a igreja católica em face da escravidão - jaime balmes

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  • 5/12/2018 A Igreja Cat lica em Face da Escravid o - Jaime Balmes

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    Por mals estapafurdla que possa parecer estarnaneirafesumana de pensar,atualmente no Brasil se esta criandoim outro mito: a necessidade de se preservar a negritude.m fato novo surge e serios podem ser seus resultados.)espertar a consclencla negra e estabelecer 0 culto da cor,Iidolatria da plqmentacao da pele, numa exaltacao morbl-Ia da pretura, e a mlssao ingl6ria dos novos profetas dauta de classes. bern na Iinha marxiana de desestablllaacaofa ordem social. E urn outro tipo de racismo, baseado no'also pressuposto de que ainda reina 0 ideal do branquea-nento ou que perdura uma estrategia de dominac;io dosiranccs.I; ;, t , I I .. , I .

    E evidente que fortalecer emocional e passionalrnenteal movimento significa cooperar para que no porvir umauta de classes se detone com prejuizos gravissirnos paraoda a sociedade.

    Cumpre se denuncie este despertar do egotismo cole-ivo que a hist6ria revela desastroso,catastr6fico, destru-iva e pernicioso. Que se escutem os clamores de multi-16esde vitimas do racismo, imoladas nos infaustos holo-:austos raciais. E faell, demag6gico provocar 0 narclslsmo:oletivo. Ai a razao pela qual 0 movhnento negro cr:issustadoramente, movido por palxao que Ihe confere f'linarnismo. A porta para a vlolsncfa logo se abre........................ '" ;. , I ';

    A animosidade que se esta fomentando e antlerlfere 0 nucleo da doutrina evangelica, suscitando urna:rise em potencial, pais tem carirter segregacionista.pags.128/129

    f f l DENOO :ALDOALHOBD A I J A2615 i -(6 E A E S C R A V A DII:: E N O B I L. .:I

    J A I M E B A L M E S

    A I G R E J A C A T O L I C AE M F A C E A E S C R A V IO A o

    ,\ J //'

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    JAIME BALMES

    A IG R E J A C A T O L IC AE M F A C E O A E S C R A V IO A o

    Traducao deJOSEG. M. ORSINI

    1001060620

    1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

    ADENDO-)JOSE GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO

    . A IG R E J A E A E S C R A V IO A ON O B R A S I L

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    1988 - CENTENARIO DA ABOLICAO DA ESCRAVATURANO BRASIL

    Editado peloCENTRO BRASILEIRO DE FOMENTO CULTURAL

    Caixa Postal 9667CEP 01051 - Sao Paulo - SP

    NOTA PREVIA DO EDITORJAIME BALMES URPIA e mundialmente conhecido sobretudo

    par sua obra El Criterio, um dos mais valiosos guias para a disciplinada mente e organizacao dos estudos, e que em nossos dias continuaa ser traduzido para praticamente todas as linguas cultas. Dela -num testemunho que explica tao marcante exito editorial - disseoutro escritor de genic, Marcelino Menendez y Pelayo (0 autorda celebre Historia de los Heterodoxos Espaiiolesv, que se trata deuma fonte de "higiene do espirito". I

    No entanto, 0 significado cultural de Balmes ultrapassa de muitoos Iimites da popularidade. Basta lembrar que, por ocasiao do cente-nario da publicacao daquela Sua obra, em 1944, 0 Insti tuto do LivroEspanhol promoveu uma serie de conferencias em homenagem aoilustre sacerdotee escritor, conferencias essas depois enfeixadas numvolume editado no ano seguinte pelo Conselho Superior de Investi-gacoes Cientificas, de Madri, E os conferencistas que abordaram osaspectos mais salientes de seu pensamento se incluiam entre osmaiores luminares da cultura espanhola. Assim falaram: Juan Zara-gueta sobre Balmes fil6sojo, Ireneo Ganzalez sobre Balmes sociologo,Salvador Minguijon sobre Balmes apologista e Jose Carts Grau sobreBalmes politico. A par dessa amplitude da visualizacao balmesianaque esses enunciados indicam, e muito digno de nota que nosso autornao foi somente fil6sofo e soci6Iogo e apologista e politico: ele foi,a urn s6 tempo e em cada instante, filosofo-sociologo-apologista-polf-tico, pois em todos os temas que abordava jamais perdia de vistaessas rmiltiplas facetas da realidade, demonstrando uma sensibilidadeapurada para as interacoes e os mutuos condicionamentos que naordem te6rica e pratica se estabelecem entre esses varies fatores.Essa compreensao da integralidade da problematica humana e urndos traces que mais contribuem para assegurar a vitalidade e a per-manente atualidade de seu pensamento.

    Contemporaneo de Marx e de Comte, mas nutrido em melhorfiIosofia (estudou a fundo e apreciava muito Santo Tomas de Aquino),sabia vislumbrar as conexoes profundas subjacentes aos aconteci-mentos e por isso teve intuicoes geniais que s6 muito depois a Psicolo-gia, a Sociologia ou a Historiografia vieram corroborar exaustiva-mente. Quando 0 calvinista Francois Guizot publicou na Franca 0livro Histoire Generate de la Civilisation en Europe (que logo setornou uma arrna de primeira linha para os ataques de protestantes,

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    rnacons, agnosticos e ateus contra a Jgreja Catolica), escreveu emcontradita sua obra principal, El Protestantismo Comparado con elCatolicismo en sus Relaciones cori La Civilizacion Europea (na edi-s;ao original em 4 volumes), na qual perpassa toda a hist6ria dacivilizacao ocidental desde os primordios do cristianismo e analisadetidamente cada urn dos grandes problemas e episodios que marca-ram a caminhada da humanidade desde entao, a fim de demonstrar ainfluencia benefica que sobre os rumos dos acontecimentos exerceua Religiao Verdadeira.

    Mas sempre voltado para as multiplas exigencias dos problemasde seu tempo (que em grande parte continuam a ser os dos diasatuais), escreveu uma Filosojia Elemental (4 volumes) para propor-cionar aos iniciantes uma boa orientacao no estudo dessa disciplina,e a Filosoiia Fundamental (tambem em 4 volumes), para estudiososmais avancados, Numa epoca de florescente impiedade, alimentadaprincipalmente pelos mitos cientificistas entao em plena yoga, escre-veu um notavel trabalho de defesa da fe: Cartas a un Esceptico enMateria de Religion. Imimeros outros estudos ainda produziu sobreTeologia, Historia Eclesiastica e Politica. Sem falarem sua continuaatividade como jornalista, em revistas e jornais que fundou ouemque colaborou, influindo consideravelmente nos acontecimentos. Aedicao completa de seus escritos pela B.A.C., de Madri, perfaz 8densos volumes.

    E e de espantar que todo esse intenso labor como homem depensamentoe como homem de acao se tenha desdobrado em taosomente 8 anos. Nascido em 1810, publica sua primeira obra (e daiem diante desenvolve persistente atuacao publica) aos 30 an os emorre em 1848, com apenas 38 anos, vitimado pela tuberculose. Desua fina percepcao das realidades deu abalisado testemunho LeaoXIII, que antes de tornar-se papa 0 conheceu durante est ada deambos na Belgica (em 1845) e que 0 qualificou como "0 maiortalento politico do seculo XIX e urn dos maiores que houve nahist6ria dos escritores politicos", E na sua Historia de la FilosoiiaEspanola, 0 categorizadoespecialista Guillermo Fraile consign a: "Bal-mes pr,eparou 0 ressurgimento da fiIosofia crista no seculo XIX. Masmais exato do que considera-lo como precursor da restauracao esco-Iastica posterior e enquadra-lo dentro da Iinha de apologistas cato-licos da primeria metade daquele seculo, a todos os quais superaem formacao filosofica, emerudicao historica e em elevacao e solidezde pensamento",

    o texto balmesiano que neste volume se insere, tratando especi-ficamente do problema da escravidao e da influencia da Igrejaparasuaaboli

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    ,A I G R E J A C A T O L I C AE M F A C E O A E S C R A V I O A o

    JAIM E B ALM E S

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    lNTRODU~AO

    Situa~iio religiosa, social e cultural de- mundoit epoca de aparieao do cristianismo. 0DireitoRomano. Conjecturas sobre a influencia exer-cida pelas ideias cristas sabre oDireito Roma-no. Vicios da organizaeao politica do Imperio.Sistema do cristianismo para regenerar a so-ciedade: seu primeiro passo se dirigiu it mo-dificacrao das ideias. Comparacao entre 0 cris-tianismo e 0 paganismo no ensino dasboasdoutrinas,

    Em queestado 0 cristianismo encontrou 0 mundo? Nesta ques-tao temos de fixar agudamente nossa atencao se quiserrnos apreciardevidamente os beneffcios proporcionados par essa divina religiaoao individuoe a sociedade. se quiserrnos enfim conhecer a verda-deiro carater da civilizacao crista.

    Inegavelmente era sombrio 0 quadro que apresentava a socie-dade em cujo centro brotou 0 cristianismo. Coberta de belas apa-renciase ferida em seu coracao por enfermidade mortal, of ere cia aimagem da corrupcao mais asquerosa, aureolada par brilhante rou-pagem de ostentacao e opulencia, A moral sem base, os costumes sempudor, as paix6es sern freio, as leis sem sancao, a religiao sem Deus,. flutuavam as ideias amerce das preocupacoes imediatas, do fana-tismo religiose e das cavilacoes filos6ficas. Constitufa 0 homem urnprofundo misterio para si mesmo, e nem sabia eleavaliar sua digni-dade, pois consentia em set rebaixado ao nivel dos brutos e, mesmoquando se empenhava em pondera-la, nao lograva enquadra-la nosparametres indicados pela razao e pela natureza. Neste sentido ebern significative que, enquanto uma grande parte da . l inhagem hu-mana gemia na mais abjeta escravidao, se exaltassem com tantafacilidadeos herois e ate as mais detestaveis monstros fossem vene-rados nos alta r es dos deuses,

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    Com tais cornponentes, teria de ocorrer mais cedo ou maistardea dissolUl;ao social. Mesmo que nao tivesse so brevindo a violentaarremetida dos barbaros, mais cedo ou mais tarde aquela sociedadeteria entrado em decomposicao, porque nao existia em seu seionenhuma ideia fecunda, nenhum pensamento consolador, nenhumvislurnbre de esperanca que fossem capazes de preserva-Ia da ruina.

    A idolatria ja tinha perdido sua forca: mola propulsora desgas-tada pelo tempo e pelo usa grosseiro que dela fizeram as paixoes,exposta sua fragil contextura ao dissolvente fogo da observacao filo-sofica, estava extremamente desacreditada. Ese, por efeito de arrai-gados habitos, ainda exercia sobre 0 animo dos povos algum inluxomaquinal, este nao era suficiente nem para restabelecer a harmoniada sociedade nem para engendrar aquele fogoso entusiasmo inspira-dor de grandes acoes. A [ulgar pelo relaxamento dos costumes, pelafrouxidao dos caracteres, pela efeminacao e pelo luxo, pelo com-pleto abandono as mais repugnantes diversoes e aos mais asquerososprazeres, torna-se claro que as ideias religiosas nada conservavamdaquela majestosidade que se notava nos tempos heroicos e que,exercendo escassa ascendencia sobre 0 animo dos povos, agora jaserviam ate como lamentaveis instrumentos de aceleracao do processode dissolucao. Nem era possivel que acontecesse de outro modo:povos que se tinham elevado ao alto grau de cultura de que se podemgloriar gregos e romanos, que tin ham ouvido seus sabios debater asgrandes questoes referentes a Divindade e ao homem, nao serianormal que permanecessem naquela candidez que se fazia necessariapara acreditar de boa fe nos intoleraveis absurdos de que esta satu-rado 0 paganismo; e, seja qual fosse a disposicao de espirito da partemais ignorante do povo, e evidente que nao podiam concordar comisso todos quantos se alcavam urn pouco acima da media - eles quetinham ouvido filosofos tao sensatos como Cicero e que agora secompraziam com as maliciosas agudezas dos poetas satiricos,

    Se a religiao era impotente, restava aparentemente outro fator:a ciencia. Antes deentrar noexame do que se poderia esperar dela,e necessario observar que jamais a ciencia fundou uma sociedadenem jamais foi bastante para resti tuir-lhe 0 equilfbrio perdido. Revol-va-se a historia dos tempos antigos: sera possfvel encontrar a frentede alguns povos homens eminentes, que, exercendo um magico in-fluxo sobre 0 coracao de seus semelhantes, ditam leis, reprimemabusos, retificam ideias, endireitam costumes e assentam sobre sabiasinstituicces 0 seu governo, edificando em maier ou menor escala a12

    II;!IHluilidadee a prosperidade das coletividades entregues a suadi rccao e cuidado. Mas estaria muito enganado quem supusesse quecsscs homens agiram em funcao do que nos denominamos combina-coes cientificas: como regra geral, simples. e ate rudes e grosseiros,agiram por forca de impulsos de seu reto coracao e guiados poraquele bam senso, aquele prudente realismo que marca 0 pai defamilia no manejo dos negocios domesticos: nunea tiveram por normaessas miseraveis cavilacoes que nos apelidamos de teorias, essa rnis-celanea indigesta de ideias que nos aureolarnos com 0 pomposorotulo de ciencia. Tanto assim que ninguern tera a ousadiade afirmarque os melhores tempos da Grecia foram aqueles em que floresceramos Platoes e os Aristoreles . .. E aqueles Ierreos romanos que subju-garam 0 mundo nao possuiam por certo a extensao e variedade deconhecimentos que admiramos no seculo de Augusto; mas quemtrccara aquele tempo por cstc. aqueles homens par estes?

    Os seculos modernos poderiam tambem proporcionar-nos abun-dantes provas da esterilidade da ciencia nas instituicoes sociais, coisatanto mais facil de notar quanta mais patentes se fazem os resultadospraticos dimanados das ciencias naturais. Dir-se-ia que nest as seconeedeu ao homem 0 que naquelas lhe foi negado, se bern que,examinando-se as coisas a fundo, a diferenca nao e tao grande comoa primeira vista poderia parecer. Quando 0 homem trata de fazeraplicacao dos conhecimentos que adquiriu sobre a natureza, se v eforcado a respeita-Ia; e como, ainda que 0 quisesse, nao conseguiriacom sua debil mao causar-Ihe consideravel transtorno, se limita emseus ensaios a tentativas de pequena monta e e estimulado, peloproprio desejo de acertar, a obrar emconformidade com as leis aque estao sujeitos os corpos sobre os quais atua. )a em se tratandode aplicacoes das ciencias sociaistudo se passa de modo muitodiferente: 0 hornem pode agir direta e imediatamente sobre toda asociedade: com sua mao pode transtorna-la, nao se ve constrangidoa circunscrever suas tentativas a objetos Iimitados e nem a respeitaraseternas leis da vida social, podendo rnesmo imaginar estas iiltimasao seu paladar, proceder conforme suas cavilacoes e deflagrar desas-tres dos quais se lamente a humanidade. Recordem-se as extravagan-cias que sobre a natureza correram como muito validas nas escolasfiIos6ficas antigas e modernas, e veja-se que teria s ido da admiravelmaquina do universe se os fil6sofos tivessem podido maneja-la aoseu arbitrio. Por desgraca, nao acontece assim com a sociedade: osensaios se Iazem sobre ela mesma, sobre suas eternas bases, e entao

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    dai decorrem males gravissimos, a evidenciarem a debilidade daciencia do hornem. E preciso nao esquecer: a ciencia propriamentedita vale pouco para a organizacao das sociedades e. nos temposmodernos, em que ela se manifesta tao orgulhosa de sua pretensafecundidade, e born recordar que se tern atribuido a seus trabalhoso que e .Iruto do transcurso dos seculos, do sadie instinto dos povose a s vezes das inspiracoes de urn genic: e nem 0 instinto dos povosnem a genic tern alga que ver com a ciencia.Mas deixando de lado essas consideracoes generic as (se.npremuito iiteis porque conducentes ao melhor conhecimento do homem).o que se poderia esperar dos falsos vislumbres de ciencia que seconservavam sobre as ruinas das velhas escolas ao tempo de surgi-mente do cristianismo? Escassoscomo eram em semelhantes materiasos conhecimentos des fi16sofos antigos, mesmo dos mais esclarecidos,nao se pode deixar de reconhecer que 05 nornes de urn Socrates, deurn Platao, de um Aristoteles recordam algo de respeitavel, que, emmeio a desacertos e aberracoes, contem conceitos dignos da elevacaodesses genies. Mas, quando apareceu 0 cristianismo, estavam sufo-cados os gerrnes do saber espargidos por esses grandes homens: osdesatinos tinham ocupado 0 lugar dos pensarnentos altos e fecundos,o prurido de disputar deslocava a amor a sabedoria, e 05 sofismase as cavilacoes substituiam a maturidade do juizo e a severidade doraciocinio. Destrocadas as antigas escolas e erigidas sobre seus escom-bros outras taoesdruxulas quanta estereis, brotava por toda parteurn sem mimero de sofistas, como aqueles insetos imundos cujapresenca anuncia a corrupcao do cadaver. A Igreja conservou-nosurn dado preciosissimo para julgar da ciencia daquele tempo: a histo-ria das primeiras heresias. De Iato, se prescindirmos daquilo quenelas causa indignacao (ou seja, sua profunda imoralidade), podehaver coisa mais vazia, mais insipida, mais merecedora de lastima?Basta recordar as .monstruosas seitas que pululavarrrpor toda parte,naqueles primeiros seculos da Igreja,e que reuniam em suas doutri-nas 0 emaranhado mais informe, mais extravagante e mais imoralque se possa conceber. Cerinto, Menandro, Ebiao, Saturnino, Basili-des, Nicolau, Carpocrates, Valentino, Marciao, Montano e outros saonomes que recordam micleos em que 0 delfrio andava irmanado com aimoralidade. Lancando uma olhada sobre essas seitas filosofico-reli-giosas, verifica-se que nao eram capazes nem de conceber um sistemafilosofico razoavelmente estruturado, nem de idealizar urn conjuntode doutrinase de praticas que pudesse merecer 0 nome de religiao.14

    Distorcem, rnisturam e confundem tudo. J udaismo cristianismo re-miniscencias das antigas escolas, tudo se amalga~a nas de1ir~ntescabecas de seus adeptos, sem esquecer, porem, de soltar as redeaspara toda li~hageri1 de c~rrupgao e obscenidade. Abundante campo~ferecem, pois, aqu~Ies .seculos a verdadeira filosofia para conjectu-Iar sobre 0 que teria sido do humano saber se 0 cristianismo naotivesse vindo iluminar 0 mundo com sua dout rinacelestial!

    POl' sua vez, a legislacao romana, apesar da justica e. eqiiidadenela entranhadas e do tino e sabedoria que deixa transparecer, e sebem que possa contar-se como urn dos mais preciosos esmaltes dacivilizacao antiga, nao constituia fator eficaz para prevenir a disso-11I(;ao d e que estava ameacada a sociedade. Esta nunca deveu -euasalvacao a juristas, porque obra de tamanha envergadura nao secircunscreve ao campo de influencia de legisladores e magistrados,Que sejam as leis tao perfeitas como se queira, que os tribunais seelev~m ao. mais esplendoroso grau de funcionamento, que os [uizesest~]am animados dos mats puros sentimentos e sejam guiados pelasmats retas luzes, de que servira tudo is so se 0 coracao da sociedadeestiver corrompid?, se os principios mora is tiverem perdido forca,se, os c_ostumes estiveremem perpetuo conflito com os ditames legals?A] estao os quadros que dos costumes romanos nos deixaram seusproprios historiadores - e veja-se se neles se encontram retratadosa eqiiidade, a [ustica, 0 bom senso que fizeram com que as leisromanas merecessem 0 honroso epiteto de "razao escrita".

    Como prova de imparcialidade, omito de proposito toda refe-rencia _as nodoas de que nao estava isento 0 Direito Romano, paraq~e nao se me assaque que procuro rebaixar tudo aquilo que naoseja obra do cristianismo. A proposito, porem, nao se pode deixarse m registro que na o e verdade que ao cris tia nis mo n ao cabe nenhumaparcela de credito pelo que de admiravel se encontra na legislacaoro~ana. E =;?o s o no perfodo dos imperadores cristaos (0 quecsta fora de duvida), mas tambem em epocas anteriores. E certoque algum tempo antes da vinda de Cristo .i a era consideravel 0mimero das leis romanase que seu estudoe ordenamento mereciama atencao dos homens mais ilustres. Sabemos por Suetonio (in Caesa.c. XLIV) que JUlio Cesar se propusera a utilissima tareja de reduzira poucos livros 0 que de mais essencial e necessario se encontravacsparramado na imensa abundancia de leis; pensamento semelhantehavia ocorrido a Cicero, que escreveu um livro sobre a metodologiade redacao do direito civil (De iure civili in arte redigendo), como

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    atesta Gelio (Noct. Alt., 1 . V', c. XXII); e segundo IllOS informsTacite (Ann., I. 3., c. XXVIII), esse trabalho tinha ocupado t ambemaaten

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    de animo que sao os Irutos preciosos do senti men to da propriadignidade e do arnor a independencia da patria. Se pelo menos Rornativesse conservado seus antigos costumes, se abrigasse em seu seioaqueles guerreiros tao celebres pela fama de suas vitorias como pelasimplicidade e austeridade de sua conduta, entao se poderia concebera esperanca de que se irradiasse para os povos vencidos algo dospredicados des vencedores, como urn coracao jovern e robusto reani-rna com seu vigor um corpo extenuado pelas mais rebeldes doencas.Mas desgracadarnente nao era assim: os Fabios, os Camilos, osCipioes nao teriam reconhecido sua indigna descendencia, e Roma,a senhora do mundo, jazia escrava sob as pes de verdadeiros mons-tros que ascendiam ao trona peIo suborno e pela violencia, macula-yam 0 cetro com sua corrupcao e crueldade,e terrninavam a vidanas maos 'de algum assassino. A autoridade do Senado e a do povotinham desaparecido: dela restavam apenas vaos simulacros, vestigiamorientis l ibertatis (vestigios da Iiberdade expirante), como os chamaTacita, e aquele povo-rei, que antes distribuia 0 imperio, os cetros,as Iegioes e tudo, agora ansiava tao somente por duas coisas: paoe circa. Panem et circenses (Iuvenal, Satyr., 10).Veio por fim a plenitude dos tempos. 0 cristianismo apareceue. sem proclarnar nenhuma alteracao nas formas politicas, sem aten-tar contra nenhum governo, sem imiscuir-seem nada que fossemundano e terrene, trouxe aos homens uma dupla saude, chamando-as ao caminho de uma felicidade eterna ao mesmo tempo que iadistribuindo a mancheias seja 0 i inico preventivo contra a dissolucaosocial, seja 0 germe de uma regeneracao lent a e pacifica, mas grande,imensa, duradoura, a prova dos transtornos dos seculos. E esse pre-ventivo contra a dissolucao social, e esse germe de inestimaveismelhoras, eram constituidos por um ensinamento elevado e puro,derramado sobre todos os homens, sem excecao de idades, de sexos,de condicoes sociais, como uma chuva benefica que cai em suavissi-rna torrente sobre uma campina murcha e seca.

    Nao ha religiao que se tenha igualado ao cristianismo, nem emconhecer 0 segredo de dirigir 0 homem, nem em desdobrar neSS3direcao uma conduta que seja testemunho mais solene do reconheci-mento da alta dignidade humana. Ocristianismo partiu sempre doprincipio de que 0 primeiro passe para apoderar-se do homem todoe apoderar-se do seuentendimento, de que, quando se trata ou deextirpar um mal au de: produzir urn bern, e necessario tomar PO!objetivo principal as ideias, desferindo dessa mane ira urn golpe

    mortal nos sistemas de violencia que tanto tern predominado ondequcr que ele nao esteja presente. Proelamando a verdade benefice eIccunda de que, quando se trata de dirigir as homens, 0 meio maisindigno e mais debil e 0 da forca, 0 cristianismo abriu para a huma-uidade um novo e venturoso porvir.Somente a partir do cristianismo se passou a encontrar catedrasda mais sublime filosofia abertas a toda hora,em todos os lugares,para todas as classes do povo. As mais altas verdades sobre Deus\' 0 homem ou as regras da moral mais pura jei nao se limitaram;1 ser comunieadas a um niimero seleto de discipulos, em licoes ocul-las e misteriosas. A sublime f i losofia do cristianismo foi mais intre-p id a , a tr av e u- se a dizer aos homens a verdade inteira e nua, e iS80\'111 publico, em alta voz, com aquela generosa ousadia que e com-panheira inseparavel da verdade.

    "0 que YOsdigo de noite dizei a luz do dia, e 0 que vosdigo110 ouvido apregoaide cima dos telhados." Assim Ialava Jesus a seusdiscipulos (M&t., X, 27).Logo que se defrontaram 0 cristianismo e 0 p ag an is mo , m o stro u-~c palpavel a superioridade do primeiro, nao so pelo conteiido dasdoutrinas como tambern pelo modo de propaga-las. Pode-se perceberdcsde logo que uma religiao cujo ensinamentoera tao sabio e taopuro, e que para difundi-lo se encaminhava sem rodeios, em linhadircta, ao entendimento e ao coracao , haveria de desalojar berndcpressa de seus usurpados dominies a outra religiao de imposturar de mentira. E, comefeito, que fazia 0 paganismo para 0 bern doshomens? Qual era seu ensinamento sobre as verdades marais? Quediques opunha a corrupcao de costumes? "No que se refere aosrstumes, diz a este proposito Santo Agostinho, como nao cuidaram"s deuses de que seus adoradores nao os possuissern em padroes tao.lcpravados? 0 verdadeiro Deus, a quem nfio adoravam, as repeliu," com razao, Mas as deuses, cujo culto esses homens ingratos se'1t1cixam de que hoje lhes seja proibido, esses deuses por que naoIIludaram seus adoradores com lei alguma para bern viver? Jei quet1:, homens cuidavam do culto, justo seria que os deuses nao se esque-,\':;~cm do cuidado com a vida e os costumes. Dir-se-a que ninguem" mau senao par sua vontade. Quem 0 nega? Mas era funcao dos.knses nao ocultar aos povos seus adoradores os preceitos da moral,, sirn prega-los as claras, insistir e repreender par meio dos yates". pecadores, ameacar publicamente de punicao os que agiam mal\ prometer premios aos que agiam bem. Nos templos dos deuses,

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    quando ressoou uma voz alta e vigorosa que se referisse a taistemas?" (De Civitate Dei, 1 . 2., c. IV).

    Traca em seguida 0 santo Doutor urn negro quadro das torpezase abominacoes que se cometiam nos espetaculos e jogos sagradoscelebrados em homenagem aos deuses, aos quais ele mesmo haviaassistido em sua juventude, eacrescenta: "Infere-se disto que naose preocupavam esses deuses com a vida e os costumes das cidadese nacoes que lhes rendiam culto, deixando que se entregassem amales tao horrendos e detestaveis, sem infligir danos nem sequer aseus campos e vinhedos, nem as suas casas e fazendas, nem ao corposujeito a mente, mas ao contra rio ate vpermltindo-lhes, a falta dequalquer proibicao imponente, que embriagassem de maldade a dire-tora do corpo, sua propria alma. E se alguem alegar que vedavamtais males, que apresente as provas. Ha quem se jacte de nao seique sussurros que soavam aos ouvidos de muito poucos, e nos quais,sob um veu misterioso, se ensinavam os preceitos de uma vidahonrada e pura: mas entao que se nos mostrem os lugares destinadosa semelhantes reunioes , nao os lugares onde os farsantes executavamos jogos com vozes e acoes obscenas, nao onde se celebravam festascom a mais desbragada Iieenciosidade, mas sim onde ouvissem ospovos os preceitos dos deuses sobre reprimir a cobica, moderar aambicao e refrear os prazeres; onde aprendessem esses infelizesaquela liyao que eom linguagem severa lhes ministrava Persio (Satyr.,3) quando dizia: Aprendei, 0 miseraveis, a conhecer as causas dascoisas, 0 que somos, para que nascemos, qual deve ser nossa conduta,quao incerto e 0 fim de nossa caminhada, qual e a razoavel tempe-ranca no amor ao dinheiro, qual sua utilidade verdadeira, qual anorma de nossa liberalidade para com nossos parentes e nossa patria,para onde vos chamou Deus equal e 0 lugar que ocupais entre oshomens. Esclareca-se em que lugares costumavam os deuses recitarsemelhantes preceitos para que pudessem ouvi-los com frequenciaos povos seus adoradores: mostrem-se esses lugares, assim como nosmostramos igrejas instituidas para esse fim onde quer que se tenhadifundido a religiao crista ." (De Civitate Dei, 1. 2., c. Vl).

    Essa religiao divina, profunda conhecedora do homem, naoolvidou jamais a fraqueza e inconstancia que 0 caracterizam, e paresse motivo teve sempre por invariavel regra de conduta inculcar-ihesem cessar, com incansavel persistencia, com paciencia inalteravel, assaudaveis verdades de que dependem seu bem-estar temporal e suafelicidade eterna. Em se tratando de verdades morais, 0 homem20

    t '~;qLlececom Iacilidade o que nao ressoa continuarnente a seus onvi-iIns e. mesmo quando as boas maximas se conservam em seu enten-.limento, elas correm 0 risco de permanecer como sementes estereis,

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    PRIMEIRA PARTE

    A Igreja nao {oi s o uma grande e fecundaescola, mas tambem urna associaeao regenera-dora. Objetivos que teve de preencher, Djfi-culdades que teve de veneer. A escravidao.Quem aboliu a escravidao. Opiniao de Guizot,Ntimero imenso de escravos, Com que tinose devia proceder na abolicao da escravatura,A abolicao repentina era impossivel, Impugna-se a opiniao de Guizot,

    Por maior que Fosse a importancia dada pela Igreja a propagacaoda verdade, e pormais convencida que estivesse de que, para dissipara informe rnassa de imoralidade e degradacao que se oferecia a suavista nos primeiros tempos, 0 cuidado prioritario devia orientar-seno sentido de subrneter 0 erro ao dissolvente fogo das doutrinasverdadeiras, nao se limitou a isso, mas sim, descendo ao terreno dosfatos e seguin do um sistema plena de sabedoria e prudencia, agiude maneira que a humanidade pudesse saborear a precioso frutoque ate nas coisas terrenas dao os ensinamentos de Cristo. A Igrejanao foi s6 Ul11aescola grande e feeunda, mas tambem uma associacaoregeneradora: m10 cspargiu suas doutrinas gerais arremessando-ascomo ao acaso ..na esperanca de que Irutificassem com 0 tempo, massim as desenvolveu em todas as suas implicacoes, aplicou-as a todosos objetos, procurou inocula-las nos costumes e nas leis e concretiza-las em instituicoes que servissem de silenciosa mas eloqiiente diretrizpara as geracoes vindouras,

    Via-se desconhecida a dignidade do homem, imperando por todaparte a escravidao: degradada a mulher, espezinhando-a a corrupcaode costumes e abatendo-a a tirania do varao: adulteradas as relaccesde familia, concedendo a lei ao pai faculdades que jamais lhe deraa natureza; desprezados os sentimentos de humanidade, 110 abandonoda infancia e no desamparo do pobre e do enfermo: levadas i!JO

    .n

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    mais alto graua barbaric e a crueldadc, no direito atroz que rcgulavaos procedimentos cia guerra; e, por fim, coroando 0 cdif'Icio social.a odiosa tirania, conremplando com depreciative desdern os infelizespovos que jaziam a seus pes atrelados a rmiltiplas correntes.

    Ante esse quadro, nao constituia ernpresa facil banir 0 erro.reformar e suavizar os costumes. abolir a escravidao. corrigir osvfcios da legislacao. moderar 0 poder e harmoniza-Io com as interes-ses piiblicos. dar nova vida ao individuo. reorganizar a familia e asociedade - e, nao obstante, tudo isso a Igreja fez.

    Tal e 0 caso da escravidao. Esta e uma materia que conventaprofundar, pols encerra uma das questoes que mais podem excitaracuriosidade cientffica e falar aos sentimentos do coracao. Quemaboliu entre os povos cristaos aescravidao? Foi a cristianismo? E foiele so, com suas ideias grandiosas sobre a dignidade do homem ,com suas maximas e espirito de fraternidade e caridade, e ademaiscom sua conduta prudente, suave e benefica? Sinto-me gratificadoper poder afirrnar que sim,

    J a nao se encontra quem ponhaern diivida que a Igreja Catolicateve uma poderosa influencia na abolicao da escravatura: e umaverda de dernasiado clara e que salta aos olhos com gritante evidenciapara que seja possivel contesta-Ia. Guizot, reconhecendo 0 empenhoe a eficacia com que trabalhou a Igreja para a melhoria do estadosocial, afirrna: ,. Ninguem ignora com quanta obstinacao combateuos gran-des vicios daquele tempo. a escravidao por exernplo." Masem continuacao, tal como se lhe incomodasse estabelecer sem nenhu-rna restricao urn fa to que necessariamente teria de carrear para aIgreja Catolica as simpatias de todaa humanidade, observa: "Milvezes se disse e repetiu que a abolicao da escravatura nos temposmodernos e devida inteiramente as maximas do cristianismo. Isso e ,a meu ver, um exagero: por longo tempo subsistiu a escravidao emmeio a sociedade crista sem que semelhante situacao a confundisseou irritasse muito." Esta errado Guizot ao querer provar que aabolicao da escravatura nao e devida exc1usivamente ao cristianismoja que tal ..estado subsistiu par muito tempo em meio a sociedadecrista. Se se quisesse proceder em boa Iogica seria necessario primeiroconsiderar se a abolicao repentina era possivel,e se 0 espirito deordem e de paz que anima a Igrjea podia permitir que se lancassenuma empreitada com a qual teria transtornado a mundo sem alcan-

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    eram vaos esses temores pois ja ha tempos vinham os escravos cau-sando consideraveis transtornos na I lema. Platao, em apoio ao con-selho acima citado, recorda que "os escravos repetidas vezes haviamdevastado a Italia com atos de pirataria e latrocinio"; e em temposmais recentes Espartaco, a testa de urn exercito de escravos, chegaraa constituir-se em verdadeiro terror para todo 0 pais. dando muitotrabalho a destacados genera is romanos.

    Tinha chegado a tais excessos a mimero de escravos em Romaque muitos donas os tinham a centenas. Quando foi assassinado aprefeito romano Pedanio Segundo. foram sentenciados a morte qua-trocentos escravos seus (Tacite, Ann., 1. 14). E Pudentila, mulherde Apuleu, tinha-os em tal abundancia que deu a seus filhos nadamenos do que quatrocentos deles, Esta materia chegou a constituirdemonstracao de luxe e, por forca da competicao social, os romanosesforcavam-se em se distinguir pelo mimero de seus escravos. Oue-riam que, ao ser-lhe feita a pergunta Quot pascit servos? (Ouantosescravos mantem"), segundo relata [uvenal (Satyr . 3, v. 140), pu-dessem ostenta-los em grande quanti dade. As coisas chegaram a talextremo que, segundo testemunha Plinio, 0 sequito de uma nobrefamilia mais se parecia ao desfile de urn exercito,

    Nao era somente na Grecia e em Roma que abundavam asescravos. Em Tiro, por exemplo, chegaram a sublevar-se contra seusdonas e, favorecidos por seu grande mimero, nao puderam serimpedidos de degolar todos eles. Passando a povos barbaros e pres-cindindo de outros mais conhecidos, refere Herodoto (1 . 3.) que,ao retornarem da Media, os citas defrontaram-se com os escravossublevados, que tinham tornado conta da situacao e banido seusdonos para fora da patria. E Cesar, em seus comentarios (De BelloGallico, 1. 6.), atesta quao numerosos cram as escravos na Galia

    Sendo tao vultoso em todas as partes 0 contingente de escravos,ja se v e que era de todo impossivel pregar sua libertacao sem lancaro mundo em conflagracao. 0 estado intelectual e moral dcsescra-vos tornava-os incapazes de desfrutar' de urn tal beneffcio em pro-veito proprio e da sociedade: e, em seu embrutecimento, aguilhoadospelo rancor e pelo desejo de vinganca nutridos em seus peitos como mau tratamento que lhes -era dispensado, teriam reproduzido emgrande escala as sangrentas cenas com que ja haviam deixado man-chadas em tempos anteriores as paginas da historia, E que teriaacontecido entao? Simplesmente que, ameacada por tao terrivelperigo, a sociedade se colocaria em guarda contra os principios26

    Iavorecedores da abolicao, passaria a observe-los com prevencao edesconfianca, e, longe de afrouxar as correntes dos escravos, asreforcaria com mais afinco e tenacidade. Daquela imensa massa dehomens embrutecidos e furibundos, era impossivel que, postos sempreparacao em liberdade e em movimento, brotasse uma organizacaosocial - porque esta nao se .improvisa, e muito menos com seme-lhantes elementos. E em tal caso, tendo-se de optar entre a escra-vatura e 0 aniquilamento da ordem social, 0 instinto de conservacaoque anima a sociedade, como a todos os seres, teria determinadoindubitavelmente a continuidade da escravidao onde ela ainda exis-tisse e 0 seu restabelecimento onde tivesse side abolida.

    Portanto, os que se queixam de que 0 cristianismo nao tenhaatuado mais rapidamente na abolicao da escravatura devem tomarconsciencia de que - mesmo supondo-se possivel uma emancipacaorepent ina ou muito rapidae mesmo prescindindo dos sangrentostranstornos que inexoravelmente rdai decorreriam - a propria forcadas coisas. erigindo obstaculos insuperaveis, teria inutilizado seme-lhante medida. Deixemos de Iado todas as consideracoes sociais epoliticas, fixando-nos unicamente nas economicas, De pronto serianecessario alterar todas as relacoes de propriedade; isto porque,figurando nela os escravos como uma parte principal, cult ivan doeles as terras, exercendo e1es as oficios manuais, estando, Dumapalavra, distribuido entre eles 0 que se chama trabalho, e estandofeita essa distribuicao no pressuposto da escravidao, e evidente que,ao se retirar abruptamente do sistema a sua base, se provocaria urndeslocamento tal que a mente nao consegue alcancar quais seriamsuas ultimas conseqiiencias,

    Se hoje, depois de dezoito seculos, retificadas as ideias, suavi-zados as costumes, melhoradas as leis, amestrados os povos e osgovernos, fund ados tantos estabelecimentos piiblicos para socorro daindigencia. ensaiados tantos sistemas para a boa distribuicao dotrabalho, repartidas de modo mais equitativo as riquezas, aindasubsistem tantas dificuldades para que urn mimero imenso de homensnao sucumba vitima de horrorosa miseria: se e este 0 mal terrivelque atormenta a sociedade e que pesa sobre seu futuro como urntragico pesadelo - que teria ocorrido no caso da emancipacao uni-versal no principio do cristianismo, quando os escravos nao eramreconhecidos juridicamente como pessoas mas sim como coisas,quando sua uniao conjugal nao era considerada como matrimonio,quando a pertenca dos frutos dessa uniao era estabelecida pelas

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    mesmas regras que se aplicavam aos animais, quando 0 infeliz es-cravoera malt rata d o, atormentado, vendido e ate morto con formeos caprichos de seu dono? Nao salta aos olhos que a cura paramales dessa magnitude tinha de ser obra de seculos?

    Se se tivessem feito insensatas tentativas, nao tardaria muito eas pr6prios escravosestariam protestando contra elas, reivindicandoumaescravatura que pelo menos Ihes assegurava pao e abrigo, edesprezando uma liberdade que punha em risco sua sobrevivencia.Pois essa e a ordem da natureza: 0 homem necessita antes de tudoter 0 indispensavel para viver, e se the faltam as meios de subsisten-cia nao the serve de consolo a pr6pria liberdade. Nao e precisorecorrer a exemplos de particulares que nos sao proporcionados emabundancia; em povos inteiros se viu a prova patente dessa verdade.Quando a miseria e excessiva, e diffcil que nao traga consigo 0aviltamento, sufocando os sentimentos mais generosos e desvirtuandoos encantos que exercem sobre nosso coracao as ideias de indepen-dencia e liberdade. "A plebe, afirma Cesar a proposito dos gauleses(De Bello Gallico, 1. 6.), esta quase na situacao de escravos, e desi mesma nao se atreve a nada, nem seu voto conta para nada: e hamuitos que, assoberbados de dividas e tributos, au oprimidos pelospodercsos, se entregam aos nob res em escravidao." Nos temposmodernos nao faltam tampouco exemplos analogos, porque e sabidoque entre os chineses abundam as escravos cuja escravatura nao temoutra origem senao que eles proprios ou seus pais nao se viramcapazes de prover sua subsistencia.

    Estas reflexoes, apoiadas em dados que ninguem pode conte star,p6emem evidencia a profunda sabedoria do cristianismo em proce-der com tanta circunspeccao na abolicao da escravidao. Fazendo tudoo que era possivelem favor da liberdade do homem, nao avancoumais rapidarnente nessa direcao porque nao podia isso ser feito semocasionar 0 malogro de toda a empresa, sem suscitar gravissimosobstaculos a desejada emancipacao. Eis aqui 0 resultado a queafinalvern dar sempre as criticas que se Ievantam contra algum procedi-mento da Igreja: se se examina 0 problema a luz da razao, se seestabelece ocompetente cotejo com as fatos, acaba-se por concIuirque 0 procedimento pelo qual e ela inculpada esta muito deacordocom 0 que dita a mais alta sabedoria e com 0 que aconselha a maisrefinada prudencia,o que pretende, pois, Guizot quando, depois de ter reconhecidoque 0 cristianismo trabalhou com afinco pela abolicao da escrava-28

    lura, Ihe Ianca na face 0 consentimento pela sua Ionga duracao?Com que Icgica pretende dai inferir que nao e verdade que sejadevido exclusivamente ao cristianismo esse imenso beneficio dis-pensado a humanidade? Durou seculos a escravatura em meio aocristianismo, e certo: mas durante esse periodo foi sendo continua-mente minorada, ate chegar a extincao total, e essa duracao foisomente a necessaria para que 0 beneficio visado se realizasse semviolencias, sem transtornos, e assegurando sua universalidade e suaperpetua conservacao, E desse tempo que durou, deve-se aindadeduzir uma parte consideravel, em razao dos tres primeiros seculos,nos quais a Igreja esteve quase sempre proscrita, olhada com aversaoe inteiramente privada da possibilidade de exercer influxo diretosobre a organizacao social. Deve-se tambem idescontar muito dosseculos posteriores, porque havia decorrido poueo tempo desde quea Igreja exercia sua influencia publica e direta, quando sobreveioa irrupcao dos barbaros do Norte, que, cornbinada com a dissolucaode que estava contaminado 0 Imperio e que 0 arrastaria a ruinacompleta, ocasionaria tal transtorno, uma mescIa tao informe delinguas, de uses, de costumes, de leis, que quase se tornava impossi-vel exercer 'com muito fruto uma acao social reguladora. Se emtempos mais proximos custou tanto trabalho extinguir 0 Ieudalismo:se depois de seculos ainda permanecem vivas muitas de suas maze-las; se 0 trafico de negros, apesar de circunscrito a deterrninadospaises e a peculiares circunstancias, continua resistindo ao grito uni-versal de reprovacao que contra tal infamia se levanta nos quatrocantos do mundo - como pode haver quem se atreva a manifestarestranheza e a inculpar ocristianismo pelo fato de a escravidao terdurado alguns seculos depois de proclamadas a fraternidade entretodos os hornens e sua igualdade perante Deus?

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    SEGUNDA PARTE

    A Igreja Catolica empregou, para a abolil;ioda escravatura, nao somente um sistema dedoutrinas, rnaximas e espirito de caridade,mas tambem um conjunto de meios praticos,Ponto de vista sob 0 qual se deve consideraresse Iato historico. Ideias erradas dos antigossobre a escravidao. Homero, Platao, Arist6-teles, 0 cristianismc se empenhou desde logoem combater esses erros. Doutrinas cristassobre as relaeoes entre escravos e senhores,Como a Igreja se dedicou a suavizar 0 trata-mento cruel que era dispensado aos escravos.

    Felizmente a Igreja Catolica foi mais sabia que os filosofos esoube proporcionar a humanidade 0 beneficio da emancipacao doscscravos, sem injusticas nem transtornos. Ela regenera as sociedades,("0 faz sem banhos de sangue. Vejamos, pais, qual foi sua condutaem relacao ao problema especifico de que ora nos ocupamos.

    Muito ja se enfatizou 0 espirito de amor e fraternidade queanima 0 cristianismo, e isso basta para que se admita que deve tersido grande a influencia que exerceu para que se Iograsse aquelercsultado, Mas talvez nao se tenha ainda esmiucado devidamente osmeios positivos, praticos, digamo-lo assim, de que lancou mao paraconseguir tal objetivo. Atraves da obscuridade dos seculos, em meioit tamanha complexidade e variedade de circunstancias, sera possiveldetectar alguns fates que sejam como que as pegadas indicadoras docaminho percorrido pela Igreja Cat6Iica para libertar uma imensaporcao da linhagem humana da escravidao sob a qual gemia? Serapossivel aduzir alga mais que os encomios gerais relativos a caridadecrista? Sera possivel assinalar urn plano, urn sistema, e provar suaexistencia e desenvolvimento apoiando-se nao simples mente em rna-nifestacoes particulates, em pensamentos altos, em sentimentos gene-

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    rosos, em ayoes isoladas de alguns homens ilustres, mas 8 1 m emfates ma r c a n te s e em documentos irrefutaveis que manifestem qualera 0 espirito e a tendencia do proprio corpo da Igreja? A rcspostaIS afirmativa e, como se vera, em abono dessa tese pode ser invocadoo que de mais convincente e decisivo poderia existir, a saber: os mo.numentos da Iegislacao eclesiastica,

    Antes de tudo, nao e fora de prop6sito ressaltar que, quandose trata de conduta, de designios, de tendencias da Igreja, nao enecessario presumir que esses moveis e esses movimentos estejam]presentes por inteiro na mente de qualquer individuo em particular,nem que todo 0 merito e efeito de semelhantes procedimentos fossemperfeitamente compreendidos por todos e cada urn dos que intervi-nham nessas acoes, Assim, pode-se dizer que nao e preciso suporque os primeiros cristaos estivessem conscientes de toda a Iorca la-tente no cristianismo relativamente a abolicao da escravatura. 0 queconvern deixar clare e que se obteve 0 resultado por conseqiienciadas doutrinas e da conduta da Igreja, Pois no seta do catolicismo,ernbora se prezem os meritos e a grandeza das pessoas pelo quevalem, quando se fala da Igreja desaparecem os individuos: os pen-samentose a vontade destes sao nada, porque 0 espirito que anima,que vivifica e que dirige a Igreja na o e 0 espfrito de nenhum hom em,mas sim 0 Espfri to do proprio Deus. Os que na o participam de nossafe Iancarao mao de outras explicacoes; mas estaremos todos concor-des pelo menos em que, vistos dessa maneira, sobrelevados aos pen-.samentos e vontades dos individuos, os acontecimentos revelam muitomelhor seu verdadeiro carater e nao se rompe, no estudo da historia,a cadeia continua dos sucessos, Diga-se que a conduta da Igreja foiinspirada e dirigida por Deus, ou prefira-se admitir que foi filha deurn "instinto", que foi 0 fruto do desenvolvimento de uma "tenden-cia" entranhada em suas doutrinas, empreguem-se estas ou aquelasexpressoes, Ialando-se como catolico ou como filosofo, nessa questaonao e precise deter-se agora, pois 0 que aqui importa e constatar queesse instinto foi generoso e bern orientado, que essa tendencia sedirigia a um grande objetivo, e que 0 alcancou,

    A primeira coisa que fez cristianismo com respeito aos escra-vos foi dissiparoserros que se opunham nao so a sua emancipaciiouniversal mas tambem a melhoria de suas condicoes de vida: istoquer dizer que a primeira forca que desencadeou no ataque Ioi, comode costume, a Iorca das ideias. Era esse primeiro passo tanto maisnecessario para curar 0 mal quanto com ele acontecia -como soi'3 2

    iI(untecer - estar vinculado a urn erro, que 0 gerava e fomentava.Nno s6 havia a opressao.a degradacao de uma grande parte da hu-ui.midade, como era muito acatada uma opiniao falsa que resultava('III humilhar ainda mais essa parte da humanidade. Os escravos,.lizia-se, constituiam uma ra ca vil, que na o conseguia sequer aproxi-mar- se do nivel da dos homens livres.: Era uma linhagem degradadapclo proprio Jupiter, marcada desde 0 nascedouro co~ :rm est.igmaiufamante destinada de antemao a esse estado de abjecao e vileza.Iioutrina perversa, sem duvida, desmentida pela natureza, pela his-roria e pela experiencia , mas que ne m por isso deixava de contarcorn destacados defensores, e que, para ultraje da humanidade erscandalo da razao, foi sendo proclamada por seculosa fio, ate que() cristianismo veio dissipa-la, tomando a seu cargo a afirmacao dosdireitos do homem.Homero nos diz (Odisseia, 17) que "Jupiter subtraiu aos escra-vos metade da mente". Em Plataoencontramos 0 rastro da mesmaloutrina pois se bern que pela boca de outrem (como costumaval .' dlazer), nao deixa de asseverar: "Diz-se que no ammo os escrav~sna o existe nada de sadio e integro,e que urn homem prudente naodeve fiar-se nessa casta de criaturas, coisa que atesta 0 rnais sabiode nossos poetas", citando em seguida a passagem de Homero acimalranscrita (Dial. 6., Das Leis). Mas onde se encontra, ~xposta es.sadoutrina com toda a sua [ugubridade e nudez e na Politica de Am-t6teles. Nao faltou quem quisesse defende-lo, mas em vao, porquesuas proprias palavras 0 condenam sem ~pe~a~ao. Expli,c~ndo, noprimeiro capitulo da referida obra, a c~.nSt1tUl

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    guem." Antes de rebateressa opiniao, explica as relacoes entre senhore escravo, valendo-se de comparacoes entre 0 artifice e seu instru-mento e entre a alma e 0 corpo, prosseguindo: "Se se comparammacho e femea, aquele e superior e por isso manda, esta e inferiore par isso obedece. 0 mesmo ocorre com todos os homens. Assim,aqueles que sao tao inferiores quanto 0 corpo 0 e em relacao aalma e quanto 0 bruto 0 e em relacao ao homem, e cujas faculdadesconsistem principalmente no usa de seu Fisico, sendo este uso amaior proveito que deles se podeextrair, estes sao escravos pornatureza." A primeira vista poderia parecer qu_e 0 filosofo estivessese referindo exclusivamente .aos mentecaptos,mas veremos em se-guida que nao eessa sua intencao, Mesmo porque, se estivesseIalando apenas dos idiotas, nada provaria contra a opiniao que sepropoe a impugnar pois, sendo 0 mimero destes tao reduzido, naoconstituem praticamente nada em comparacao com a generalidadedos homens. Ademais, se apenas aos nescios quisesse referir-se, deque valeria sua teoria, entao fundada unicamente sobre uma excecaomonstruosa e muito rara?

    Mas nao ha necessidade de se perder tempo em conjecturassobre 0 que teria realmente em mente 0 filosofo, Ele mesmo se en-carrega de esclarece-lo, revelando-nos ao mesmo tempo por que setinha valida de expressoes Hio fortes que ate pareciam subtrair aquestao de seu eixo. Segundo se propoe a demonstrar, cabe a natu-reza 0 expresso designio de produzir homens de duas categorias: unsnascidos para a liberdade, outros para a escravidao. 0 trecho edemasiado importante e curioso para que deixemos de transcreve-lo:"Bern aprouve a natureza procriar diferentes os corpos dos livres edos escravos, de modo que os destes sejam robustos e apropriadospara os usos necessaries, e os daqueles bern formados, iniiteis simpara trabalhos servis, mas adequados a vida civil, que consiste nomanejo dos negocios da guerra e da paz; mas muitas vezes ocorreo contrario, e a uns cabe corpo de escravo e a outros alma de livres.Nao ha diivida de que, se no corpo alguns se avantajassem tantocomo as imagens dos deuses, todo munda seria de opiniao que deve-riam servir-Ihes aqueles que nao tivessem alcancado tanta galhardia.Se isto e verdade Ialando do corpo, muito mais 0 e em se tratandoda alma, se bern que nfio e tao Iacil vera formosura desta quantaa daquele. Assim nao se pade duvidar de que ha alguns homensnascidos para a liberdade, enquanto ha outros nascidos para a es-cravidao - escravidao que, alem de ser iitil aos proprius escravos,34

    iambem justa." (Politica, 1. 2., c. Vl I).Miseravel filosofia que, para sustentar urn estado de coisas de-

    I'r:ldante , tinha de apelar para tamanhas cavilacoes, assacando contraII natureza a intencao de gerar diferentes castas, nascidas umas paratI .minar, outras para servir! Filosafia cruel, que assim procuravaromper 05 laces de fraternidade com que 0 Autar da natureza quisvincular toda a linhagem humana, que assim se empenhava em Ie -v.mtar uma barreira entre homem e hom em, que assim elacubravau-orias para sustentar uma desigualdade que nao aquela que resultaIIL'cessariamente de toda organizacao social, mas sim uma desigual-dade tao terrivel e aviltante quanta a da escravidao!

    Levanta entao a voz 0 cristianismo e, nas primeiras palavrasque pronuncia sobre os escravos, dec1ara-os iguais em dignidade denatureza aos demais homens; e iguais tambem na 'participacao nasf',ravas que 0 Espirito Santo vai derramar sobre a terra.E notavel 0cuidado com que insiste sabre este ponto 0 apostolo Sao Paulo; esta.Iaro que tinha sob a vista 'as degradantes diferencas que, por funestolvido da dignidade do homem, se queriam assinalar; por isso nunca'.l' esquece de inculcar a nulidade da diferenca entre 0 escravo e 0livre. "Fomos todos batizados num soespirito, para format ummcsmo corpo, judeus ou gentios, escravos au livres" (I Cor., XII,13). "Todos vos sois filhos de Deus pela fe em Jesus Cristo, poisrodos as que foram batizados em Cristo se revestiram de Cristo. Naohi judeu nem grego, nao ha servo nem livre, nao ha homem nemmulher. Todos vos sois urn so em Jesus Cristo" (Gal., III, 26-28) ...Onde nao ha gentio au judeu, circuncidado Oll incircuncidada, bar-haro ou cita, servo au livre, mas sim Cristo tudo em todos" (Colos.,ur, 11).Parece que 0 coracao se dilata ao ouvir serem proclamados emalta voz esses grandes principios de fraternidadce de santa igualda-de. Quando acabamos de ouvir os oraculos do paganismo ideandodoutrinas para abater ainda mais os desgracados escravos, pareceque despertamas de urn pesadelo angustiante enos defrontamos coma luz do dia, em meio a uma fagueira realidade. A imaginacao secornpraz em considerar tantos milhoes de homens que, curvados sobo peso da degradac;:aoe da ignominia, levantam seus olhas ao ceuc exalam urn suspiro de esperanca.Acontece com este ensinamento do cristianismo 0 que acontececom todas as doutrinas generosas e fecundas: penetram ate 0 cora-v ao da sociedade, ficam af deposit ad as como urn germe precioso e,

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    desenvoltas com 0 tempo, produzem urna aryoreenorme que abrigasob sua sornbra as Iamilias e as nacoes. S6 que, difundidas entrehomens, nao puderam tarnbem escapar de serem mal interpretadase de serem distorcidas, nao faltando quem tenha prctendido que aliberdade crista equivalia a proclamacao da liberdade universal.Ao ressoaraos ouvidos dos escravos as doces palavras do cristianis-mo, ao tomarem eles conhecimento de que se os proclamava Iilhosde Deus e irmaos de Jesus Cristo, ao verificarem que nao se Iaziadistincao alguma entre eles e seus amos, ncrn que Iossem estes osmais poderosos senhores da terra, nao e de estranhar que homer i sacostumados tao somente a s correntes, ao trabalho e a toda espcciede maus tratos e envilecimento exagerassem os principios dessa dou-trinanova e fizessem deja aplicacoes que nem cram em si justas nemtampoueo exeqiifveis,

    Sabemos pot Sao Jeronimo que muitos, ao ouvircm que cramchamados a liberdadccrista, pensaram que com esta se lhes iestavaeoncedendo a ruptura dos grilhoes da escravatura. E talvez fosse aesse erro que aludia 0 Apostolo quando, em sua primeira carta aTimoteo (VI, 1), dizia: "Todos os queestao sob 0 juga da escravidaohonrem com todo respeito seus donos para que 0 nome e a doutrinado Sen hor nao sejarn blasfemados." Tamanho ceo enccntrara esseerro que depois de Ires scculos ainda estava corrente, vendo-se obri-gado 0 Concilio de Gangra, celebrado par volta do ana 324, a exco-mungar os que. sob prctexto de picdade, cnsinavam que as escravosdeviam desligar-se de seus amos e rctirar-se de seu service. Nao "eraisso 0 qu e v ensin av a 0 cristianismo, rncsmo porque ficou ja bernevidenciado que nao v e r a esse 0 caminho que rcalmente permitiriachegar a emancipacao universal.

    Assim e que 0 mesmo Apostolo que ouvimos empregar a favordos escravos uma linguagcm tao gcnerosa Ihes inculca repetidasvezes a obediencia- a seus donos. Mas c notavcl que, enquanto curnpreesse dever impasto pelo espirito de paz e de justica que anima 0cristianisrno, explica de tal maneira as motives sobre as quais se hade fundal' a obediencia dos escravos, recorda com Hio sentidas evigorosas palavras as obrigacoes que pesam sobre os donos, e assentatao expressa e terminantemente a igualdade de rodos os homens anteDeus que transparece nitidamcnte quae intensa era sua compaixaopara com essa parte desgracada da humanidade e quae diferenteseram sobre esse particular suas ideiascompal'ativamentc a s do rnun-00 endurecido e: cego cevado pelo paganismo,36

    Abriga-se no intimo do homem urn scntimcnto de nobre inde-I'uldencia que nao lhe permite sujeitar-se a vontade de outro homem,it nao ser que lhesejam apresentadas justificativas Iegitirnas sobreas quais se ap6iam as pretensoes de man do. Se tais justificativasrsriverern bern fundadas e sobretudo scestiverem radicadas em altoshjetivos que 0 horn em ama e acata, a razao se convence, 0 coracaoSI: abranda e a vontade cede. Mas se 0 motive do mando e s6 aquerer de outro 'homem. se simplesmente se acham colocados facea face homem com hornem, entao fervem na mente os pensamentoslie igualdade, arde no coracao 0 sentimento de independencia, alronte se impoe altaneira e as paixoes rugern arneacadoramente. POl'isso, em se tratando de alcancar obediencia voluntaria e duradoura,mister se Iaz que quem manda se encubra, desapareca 0 hom em e sose veja 0 represcntante de urn poder superior ou a personificacaodos motives que transmitem ao siidito a justica e a utilidade dasubmissao: dessa maneira nao se obedece a vontadealheia pelo quecla e em si, mas sim porque representa urn poder superior ou e 0interprete da razao e da justica; entao quem deve obedecer naosente ultrajada sua dignidade e a obediencia se lhe afigura suave esuportavel,

    Bern e de vel' que nao cram dessa indole os titulos em que sefundava a obediencia dosescravos antes do cristianismo. Os costu-mes os equiparavam aos brutos e as leis vinham, se e que isso fossepossfvel, acentuara humilhacao, usando de uma linguagem que naose pode ler sem indignacao. 0 dono mandava porque tal era suavontade,e 0 escravo se via compelido a obedecer, nao par Iorca demotivos superiores nem de obrigacoes morais, mas sim porque erauma propriedade do seu senhor, era como urn cavalo, comandadopelo cabresto, como uma maquina que devia responder ao impulsedo manobrista. Que pede haver de surpreendente, pais, que aquelesinfelizes, carregados de infortiinio e de ignominia, abrigassem emseus peitos uma profunda e cone entrada magoa, uma virulenta ira,uma terrfvel sede de vinganca, prontas para explodir de forma es-pantosa na primeira oportunidade? A horrorosa degola em Tiro,exemplo e terror do universo, na expressao de J ustino; as repetidassublevacoes dos penestas em Tessalia e dos ilotas em Lacedemonia:as defeccoes em Atenas, como durante a guerra do Peloponeso: ainsurreicao comandada por Herdonio e 0 terror por ela semeadoentre todas as famfliasde Roma: os sangrcntos episodios propor-cionados pelas hastes de Espartaco e sua tenaz e desesperada re-

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    sistencia - que foram senao 0 resultado natural do sistema deviolencia, de ultraje e de desprezo com que se tratavarn os escravos?Tal e a natureza do homem que quem semeia ventoscolhe tern-pestades.

    Esta verdade nao escapouao cristianismo e, por isso mesmo,se pregou a obediencia, procurou funda-la em titulos divines: seresguardou os direitos dos senhores, tambem lhes ensinou comenlase suas obrigacoes: e assim, onde prevaleceram as doutrinascristas, puderam os escravos dizer: "Somes infelizes, e verdade; itdesgraca nos condenaram a nascimento,a pobreza ou os reveses daguerra; mas afinal somas reconhecidos como homens, como irmaos,e entre nos e nossos amos ha uma reciprocidade de obrigacoes e dedireitos." Oucamos, a proposito, 0 que ensinou 0 Apostolo: "Escra-vos, obedecei a vossos senhores tempora is com reverencia e solici-tude, na sinceridade do vosso coracao, como a Cristo, nao os servindoso quando sob suas vistas, apenas para agradar aos homens, mascomo servos de Cristo fazendo de coracao a vontade de Deus, ser-vindo-os com boa mente, como se servisseis a Senhor e nao ashomens, sabendo que cada urn recebera do Senhor a paga do bernque tiver feito, quer seja escravo ou livre. E vos, senhores, fazei 0mesmo com vossos escravos, pondo de parte as ameacas, sabendoque a Senhor, tanto deles como vossovesta nos ceus e nao faz acep-c;:aode pessoas" (Efes., VI, 5-9).

    Na carta aos colossenses (c. III) volta a proclamar a mesmadoutrina cia obediencia, fundando-a nos mesmos motivos; e comoque consolando os infelizes escravos lhes diz: "Do Senhor recebereisa heranca do ceu como recompensa. Servi, pois, a Cristo Senhor.E aquele que cometer injustica recebera segundo 0 que fez injusta-mente, pois nao ha acepcao de pessoas diante de Deus" (III, 24-23).E mais abaixo, dirigindo-se aos senhores, acrescenta: "Vos, senhores,tratai os vossos escravos com justica e eqiiidade, sabendo que tam-bern vos tendes urn Senhor no ceu" (IV, 1).

    Disseminadas doutrinas tao beneficas, ja se v e que teria demelhorar grandemente a condicao dos escravos, sendo 0 seu resul-tado mais imediato a moderacao daquele rigor tao excessivo, daquelacrueldade tao aguda que nos pareceriam incriveis se a respeito naodispusessemos de testemunhos irrecusaveis. Sabe-se que 0 dono tinhao direito de vida e de morte sobre os escravos e que abusava dessafaculdade ate 0 ponto de mata-Ios por simples capricho, como 0 fezQuintio Flaminio em meio de um Iestim, ou de lanca-los as moreias38

    upenas par terem involuntariamente quebrada urn vaso, como noepisodic que narra Vedic Poliao. E tamanha crueldade nao estavacircunscrita a algumas familiae que tivessem chefes especialmentescm entranhas, mas sim estava erigida 'em sistema - resultado fu-nesto mas inexoravel do extravio das ideias e do desvanecimentodos sentimentos de humanidade: regime violento e que s6 se podiasustentar mantendo continuamente as escravos sob mao de ferro;situacao que s6 se interrompia quando os oprimidos conseguiamprevalecer e lancar-se sobre seus opressores para faze-los em peda-cos, Dai a razao do antigo proverbio: "Tantos inimigos quantosescravos."Ja vimos as estragos que faziam esses homens furiosos e seden-tos de vinganca toda vez que podiam romper os grilhoes que asoprimiam. Mas nao lhes ficavam atras os senhores quando se tra-tava de inspirar-lhes temor. Em Lacedemonia, suspeitando-se urn diadas mas intencoes dos ilotas, foram estes reunidos proximo ao templode Jupiter e 'passados todos pelo cutelo (Tucidides, 1. 4.). E emRoma havia 0 barbaro costume de, sempre que fosse assassinadoalgum senhor, todos os seus escravos serem condenados a morte.Causa arrepios ler em Tacite (Ann., 1. 14, 43) a horrorosa cenaocorrida depois de ter sido assassinado por urn de seus escravos 0prefeito da cidade, Pedanio Segundo. Eram nada menos que qua-trocentos osescravos do defunto e, segundo a norma, deviam todosser levados ao suplicio, Essa perspectiva tao lastimavel e cruel dedar-se morte a tantos inocentes suscitou a compaixao do povo, quechegou ao extremo de amotinar-separa impedir tamanha carnificina.Perplexo, 0 Senado examinava a questao quando tomou a palavraum orador de nome Cassia, que sustentou com energia a necessidadede levar a cabo a execucao coletiva, nao s6 porque assim 0 prescreviao antigo costume, mas tambem porque era a unica maneira de pre-venir-se a animosidade dos escravos para com seus donos. Em suaspalavras so se Iazem ouvir a injustica e a tirania: ve perigos etraicoes por toda parte; nao sabe cogitar de outros preventivos quenao .a forca e 0 terror; e e particularmente notavel este trecho deseu arrazoado, porque em breve espaco retrata as ideias e costumesdos antigos sobre assunto: "Suspeita foi sempre para nossos maio-res a indole dos escravos, mesmo daqueles que, por terem nascidoem suas proprias possessoes e casas, poderiam desde 0 berco terengendrado afeicao peIos donos; ainda mais agora que dispomos deescravos de nacoes estrangeiras, com diferentes usos e nniltiplas re-

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    ngioes, 0 tinico .meio de conter essa canalha e 0 terror." No episodioem foco a crueldade acabou prevalecendo: reprimiu-se a ousadia dopovo, encheu-se de soldados caminho para 0 patfbulo, e os qua-trocentos desgracados foram executados.

    Suavizar esse tratamento cruel, banir essas horrendas atrocida-des, esse era 0 primeiro fruto que deveriam proporcionar as doutrinascristas, E pode-se assegurar que a Igreja jamais perdeu de vista esseimportante objetivo, procurando fazer com que a condicao dos es-cravos melhorasse cada vez 0mais possivel, que em materia de castigosse substituisse a crueldade pel a indulgencia, e que - 0 que era maisrelevante - a razao passasse a ocupar 0 Iugar do capricho, trocan-do-se a impetuosidade dos senhores pela serenidade dos tribunais.Com isso se iam aproximando os escravos aos livres, passando areger tambem em relacao aqueles nao 0 fato mas sim 0 direito.

    A Igreja nao esqueceu jamais a formosa lic;ao do Apostoloquando, escrevendo a Filemon, Intercedia por um escravo (e escravofugitivo!) chama do Onesimo, .usandode uma linguagem como nun-ea ate entao se ouvira em favor dessa classe de infelizes: "Rogo-tepelo meu filho Onesimo, ( ... ) 0 qual outrora te foi imitil ( ... ) eque tornei a te enviar. Recebe-o ( ... ) nao ja como um escravo mas,muito mais do que isso, como um irmao carfssimo, ( ... ) Se meamas, recebe-o como receberias a mim: se ele te causou aIgum danoou se te deve alguma coisa, debita tudo em minha conta" (Fil.,10-19). Nao, a Igreja nao esqueceu essa licao de fraternidade e deamor, e procurar suavizar a sorte dos escravos foi uma de suas ta-refas prediletas.

    OConcilio de Elvira, realizado em principios do seculo IV,sujeita a penitencia a mulher que tenha golpeado e ferido gravementesua escrava. 0 de Orleans, celebrado em 549, prescreve (din. 22)que, se se refugiar numa igreja algum escravo que tenha determi-nadas faltas, seja ele devolvido ao seu amo, mas exigindo-se previa-mente deste 0 juramento de que nao Ihe Iara nenhum mal; e casotal juramento seja quebrado e 0 escravo submetido a maus tratos,ao perjuro se aplique a pena de exclusao da comunhao e da mesados catolicos. Este canone evidencia duas coisas: a crueldade costu-meira dos senhores e zeloda Igreja em suavizar 0 trato dos escra-vos. Para por freio a crueldade em necessario exigir nada menosdo que um juramento, e a Igreja, de si muito prudente em materiade juramentos, considerava 0 assunto de irnportancia tal que se jus-tificava af 0 emprego do augusto nome de Deus.40

    o favore a protecao que a Igreia dispensava aos escravoscstendiam-se rapidamentee, ao que parece, introduziu-se em algunslugares 0 costume de exigir no juramento que 0 escravo refugiadouao s6 nao receberia danos pessoais, mas tambem que nao seriaonerado com trabalhos extraordinarios nem receberia qualquer mar-ca ou trace distintivo. Desse costume, procedente sem duvida do zelopelo bern da humanidade, mas que talvez tenha acarretado inconve-nientes ao afrouxar com demasiada rapidez os laces de obedienciac dar lugar a excessos por parte dos escravos, encontram-se indiciosnuma disposicao do Concflio de Epaona, celebrado por volta doano517, e na qual se procura. atalhar 0 mal prescrevendo uma prudentemoderacao, sem no entanto abrir mao da protecao estatuida. Emseu canone 39 ordena que, se umescravo reu de algum delito atrozse refugiar na igreja, somente seja ele isentado das penas corporals,nao se obrigando 0 dono a prestar juramento de que nao lhe imporatrabalho extraordinario ou nao the raspara os cabelos a fim de quesua condicao fique para todosevidente. Mas note-se bern que essalimitacao se aplicaria somente quando 0 escravo tivesse cometidodelito grave e, nessecaso, a faculdade que se deixa a criterio doamo e tao somentea de impor-Ihe trabalho extraordinario ou distin-gui-lo pela raspagem do cabelo.

    Talvez nao falte quem recrimine semelhante indulgencia, mase mister advertir que, quando os abusos sao grandes e arraigados,o empuxo para arranca-los tem de ser forte e, se bem que a prime iravista pareca ultrapassar os limites da prudencia, esse aparente ''ex-cesso nao e mais do que aque1a oscilacao que freqiientemente sofremas coisas antes de encontrar seu verdadeiro equilibrio. Aqui naotratava a Igreja de proteger 0 crime, nao reclamava clemencia paraquem nao a merecesse; 0 que tinha em vista era por cobro a vio-lencia e ao capricho dos senhores; nao podia consentir em que umhomem sofresse tormentos e ate morte so porque assim 0 queriaoutro homem. 0 estabelecimento de leis justas e a legitima aC;aodos tribunais sao coisas as quais jamais se opes a Igreja, mas coma violencia dos particulares nao pede concordar nunca.

    Desse espirito de oposicao ao exercicio da forca privada encon-tra-se uma mostra que vern muito a calhar no canone 15 do Conciliode Merida, celebrado no ana de 666. E sabido, e ja 0 -deixarnosconsign ado em outro ponto, que os escravos eram uma das partesprincipais da propriedade e que, estando regulamentada a distribui-yaO do trabalho de acordo com essa base, nao era possivel prescindir

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    de ter escravos a quem fosse dono de propriedades, sobretudo sealcancavam estas proporcoes consideraveis. A Igreja se achava nestecaso e, como naoestava em suas maos modificar repentinamente aorganizacao social, teve de acomodar-se aquela mecessidade e pos-sui-los tambem, Entao, se com respeito a des queria intrcduzir me-lhoras, born seria que comecasse dando eia mesma a exemplo; eesse exemplo se encontra nocanone conciliar ha pouco citado. Nele,depois de se proibir bispos e sacerdotes de castigar os serventes daigreja com mutilacoes, dispoe-se que, se eles cometeremaIgum delito,sejam entregues a jufzes seculares, mas reservando-se a autoridadeeclesiastica a Iaculdade de moderar as penas a que fossem condena-dos. E dig no de nota que, segundo se deduz desse canone, estavaainda em uso 0 direito de mutilacao aplicado pelo dono particular,e devia tal costume conservar-se ainda muito arraigado, ja que 0concilio se limita a veda-Io aos eclesiasticos e -nada diz com relacaoaos leigos.

    Nessa proibicao influfa sem duvidaa consideracao de que,mesmo derramando sangue humano, nac ee tinham tornado os ecle-siasticos incapazes de exercer aquele elevado ministerio cujo atoprincipal e 0 augusta sacrificio em que se oferece uma vitima depaz e de amor; mas isto em nada diminui 0 merito da decisao aurestringe sua Influencia na melhoria da sorte dos escravos: sempreera substituir a vindita particular pela punicao publica; era umanova proclamacao da igualdade dos escravoscom os livres, quandose tratava de efusao de sangue: era declarar que as maosque derra-massem a de urn escravo ficavam tao manchadas como se tivessemvertido 0 de urn homem livre. E se fazia necessario inculcar de todosas modos essas verdades salutares, ja que estavam em tao abertacontradicao com as ideias e os costumes antigos: impunha-se traba-lhar assiduamente para que desaparecessem as aberracoes vergonho-sas e crueis que mantinham a maior parte dos homens privados daparticipacao nos direitos humanos.

    No canone ha pouco citado ha uma circunstancia notavel queatesta a solicitude da Igreja em restituir aos escravos a dignidade econsideracao de que se achavam despojados, A raspagem dos cabelosera entre os godos uma pena muito degradante e que" segundo in-forma Lucas de Tuy, quase lhes era mais temivel que a morte. Mascompreenda-se que, qualquer que fosse a preocupacao com esseponto, podia a Igreja permitir a raspagem sem incorrer na ignorniniaem que implicava a derramamento de sangue. Mesmo assim, nao42

    quis faze-lo, porque procurava apagar qualquer marca de hurnilhacfioque se estampasse na fronte do escravo. E entao, depois de ter pres-crito aos bispos'e sacerdotes que entregassem ao juiz os servosculpados, dispoe que "nao tolerem que se lhes raspem as cabeloscom oprobio",

    Nenhum cuidado era demais nessa materia: era necessario apro-veitar todasas ocasioes Iavoraveis para conseguiralgum progressona extirpacao das odiosas aberracoes que afligiam as escravos. Essanecessidade se manifesta bern claramente no modo como se express ao XI Concflio de Toledo, celebrado no ano de 675. Em seu canone 6proibe aos bispos julgar casos de delitos dignos de morte, bern comode mandar aplicar a pena de mutilacao de membros. Mas veja-seque julgou necessaria advertir que nao admitia nenhuma excecao,"nem mesmo contra os servos de sua igreja", 0 mal era grave enao podia ser curado senao com solicitude permanente. Desse modo,ate em relacao ao direito mais cruel de todos, qual seja a de vidae morte, verifica-se como extirpa-lo exigia muito trabalho. Em prin-cfpios do seculo VI nao faltavam exemplos de excessos nessa mate-ria, tanto que a Concilio de Epaona, em seu canone 34, dispoe que"seja privado por dois anos da comunhao da Igreja 0 amo que, porsua propria autoridade, faca perder 3. vida seu escravo". J a iamosper rneados do seculo IX e ainda eram encontradicos atentadossemelhantes, que a Concilio de Worms, celebrado em 868, se proposreprimir, sujeitando a dais anos de penitencia a amo que, par suaautoridade privada, tivesse dado morte a seu escravo.

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    TEltCEIRA PARTE

    A Igreja defende com zelo a liberdade dosalforriados. Manumissio nas igrejas, Saudaveisefeitos desta pratiea. Reden~io de cativos. Zeloda Igreja em praticar e promover esta ulna.Preocupacao dos romanos a respeito desteponto. Influeneia que teve na abolil~io daescravatura 0 zelo da Igreja pela reden~odos cativos, A Igreja protege a liberdade desingenuos.

    Enquanto se suavizava 0 tratamento dos escravos e cram elesaproximados 0 quanta possivel dos homens livres, impunha-se naodescuidar da obra de emancipacao universal, pois nao bastava me-lhorar equele estado mas sim era preciso aboli-lo. A forca da dou-trio a crista, de per si, e 0 espirito de caridade que com ela se iadifundindo por toda a terra golpeavam tao vivarnente a escravaturaque, mais cedo au mais tarde, teria de sobrevir ,3 completa abollcaodesta, porque e impossfvel que a sociedade permaneca por longoperfodo numa ordem de coisas que esteja em contradicao com asideiasde que uma grande maioria de seus membros se ache imbuida,Segundo 0 cristianismo, todos os homens tern uma mesma origeme urn mesmo destino, todos sao irmaos em Jesus Cristo, todos estaoobrigados a .amar-se desde 0 intimo de seus coracoes, todos devemsocorrer-se mutuarnente nas necessidades, a todos c vedado ofender-se mesmo par palavras, todos sao iguais perante Deus e serao [ulga-dos sem acepcao de pessoas. Essas doutrinas se iam estendendo,arraigando em todas as partes, apoderando-se de todos os ramos dasociedade: como seria entao possivel que continuasse a res':::~av~dao.esse estado degradante em que 0 homem e propriedade de outre ,'em que e vendido como urn bruto, em que e privado dos doceslaces da familia, em que nao participa de nenhumda sociedade? Coisas tao antagonicas poderiam viver juntas?

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    As leis estavam a favor da escravatura e. na verdade, o cnsua-nismo nao deflagrou nenhum movimento de desobediencia direta aessas leis; mas em troca fez 0 que? Procurou apoderar-se das ideiase costumes, transmitiu-lhes urn novo impulso, deu-lhes uma direcaodiferente -e, feito isso, 0 que podem as leis? Viu-se entao afrou-xar-se seu rigor, ser progressivamente descuidada sua observancia,cornecar a ser questionada sua eqiiidade, proliferarem as discussoessobre sua conveniencia, agucar-se a consciencia de seus maus efeitos,e assim as antigas norm as Ioram caducando pouco a pouco, demaneira que as vezes nem se fez necessaria urn golpe frontal paraderruba-las: elas simplesmente foram pastas de lade e esquecidaspor se terem tornado imiteis. Ou, se mereceram 0 trabalho de umaabolicao expressa, isto foi feitopor mera Iormalidade: como urncadaver que se enterra com honrarias.

    Mas nao se infira dai que, par dar tanta importancia a s ideiase costumes cristaos, se tenha abandonado 0 exito da causa aos exclu-sivos efeitos dessa Iorca, sem que ao mesmo tempo cuidasse a Igrejade, conforme as circunstancias de epoca e lugar, tornar medidasconcretas conducentes ao objetivo visado. Nada disso. Conforme jafoi anteriormente referido, a Igreja lancou mao de varies meios, osmais apropriados em cada caso para surtir as resultados desejados,

    Se se queriaassegurar a efetividade da obra de emancipacao,era muito conveniente, em primeiro lugar, colocar a salvo de to doataque a liberdade dos escravos alforriados- liberdade essa queera com Ireqiiencia combatida e que se via gravemente iameacada.Oeste triste fen6meno nao e dificil encontrar ascausas nos rest-duos de ideias e costumes antigos, na ambicao dos poderosos, nosistema de violencia generalizada implantado com a irrupcao dosbarbaros, e na pobreza, desamparo e despreparo em que com cer-teza sc encontravam os infelizes recem-saidos da escravatura (porquee de supor que muitos deles nao conhecessem todo 0 valor da tiber-dade, nao se portassem sernpre no novo estado de acordo com 0que mandam a razao e a [ustica, e nao soubessem cumprir todas asobrigacoes decorrentes dos direitos de homem livre que tinhamacabado de recuperar au dos quais pela prime ira vez se tinham tor-nado possuidores). Mas fodos esses inconvenientes, inseparaveis danatureza das coisas; nao deveriam entravar a consumacao de umaobra reclamada pela religiao e pela humanidade, Era necessariaresignar-se a sofre-los, levando em conta que na parte de culpa quepudesse caber aos manumitidos havia muitos motives de eSCUS3,4 6

    I fporque 0 estado de que acabavam de sail' ernbargava 0 desenvolvi-menta de suas faculdades intelectuais e marais.

    Cuidou assim a Igreja de colocar a liberdade dos manurnitidosa coberto dosataques da injustica, vinculando a alforria a objetosque na epoca exerciam mais poderosa ascendencia sabre a conscien-cia coletiva e, de certa forma, revestindo de uma inviolabilidadesagradaa emancipacao. Dai 0 costume que se introduziu de reali-zar-se a manumissao no interior dos templos. Esse ato, ao mesmotempo que revogava e lancava no esquecimento antigos usos, vinhaconstituir-se numa declaracao tacita do quao vagradavel a Deus erait liberdade humana e correspondia a uma proclamacao pratica daigualdade de todos perante 0 Criador, Tanto assim que a emancipacaose executava no mesmo local onde com freqiienoia se Ham trechosdas Escrituras que falavam que perante Elc nao ha acepcao depessoas, onde desapareciarn todas as distincoes mundanas, ondeIicavam misturados todos os homens, unidos por suaves laces delraternidade c arnot. Efetuada desse modo a mauumissao, ficava aIgreja

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    manumitidos, nao sejam privados da protecao da mesma nao somenteeles mas tambem seus filhos: aqui se fala em geral, sem se limitaraos casas em que oinstrumento utilizado tenha sido testamento. 0mesmo se pode constatar em outro Concilio de Toledo celebrado noana de 633: ai se estabelece que a Igreja recebera sob sua protecaounicamente os emancipados por particulares que a ela os tenham re-comendado.

    Mesmo quando a manumissao nao tenha sido feita no templonem tenha havido recomendacao particular, a Igreja nao deixava detomar parte na defesa dos manumitidos quando via perigar sualiberdade. Quem preze em algo a dignidade do homem, quem abrigueno peito algum sentimento de humanidade seguramente nao levaraa mal que a Igreja se intrometesse nessa materia; nao the desagra-dara saber que 0 canone 29 do Concilio de Agde, no Languedoc,celebrado em 506, determinou que a Igreja, se necessario, tomassea defesa detodos aqueles aos quais seus amos tinham legitimamentedado a liberdade. . .

    Na grande obra de abolicao da escravatura efetivamente teverelevante participacao 0 zelo que, em todos os tempos e lugares, aIgreja despendeu pela redencao dos cativos. Considere-se a prop6-sito que uma parcela consideravel de escravos devia esta sorte aosreveses da guerra. Ai dos vencidosl, podia-se exclamar nos temposantigos. Para as derrotados nao havia alternativa alern da morte ouda escravidao. Agravava-se 0 mal com uma preocupacao Iunesta quese havia desenvolvido contra a redencacdos cativos - preocupacaoessa que se apoiava em vislumbres de assombroso herolsmo. Adrni-ravel e sem duvida a extraordinaria Iorca de animo de urn Regulo:arrepiam-se as cabelos quando se leem as vigorosas pinceladas comas quais 0 retrata Horacia (1 . 3., Odes 5); e 0 livro cai das maosquando se chega ao terrivel lance em que:

    Fertur pudicae coniugis osculumParvosque natos, ut capitis minor,A se removisse, et virilemTorvus humi possuisse vultum.

    Mas, sobrepondo-se a profunda impressao que nos causa tantoheroismo e ao entusiasmo que suscita em nosso peito tudo quantorevela uma grande. alma, nao podemos deixar de reconhecer queaquela virtude chegava a s raias da ferocidade e que, no terrivel dis-4 8

    i'tII'SO que brota des labios de Regula, esta consubstanciada umapolitica cruel, contra a qual se levantariam vigorosamente os senti .mentosrle humanidade, se nossa alma nao estivesse cativada e comoque subjugada pelo exemplo de sublime desprendimento do homemque Iala daquele modo.o cristianismo nao podia pactuar com semelhante doutrina:nao admitiu que se sustentasse 0 princlpio de que, para tornar oshomens valentes, era nccessario deixa-los sem esperanca: e os ad-miraveis lances de valor, as espantosas cenas de inalteravel IortalezaL~ constancia que iluminam paginas da hist6ria de nacoes modernassao um eloqiiente testemunho do acerto da religiao crista ao procla-rna: que a suavidade de costumes nao exclui 0 heroismo. Os antigososcilavam sempre entre xlois extrernos: a moleza ou a Ierocidade:entre esses extremes ha urn meio termo, que foi 0 que veio ensinaraos homens a religiao crista.

    Coerentemente, pois, com seus princfpios de fraternidade e deamor. 0 cristianisrno teve como um dos objetos mais dignos de seucaritativo zelo 0 resgate dos cativos. E quer contemplemos os for-moses lances de acoes particulares que nos conservou a historia, queratentemos para 0 espirito que dirigiu a conduta global da Igreja,cncontraremos um novo e belissimo motivo para que a humanidadetribute sua gratidao a religiao crista.

    Urn celebre escritor moderno, Chateaubriand, mostrou-nos, nomeio dos bosques dOB frances, urn sacerdoto que era eSCl'aVD, ecscravo voluntario, por ter-se cntregue a escravidao em resgate delim sold ado cristae que gemia no cativeiro e que havia deixado nodesconsolo e no abandono a esposa e tres filhos. 0 sublime espe-taculo que nos oferece Zacarias, sofrendo com serena calma acscravidao peIo amor de Jesus Cristo e daquele infcliz a quem tinhalibertado, nao ISuma mera ficcao do poeta. Nos primeiros seculos dalgreja, viram-se exemplos semelhantescm abundancia e quem por-ventura tenha chorado ao contemplar 0 heroico desprendimento deZacarias pode estar seguro de que, com suas lagrimas, pagou urntribute a verdade. "Conhecemos muitos dos nossos que sc entregaramdes mesmos ao cativeiro para resgatar outras pessoas ", conta-noso papa Sao Clemente (1 Ccr., LV).

    A redencao dos cativos era um objetivo tao privilegiado quecstava previsto por antiquissimos canones que, se para isso Iossenecessario, se vendessem os adornos das igrejas, ate seus vases sa.grades. Em se tratando dos infelizes cativos, a caridade nao tinha

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    Iimites, 0 zelo transpunha todas as barreiras, chegando-se mesmo aoponto de estatuir que, por mais avariada que estivesse uma igreja,antes de sua reparacao deveria atender-se a redencao dos cativos(Caus, 12, Quaest. 2). Em meio aos transtornos que consigo trouxea irrupcao dos barbaros, a Igreja, sempre eonstante em seu propo-sito, nacesrncreceu na generosa conduta encetada desde seus pri-mordios. Nao cairam em olvido nem em desuso os dispositivosbenefices dos antigos canones, e as generosas palavras do santobispo de Milao em favor dos cativos eontinuaram eneontrando umeeo que nao se interrompeu nem mesmo com 0 caos daqueles tempos(vide Santo Ambrosio, De Offie., 1. 2., c. XV). Pelo canone 5 doConcilio de Macon. celebrado em 585, constata-se que os sacerdotesse ocupavam do resgate de cativos, empregando para isso os benseclesiasticos. 0 Concilio de Reims, celebrado em 625, impoe a penade suspensao de suas funcoes ao bispo que se desfaca de vasossagrados, mas estabelece generosamente esta ressalva: "a nao serpelo motivo de redimir cativos", E muito tempo depois se encontraconsignado no canone 12 do Concilio de Verneuil, celebrado em 844,que os bens da Igreja tern a serventia de proporcionar a redencaode cativos.Restituido a liberdade 0 cativo, nao 0 deixava a Igreja semprotecao, mas sim a prolongava com solicitude, fornecendo-Ihecartas de recomendacao, certamente com 0 duplo objetivo de res-guarda-Io contra novas tropelias durante a via g em a terra natal e deensejar-lhe meios com que recuperar-se dos danos sofridos no cati-veiro, Deste tipo de protecao nos da testemunho 0 canone 2 doConcflio de Lyon, celebrado em 583, e no qual se dispoe que oshispos devem fazer constar das referidas cartas de recomendacao adata e 0 preco do resgate.

    De tal maneira se desenvolveu no seio da' Igreja 0 zelo pelaredencao dos cativos que se ichegaram a cometer imprudencias queas autoridades eclesiasticas tiveram de reprimir. Mas esses propriosexcessos atestam ate que ponto chegava aquele zelo, pois era aimpaciencia por resultados mais arnplos que gerava as extravios,Assim, sabemos por um concilio celebrado na Irlanda, chamado deSao Patricio e que se realizou entre os an05 451 e 456, que algunsclerigos se empenhavam em obter a liberdade de cativos ajudando-osa fugir - cornportamento esse que 0 concflio reprime com muitaprudencia, dispondo em seu canone 32 que os eclesiasticos devempromover a redencao de cativos por meio do pagamento do resgate50

    "III dinheiro, ja que sequestra-los para dar-lhes fuga redundava emque os saeerdotes fossem vistos como ladroes e a Igreja ficassedcsonrada. Documento notavel que, embcra nos manifeste 0 espirito,k ordem e eqiiidade que dirige a Igreja, nao deixa de ao mesmoumpo indicar-nos quae profundamente estava gravado nos animoscomo era santo, merit6rio e generoso dar liberdade aos cativos: tantoassim que alguns chegavam a persuadir-se de que a bondade da ohraautorizava 0 emprego da violencial

    E tambem muito louvavel 0 desprendimento da Igreja nessamateria: aplicando seus bens na rcdencao de um cativo, nao aceitavancnhum ressarcimento, mesmo quando 0 redimido viesse a reunircondicoes para faze-lo. Disto temos um claro testernunbo nas eartasdo papa Sao Gregorio, pelas quais se constata que, estando algumaspcssoas liberadas do cativciro com dinheiro da Igreja rcceosas deque com 0 passar do tempo se lhes viesse a pedir 0 reernbolso daquantia despendida, 0 santo pontifice exclui terminanternente essahipotese e manda que ninguem se atreva a molcstar ncm a elas nema seus herdeiros, em tempo algum, tendo em vista que os sagradoscanones permitem que os bens eclesiasticos sejam utilizados para arcdencao de eativos (1. 7., carta 14).6 zelo da Igreja par tao santa obra nao poderia deixar de con-tribuir significativamente para a diminuicao do numero de escravos,c sua influencia foi muito rnais benfazeja por ter-se exercidocabalmente nas epocas de maior necessidade, ou seja: quando, peladissolucao do Imperio Romano, pela irrupcao dos barharos, pelamobilidade dos povos (que Ioi 0 estado da Europa durante muitosseculcs) e pel a ferocidade dos invasores, cram tao Ireqiientes asguerras, tao repetidos os .transtornos c ta~ corriqueiro o r~inado daIorca por toda parte. Se nfio se tivesse feito prese.nt~ a. acao .cduea-dora e Iibertadora do cristianismo, longe de diminuir 0 imensoruimero de cscravos legados pela sociedade velha a sociedade nova,o que se teria e 0 sell continuo crescimento porque, ond~ quer queprevaleca 0 direito brutal cia forca, se nao se Ihe antepoe nenhumpoderoso elemento para conte-la e suaviza-Ia, a linhagem humanacaminha rapidamente para 0 envilecimento, com 0 que a escravaturainexoravelrnente ganha terrene.

    Esse Iamentavel estado de oscilacao e de violencia era por si somuito propicio para inutilizar os esforcos que com vistas a aboli?3oc ia e s cr a va t ur a fazia a Igreja, nao lhe custando pouco trabalho im -pedir que, enquantose dava um passo adiante aqui, ocorresse um

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    retrocesso acola. A falta de um poder central e a complicacao dasrelacoes sociais (poucas bem definidas, muitas violentas e todas semcarater de estabilidade) faziam com que estivessem inseguras as pro-priedadese as pessoas, e assim como eram invadidas aquelas, eramestas privadas de sua liberdade. De modo que era preciso evitar quenao produzisse agora a violencia de particulares aquila que antes erafruto dos costumes e das leis. Dai que 0 canone 3 do Concilio deLyon, celebrado par volta do ana 566, puna com a pena de excomu-nhao quem injustamente submeter a escrav