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1 | Página A HISTÓRIA COMO ACUMULAÇÃO DE ESCOMBROS: a crítica de Walter Benjamin ao Progresso Tauan de Almeida Sousa 1 Resumo: O presente texto apresenta a crítica feita por Walter Benjamin ao progresso. Partimos da leitura de suas teses Sobre o conceito de História, assim como de intérpretes do pensamento deste marxista herético. Walter Benjamin critica a forma de escrita da história que é atravessada uma concepção de tempo cronológico e linear, uma concepção, portanto, progressista da história. Rompendo com esta concepção, Benjamin propõe que a revolução não seria o coroamento do progresso inevitável da economia e da técnica, mas sim, a interrupção de uma marcha que poderia nos arrastar à catástrofe caso nada fosse feito. Nesta perspectiva, a história da humanidade não pode ser lida enquanto uma marcha inexorável em direção a consecutivas emancipações, mas sim enquanto um acúmulo de escombros: uma única catástrofe cujos despojos sempre cabem aos vencedores de cada turno. Interromper esse acúmulo, abandonando a confortável apatia otimista da ideia de um progresso inevitável, eis o chamado oferecido por Walter Benjamin. Ao fim do texto, apresentamos os elementos da crítica benjaminiana que podemos fazer uso nos enfrentamentos contemporâneos aos grandes projetos desenvolvimentistas. Palavras-chave: Walter Benjamin, História, Catástrofe, Redenção, Revolução. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão. Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente.

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A HISTÓRIA COMO ACUMULAÇÃO DE ESCOMBROS: a crítica de Walter

Benjamin ao Progresso

Tauan de Almeida Sousa1

Resumo: O presente texto apresenta a crítica feita por Walter Benjamin ao progresso.

Partimos da leitura de suas teses Sobre o conceito de História, assim como de

intérpretes do pensamento deste marxista herético. Walter Benjamin critica a forma de

escrita da história que é atravessada uma concepção de tempo cronológico e linear,

uma concepção, portanto, progressista da história. Rompendo com esta concepção,

Benjamin propõe que a revolução não seria o coroamento do progresso inevitável da

economia e da técnica, mas sim, a interrupção de uma marcha que poderia nos arrastar

à catástrofe caso nada fosse feito. Nesta perspectiva, a história da humanidade não

pode ser lida enquanto uma marcha inexorável em direção a consecutivas

emancipações, mas sim enquanto um acúmulo de escombros: uma única catástrofe

cujos despojos sempre cabem aos vencedores de cada turno. Interromper esse

acúmulo, abandonando a confortável apatia otimista da ideia de um progresso

inevitável, eis o chamado oferecido por Walter Benjamin. Ao fim do texto,

apresentamos os elementos da crítica benjaminiana que podemos fazer uso nos

enfrentamentos contemporâneos aos grandes projetos desenvolvimentistas.

Palavras-chave: Walter Benjamin, História, Catástrofe, Redenção, Revolução.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão. Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente.

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A HISTÓRIA COMO ACUMULAÇÃO DE ESCOMBROS: a crítica de Walter

Benjamin ao Progresso

Tauan de Almeida Sousa

Introdução

Pensamos ser oportuno, na abertura desta reflexão, salientar a dificuldade que se

apresenta em qualquer tentativa de classificação e enquadramento do pensamento

benjaminiano nas correntes teórico-filosóficas tradicionais (LÖWY, 2005), o qual, transitando

entre os mais diversos temas2, forma uma nova “compreensão da história humana” (LÖWY,

2005, p. 14). Em suma, o filósofo alemão é, a despeito de toda aparência de contradição que

possa emergir a partir do estremecimento dos limites colocados pelas classificações

acadêmicas mais corriqueiras e das certezas sagradas e sacramentadas, um “critico

revolucionário da filosofia do progresso, um adversário marxista do ‘progressismo’, um

nostálgico do passado que sonha com o futuro, um romântico partidário do materialismo”

(LÖWY, 2005, p. 14. Grifos nossos).

Em segundo lugar, e em intrínseca relação com esta dificuldade de classificá-lo nas

correntes tradicionais da Filosofia, salientamos também a impossibilidade de tomá-lo como

um pensador do que hoje se apresenta como a corrente pós-moderna3. De acordo com

Michael Löwy (2005) a crítica benjaminiana do projeto da Modernidade, da ideologia do

progresso, etc. – o que nos impossibilita de considerá-lo como um entusiasta acrítico da

Modernidade – encontra-se em um local consideravelmente distante das perspectivas pós-

modernas: seu pensamento é “uma crítica moderna à modernidade (capitalista/industrial),

inspirada em referências culturais e históricas pré-capitalistas” (LÖWY, 2005, p. 15). Como

aponta Leite (2013, p. 14), Benjamin, em sua crítica à Modernidade, não nos levaria a uma

leitura irracionalista, típica do ambiente pós-moderno, mas sim

compreenderia o caminho da racionalidade como o único potencialmente forte para adentrar o universo da modernidade capitalista que, segundo ele, renovaria as forças

2 Segundo Löwy (2005, p. 14) “arte, história, cultura, política, literatura e teologia são inseparáveis”.

3 Compreendendo aqui que em seu interior, ela abarca tendências muitas vezes distintas e até opostas entre si, seja no âmbito acadêmico ou das lutas sociais, ou seja: o que chamamos de pós-modernismo, ou pensamento pós-moderno, etc., não se trata de um bloco monolítico, ainda que existam linhas de encontro entre os diversos advogados desta forma de compreender o mundo contemporâneo (MARTINS, 2008; TONET, s.d, EAGLETON, 1998).

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contrárias à Razão e daria contornos a um espaço fantasmagórico, um espaço do mito.

Por fim, salientamos também o marxismo sui generis, herético, de Walter Benjamin. A

partir da leitura de História e Consciência de Classe, de Lukács, obra que lhe foi apresentada

pela comunista letoniana Asja Lacis, com a qual teve um conturbado relacionamento

(KONDER, 2003), Benjamin se aproxima do marxismo4. Segundo Konder (2003, p. 165),

desde tal contato inicial com o marxismo, “Benjamin se entusiasmou por uma linha de

interpretação do pensamento de Marx que divergia das versões doutrinárias adotadas tanto

pelo establishment social-democrático como pela direção [...] comunista”. Conforme

apresentam Löwy (2005) e Konder (1999), a leitura que Benjamin fez do marxismo foi

seletiva, envolvendo abandono de certas referências aos textos marxianos/engelsianos que

puderam alimentar as leituras de cunho positivista e evolucionista do marxismo vulgar, o qual

foi duramente atacado por Benjamin. Do marxismo, o que mais interessou a Walter Benjamin

foi a sua contribuição à prática revolucionária através de armas que poderiam ser fornecidas

na luta de classes, em detrimento de um corpus teórico hermético, uma espécie de escrito

religioso a ser infinitamente repetido por seus fiéis (KONDER, 2003). Interessava a centelha

da ação que emana da última tese marxiana (MARX, 2007) sobre Feuerbach: o imperativo de

transformar o mundo. Ao seu marxismo, Benjamin integrou elementos diversos, produzindo

um marxismo distinto de tudo o que havia até então (LÖWY, 2005).

Feitas estas brevíssimas colocações sobre Walter Benjamin, levantamos a questão que

norteará o texto agora proposto: o que podemos apreender desta perspectiva benjaminiana

para os enfrentamentos de agora? Ou, dito de outra forma, o que esta visão da História

enquanto um acúmulo de catástrofes pode nos apontar enquanto ferramentas para a luta?

Walter Benjamin: um marxista “herético”.

Walter Benjamin, conforme afirmado no inicio deste texto, é um autor de difícil

classificação. Os limites disciplinares clássicos não comportam a multiplicidade de temas e

objetos abordados por seu texto e reflexão. Neste artigo, o foco é direcionado à sua última

4 Segundo Konder (2003, p. 165): “Até hoje, não se sabe com certeza quais os textos de Marx e Engels que Benjamin leu com atenção e na íntegra. Seus escritos e sua correspondência, entretanto, deixam claro que, em meados dos anos 1920, ele leu História e consciência de classe, de Georg Lukács, e ficou indelevelmente marcado pelo livro”. No corpo das teses há referência direta à crítica do programa de Gotha (MARX, 2001).

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obra5, a saber, as teses Sobre o Conceito de História, um de seus primeiros trabalhos

traduzidos no Brasil (RACY, 2012), escrita pouco antes do seu suicídio ocorrido em 1940,

durante tentativa de fuga do certo nazista, e sob o duro impacto psicológico exercido sobre

Benjamim ocasionado pela assinatura do pacto Molotov-Ribbentrop6, o pacto de não agressão

assinado entre Alemanha e União Soviética (LÖWY, 2005; SILVA, 2012; RACY, 2012;

KONDER, 1999). Benjamin, nesta fase de sua vida um crítico do estalinismo7, tinha

esperanças de que – mesmo estas entremeadas por muitas reservas – o regime soviético

pudesse ser um aliado à luta contra o fascismo (LÖWY, 2005). O pacto e o sentimento de

desilusão por ele produzido no filósofo permearam, até mesmo motivaram, a escrita das

dezoito teses que são densas, enigmáticas, por muitas vezes hermeticamente impenetráveis

em todas as referências que carregam em seu bojo, assim como prenhes de desdobramentos

interpretativos e indicações para a prática. Assim sendo, tendo em vista tal caráter antes

anunciado das teses, além do fato de se tratar de um texto que cristaliza esforços de

aproximação ainda de cunho iniciáticos ao pensamento de Walter Benjamin, a contribuição de

Michael Löwy (2005), deixamos isto posto de antemão, para a reflexão aqui proposta, é de

grande, e mesmo evidente, importância.

O caráter herético que atribuímos ao marxismo benjaminiano explica-se, conforme

sugerido anteriormente, pelo posicionamento que Benjamin, no fim de sua vida, adotou em

relação ao socialismo dito real vigente na União Soviética e à socialdemocracia alemã. Era

um materialismo histórico “reinterpretado por Benjamin, em suas próprias palavras, trata-se

de uma versão heterodoxa, herética, idiossincrática, inclassificável” (LÖWY, 2005, p. 59). É

preciso lembrar, porém, que em seu trajeto intelectual, Benjamin operou mudanças em suas

convicções e pressupostos.

5 As teses não foram escritas visando a publicação: “Benjamin o deu ou enviou a alguns amigos muitos próximos – Hanna Arendt, Theodor W. Adorno – mas insistia [...] que não era o caso de publicá-lo” (LÖWY, 2005, p. 34).

6 “Após o VII Congresso da III Internacional (1935), foi definido o fascismo como o principal inimigo a ser combatido pelos comunistas. A URSS arquitetou uma política estratégica de combate aos fascistas através das Frentes Populares. Elas consistiram na aglutinação de diversos grupos de esquerda [...]. No entanto, a comunidade internacional de esquerda não esperava o que estava por vir. Em 1939, a URSS assinou um Pacto de Não agressão com a Alemanha nazista. [...] Aquilo era impensável para a militância de esquerda e constituiu uma traição [...]. Daí, a importância deste fato político para Walter Benjamin, ele que se sentiu também traído” (SILVA, 2012, p. 05).

7 Benjamin teve certa aproximação e, digamos, simpatia com relação à URSS, ainda que de forma complexa e não subserviente (LÖWY, 2005).

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Conforme já apresentado, o contato de Benjamin com o marxismo deu-se através de

Lukács, mais especificamente, sua obra História e Consciência de Classe8, em 1924. Segundo

Löwy (2005), entre 1933 e 1936, Benjamin parece ter-se aproximado – em certa medida – do

produtivismo soviético e de uma aceitação pouco crítica das promessas do progresso

tecnológico, algo que – indica o autor – a partir de 1936 conheceu uma mudança acentuada de

perspectiva9 e Benjamin passa a reintegrar “cada vez mais o momento romântico em sua

crítica sui generis das formas capitalistas da alienação” (LÖWY, 2005, p. 27).

Segundo Konder (2003), as leituras do pensamento marxiano/engelsiano que

prevaleceram no interior do marxismo foram, na socialdemocracia, a de considerá-lo

enquanto um sistema que, articulado através da citação de Marx e Engels, resguardado por

Kautsky, era envolvido por um ânimo evolucionista de leitura da História; no interior do

comunismo, o que se entronou enquanto o “verdadeiro” marxismo foi o chamado marxismo-

leninismo (que, além de Marx e Engels, teria Lênin enquanto fonte de citações), o qual seria a

fonte da direção política dos partidos comunistas. Em ambos os casos, o marxismo tornou-se

uma doutrina a ser preservada, antes de mais nada.

Ainda segundo Konder (2003, p. 167), estas formas de leitura do marxismo

negligenciavam tanto o caráter dialético do pensamento marxiano, quanto o conceito de

práxis10. Já Benjamin, por outro lado, “não dedicou nenhum dos seus escritos ao conceito de

práxis, [ainda que] o horizonte permanente do seu marxismo, mesmo que isso não tenha sido

explicitado, era o do conceito de práxis”.

8 Sobre este contato marcante, Löwy (2005, p. 22. Grifos do autor) aponta: “Esse texto mostra o aspecto do marxismo que mais interessa a Benjamin e que vai permitir que ele esclareça, por uma nova ótica, sua visão do processo histórico: a luta de classes. 9 “É sobretudo nos diferentes textos dos anos 1936-1940 que Benjamin desenvolverá sua visão da história, dissociando-se, de forma cada vez mais radical, das ‘ilusões do progresso’ hegemônicas no âmbito do pensamento de esquerda alemão e europeu” (LÖWY, 2005, p. 29).

10 Nas palavras de Konder (1999, p. 11): “A dimensão dialética da perspectiva de Marx se apagava diante das facilidades ideológicas propiciadas por um esquema rigidamente determinista. Dos revolucionários não se devia cobrar que fizessem a revolução, já que esta dependia do amadurecimento das contradições objetivas, do conflito entre as exigências do desenvolvimento das forças produtivas e a resistência das relações capitalistas de produção; aos revolucionários cabia apenas avaliar "cientificamente" a situação e tomar as medidas "cabíveis" para preparar a ação que se realizaria quando chegasse o ‘grande momento’”.

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É necessário escovar a História a contrapelo: o Anjo da História diante das catástrofes,

escombros, dos vencidos e a revolução enquanto rememoração e interrupção da

desgraça.

Um conceito importante nas teses benjaminianas é o de redenção, o qual faz referência

a uma redenção coletiva e prática no campo da história. Em sua segunda tese, há a

concepção de uma redenção “sobretudo enquanto rememoração histórica das vítimas do

passado” (LÖWY, 2005, p. 49). Vejamos as palavras de Benjamin (1994, p. 223. Grifos

nossos) em sua segunda tese:

O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. [...] Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.

Uma redenção que não se fecha com a contemplação envolta de piedade em relação

injustiças do passado e aos apelos que dele ecoam através das gerações, mas sim uma

redenção que deve ser completada com a reparação prática “do sofrimento, da desolação das

gerações vencidas, e a realização dos objetivos pelos quais lutaram e não conseguiram

alcançar” (LÖWY, 2005, p. 51), ou seja, o encontro marcado entre a nossa geração e as

precedentes. Benjamin aqui se refere à emancipação humana, ou seja, a emancipação dos

oprimidos no presente. Esta relação dialética entre passado e presente na concepção

benjaminiana, expressa através da ideia de redenção, se distancia de uma contemplação inerte

e resignada do passado e das dores ali perpetradas, mas sim nos direciona às disputas atuais

nas quais o presente, a nossa geração que, conseguindo fazer uso da frágil força referida pelo

filósofo11, deve reparar todo o sofrimento dos oprimidos de outrora; ou seja, na libertação dos

oprimidos de hoje, na perspectiva benjaminiana, se encontra a redenção dos vencidos de

todas as épocas. No passado, ele busca compreender o processo da luta de classes num

sentido de “uma luta até a morte entre opressores e oprimidos, exploradores e explorados,

dominantes e dominados” (LÖWY, 2005, p. 59). Como ele aponta na sexta tese, em relação a

tal perspectiva entre os oprimidos de hoje e os de outrora: “os mortos não estarão em

segurança se o inimigo vencer” (BENJAMIN, 1987, p. 224-225).

11

“Os lutadores do passado, aqueles que nos precederam na rebeldia, nos enviam sinais, que precisamos captar, para alimentarmos a débil força messiânica que nos foi concedida.” (KONDER, 2003, p. 170).

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Em sua perspectiva, “a história lhe parece uma sucessão de vitórias dos poderosos [...]:

pressupõe sempre um triunfo histórico no combate às classes subalternas” (LÖWY, 2005, p.

60). É na luta de classes que Benjamin fundamenta sua visão, considerando-a como “a luta até

a morte entre opressores e oprimidos, exploradores e explorados, dominantes e dominados”

(LÖWY, 2005, p. 59). A partir disto, Benjamin funda seu pensamento numa perspectiva que

busca compreender a História a partir daqueles que foram vencidos, ou seja, entende que em

vez de um acúmulo de conquistas rumo a mais liberdade, racionalidade – progresso – a

História carrega uma série de opressões e barbáries, uma série de catástrofes, esmagamentos e

derrotas.

Retomando o argumento da relação entre passado e presente na perspectiva

benjaminiana:

‘A verdade não nos escapará’ – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o Historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela [a verdadeira imagem do passado] (BENJAMIN, 1994, p. 224).

Conforme a interpretação de Löwy (2005), a sexta tese citada acima representa a

critica de Benjamin ao historiador que busca congelar em sua palavra o passado, ou, conforme

a sétima tese, conhecer o passado “como ele de fato foi” (BENJAMIN, 1994, p. 224). Esta

postura do historiador pretensamente neutro, o qual vê em sua retratação pretensamente

idônea e milimetricamente exata do passado apenas a coroação objetiva de um trabalho isento

de contaminações ideológicas12, é contraposta por Benjamin através de outra perspectiva

histórica, como vimos, ao escolher o ponto de vista dos vencidos, pois esta postura de

pretensa neutralidade representa um perigo: o de ser instrumentalizada em favor das classes

dominantes, dos vencedores. Conforme a sexta tese:

Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer aponderar-se dela. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1994, p. 224-225).

Na sétima tese, Benjamin afirma que esta historiografia que se pensa neutra tem uma

medular relação com os vencedores, o que acarreta desdobramentos práticos:

A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, [os] dominadores. Isso diz tudo ao materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão

12 Aqui podemos ampliar a crítica aos sociólogos, geógrafos e outros agentes pretensamente neutros que povoam o espaço acadêmico...

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prostrados no chão. [...] [O materialista histórico] Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, 1994, p. 225).

Walter Benjamin, tomando como fio condutor a perspectiva da luta de classes

anteriormente levantada, lança mão da imagem do cortejo daqueles que triunfam para ilustrar

sua perspectiva: para ele, existe um continuum histórico que liga as classes dominantes de

cada época em uma única opressão, uma única vitória de proporções inimagináveis. A partir

disto, e levando em conta sua escolha de uma perspectiva que toma como ânimo o ponto de

vista dos vencidos, a tarefa de escovar a história a contrapelo significa:

em primeiro lugar, a recusa em se juntar, de uma maneira ou de outra, ao cortejo triunfal que continua, ainda hoje, a marchar sobre daqueles que jazem por terra [...]. Trata-se de ir contra a corrente da versão oficial da história, opondo-lhe a tradição dos oprimidos. Desse ponto de vista, entende-se a continuidade histórica das classes dominantes como um único e enorme cortejo triunfal (LÖWY, 2005, p. 73-74).

Em sua forma de compreender a relação passado/presente, está a noção de que a

vitória das classes dominantes de hoje pressupõe a vitória dos dominantes de outros turnos.

Esta é a regra geral da qual fala a oitava tese:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. [...] Este [o fascismo] se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos nos séculos XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é nenhum assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção da qual emana semelhante assombro é insustentável (BENJAMIN, 1994, p. 226. Grifos nossos).

Benjamin tem uma postura crítica em relação ao progresso entendido como uma

marcha histórica a rumos inexoravelmente melhores13. Na supracitada tese, Benjamin está

fazendo referência especificamente ao contexto de então: a ascensão do fascismo. Conforme

Löwy (2005), Benjamin desfere críticas a uma forma de compreender o fascismo: aquela que

o define como um desvio anacrônico, pois é animada pela noção do progresso inalienável e

irresistível. Esta forma criticada pelo filósofo esteve presente também no âmbito da esquerda.

Karl Kausty, afirma Löwy (2005), em seus trabalhos dos anos 1920, ao debruçar-se sobre o

fenômeno do fascismo italiano, afirma que este seria apenas uma manifestação de extremo

anacronismo, uma fantasmagoria pré-moderna que apenas poderia encontrar bases de

sustentação em uma nação atrasada como a Itália, país semiagrário, à época, e que tal

13 Na décima terceira tese, Benjamin dá uma definição desta representação do progresso: “A teoria e, mais ainda, a prática da social democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, ideia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 229).

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fenômeno político jamais alcançaria uma “nação moderna e industrializada como a

Alemanha...” (KAUSTY apud LÖWY, 2005. p. 84). Conforme Mattick (1939):

Considerando que a democracia é a forma natural do capitalismo, Kautsky não viu no aparecimento e propagação do fascismo senão uma doença, um provisório acesso de demência, um fenômeno sem qualquer ligação com o capitalismo. Acreditava verdadeiramente que uma guerra para o restabelecimento da democracia permitiria ao capitalismo progredir de novo em direção ao seu termo lógico, a comunidade socialista. [...] Kautsky estava assim convencido de que o episódio fascista seria seguido de um retorno «à normalidade», a uma democracia abstrata, cada vez mais socialista, que aperfeiçoaria as reformas conseguidas durante a gloriosa época da participação dos socialistas no governo14.

Da mesma forma, o comunismo dito oficial considerava que o hitlerismo se constituía

enquanto algo efêmero (LÖWY, 2005). Assim sendo, esta forma de compreensão do fascismo

estava impedida de desvelar as ligações entre o fascismo e o capitalismo que, longe de serem

excludentes, mantiveram íntimas relações (KONDER, 2009). Benjamin pôde compreender a

modernidade do fascismo, pois o viu não como uma falha do processo mais amplo de eterna

acumulação de progresso, mas sim, como confirmação da regra de acumulação de escombros.

Aqueles foram brutalmente desmentidos pelo desenrolar dos fatos, não sem o alto preço do

sangue de incontáveis vidas perdidas. Para Benjamin, a modernidade do fascismo é evidente e

se relaciona de forma íntima com a sociedade industrial e capitalista. Daí sua critica àqueles

“[...] que se espantam com o fato de que o fascismo ‘ainda’ seja possível no século XX, cegos

pela ilusão de que o progresso científico, industrial e técnico seja incompatível com a barbárie

social e política”. (LÖWY, 2005. p. 85). Em outras palavras, o que Benjamin propõe é uma

visão de História que, livre das ilusões do curso inelutável do progresso, possa reconhecer

efetivamente o fascismo para enfrentá-lo, ao invés de considerá-lo como uma espécie de

fantasma a rondar, em suma: uma visão considere-o enquanto fenômeno que só fora possível

nas condições de desenvolvimento das forças produtivas e técnicas de então.

Benjamin morreu em 1940, não chegando a testemunhar o desenrolar das atrocidades

levadas a cabo pelo nazismo. Porém, suas palavras não poderiam ter sido mais acertadas. A

Solução Final da Questão Judaica (Endlösung der Judenfrage) demonstra o caráter moderno

da dominação e da barbárie nazista. Foi na estrutura burocrática moderna e através da

maquinaria de morte desenvolvida com o que havia de mais avançado cientificamente, que

milhões de vidas puderam ser ceifadas em curto espaço de tempo, de forma “eficiente”. Uma

14 Karl Kautsky: De Marx a Hitler. Disponível em: < https://www.marxists.org/portugues/mattick/1939/mes/kautsky.htm>. Acesso em: 15/11/2015.

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gestão moderna do caos não poderia ter ocorrido em outra época. As grotescas experiências

médicas de Mengele, as esterilizações em massa, a contabilização diária das milhões de

vítimas e dos resultados do macabro ritual diário de matança, o planejamento dos campos de

concentração, a engenharia das câmaras de gás e fornalhas nas quais corpos eram empilhados,

os conhecimentos químicos que permitiram a utilização dos gases mais precisos para matar,

além da pesada maquinaria de guerra utilizada pela Luftwaffe e a 7 ª Divisão Panzer, etc., são

apenas algumas das demonstrações da impossibilidade desta barbárie ter ocorrido em épocas

senão aquelas com tal desenvolvimento das forças produtivas e da técnica15, “senão no século

XX” (LÖWY, 2005, p. 85. Grifo do autor).

A nona tese cristaliza em uma alegoria tudo aquilo que foi exposto até agora sobre o

pensamento de Walter Benjamin e sua crítica ao progresso:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226. Grifos nossos).

Walter Benjamin compreende que a revolução é a interrupção da tempestade

catastrófica do progresso que tanto atrapalha os planos do apiedado anjo da história. Ele não a

vê como o resultado de um curso inelutável que arrastaria tudo e todos rumo à emancipação

humana, como o fizeram aqueles, por exemplo, que viram no fascismo uma aberração no

plácido curso do progresso sem fim. Longe de ser vista como um produto de processos

irresistíveis, ele a vê como uma ruptura. Inexiste, em Benjamin, a paciência imobilizadora da

espera por um amadurecimento das forças produtivas16 e pela situação revolucionária que,

inevitavelmente, levaria a humanidade ao comunismo. Afirma Benjamin (apud LÖWY, 2005,

p. 134): “A sociedade sem classes não é a meta final do progresso na história, mas, sim, sua

15 Apesar “de duas manifestações culturais ‘arcaicas, é uma manifestação patológica da modernidade industrial/capitalista, que se apoia nas grandes conquistas técnicas do século XX. O que, obviamente, não quer dizer que, para Benjamin, a modernidade não possa tomar outras formas, ou que o progresso técnico seja necessariamente nefasto” (LÖWY, 2005, p. 103).

16 Benjamin critica “o artigo de fé essencial do marxismo subserviente e reducionista, comum às duas correntes da esquerda: a acumulação quantitativa ao mesmo tempo das forças produtivas, das conquistas do movimento operário, do número de membros do partido, em um movimento de progresso linear, irresistível e ‘automático”. (LÖWY, 2005, p. 98).

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interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada”. Um otimismo deste tipo [que

considera a revolução enquanto desdobramento natural], que se apoia nesta ideologia do

progresso linear, não poderia ser coerente com as ameaças de sua época, pois o cerco nazista

estava prestes a engolfa-lo e as agruras de uma situação como esta foram um dos estímulos à

escrita das teses.

Aqui, como Löwy (2005) sugere, Benjamin destoa da afirmação

marxiana/engelsiana17 de que a queda da burguesia e consequente vitória do proletariado são

acontecimentos inevitáveis. Esta afirmação serve de alimento a certas críticas ao Materialismo

Histórico e Dialético, as quais afirmam que este método de apreensão do real possuiria um

suposto caráter teleológico. Conforme Dantas, por exemplo (s.d, p. 183):

A história tem um sentido e caminha para um fim determinado. A história tem um desenvolvimento necessário que encaminha a humanidade para o seu fim. Um fim que unificará a espécie humana. Esse fim seria o comunismo. A história marxista é uma antevisão do destino da humanidade. A teleologia supõe um tempo linear, irreversível e uma racionalidade que nos levaria a um aperfeiçoamento técnico e moral, através de uma dialética de necessidade e liberdade que culminaria com o triunfo desta última.

Todavia, esta crítica pode ser facilmente superada recorrendo-se ao próprio texto

marxiano/engelsiano:

o comunismo não é para nós um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atuais. As condições desse movimento [...] resultam dos pressupostos atualmente existentes (MARX; ENGELS, 2007, p. 38).

Conforme a citação que se propôs a levantar uma crítica à Marx, o comunismo

apareceria enquanto um fim que deveria ser instaurado, ou para o qual a realidade deveria se

direcionar, algo desmentido com a supracitada passagem do texto marxiano/engelsiano. Não

existe, desta forma, uma teleologia da história no pensamento marxiano, como por exemplo, a

presente na filosofia da História que mobilizou marxistas importantes da Segunda

17 Primeiro a afirmação de Marx e Engels (2001, p. 45. Grifos nossos), no Manifesto do Partido Comunista: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. Cumpre salientar que tal justificativa – numa obra como o Manifesto – pode ser relativizada pelo contexto no qual foi escrita, não representando, de tal forma, um caráter intrínseco do pensamento marxiano e engelsiano. Löwy (2005, p. 148) aponta: “a obra de Marx e Engels é atravessada por tensões irresolutas entre um certo fascínio pelo modelo científico-natural e uma conduta dialética-crítica entre a fé no amadurecimento orgânico e quase natural do processo social e a visão estratégica da ação revolucionária que apreende um momento excepcional”. Assim como Benjamin, Marx e Engels também promoveram diversas rupturas em seu pensamento. Löwy (2013, p.09), numa introdução à obra Luta de Classes na Rússia, um volume que reúne escritos de Marx e Engels do período de 1875 a 1894, afirma que estes escritos “significam uma ruptura profunda com qualquer interpretação unilinear, evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico”.

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Internacional, os quais acreditavam que “a revolução [seria] o resultado “natural” ou

“inevitável” do progresso econômico e técnico” (LÖWY, 2005, p. 23); ou ainda a perspectiva

que tinha como projeto político “propor que os trabalhadores esperassem calmamente pelo

desenvolvimento de tais condições [materiais para superação da sociabilidade capitalista]”

(IASI, 2008, p. 9). Como aponta Konder (1999, p. 103) esse marxismo de cunho evolucionista

e teleológico produzia a ideia de que:

Não era preciso se empenhar em nenhuma luta incerta, não era preciso tomar nenhuma iniciativa incomoda: tudo estava assegurado por um "progresso" que estava fazendo avançar a humanidade como um todo, de maneira mais ou menos homogênea, na direção de uma infinita perfectibilidade (se a heterogeneidade se manifestava, se um pais se atrasava, se uma classe sofria, tais tropeços logo seriam absorvidos pela tendência global). A humanidade era vista caminhando, no ritmo possível, no interior de um tempo vazio, artificialmente uniformizado.

Essa postura que tinha o progresso econômico e técnico como Demiurgo da sociedade

emancipada recebeu uma crítica incisiva na décima primeira tese:

O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas ideias econômicas. [...] Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Seu interesse [do marxismo vulgar] se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo (BENJAMIN, 1994, p. 227-228).

Ou ainda, nas palavras de Konder (2003, p. 169):

Se a história fosse um processo linear evolutivo, subordinado aos ditames de um tempo homogêneo e vazio, os sujeitos humanos não teriam como intervir nele. Nossos projetos seriam vãos, inócuos. Benjamin repelia o determinismo rígido e a resignação dele decorrente.

Se a revolução não é, para Benjamin, um resultado natural e incontornável do

progresso linear, do que se trata? Nas palavras do filósofo temos uma indicação: “antes que a

centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado” (BENJAMIN,

1987, p. 46). Ou, ainda segundo outra indicação benjaminiana:

Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os frios de emergência (BENJAMIN apud LÖWY, 2005, p. 93).

Assim sendo, Benjamin compreende a revolução enquanto a interrupção do acúmulo

de escombros que, a partir do ponto de vista dos vencidos, ele pôde perceber. Não mais o fim

do teleológico progresso, nem o resultado da morte natural do capitalismo, pois as “condições

históricas do século XX mostravam no capitalismo uma capacidade de resistência maior do

que Marx, genial pensador do século XIX, poderia imaginar” (KONDER, 2003, p. 168), mas

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sim o fim da tempestade odiosa que sopra contra o anjo da historia e lhe impede de reanimar

os mortos e desfazer a montanha sempre crescente de escombros. Em suma: se a regra geral é

o estado de exceção, o acúmulo de sofrimentos, opressões, escombros e violências que,

avançando através da história, cumulativamente, pesa sobre os ombros dos dominados desta

geração, a revolução enquanto redenção dos vencidos do passado e liberação dos dominados

do presente não pode ser nada além da destruição desta regra geral. A revolução é o fim da

tempestade do progresso, ato que permitiria ao anjo da história cumprir seu desejo de

reconstrução. Nas palavras de Horkheimer, profundamente influenciado por Walter Benjamin:

a emancipação no es una aceleración del progreso sino el salto que se sale del progreso18.

Em suma: a revolução é a realização prática de explosão deste continuum histórico ao qual

estamos aqui nos referindo (BENJAMIN, 1994).

Emerge do argumento benjaminiano um profundo pessimismo: incapaz de ver na

história um natural curso de libertações, se nada fosse feito, sem a revolução, caso a centelha

alcançasse a dinamite, apenas o pior poderia acontecer. Todavia, como aponta Löwy (2005,

p.24), este pessimismo não pode ser considerado como uma apatia inerte que nada poderia

fazer a não ser constatar o perigo iminente, mas sim como um pessimismo “ativo,

‘organizado’, prático, voltado inteiramente para o objetivo de impedir, por todos os meios

possíveis, o advento do pior” que é sempre possível, mas não inevitável. Se Benjamin não

acreditava na morte espontânea do capitalismo, na revolução enquanto resultado natural e

calculável do progresso, tampouco poderia sugerir que o fim catastrófico, apesar de regra

geral até ali, fosse impossível de ser evitado:

Não havia, portanto, nenhuma garantia possível para assegurar que as contradições objetivas do capitalismo, objetivamente, ao se agravarem, provocariam o colapso (Zusammenbruch) do “sistema”. Nenhuma dinâmica sócio-econômica “inexorável” faria por si mesma aquilo que os revolucionários eram desafiados a fazer: tomar as iniciativas políticas necessárias para liquidar o modo de produção inventado pela burguesia, substituindo-o por um novo modo de produção, compatível com as aspirações do movimento operário e, em última análise, com as aspirações da humanidade (KONDER, 2003, p. 168).

Destarte, Walter Benjamin vê a revolução como uma aposta. Neste sentido, a

socialdemocracia, assim como os partidos comunistas, foram alvos da critica mordaz de

Benjamin: “a posição que (...) ocupa no campo do marxismo em 1939-1940 é única, sem

precedentes e sem similares. Isolado, ele está muito à frente de sua época” (LÖWY, 2005, p.

99). Enquanto um marxista herético, Walter Benjamin não poupa de seu ímpeto iconoclasta e

18 Estado Autoritário. Disponível em: < http://www.bolivare.unam.mx/traducciones/Estado%20Autoritario.pdf>. Acesso em 15/11/2015.

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blasfemo – com tal crítica radical à modernidade e à ideologia do progresso, seu pessimismo

organizado – nem mesmo alguns pressupostos que poderiam ser extraídos de textos de Marx e

Engels19, mas nem por isso ele deve ser considerado como anticomunista, ou antimarxista20.

Poderíamos, no entanto, apenas nos arvorar da pergunta deixada por Konder (2003, p. 173):

“Não valeria mais a pena nós indagarmos: o que um marxista teria de mais importante a

aprender, a repensar, com a obra de Walter Benjamin?”.

Benjamin e nós: algumas considerações

Benjamin, este marxista peculiar, herético, à margem das correntes que se

apresentavam enquanto detentoras da única voz verdadeira para falar em nome de Marx,

deixou em suas teses Sobre o Conceito de História uma crítica ao progresso que buscamos,

neste texto, apresentar – ainda que de forma bastante iniciática. Nesta critica, Benjamin nos

coloca a tarefa de negar qualquer pretensão de neutralidade, pois esta postura só nos levaria a

nos identificarmos com os dominantes de nossos tempos. Ao invés disso, tomando o lado

daqueles que estão sob o julgo da opressão, exploração e tirania, nos convida a escovar a

história a contrapelo, a negar a passividade dos que se pretendem neutros, imaculados e livres

de toda sânie ideológica.

Criticar o progresso enquanto uma ideologia é deslegitimar uma concepção da história

que olvida os sofrimentos passados e presentes. Esta concepção, tomando a perspectiva dos

dominantes, dos vencedores, como sua, produz uma narrativa que afirma existir uma lógica

inelutável na história: o progresso sempre a rumos melhores. Esta concepção lançou

influência mesmo sobre a esquerda, a qual foi alvo das críticas benjaminianas. Nesta esquerda

defensora do progresso inevitável e unilateral, a revolução seria o coroamento deste

19 E realmente o foram por aqueles que ele classifica como profetas de um marxismo vulgar e, em última instância, o comunismo hegemônico e oficial que dogmatizou o impossível de ser sacralizado ao retirar a dialética do materialismo histórico.

20 Sobre isto, faço referência às palavras de Konder (2003, p. 171): “Michael Löwy ministrou durante um ano todo um curso dedicado às Teses sobre o conceito de História, de Benjamin, e observou que o nosso ensaísta tinha clareza a respeito de suas divergências com Marx, porém evitava manifestá-las e preferia criticar os expoentes dos marxismos do século XX, seus contemporâneos, porque estava convencido de que devia a Marx o essencial da sua perspectiva: a compreensão da práxis na luta de classes. Seu modo de ser marxista não exigia que ele se mantivesse preso ao que Marx pensara e escrevera, mas cobrava dele que retomasse os conceitos e os desenvolvesse no âmbito de uma continuação da luta, aprofundando e corrigindo a teoria em função das necessidades novas reveladas pela práxis”.

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progresso. Foi com esta perspectiva que tal esquerda viu o nazismo enquanto uma mera

fantasmagoria, o que para Benjamin foi um erro fatal no enfrentamento daquele inimigo.

Benjamin viu o nazismo não enquanto um anacronismo, um desvio do curso natural do

progresso das sociedades, mas sim enquanto parte integrante de um mesmo continuum

histórico: todos os sofrimentos, todas as opressões e dominações exercidas na história

constituem a mesma catástrofe que acumula escombros e corpos até os céus. Esta catástrofe

representa a imagem do cortejo dos vencedores de todas as épocas, os quais usaram os corpos

tombados enquanto elementos para sedimentar o seu triunfo. Vencedores do passado e

vencedores do presente estão neste mesmo cortejo; vencidos do passado e vencidos do

presente estão ligados pelo sofrimento da derrota. O comovido anjo da história, desejoso por

consertar este quadro terrível, é impedido por uma tempestade, a qual o filósofo alemão

denominou progresso. Para interromper esta tempestade: a revolução. Somente a prática

revolucionária dos homens poderia dar fim a este cortejo macabro dos vencedores. Encerrar

os sofrimentos da opressão, dominação e exploração de hoje é a redenção de todos aqueles

que tombaram vencidos no passado.

Hoje, a burguesia – se tomarmos o ponto de vista dos vencidos – encabeça este cortejo

assassino. Gostaríamos, nos momentos finais deste texto, de chamar a atenção para a

contribuição que a crítica benjaminiana do progresso pode oferecer à uma luta local, a saber, a

luta pela criação da Reserva Extrativista (RESEX) de Tauá Mirim. Os agentes interessados

em impedir a criação desta RESEX para que seus objetivos possam ser alcançados são

herdeiros de todos aqueles que, um dia, venceram. Em nome do progresso e do

desenvolvimento, oferecem a destruição da vida. Os homens e mulheres que resistem, por

outro lado, são herdeiros de todos os que foram vencidos através da história, este continuum

perverso referido no texto. A resistência a estas investidas poderosas do capital são pequenos

atos de tentativa de explosão deste continuum histórico, em alguma medida. Deslegitimar o

discurso desenvolvimentista/progressista que anima os ataques à vida é um ato, certamente de

alcance limitado, de escovação da história a contrapelo, de negação frontal a legitimar este

cortejo maldito. Pensamos, dessa forma, que a crítica benjaminiana ao progresso tem uma

atualidade que não pode ser ignorada, constituindo-se, desta forma, enquanto uma ferramenta

poderosa de enfrentamento no curso das lutas atuais.

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