tribunal de Justiça d<c• São Paulo desde 1987; monitor e assessor técnico da Comissão de De­senvolvimento Profissional dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça; professor da disciplina "Psicologia dn fns· tituição Judiciária" pela Faculdade de Medicina da tJSP.