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Coleção Zero à Esquerda Coordenadores: Paulo Eduardo Arantes e Iná Camargo Costa - Desafortunados David Snow e Leon Anderson - Diccionario de bolso do almanaque philosophico zero à esquerda Paulo Eduardo Arantes - Globalização em questão Paul Hirst e Grahame Tbompson - A ilusão do desenvolvimento Giovanni Arrighi - Os moedeiros falsos José Luís Piori - Metamorfose da questão social Robert Castel - Poder e dinheiro: Uma economia política da globalizaçâo Maria da Conceição Tavares eJosé Luís Piori (Orgs.) - Terrenos vulcânicos DolfOehler - Os últimos combates Robert Kurz Conselho Editorial da Coleção Zero à Esquerda Otília Beatriz Fiori Arantes Roberto Schwarz Modesto Carone Fernando Haddad Maria Elisa Cevasco Ismail Xavier José Luís Fiori Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil) Arrighi, Giovanni A ilusão do desenvolvimento I Giovanni Arrighi ; 1 tradução de Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos I.- Petrópolis, RJ :Vozes, 1997. - (Coleção Zero à Esquerda) Título original: Woekers of the world at century's end. ISBN 85.326.1885-5 1. Desenvolvimento econômico 2. Economia mundial 3. História econômica - Século XX 4. Trabalho e classes trabalhadoras L Título. lI. Série. 97-4472 CDD-330.904 Índices para catálogo sistemático: 1. Economia moderna: Século XX : História 330.904 2. Século XX : Economia moderna: História 330.904 Petrópolis 1997 Giovanni Arrighi A ilusão do desenvolvimento tradução: Sandra Vasconcelos 3 3 Edição Ih EDITORA Y VOZES

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Page 1: 04. ARRIGHI. a Ilusao Do Desenvolvimento - Pag 207-252

Coleção Zero à EsquerdaCoordenadores: Paulo Eduardo Arantes e Iná Camargo Costa

- DesafortunadosDavid Snow e Leon Anderson

- Diccionario de bolso do almanaque philosophico zero à esquerdaPaulo Eduardo Arantes

- Globalização em questãoPaul Hirst e Grahame Tbompson

- A ilusão do desenvolvimentoGiovanni Arrighi

- Os moedeiros falsosJosé Luís Piori

- Metamorfose da questão socialRobert Castel

- Poder e dinheiro: Uma economia política da globalizaçâoMaria da Conceição Tavares e José Luís Piori (Orgs.)

- Terrenos vulcânicosDolfOehler

- Os últimos combatesRobert Kurz

Conselho Editorial da Coleção Zero à EsquerdaOtília Beatriz Fiori ArantesRoberto SchwarzModesto CaroneFernando HaddadMaria Elisa CevascoIsmail XavierJosé Luís Fiori

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)

Arrighi, GiovanniA ilusão do desenvolvimento I Giovanni Arrighi ; 1 tradução de

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos I.- Petrópolis, RJ :Vozes, 1997.- (Coleção Zero à Esquerda)

Título original: Woekers of the world at century's end.ISBN 85.326.1885-5

1. Desenvolvimento econômico 2. Economia mundial 3. Históriaeconômica - Século XX 4. Trabalho e classes trabalhadoras L Título.lI. Série.

97-4472 CDD-330.904

Índices para catálogo sistemático:1. Economia moderna: Século XX : História 330.9042. Século XX : Economia moderna: História 330.904

Petrópolis1997

Giovanni Arrighi

A ilusão do desenvolvimento

tradução: Sandra Vasconcelos

33 Edição

Ih EDITORAY VOZES

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AILUSÁODODESENVOLVIMENTO

WALLERSTEIN,Immanuel (1970). The Capitalist World-Economy, NewYork: Cambridge University Press.

WALLERSTEIN,Immanuel (1984). The Politics of the World-Economy.New York: Cambridge University Press.

WALLERSTEIN,Immanuel (1985). "The Relevance of the Concept 01Semiperiphery to Southern Europe," in G. Arrighi, ed., SemiperipheralDevelopment: The Politics of Southern Europe in the Twentieth Century.Beverly Hills, CA: Sage, 531-39.

WARREN,Bill (1980). lmperialism: Pioneer of Capitalismo London,NLB.

WORLDBANK(1978-85). World Development Report. Washington, DC:WorldBank.

WORLDBANK(1984). World Tables,Vols.1 & 2. Washington, DC: WorldBank.

WOYTINSKY,W.S.&Woytinsky, E.S. (1953). WorldPopulation andPro-duction: Trends and Outlook. New York: Twentieth Century Fund.

A ilusão desenvolvimentista:uma reconceituação da semiperiferia"

o beco sem saída da troca desigual

Quando falamos de "semiperiferia", nos referimos a umaposição intermediária na estrutura núcleo orgânico-periferiada economia capitalista mundial. A maioria dos estudos supõeque essa estrutura núcleo orgânico-periferia consiste de redesde "troca desigual", através das quais alguns Estados (freqüen-temente identificados como "industriais" ou "industrializa-dos") se apropriam de uma parcela desproporcional dosbenefícios da divisão internacional do trabalho, ao passo quea maioria dos outros Estados colhe apenas os benefícios quesão necessários para conservá-los na relação de troca desigual.Diz-se que os primeiros Estados constituem o "núcleo orgâni-co" da economia capitalista mundial e os últimos constituem sua"periferia". Estados semiperiféricos (freqüentemente referidoscomo "semi-industriais" ou "semi-industrializados") são, por-

, Publicado originalmente em Wiliam G. Martin (ed.). Semiperipheral StatesilJJhe World-Economy. Greenwood Press, New York, 1990. Ao revisar estecapítulo para publicação, me beneficiei dos comentários e sugestões de Chris-topher Cnase-Dunn, Walter L. Goldfrank, Terence J. Hopkins, William G.Martin, Gonzalo Santos, Beverly ]. Silver e Immanuel Wallerstein.

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tanto, definidos como os Estados que ocupam uma posiçãointermediária nessa rede de troca desigual: eles colhem apenasbenefícios marginais quando estabelecem relações de trocacom os Estados do núcleo orgânico, mas colhem a maioria dosbenefícios líquidos quando estabelecem relações de troca comos Estados periféricos. 1

Essa conceituaçâo se baseia num número de suposiçõesque, do meu ponto de vista, são extremamente questionáveis,tanto por razões apriorísticas quanto históricas. A primeirasuposição questionável é que "industrialização" é o equivalen-te de "desenvolvimento" e que "núcleo orgânico" é o mesmoque "industrial". É interessante que essa suposição atravessea grande linha divisória entre as escolas da dependência e damodernização. Para ambas as escolas, "desenvolver-se" é "in-dustrializar-se", por definição. Desnecessário dizer, as duasescolas discordam vigorosamente a respeito de como e porque alguns países se industrializaram e outros não, ou se de-sindustrializaram, mas a maioria dos profissionais aceita comoverdadeiro que desenvolvimento e industrialização são a rnes-

dustrialização e do grupo de Estados não tão ricos, mas emprocesso de industrialização, do outro. Sem dúvida, os defen-sores da dependência e da modernização concordariam ambosque a industrialização geralmente é buscada não como um fimem si mesmo, mas como um meio na busca de riqueza, ou depoder, ou de bem-estar, ou de uma combinação disso, e que aquestão é, portanto, bastante legítima. Mas, para que se possalevantar a questão, é necessário abandonar o postulado de queindustrialização é o equivalente de desenvolvimento.

Uma segunda suposição questionável nessa conceituaçãoé que as relações núcleo orgânico-periferia consistem de rela-ções de "troca desigual" e que a estrutura núcleo orgânico-pe-riferia da economia mundial consiste de uma rede de trocas,tipicamente uma rede de comércio. Em primeiro lugar, nãofica sempre claro o que "troca desigual" significa para aquelesque usam o termo. A referência padrão é Emmanuel (1972),mas muito poucos daqueles que se referem a ele parecem estarconscientes do que o conceito de troca desigual de Emmanuelenvolve e não envolve.

O conceito de troca desigual de Emmanuel não tem nadaa ver com posição numa rede de comércio. Refere-se aoco-mércio entre Estados caracterizados por diferentes níveis sa-lariais, mas pela mesma taxa de lucro e nível de produtividade.Tem como premissa uma falta de mobilidade dos recursos demão-de-obra e uma alta mobilidade dos recursos de capitalentre os parceiros comerciais e resulta na apropriação dos be-nefícios do comércio pelo parceiro com o nível mais alto desalários, independente de sua posição nas redes de comércio.

Mais importante, a troca desigual não foi o único meca-nismo envolvido na polarização núcleo-orgânico-periferia,nem seus efeitos na estrutura núcleo orgânico-periferia da eco-nomia mundial foram tão destituídos de ambigüidade quantosugerem aqueles que usam o termo. Não estou, de modo al-gum, negando o papel decisivo desempenhado pela troca de-sigual na criação e reprodução da estrutura núcleo or-gânico-periferia da economia capitalista mundial. Historica-mente, o capital tem sido muito mais móvel que o trabalho,

míssima COIsa.Essa visão está tão entranhada que ela não permanece sem

contestação, não obstante a recente onda de desindustrializaçâoentre os Estados mais ricos da economia capitalista mundial.A rápida industrialização correspondente dos Estados compa-rativamente pobres foi, em geral, considerada em seu valornominal como o equivalente de "desenvolvimento". Ao queme consta, ninguém dessas escolas levantou a questão de seesses processos conjuntos de desindustrializaçâo e industriali-zação foram combinados ou não a um correspondente estrei-tamento da distância entre riqueza, poder e bem-estar, de umlado, dos grupos de Estados ricos, mas em processo de desin-

1 Essa caracterização resume as premissas declaradas e não declaradas damaioria dos estudos que fazem uso dos conceitos de núcleo orgânico, peri-feria e semiperiferia. Muito poucos desses estudos realmente tentaram iden-tificar os Estados centrais, periféricos e semiperiféricos com base nas suasposições nas redes de comércio. Exceções notáveis são Snyder e Kick (1979),Nemeth e Smith (1985) e Smith e White (1989).

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através do espaço da economia capitalista mundial, e os dife-renciais de salário entre os territórios integrados nesta última,têm sido não apenas maiores, mas têm crescido mais rápidodo que os diferenciais de produtividade e de taxas de lucro. Édifícil conceber que os Estados do núcleo orgânico pudessemter atingido seus atuais padrões de poder, riqueza e bem-estarsem uma longa história de trocas diretas e indiretas de merca-dorias com Estados e territórios de salários comparativamentebaixos.

Admitido tudo isso, não se segue daí que a troca desigualfoi o único ou mesmo o principal mecanismo de polarizaçãonúcleo orgânico-periferia ou que a polarização núcleo orgâ-nico-periferia é necessariamente seuresultado, A troca desi-gual é apenas um dos diversos mecanismos da polarizaçãonúcleo orgânico-periferia. Igualmente importante foram doisoutros mecanismos, que podemos designar como traI1sf(';[êD..::-cias unilaterais de mão-de-obra, por um lado, e decapital, dooutro. Diferentemente da troca desigual, essas transferênciasdesiguais não pressupõem a existência de uma relação de co-mércio ou de uma rede de comércio. Portanto, em princípio,as transferências unilaterais de um Estado ou território paraoutro são compatíveis com uma ausência completa de relaçõesde troca desigual entre os Estados e territórios envolvidos."

Historicamente, as transferências unilaterais de capital etrabalho foram tanto forçadas quanto voluntárias. As transfe'-rências forçadas são transferências estimuladas pelo uso daviolência ou pela ameaça plausível disso pelo Estado receptore seus agentes. O tráfico de escravos e a transferência e uso deprisioneiros de guerra como trabalhadores são exemplos detransferências unilaterais forçadas de recursos de mão-de-

obra, ao passo que a extorsão de instrumentos monetários dascolônias ou de reparações de guerra de inimigos derrotados éum exemplo de transferências forçadas de recursos de capital.As transferências voluntárias, por sua vez, são transferênciasbaseadas exclusivamente no auto-interesse dos donos dos re-cursos que estão sendo transferidos, sendo os exemplos maisproeminentes a emigração de trabalhadores e a "fuga do ca-pital".

Ambos os tipos de transferências unilaterais foram cruciaisna constituição e reprodução da estrutura núcleo orgânico-periferia da economia capitalista mundial, embora, ao longodo tempo, a importância das transferências forçadas tenha de-clinado em relação à importância das transferências voluntá-rias. O fato de as transferências voluntárias serem consideradasmoralmente menos objetáveis do que as transferências força-das não significa que sejam menos eficazes enquanto mecanis-mos de polarização núcleo orgânico-periferia. Ao contrário,as transferências voluntárias são muito mais eficazes do queas transferências forçadas quando e onde os diferenciais entreas localidades, no nível e na segurança das recompensas, tor-naram-se suficientemente grandes para criar um incentivo for-te e generalizado para que os donos dos recursos do capital edo trabalho transfiram esses recursos para locais nos quais osretornos são os maiores e os mais seguros.

As transferências unilaterais desse tipo foram muito maisimportantes do que a troca desigual na expansão do núcleoorgânico, a fim de incluir a maioria das assim chamadas terrasde novo povoamento, os Estados Unidos em primeiro lugar,no final do século XIX e início do século XX. Os efeitos dessastransferências nos países "remetentes" não foram nem umpouco uniformes. De modo geral, entretanto, o efeito foi umapolarização inaudita nas hierarquias de riqueza, poder e bem-estar da economia capitalista mundial.

A troca desigual é, portanto, apenas um dos muitos meca-nismos através dos quais a estrutura núcleo orgânico-periferiada economia mundial foi criada, reproduzida e aprofundada.Mas isso não é tudo. Como já foi mencionado, seus efeitos na

2 Sobre a distinção entre periferização por meio da mobilidade do capital(ou transferência do excedente), periferização por meio da mobilidade demercadorias (ou troca desigual) e periferização por meio da mobilidade damão-de-obra (ou extração direta de excedente), ver Arrighi e Piselli (1987:687-97). Esses autores mostram que cada mecanismo de periferização estáassociado a um tipo particular de estrutura social e conflito social.

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estrutura núcleo orgânico-periferia da economia capitalistamundial são muito mais contraditórios do que normalmentese supõe. Um país que vende mercadorias que incorporammão-de-obra bem paga em troca de mercadorias que incorpo-ram mão-de-obra mal paga pode continuar a fazê-lo e colheros benefícios da troca apenas na medida em que a relação naprodução e consumo entre os dois tipos de mercadoria é decomplementaridade e não de competição. Se, por alguma ra-zão, a relação de complementaridade se enfraquece e a decompetição se torna mais forte, a troca desigual nesse sentidotorna-se uma arma do país "explorado" na obtenção de rique-za, poder e bem-estar em relação ao, e possivelmente às custasdo, país "explorador". Nessas circunstâncias, a tese de Warren(1980), de que a exploração de países de baixos salários porpaíses de altos salários pode ser melhor do que nenhuma ex-ploração, contém um importante elemento de verdade.

A este respeito, dever-se-ia notar que os exemplos maisnotáveis de "mobilidade" ascendente na economia capitalistamundial desde a Segunda Guerra Mundial (japâo, Coréia doSul e Taiwan) se apoiaram todos pesadamente, num momentoou outro de sua ascensão, na exportação de mercadorias queincorporavam mão-de-obra comparativamente mal paga emtroca de mercadorias que incorporavam mão-de-obra compa-rativamente bem paga. Não se segue, dessas experiências his-tóricas, que todos os Estados periféricos ou semiperiféricospodiam ou podem enriquecer do mesmo modo que o Japão,a Coréia do Sul e Taiwan. Como veremos, isso está fora dequestão. Mas segue-se que a troca desigual pode cortar oufuncionar das duas maneiras (em direção à polarização e emdireção à despolarização) e que, portanto, a suposição de umaidentidade fundamental entre as relações núcleo orgânico-pe-riferia e as relações de troca desigual não se justifica.

Mutatis mutandis, o que se acabou de dizer sobre a trocadesigual se aplica às transferências unilaterais de recursos docapital e do trabalho. Historicamente, a exportação sistemá-tica de recursos do capital foi tanto um mecanismo de "cen-tralização" como de periferização. Desde a Holanda do século

XVI até o Japão de hoje, o investimento no exterior (princi-palmente sob a forma de capital que rende juros) de uma par-cela sempre crescente dos recursos de capital de uma naçãofoi um grande instrumento na formação e consolidação deposições centrais. Quanto à transferência unilateral dos recur-sos do trabalho, é suficiente registrar que as ascensões à posiçãocentral da Grã-Bretanha, nos séculos XVII e XVIII, e da Suíçae Suécia, no final do século XIX, foram precedidas ou acom-panhadas por uma maciça migração externa dos recursos dotrabalho.

Em resumo, a troca desigual e as transferências unilateraisdos recursos do capital e do trabalho contribuíram para a for-mação e reprodução da estrutura núcleo orgânico-periferia daeconomia mundial. No entanto, não são traços essenciais dasrelações núcleo orgânico-periferia. Se as relações núcleo or-gânico-periferia dizem respeito, como penso que ocorre, a al-guma desigualdade fundamental e auto-reprodutora na dis-tribuição de riqueza entre os Estados e povos da economiacapitalista mundial, então a troca desigual e as transferênciasunilaterais dos recursos do capital e do trabalho são atributospuramente contingentes dessas relações, exatamente como aindustrialização e a desindustrialização. Elas podem ou não .•coincidir com as relações núcleo orgânico-periferia, depen-dendo das circunstâncias específicas de tempo e lugar sob exa-me. Em si e por si mesmas, elas não podem jamais dizer quemestá e quem não está se beneficiando com as desigualdadesestruturais da economia capitalista mundial.

A riqueza das nações da perspectiva dos sistemas mundiais

A análise dos sistemas mundiais nos fornece uma saídafácil desse impasse teórico no qual estamos fadados a nos en-contrar, se insistirmos em identificar a estrutura núcleo orgâ-nico-periferia da economia capitalista mundial com base nasredes de troca, ou, pior ainda, com base em graus comparativosde industrialização. Seguindo Marx e Schumpeter, a análise

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dos sistemas mundiais concebe o capitalismo como um sistemaevolucionário no qual a estabilidade do todo tem como pre-missa a mudança perene nas e das partes. As relações núcleoorgânico-periferia não são exceção. Supõe-se que os tipos deinsumos, produtos e técnicas de produção e distribuição e asposições em redes de comércio e alocação de recursos que dãoaos Estados capacidades diferenciadas de se apropriar dos be-nefícios da divisão mundial do trabalho mudem continuamen-te em conseqüência da introdução e difusão de inovaçõespolíticas, econômicas e sociais.'

Nesse tipo de conceituação, o que é uma combinação cen-tral e o queé uma combinação periférica de atividades variamcontinuamente ao longo do tempo e do espaço da economiamundial. Uma combinação específica de atividades (por exem-plo, a especialização na manufatura; a exportação de merca-dorias que incorporam mão-de-obra bem paga e a importaçãode mercadorias que incorporam mão-de-obra mal paga; ex-portação do capital e importação do trabalho) pode permitirque um Estado específico em um dado momento se apropriede uma parcela desproporcionalmente grande de benefíciosda divisão mundial do trabalho, mas outros Estados podemnão conseguir fazer o mesmo ao mesmo tempo; nem talvez omesmo Estado consiga fazer o mesmo em outro momento.

As relações núcleo orgânico-periferia são determinadasnão por combinações específicas de atividades, mas pelo re-sultado sistêmico do vendaval perene de destruição criativa enão tão criativa engendrado pela disputa pelos benefícios da

divisão mundial do trabalho. A alegação teórica central daanálise dos sistemas mundiais a respeito desse resultado sistê-mico é que a capacidade de um Estado de se apropriar dosbenefícios da divisão mundial do trabalho é determinada prin-cipalmente por sua posição, não numa rede de trocas, masnuma hierarquia de riqueza. Quanto mais alto na hierarquiade riqueza está um Estado, melhor posicionados estão seusdirigentes e cidadãos na disputa por benefícios. Suas oportu-nidades de iniciar e controlar processos de inovação ou pro-teger-se dos efeitos negativos dos processos de inovação ini-ciados e controlados por outros são distintamente melhoresdo que as oportunidades dos dirigentes e cidadãos posiciona-dos mais abaixo na hierarquia de riqueza.

Além disso, a análise dos sistemas mundiais afirma queessa hierarquia de riqueza consiste de três camadas ou agru-pamentos distintos. Os Estados posicionados no agrupamentosuperior se apropriam de uma parcela desproporcional dosbenefícios da divisão mundial do trabalho e, nesse sentido,constituem o núcleo orgânico da economia capitalista mun-dial. Os Estados posicionados no agrupamento inferior co-lhem os benefícios que, no máximo, cobrem os custos a longoprazo da participação na divisão mundial do trabalho e cons-tituem a periferia da economia capitalista mundial. Os Estadosposicionados no agrupamento intermediário (Estados sernipe-riféricos) se apropriam dos benefícios que excedem os custosa longo prazo da participação na divisão mundial do trabalho,mas menos do que é necessário para manter o padrão de ri-queza estabelecido pelos Estados do núcleo orgânico.

Essas três posições são definidas não apenas em termosquantitativos (isto é, como uma posição superior, inferior eintermediária na escala de riqueza), mas qualitativamente tam-bém (como capacidades relacionais de se apropriar dos bene-fícios da divisão mundial do trabalho). Elas se comparam aosconceitos de riqueza "oligárquica" e "democrática", introdu-zidos pela primeira vez por Harrod (1958) e salvos do esque-cimento por Hirsch (1976). Ainda que esses conceitos tenham

3, Ver Arrighi e Drangel (1986) para fontes e argumentos que corroboramessa asserção. Para simplificar as coisas e tornar a exposição mais clara, pos-tulo aqui que são os "Estados", mais do que as empresas capitalistas, osatores-chave nos processos de acumulação do capital. Para os propósitosaqui, essa simplificação é pertinente porque não afeta significativamente asconclusões da análise. Além disso, a suposição de que os Estados são osatores-chave nos proce,ssos da acumulação do capital é menos rígida nasseções sobre "A Política do Desenvolvimento Semiperiférico" e "A Sernipe-riferia e o Futuro da Economia Mundial", que focalizam a estrutura de classee étnica dos Estados.

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sido formulados para explicar diferenciais de riqueza pessoal,eles podem ser usados para explicar diferenciais de riquezaentre nações.

Harrod (1958) distingue dois tipos de riqueza pessoal, "de-mocrática" e "oligárquica", e sustenta que elas são separadaspor um "golfo intransponível". A riqueza democrática é o tipode domínio sobre os recursos que, em princípio, está disponívelpara todos em relação direta com a intensidade e eficiência deseus esforços. A riqueza oligárquica, em contrapartida, nãotem qualquer relação com a intensidade e eficiência dos esfor-ços de seus receptores e nunca está disponível para todos, nãoimporta quão intensos e eficientes são seus esforços. Isso sedá, de acordo com Harrod, por duas razões principais. A pri-meira razão corresponde ao conceito de Emmanue] de trocadesigual, mas se refere a trocas entre pessoas. Não podemostodos ter domínio sobre serviços e produtos que incorporamo tempo e esforço de mais de uma pessoa de eficiência média.Se alguém o tem, isso significa que uma outra pessoa está tra-balhando por menos do que ele ou ela deveria controlar, setodos os esforços de igual intensidade e eficiência fossem re-compensados igualmente. A segunda razão é que alguns re-cursos são escassos num sentido absoluto ou relativo, ou estãosujeitos a acumulação anormal ou aglomeração através do usoextensivo. Seu uso ou gozo, portanto, pressupõe a exclusãoou desaglomeração de outros, seja através de um sistema decorreção de preços ou de racionamento e leva à formação delucros ou quase-lucros.

A luta para conseguir riqueza oligárquica é, portanto, ine-rentemente autofracassada, Como sublinhado por Hirsch, aidéia de que todos podem consegui-Ia é uma ilusão.

Agindo só, cada indivíduo busca tirar o melhor proveito de suaposição. Mas a própria satisfação dessas preferências individuaisaltera a situação que outros têm que enfrentar, na busca de sa-tisfação de necessidades semelhantes. Uma rodada de transaçõesque tenham como fim apresentar necessidades pessoais dessetipo, portanto, faz com que cada indivíduo fique com uma bar-ganha pior do que se pensava quando se realizou a transação,

porque a soma desses atos não melhora de modo correspondentea posição de todos os indivíduos considerados no seu conjunto.Há um problema de "adição". As oportunidades de avanço eco-nômico, tal como se apresentam serialmente a uma pessoa decada vez, não constituem oportunidades equivalentes de avançoeconômico para todos. O que cada um de nós pode realizar, nãoé possível para todos (Hirsch 1976:4-5).

A análise de sistemas mundiais sustenta que os Estados embusca de riqueza nacional numa economia capitalista mundialenfrentam um problema de "adição" semelhante, e de muitasmaneiras mais sério do que, àquele enfrentado pelos indivíduosquando buscam riqueza pessoal numa economia nacional. Asoportunidades de avanço econômico, tal como se apresentamserialrnente para um Estado de cada vez, não constituem opor-tunidades equivalentes de avanço econômico para todos os Es-tados. Como insiste Wallerstein (1988), desenvolvimento nessesentido é uma ilusão. A riqueza dos Estados do núcleo orgânicoé análoga à riqueza oligárquica de Harrod, Não pode ser gene-ralizada porque se baseia em processos relacionais de exploraçãoe processos relacionais de exclusão que pressupõem a reproduçãocontínua da pobreza da maioria da população mundial.

Os processos de exclusão são tão importantes quanto osprocessos de exploração. Tal como usados aqui, esses últimosse referem ao fato de a pobreza absoluta ou relativa dos Estadosperiféricos ou semiperiféricos induzir continuamente seus di-rigentes e cidadãos a participar da divisão mundial do trabalhopor recompensas marginais que deixam o grosso dos benefíciospara os dirigentes e cidadãos dos Estados do núcleo orgânico.Os processos de exclusão, por sua vez, se referem ao fato deque a riqueza oligárquica dos Estados do núcleo orgânico for-nece aos seus dirigentes e cidadãos os meios necessários paraexcluir os dirigentes e cidadãos dos Estados periféricos ou se-miperiféricos do uso e gozo de recursos que são escassos ouestão sujeitos a acumulação anormal.

Os dois processos são distintos, mas complementares. Osprocessos de exploração fornecem aos Estados do núcleo or-gânico e a seus agentes os meios para iniciar e sustentar pro-

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cessos de exclusão. Os processos de exclusão geram a pobrezanecessária para induzir os dirigentes e cidadãos dos Estadosperiféricos e semiperiféricos a buscar continuamente a re-en-trada na divisão mundial do trabalho em condições favoráveisaos Estados do núcleo orgânico.

Se a riqueza dos Estados do núcl~o orgânico corresponde aoconceito de riqueza oligárquica de Harrod, a riqueza dos Estadossemiperiféricos corresponde ao conceito de riqueza democráticade Harrod porque, em princípio, ela poderia ser generalizada.Se todos os esforços humanos de igual intensidade e eficiênciafossem recompensados igualmente e se todos os seres humanostivessem oportunidades iguais de usar os recursos escassos, todosos povos poderiam usufruir do tipo de domínio sobre os recursosque já é usufruído, em média, pelos povos da semiperiferia. Narealidade, entretanto, o traço mais essencial da economia capi-talista mundial é a recompensa desigual por esforços humanosiguais e oportunidades desiguais de uso de recursos escassos.Conseqüentemente, apenas uma minoria da população mundialdesfruta da riqueza democrática e o faz somente por meio deuma luta perene contra as tendências excluidoras e explora-doras através das quais a riqueza oligárquica dos Estados donúcleo orgânico é criada e reproduzida, . I.

A luta contra a exclusão e a luta contra a exploração sãodiferentes em gênero. Alguns Estados semiperiféricos confiammais numa do que noutra, mas a maioria alterna ou combina asduas. Uma luta contra a exclusão é uma luta por um nicho com-parativamente seguro na divisão mundial do trabalho. O sucessoneste tipo de luta geralmente implica (1) uma maior especializa-ção das atividades nas quais o Estado semiperiférico tem ou podeobter algum tipo de vantagem competitiva, (2) um envolvimentoativo nas relações de troca desigual, nas quais o Estado sernipe-riférico fornece mercadorias que incorporam mão-de-obra malremunerada para os Estados do núcleo orgânico em troca demercadorias que incorporam mão-de-obra bem remuneradae (3) uma exclusão mais completa dos Estados periféricos dasatividades nas quais o Estado semiperiférico busca maior es-pecialização.

As lutas contra a exploração se movem na direção oposta.São lutas que visam a criação de divisões do trabalhotâo au-tônomas quanto possível da divisão axial do trabalho da eco-nomia capitalista mundial. O sucesso desse tipo de lutageralmente implica (1) o incumbir-se, por parte do Estadosemiperiférico, de uma ampla gama de atividades, inde-pendente de vantagem comparativa, (2) a auto-exclusão doEstado semiperiférico de relações de troca desigual com osEstados do núcleo orgânico e (3) um envolvimento ativo emrelações de troca desigual, nas quais o Estado semiperiféricofornece mercadorias que incorporam mão-de-obra bem remu-nerada a Estados periféricos em troca de mercadorias que in-corporam mão-de-obra mal remunerada.

Lutando nessas duas direções, os Estados semiperiféricospodem se manter à frente da pobreza dos Estados periféricosmas, enquanto grupo, nunca podem transpor o golfo que se-para sua riqueza da riqueza oligárquica dos Estados do núcleoorgânico. O êxito nesse tipo de luta tem suas limitações ine-

~..rentes. O próprio êxito das lutas contra a exclusão leva a umaexploração mais intensiva ou extensiva dos Estados semiperi-féricos por parte dos Estados do núcleo orgânico e, portanto,acentua a capacidade desses últimos de excluir os primeirosdas atividades mais compensadoras e do uso ou gozo dos re-cursos escassos. O próprio êxito das lutas contra a exploraçãoleva a uma auto-exclusão do acesso aos mercados mais ricose às fontes mais dinâmicas-de inovações.

Os Estados, individualmente, .podern conseguir, e conse-guem, cruzar o golfo que separa a riqueza modesta da sérni-periferia da riqueza oligárquica do núcleo orgânico, comoocorreu com o Japão recentemente e com alguns outros antesdo Japão. Mas os êxitos, individualmente, levam a um retesa-mento das tendências excluidoras e exploradoras dos Estadosdo núcleo orgânico e com isso aprofundam e ampliam o golfopara aqueles que ficam para trás. Fica, portanto, inerentementemais e mais difícil subir de status.

Isso não significa que as lutas dos Estados semiperiféricoscontra a exclusão e a exploração são ineficazes. Pelo contrário,

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é exatamente sua capacidade de travar com sucesso essas lutasque impede os Estados semiperiféricos de cair na pobreza abis-mal dos Estados periféricos. Infelizmente, isso não é motivode orgulho, pelo menos de um ponto de vista humanitário.Como vimos, o sucesso na luta contra a exclusão geralmenteimplica uma exclusão mais completa dos Estados periféricosdas atividades nas quais os Estados semiperiféricos buscamespecialização; e o sucesso na luta contra a exploração geral-mente implica uma maior exploração dos Estados periféricospelos Estados semiperiféricos.

De um modo ou de outro, uma piora das condições dosEstados periféricos, enquanto grupo, é um requisito do sucessodos Estados semiperiféricos em obter e reter riqueza democráti-ca. Portanto, nem todos os Estados podem ser ou se tornar se-miperiféricos. Os Estados, individualmente, podem cruzar ogolfo que separa a periferia da semiperiferia, mas também nessecaso as oportunidades de avanço econômico, tal como se apre-sentam serialmente para um Estado periférico de cada vez, nãoconstituem oportunidades equivalentes de avanço econômicopara todos os Estados periféricos. O que cada Estado periféricopode realizar é negado desse modo aos outros."

Ilusões do Desenvolvimento: 1938-1983

Riqueza é renda de longo prazo. Se as alegações da análisedos sistemas mundiais têm alguma validade, a observação dadistribuição de rendas entre as diversas jurisdições políticas daeconomia capitalista mundial, ao longo de períodos de temporelativamente longos, deveria revelar a existência de três padrõesseparados de riqueza que correspondem à riqueza oligárquicados Estados do núcleo orgânico, à riqueza democrática dos Es-tados semiperiféricos e à não-riqueza, isto é, à pobreza, dos Es-tados periféricos. Deveria também revelar que a grande maioriados Estados tem sido incapaz de transpor os golfos que separama pobreza dos Estados periféricos da riqueza modesta dos Estadossemiperiféricos, e a riqueza modesta dos Estados semiperiféricosda riqueza oligárquica dos Estados do núcleo orgânico.

Isso é exatamente o que uma pesquisa feita por Arrighi eDrangel (1986) revelou. Através do exame da distribuição dapopulação mundial pelo log do Produto Nacional Bruto (PNB)per capita para os anos de 1938, 1948, 1950, 1960, 1965,1970, 1975, 1980 e 1983, eles observaram um padrão trirno-dal recorrente nos dados.' Eles consideraram os valores de

4 Como observa Wallerstein (1979:76), a ideologia do desenvolvimento é me-ramente a versão global da Filosofia do Girino de R.H. Tawney: "É possível quegirinos inteligentes se resignem com a inconveniência de sua posição, ao refletirque, embora a maioria vá viver e morrer como girinos e nada mais, os maisafortunados da espécie um dia perderão seu rabo, distenderâo sua boca e estô-mago, pularão lepidamente para a terra seca e coaxarão discursos para seusex-amigos sobre as virtudes pelas quais girinos de caráter e capacidade podemascender à condição de sapos. Essa concepção de sociedade pode ser descrita,talvez, como a Filosofia do Girino, uma vez que o consolo que oferece para osmales sociais consiste na declaração de que indivíduos excepcionais podem con-seguir escapar deles ... E que visão da vida humana essa atitude sugere! Comose as oportunidades para a ascensão de talentos pudessem ser igualadas numasociedade em que são desiguais as circunstâncias que os cercam desde o nasci-mento! Como se fosse natural e adequado que a posição da massa da humanidadepudesse ser permanentemente tal que lhe permitisse atingir a civilização esca-pando dela! Como se o uso mais nobre dos poderes excepcionais fosse bracejaraté a praia, sem se deixar deter pelo pensamento nos companheiros que seafogam!" (Tawney, como citado por Wallerstein 1979: 10 1).

5 Como o uso do PNB per capita para identificar a posição dos Estados naestrutura núcleo orgânico-periferia da economia mundial tem sido larga-mente questionado (entre outros por Chase-Dunn 1989; Smith e White1989; Glenday 1989), dois esclarecimentos sobre seu uso por Arrighi e Dran-gel se fazem necessários. Em primeiro lugar, eles usam o PNB per capitaapenas como uma medida do comando econômico relativo sobre os recursosmundiais pelos residentes de diferentes jurisdições políticas. Dito de outromodo, eles tentam medir o comando exercido pelos residentes de uma dadajurisdição sobre os recursos possuídos pelos residentes de todas as outrasjurisdições, em relação ao comando exercido pelos últimos sobre os recursospossuídos pelos primeiros. Nenhuma significação é, conseqüentemente, atri-buída ao PNB per capita, exceto em relação a todos os PNBs per capita dosoutros Estados no sistema, sendo que cada PNB recebe um peso correspon-dente à sua parcela de população mundial.Em segundo lugar, o comando econômico relativo nesse sentido é usado paraavaliar a posição do Estado na estrutura núcleo orgânico-periferia da eco-nomia mundial apenas por meio de múltiplas observações que cobrem umperíodo tão longo quanto permite a disponibilidade de dados. As diferentes

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renda correspondentes aos três modos como indicativos deposições periféricas, semiperiféricas e centrais, e os valores derenda correspondentes às depressões nas distribuições comoindicativos de golfos ou limiares que separam a periferia dasemiperiferia e a semiperiferia do núcleo orgânico. Eles desig-naram o primeiro tipo de limiar de "perímetro da periferia"(PP) e o segundo tipo de "perímetro do núcleo orgânico"(PNO). Um total de cinco posições foi portanto identificado:(1) a periferia, (2) o perímetro da periferia, (3) a semiperiferia,(4) o perímetro do núcleo orgânico e (5) o núcleo orgânico.

A distribuição da população mundial entre as cinco posi-ções ao longo do período de 1938-1983 é mostrada na Figura1. Os espaços que separam a periferia e a semiperiferia e asemiperiferia e o núcleo orgânico correspondem ao perímetroda periferia e ao perímetro do núcleo orgânico, respectiva-mente. A interrupção entre 1940 e 1950 designa uma mudançana fonte dos dados. A característica mais notável dessa distri-buição é sua estabilidade de longo prazo, apesar das mudançasconsideráveis no tamanho relativo das três zonas no prazo maiscurto. Se tivermos em mente que a riqueza é renda de longoprazo, essa discrepância pode ser interpretada como uma in-dicação de uma maior estabilidade da distribuição da popula-ção mundial por classes de riqueza do que por classes de renda.Ano a ano, ou mesmo década a década, as variações na distri-buição da população mundial por classes de renda não sãonecessariamente sintomáticas de uma mudança na estruturade três camadas da economia capitalista mundial. Apenas asvariações a prazos mais longos na distribuição de renda podemnos permitir perceber essa estrutura. Como pode ser visto a

zonas (ou camadas) da economia mundial são definidas pela distribuição dapopulação mundial pelo PNB per capita em momentos específicos no tempo.Mas um Estado é definido como um membro orgânico de uma dada zonaapenas se ele parecer ter se posicionado numa dada zona pelo período inteirode 45 anos coberto pela análise. O fundamento lógico desse procedimentoé que é somente ao longo do tempo que se pode considerar que o PNB percapira mede a "riqueza" e não a "renda".

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A ILUSÃO DESENVOLVIMENTISTA

partir da Figura 1, meio século é provavelmente o períodomais curto que deveríamos considerar, a fim de evitar grandesdistorções das tendências.

A Figura 1 não nos diz nada sobre "golfos" que separamo núcleo orgânico, a periferia e a semiperiferia, nem nos diznada sobre se esses golfos, se é que eles existem, são "trans-poníveis" ou não. Para se ter alguma percepção sobre essasquestões, devemos investigar a composição da periferia, semi-periferia e núcleo orgânico em termos dos Estados incluídosem cada zona e como ela se alterou durante o período de1938-1983. A informação relevante é dada no Quadro 1.

Os Estados que não mudaram de posição estão localizadosnos quadrados que se situam ao longo da diagonal, do qua-drado superior esquerdo, núcleo orgânico-núcleo orgânico,até o quadrado inferior direito, periferia-periferia. As diago-nais em cada lado dessa diagonal principal (registros nas dia-gonais a partir dos dois quadrados, núcleo orgânico-perímetrodo núcleo orgânico, do lado esquerdo superior, até os doisquadrados, periferia-perímetro da periferia, do lado direitoinferior) contêm Estados que se movimentaram, mas apenasde uma zona para seus perímetros contíguos - sem cruzar aprópria fronteira. Ao somar os registros nos quadrados aolongo dessas três diagonais, descobrimos que 88 dos 93 países,que respondem por 94 por cento da população total, estavam,de 1975-1983, ainda nas ou dentro das fronteiras da zona naqual estavam localizados em 1938-1950.

No período como um todo, a "mobilidade" ascendente edescendente na hierarquia de riqueza da economia capitalistamundial foi realmente excepcional. Além do caso duvidoso daLíbiab

, as exceções foram dois casos de mobilidade ascendente,

b Por alguma razão, que seria interessante investigar, a Líbia tem o poder deprovocar fortes emoções, não apenas entre políticos, mas também entrecientistas sociais. O fato de a Líbia ter, de acordo com Arrighi e Drangel(1986:44), ascendido a uma posição de núcleo orgânico, na década de 70,foi considerado por muitos como razão suficiente para descartar como in-válida toda a sua metodologia. Um periódico italiano recusou o artigo apa-

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da semiperiferia para o núcleo orgânico (japâo e Itália), umde transição da periferia para a semiperiferia (Coréia do Sul,à qual poder-se-ia acrescentar Taiwan, se houvesse dados dis-poníveis para os últimos anos) e um caso de mobilidade des-cendente, da semiperiferia para a periferia (Gana).

rentemente apenas por essa razão. Glenday afirma honestamente que ele "écético em relação a uma metodologia que levaria a incluir a Líbia no núcleoorgânico, ao passo que relega a URSS à semiperiferia" (1989:212). Numestilo mais sério, mas semelhante, Chase-Dunn (1989:209) declarou que"[ olfato de Arrighi e Drangel... afirmarem que a Líbia passou a fazer partedo núcleo orgânico (baseados no seu uso do PNB per capira como medidado status de núcleo orgânico) revela a debilidade da sua identificação deatividade de núcleo orgânico com ganhos de curto prazo baseados em qual-quer tipo de atividade. A Líbia está assentada numa fortuna em petróleo,mas, por qualquer medida que não seja o PNB per capita, a Líbia evidente-mente não é um Estado do núcleo orgânico".Já que a posição atribuída à Líbia parece ser o teste definitivo da validadeda análise de Arrighi e Drangel, farei uma longa citação de uma carta queescrevi para Chase-Dunn em 20 de maio de 1987, em resposta à sua crítica:Deixe-me salientar, em primeiro lugar, que não incluímos a Líbia (ou aindaa Itália ou o Japão) entre os membros orgânicos da zona do núcleo. Pessoal-mente, tenho sérias dúvidas de que ela jamais se torne um deles, do mesmomodo que estou certo de que o Japão já se tornou um deles (Não tenho umaopinião forte sobre a Itália, seja numa direção, seja na outra).... Entretanto, se, por acaso, o PNB per capita da Líbia da década de 90 oude 2000 ainda colocar a Líbia no interior da zona do núcleo orgânico, nãovejo razão para não incluí-Ia entre os membros orgânicos da zona do núcleo,independente do modo como sua posição de núcleo orgânico foi conquistadainicialmente e reproduzida subseqüentemente.Sua afirmação de que, no momento, a Líbia está onde está, no ranhing doPNB per capita, porque ela está assentada sobre um poço de petróleo éindiscutível. Contudo, não posso deixar de perguntar: "e daí?" Dos dezEstados definidos no seu artigo como membros orgânicos do núcleo (p. 69),pelo menos quatro (Austrália, Canadá, Nova Zelândia e os EUA), e, possi-velmente, outros dois (Noruega e Suécia) entraram originalmente na zonado núcleo orgânico graças (entre outras coisas) ao fato de estarem assentadosnuma dotação extremamente favorável de recursos materiais por cabeça depopulação. Ao mesmo tempo, há pelo menos outros tantos Estados (Argen-tina, Rússia, África do Sul e Brasil sendo apenas os exemplos mais óbvios)que, em algum momento de sua história, tiveram uma dotação igualmentefavorável, mas nunca se tornaram membros temporários, quanto mais or-gânicos, da zona do núcleo. Em resumo, "estar assentado" sobre recursosespecíficos (ou em localidades específicas) não é condição nem necessárianem suficiente para se tornar membro estável da zona do núcleo orgânico.

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A ILUSÃO DESENVOLVIMENTISTA

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Figura 1Porcentagem da População Mundial nas Três Zonas.

Fonte: Arrighi e Drangel (1986, 39).

A fim de estabilizar sua atual posição de núcl eo orgânico, a Líbia deve atendera uma série de exigências que dependem apenas parcialmente da "vontadee inteligência" de seus empreendedores políticos e econômicos. Ser cético arespeito das chances dessa estabilização significa ser cético a respeito dopoder dessa "vontade e inteligência" em relação às forças sistêmicas queestão além do controle dos empreendedores da Líbia. Somente o tempopoderá dizer se esse ceticismo é bem fundado. Enquanto isso, a posição denúcleo orgânico, mais ou menos temporária da Líbia, é muito real e é medidaadequadamente pelo seu PNB per capita. Pois os residentes líbios têm umcomando sobre os recursos econômicos mundiais que é igual ao de outrosmembros da zona do núcleo (orgânicos ou não). Esse comando foi exercidonão apenas através da importação de mercadorias, mas também através daaquisição de força de trabalho estrangeira para uso/exploração dentro daLíbia e reivindicações sobre os lucros de empresas do núcleo (por exemplo,Fiat). O comando definitivamente esteve lá. O modo particular como foi(está) sendo usado é outra questão e uma das razões por que eu penso queas chances da Líbia de tornar-se um membro orgânico da zona do núcleosão exíguas.A isso, tenho apenas que acrescentar que o último World Deuelopment Report(Banco Mundial 1989, informando sobre o PNB per capita para 1987) for-nece números para o PNB per capita da Líbia que a colocam de volta nascrniperiferia, como previsto pelo ceticismo expresso na carta.

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Posição em 1938-1950

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Quadro 1Posição dos Estados em 1975-1983, em

comparação com suas posições em 1938-1950.Fonte: Arrighi e Drangel (1986, 43).

Notas: (a) Número de Estados(b) Porcentagem de população em 1950(c) Porcentagem de população em 1970

Ainda mais interessante é o fato de a mobilidade ter sidomaior ao longo de períodos curtos do que ao longo do períodointeiro. Ao comparar as posições dos Estados, como no Qua-dro 1, porém, para dois subperíodos (1938-1950 a 1960-1970e 1960-1970 a 1980-1983), Arrighi e Drangel mostram queambos os subperíodos se caracterizaram por maior mobilidadeglobal do que todo o período de 1938-1950 a 1980-1983 -sendo o primeiro subperíodo caracterizado por maior mobi-lidade global descendente e o segundo subperíodo sendo ca-racterizado por maior mobilidade global ascendente. Essadescoberta é interessante por duas razões relacionadas. Emprimeiro lugar, ela confirma a observação feita anteriormente

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A ILUSÃO DESENVOLVIMENTISTA

de que a distribuição de riqueza (isto é, de renda de longoprazo) é mais estável do que a distribuição de renda de curtoprazo. Os altos e baixos na renda relativa podem significarmuito pouco, do ponto de vista da hierarquia subjacente deriqueza, que, de fato, pode permanecer bastante estável.

Se é disso que se trata, então a descoberta é interessantetambém porque ela revela uma fonte importante da ilusãodesenvolvimentista. Ao considerar períodos relativamentecurtos como unidade de análise (e períodos de vinte a vinte ecinco anos parecem realmente ser a norma), os estudos sobredesenvolvimento podem facilmente confundir com avançoeconômico generalizado aquilo que é, de fato, apenas um mo-vimento ascendente num movimento pendular que simples-mente traz as coisas de volta aonde elas estavam, quarenta aquarenta e cinco anos antes. Ao longo desse movimento pen-dular, pode haver algum reordenamento dos Estados nas di-versas posições (Coréia do Sul para cima, Gana para baixo),ou até mesmo casos genuínos de mobilidade ascendente (japâoe Itália). Não obstante, quando a poeira se assenta, os verda-deiros casos de avanço econômico provam ser a exceção, aopasso que a idéia de que muitos estavam avançando prova tersido uma ilusão.

A análise da composição do núcleo orgânico, periferia esemiperiferia e de suas mudanças ao longo do tempo, nos per-mite identificar grupos de Estados que permaneceram consis-tentemente no interior de ou nas fronteiras de uma dadaposição durante todo o período de quarenta e cinco anos.Arrighi e Drangel identificam 75 desses Estados dos 93 incluí-dos na sua análise e os chamam de membros "orgânicos" dastrês posições estruturais da economia mundial-l0 no núcleoorgânico, 21 na semiperiferia e 44 na periferia.? Os dadossobre esses membros orgânicos são então usados para construir

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7 O procedimento exato seguido na classificação dos Estados, nessas trêscategorias, é detalhado no Apêndice lU do artigo de Arrighi e Drangel, quetambém fornece uma lista completa dos membros orgânicos das três zonas(1986:65-71).

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índices de centralidade, periferalidade e semiperiferalidadeque, presumivelmente, refletem características mais estrutu-rais (de longo prazo) do que conjunturais (de curto prazo) dastrês posições.

O primeiro conjunto de índices diz respeito ao "comandoeconômico relativo", tal como medido pelas médias pondera-das às quais se aplicou o log e a amplitude (desvio-padrãomédio para mais/menos) do PNB per capita dos membros or-gânicos das três posições. Esses índices são representados naFigura 2 e nos fornecem uma imagem visual notável dos golfosintransponíveis que separam a riqueza oligárquica dos Estadosdo núcleo orgânico e a riqueza democrática dos Estados serni-periféricos e esses últimos da pobreza dos Estados periféricos.

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Figura 2Tendências no comando econômico relativo (médias ponderadas

e amplitudes do PNB per capita dos membros orgânicos).Fonte: Arrighi e Drangel (1986, 50).

Quando olhamos para grupos de Estados, ao invés de paraEstados individualmente, a hierarquia de riqueza da economiacapitalista mundial parece estar tão bem entrincheirada hojequanto estava cinqüenta anos atrás. Durante o período como

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A ILUSÃO DESENVOLVIMENTISTA

um todo, o comando econômico relativo do núcleo orgânico,em relação à periferia e à semiperiferia, aumentou, ao passoque o da serniperiferia, em relação à periferia, permaneceumais ou menos o mesmo. O núcleo orgânico, a periferia e asemiperiferia, enquanto posições estruturais, estão tão sepa-rados hoje quanto sempre estiveram.

Certamente, nesse quadro houve também períodos nosquais uma das ou ambas as distâncias se estreitaram (por exem-plo, 1950-1960, quando ambas se estreitaram). Mas sempreque um estreitamento ocorreu, logo se seguiu uma ampliaçãopara restabelecer a distância. Particularmente notável, nesseaspecto, é o colapso absoluto e relativo de ambos os índicesda semiperiferia (média ponderada e amplitude do PNB) - umcolapso, incidentalmente, que foi confirmado pelas tendênciasdesde 1983. Esse colapso mostra como os ganhos absolutos erelativos de trinta anos podem ser aniquilados no curto espaçode três anos. R Já que o colapso foi intimamente associado àexplosão da chamada crise da dívida mundial, ele também

8 Essa descoberta mostra as sérias limitações do teste empírico de Robert W.Jackman, daquilo que ele chama de Efeito Mateus (de Mateus 13,12, "Poisaquele que tem, a ele será dado, e ele terá mais abundância; mas aquele quenão tem, dele será tirado aquilo que tem"). Retrocedendo as taxas médiasde crescimento anual no PNB per capita, de 1960 a 1978, ao PNB per capita,1960, ele descobre que "há poucas evidências do tão discutido efeito Mateusnos lugares onde o núcleo orgânico experimentou taxas mais altas de cres-cimento do que a periferia". Ao invés disso, suas estimativas "sugerem umefeito Mateus modificado no interior dos países do Terceiro Mundo, de talmodo, que os inicialmente mais ricos desses países cresceram mais rapida-mente do que o Ocidente que, por sua vez, cresceu mais rápido do que ospaíses mais pobres do Terceiro Mundo. É importante lembrar, no entanto,que mesmo esse efeito Mateus modificado não é forte" (jackman 1982:193-95). Como se pode ver na Figura 2 no texto, as descobertas de Jackmandizem respeito a um período (1960-78) em que a semiperiferia orgânica (e,portanto, os países mais ricos do Terceiro Mundo) teve um desempenhoexcepcionalmente bom em relação tanto ao núcleo orgânico quanto à peri-feria orgânica. Mas a Figura 2 também mostra que, se fôssemos estender aanálise de Jackman para além de 1980, provavelmente encontraríamos umaforte corroboração para a hipótese de um efeito Mateus não apenas entreos ricos e os pobres, mas também entre os super-ricos e os moderadamenteficas.

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A ILUSÃO DO DESENVOLVIMENTO

mostra que as transferências unilaterais de recursos monetáriossão uma arma tão eficaz quanto qualquer outra na manutençãodos Estados periféricos e semiperiféricos em seu lugar.

Nesse aspecto, uma comparação entre os índices repre-sentados na Figura 2 e aqueles da Figura 3 é extremamenteinstrutiva. A Figura 3 mostra dois índices alternativos do graude industrialização dos membros orgânicos das três zonas. Elesmostram, inicialmente, uma ampliação da distância entre onúcleo orgânico e a periferia e semiperiferia e, depois, umfechamento progressivo e marcado da distância que, segundoum dos índices, culmina na superação do núcleo orgânico pelasemiperiferia em grau de industrialização.

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a) Média simples da percentagem de força de trabalho na indústria (membros orgânicos)

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Núcleo orgânico ~iPeriferia

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Figura 3Tendências no grau de Industrialização.

Porcentagem do PIB na "manufatura"a) médias simples da porcentagem de força de trabalho

empregada na "indústria" (membros orgânicos)b) média simples da parcela do PIB na manufatura

(membros orgânicos)

A ILUSÃO DESENVOLVIMENTISTA

Para aqueles que não conseguem ver a diferença entre indus-trialização e avanço econômico, esse estreitamento de distânciasé considerado como evidência de um desenvolvimento e equi-paração generalizados. Na realidade, o foco na industrializaçãoé uma outra fonte de ilusões desenvolvimentistas. Comparandoas Figuras 2 e 3, podemos ver claramente que o estreitamento dadiferença de industrialização foi combinado a uma estabilidadebásica da diferença no comando econômico relativo e que a supe-ração final do núcleo orgânico pela semiperiferia em grau de in-dustrialização corresponde ao colapso do comando econômicoabsoluto e relativo dessa última. Dessa perspectiva, a expansãoda industrialização aparece não como desenvolvimento da semi-periferia, mas como periferização de atividades industriais.

[A] industrialização da semiperiferia e da periferia foi, em últimaanálise, um canal, não de subversão, mas de reprodução da hierar-quia da economia mundial. Essa descoberta ilustra o processo, en-fatizado em nossa conceituação anterior, pelo qual a tentativageneralizada, por parte dos atores econômicos e políticos, de cap-turar o que, em qualquer momento dado, são atividades de núcleoorgânico, estimula a competição que transforma essas atividadesem atividades periféricas (II.6). No decênio de 1940, as atividadesindustriais (ou, pelo menos, muitas delas) eram de fato atividadesde núcleo orgânico. Na década de 50, atraídos pelos "prêmiosespetaculares" jogados a essas atividades, os atores políticos e eco-nômicos da periferia e semiperiferia se atiraram à "industrializa-ção". No início, colheram alguns benefícios e com isso induziramoutros a fazer o mesmo. Nas décadas de 60 e 70, entretanto, asatividades industriais se tornaram cada vez mais superlotadas demodo que não apenas os prêmios espetaculares desapareceram,mas até mesmo os benefícios menores colhidos pelos primeirosatrasados se transformaram progressivamente nas perdas genera-lizadas da década de 80 (Arrighi e DrangeI1986:56-57).

A Política de Desenvolvimento Semiperiférico

o fato de a industrialização da semiperiferia não ter alte-rado a estrutura núcleo orgânico-periferia da economia capi-talista mundial não significa que nada mudou. Pelo contrário,

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A ILUSÃO DO DESENVOLVIMENTO

a industrialização da semiperiferia foi parte de uma revoluçãosocial mais ampla que mudou radicalmente as condições deacumulação em escala mundial. Como observou Eric Hobsbawn,"O período de 1950 a 1975 ... assistiu à mudança social maisespetacular, rápida, abrangente, profunda e global já registradana história mundial [...] [Este] é o primeiro período em que ocampesinato se tornou uma minoria, não apenas em países in-dustriais desenvolvidos - em vários deles permaneceu muito forte- mas mesmo em países do Terceiro Mundo" (1986:13).

Esse aumento súbito da proletarização do mundo criou ten-sões e contradições que irão influenciar decisivamente a políticada economia mundial nas próximas gerações. A semiperiferia éo epicentro dessas tensões e contradições. Processos generaliza-dos de proletarização e industrialização dotaram o proletarIadoindustrial da semiperiferia de um poder social comparável àqueleanteriormente desfrutado somente pelo proletariado do núcleoorgânico, mas num contexto nacional de privação relativa hámuito esquecido (se é que jamais foi experimentado) nos Estadosdo núcleo orgânico. Essa combinação de poder social proletárioe privação relativa está na raiz da "crise geral de ditaduras" quevarreu a semiperiferia nas décadas de 70 e 80.

A democracia parlamentar nunca se sentiu em casa na se-mi periferia. Os úl timos quarenta anos não foram exceção. Dosvinte e dois Estados que se qualificam como membros orgâ-nicos da semiperiferia, apenas dois Estados comparativamentepequenos (a Costa Rica e a Irlanda) foram governados, aolongo dos quarenta anos, por uma democracia parlamentaraparentada com aquela dos Estados do núcleo orgânico. Doisoutros pequenos Estados (a Jamaica e Trinidad e Tobago) ti-veram uma experiência semelhante, mas somente a partir domomento em que se tornaram independentes da qrã-Breta-nha, no início da década de 60. Com a exceção desses quatroEstados, que respondem por 1,3 porcento da população totalda semiperiferia orgânica, todos os outros Estados situados na,camada intermediária da hierarquia de riqueza da economiacapitalista mundial foram governados por regimes autoritáriosdurante parte do ou todo o período dos últimos quarenta anos.

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Deixando de lado os casos especiais de Hong- Kong (umacolônia britânica ao longo de todo o período), de Israel e daÁfrica do Sul (a serem tratados na parte final do capítulo), osoutros quinze Estados, que respondem por 92,6 porcento dapopulaçãd total da semiperiferia orgânica, experimentaram doistipos de regime autoritário. Um dos tipos foi experimentado,durante períodos variáveis de tempo, por Estados semi·periféricosorgânicos da América Latina e sul da Europa, com a exceção daCosta Rica (Argentina, Uruguai, Chile, Venezuela, Panamá, Mé-xico, Portugal, Espanha, Grécia e Turquia). O outro tipo domi-nou, durante todo o período, a URSS e as "democracias populares"do Leste Europeu, algumas das quais também se qualificam comomembros orgânicos da semiperiferia.I

Não obstante suas diferentes origens, formas e designações(fascistas, corporativistas, burocrático-autoritários, militarese assim por diante), os regimes autoritários do primeiro tipose caracterizaram por uma predisposição comum que os dite-

9 Nessa e na próxima seção, concentrar-me-ei nos vinte e um Estados queArrighi e Drangel identificam como membros orgânicos da semiperiferia. Aeles, acrescento a Polônia, que foi excluída da análise, junto com quatrooutros Estados do Leste Europeu (República Democrática Alemã, Tchecos-lavá qui a, Bulgária e Albânia), por falta de dados confiáveis. Os dados quetemos sugerem que a Polônia foi quase certamente um membro orgânico dasemiperiferia, assim como a Hungria, a URSS e a Rornênia. A RepúblicaDemocrática Alemã e a Tchecoslováquia foram provavelmente membros"precários" do núcleo orgânico e a Bulgária e Albânia, ou membros "precá-rios" da serniperiferia ou membros móveis, mais ou menos ascendentes, daperiferia.Por membros "precários" do núcleo orgânico (semiperiferia), me refiro aEstados que faziam parte do núcleo orgânico (semiperiferia) no início e nofinal do período de 1938 a 1983, mas foram temporariamente rebaixadosao status semi periférico (periférico) em algum momento na metade do pe-ríodo. Os Estados semiperiféricos precários mais importantes foram Argélia,,J3rasil, Colômbia, Irã, Iraque, Malásia e Síria. Esses Estados, juntamente comos Estados semiperiféricos móveis ascendentes, não são considerados nessae na próxima seção porque meu objetivo é construir uma tipologia preliminarde regimes políticos semiperiféricos que exerçam controle em favor da es-tabilidade na hierarquia de riqueza da economia mundial. Uma pesquisafutura deveria verificar se e como essa tipologia pode ser estendida comproveito a fim de incluir os Estados semiperiféricos precários e móveis as-cendentes.

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rencia claramente dos regimes autoritários do segundo tipo.Essa predisposição comum foi (1) preservar as extremas desi-gualdades de classe na distribuição da riqueza pessoal no in-terior de seu território e (2) desempenhar funções subordi-nadas nos processos globais de acumulação do capital.

O fato de os Estados semiperiféricos enquanto grupo nãoconseguirem alcançar os padrões nacionais de riqueza estabe-lecidos pelos Estados do núcleo orgânico não significa queclasses ou grupos específicos no interior da semiperiferia nãodesfrutem de padrões de riqueza análogos àqueles de seus suce-dâneos no núcleo orgânico. Pelo contrário, frações das classesalta e média da semiperiferia sul-européia e latino-americana têmtradicionalmente desfrutado padrões de riqueza que se compa-ram bastante favoravelmente às de suas sucedâneas nos Estadosdo núcleo orgânico. Essas frações são menos numerosas em re-lação à população total do que no núcleo orgânico, mas sãoigualmente ricas. O outro lado da moeda foi uma pobreza maciçapara as classes mais baixas da semiperiferia que se assemelha oumesmo excede àquela de suas sucedâneas na periferia."

Confrontados com esse tipo de extrema desigualdade nadistribuição de riqueza pessoal, os regimes autoritários da se-miperiferia sul-européia e latino-americana, geralmente de-sempenharam uma de duas funções. Ou eles protegeram aacumulação e o gozo da riqueza oligárquica pelas classes altae média das exigências e lutas das massas excluídas e explora-das, ou eles regularam a transferência de riqueza oligárquicade uma fração para outra das classes alta e média. Em todocaso, os regimes autoritários, diferentemente dos regimes au-toritários da URSS e do Leste Europeu, raramente, se é quealguma vez, minaram as bases estruturais da riqueza oligárqui-ca e da pobreza maciça no interior de seus territórios. Namedida em que essas bases foram minadas, a principal força

10 Essa afirmação condiz com a "curva em U invertida", largamente obser-vada, que descreve a relação entre níveis de "desenvolvimento econômico"e desigualdade de renda (ver Bornschier e Chase-Dunn 1985; Kuznets 1963;Nolan 1983; Weede 1980).

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em ação foi a revelação de tendências mundiais, que as elitesdirigentes desses Estados nem iniciaram nem controlaram.

Essas tendências sistêmicas mundiais podem remontar aosefeitos de longo prazo das agudas rivalidades hegemônicasintranúoleo orgânico da primeira metade do século XX. Essasrivalidades deram um impulso tremendo ao desenvolvimentodo operariado organizado nos Estados do núcleo orgânico ede movimentos de libertação nacional na periferia. Como re-sultado desses desdobramentos paralelos, que puderam serdesfrutados depois da Segunda Guerra Mundial, os Estadosdo núcleo orgânico e as empresas capitalistas foram forçadosa fazer grandes concessões ao operariado organizado, enquan-to sua capacidade de contrabalançar essas concessões com umaexploração mais extensiva e intensiva dos recursos humanose naturais da periferia se tornou mais limitada do que haviasido anteriormente. Nessas circunstâncias, tornou-se cada vezmais lucrativo para as empresas capitalistas do núcleo orgânicoestabelecer e expandir unidades produtivas na semiperiferiae/ou recrutar mão-de-obra na semiperiferia para exploraçãono próprio núcleo orgânico."

Os regimes autoritários da semiperiferia sul-européia e la-tino-americana encorajaram ativamente tanto a instalação deunidades produtivas em seus territórios quanto o recrutamen-

11 A preferência histórica das empresas do núcleo orgânico pela semiperi-feria, em vez da periferia (já que essa última havia sido descolonizada), en-quanto espaço de produção e fonte de mão-de-obra, não obstante os saláriosmais baixos da periferia, se deve a várias razões. Algumas são puramentegeográficas: acontece que a maioria dos Estados semiperiféricos está maispróxima das regiões centrais do que os Estados periféricos. Algumas sãoculturais: acontece que a maioria dos Estados semiperiféricos está mais pró-xima, do ponto de vista da civilização, dos Estados centrais do que a maioriados Estados periféricos. Algumas são estritamente econômicas: os mercadosdomésticos (inclusive os mercados de mão-de-obra) da maioria dos Estadossemiperiféricos são mais desenvolvidos do que os da maioria dos Estadosperiféricos. Como veremos, entretanto, todas essas vantagens comparativasda semiperiferia, em relação à periferia, estão sujeitas a erosão através douso extensivo, e se tornam menos importantes com a intensificação das pres-sões competitivas sobre as empresas do núcleo orgânico para cortar custosde mão-de-obra.

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to da mão-de-obra de seus territórios, em pronunciado con-traste com os regimes autoritários da URSS e Leste Europeu,que se opuseram ativamente a ambos (com a exceção parcialda Iugoslávia, no que dizia respeito a recrutamento de mão-de-obra). Na realidade, do começo da década de 50 até a me-tade da década de 70, o suprimento de espaços produtivosseguros e rentáveis para as empresas capitalistas do núcleoorgânico e a oferta de força de trabalho comparativamentebarata e disciplinada para exploração no interior de seus ter-ritórios ou, via migração, nos Estados do núcleo orgânico,tornaram-se a principal vocação dos regimes autoritários dasemiperiferia sul-européia e latino-americana. A principalatração dessa vocação foi que ela prometeu,' e na maioria doscasos realmente entregou, excedentes temporários, mas subs-tanciais de moedas fortes, que podiam ser usadas para manter,reproduzir e expandir a riqueza oligárquica, desfrutada pelasfrações mais afortunadas das classes alta e média desses Estados.A mais longo prazo, entretanto, essa "abertura" dos regimes au-tori tários da semi periferia sul-européia e latino-americana estavafadada ao fracasso.

Quanto mais os Estados semiperiféricos competiam entresi no fornecimento de espaços produtivos seguros e rentáveise de suprimento de mão-de-obra barata e disciplinada, pioreseram os termos que cada um deles obtinha pelo desempenhodessas funções subordinadas na acumulação global do capital.Além disso, a expansão da urbanização e a participação cadavez mais ampla de suas forças de trabalho em processos deprodução e troca do núcleo orgânico, em casa ou fora, exau-riram progressivamente suas reservas comparativamente gran-des de mão-de-obra não-remunerada, nas quais se assentaraanteriormente a competitividade de seus suprimentos de mão-de-obra. À medida que os suprimentos de mão-de-obra dasemiperiferia sul-européia e latino-americana se tornaram me-nos competitivos, em termos absolutos e em comparação com aforça de trabalho de localidades centrais e periféricas seleciona-das, os benefícios, para o capital do núcleo orgânico, de expandira produção nessas regiões ou de recrutar sua mão-de-obra, so-

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freram um decréscimo correspondente e os excedentes ante-riores de moeda forte se transformaram em déficits elevados.

Até certo ponto, o poder social crescente da massa prole-tária cada vez maior dessas regiões podia ser, e foi, mantidosob controle por um uso mais intensivo e extensivo de métodoscoercitivos. Com o passar do tempo, entretanto, os métodoscoercitivos não conseguiram acompanhar a contradição cres-cente de um processo de proletarização e industrialização queaumentou o poder social das classes mais baixas, sem minorarsignificativamente sua penúria maciça. A substituição progres-siva de regimes autoritários por democracias parlamentares quecaracterizou a semiperiferia sul-européia e latino-americana des-de 1974 pode ser interpretada como evidência da falta de habi-lidade do poder coercitivo de manter indefinidamente sobcontrole as contradições do desenvolvimento semiperiféricopró-sistêmico.r' Se a democracia parlamentar, que se apóiamuito mais no consentimento, pode controlar ou não essascontradições mais efetivamente do que os regimes autoritários,é uma questão à qual voltaremos na seção final do capítulo.

No momento, vamos observar que os regimes autoritáriospró-sistêmicos da semiperiferia sul-européia li: latino-america-na não são os únicos a ter vivido uma crise. A crise tambémalcançou ultimamente os regimes autoritários da semiperiferiasoviética e leste-européia. Como já mencionado, esses regimesautoritários buscaram políticas, frente às desigualdades declasse no interior de seus territórios e frente aos processos deacumulação capitalista da economia mundial, que contrastamagudamente com aquelas buscadas pelos regimes autoritáriosda semiperiferia sul-européia e latino-americana, pelo menosaté a presente crise. Se a orientação desses últimos pode sercaracterizada como" pró-sistêmica", a daqueles bem pode me-recer a designação de "anti-sistêmica".

12 A rápida sucessão de "crises na ditadura" no sul da Europa (Grécia, Por-tugal e Espanha), pode ser considerada como o divisor de águas entre asfases "autoritária" e "democrática" do desenvolvimento semipcriférico pró-sistêmico.

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Essa orientação anti-sistêrnica não foi pura retórica. Nasrelações intra-Estado, ela se expressou numa revolução maisou menos completa na distribuição de riqueza pessoal, que foiextensivamente "democratizada", no sentido de que, compa-rativamente falando, a riqueza oligárquica foi amplamente eli-minada e a pobreza maciça consideravelmente minorada. Nasrelações inter-Estados, ela se expressou numa recusa, susten-tada pela força, em desempenhar o tipo de papel subordinado,nos processos globais de acumulação de capital, que foi de-sempenhado pela semiperiferia sul-européia e latino-america-na. Até muito recentemente, suas "portas" ficaram tão fecha-das quanto possível, tanto ao investimento estrangeiro diretoquanto (com a exceção da Iugoslávia) ao recrutamento de mão-de-obra para exploração no exterior. O caráter coercitivo des-ses regimes se relacionou intimamente à busca desses objetivosan ti -sistêrnicos.

O objetivo e a dinâmica dos processos de proletarizaçâoe industrialização na semiperiferia soviética e leste-européiaforam, conseqüentemente, muito diferentes do que foram nasemiperiferia sul-européia e latino-americana. Como já obser-vado, nessa última, os processos foram principalmente a ex-pressão de forças sistêrnicas mundiais que as elites dirigenteslocais nem iniciaram nem controlaram, mas tentaram explorara fim de criar, reproduzir ou expandir, no interior de seus terri-tórios, uma forma ou outra de riqueza oligárquica. Na serni-periferia soviética e leste-européia, ao contrário, a proletari-zaçâo e a industrialização foram a expressão de ações inten-cionais realizadas pelas elites dirigentes locais a fim de (1) re-volucionar as relações sociais no plano doméstico e (2) rees-truturar as relações de poder internacionalmente.

No plano doméstico, a busca unilateral e forçada de prole-tarizaçâo e industrialização visava à reestruturaçâo das relaçõessociais a fim de intensificar o poder dos regimes anti-sistêmicosrecém-estabelecidos sobre suas respectivas sociedades civis. En-quanto a proletarização foi usada para destruir todas as fontespossíveis de poder social autônomo da burguesia ("alta" e "pe-quena", igualmente), a industrialização foi usada para criar um

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proletariado completamente dependente, para sua subsistên-cia e proteção, da nova classe dominante.

Internacionalmente, a proletarizaçâo e a industrializaçãovisavam à reestruturaçâo do sistema inter-Estados a fim deintensificar o poder dos regimes em questão no sistema mun-dial em geral. Enquanto a industrialização foi usada para de-senvolver capacidades militares comparáveis às dos Estadosdo núcleo orgânico, a proletarização foi um instrumento-cha-ve no fornecimento, para os complexos industriais-militaresresultantes, dos recursos humanos e naturais exigidos pelo seudesenvolvimento, manutenção e expansão competitiva.

O sucesso do desenvolvimento semiperiférico anti-sistê-mico em fomentar esses objetivos foi considerável e explica opoder e estabilidade historicamente maiores dos regimes au-toritários da semiperiferia soviética e leste-européia; em com-paração com os regimes autoritários da semiperiferia sul-européia e latino-americana. L) Especificamente, a principal

13 Em comparação com os regimes autoritários da semiperiferia pró-sistê-mica, o poder e estabilidade muito maiores dos regimes autoritários da se-miperiferia anti-sistêmica não receberam a atenção cuidadosa que merecem.A maioria das atuais discussões sobre "o fracasso do comunismo" supõeimplicitamente que a comparação relevante na avaliação do "sucesso" ou"fracasso" é a que se faz entre o desempenho econômico da semiperiferiaanti-sistêrnica e o do núcleo orgânico (quando não supõem, mais cruamente,que o tamanho, geografia e história dos Estados importam pouco na deter-minação de suas "chanccs de vida" na economia capitalista mundial). Essasuposição implícita não leva em conta a estabilidade de longo prazo da es-trutura núcleo orgânico-periferia da economia mundial e a impossibilidadeprática e teórica de réplicas em grande escala da experiência histórica donúcleo orgânico.Uma comparação menos tendenciosa se daria entre as experiências das se-miperiferias anti-sistêmicas e pró-sistêmicas enquanto regiões da economiamundial de tamanho, população e recursos naturais comparáveis. Essa com-paração provavelmente revelaria que essas duas regiões da economia mun-dial, cada uma considerada em sua totalidade, se saíram igualmente bem emse manter à frente da pobreza da periferia e igualmente mal em alcançar omesmo nível de riqueza do núcleo orgânico. Dito de outro modo, no agre-gado, a "abertura" ou "fechamento" provavelmente fizeram pouca ou ne-nhuma diferença no avanço ou retardamento do comando econômicorelativo da semiperiferia na economia mundial.

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contradição da proletarização e industrialização pró-sistêrnica- isto é, o fato de elas aumentarem o poder social das classesmais baixas sem minorar significativamente sua penúria ma-ciça - afetou num grau muito menor, ou em nada, os regimesautoritários da semiperiferia soviética e leste-européia, prin-cipalmente porque a mitigação da penúria maciça foi parteintegrante de sua estratégica de desenvolvimento. Mas essaestratégia de desenvolvimento tinha suas próprias contradiçõesque estão chegando a um ponto crítico na presente crise.

Como prognosticado por Isaac Deutscher (1967), com re-ferência especial à União Soviética, a mais importante dessascontradições resulta do fato de a proletarização e industriali-zação causarem uma divergência crescente entre os interessesde poder das elites dirigentes (funcionários e clientes dos váriospartidos comunistas no poder), de um lado, e os interessesmateriais do proletariado industrial, de outro. Enquanto oproletariado industrial foi uma minoria impotente e pequenada população, o aumento de seu tamanho, graças à proletari-zação e industrialização, foi um fator de consolidação e inten-sificação do poder político dos partidos comunistas dirigentes,como estes previram. Entretanto, quanto mais o proletariadopassou a incluir a grande maioria da população, mais difíciltornou-se para os partidos comunistas dirigentes reivindica-rem, de modo plausível, representá-lo contra os interesses degrupos e classes que estavam nesse momento em grande parteou completamente eliminados.

Contudo, é difícil negar que o "fechamento" fez uma grande diferença napromoção do poder dos Estados scmiperiféricos no sistema mundial e dejustiça social nos Estados serniperiféricos. Não obstante, os recentes retro-cessos, o aumento da capacidade relativa da serniperiferia anti-sistêrnica deconfigurar e influenciar a política mundial, por um lado, e a equalização daschances de vida entre as classes e grupos étnicos no interior de seus territórios,de outro, foram incomparavelmente maiores do que o da serniperiferia pró-sistêrnica. Como discutido no texto, a crise do regime autoritário na serni-periferia anti-sistêrnica deve realmente ser interpretada como o resultadoconjunto de seu fracasso em alcançar os padrões de riqueza do núcleo orgâ-nico e de seus êxitos em reestruturar a política mundial e as sociedadesnacionais.

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Os métodos coercitivos de governo praticados pelos par-tidos comunistas pareceram, assim, cada vez menos um meioque tinha a finalidade de proteger os interesses de um prole-tariado fraco, diante de grupos e classes sociais mais poderosos,c, cada vez mais, um meio que tinha a finalidade de protegerdos efeitos de proletarização generalizada o poder e os privi-légios dos funcionários do partido e de seus clientes. Ao mesmotempo, tornou-se mais difícil para os partidos comunistas di-rigentes melhorar mais os padrões de vida do proletariadocrescente. As melhorias iniciais se deveram principalmente à"democratização" forçada da riqueza nacional. Tendo a rique-za nacional sido" democratizada", as melhorias passaram a serrestringi das por condições sistêrnicas (principalmente a posi-ção semiperiférica desses Estados na hierarquia de riqueza daeconomia capitalista mundial), que essas elites dirigentes pou-co podiam fazer para mudar. }

Essa contradição se combinou às dificuldades crescentesdos regimes comunistas em acompanhar o poder dos Estadosdo núcleo orgânico no sistema mundial. Inicialmente, o regimeautoritário podia ser apresentado como necessário a fim derealocar, pela força, recursos da reprodução da riqueza oligár-quica das classes altas para a construção, manutenção e repro-dução dos complexos industriais-militares capazes de protegera população em geral, e suas classes mais baixas em particular,de inimigos agressivos e poderosos. Mas quando essa realoca-ção se completou, os custos sociais de acompanhar os com-plexos industriais-militares dos Estados do núcleo orgânicoaumentaram abruptamente e seus benefícios sociais diminuí-ram abruptamente.

Os custos sociais aumentaram abruptamente porque osrecursos necessários para acompanhar os complexos indus-trial-militares dos Estados do núcleo orgânico não podiammais vir da redução da riqueza oligárquica, que havia, emgrande parte, desaparecido dos territórios desses regimes. Pelocontrário, tinham que vir de uma redução da riqueza demo-crática, isto é, da renda de longo prazo de uma sociedade civilcompletamente proletarizada. Os benefícios sociais diminuí-

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rarn abruptamente porque, uma vez domada a agressividadedos vizinhos, a acumulação infinita de fundos de guerra trouxemenos e não mais segurança para a população.

A Semiperiferia e o Futuro da Economia Mundial

Ao introduzir o conceito de semiperiferia, Irnmanuel Wal-lerstein sustentou que a existência da semiperiferia é essencialpara a estabilidade da economia capitalista mundial. Politica-mente, um sistema polarizado num setor pequeno e distintode alto status e renda, de um lado, e um setor relativamenteautônomo, de baixo status e renda, de outro, levaria bastanterapidamente a lutas profundas e desintegradoras, O grandemeio político pelo qual essas crises são evitadas é a criação desetores "médios", que tendem a pensar em si mesmos, princi-palmente como estando em melhor situação do que os setoresinferiores, e não como estando em pior situação que o setorsuperior. Esse mecanismo óbvio, em operação em todos ostipos de estruturas sociais, cumpre a mesma função nos siste-mas mundiais (Wallerstein 1979:69).

Além dessa função política, a semiperiferia desempenha afunção econômica de aliviar o capital de congestionamentono núcleo orgânico.

Para cada capitalista individualmente, a habilidade de transferircapital de um setor em declínio para um setor em ascensão é aúnica maneira de sobreviver aos efeitos das mudanças cíclicasnos toei dos setores líderes. Para isso, deve haver setores capazesde lucrar com a compressão em produtividade salarial do setorlíder. Esses setores são o que estamos chamando de países semi-periféricos. Se eles não existissem, o sistema capitalista enfren-taria uma crise econômica tão rapidamente quanto enfrentariauma crise política (Wallerstein 1979:70; em itálico no original).

Em contraste, mas não necessariamente em contradiçãocom essa visão, Chase-Dunn (1988, 1990) recentemente pro-pôs a tese de que as semiperiferias têm sido terrenos excepcio-nalmente férteis para uma ação anti-sistêrnica e transforrnadora.

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Na sua visão, isso é verdade em relação à economia capitalistamundial, assim como foi verdade em relação a todos os siste-mas mundiais anteriores. A análise desenvolvida nesse capítulopode ser usada para conciliar essas ênfases opostas e para lançaralguma luz sobre as possíveis implicações, para o futuro daeconomia capitalista mundial, da atual crise de regime auto-ritário na semiperiferia.

Como uma primeira aproximação, podemos dizer que, aolongo do último meio século mais ou menos, a experiência dosul da Europa e da América Latina fornece provas que corro-boram a tese de Wallerstein a respeito de uma orientação efunção pró-sistêrnicas da semiperiferia, enquanto que a expe-riência da URSS e do Leste Europeu fornece provas que cor-roboram a tese de Chase-Dunn sobre uma orientação e funçãoanti-sistêrnicas da semip~riferia.14 Se a existência de uma se-

14 A tese de Wallerstein, entretanto, deve ser reformulada para levar emconta a polarização social típica das serniperiferias não-reformadas. A prin-cipal razão pela qual a serniperiíeria ou partes dela mostram uma orientaçãopró-sistêrnica e desempenham funções pró-sistêrnicas não é a "ilusão de óti-ca" pela qual os Estados semipcriféricos tendem a se ver principalmentecomo estando numa situação melhor do que os Estados periféricos, em lugarde se verem como estando numa situação pior do que os Estados centrais,como foi sugerido por Wallerstein (1979:69). Essa ilusão pode ter desem-penhado um papel na reprodução da hegemonia do núcleo orgânico sobrealguns Estados semiperiféricos por algum tempo. Mas é duvidoso que muitosEstados pudessem ter sido enganados dessa maneira por longos períodos detempo, a menos que aqueles que controlavam os aparatos ideológicos e coer-citivos desses Estados tivessem algum real interesse pró-sistêrnico.Segundo nossa análise anterior, esse interesse pró-sistêrnico real foi a possi-bilidade oferecida pelo sistema capitalista mundial a frações específicas dasclasses alta e média da semiperiferia de desfrutar de padrões de riqueza quese comparam muito favoravelmente àqueles de suas sucedâneas no núcleoorgânico. Essa possibilidade não é uma ilusão, mas sim um privilégio realque seus bencficiários reais ou potenciais sempre tentaram proteger das pre-disposições anri-sistêmicas das classes mais baixas, com qualquer combinaçãode coerção, corrupçâo, fraude e consentimento que pudesse ser mobilizada efe-tivamente com esse fim. Entretanto, a mobilizaçâo do consentimento pró-sistê-mico entre as classes mais baixas sempre foi problemática devido à sua pobrezamaciça, que, como observado, freqüentemente se assemelhou a ou até mesmoexcedeu aquela de suas sucedâneas na periferia. Em conseqüência, a modalidadetípica de regime dos Estados serniperiféricos pró-sistêrnicos até a recente crise

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miperiferia pró-sistêmica é essencial para a estabilidade da eco-nomia capitalista mundial, quais são as implicações de umacrise geral dos regimes autoritários pró-sistêrnicos e anti-sis-têmicos na semiperiferia? Essa crise geral pode aumentar oudiminuir a estabilidade do sistema capitalista mundial?

No momento, a tendência dominante parece ser uma pro-pagação, para toda a semiperiferia, dos regimes parlamentaristaspró-sistêmicos e estáveis que foram a norma no núcleo orgânicodesde a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos quinze anos, asemiperiferia sul-européia e latino-americana se movimentou,com uma determinação sem precedentes, em direção a demo-cracias parlamentares, sem qualquer mudança perceptível naorientação pró-sistêrnica de seus governos. Ao mesmo tempo, osregimes da semiperiferia soviética e leste-européia afrouxarammuito sua orientação anti -sistêrnica e começaram a experimen-tar várias formas de democracia parlamentar.

Essa tendência é uma expressão da crise geral dos regimescoercitivos na semiperiferia que, se nossa análise anterior es-tiver correta, tem profundas raízes estruturais ~, portanto,pode-se esperar que continuem no futuro previsível. Contudo,essa tendência é mais uma expressão do que uma solução dacrise. O resultado final da crise permanece obscuro. Em par-ticular, não fica claro o que acontecerá com a democracia par-lamentar pró-sistêrnica à medida que ela se tornar a regra enão a exceção na semiperiferia.

Uma possibilidade é que a semiperiferia simplesmente sigao mesmo caminho que o núcleo orgânico, sem introduzir qual-quer grande inovação na forma e na substância da democraciaparlamentar. Essa possibilidade é improvável. A íntima asso-ciação, desde a Segunda Guerra Mundial, entre as democraciasparlamentares pró-sistêmicas e estáveis, de um lado, e a riquezaoligárquica dos Estados que experimentaram esses regimes,de outro, não é acidental. A abundância de meios cria possi-

do regime coercitivo consistiu principalmente de uma combinação de coerção,fraude e corrupção que foi substantivamente oligárquica mesmo quando assumiuuma forma parlamentarista (ver Mouzelis 1986).

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liilidades de mobilização e de reprodução de consentimentopró-sistêmico entre as classes mais baixas que simplesmenteILIO estão disponíveis sob condições de escassez relativa ou.ibsoluta. Nas condições de abundância anormal que caracte-rizam e definem as posições do núcleo orgânico, a busca depoder e riqueza pelas classes altas pode facilmente ser conci-Ii.ida com a busca de subsistência pelas classes mais baixas.( .omo mostra o registro histórico, foi nessas condições que asdemocracias parlamentares pró-sistêmicas e estáveis prospe-r.iram, quase independentemente das peculiaridades históricasdos Estados e povos envolvidos. Mas nas condições de escassezrelativa e absoluta, típica da periferia e da semiperiferia, essasdemocracias foram a exceção e não a regra.

Como já mencionado, entre os Estados semiperiféricos or-gânicos há casos de democracias parlamentares pró-sistêrnicasestáveis. As mais estáveis são a Irlanda e a Costa Rica, seguidaspela Jamaica e por Trinidad e Tobago. Entre as aquisições maisrecentes ao campo parlamentar pró-sistêmico, a Espanha, Gréciae Portugal parecem, no momento, as mais prováveis a copiar fiele duradouramente a experiência do núcleo orgânico. É cedodemais para prever o que acontecerá em outros lugares.

Excetuando-se a Espanha, os Estados acima mencionadossão todos muito pequenos. Incluindo a Espanha, eles respon-dem por menos de 10 porcento da população total da semi-periferia orgânica. Dado seu pequeno tamanho individual eagregado e, sobretudo, as peculiaridades de sua geografia ehistória, foi possível para esses Estados negociar acordos es-peciais ou com o núcleo orgânico norte-americano ou com oeuropeu ocidental (ou ambos), que fortaleceram simultanea-mente suas instituições parlamentares e sua orientação pró-sistêrnica, Entretanto, é duvidoso que acordos dessa naturezapossam ser estendidos para a maioria, muito menos para atotalidade, dos Estados semiperiféricos.

Todas as evidências disponíveis parecem sugerir que gran-des porções da semiperiferia provavelmente serão deixadasfora desses acordos. Um novo Plano Marshall ampliado serianecessário para que a maior parte da semiperiferia fosse incluída.

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Entretanto, os Estados do núcleo orgânico parecem não estarnem dispostos a, nem ser capazes desse empreendimento. Porum lado, faltam-lhes a vontade e a inteligência coletivas quea concepção e execução de um plano assim requerem. A criseda hegemonia norte-americana deixou como legado agênciasmundiais bastante ineficazes, cuja principal preocupação é ogerenciamento cotidiano, caso a caso, dos recursos monetáriosmundiais, em vez do uso desses recursos para a promoção deuma mudança institucional de longo prazo e de grande escala.

Além disso, pode-se esperar que a atual tendência a umamaior "abertura" por parte da semiperiferia anti-sistêrnica te-nha um efeito negativo sobre as chances dos Estados semipe-riféricos, em geral, de arrancar do núcleo orgânico acordosvantajosos. Essa tendência enfraquece a predisposição dos Es-tados do núcleo orgânico de fazer acordos especiais com osEstados semiperiféricos, porque muita dessa predisposição sedeveu anteriormente à necessidade de manter pelo menos par-te da semiperiferia aberta às atividades globais dos Estados eempresas do núcleo orgânico. Mas, mesmo que a predisposi-ção dos Estados do núcleo orgânico de oferecer acordos espe-ciais a alguns Estados semiperiféricos permaneça inalterada,o aumento do número de Estados que oferecem acordos es-peciais ao núcleo orgânico reduz o que os Estados serniperi-féricos podem, em média, arrancar do núcleo orgânico. O quealguns poderiam conseguir, todos não conseguem.

Em último lugar, mas não menos importante, a acentuadacompetição econômica entre as empresas e Estados do núcleoorgânico que se seguiu à reconstrução do domínio do mercadomundial - uma reconstrução completada no início da décadade 70 - está induzindo os Estados e empresas do núcleo orgâ-nico a cobrir as apostas na corrida de corte de custos. Entreoutras coisas, isso significou um desvio da serniperiferia (cujacompetitividade se esgotou de qualquer maneira devido à ex-ploração e auto-exploração excessivas) e uma procura de vín-culos mais estreitos com localidades periféricas selecionadas,Os recentes "milagres" econômicos da Coréia do Sul e Taiwan(sua ascensão da periferia à semiperiferia) sâo uma expressão

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dessa tendência. Longe de fornecer um modelo para o futuroda semiperiferia, essas transições bem-sucedidas para a serni-periferia agravaram os problemas atuais dos Estados que já seencontravam na serniperiferia."

Por todas essas razões, é altamente improvável que a ex-periência pós-Franco da Espanha seja repetida por muitos ou-tros Estados semiperiféricos de tamanho comparável. AlgunsEstados do Leste Europeu podem repetir essa experiência,mas, para cada nova Espanha, as chances são que haverá umpouco mais de Argentinas - o Estado que, melhor do quequalquer outro, exernplifica o impasse político de uma situa-ção estrutural na qual nem o regime autoritário nem a demo-cracia parlamentar pode cumprir o que promete."

Pior ainda, para cada nova Espanha e umas tantas Argen-tinas, a atual tendência à democracia parlamentar pró-sistê-mica na semiperiferia pode gerar muitas Áfricas do Sul e Israéis.A África do Sul e Israel são Estados semiperiféricos orgânicos.Contudo, nem um dos dois se encaixa em qualquer dos trêsprincipais grupos de Estados semiperiféricos orgânicos identifi-

15 Sobre as especificidades geográficas e históricas dos milagres da Coréiado Sul e Taiwan, ver Cumings (1984, 1989). Além dessas especificidades,deveríamos ter em mente que a competitividade da Coréia do Sul e de Taiwanfoi um fator significativo na crise de "percepção" dos esforços de industria-lização dos membros orgânicos da semiperiferia. Quando esses esforços fo-ram assumidos pela primeira vez na década de 60 e início da década de 70,esperava-se, de modo geral, que as futuras exportações para os mercados donúcleo orgânico forneceriam as moedas fortes necessárias para o pagamentodas dívidas contraídas para fazer avançar a industrialização. Uma razão im-portante por que essas expectativas não estão se realizando é que as expor-tações reais ou prospectivas dos membros orgânicos da semiperifcria foramexcluídas dos mercados do núcleo orgânico pela força das exportações deantigos Estados periféricos de mobilidade ascendente, dos quais a Coréia doSul e Taiwan são os exemplos mais proeminentes e bem-sucedidos. Os Es-tados semiperiféricos orgânicos se viram, portanto, em dificuldades, comaparatos industriais obsoletos e dívidas em moedas fortes.16 A Argentina foi o líder entre os Estados orgânicos da semiperiferia pró-sistêrnica nos processos de proletarização e industrialização. Se a tese de quepara cada nova Espanha haverá um pouco mais de Argentinas é verdadeira,o Peronismo pode ser mais relevante do que a social-dernocr acia para ofuturo da semiperiferia.

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cados na seção anterior (regimes parlamentaristas pró-sistêrni-cos, regimes autoritários pró-sistêrnicos e regimes autoritáriosanti-sistêrnicos estáveis). Ao contrário, são regimes híbridosque combinam traços típicos dos outros três tipos de regime.

Ao longo dos últimos quarenta anos, a África do Sul e Israelforam regimes parlamentaristas pró-sistêmicos estáveis, como aIrlanda e a Costa Rica. No entanto, grupos específicos entre seuscidadãos (os negros na África do Sul e os árabes em Israel) foramexcluídos da participação efetiva no processo parlamentar. Emrelação aos grupos privados ou excluídos do gozo de direitospolíticos plenos, ambos os regimes usaram métodos de controletão coercitivo quanto aqueles usados por regimes autoritáriospró-sistêrnicos e anti-sistêrnicos.

O uso de métodos coercitivos de controle combinados a umaforte orientação pró-sistêrnica fez com que esses regimes se pa-recessem com os regimes autoritários pró-sistêrnicos da semipe-riferia sul-européia e latino-americana. Entretanto, eles diferirammuito desses regimes, não apenas por causa da estabilidade desuas instituições parlamentares, mas porque sua base social con-sistiu de uma etnonação específica (a etnonação Africânder naÁfrica do Sul, a etnonação judia em Israel), em vez de fraçõesespecíficas das classes alta e média."

Na realidade, desse ponto de vista os regimes da África doSul e Israel apresentam importantes analogias com os regimesautoritários anti-sistêrnicos da semiperiferia soviética e leste-européia. Como as elites dirigentes desses últimos, as elites

17 Essa diferença entre a África do Sul e Israel, de um lado, e outros paísessemiperiféricos, de outro, não deveria ser exagerada. Muitos regimes pró-sistêmicos (e alguns anti-sistêmicos) da semiperiferia se apoiaram fortementeno passado, e ainda o fazem, em grupos étnicos específicos como a basecentral de seu domínio. Particularmente significativo nesse aspecto foi osucesso obtido pelas etnias de extração européia em monopolizar a riquezae poder de muitos Estados latino-americanos às custas de grandes gruposétnicos de extração ameríndia e africana. A principal diferença entre essesEstados, de um lado, e a África do Sul e Israel, de outro, é que a discriminaçãoa favor de ou contra grupos étnicos específicos é sancionada e imposta atravésde mecanismos de mercado, em vez de instrumentos mais visíveis de controle.

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dirigentes dos primeiros se engajaram ativamente numa polí-tica de industrialização que visava à reestruturaçâo, em seupróprio benefício, tanto das relações sociais no interior de seustcrritórios, quanto das relações de poder no sistema inter-Es-rados. No processo, eles melhoraram consideravelmente aschances de vida das etnonações sobre as quais se assenta seupoder (as chances de vida das classes mais baixas dessas etno-Ilações, em particular) e construíram complexos industrial-mi-litares pequenos, mas altamente eficazes que transformaramesses Estados em poderes regionais de grande importância.

Até o presente, esse tipo de regime híbrido foi uma ano-malia entre os Estados semiperiféricos orgânicos. Entretanto,,: bem possível que a presente crise dos regimes autoritáriospró-sistêmicos e anti-sistêrnicos da semiperiferia se transformenum terreno fértil de novas variedades de regimes democrá-t icos etnonacionalistas extremos, mais ou menos parlamenta-ristas e mais ou menos pró-sistêrnicos, de acordo com ascircunstâncias. Incapazes de satisfazer ou de reprimir as exi-)',~ncias populares de subsistência e democracia, um número«nda vez maior de regimes da semiperiferia podem ficar ten-r.idos a buscar uma saída desse impasse político, satisfazendo('SS:1S exigências seletivamente com base em discriminações ra-.iais, étnicas e religiosas entre seus cidadãos."

Certamente, esse tipo de "solução" da crise de legitimida-dc, enfrentada pelos regimes autoritários semiperiféricos, tem

I H Para um importante estudo de caso da ascensão do etnonacionalismo das, iuzas de um regime autoritário anti-sistêrnico (Iugoslávia), ver Magas( I ')~9). A tendência começou a ser observada com alguma preocupação pelauudia do núcleo orgânico. Um editorial do New York Times (25 de Junho det ') ~9, 26E), intitulado "Tribalisrno Perigoso nos Bálcãs", menciona as tensóes" «onflitos étnicos na Bulgária, Romênia, Polônia, Iugoslávia, URSS, Turquia,II L111da do Norte e Espanha e passa a advertir acerca do que poderia vir pelaII cure: "À medida que a superpotência retrocede, ascende o nacionalismo.1\ medida que o império soviético se desemaranha, as rivalidades nacionaisvolr.un à tona, algumas vezes raivosamente ... A combinação instável de, h.iuvinisrno nacional e ódio internacional alimentou muito conflito e podeI' nnar a tazê-lo. A guerra fria acabou, mas a guerra pode irromper tanto do, .IOS rribal quanto do confronto entre superpotências".

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suas próprias contradições. Ao longo do tempo, erno-nacio-nalismos exploradores e/ou excludentes tendem a gerar con-trarnovimentos que efetivamente minam o poder das etno-nações dominantes, tal como testemunhado pela atual crise deambos os regimes sul-africano e israelense. Todavia, comomostra a experiência desses regimes, o surgimento de contra-movimentos efetivos leva períodos mais longos de tempo, du-rante os quais o ódio e sofrimento humanos podem cresceralém do que é possível controlar.

Que espécie de sistema mundial surgirá desse turbilhão édifícil dizer. Por um lado, a escalada de animosidades raciais,étnicas e religiosas na semiperiferia pode se vincular a e inten-sificar tendências semelhantes no núcleo orgânico e na peri-feria. Se não for contida, essa tendência pode muito bem mer-gulhar o mundo numa situação de caos sistêmico pior do queaquela da primeira metade do século XX. Por outro lado, astentativas e lutas para conter e se contrapor a essa escaladapodem criar, na semiperiferia, novas formas de democraciapopular capazes de estabelecer as bases de um sistema mundialmenos explorador e excludente.

Como serão essas novas formas de democracia, ninguémsabe. Como todas as inovações, elas surgirão de um processoprolongado de tentativa e erro e passarão a parecer óbvias e"naturais" apenas depois de sua consolidação. Tudo o que po-demos dizer, no momento, é que elas não se parecerão nemcom as "democracias populares" que estão sendo varridas pe-las crises generalizadas do regime coercitivo na semiperiferia,nem com as democracias parlamentares do núcleo orgânicoque foram construídas sobre uma abundância de meios quenão pode ser generalizada.

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1\ desigualdade mundial de rendal' o futuro do socialismo

A tese deste capítulo é que os grandes levantes políticosde nossos dias - da Europa Oriental e União Soviética ao Orien-te Médio - têm origem numa transformação radical da estru-tura social da economia mundial, combinada com umadesigualdade de renda persistente, cada vez mais profunda,entre as regiões e jurisdições políticas em que a economia mun-dial se divide." A transformação radical a que me refiro co-meçou logo após o final da Segunda Guerra Mundial, ganhouimpulso nos anos 60 e minguou no final dos anos 70 e 80.Como disse sucintamente Eric Hobsbawn:

O período de 1950 a 1975 [... ] assistiu à mudança social maisespetacular, rápida, abrangente, profunda e global já registradana história mundial [... ] [Este] é o primeiro período em que o

':. Este capítulo é uma versão ampliada e revisada de um trabalho apresentadona Sexta Conferência sobre o Futuro do Socialismo: Socialismo e Economia,organizado pela Fundacion Sistema, Sevilha, 14-16 de dezembro de 1990.Gostaria de agradecer a Terence K. Hopkins, Mark Selden e Beverly Silverpelos comentários sobre uma versão anterior.Publicado originalmente na Nau Left Review, 189, set.-out. 1991.

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