a ilusao ocidental sobre a natureza humana

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A Ilusao Ocidental Sobre a Natureza Humana M Sahlins

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  • A iluso ocidental da natureza humana

    Marshall Sahlins

    Ttulo original: The Western Illusion of Human Nature.Traduzido por Peterson Silva.

    Retirado dos Discursos Tanner de 2005. Palestra apresentada na Universidadede Michigan no dia 4 de novembro de 2005.

    (Prefcio: Ao longo das duas ltimas dcadas, mais ou menos, disciplinas deCivilizao Ocidental tm desempenhado um papel cada vez menor no curr-culo de universidades americanas. Aqui eu fao uma tentativa de acelerar essatendncia ao reduzir a disciplina a uma aula de mais ou menos uma hora. Minhajusticativa o princpio nietzscheano de que assuntos grandes so como banhosfrios: voc tem que entrar e sair deles o mais rpido possvel.)

    Por mais de dois milnios, os povos que chamamos de ocidentais tm sidoassombrados pelo espectro de seus prprios seres interiores: uma ideia de natu-reza humana to mesquinha e destrutiva que, a no ser que seja de algum modogovernada, vai reduzir a sociedade anarquia. A cincia poltica do animal pe-tulante costuma vir em duas formas contrastantes e alternadas: ou hierarquia ouigualdade, autoridade monrquica ou equilbrio republicano: ou um sistema dedominao que (em tese) restringe o auto-interesse natural das pessoas atravsde um poder exterior; ou um sistema auto-organizado no qual a oposio de po-deres iguais e livres (em tese) reconcilia os interesses particulares no interessecomum. Para alm da poltica, essa uma metafsica total da ordem, j que amesma estrutura genrica de uma anarquia elementar resolvida pela hierarquiaou igualdade encontrada na organizao do universo assim como na organiza-o da cidade, e depois em conceitos teraputicos do corpo humano. Eu digo queela uma metafsica especicamente ocidental, j que ela pressupe uma oposi-o entre natureza e cultura que distintiva do Ocidente e contrastante com osmuitos outros povos que pensam que as bestas so, no fundo, humanas, ao in-vs de pensar que humanos so, no fundo, bestas para eles no h natureza,muito menos uma que tem que ser superada.

    Se o tempo me permitisse, eu falaria tanto sobre esses essencialismos quepensariam que eu sou um adepto do culto ps-moderno do fracasso auto-ini-gido (Zurburgg). No entanto, eu estou mais prximo posio de J. S. Mill e seu

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  • lsofo de um olho s, tentando derivar algumas verdades universais a partir daobsesso com um ponto de vista particular. Chamar isso de histria intelectualou mesmo arqueologia seria desingnuo tanto quanto pretensioso. S o queestou fazendo selecionar com critrio alguns exemplos de nossa longa tradi-o de natureza humana, e sugerindo que ela uma iluso. Mesmo que eu nosustente uma narrativa dessa lgubre ideia do que somos, ofereo como evidn-cia de sua durao o fato de que ancestrais intelectuais como Tucdides e SantoAgostinho, Maquiavel e os autores dos documentos federalistas, para no esque-cer dos contemporneos como os cientistas sociais do homem econmico e ossociobilogos do gene egosta, tm por direito o rtulo acadmico de Hobbesi-anos. Alguns destes eram monarquistas, outros apoiavam repblicas democrti-cas, mas todos compartilhavam, ainda assim, a mesma sinistra viso de naturezahumana.

    Inicio, contudo, com a conexo muito mais robusta entre as losoas polti-cas de Hobbes, Tucdides e John Adams. A curiosa interrelao entre essa tradede autores nos permitir rascunhar as coordenadas principais do tringulo meta-fsico da anarquia, hierarquia e igualdade. Por to diferentes que tenham sido assolues deles para o problema fundamental da maldade humana, tanto Hobbesquanto Adams encontraram no texto de Tucdides sobre a Guerra do Peloponeso,mais notavelmente a forma visceral como ele aborda a revoluo em Crcira, omodelo de suas prprias ideias quanto ao horror que a sociedade sofreria se os de-sejos naturais da humanidade por poder e lucro prprio no fossem controladospela imposio soberana, dizia Hobbes, ou equilbrio democrtico, dizia Adams.

    Adams e Hobbes como discpulos de TucdidesEm 1763, o jovem John Adams escreveu um breve ensaio entitulado Todos os ho-mens seriam tiranos se pudessem. Esse ensaio nunca foi publicado, mas Adamso revisitou em 1807 para dar suporte a sua concluso de que todas as formas sim-ples (no mistas) de governo, incluindo a democracia pura, bem como todas asvirtudes morais, todas as habilidades intelectuais, e todos os poderes de riqueza,beleza, arte e cincia no constituem uma prova de que possvel contrariar osdesejos egostas que agitam os coraes dos homens e originam, em ltima ins-tncia, governos cruis e tirnicos. Ele diz, ao explicar o ttulo do ensaio:

    Signica, na minha opinio, no mais que essa muito simples observao so-bre a natureza humana que todo homem que j leu um tratado sobre moralidade,ou tenha entrado em contato com o mundo. . . j deve ter feito, sendo ela que aspaixes egostas so mais fortes que as sociais, e que aquelas sempre prevalece-ro por sobre estas em todo homem que for deixado sob a inuncia das emoesnaturais em sua mente, sem restries e sem controle por parte de algum poder

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  • externo a ele prprio.1Adams conhecia as vises pessimistas de Hobbes e outros no que tange

    natureza humana, mas ao falar de evidncia histrica ele deu crdito especial aTucdides. No contexto dos conitos partidrios presentes no nascimento da re-pblica americana, incluindo conitos de classe parecidos com aqueles da Grciano quinto sculo antes da era crist, Tucdides foi para Adams uma importantetestemunha da confuso que pode ser causada por desejos e faces fora de con-trole. Assim explica-se o papel central do historiador grego no prefcio Defesada Constituio dos Estados Unidos, escrito de Adams em que ele escreve: impossvel ler em Tucdides, livro III, seu relato sobre as faces e confuses portoda Grcia, que comearam por causa dessa vontade de equilbrio, sem horror.Ele ento parafraseia elmente a narrativa de Tucdides (3.703.85) sobre a guerracivil (stasis) em Crcira.

    Eu abreviarei radicalmente o relato de Tucdides. Ele trata de uma rebeliode poucos contra muitos em Crcira: a rebelio da classe privilegiada contra ogoverno democrtico do povo, com o objetivo de minar a aliana da cidade comAtenas ao estabelecer um regime oligrquico aliado, em vez disso, a Esparta.Numa srie de episdios violentos, envolvendo tambm sacrilgio contra a lei ea religio, cada grupo foi vitorioso a cada conito, causando mortes que cres-ceram progressivamente at a interveno de Esparta em favor dos oligarcas, ea de Atenas do lado do povo. No m, a frota ateniense foi embora da cidade,onde a faco oligrquica sofreu um massacre brutal nas mos de uma massademocrtica fora de controle:

    A morte ocorria em todas as formas; e, como geralmente acontece em temposassim, no houve limites para a violncia; alguns foram mortos por seus pais, epessoas que imploravam por suas vidas foram arrastadas para fora do altar oumesmo assassinadas sobre ele; enquanto alguns estavam at mesmo detrs dasmuralhas do tempo de Dioniso, e l foram mortos (Thuc. 3.81.45).

    Aparentemente mais violenta que qualquer outra stasis anterior, a guerra ci-vil em Crcira foi apenas a primeira do tipo draconiano que ocorreu durante aGuerra do Peloponeso, em que espartanos e atenienses intervieram em coni-tos locais do lado dos oligarcas e do povo, respectivamente. Tucdides v essasconvulses polticas como epidemias, de forma que elas se tornaram mais ma-lignas medida que se espalharam de cidade para cidade. A doena aqui, no caso,era a natureza humana: a natureza humana, sempre rebelando-se contra a lei eagora contra seu mestre, com prazer mostrou-se ingovernvel na paixo, sem res-peito pela justia, inimiga de toda superioridade (3.84.2). A causa de todos essesmales, disse ele, foi a nsia por poder que surgiu da ganncia e da ambio, edessas paixes procedeu a violncia dos grupos que estavam no conito (3.82.8).Mas quando Tucdides arma que tal sofrimento sempre se repetiria enquantoa natureza humana permanecer a mesma (3.82.8), John Adams interrompe sua

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  • exposio do texto para dizer que se este historiador nervoso tivesse conhecidoo equilbrio entre os trs poderes, ele no teria chamado o destempero de in-curvel, mas teria adicionado enquanto os grupos nas cidades permaneceremdesequilibrados.

    No entanto, na sequncia da descrio de Tucdides quanto aos destempe-ros, no apenas as instituies principais da sociedade sucumbiram naturezahumana, mas a prpria linguagem sofreu uma corrupo similar. A iniquidademoral se juntou hipocrisia medida que palavras tiveram que mudar seu signi-cado e tomar um novo que lhes foi dado (3.82.4). Thomas Gustafson fala sobreum Momento de Tucdides arquetpico, quando a corrupo de pessoas e de lin-guagem tornou-se uma s2 (Para um exemplo contemporneo, pode-se pensar noto chamado conversadorismo compassivo da administrao americana atual,que corta impostos dos ricos expensa da sociedade em nome de justia, oupara o mesmo efeito chama o imposto sobre a herana de imposto da morte).Assim ocorreu em Crcira, quando palavras e promessas traduziram-se numaluta total por poder, e o que torpe tornou-se justo, o que justo tornou-se torpe.Planejamento meticuloso foi mascarado como auto-defesa; hesitao prudentefoi castigada como covardia espria; violncia frenetica tornou-se virilidadee moderao era a falta de virilidade. Juras no eram mais garantia contra asvantagens de quebr-las. O nico princpio que cou de p, como arma o clas-sicista W. Robert Connir, foi o clculo do auto-interesse. Nesse momento todasas convenes gregas quanto a promessas de vida, juras, suplicaes, obrigaes famlia e aos benfeitores e at mesmo a maior das convenes, a linguagem emsi mesma deram passagem. Foi o bellum omnium contra omnes de Hobbes.3

    E foi mesmo especialmente considerando que Hobbes foi o primeiro a tra-duzir Tucdides diretamente para o ingls. Se Tucdides parece ser hobbesiano, porque Hobbes foi inuenciado por Tucdides. Como Hobbes escreve em suaautobiograa em versos,

    Plauto, Eurpides, Aristfanes,Eu entendo, nada alm disso; mas de todos esses,No h quem me agrade mais que Tucdides,Ele diz que a democracia uma tolice, e eu sei,Mais sbio que uma repblica um rei.

    Acadmicos clssicos tanto quanto hobbesianos viram na narrativa de Tuc-dides sobre a stasis na Crcira uma fonte fundamental de Hobbes quanto con-cepo do estado de natureza. Ideia por ideia, escreve Terence Bell, elementopor elemento, o estado de natureza de Hobbes entra em paralelo com a histriade Tucdides sobre a revoluo na Crcira4. Mas enquanto John Adams sustenta

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  • que para escapar anarquia natural descrita por Tucdides preciso criar umsistema auto-organizado de poderes equilibrados, a soluo de Hobbes a impo-sio de um poder soberano que deixaria todos com medo constante. Como foialgumas vezes notado, a narrativa de Hobbes sobre o desenvolvimento que levado estado natural ao poltico no Leviat tambm um mito de mentalidade capi-talista. De um ponto inicial comum em que cada homem tem um desejo innitopelo prprio ganho pessoal segue-se inevitavelmente uma escassez de meios, ecomo consequncia ataques nos quais o poder de um homem resiste ao e minaos efeitos do poder de outros precisamente o que Adams considerou bom, eHobbes, fonte do pior que estava por vir. O pior, no caso, a evoluo do es-tado natural de mesquinha competio burguesa rumo explorao capitalistatotal, em que cada homem descobre que s pode assegurar seu prprio ganhoao subjugar os outros e drenar poder a partir deles. Deixando-se levar por essacompetio feroz e pelo medo de uma morte violenta, os homens nalmente con-cordam em desistir de seu direito privado ao uso da fora em favor de um podersoberano que representar a pessoa de cada representado, exercitando a forade todos no interesse da paz e defesa coletivas. Portanto a partir da mesma baseda selvageria humana inerente, Hobbes e Adams desenharam prescries go-vernamentais diferentes para govern-la: por dominao ou auto-organizao,hierarquia ou igualdade, autoridade ou reciprocidade, monarquia ou repblica.

    Contrrios so fontes de seus contrrios (Aristteles). Essa oposio entremonarquia e repblica em si mesma dialtica, uma vez que cada uma denidaem relao outra na prtica poltica e em debates ideolgicos. At mesmo almde suas controvrsias contemporneas, Hobbes e Adams tm seu lugar em umadisputa de sculos entre monarquia e soberania popular, mobilizando argumen-tos de adversrios loscos distantes e constituies polticas de tempos anti-gos. Adams considerava Hobbes um interlocutor respeitvel, apesar de seu abso-lutismo: Hobbes, independente de quo infeliz estivesse em seu temperamentoou quo detestvel fosse por seus princpios, era igual em gnio e entendimentoa qualquer um de seus contemporneos. O absolutismo de Hobbes, por sua vez,respondia intertextualmente s doutrinas republicanas de aparentemente antigamemria: s teorias romanas e renascentistas de vida cvica, com a nfase queelas davam voz igual que os cidados deveriam ter na esfera governamental.Uma das aspiraes de Hobbes no Leviat, escreve Quentin Skinner, demolirtoda essa estrutura de pensamento [republicano], e com ela a teoria de igualdadee cidadania na qual a cincia civil humanista havia sido criada5. Ademais, sim-plesmente lgico (na lgica de Hegel) que cada um dos contrrios se preserve e seencapsule em sua negao, igualdade na hierarquia e vice-versa. A forma comoHobbes inicia o estado de natureza com o direito igual de cada homem a toda equalquer coisa o que leva guerra contnua o problema; da mesma forma,Adams prev que o m da guerra no estado de natureza termina em tirania

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  • e isso o problema. Toda esta estrutura de pensamento inclui o absolutismode Hobbes como o complemento histrico do republicanismo que ele queria des-truir. uma estrutura de opostos interdependentes dinmica e diacrnica: duasformas contrastantes de ordem cultural alternando entre si por um longo perodode tempo.

    Mas de toda forma, enquanto regimes que servem para restringir o ariscoanimal humano, a dominao soberana e o equilbrio igualitrio pem-se juntosno lado cultural de um dualismo natureza-cultura bsico que a base de todaa estrutura. A natureza humana a necessidade: aquilo com o que a culturaprecisa lidar ou debaixo do que vai sucumbir, como em Crcira. E esse dualismoantagonista de natureza e cultura mais antigo que Tucdides. A descrio queHesodo faz da condio humana de seu tempo (o oitavo sculo antes da EraCrist) bem que poderia ter sido o modelo para o texto de Tucdides sobre Crcira.Nessa Era de Ferro de trabalhos e dias:

    Nem convidado com antrio, nem amigo com amigo;Os dias de amor fraternal do passado vo-se embora.Os homens desonraro seus pais. . .Destruiro as cidades de outros homens.. . . Homens vo fazer malA outros homens ao falar palavras tortasAdicionando promessas falsas. . .

    O classicista Gerald Nadda comenta: Sem justia, Hesodo acredita que aspessoas vo devorar a si mesmas como animais, que haver algum tipo de estadode natureza hobbesiano no muito diferente daquilo que precedeu o reinadode Zeus.6

    A Grcia antigaNo muito diferente daquilo que precedeu o reinado de Zeus. aqui ns esta-mos entrando no terreno da cosmologia antiga. Quando Detienne e Vernant ze-ram uma deslumbrante anlise da Teogonia de Hesodo, resumiram-na de formasucinta e hobbesiana (ou, mais precisamente, nietzscheana): No h ordem cs-mica sem diferenciao, hierarquia e supremacia. Mas pela mesma lgica, no hsupremacia sem conito, injustia contra outros e restrio imposta por traioe violncia7. Aqui est um paradigma da metafsica da hierarquia, iniciando emviolncia universal e terminando num cosmos diferenciado e estvel sob controle

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  • de Zeus. A violncia primordial foi a batalha sem descanso da gerao mais jo-vem de deuses liderados por Zeus contra o pai deles, Cronos, e os tits da velhagerao. Vitorioso, Zeus ento aponta as honras e os privilgios dos deuses,seus status e suas funes. Essa ordem divina ca agora e para sempre estvel, jque agora brigas entre imortais so resolvidas por promessas restringentes. Emcontraste a isso, se os humanos quebram suas promessas notavelmente nessalamentvel Era do Ferro, como em Crcira precisamente porque o conitoe a misria foram banidas para o plano terreno. Alguns mitos contam que oshumanos so descendentes dos indisciplinados Tits.

    De fato tudo sugere que a soberania de Zeus j foi modelo de reinado nasociedade. Nos tempos de Hesodo, contudo, qualquer coisa parecida j haviadesaparecido da Grcia a partir da destruio dos reinados micnicos quatro s-culos antes. Os reis da poesia de Hesodo tinham um poder muito reduzido emcomparao com seus predecessores micnicos que, embora h muito j fora decena, no haviam sido esquecidos. A autoridade deles era agora contestada edividida com uma elite cheia de rivalidade. Realmente um esprito agonsticotomava conta da sociedade. Citando Hesodo,

    E mendigo luta com mendigo, poeta com poeta. . .

    Vernant faz a convincente inferncia de que a competio necessariamenteleva iguais a lutarem mesmo que ela tenha por objetivo a superioridade por-tanto tanto a hierarquia como a igualdade so mutuamente baseadas na anar-quia8. Ou, fazendo outra leitura, a anttese emergente, a hierarquia, engolfa suanegao ultrapassada, que a igualdade. Algo como isso aconteceu na histriagrega subsequente. Muito antes de ser conquistada na democracia ateniense doquinto sculo, a exigncia por igualdade poltica foi teorizada por aristocratas dealgumas cidades-estado que estavam perdendo no mbito da competio porsuperioridade. Classicistas dizem que isonomia, igualdade, foi a reclamao porparte de certos oligarcas, que reclamavam do enfraquecimento de seu poder porparte dos tiranos.

    Isonomia o mais belo dos nomes9, como Herdoto a denominou. Emprincpio a igualdade, de que Atenas era o modelo, signicava igual participaodos cidados em um governo que eles tinham em comum e do qual mulheres,escravos e estrangeiros eram excludos. Para os cidados signicava: igualdadeperante a lei; igualdade de voz e voto na Assembleia, o corpo soberano do estado;e uma igualdade rotativa de seleo por sorteio para o Conselho dos Quinhentosque determinava a pauta da Assembleia. Em contraste s monarquias antigas,que governavam privadamente, coercitivamente, e misticamente a partir de pa-lcios inatingveis, aqui os poderes do governo se desenvolviam publicamente,coletivamente, e igualdade nos cidados reunidos no centro da cidade para de-terminar as polticas comuns que tambm iriam, esperava-se, agradar seus vrios

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  • interesses privados e faccionrios. Ou, como Pricles resumia a virtude cvica emltima instncia, os cidados deveriam amar a cidade da mesma forma como fa-ziam amor. A essa altura, a isonomia estava em todo lugar; a ideia de um sistemaauto-constituinte de foras iguais e opostas estava comeando a dominar cos-mologias tanto quanto sociedades polticas, e estava comeando a fazer parte desiologias e ontologias.

    Na cosmologia do sexto sculo do lsofo pr-socrtico Anaximandro, a mo-narquia foi substituda pela dominao da igualdade na natureza, de uma formaanloga transformao da cidade. A alternativa de Anaximandro ao universoestraticado de Hesodo e Homero, ordenado e dominado por um Deus soberano,foi um mundo auto-organizado que alcanava estabilidade atravs da oposiomtua dos elementos iguais de que era composto10. Invadindo umas s outrase fazendo reparaes pelas injustias, as qualidades opostas de quente e frio,mido e seco, criavam a substncia das coisas. Ao nvel do cosmos elas consti-tuem uma espcie de cidade-estado celestial. Do mesmo modo que a ordem dapolis negociada numa assembleia de cidados iguais que se encontravam nocentro (agora), no universo de Anaximandro a Terra mantida estvel no centropela equidistncia entre os ardentes corpos celestes. Um comentrio de Arist-teles inplica que o equilbrio um resultado de foras contrrias tanto quantode distncias iguais. A geopoltica celestial no era anloga apenas cidade naTerra, com suas mutias famlias em volta da agora, onde suas particularidades sointegradas; ela, mais especicamente, corresponde s mltiplas lareiras doms-ticas que cam em torno da fogueira ritual comum da agora os fogos de todosadicionando uma ligao metonmica e sacricial aos paralelos metafricos entreo regime terrestre e o regime celestial.

    Dentro dos corpos saudveis dos habitantes dessas casas, a isonomia tambmreina. De acordo com o cirurgio do sexto sculo Alcmeo de Crotona, a sadeconsiste num equilbrio entre elementos opostos e iguais dos quais o corpo composto, como mido e seco, quente e frio, amargo e doce. A doena causadapela dominao ou monarquia de apenas um elemento. Repetida nos textos dosmdicos hipocrticos, esas teoria de um cosmos de sade equilibrado estavadestinada a durar at a Idade Mdia. Na verdade, mais de dois mil anos depois deAlcmeo, John Adams a reproduziu, completa com referncias polticas. Algunsmdicos, Adams escreveu, consideraram que se fosse possvel manter os vrioshumores do corpo em equilbrio, ele poderia ser imortal; e da mesma forma umcorpo poltico, se o equilbrio do poder pudesse ser sempre exatamente igual11.E quanto ao jogo de humores elementares ou foras em Adams, Alcmeo ou Ana-ximandro, a formulao mais duradoura dessa ontologia isonmica foi a doutrinadas quatro razes de Empdocles: os pares opostos e iguais de fogo e gua, terrae ar, uniam-se e separavam pelas foras iguais do amor e da contenda.

    claro que a isonomia no reinou sozinha, completamente suprimindo a or-

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  • dem hierrquica, nem no corpo nem no universo. O esquema platnico do corpodominado pela alma, e dentro da alma a parte racional dominando a parte apeti-tiva, continuou a mostrar servio junto a outras formas de monarquia ao longoda Idade Mdia. E mesmo depois que Zeus e Jpiter foram usurpados pelo Deuscristo, o cosmos hierrquico de Aristteles com seu Primum Mobile tambmtransferido para Deus ainda era reproduzido por Dante e Aquinas. De fato,como diz E. M. W. Tillyard em The Elizabethan World Picture, Era uma coisasria e no apenas um detalhe se um escritor elizabetano comparasse Elizabethao primummobile, esfera-mestre de todo o universo fsico, com toda a atividadedo campo das vrias movimentaes de outros esferas completamente governa-das pela inuncia da esfera que as contm. Mas, para voltar Atenas no quintosculo antes da era crist, nesse caso a isonomia estava no apenas nas superes-truturas mas em todas as estruturas; era uma base cultural.

    De forma semelhante classicistas j esto acostumados a ver a cosmologia, asiologia e a ontologia da isonomia como reexes ideolgicas da poltica. Tra-balhando desde princpios durkheimianos ou marxistas de teoria sobre a prticasocial, eles sustentam que os conceitos de ordem natural tm como modelo acidade-estado igualitria. Vrias objees podem ser levantadas quanto a isso, acomear pela observao de que a isonomia em si mesma um valor ideolgico, ecomo tal ela foi tanto pr-condio da polis quanto um reexo dela. Mas o sentidocrtico como argumentado por Charles Kahn que para os gregos antigosos limites entre natureza e sociedade no eram to rigidamente determinados ouanaliticamente policiados quanto eles so na imaginao acadmica moderna.A assimilao entre sociedade e natureza era normal; o que certos lsofos doquinto sculo foram motivados a estabelecer foi a separao dos dois conceitos.Mais precisamente, sociedade e natureza foram denidos por contraste mtuo,escreve Kahn, como o resultado de controvrsias do quinto sculo quanto phy-sis [natureza] e nomos [conveno, costume] em outras palavras, o que agoraentendemos como a fatdica oposio binria entre natureza e cultura. Aqui es-tava o dualismo que estabeleceu o solo natural do nosso metafsico triangular: anatureza humana antissocial que a igualdade e a hierarquia tentam controlar.

    Os sostas so os suspeitos de sempre. Apesar de eles geralmente concordarquanto anttese entre natureza e cultura, eles eram muito diversos quanto aqual era boa e qual era m, qual das duas dominava a outra e de que maneira.Das muitas variantes, duas foram mais longevas, motivando uma outra comocontrrios lgicos atravs de uma histria que chega ao presente. De um lado, aideia de natureza como pura e benvola, mas controlada pela tirania do costume:pense em Rousseau, direitos humanos naturais, a igualdade entre os homens,moralidade universal at formas pervertidas, em formas de commodity, como agua engarrafada de fontes puras na Fiji primitiva que nos recipientes plsticoscriam uma certa cultura (de bactrias). Do outro lado, h a ideia de natureza

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  • humana que eu estou registrando aqui em perodos crticos de seu domnio: aideia de um animal humano antissocial inato, contra o qual a cultura precisalutar geralmente sem sucesso.

    Mas que chance a cultura teria se ela formada basicamente por crenaslocais e mutveis, em comparao com as disposies que j esto codicadasprofundamente na espcie e nos impulsos de cada indivduo? Fogo queima aquie na Prsia, disse Aristteles, instituies humanas mudam debaixo dos nossosolhos. Feitos pelos prprios humanos e varivel de um grupo para outro, oscostumes tomam a forma de qualidades secundrias de percepo, como quentee frio, doce e amargo. A cultura articial, supercial, e subjetiva comparada realidade das coisas naturais. A partir disso, como ressaltam Boas e Lovejoy, fcil concluir que a cultura est errada12. O pior para a carreira do conceito decultura em nossa antropologia ocidental foi que ao nomos aderiu-se a ideia dealgo falso em comparao com a verdade da natureza.

    (Num recente trabalho comentando o romance popular de uma razo uni-versal natural atrs de diferenas culturais superciais War of the Worlds:What about Peace? Bruno Latour prova de novo que no somos realmentemodernos. O projeto imperialista americano de democratizao neoliberal tema mesma premissa antiga. Ela assume que a racionalidade prtica inata, comuma toda a humanidade, se apenas puder ser libertada das idiossincrasias culturaislocais, empregando o tipo de fora que qualquer um naturalmente entenderia,vai tornar outras pessoas felizes e boas como ns.)

    Da suposio que a natureza a verdade surgiram vrios argumentos sostassobre sua necessria realizao dentro da cultura e contra a cultura. Em sua ver-so mais simples, a cultura apenas a natureza com outra forma: por exemplo,na erupo de Trasmaco nA Repblica o justo nada mais que a vantagemdo mais forte. Glaucon, contudo, reserva um certo poder oposicional para a cul-tura, armando que todos naturalmente querem s o prprio bem at que sejamforados pela lei e pelo costume a respeitar o princpio de igualdade. Mais atu-alizado, sociobiologicamente falando, o complexo argumento de Callicas emGorgias de que tal boa ordem e tais nobres sentimentos so apenas mistica-es de um auto-interesse irrepreensvel: mero pensamento pblico moral peloqual os fracos tentam, em vo, suprimir as inclinaes aproveitadoras dos for-tes. Mas como ouvinte e admirador dos sostas, Tucdides oferece algumas dasmais poderosas permutaes do sinistro dualismo natureza-versus-frgil-culturaao sustentar que a natureza ao mesmo tempo criadora e destruidora da cul-tura. O desejo por poder responsvel pela criao do imprio ateniense e peladestruio de Crcira. Os atenienses disseram aos melianos cercados por elesque dominar sempre que possvel era uma lei necessria da natureza, mas aomesmo tempo a natureza humana que se libertou em Crcira, segundo Tucdides,era inimiga de toda superioridade. Esse o melhor de todos os mundos poss-

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  • veis na teoria histrica, em que simplesmente natureza humana agir contra anatureza humana, de forma que a natureza humana torna-se a campe invencvelda historiograa.

    Ordens alternativasPara alm dos argumentos antigos quanto ao status bom ou mau da natureza hu-mana e as construes culturais que poderiam ser construdas com ela, a tradioocidental tem h muito tempo mantido uma concepo alternativa de ordem, dotipo que antroplogos tradicionalmente estudam: a comunidade de parentesco. verdade que no ocidente essa uma condio humana que passa despercebida,apesar de ou talvez porque a famlia e as relaes de parentesco serem as fon-tes de nossos mais profundos sentimentos e conexes. Ignorando-os, nossas lo-soas da natureza humana geralmente vm da sociedade em geral, organizada emprincpios radicalmente diferentes. No caso, natureza humana consiste em umcenrio imaginado de adultos masculinos ativos, excluindo mulheres, crianas eidosos, e negligenciando o nico princpio universal de sociabilidade humana, oparentesco. A contradio espreita parece explicar algumas recomendaes no-tveis quanto subjetividade e comunidade de parentesco por parte dos antigos.Plato e Agostinho formularam o que acabava sendo um sistema havaiano de pa-rentesco no papel da sociabilidade mais prpria da humanidade: Agostinho a viacomo condio humana original, e Plato como a sociedade cvica ideal dentreas classes iluminadas de sua repblica utpica. Aqui todos so parentes de todosna comunidade a partir de laos familiares primrios de irmo e irm, me e pai,lho e lha (No era por nada, dizia Agostinho, que Deus nos fez descendentesde um ancestral, de forma que todos os humanos so parentes uns dos outros).De fato, o bispo de Hipona foi longe o bastante para antecipar a famosa teoriado tabu do incesto, de E. B. Tylor marry out or die out13 em 1500 anos,observando que a proibio de casamento dentro da famlia teria como efeito tila multiplicao das relaes de parentesco. Citando Plato quanto sociedadepr-estatal14, Ccero desenvolveu uma ideia da espcie humana que se liga bem comunidade de parentesco e reciprocidade. Assim que os homens nasamenquanto homens, ele escreve, que eles possam mutuamente ajudar uns aos ou-tros, e nisso devemos seguir a natureza como nosso guia, para constituir o bemgeral por uma troca geral de atos de bondade, ao dar e receber, assim. . . Cimen-tando a sociedade humana, homem a homem15. A doutrina paulina cristianizoua ideia: j que somos todos membros do corpo de Cristo, ns somos membrosuns dos outros. Ento novamente no sculo XII, Joo de Salisbury impe a pr-tica geral de ajuda mtua com base no fato de que a sociedade, bem como nouniverso, cada parte individual um membro de outras partes individuais16.

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  • As pessoas so partes umas das outras; elas existem no apenas dentro de simesmas ou por si mesmas, mas em relaes mtuas do ser pode-se ler MarilynStrathern e seu trabalho na Nova Guin, em que uma pessoa se realiza dentro des-sas e atravs dessas mutualidades do ser, a forma como me e lho ou paie lho assim tornam-se pela atuao mtua da ligao que assim os identica.E enquanto a me e o pai trabalham em prol do lho, ou os cnjuges em con-siderao um do outro, o outro parental est internamente presente enquantocausa da intencionalidade de algum. Nessa condio de mutualidade do ser que parece ser uma boa denio de parentesco os interesses no so maisconnados s satisfaes do corpo individual do que os eus so connados aosseus limites. Antroplogos de sociedades do Pacco falam, ao invs disso, doeu transpessoal, o eu enquanto um complexo terreno de relacionamentosou um locus de relaes sociais compartilhadas ou biograas compartilhadas.Muitas so as sociedades ao redor do mundo em que parentes devem ser recom-pensados pela morte de algum, pelas ofensas que algum recebe, ou at mesmopor terem cortado o cabelo de algum. Muitas tambm so as sociedades em queauto-interesse como o conhecemos bruxaria, loucura, ou defeitos similares queservem de base para ostracismo, execuo, ou pelo menos terapia.

    E se a subjetividade humana, at mesmo incluindo o parentesco, fosse esten-dida para o que chamamos de natureza, incluindo todos os tipos de animais,plantas, e objetos inanimados? Os Maori, da Nova Zelndia, so genealogica-mente aparentados com tudo no universo. Quando os Maori andam por a, es-to com sua prpria famlia. As rvores ao redor deles so, como eles, prole deTane[, deus Maori]17. E o que devemos dizer da natureza animal do homem se,como largamente reconhecido nas Amricas, animais tm uma natureza humana.Como muitas plantas para no dizer as estrelas, montanhas, ou troves mui-tos animais tm conscincia, vontade, intencionalidade, alma; em suma, so pes-soas como ns. Como Viveiros de Castro e outros escrevem sobre a Amaznia,animais tm cultura: chefes, cls, casas cerimoniais, da mesma forma que pes-soas. Eles so pessoas debaixo de seus plos e suas penas, da mesma forma quegrupos diferentes de pessoas debaixo de seus vestidos e ornamentos. Como tambm verdadeiro em partes da Nova Guin, animais foram originalmente hu-manos ao invs do contrrio.

    No que essas pessoas traam a linha entre natureza e cultura diferente-mente de ns. O que no signicante para eles no uma questo de natu-reza, mas de indiferena. O resto est associado a pessoas. No existe naturezae, a fortiori, nenhum dualismo entre natureza e cultura. Repito: no h conceitode natureza, nenhuma oposio entre natureza e cultura. No parece que elestm um conceito signicativo de natureza construdo, diz Signe Howell sobreo povo Chewong, da Malsia18. No h razo para sugerir, escreve Strathernsobre Nova Guin, que os povos das terras altas do leste imagem uma natureza

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  • sobre a qual a sociedade e a cultura impem suas regras e suas classicaes19. claro que esses povos no tm o benefcio de conhecer a teoria da evoluo darwi-niana. Mas os antigos povos ocidentais tampouco conheciam Darwin quandoeles concluram que humanos so na verdade bestas, o que quanto evidncia dasemelhana no parece mais bvio do que o contrrio. Como pretendo mostrarno m, se seriamente considerarmos a organizao cultural da evoluo biol-gica pelos ltimos trs milhes de anos, podemos ter um respeito decente pelaopinio mais comum da humanidade de que ns no somos as criaturas sociaisde impulsos animais.

    Idade Mdia e Renascena: monarquia e repblicaAqui temos uma distino corolria nos conceitos ocidentais de natureza hu-mana. Em The Symbolism of Evil, Paul Ricoeur demonstra a singularidade dacosmogonia ocidental, de modo que a maldade no uma condio primordialnem uma tragdia divinamente orquestrada, e sim unicamente responsabilidadedos homens culpa de Ado, que desobedeceu Deus para seu prprio prazer.Desde que, como disse Santo Agostinho, estamos todos naquele homem, quais-quer que fossem as diferenas entre os antigos lsofos sobre o carter inato doser humano, o Pecado Original ps um m disputa para os cristos durantea Idade Mdia. Desejos interminveis da carne levavam guerra interminvel:dentro dos homens, entre os homens, e com a natureza. Como eles se oprimemmutuamente, disse Agostinho, e como eles so capazes de se devorar, e quandoum peixe acaba de devorar, o grande devorando o mais pequeno, ele prpriodevorado por outro20. A verso de Ireneu de Lyon da histria do peixe j era de-rivada de uma tradio rabnica mais antiga: A dominao da Terra foi indicadapor Deus para o benefcio das naes, de forma que a partir do medo da domi-nao os homens no iro se devorar uns aos outros como peixes21. Como ummodelo totmico de natureza humana, les grands poissonsmangent les plus petits22permaneceu uma frase proverbial atravs da Idade Mdia, e ainda vive como umadescrio efetiva do capitalismo neoliberal. uma estrutura de longue dure23.A ideia acompanhante que os homens so piores uns aos outros do que as bes-tas nas palavras de Agostinho, nem mesmo lees ou tigres guerreiam com aprpria espcie como os homens guerreiam uns com os outros (12.22) tam-bm mostra servio como a moral de fbulas sobre a necessidade de hierarquia.Como disse John Chrysostum: Se voc tirasse da cidade seus chefes, teramosque viver uma vida menos racional que a de animais, mordendo e devorando unsaos outros24. Sim, a cidade: Abel viveu uma vida simples, observou ThomasGilby, Cain construiu a primeira cidade25.

    Dada essa natureza viciosa da humanidade cada, governos coercitivos em

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  • geral e a monarquia em particular tinha um valor poltico redentor. O poder dosreis, juzes, executores, at mesmo a severidade do pai tinha seus bons motivos,disse Agostinho, porque enquanto eles forem temidos, ao mau dado limites eos bons vivem em paz entre os maus. A isso deu-se o nome de agostinismo po-ltico. Dominao de cima e do alm, sobre e contra a populao inclinada aopecado, era o princpio geral, aplicvel ao lorde feudal tanto quanto ao impera-dor ou rei, ao bispo tanto quanto ao papa. Tornada necessria pela culpabilidadee irritabilidade humanas, a monarquia na Terra era a imagem da dominao deDeus sobre o cosmos na viso de Dante, Toms de Aquino, Egdio de Roma, Joode Salisbury, e muitos outros notveis. Adaptando a cosmologia aristotlica doMotor Imvel cristandade, eles argumentaram em comum que assim como ouniverso tinha uma Fonte Divina e uma Lei do Movimento, o reino humano tam-bm deveria ter. Desta forma o rei ou imperador tinham uma anidade especialcom a divindade sempre debatida, claro, com o papa. Comumente caracteri-zado como o vice-regente, o vicrio, ou o sucessor terrestre de Deus, o monarcamedieval era tambm, como Kantorowicz documentou de forma famosa, comoCristo, um homem-Deus-como-Cristo, o ator ou personicador de Cristo. Poroutro lado, a monarquia era toda uma metafsica da ordem, estendida de um cutodo-inclusivo at todas as coisas da Terra, at as coisas materiais.

    Essa cosmologia monrquica foi provavelmente mais totalizante do que qual-quer doutrina de dominao soberana desde o perodo micnico. Como um prin-cpio de regra, a dependncia dos muitos sobre apenas um ia de todas as criaturasanimadas por Deus, incluindo os lordes da terra, at as menores coisas, em umasrie de particularidade crescente e virtude decrescente, em que cada parte umaorganizao em si mesma, replicando a entidade hierrquica que a inclua. Ha-via um prncipe pra tudo. Otto Gierke comenta que bem como o corpo dominadopelo corao ao qual subordinado, a alma dominada pela razo, e da mesmaforma na totalidade da natureza inanimada, de forma que no encontraremosuma substncia composta em que no haja um elemento que determine a natu-reza do todo26. Essa cadeia monrquica formada por uma matriz de analogiasrecprocas, como nas rotineiras descries do reino como um corpo humano e docorpo humano como um reino. Wycli adicionou uma formulao aristotlica:Na cidade, as pessoas so a matria e o rei a forma27.

    Mas o velho Toms de Aquino deveria ser esquecido? Sua insistncia, se-guindo os passos de Aristteles, de que a humanidade social por natureza pode-ria comprometer o estigma do pecado original, junto com seu antdoto na formade dominao coercitiva, e at oferecer alguma esperana de felicidade em umavida terrestre, que para Agostinho era somente um vale de lgrimas. Mas, aoargumentar que o homem naturalmente inclinado para a sociedade por causade sua falta de habilidade, sozinho ou em famlia, de viver por si mesmo, Tomsde Aquino fundou a comunidade em necessidades e desejos humanos, no auto-

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  • interesse o que no fundo signica o pecado original naturalizado (podemosnos lembrar da tese de Carl Becker em The Heavenly City, sobre os lsofosdo sculo XVIII, de que o projeto deles de iluminismo consistia basicamente emsecularizar a teologia crist. Foi assim que eles imaginaram a origem da socie-dade no auto-interesse: como sintetizado na frase cnica de Helvtius, Amiti,cest avoir besoin28). A isso segue que, como Aristteles, que acreditava quetoda e qualquer forma de governo era sujeita corrupo pelos desejos insaci-veis do povo, para Toms de Aquino ocorria o mesmo; mesmo sendo os homensnaturalmente sociais, eles no eram naturalmente sociveis. O desejo de perse-guir seu prprio bem est presente na alma de todos os homens, ele escreveu, enada na Terra pode pacicar esse desejo29. Da a necessidade de um chefe cujavirtude transcenderia a auto-preocupao de seus subordinados, e reconciliariaseus conitos no interesse do bem comum. Se muitos homens vivessem juntoscom outros providenciando apenas o que fosse bom para eles prprios, a comu-nidade se quebraria em vrias partes a no ser que um deles fosse responsvelpelo bem da comunidade como um todo30.

    So Toms era conhecido por amenizar seu apoio realeza ao advogar por al-guma distribuio de seus poderes entre os notveis e tambm o povo, como numgoverno misto aristotlico. Mas a ordem monrquica tinha suas prprias contra-dies agindo na poca. Liberdade, contrato, representao, e consentimento dosgovernados eram todas ideias conhecidas de uma forma ou de outra no feuda-lismo. Mais e mais sujeito lei, a realeza tornou-se um instrumento da sociedadeao invs de um poder acima dela. Havia tambm a crescente autonomia das ci-dades, guildas, e comunas camponesas. Toda essa resistncia, alm disso, podeter encontrado inspirao na negao crtica que esteve na cristandade medievaldesde o princpio desde os Jardins do den e os Evangelhos. Porque foi apenasdepois da queda que a humanidade foi forada a se submeter realeza e lei, propriedade privada, e desigualdade: tudo isso feito para controlar a maldadehumana. Isso no foi o que Deus havia planejado para a humanidade. Original-mente, no estado de inocncia, os homens eram iguais e livres sob sua vista. Oque sugere que, por todo esse tempo, dentro do regime medieval da hierarquia,havia uma repblica livre e igualitria esperando para desabrochar.

    E assim ela o fez no nal do dcimo-primeiro sculo em Pisa, Milo, Gnova,Florena, e outras cidades da Lombardia e da Toscana. Se foram convencidos deque eles eram naturalmente bons como a Bblia disse, ou capazes de virtude cvicacomo Ccero disse, eles no precisavam mais pensar que Deus sancionara suassubjees a prncipes para reprimir suas maldades. Homens (e s os homens)tornaram-se cidados ativos prescrevendo leis por eles prprios ao invs de se-rem subordinados passivos sofrendo a autoridade imposta sobre eles. Muitos dospr-humanistas que losofaram sobre seus estados trataram-nos como siste-mas eletivos de distinta virtude que garantem a igualdade dos cidados perante

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  • a lei. O interesse de ningum excludo, ningum injustamente subordinadoa ningum mais31. Quando a Poltica de Aristteles se tornou disponvel, ascidades poderiam at dizer que seguiam seu ideal de governo em que homensgovernam e so por sua vez governados, j que seus magistrados so ociais as-salariados eleitos por curtos perodos. Segundo uma lei orentina de 1328, eleseram selecionados do corpo de cidados por sorteio literalmente de dentro deuma bolsa. No entanto, nestas primeiras repblicas a frmula aristotlica do go-verno misto o governo combinado de um, de poucos e de muitos no era tidocomo um conjunto de controles e freios para o governo, mas apenas como algoque criava harmonia de classe segundo o princpio de Milo Minderbinder de quetodos cam com um pedao [do governo]. A paz civil era uma obsesso, mas sporque ela estava constantemente ameaada. Enquanto proteo da proliferaode interesses sectrios, os interesses da cidade se restringiam a pregadores dasvirtudes cvicas da velha repblica romana. No entanto, como j havia se lamen-tado o Ccero sobre seu tempo, alguns pertencem a um partido democrtico,outros a um partido aristocrtico, poucos a um partido nacional. Quentin Skin-ner repetidamente se pergunta como, nesta situao, o bem estar pblico podeser reconciliado com o auto-engrandecimento. Se a resposta for pelos presentesmticos de Orfeu ao dominar as bestas selvagens pelo som de sua voz e sua lira, apergunta permanece, como exatamente? Cadas dentro da discrdia das faces,a maioria das cidades que haviam se tornado repblicas na metade do sculo XIInovamente puseram suas conanas em prncipes at o m do sculo XIII.

    A repblica orentina conseguiu sobreviver at o sculo XVI, no sem evitara luta de interesses mas ao institucionaliz-la no intuito de evitar a dominaode uma faco ou classe sobre outras. Os resultados foram a brilhante e auto-parabenizadora cincia poltica que celebrava as virtudes orentinas da liberdadee igualdade como em Leonardo Bruni e a construo da virtude da lutaque busca a si mesma como uma forma constitucional de transformar facespartidrias em liberdade e prosperidade para a cidade como em Maquiavel.

    Coube a Maquiavel cair de cabea na virtude cvica. Eu uso a expressoporque muitos descrevem o discurso de Maquiavel como realismo, isto , emreferncia ao seu imaginrio sosta de que, pelo menos em crise, a physis mais es-cura do homem prevalece sobre a justia e a moralidade. No apenas nO Prncipemas em sua persona republicana nos discursos sobre Tito Lvio, Maquiavel sub-verteu radicalmente a f anterior de que a paz civil era uma condio necessriapara grandeza civil. O ttulo do captulo 4, livro I, a discrdia entre os plebeus eo senado de Roma fez dessa repblica [romana] livre e poderosa. As pessoas quereclamam desses conitos, disse ele, esto prestando ateno demais aos tumul-tos e no o suciente na liberdade que eles produzem. Repblicas em todo lugar,ele disse, esto cheia de oposio entre as classes populares e as privilegiadas, etoda legislao favorvel liberdade vem tona atravs da luta entre elas. Ape-

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  • sar de o momento maquiavlico, como J. G. A. Pocock notavelmente ps emevidncia, ter introduzido uma nova temporalidade de contingncia e mudananos assuntos humanos, perturbando o universo divinamente ordenado e eternovindo da tradio crist, uma continuidade essencial permaneceu: aquela eternagura do homem que quer agradar a si mesmo o que Maquiavel consideravauma condio poltica inevitvel.

    At mesmo nO Prncipe, o motivo principal para a moralidade mutante queMaquiavel recomenda aos governantes a ainda mais consistente imoralidade deseus subordinados. S atravs da prpria duplicidade que os prncipes podemfazer frente a homens sobre quem pode-se fazer a seguinte generalizao: eles soingratos, inconstantes, mentirosos e enganadores, fogem do perigo e so vidospor lucro. Da mesma forma nos Discursos Maquiavel diz: preciso tomar porcerto que todos os homens so perversos, e que eles sempre vo dar vazo mal-dade que existe em suas mentes assim que uma oportunidade aparea. Mas nocontexto republicano tal egosmo maligno pode ter um lado positivo. Maquiavelarmava que permitir o jogo livre dos interesses sectrios poderia at mesmoresponder velha questo sobre como estabelecer o interesse comum apesarde que a resposta dele na verdade torna a pergunta necessria. Bons exemplos devirtude cvica vm de boa educao, disse ele, e boa educao vem de boas leis,e boas leis vm daqueles mesmos tumultos que muitos condenam. Sim, mascomo que boas leis surgem de tumultos de interesse prprio? A maioria dosquais, como Pocock aponta, so s manifestaes de carter negativo prprio deplebes suprimindo as tentativas de dominao de oligarcas32.

    Mesmo assim, a coerncia do todo que a discrdia autorreguladora no conse-guiu alcanar na repblica renascentista, ela conseguiu produzir na mais larga es-cala do cosmos. Em um trabalho intitulado A Natureza das Coisas de acordo comSeus Prprios Princpios (The Nature of Things according to Their Own ProperPrinciples) (1565), Bernardino Telesio de Cosenza generaliza o auto-interessenum princpio emprico universal da natureza. bem evidente, ele escreveu,que a natureza movida pelo auto-interesse. Telesio prova que se Anaximan-dro no tivesse vivido, a Renascena teria que t-lo inventado. Como no universode Anaximandro, no de Telesio todas as coisas eram produzidas atravs da opo-sio de quente e frio, emanando do Sol e da Terra, e os corpos compostos dessaforma invadem uns aos outros em suas tentativas auto-interessadas de realizarsuas prprias naturezas. Isso porque todas as entidades, animadas e inanimadas,so dotadas de sensibilidades que reagem a outras coisas em termos de prazer oudor de forma a crescer. No o acaso cego e sem sentido, portanto, que foraas naturezas ativas ao seu contuo perptuo. Todas elas desejam em seu maisntimo proteger a si mesmas; elas lutam, ademais, para crescer e reproduzir-seindividualmente. Diferentemente de Anaximandro, Telesio no v nenhuma re-conciliao desses conitos atravs de uma noo de justia. A virtude se resume

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  • ao alicerce do auto-engrandecimento que faz do mundo um lugar organizado porsi mesmo. O mundo portanto organizado como se por uma Mo Invisvel acujo conceito Telesio foi o primeiro a dar uma expresso poltica, tica e natural,de acordo com Amos Funkenstein33. Mas tirando o fato de que Anaximandrochegou (mais de) dois mil anos primeiro que ele, talvez evidente a essa alturaque as doutrinas da Mo Invisvel so intrnsecas a regimes de qualquer tipo econmico, poltico, cosmolgico, siolgico que so baseados na oposioentre partes egostas. Ao falhar a preocupao cvica pelo bem estar comum, eela geralmente falha, a nica esperana , nos apropriados versos de AlexandrePope:

    Ainda assim fazem seus crculos ao redor do sol:To consistentes motivos que agem sobre a alma;E um considera a Si mesmo, o outro ao Todo.Assim Deus e Natureza uniram a estrutura geral,E instaram o Amor-prprio e o Social a ser o mesmo.(Essay on Man III, 313318)

    Para fechar esse crculo em particular: Bacon chamou Telesio de o primeirodos modernos. Hobbes lera Telesio, e ele mesmo disse uma vez: A naturezafaz tudo mediante o conito de corpos pressionando uns aos outros com seusmovimentos.

    Os pais fundadores dos Estados UnidosNo dia 6 de maro de 1775, no quinto aniversrio do Massacre de Boston na Ve-lha South Church da cidade, o orador do dia, Dr. Joseph Warren, subiu ao pdiovestindo uma toga um sinal multivalente que sua audincia sabia como in-terpretar34. De fato, em seus escritos polticos, os Pais Fundadores geralmenteassinavam como personagens clssicos, de forma que Alexander Hamilton (paramencionar um de inmeros exemplos), ao advogar um ataque aos franceses emNova Orleans, assinou como Pricles, numa referncia ao discurso do estatistaateniense que clamava por uma guerra contra Esparta. A histria da Grcia, es-creveu John Adams, deveria ser para nossos concidados o que chamado pormuitas famlias no continente de boudoir, uma parte octogonal de uma casa comum espelho completo em cada lado, e mais um no teto35. Se Thomas Jeersonse pusesse em um lugar assim, teria visto no apenas uma imagem completa deseu eu americano mas sua viso da antiga luta de classes que se aproximavada nova repblica americana: As mesmas faces polticas que agora agitam

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  • os Estados Unidos tm existido atravs do tempo, ele disse. O debate sobre aprevalncia do poder do povo ou o poder da aristocracia manteve a Grcia e aRoma em convulses eternas36. Convulses foi o termo que Tucdides usara.Faco veio de Aristteles. Quando James Madison, em Federalista N. 10, fa-lou sobre as causas latentes da faco como estando semeadas na naturezado homem, e da destribuio desigual de propriedade como a principal causadisso, ele estava claramente emulando a obra Poltica, Livro V, no captulo sobreo conito civil que faz referncia ao conito de Crcira. Em Federalista N. 51,Madison volta a falar sobre as faces, concordando implicitamente com Hobbes:Em uma sociedade organizada de tal modo que as faces mais fortes podem sejuntar para oprimir as mais fracas, pode-se dizer que a anarquia reina verdadei-ramente enquanto estado de natureza quando o indivduo mais fraco no estseguro contra o mais forte. A soluo de Madison tambm Hobbesiana: umgoverno que vai proteger todas as partes. Mas claro que no uma soberaniaabsoluta. Ao invs disso, um equilbrio de poderes opostos. Ento Madisonfoi em frente e escreveu o que acabou se tornando a mais famosa passagem dospapis federalistas:

    A ambio deve ser posta para conter a ambio. . . O fato de que tal artifciodeve ser usado para controlar os abusos do governo pode ser um reexo da na-tureza humana. Mas o que o governo em si se no o maior reexo da naturezahumana? Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessrio.

    De acordo com uma distinta e popular tradio historiogrca, a RepblicaAmericana foi fundada sobre o aterrorizante conceito de natureza humana que variavelmente descrito como pessimista, realista, invejoso ou hobbesi-ano. Havia muitas discordncias entre os autores da Constituio, mas quaseum consenso quanto necessidade de controlar a avareza e o vcio humanos que, alm disso, muitos conseguiam localizar especicamente no peito humano.No Federalista Hamilton tomou como uma premissa constitucional que as pai-xes destrutivas e impetuosas da guerra reinam no peito humano. William Le-noir disse nos debates na Carolina do Norte: Devemos levar em consideraoa depravao da natureza humana, a sede por poder que predomina nos peitosde todos37 (Ei, cara, o que aconteceu com o leite da bondade humana?). Muitodesse to suposto pessimismo estava direcionado s massas rebeldes por partede membros da classe de proprietrios, que poderia concordar com Madison (eJohn Locke) quando eles diziam que a preservao da propriedade era o primeiroobjetivo do governo. Eles tinham um medo saudvel do que se poderia chamara fria da democracia, que signicava agitaes como a Revolta dos Shays e asexigncias pelo cancelamento de dvidas e redistribuio de propriedade que ospobres faziam em nome da liberdade e da igualdade. Da vem a ideia de Jeersone outros de que eles estariam aingidos pela luta perene da aristoi e do povo, ideiaa partir da qual Hamilton, entre outros, concluiu que seria preciso um governo

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  • forte para resistir corrente popular.Na ideia de Hamilton de uma constituio Aristotlica mista, tanto quanto

    na ideia de John Adams, os muitos representados em uma cmara baixa seriamcontrapostos por uma aristocracia natural dos poucos do Senado, a legislaturapor sua vez equilibrando o executivo nico. Mas uma vez que a constituio pro-posta tinha trs poderes eleitos direta ou indiretamente pelo povo, muitos par-ticipantes nos debates de raticao j viam que a correspondncia entre classee corpos governantes no estava acontecendo. Da vem a exploso de PatrickHenry na conveno de Virginia contra um documento em que faltava o limitedo qual at o governo britnico dependia amor-poprio:

    No me fale de controles no papel; fale-me de controles fundados no amor-prprio. Esse estmulo poderoso e irresistvel do amor-prprio salvou aquelegoverno. Ele interps a nobreza hereditria entre o rei e os comuns. . . Onde esta rocha de nossa salvao? A real rocha da salvao poltica o amor-prprio,perpetuado de era em era em todo peito humano e manifestado em cada ao.38

    Ainda assim, a crena dos fundadores na eccia do equilbrio de poderes ambio lutando contra ambio, e interesse, contra interesse era incondici-onal. E talvez essa seja a razo pela qual sua inscrio exata no governo estavasempre em conito, era geralmente indeterminada, e s vezes ilusria. Em 1814,John Adams acreditou ter encontrado oito controles desse tipo na constituio,incluindo o dos estados perante o governo nacional, o povo contra seus repre-sentantes e o equilbrio clssico de Montesquieu entre o legislativo, o executivoe o judicirio. Madison queria um governo representativo extenso que poderiaconter o esprito sectrio atravs de uma combinao de tamanho e diversidade,esperando assim neutralizar diferenas econmicas e regionais. Aqui estava umaboa razo para o imperialismo. Outra era que a fronteira agrria poderia criar umesquema amplo de fazendeiros que deslocaria o poder dos ricos comerciantes e oressentimento dos pobres urbanos. J era bem disseminada a ideia de que os ame-ricanos eram bastante igualitrios, da mesma forma que hoje em dia todo mundo classe mdia exceto os dezenove porcento que acham que formam o grupodos um por cento mais ricos. Alm disso, imperialismo e guerra so condiesafortunadas que podem compensar pela falta de virtude cvica na constituio,uma vez que so circunstncias em que o bem comum da vitria so do interesseprivado de todos.

    Em respeito virtude cvica, a nova repblica americana estava em uma me-lhor posio do que seus predecessores histricos, desde que pelo sculo XVIIIo auto-interesse emergiu da sombra do pecado. No que diz respeito nao, osEstados Unidos estava no caminho de transformar a doutrina de Ccero de quetodos temos auto-interesse no interesse comum na converso neoliberal de que ointeresse comum o auto-interesse. E mais do que virtude cvica, os valores quevinham do incio da repblica para resolver as contradies de uma coletividade

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  • baseada em auto-interesse eram nacionalismo e patriotismo que, novamente,prosperam na guerra e na expanso imperial.

    Quando Alexander Hamilton repetidamente insistiu nos Documentos Fede-ralistas que no deveria haver corpos intermedirios entre o governo federal e aspessoas individuais, ele no estava apenas argumentando contra os direitos dosestados. Havia algo radicalmente novo, o nacionalismo, na sua exigncia de queo governo federal deve levar sua agncia s pessoas dos cidados, de que eledeve ser capaz de responder imediatamente s esperanas e aos medos do indi-vduo, e atrair apoio das paixes que tm a maior inuncia no corao humano.Em outras palavras a nao precisa se insinuar no dia a dia das pessoas como umobjeto de seus mais queridos sentimentos, de modo que ao ter assim incorporadoa nao nelas mesmas elas se encontrem incorporadas nao. Quanto mais oscidados esto acostumados a se encontrar com a autoridade nacional nas ocor-rncias comuns da vida poltica, disse Hamilton,

    Mais ela estar familiarizada com a viso deles e com seus sentimentos, omais fundo ela entrar nos objetos que tocam as cordas mais sensveis e pem emmovimento as foras mais ativas do corao humano, maior ser a probabilidadede que conciliar o respeito e a ligao da comunidade.

    A paixo no est mais lutando contra a paixo. A nao a paixo. Agoratem nacionalismo para voc. E tambm naturalismo: uma poltica de corpo re-novada para o corpo poltico.

    Da tambm o modernismo, ou o mundo re-encantando por um certo mate-rialismo. Os fundadores estavam dispostos a justicar qualquer arranjo consti-tucional possvel ao apelar para a ordem natural. Richard Hofstadter observouque o boom cientco do sculo XVIII, apoiado no universo racional de Newton,providenciou os fundadores com um modelo celeste de foras estveis e equili-bradas que fortaleciam a ideia de que o governo poderia ser estabelecido sobre omesmo princpio39. Por detrs disso, claro, estavam a guerra e o amor-prpriobatendo naturalmente no corao de cada ser humano. Esse tipo de naturalismo(dito realismo) veio a ser celebrado como o desencantamento do mundo, ape-sar de signicar na verdade o encantamento da sociedade pelo mundo pelocorpo e pela matria ao invs de pelo esprito (Eu j o disse em outra ocasio: omaterialismo tambm uma forma de idealismo, porque est errado tambm).No apenas a sociedade era entendida como um resultado coletivo de vontades epredisposies individuais como nas cincias como a psicologia evolucionriae a economia ou no folclore do tpico indivduo americano mas o mundo eraencantado por utilidades culturalmente relativas, como ouro, petrleo, uvas pi-not noir, e pura gua Fiji. Aqui h uma construo da natureza atravs de valoresculturais particulares, cujas qualidades simblicas so entendidas contudo comoqualidades puramente materiais, cujas fontes sociais so atribudas ao invs dissoa desejos corporais, e cujas satisfaes arbitrrias so misticadas como escolhas

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  • racionais universais.

    A iluso da natureza humanaO problema no se a natureza humana boa ou m. Os muitos anti-Hobbesdos sculos XVII e XVIII que atacaram o egosmo inato com base na bondadenatural ou na sociabilidade natural continuaram com o mesmo esquema esclero-sado de uma determinao corprea de formas culturais. Mas, comeando com oiluminismo, a ideia de uma condio humana como uma natureza culturalizadaaparecia dentro da tradio ocidental. Da a observao de Adam Ferguson deque indivduos no existem antes ou separados da sociedade mas so constitu-dos dentro dela. Na sociedade eles nascem, e nela eles permanecem capazesde todos os sentimentos com os quais vrias pessoas constroem suas existncias,a amizade proeminente entre eles mas sem excluir a inimizade. Para Marx, deforma similar, a essncia humana existe dentro de e enquanto relaes sociais,no como um pobre sujeito agachado fora do universo. Nascidos nem bons nemmaus, seres humanos formam a si prprios como melhores ou piores dentro daatividade social (praxis) na forma como ela se desenrola dadas as circunstnciashistricas. Marx era totalmente contra leituras que viam predisposies inatas apartir de formaes sociais apesar de que algum poderia ir da sociedade bur-guesa para a guerra mtica hobbesiana de todos contra todos. Pode-se supor quealgum conhecimento de povos colonizados contribuiu para essa antropologia.De qualquer forma, com a importante clusula de que certas ordens culturaissubstituem certas circunstncias histricas na formulao marxista, em outraspalavras que a praxis atravs da qual as pessoas se formam em si culturalmenteinformada, essa noo da condio humana um lugar-comum etnogrco.

    Nenhum smio pode diferenciar gua benta de gua destilada, Leslie Whitecostumava dizer, porque no h diferena qumica apesar de que a difenrenasignicativa faz toda a diferena para a forma como as pessoas a valorizam; di-ferentemente dos smios, o fato de estarem ou no com sede no faz diferenaquanto a isso. Essa foi minha curta aula sobre o que signica smbolo e o quesignica cultura. Quanto s implicaes disso para a natureza humana, levaruma vida de acordo com a cultura signica ter a habilidade e conhecer a neces-sidade de alcanar nossas inclinaoes naturais simbolicamente, de acordo comdeterminaes signicativas de ns mesmos e de objetos de nossa existncia. Acultura humana, isso precisa ser considerado, bem mais antiga que a naturezahumana: a cultura existe por cerca de trs milhes de anos, dez ou quinze vezesmais que a espcie humana moderna, a Homo sapiens. Ns evolumos biologica-mente mediante a seleo cultural. No que sejamos folhas em branco, despro-vidos de quaisquer imperativos animais, apenas que o que foi unicamente seleci-

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  • onado no genus Homo foi justamente a habilidade de realizar esses imperativosnas inmeras e variadas formas que a arqueologia, a histria e a antropologiaj demonstraram. A biologia virou um determinante determinado medida quesuas necessidades foram mediadas e organizadas simbolicamente. Ns temos oequipamento para viver milhares de vidas diferentes, como diz Cliord Geertz,apesar de acabarmos vivendo apenas uma40. Mas isso s possvel porque impe-rativos biolgicos no especicam os objetos ou formas de nossa satisfao.

    Ento quem so os realistas? O povo de Fiji diz que crianas pequenas tm al-mas aguadas, o que quer dizer que elas so indeterminadas at que demonstremseu ser social pela prtica de relacionamentos jianos. Como em muitas comu-nidades dominadas pelo parentesco, a humanidade denida pela reciprocidade.A mente (vontade, conscincia), disseram a Strathern em Hagen, se torna vis-vel pela primeira vez quando uma criana mostra sentimentos por aqueles rela-cionados a ela, e vem a apreciar a interdependncia ou reciprocidade que carac-teriza as relaes sociais41. Mesmo que de Agostinho a Freud as necessidades eas dependncias dos infantes tm sido consideradas como prova de seu egosmo considere a forma como falamos gratuitamente das necessidades das crianascomo se fossem birras a interpretao prevalente entre os outros antro-polgicos simplesmente que a criana incompleta, no ainda denida comohumana pelo engajamento na praxis cultural das relaes. A natureza humanaento se torna um tipo cultural especco. Ento quando em Java as pessoashonestamente dizem que ser humano ser javans , Geertz, que est narrandoisso, diz que eles esto certos no sentido de que no existe isso de naturezahumana independente de cultura42. Novamente, isso no quer dizer que tal na-tureza no exista, mas que seu modo de existncia e eccia social dependemda cultura em questo uma natureza mediada e portanto um determinantedeterminado.

    O que mais pertinente para as relaes entre physis e nomos no (porexemplo) que todas as culturas tm sexo, mas que todo sexo tem cultura. Im-pulsos sexuais so expressos de forma variada e reprimidos de acordo com de-terminaes locais quanto a parceiros apropriados, ocasies, horrios, lugares, eprticas corporais. Ns sublimamos nossa sexualidade genrica de vrias formas incluindo sua transcendncia em prol de valores maiores como o celibato, oque tambm prova que em regimes simblicos h formas mais convincentes dese atingir imortalidade do que a mstica inarticulada do gene egosta. A imor-talidade, como tudo o mais para os seres humanos, um fenmeno simblico o que mais poderia ser? (Em The Moral Sentiments, Adam Smith observaque os homens so conhecidos por voluntariamente desperdiar suas vidas paraadquirir depois da morte um renome do qual eles no mais poderiam desfru-tar, estando contentes por antecipar em imaginao a fama que isso lhes traria).De forma semelhante, a sexualidade realizada de vrias formas signicativa-

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  • mente ordenadas. Alguns at fazem sexo por telefone. Ou, para outro exemplode manipulao conceitual (com a inteno do trocadilho), h ainda a frase deBill Clinton, eu no z sexo com essa mulher.

    A mesma lgica aplicada ao sexo se aplica para outras necessidades inerentes,outros impulsos, ou predisposies: nutricionais, agressivos, egostas, sociveis,compassivos o que quer que eles sejam eles se apresentam sob uma deniosimblica e, portanto, uma ordem cultural. Quando ocorre, a agresso ou domi-nao pode tomar a forma comportamental da, digamos, resposta nova-iorquinaa um tenha um bom dia NO ME DIGA O QUE FAZER!. Ns guerreamosnos campos de Eton43, batalhamos com palavres e insultos, dominamos compresentes que no podem ser retribudos, ou escrevemos resenhas mordazes deobras de acadmicos adversrios. O povo innuit diz que presentes fazem escravoscomo chicotes fazem cachorros. Mas para ser capaz de pensar isso, ou de pensar ocontrrio proverbial de que presentes fazem amigos um ditado que como os doinnuit vai contra o ncleo do sistema econmico prevalente requer que tenha-mos nascido com almas aguadas, esperando para manifestar nossa humanidadepara melhor ou pior em experincias signicativas de uma forma particular devida. No, como nas nossas antigas losoas e modernas cincias, que esteja-mos condenados por uma natureza humana irresistvel a cuidar de nossa prpriavantagem ao custo de quem quer que seja, tornando-nos assim ameaas nossaprpria existncia.

    Foi tudo um grande erro. Minha concluso modesta a de que a civiliza-o ocidental foi amplamente construda sobre uma ideia errnea de naturezahumana (Desculpem, eu sinto muito; foi tudo um engano). provavelmenteverdade, porm, que essa ideia errada da natureza humana pe em cheque nossaexistncia.

    Notes1John Adams, Papers of John Adams. Vol. 1: September 1755October 1773. Ed. Robert J.

    Taylor. (Cambridge MA: The Belknap Press), 82.2Thomas Gustafson, Representative Words: Politics, Literature and the American Language,

    17761865 (Cambridge, England: Cambridge University Press,1977), 124.3W. Robert Connor, Thucydides (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1984), 89.4Terence Bell, Hobbes Linguistic Turn, Polity 17 (1985), 749.5Quentin Skinner, Visions of Politics. Vol. 3: Hobbes and Civil Science (Cambridge, England:

    Cambridge University Press, 2002), 15.6Gerald Naddaf, Anthropogony and Politogony in Anaximander of Miletus, in Dirk L. Cou-

    prie, Robert Hahn, and Gerald Naddaf, Anaximander in Context: New Studies in the Origins ofGreek Philosophy (Albany, NY: State University of New York, 2003), 19.

    7Marcel Detienne and Jean-Pierre Vernant, Cunning Intelligence in Greek Culture and Society(Chicago: The University of Chicago Press, 1991), 88.

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  • 8Jean-Pierre Vernant, The Origins of Greek Thought (Ithaca NY: Cornell University Press,1982), 47.

    9Do ingls fairest pode vir tambm a ideia do nome mais justo (N. do T.)10G. S. Kirk, J. E. Raven, and M. Schoeld, The Presocratic Philosophers. Second Edition (Cam-

    bridge, England: Cambridge University Press, 1983).11John Adams, A Defence of the Constitutions of the Governments of the United States of

    America. Third Edition. Vol. 1. (Philadelphia: 1797, Eighteenth Century Collections Online), 99.12Arthur O. Lovejoy and George Boas, Primitivism and Related Ideas in Antiquity (1935; Bal-

    timore: The Johns Hopkins University Press, 1997), 106.13 difcil traduzir esta frase para portugus por causa do uso da preposio de formas parti-

    cularmente anglfonas, mas algo como case fora do grupo ou perea. (N. do T.)14Deve-se notar, claro, a ideia radicalmente diferente de estado ou sociedade politicamente

    organizada que havia na Grcia Antiga. (N. do T.)15Cicero, De Ociis, I, vii.16In Cary J. Nederman and Kate Forhan, eds., Medieval Political TheoryA Reader: The Quest

    for the Body Politic, 11001400 (London: Routledge, 1993), 28.17Elsdon Best, The Maori, Vol.1 (Wellington, NZ: Harry H. Tombs, 1924), 128.18Signe Howell, Nature in Culture or Culture in Nature? Chewong Ideas of humans and

    other Species, in Phillipe Descola and Gisli Palsson, eds., Nature and Society: AnthropologicalPerspectives ( London: Routledge, 1996), 130.

    19Marilyn Strathern, The Gender of the Gift (Berkeley: University of California Press, 1988),92.

    20In Herbert A. Deane, The Political and Social Ideas of St. Augustine (New York: ColumbiaUniversity Press, 1963), 47.

    21In Elaine Pagels, Adam, Eve and the Serpent (New York: Random House, 1988), 47.22O peixe grande come o menor. N. do T.23Longa durao. N. do T.24Deane, 101.25Thomas Gilby, The Political Thought of Thomas Aquinas (Chicago: The University of Chi-

    cago Press, 1958), 8.26Otto Gierke, Political Theories of the Middle Ages (Boston: Beacon Press, 1955), 9.27L. J. Daly, The Political Theory of John Wycli (Chicago: Loyola University Press, 1962), 99.28A amizade necessidade, N. do T.29Saint Thomas Aquinas, Political Writings, R. Dyson, ed. and trans. (Cambridge, England:

    Cambridge University Press, 2002), 23, 26.30Aquinas, 7.31Quentin Skinner, Visions of Politics, Vol. II: Renaissance Virtues (Cambridge, England: Cam-

    bridge University Press, 2002), 2829.32J. G. A. Pocock, The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic

    Republican Tradition (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1975).33Amos Funkenstein, Theology and the Scientic Imagination (Princeton, NJ: Princeton Uni-

    versity Press, 1986).34James McLachlan, Classical Names, American Institutions, in John W. Eadie, ed., Classical

    Traditions in Early America (Ann Arbor, MI: Center for Coordination of Classical and ModernStudies, The University of Michigan, 1976), 83.

    35Carl Richard, The Founders and the Classics (Cambridge MA: Harvard University Press,1994), 135.

    36Richard, 83.

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  • 37John Elliott, ed., The Debates of the Several State Conventions on the Adoption of the FederalConstitution, Vol. 4 (New York: Burt Franklin, 1888), 204.

    38Elliott, Vol. 3, 164.39Richard Hofstadter, The American Political Tradition and the Men Who Made It (New York:

    Knopf, 1973).40Cliord Geertz, The Interpretation of Cultures (New York: Basic Books, 1973), 45.41Strathern, 90.42Geertz, 5253, 49.43Aluso a uma expresso popular inglesa erroneamente atribuda ao Duque de Wellington de

    que a batalha de Waterloo teria sido ganha on the playing elds of Eton. Eton um famosointernato na Inglaterra. (N. do T.)

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