salÁrios industriais, acumulaÇÃo de capital e …

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1 SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E EXPORTAÇÕES NA CHINA ESTHER MAJEROWICZ GOUVEIA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, do Instituto de Economia/ Núcleo de Estudos Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Economia Política Internacional. Orientador: Prof. Dr. Franklin Leon Peres Serrano RIO DE JANEIRO Fevereiro de 2012

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SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E

EXPORTAÇÕES NA CHINA

ESTHER MAJEROWICZ GOUVEIA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, do Instituto de Economia/ Núcleo de Estudos Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Economia Política Internacional.

Orientador: Prof. Dr. Franklin Leon Peres Serrano

RIO DE JANEIRO Fevereiro de 2012

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SALARIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E EXPORTAÇÕES NA CHINA

Esther Majerowicz Gouveia

Orientador: Prof. Dr. Franklin Leon Peres Serrano Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de Economia/ Núcleo de Estudos Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Economia Política Internacional, sob a orientação do Prof. Dr. Franklin Leon Peres Serrano

Aprovada por: _____________________________________________________ Presidente da Banca Prof. Dr. Franklin L. P. Serrano - Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Aguiar de Medeiros - Universidade Federal do Rio de Janeiro _________________________________________________ Prof. Dr. Nicholas Miller Trebat - IBMEC ________________________________________________ Prof. Dr. Maria Mello de Malta - Universidade Federal do Rio de Janeiro _______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Pinkusfeld Monteiro Bastos - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro Fevereiro de 2012

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FICHA CATALOGRÁFICA Majerowicz, Esther Salários Industriais, Acumulação de Capital e Exportações na China / Esther Majerowicz Gouveia– Rio de Janeiro: UFRJ/IE/NEI, 2012. 190f: 35mm Orientador: Prof. Dr. Franklin Leon Peres Serrano. Dissertação (Mestrado em Economia Política Internacional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, 2012. Referências Bibliográficas: f.184-190 1. Inserção internacional da China 2. Salários Industriais. 3.Acumulação de Capital. 4. Exportações. I. Serrano, Franklin (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional. III. Título

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Aos meus pais, Nidia e Américo

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo identificar se a inserção internacional da China como exportadora de produtos manufaturados baratos está se erodindo e terá que se reorientar em função de constrangimentos de ordem econômica, advindos tanto de um padrão de acumulação de capital insustentável, quanto de pressões estruturais altistas sobre os salários reais industriais. Discutimos as teses que atribuem à dependência na demanda externa e à baixa parcela do trabalho na renda nacional imperativos econômicos que redundariam na alteração da inserção da China na economia internacional, rejeitando-as. Analisamos a estrutura do emprego e dos salários, especialmente aqueles manufatureiros, e concluímos que, mesmo com o rápido crescimento dos salários e com a valorização do yuan frente ao dólar, a posição competitiva das exportações chinesas não foi qualitativamente alterada, continuando a alicerçar-se sobre os baixos salários industriais. No contexto da formulação de W. Arthur Lewis sobre o desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra, discutimos a possível natureza estrutural do rápido crescimento dos salários reais, nos últimos anos, e concluímos que os salários industriais chineses são determinados politicamente, de forma que não há possibilidade de prever sua trajetória futura por meio de uma análise meramente econômica. Por fim, advogamos que não existem constrangimentos econômicos que impeçam a China de seguir se inserindo na economia internacional como exportadora de manufaturas baratas.

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ABSTRACT

The present work aims to identify whether the Chinese international insertion as an exporter of cheap manufacturing products has been eroding and would need to be reoriented due to economic constraints related, on the one hand, to an unsustainable pattern of capital accumulation and, on the other hand, to structural upward pressure over real industrial wages. We discuss the theses which attribute to the dependence on external demand and to the low share of labor on national income economic constraints which would result in the alteration of China’s insertion in the global economy. We reject both theses. We analyze the structure of employment and wages, especially on manufacturing, concluding that, even in the presence of fast wage growth and taking into account the appreciation of the yuan, the competitive position of Chinese exports has not been qualitatively altered. It is still built upon the low wages of Chinese workers. In the context of W. Arthur Lewis’ formulation of the development with unlimited supply of labor, we discuss the possible structural nature of the fast industrial real wage growth over the last years. We conclude that Chinese industrial wages are politically determined. Thus, it follows that it is impossible to predict its future trajectory by a merely economic analysis. Finally, we advocate that there are no economic constraints that would halt the current international insertion of China as an exporter of cheap manufacturing products.

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AGRADECIMENTOS

A realização desta dissertação contou com o suporte de inúmeros familiares, amigos e

colegas de trabalho, de forma que seria impossível nomear todos eles. Gostaria, então, de deixar

meu agradecimento especial aos meus pais, Nidia Majerowicz e Américo Kerr, que sempre

estimularam e deram condições ao meu desenvolvimento intelectual, com a constante

preocupação de que dele não se afastasse a busca por justiça social. Aos meus avós Léa

Majerowicz e Szmul Majerowicz, que, com todo o carinho e dedicação, me acolheram e me

deram suporte ao longo de todos esses anos. Aos meus tios Gitel Bucaresky e Pedro Bucaresky,

que incontáveis vezes estiveram ao meu lado, apoiando minhas escolhas em momentos decisivos

da minha formação acadêmica e profissional. À minha tia Maria de Lourdes de Souza, que, com

todo o amor e zelo, esteve comigo ao longo dos anos mais importantes do meu desenvolvimento.

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Franklin Serrano, cujas conversas e solicitude

foram fundamentais para o desenvolvimento do presente trabalho. Ademais, seu espírito leve e

seu bom humor diário contribuíram de forma ímpar para dissipar as angústias que permearam o

processo de gestação e apresentação da presente dissertação.

Agradeço à FAPERJ, pelo apoio financeiro.

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Lista de Gráficos

Gráfico 1.1. – Parcela do trabalho na renda nacional – pp. 36

Gráfico 1.2. – Parcela do trabalho no setor industrial – pp. 37

Gráfico 1.3. – Distribuição funcional da renda – pp. 44

Gráfico 2.1 – Estrutura do emprego – pp. 75

Gráfico 2.2 – Evolução do emprego por áreas rurais e urbanas – pp. 76

Gráfico 2.3 – Estrutura do emprego rural – pp. 77

Gráfico 2.4 – Diferença entre o emprego no setor primário e o resíduo estatístico – pp. 79

Gráfico 2.5 – Estrutura do emprego urbano – pp. 86

Gráfico 2.6 – Emprego em unidades urbanas – pp.88

Gráfico 2.7 – Taxa de desemprego implícita e taxa de desemprego registrada – pp. 93

Gráfico 2.8 – Taxa anual de crescimento dos salários reais em unidades urbanas e pequenas

empresas privadas urbanas – pp. 97

Gráfico 2.9 – Salários reais anuais em unidades urbanas e em pequenas empresas urbanas –pp. 99

Gráfico 2.10 – Emprego manufatureiro – pp. 105

Gráfico 2.11 – Estimativas alternativas do emprego manufatureiro – pp. 109

Gráfico 2.12 – Componentes utilizados para a obtenção das quatro séries alternativas – pp. 111

Gráfico 2.13 – Emprego manufatureiro em unidades urbanas – pp. 113

Gráfico 2.14 – Custo de compensação por hora de acordo com diferentes suposições de horas

anuais trabalhadas – pp. 120

Gráfico 2.15 – Taxa de crescimento anual dos custos de compensação por hora, com o número de

horas trabalhadas ao ano fixo – pp. 121

Gráfico 2.16 – Custos de compensação anuais em unidades urbanas manufatureiras nas principais

regiões exportadoras – pp. 123

Gráfico 2.17 – Custos de compensação por hora em unidades urbanas manufatureiras nas

principais regiões exportadoras – pp. 124

Gráfico 2.18 – Crescimento do salário mensal médio dos migrantes rurais – pp. 128

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Lista de Tabelas

Tabela 1.1. – Parcela do trabalho no PIB e no PIB líquido impostos indiretos – pp.40

Tabela 1.2. – Comparação entre os ajustes dos dados oficiais da parcela do trabalho no PIB – pp.

41

Tabela 1.3. – Valor adicionado das exportações em relação ao PIB – pp. 55

Tabela 2.1. – Componentes necessários aos cálculos do emprego manufatureiro urbano nas séries

alternativas – pp. 106

Tabela 2.2. – Taxa anual de crescimento do emprego na manufatura urbana – pp. 114

Tabela 2.3. – Parcela dos trabalhadores manufatureiros captados pelas estatísticas anuais coberta

pelos dados salariais – pp. 125

Tabela 3.1 – Estimativas sobre o excedente de trabalho na agricultura – pp. 148

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Lista de Ilustrações

Ilustração 2.1 – Definição administrativa de áreas urbanas – pp. 68

Ilustração 2.1 – Diagrama conceitual da estrutura especial/administrativa de uma típica cidade

grande na China – pp. 70

Ilustração 2.3 – Composição da população flutuante – pp.73

Ilustração 2.4 – Desemprego urbano – pp. 92

Ilustração 2.5 – Salários por setor/ramo de atividade – pp. 101

Ilustração 2.6 – Estimativas dos custos de compensação por hora dos trabalhadores

manufatureiros entre 2002 e 2008 – pp. 118

Ilustração 2.7 – Razão entre custo do trabalho e produto total bruto a preços correntes – pp. 131

Ilustração 2.8 – Custos unitários do trabalho na China – pp. 131

Ilustração 2.9 – Produtividade, salários e RULC da China em relação aos seus parceiros

comerciais – pp. 134

Ilustração 3.1 - Expansão do setor capitalista – pp. 140

Ilustração 3.2 – Esquema para o cálculo estatístico do excedente de trabalho na agricultura – pp.

145

Ilustração 3.3 – Modelo estilizado de oferta e demanda por trabalho rural na China entre 1980 e

2010 – pp. 152

Ilustração 3.4 – Modelo conceitual do turning point de Lewis – pp. 153

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Abreviações

1. AEIC- Administração Estatal para a Indústria e para o Comércio

2. CSLY – China Labor Statistical Yearbook

3. CSY- China Statistical Yearbook

4. EUA- Estados Unidos da América

5. MOA- Ministry of Agriculture

6. MRHS – Ministério dos Recursos Humanos e da Seguridade Social

7. NBS – National Bureau of Statistics

8. PEA – População Economicamente Ativa

9. PIB- Produto Interno Bruto

10. TVEs- Township and Village Enterprises

11. OMC- Organização Mundial do Comércio

12. ONU: Organização das Nações Unidas

13. UNCTAD- United Nations Conference on Trade and Development

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SUMÁRIO- Salários Industriais, Acumulação de Capital e Exportações na China

Introdução................................................................................................................................12

Capítulo I- O recente ciclo de crescimento da economia chinesa.......................................16

1. O crescimento chinês: de 1978 a 2001.......................................................................17

1.1 Considerações a respeito das condições iniciais.......................................................17

1.2 Periodização.................................................................................................................21

1.2.1 A primeira década das reformas (1978-1988): crescimento balanceado liderado

pelo mercado interno ou crescimento limitado pela oferta?...................................23

1.2.2 Desaceleração puxada pelo investimento: 1988-1991..............................................28

1.2.3 Crescimento liderado pelo investimento: 1991-2001...............................................33

2. O impacto da transição para o capitalismo sobre a distribuição funcional da

renda............................................................................................................................45

3. O atual ciclo de crescimento da economia chinesa

3.1 A tese do crescimento liderado pelas exportações...................................................47

3.2 O investimento como propulsor do crescimento......................................................55

4. Sumário das conclusões..............................................................................................60

Capítulo II- A estrutura do emprego, os salários industriais e a competitividade das

exportações..............................................................................................................................62

1. Considerações iniciais..................................................................................................63

1.1. Definição de área urbana............................................................................................64

1.2. Definição de população urbana..................................................................................69

2. A estrutura do emprego..............................................................................................72

2.1. O emprego rural..........................................................................................................75

2.2. O emprego urbano......................................................................................................84

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3. A evolução dos salários urbanos.............................................................................93

4. O emprego industrial..............................................................................................101

5. Os salários industriais.............................................................................................112

5.1. Salários industriais nas principais regiões exportadoras....................................120

5.2. A evolução recente dos salários dos migrantes rurais.........................................124

6. Mudanças na competitividade das exportações chinesas....................................127

7. Conclusão.................................................................................................................133

Capítulo III: O turning point de Lewis...........................................................................136

1. O desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra.....................................137

2. Estudos aplicados sobre o turning point de Lewis à China...................................142

2.1. Lewisian turning point: contando os trabalhadores excedentes...........................142

2.2 Lewisian turning point: verificando o aumento dos salários reais.......................151

3. Críticas ao desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra e sua

aplicação à Chinha....................................................................................................155

3.1 Críticas gerais aos estudos acadêmicos selecionados..............................................155

3.2 Os dois setores da economia em Lewis e o relacionamento entre eles..................159

3.3 Críticas à formulação teórica do desenvolvimento com oferta ilimitada de

mão-de-obra de W. Arthur Lewis.........................................................................168

4. Considerações finais.....................................................................................................172

Conclusão...........................................................................................................................178

Referências Bibliográficas................................................................................................182

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Introdução

Atualmente, qualquer debate cujo objeto seja a economia mundial não pode se esquivar

de fazer menção ao caso chinês. A significativa e crescente parcela dos fluxos comerciais

internacionais na qual o país está envolvido é o dado mais evidente do papel protagônico que a

China vem exercendo na economia internacional. Seja inundando o mundo com produtos

manufaturados altamente competitivos, seja absorvendo imensas quantidades de matérias-primas

e energia, a economia chinesa é, hoje, um dos motores do crescimento da economia mundial.

O elevado crescimento da parcela do comércio internacional do país ocorreu no contexto

da transição para o capitalismo. Essa transição foi marcada pela liberação de enorme excedente

de trabalhadores da agricultura, baixos salários, grandes fluxos de investimento direto estrangeiro

e câmbio desvalorizado, de forma que, combinando-se, esses fatores forjaram a elevada

competitividade do país como exportador de manufaturas intensivas em trabalho. No início do

século XXI, todavia, a continuidade do papel da China como “fábrica do mundo” vem sendo

amplamente questionada na literatura acadêmica. Por um lado, muitos autores afirmam que o

crescimento econômico chinês vem sendo puxado pelas exportações e que, devido à dependência

do crescimento na demanda externa, o país não poderá continuar seguindo esse padrão se quiser

permanecer em sua trajetória de alto crescimento. Pelo outro, os baixos salários industriais dos

trabalhadores chineses, principais responsáveis pela competitividade internacional do país, são

apontados como a razão de uma inevitável crise de subconsumo que estará por vir, interrompendo

o crescimento do país. Assim, a China teria que reorientar sua estratégia de inserção

internacional, de forma a compatibilizá-la com um crescimento baseado no mercado interno,

atingido, especialmente, por meio de maiores salários e, portanto, maior consumo das famílias.

Se os baixos salários são vistos como um problema por parte da literatura acadêmica; uma

parcela considerável de autores afirma, pelo contrário, que é com a alta taxa de crescimento dos

salários industriais, experimentada nos anos 2000, que se deve preocupar. Em geral, esses últimos

associam a elevação dos salários com o esgotamento do enorme fluxo de trabalhadores

excedentes da agricultura em direção à indústria, referindo-se ao modelo de economia dual

proposto por W. Arthur Lewis (1954), no qual o deslocamento de mão-de-obra entre os setores

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15

propicia rápido crescimento econômico a salários reais constantes. Em Lewis (1954), com a

exaustão do excedente de mão-de-obra, os salários reais passam a crescer. Desta forma, grande

parte da academia identifica os aumentos observados nos salários industriais com o turning point

de Lewis, momento em que se exaure o estoque de trabalho excedente, conferindo um caráter

estrutural à elevação dos salários industriais na China. Nesse contexto, a competividade

internacional dos produtos manufaturados chineses iria erodir-se rapidamente, impelindo as

grandes empresas exportadoras a buscarem outros países nos quais a mão-de-obra seja mais

barata.

Na atualidade, a China apresenta-se como um duplo polo na economia mundial,

garantindo, por um lado, posições de baixo custo para as grandes empresas multinacionais, cujos

principais mercados são os EUA e a Europa, e, pelo outro, puxando o crescimento de diversos

países, especialmente, daqueles asiáticos, por meio de suas importações de máquinas e

equipamentos, indústrias de tecnologia, matérias-primas e energia (MEDEIROS, 2006). Tendo

em vista esse duplo papel, os prognósticos acima expostos implicam efeitos em ampla escala na

economia mundial. Se a trajetória de alto crescimento da China for interrompida em função de

uma crise de subconsumo gerada pelos baixos salários e/ou pela desaceleração do crescimento da

demanda mundial por produtos chineses, então o crescimento da economia mundial será

fortemente impactado não só pelo efeito direto da redução do crescimento na China, como pelo

seu efeito indireto através da redução de suas importações. Em contraste, se os salários industriais

estão em uma trajetória de rápido e persistente crescimento, dada a natureza estrutural do

processo que a subjaz, as posições de baixo custo das grandes empresas multinacionais serão

diretamente atingidas, erodindo as margens de lucro e impulsionando um novo movimento de

reconfiguração espacial do capital produtivo.

Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é identificar se a inserção internacional da

China como exportadora de produtos manufaturados baratos está se erodindo, seja em função de

um padrão de acumulação de capital insustentável, seja devido a pressões estruturais altistas

sobre os salários industriais. Responder essa questão é fundamental, visto que, caso a China perca

essa posição na economia internacional, poderemos assistir, em um curto espaço de tempo, a

outro processo radical de transformação na divisão internacional do trabalho, com o capital a

deslocar-se em busca de novas fronteiras para a exploração de trabalho barato. Por outro lado, se

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a China deixa de ser esse vasto espaço de superexploração e se o capital não encontra novos

redutos de trabalho barato, em escala suficiente, é possível que os salários industriais ao redor do

mundo também sofram pressões altistas emanadas da China, contribuindo para reverter a grande

ofensiva histórica, instaurada com o neoliberalismo, do capital sobre o trabalho em escala

mundial.

Para responder a essa questão, o presente trabalho se subdividirá em três capítulos. No

primeiro deles, será feita uma resenha crítica da literatura acadêmica a respeito da natureza do

recente ciclo de crescimento econômico da China, considerando, especialmente, o papel das

exportações e dos salários na sustentabilidade do atual padrão de crescimento. Antes disso,

todavia, faremos um panorama sobre o crescimento econômico chinês desde o início das

reformas econômicas, introduzidas por Deng Xiaoping, de forma a colocar o crescimento

econômico do país no contexto da transição para o capitalismo, no qual se forjou um padrão de

acumulação de capital tão vigoroso quanto concentrador de riqueza e renda. O objetivo do

capítulo será responder se o atual padrão de crescimento chinês empurra o país, necessariamente,

para uma reorientação de sua inserção internacional como forma de superar uma crise em vias de

concretizar-se ou para evitá-la. Nossa hipótese é a de que não há nenhum imperativo econômico

no padrão de acumulação chinês que exija uma reorientação de sua inserção externa por meio de

alterações na distribuição funcional da renda em benefício do trabalho. Essa reorientação pode

ocorrer por motivos políticos, mas não por uma inevitabilidade de ordem econômica.

A segunda questão à qual nos dirigiremos diz respeito ao rápido crescimento salarial

observado na última década e sua possível natureza estrutural. Caso confirme-se tal natureza,

seria a dinâmica do mercado de trabalho chinês a responsável por erodir o principal pilar da

inserção internacional do país como exportador de manufaturas baratas. Assim, o país seria

forçado a adotar uma nova estratégia de inserção internacional, ao passo que as grandes

multinacionais também. Desta forma, buscar-se-á, por meio de uma análise crítica, expor o

debate sobre a determinação dos salários industriais chineses e seu impacto na competitividade

das exportações do país, nos dois últimos capítulos. No segundo deles, dedicaremos nossa

atenção à analise das estatísticas sobre o emprego e sobre os salários na China, dando destaque

para os salários industriais e sua relação com a competitividade das exportações. Por fim, o

último capítulo terá como objetivo analisar o suposto caráter estrutural dos aumentos salariais na

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17

indústria chinesa, expondo a controvérsia a respeito da chegada do turning point de Lewis na

China. Como veremos, não existem nem indícios estatísticos incontestáveis de que o estoque de

trabalho excedente tenha se exaurido, nem determinações automáticas estabelecendo o nível e a

taxa de crescimento dos salários industriais. O que se procurará, por fim, é restabelecer os termos

em que a problemática do excedente de trabalho tem sido colocada por grande parte da literatura

acadêmica, de forma a demonstrar que a questão a ser pautada não é a de como fazer para liberar

mais braços da agricultura para o setor capitalista, mas, pelo contrário, de como manter grande

parcela dos camponeses nas áreas rurais.

Page 18: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

18

Capítulo I. O recente ciclo de crescimento da economia chinesa

Desde o período maoísta, passando pelas reformas econômicas, iniciadas por Deng

Xiaoping, o caminho trilhado pela economia chinesa foi aquele da realização de sua

industrialização. Nas últimas três décadas, esse processo concretizou-se por meio de uma

impressionante trajetória de alto crescimento sustentado, que alçou a China à condição de

segundo polo da economia mundial ao lado dos Estados Unidos, configurando uma nova divisão

internacional do trabalho.

Tendo em conta a peculiaridade de tal trajetória de crescimento, que se manteve a

despeito de inúmeros cenários recessivos do ponto de vista regional e global, forjou-se um

intenso debate sobre a natureza do alto crescimento chinês e sua sustentabilidade. Nesse sentido,

o presente capítulo tem por objetivo expor e posicionar-se em relação aos principais debates,

dentro do campo heterodoxo, sobre o caráter e os limites do atual ciclo de crescimento da

economia chinesa, bem como suas implicações para a estratégia de inserção da China na

economia internacional.

Com esse intuito, o capítulo será dividido em quatro outras seções além desta introdução.

A primeira delas busca descrever as principais características das etapas percorridas pela

economia chinesa desde a ascensão de Deng Xiaoping, em 1978, até a entrada da China na OMC

em 2001, situando-as no contexto da transição para o capitalismo. A segunda seção tratará do

impacto da transição sobre a distribuição funcional da renda, um dos principais fatores elencados

por parcela da literatura acadêmica para afirmar que o a trajetória de alto crescimento da

economia chinesa é insustentável. Na seção seguinte, discutiremos as interpretações a respeito do

atual ciclo de crescimento, iniciado em 2001, com especial destaque para as proposições que

destacam as exportações como o motor do crescimento econômico e a baixa parcela do trabalho

na renda nacional como entrave para a acumulação de capital. Por fim, a última seção será

dedicada às conclusões.

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1. O crescimento chinês: de 1978 a 2001

1.1 Considerações a respeito das condições iniciais

Antes de empreender a análise do período compreendido pelo início das reformas

promovidas Deng Xiaoping até a entrada da China na OMC, cabe fazer algumas considerações a

respeito das características estruturais e das condições iniciais sobre as quais foram realizadas as

reformas econômicas. Do ponto de vista estrutural, a principal característica da China, que

condiciona seu padrão de desenvolvimento possível, é a baixíssima proporção de recursos por

habitante. De acordo com Tiejun (2005):

“China is a country whose ratio of population to resources is extreme. In other

words, the relation between population and resources is very strained. The Chinese

population is 20 per cent of the world’s population, but its cultivated land is only 7 per

cent of the cultivated land in the world. Furthermore, China faces restrictions of water

resources. In the southern part of China there is more available water, but land is very

limited. In the northern areas there is more land, but water is limited.” (TIEJUN, 2005:

pp.54)

Tendo em vista essa restrição relativa de recursos, o único caminho possível para o

desenvolvimento do país foi perseguir a industrialização, resolvendo a escassez de recursos

através de importações pagas com a exportação de bens industriais. Desta forma, a China saiu de

uma condição semi-autárquica, durante o período maoísta, para constituir-se em um dos

principais países em termos de parcela do comércio internacional (MEDEIROS, 2008).

Entretanto, a busca pela industrialização do país não foi uma tarefa fácil. Uma vez que nas

primeiras etapas do processo industrializante a economia deve ser capaz de produzir e transferir

grandes quantidades de excedente da agricultura para a indústria, as condições de baixa

produtividade agrícola do país impuseram pesados custos à população chinesa. Se por um lado, o

período maoísta não conseguiu resolver o problema da baixa produtividade agrícola,

concentrando a ampla maioria da população chinesa no campo; por outro, ele logrou realizar a

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20

acumulação primitiva de capital e legou uma sociedade altamente igualitária, com uma ampla

estrutura de amparo social.

No que diz respeito à superação do problema da acumulação primitiva e ao processo de

industrialização, o legado maoísta foi bastante significativo, como observa Lo (2006):

“And it is also noted that the initial condition of China’s economic

transformation is not simply one of under-industrialization. As can be seen from the

figures in Table 2, in 1980, industrial value-added accounted for an astonishingly high

proportion of 49% of China’s GDP. This is lower than the Soviet Union (54%), but

higher than South Korea (40%), Brazil (44%) and India (24%) in the same year. The fact

that, despite starting with one of the highest industry-to-GDP ratios in the world, China

has been able to maintain very rapid industrial growth throughout the reform era, and

with it to absorb labour transfer from the rural-agricultural sector, clearly should not be

taken for granted.” (LO, 2006: pp.7)

Em que pesem os extraordinários avanços no processo de industrialização e a existência

de pleno emprego, em sua tentativa de construir uma sociedade mais equitativa, Mao não

conseguiu solucionar a desigualdade rural-urbana e recorreu a uma severa política de controle

migratório de forma a impedir o fluxo de camponeses para as urbes. Grande parte da literatura

considera que, em realidade, a desigualdade entre o campo e a cidade, bem como sua reprodução

por meio do sistema de registro de moradia, foram peças cruciais da estratégia de industrialização

pesada de Mao baseada na experiência soviética. O sistema de registro de moradia, hukou,

diferentemente de outros países e da própria China no período pré-maoísta, serve de maneira

secundária para auferir estatisticamente a distribuição da população entre domicílios urbanos e

rurais. A função primordial do sistema de hukou é controlar tal distribuição, apresentando-se

como uma das principais instituições de controle social à disposição do Estado chinês (CHAN &

ZHANG, 1999). Em linhas gerais, esse sistema opera por meio do registro dos indivíduos em

uma única localidade de residência, que é herdada da mãe pelos filhos no momento do

nascimento. As categorias nas quais a população é classificada, a saber, urbana/rural (definida

pela localidade de residência) e agrícola/não agrícola, definem a elegibilidade dos indivíduos às

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diversas atividades econômicas em dada localidade e o acesso que lhes cabe à estrutura de bem-

estar social (CHAN & ZHANG, 1999). Ademais, o registro por localidade era fundamental para

a determinação da quantidade de alimentos cabível a cada cidadão, no sistema de racionamento

por cotas adotado no período maoísta. No que se refere ao tipo agrícola/não agrícola de hukou, a

diferenciação atrela-se à posse de direitos a subsídios estatais, especialmente em relação à

compra de grãos, bem como outras prerrogativas concedidas àqueles com registro não agrícola.

Nesse contexto, o Estado passa a controlar a migração formal rural-urbana por meio de um duplo

processo de conversão do hukou, que deve contemplar a mudança de localidade e a troca do

status de agrícola para não agrícola, para que o migrante se torne um residente urbano com posse

de plenos direitos. De acordo com Chan e Zhang (1999), é nessa última etapa que recaí o pesado

controle estatal, estipulando políticas e cotas para determinar não só aqueles elegíveis à migração

formal, como também a quantidade permitida.

De acordo com Chan e Zhang (1999), não foi o sistema de registro de moradia em si

mesmo que garantiu o bloqueio da migração do campo para a cidade, mas sua operação em um

contexto econômico e político específico no qual a burocracia estatal controlava estritamente as

atividades econômicas, fato que se traduzia em múltiplas camadas de controle impedindo o

deslocamento populacional. Nesse sentido, os autores apontam para a dificuldade de

sobrevivência daqueles que tentassem a migração não formal para as cidades, devido à ausência

de subsídios para a compra de alimentos, à quase total impraticabilidade de conseguir emprego

por fora dos canais estatais e aos diversos mecanismos de vigilância, especialmente nas unidades

de trabalho (danwei). Destarte, a migração não formal para as cidades era insignificante, mas não

devido à repressão policial e sim ao conjunto de instituições sociais que operavam de forma

complementar durante o período maoísta. O controle da migração rural-urbana associado à

política urbana de emprego vitalício, de subsídios e de serviços públicos gratuitos (e superiores

aos oferecidos no campo) garantiram, por um lado, elevada homogeneidade social nas cidades e,

por outro, um enorme abismo nas condições de vida entre o campo e a cidade.

Nesse contexto, a implementação das reformas econômicas a partir de 1978, ao atacar

muitas das instituições sociais que operavam conjuntamente com o hukou e ao possibilitar a

elevação da produtividade agrícola, impactou profundamente o fluxo de migração não formal do

campo para as cidades, deixando de ser um fluxo desprezível, como ocorria durante o período

Page 22: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

22

maoísta, para se tornar o maior deslocamento populacional da história da humanidade. De acordo

com Marx: “The constant movement towards the towns presupposes, in the countryside itself, a

constant latent surplus population, the extent of which only becomes evident at those exceptional

times when its distribution channels are wide open.” (MARX, 1867 apud FOSTER,

MCCHESNEY e JONNA, 2011). O advento das reformas econômicas forneceu esses dois

elementos necessários para o grande fluxo migratório rural-urbano na China, por um lado, criou

um vasto reservatório de trabalho excedente na agricultura, com o aumento da produtividade

agrícola, e, pelo outro, abriu os canais de escoamento populacional, possibilitando o

deslocamento.

Todavia, é preciso notar que a abertura desses canais não ocorreu por meio da abolição do

hukou, mas pelo seu relativo relaxamento e, principalmente, pela transformação do contexto em

que ele operava. A permanência da instituição do hukou foi ressignificada pelo emergente

contexto social e econômico, adquirindo nova funcionalidade para o processo de industrialização

chinês. De mecanismo de controle dos fluxos migratórios de facto, viabilizando a alocação do

trabalho nos diferentes setores produtivos pelo Estado e impedindo a urbanização desordenada e

suas mazelas, como a favelização; o hukou, ao distinguir duas categorias de cidadãos, passou a

ser a ferramenta de soerguimento e manutenção de um mercado de trabalho urbano segmentado,

cuja participação de migrantes rurais não formais em larga escala é peça-chave para a nova

estratégia industrializante do país.

O processo de transição da economia planejada socialista para o capitalismo, que afetou

profundamente a distribuição da população entre as áreas rurais e as áreas urbanas, bem como

entre atividades agrícolas e não agrícolas, ocorreu de forma gradual. Não houve na China, como

na Rússia, a liberação imediata dos preços. A privatização da economia, seja pelo surgimento de

novas empresas privadas, seja pela transferência de ativos do setor público para o privado, deu-se

de forma espaçada através do tempo. De acordo com Medeiros (2008):

“... a estratégia de transição gradual e dirigida pelo Estado na China permitiu uma

expansão simultânea de novas formas de produção e de propriedade com a propriedade

estatal, viabilizando elevada taxa de crescimento econômico. ... O ponto central dos

processos de transição é que quanto mais rápido o processo de liberalização dos preços –

Page 23: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

23

a ´primeira e mais devastadora ferramenta da transição -, maior o número de empresas e

setores incapazes de competir com os novos preços. Mesmo naquelas atividades

beneficiadas por uma demanda maior, as restrições aos novos investimentos decorrentes

da implosão das economias externas, dos mecanismos de financiamento e das

instituições impedem uma rápida reestruturação produtiva que permita o relançamento

da economia” (MEDEIROS, 2008: pp. 179)

1.2 Periodização

Partindo do entendimento de que as restrições ao crescimento das economias capitalistas,

em geral, estão ligadas à insuficiência de demanda efetiva, e não a problemas relacionados à

oferta; a análise da trajetória de crescimento da economia chinesa implica na identificação dos

componentes da demanda agregada que, ao expandirem-se, provocaram o aumento do produto

como um todo. Seguindo esse parâmetro, é possível perceber momentos diferenciados ao longo

de tal trajetória, corroborando com a visão de que o país passou por transformações em sua

estratégia de acumulação. Neste sentido, buscar-se-á expor uma periodização que contemple as

principais mudanças ocorridas na evolução dos componentes da demanda agregada, tendo sempre

em vista suas relações com as políticas levadas a cabo pelo Estado chinês para a consecução da

transformação capitalista no país. Destarte, o presente trabalho terá como base a periodização

proposta por Kotz e Zhu (2010), na qual os autores buscam determinar quais componentes da

demanda efetiva teriam liderado ou “puxado” o crescimento do PIB chinês, entre 1978 e 2007.

Assim, os autores dividem o período em quatro momentos distintos do crescimento econômico

chinês: crescimento balanceado e liderado pelo mercado interno, entre 1978 e 1988;

desaceleração puxada pelo investimento, no subperíodo 1988-1991; crescimento liderado pelo

investimento, de 1991 a 2001; e crescimento liderado pelas exportações e pelo investimento,

entre 2001 e 2007. Como, nesta seção, nossa análise vai até o ano de 2001, serão considerados

somente os três primeiros subperíodos.

Há, entretanto, uma importante ressalva a ser feita à periodização proposta por Kotz e Zhu

(2010): ela não leva em conta a consequência do gradualismo da transição chinesa para a

formação de um padrão de crescimento puxado pela demanda. A transição de economias

Page 24: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

24

socialistas planejadas para o capitalismo implica que essas economias saem da situação na qual o

crescimento é limitado pela oferta, para um padrão em que o crescimento é puxado pela

demanda. Todavia, uma vez que a transição para o capitalismo na China ocorreu de maneira

gradual, não é possível apontar, como na Rússia – onde os preços foram liberados de uma só vez

–, o momento específico em que a economia passou de um padrão para o outro. O que Kotz e

Zhu (2010) chamam de “crescimento balanceado e liderado pelo mercado interno”, o primeiro

momento da transição, parece-nos ser mais um momento de crescimento limitado pela oferta do

que de crescimento liderado pela demanda, ou seja, um período no qual as transformações

econômicas ainda não solaparam a predominância dos mecanismos de planejamento na produção

e na distribuição da riqueza. O processo de transição, todavia, não deve ser encarado somente

como a persecução da liberalização econômica, mas, também, como um momento de intensa

acumulação primitiva de capital, como destacam Walker e Buck (2007). Para esses autores, a

análise da transição deve estar pautada na observação dos elementos centrais do processo de

acumulação primitiva:

“Central to Marx’s presentation of primitive accumulation are the expropriation of the

producers to create a working class, the emergence of a capitalist class with a stock of

original capital, and the development of the home market. To these must be added the

commodification of land, the rise of cities and extension of the spatial division of labour,

and the transformation to a modern bourgeois state.” (WALKER & BUCK, 2007: pp.40)

Destarte, baseando-nos tanto no processo de liberalização de preços, quanto nos

expedientes levados a cabo para a formação de uma nova classe trabalhadora assalariada,

necessária para a constituição do setor privado e, portanto, para a formação de uma classe

capitalista autóctone, tentaremos delimitar os principais momentos de transição para um padrão

de crescimento puxado pela demanda, bem como, a partir de então, distinguir os componentes da

demanda efetiva que lideraram o crescimento.

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25

1.2.1 A primeira década das reformas (1978-1988): Crescimento balanceado liderado pelo

mercado interno ou crescimento limitado pela oferta?

Na análise de Kotz e Zhu (2010), na qual o crescimento é puxado pela demanda, a

primeira década de alto crescimento do PIB foi sustentada pelo mercado doméstico chinês.

Apesar de as exportações terem crescido a uma taxa de 20,6%, sendo a estimativa para a taxa de

crescimento do conteúdo doméstico das exportações de 18,5%, a contribuição dessas para o

crescimento do PIB foi de apenas 12,3% devido à baixa parcela das exportações no PIB. Segundo

os dados apresentados pelos autores, o gasto doméstico foi responsável por 87,7% do crescimento

do PIB, sendo que o consumo privado, os gastos governamentais e os investimentos cresceram

aproximadamente a taxas iguais. Partindo de uma sociedade na qual a distribuição da renda

apresentava-se de forma altamente igualitária e com uma alta propensão ao consumo, dado o

baixo nível da renda per capita, o aumento da renda real traduziu-se em um rápido crescimento

do consumo. Assim, durante o período em tela, o consumo das famílias respondeu por um pouco

mais que 50% do crescimento da economia.

Dentre os elementos por trás da evolução acima descrita, o principal foi a reforma rural

(1978-1984), que consistiu na dissolução das comunas e na instauração do sistema de

responsabilidade familiar. As terras foram redistribuídas entre os camponeses de maneira

igualitária, mas esses não se tornaram os proprietários das mesmas. O Estado nominalmente

continuava a ser o proprietário, mas, mediante contratos, concedia o direito de exploração das

terras às famílias, que, como contrapartida, seriam obrigadas a vender cotas pré-estabelecidas de

produção para o Estado (MORAIS, 2011). A produção que ultrapassasse a cota poderia ser

vendida tanto para o Estado, quanto para o mercado. De acordo com Morais (2011), até 1985, o

Estado dava garantias de que toda a produção que excedesse a cota seria vendida nos mercados, e

caso esses não oferecessem preços favoráveis aos camponeses, o Estado compraria a produção

excedente oferecendo um prêmio de 50%. Essas medidas levaram ao aumento da produção

agrícola e, em um contexto de mudança dos preços relativos em favor dos produtos agrícolas,

também essa uma política estatal, a renda real líquida dos domicílios rurais apresentou rápido

crescimento entre 1979 e 1984. Desta forma, esse período foi marcado por melhorias na

distribuição da renda, reduzindo a discrepância entre os rendimentos rurais e urbanos, processo

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26

este que seria revertido a partir da segunda metade da década. Tais transformações refletiram-se

no índice de Gini que esteve entre 0,29 a 0,31 entre 1978 e 1982, reduzindo-se para 0,24 em

1984. Ainda sobre os efeitos da reforma rural, Medeiros (2009) observa:

“O nível do produto por ocupado na agricultura mais do que dobrou neste período

e tendo vista o elevado peso deste setor na ocupação total chinesa, esta transformação,

acompanhada da introdução do “sistema responsabilidade familiar” e do relaxamento do

sistema de controle de residência, foi de longe a de maior impacto sobre a estrutura da

economia e da sociedade chinesa constituindo a base inicial da expansão do mercado

interno chinês em moldes não socialistas formada pela expansão do emprego rural não

agrícola e dos deslocamentos do excedente rural para as cidades e atividades industriais

e de serviço.” (MEDEIROS, 2009: pp.14)

Nesse sentido, o aumento da produção agrícola permitiu que parcela da força de trabalho

migrasse do campo para as cidades, processo que tomou fôlego a partir do fim da década de

1980, quando se exacerbaram as desigualdades urbano-rurais. Até o final do período em análise,

entretanto, o deslocamento de mão-de-obra da agricultura para as atividades não agrícolas

ocorreu, majoritariamente, dentro do próprio setor rural. A industrialização rural já havia sido

desenvolvida durante o período maoísta, subordinada às comunas; todavia, após o início das

reformas, especialmente a partir de meados da década de 1980, a industrialização rural conheceu

enorme expansão por meio da proliferação das empresas de vilas e municípios (Township and

Village Enterprises, TVEs), especialmente daquelas coletivas (MORAIS, 2011). Assim, a

industrialização seguiu curso, centrando-se nas indústrias intensivas em trabalho (brinquedos,

têxteis e calçados), ao mesmo tempo em que se buscou uma política tecnológica para transformar

o perfil industrial do país e, já em 1980, a indústria eletrônica era considera uma das prioridades.

(MEDEIROS, 2009)

Neste mesmo período, como destacado por Guangyuan (2005), o Estado chinês realizou

medidas em direção à política de portas abertas, à transformação da estrutura proprietária e à

descentralização. Desta forma, iniciou-se o processo de abertura externa, com o estabelecimento

de quatro zonas econômicas especiais (Shenzhen, Zhuhai, Shantou e Xiamen) e com a

Page 27: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

27

transformação da província de Hainan em zona especial. Também foram criadas zonas de

desenvolvimento em 12 cidades costeiras. Esta estratégia permitiu a importação de máquinas e

equipamentos para realizar a modernização e o aumento da produtividade, por meio da

exportação de bens tradicionais intensivos em mão de obra, como têxteis e calçados. Ademais,

aproveitando-se das rotas de comércio e investimento já existentes, as zonas econômicas

especiais permitiram a absorção de capitais, especialmente dos chineses residentes no exterior.

Paralelamente, foram dados os primeiros passos no que concerne à reforma da estrutura

proprietária, com a promoção de empresas de vilas e municípios, na parte sul da província de

Jiangsu, e com o desenvolvimento do modelo de Wenzhou, no qual as empresas privadas tinham

predomínio da economia local (GUANGYUAN, 2005). As mudanças na estrutura proprietária

fizeram que a participação do setor privado no produto industrial saísse de 0% em 1978 para

9,8% em 1991, ano imediatamente anterior àquele em que Deng Xiaoping fez seu famoso

discurso, em viagem ao sul da China, defendendo o aprofundamento das reformas liberalizantes

(KOTZ & ZHU, 2010).

De acordo com Kotz e Zhu (2010), ao lado destas transformações, o governo central

passou a promover políticas direcionadas à descentralização e à maior autonomia das empresas

estatais. O sistema bancário foi separado do sistema fiscal, houve a criação do Banco Central e

criaram-se novos bancos estatais com funções comerciais, fazendo que o financiamento das

empresas estatais passasse da alocação direta do orçamento público para dar-se via empréstimos

bancários. Estes mesmos bancos também foram autorizados a aumentar a base monetária da

economia. Além disso, a liberalização dos preços foi assumindo um papel de maior destaque

dentro da agenda da reforma, contribuindo para o aumento da inflação: “This was not only due to

the pro-market direction of the reform, but also due to the budget burden of the large subsidies

necessary for the price controls. In 1988, the central government partially lifted the price

controls, which caused a steeper burst of inflation.” (KOTZ & ZHU, 2010: pp. 9). Por outro lado,

a convivência de preços administrados com preços de mercado (dual track system) levou a

inúmeras queixas em relação à corrupção. No que diz respeito ao impacto da inflação sobre as

condições de vida da população, Wang Hui (2005) observa:

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28

“Inflation damaged the sense of social security. These factors not only caused

dissatisfaction among salary workers, but also affected the routine life of many state

employees (officials). The income differential between common state employees and

other social strata as well as between those state employees involved in market activities

and other state employees increased dramatically. It is important to note that the social

movement of 1989 was basically a social movement based in the urban areas. It had

connections with the history of market expansion during the so-called “urban reforms”

after 1984.” (HUI, Wang 2005: p.67)

O processo de mercantilização da economia, a inflação ascendente e o baixo crescimento

da renda rural em relação à renda urbana, depois de 1984, quando os preços relativos se alteraram

desfavoravelmente à agricultura, fizeram que o índice de Gini começasse a aumentar em 1985,

atingindo o valor de 0,38 em 1988 (em 1984 era de 0,24):

“Urban reforms started in 1984, and the income difference between urban and rural areas

began to grow in 1985. From 1989 to 1991, the growth in peasant income basically

stopped, and the income difference between urban and rural areas returned to pre-1987

levels. In the latter part of the 1980s, the speed and scale of the flow of the rural

population increased greatly. The serious problems with population and land were

transformed into long-term social conflicts.” (HUI, Wang 2005, pág.77)

Assim, o processo inflacionário, a corrupção, o aumento das desigualdades e as demandas

pela democratização política estiveram no centro dos eventos que precipitaram o episódio da

Praça de Tiananmen. Em que pese o avanço na liberalização dos preços no período em tela,

especialmente no último ano, muitos preços permaneceram controlados ou administrados pelo

Estado. Por outro lado, a esmagadora maioria das empresas era de propriedade pública, inclusive

das novas empresas, operando, segundo Walker e Buck (2007), até 1988, sob uma legislação que

garantia o emprego vitalício aos trabalhadores. De acordo com Morais (2011), mesmo as TVEs

privadas estavam sujeitas à permanente interferência dos governos locais, especialmente no que

diz respeito ao crédito e a retenção de lucros, influenciando os novos investimentos. Já Walker e

Buck (2007), a respeito das TVEs, destacam que: “Owned and operated by local governments,

they usually embodied socialist obligations to provide jobs, wages and social benefits to

Page 29: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

29

villagers, and to support agriculture and rural infrastructure.” (WALKER & BUCK, 2007:

pp.43) Por outro lado, como destacado anteriormente, a participação do setor privado no produto

industrial era de apenas 9,8% do total.

Mesmo com o início da liberalização dos preços, o setor público correspondia à quase

totalidade da economia, com o Estado sendo responsável não somente pela produção, como

também pela operação dos bancos e pela determinação de grande parte dos preços. A expansão

vigorosa do setor privado só iria ocorrer ao longo da década de 1990, com a privatização das

empresas estatais e com as demissões em massa no setor público. A lei de falências de 1988,

pondo fim ao emprego vitalício, pode ser considerada um marco nesse processo de transição.

Para Walker e Buck (2007), as transformações experimentadas no período começaram a ter efeito

no regime de crescimento a partir de 1989:

“The reality of these changes began to bite in the downturn of 1989–91, when the

clampdown after Tiananmen led to retrenchment of an overheated and inflationary

economy. Further reforms were unleashed in the following decade: a 1994 labour law

fixed the status of wage-labour and decoupled welfare from the state, and this was

followed by a directive that encouraged efficiency through workforce reduction. Most

decisive were the massive layoffs at the end of the 1990s, when Chinese capitalism

experienced its first general overproduction crisis, marking a clear transition from the

old economy of scarcity to the new economy of surplus production—meaning

abundance for some and atrocious lack for others” (WALKER & BUCK, 2007: pp. 43)

O deslocamento de excedente de mão-de-obra para as cidades, os trabalhadores demitidos

das empresas do setor público e a implosão de muitas TVEs que eram fornecedoras das empresas

estatais urbanas foram os processos que fundaram a nova classe trabalhadora assalariada

disponibilizada para o desenvolvimento do setor privado, com a concomitante formação de uma

classe capitalista autóctone (WALKER e BUCK, 2007). Todavia, esse processo só adquire vigor

depois da primeira década de reformas. Nesse sentido, o crescimento balanceado do período em

tela pode ser visto como a operação de uma economia ainda majoritariamente controlada pelo

Estado, tanto no que diz respeito à produção, especialmente na alocação de trabalho, quanto à

distribuição.

Page 30: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

30

1.2.2 Desaceleração puxada pelo investimento: 1988-1991

O desencadeamento do processo inflacionário e a revolta da Praça Tiananmen puseram um

freio nas reformas e levaram o governo chinês a ter como eixo de sua política o combate à

inflação. O principal instrumento utilizado pela política anti-inflacionária foi o corte dos

investimentos estatais, com uma queda de 13% dos investimentos fixos em 1989 e um modesto

crescimento de apenas 1,5% em 1990 (KOTZ & ZHU, 2010). Em consonância com outras

medidas de cunho anti-inflacionário, a abrupta redução dos investimentos estatais fez surtir

efeitos rapidamente e a inflação pôde ser controlada.

A outra prioridade do governo no período foi buscar a reversão do déficit comercial

ocorrido em meados da década de forma a estabelecer um padrão de comércio que não impusesse

constrangimentos externos ao crescimento da economia chinesa. Neste sentido, a redução das

importações ocasionada pela desaceleração do crescimento foi complementada por uma política

de estímulo às exportações, consubstanciada, principalmente, em uma desvalorização de 21,3%

do yuan. Também neste caso, o governo chinês foi bem sucedido em seu objetivo, fazendo que a

parcela das exportações no PIB saltasse de 12,7% para 18,6% em um breve período de tempo.

Este aumento das exportações foi o principal elemento a contrabalancear os efeitos

desaceleradores do declínio dos investimentos, de tal forma que as exportações responderam por

um pouco mais de 50% do crescimento do PIB e o conteúdo doméstico estimado das mesmas por

aproximadamente um terço.

1.2.3 Crescimento liderado pelo investimento: 1991-2001

O marco inicial deste período é discurso de Deng Xiaoping, feito em sua viagem ao sul do

país, clamando pelo aumento do crescimento econômico e pelo aprofundamento das reformas

liberalizantes. Com o fim da inflação e com a repressão dos movimentos de contestação, o

governo chinês viu-se desimpedido para tocar a agenda de reformas. Sem deixar de preservar o

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31

controle político do Partido Comunista Chinês, Deng Xiaoping viabilizou um acordo que garantiu

o andamento das reformas. Nesse sentido, Medeiros (2009) destaca:

“A base deste acordo era o apoio dos militares ao processo de reforma. Em sua

“caminhada ao sul” Deng Xiaoping negociou com os administradores das cidades

costeiras como Guangdong a transferir maiores recursos para o governo federal para que

este financiasse a modernização do exército selando assim o que Marti (2007)

denominou de “grande compromisso”.” (MEDEIROS, 2009: pp.33)

Assim, em outubro de 1992, o 14º Congresso Nacional do PCC declarou oficialmente que

o objetivo das reformas era a economia de mercado. Como consequência da vitória da posição

liberalizante, a década de 1990 foi marcada por uma onda de privatizações, que atingiu

principalmente as pequenas e médias empresas estatais, mas que preservou aquelas de grande

porte consideradas essenciais. Assim, foram realizadas demissões em massa e, como o sistema de

proteção social era atrelado às fábricas, os trabalhadores demitidos viram-se privados da

seguridade social, tal como havia ocorrido com os camponeses quando da dissolução das

comunas. Se por um lado, as privatizações resultaram em enormes perdas para os trabalhadores

demitidos, em particular, e para o conjunto da população, em geral; por outro, elas permitiram o

enriquecimento de setores da burocracia, especialmente aquele ligado a gerência das empresas

estatais, dando ímpeto ao processo de formação de uma burguesia autóctone e contribuindo para

a polarização social. Inúmeros expedientes distintos foram utilizados para realizar as

privatizações, especialmente se é levado em conta o fato de que muitas empresas eram dos

governos municipais e provinciais, em um contexto de descentralização política e administrativa.

Assim, Qin Hui (2005) discute uma das formas que permitiram que as privatizações ocorressem

através da simples transferência de ativos estatais para particulares:

“Obviously, what happened in Changsha was not a “sale” as reported. If one

defined those enterprises worth hundreds of millions of Yuan as state assets, it may be

imagined how hard it was to realize the “transformation.” It was also not a “distribution”

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32

– the state assets had not been distributed to individuals. It was “delimitation!” The so-

called “delimitation” was the real administrative task .Because the amount of state assets

was too great to be sold, the government simply “delimited” it from “state ownership” to

ownership of the internal personnel of enterprises by way of assignment, and also

regulated that bosses should hold the majority of stock among the internal personnel.

This type of reform may be called “delimitation” reform. This “delimitation” defined

only the investments for the past seventeen years or the initial investments when the

enterprises were established as state assets. Those “accumulations” based on investments

were “defined” as the assets of the internal personnel of the enterprises (“collective

assets”).” (HUI, Qin 2005: pp. 94)

Já no que diz respeito à contribuição dos componentes da demanda agregada para o

crescimento do PIB, de acordo com Kotz e Zhu (2010), os investimentos fixos tiveram papel

protagonista no período em tela, sendo responsáveis por 39,3% do crescimento do PIB. Logo

após o discurso de Deng Xiaoping, os investimentos fixos cresceram a taxas superiores a 30% ao

ano em 1992 e 1993, repercutindo em taxas de crescimento do PIB da ordem de 14% no biênio

em questão (Kotz e Zhu, 2010). Entretanto, houve uma aceleração inflacionária na segunda

metade de 1993, devido à maior liberalização dos preços, o que levou o governo a realizar, dentre

outras medidas contracionistas, cortes nos investimentos. Assim, os investimentos fixos

cresceram apenas 8,2% em 1994 e 6,3% em 1995. Em relação às demais medidas utilizadas para

combater a inflação, Medeiros (2009) destaca:

“A política antiinflacionária incluiu o controle sobre os preços agrícolas e sobre

os salários. A reforma salarial de 1994-95 ... visou amortecer os efeitos da indexação

salarial sobre a inflação limitando os salários a um crescimento inferior a produtividade.

Como resultado destas políticas da segunda metade da década para frente a inflação

cedeu mas a um preço da defasagem dos salário e queda da renda agrícola.”

(MEDEIROS, 2009: pp.35)

De 1998 a 2001, os investimentos fixos crescem a taxas entre 9% e 12%. Essa retomada

das taxas de crescimento dos investimentos também deve ser entendida como resposta à crise

asiática, que tendeu a deprimir o crescimento da economia pela redução da demanda por

Page 33: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

33

exportações de produtos manufaturados. Além do aumento nos investimentos, especialmente

aqueles relativos à infraestrutura, o governo lançou mão de uma política monetária expansionista,

com a redução das taxas de juros.

Em relação às exportações, Kotz e Zhu (2010) apontam que estas tiveram um papel

relativamente pequeno no crescimento. As importações cresceram mais rapidamente que as

exportações e, apesar de as exportações e o conteúdo doméstico das mesmas (Xd) terem crescido

mais rápido que o PIB, os autores estimam que Xd só tenha contribuído em 15,7% do

crescimento do PIB. Assim, aproximadamente 85% do crescimento do período seriam atribuídos

à demanda interna. Entretanto, as exportações tornaram-se uma parcela muito maior do PIB e, se

entre 1979 e 1988 elas corresponderam a 9,3% do PIB, durante o período 1992-2001 as

exportações responderam, em média, por 20,7% do PIB.

Do ponto de vista da política cambial, apesar de o governo ter feito sucessivas

desvalorizações desde 1978, em 1993 o déficit comercial de aproximadamente 2% do PIB levou

a uma maxi-desvalorização do yuan em 1994 e à unificação da taxa de câmbio que, em conjunto

com outras políticas de estímulo às exportações, resultaram em uma taxa de crescimento das

exportações de 66,3% no mesmo ano (KOTZ & ZHU, 2010). Apesar deste elevado crescimento

em 1994, Kotz e Zhu (2010) apontam para o comportamento errático da variável ao longo da

década, reforçando sua proposição de que as exportações tiveram um papel relativamente

pequeno no crescimento.

Todavia, a estratégia exportadora chinesa não se concentrou somente no aspecto

quantitativo. Ao longo da década, houve uma extraordinária mudança na composição da pauta

exportadora em direção à maior diversificação (MEDEIROS, 2009). A China, através de suas

zonas econômicas especiais, passou a receber um enorme influxo de investimentos diretos

estrangeiros de outros países asiáticos, para o desenvolvimento de indústrias de processamento de

exportações em tecnologia da informação. Essas indústrias têm elevado conteúdo importado,

fazendo que a maior parte de suas atividades consista na montagem de peças e componentes,

funcionando como plataformas de exportação para, principalmente, os Estados Unidos e a

Europa. O processo de montagem destas indústrias exportadoras de maior valor foi

acompanhado, como aponta Medeiros (2009), por um esforço de capacitação tecnológica, no

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34

qual, dentre outras medidas, o país soube barganhar o acesso ao seu mercado interno em troca de

transferência tecnológica:

“O que diferencia especificamente a China de outros países que afirmaram suas

exportações através de regimes de processamento, como por exemplo, o México, é que

ao lado das atividades de processamento de exportações houve um grande esforço de

capacitação tecnológica com significativo impacto sobre as exportações não processadas

e sobre a substituição de importações.” (MEDEIROS, 2009: pp. 19)

Desta forma, buscou-se descrever, em linhas gerais, os principais aspectos do crescimento

econômico chinês desde 1978 até o início do atual ciclo de crescimento. Durante esse período, a

China logrou realizar a transição para o capitalismo com elevadas taxas de crescimento. Em que

pese o aumento espetacular da riqueza produzida no país, essa riqueza deixou de ser apropriada

pelo conjunto da população, para, cada vez mais, tornar-se riqueza privada de pouquíssimos

indivíduos. Se, por um lado, a face mais evidente desse processo é o aumento das desigualdades

sociais; pelo outro, a propriedade privada dos meios de produção gera a atomização das decisões

de produção e de investimento, bem como múltiplos estímulos para a retenção de riqueza na

forma líquida. Quanto maior a parcela da renda apropriada pelos capitalistas, maior a parcela da

riqueza sujeita à anarquia das decisões privadas e aos seus possíveis efeitos deletérios para a

reprodução ampliada da economia. Desta forma, a expansão da propriedade privada dos meios de

produção impacta a distribuição funcional da renda e, simultaneamente, cria potenciais

constrangimentos à reprodução ampliada da economia. Tendo em vista esse duplo aspecto do

fenômeno da expansão da propriedade privada, voltar-nos-emos, primeiramente, para o impacto

da transição sobre a distribuição funcional da renda. Em seguida, apresentaremos as principais

teses vigentes na literatura heterodoxa sobre o atual ciclo de crescimento da economia chinesa,

teses essas, em geral, intimamente ligadas com o perfil da distribuição funcional da renda no país.

Page 35: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

35

2. O impacto da transição sobre a distribuição funcional da renda

No momento inicial das reformas econômicas, em 1978, a inexistência da propriedade

privada implicava que a renda nacional era repartida entre o trabalho e o Estado. Com o

surgimento e a expansão progressiva do setor privado, a parcela do trabalho e/ou a parcela do

governo na renda nacional teve/tiveram que se reduzir para acomodar a nova fatia da renda

nacional apropriada pelo setor privado. Nesse sentido, o que se espera ao analisar os dados sobre

a distribuição funcional da renda é notar um declínio dramático na parcela do trabalho e/ou do

Estado. Trataremos, em primeiro lugar, da evolução da parcela do trabalho, para, em seguida,

discutir a evolução do conjunto dos componentes da distribuição funcional da renda.

No que diz respeito especificamente à parcela do trabalho na renda nacional, Bai e Qian

(2010) realizaram um estudo detalhado e construíram duas estimativas diferentes, uma utilizando

o PIB como denominador e outra com PIB líquido de impostos indiretos. Para obter a parcela do

trabalho na renda nacional, os autores agregam os dados ao nível provincial, uma vez que a NBS

não publica esses valores para a economia como um todo. Baseados no gráfico 1.1, os autores

afirmam que, embora os impostos indiretos tenham uma participação relevante na renda, eles não

são um fator importante para explicar o movimento da parcela de trabalho, visto que ambas as

séries apresentam variações quase iguais.

Page 36: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

36

Gráfico 1.1 – Parcela do trabalho na renda nacional

(proporção da compensação do trabalho em relação ao PIB e ao PIB líquido de impostos

indiretos)

Fontes: Bai e Qiang (2010)

Para explicar a evolução da parcela do trabalho na renda, os autores utilizam o método

empírico formulado por Solow em 1958, que se propõe a analisar o impacto do desenvolvimento

econômico sobre a distribuição funcional da renda, decompondo as mudanças na parcela do

trabalho em mudanças estruturais e intrassetoriais. Considerando que a parcela do trabalho varia

em cada setor produtivo e que a contribuição de cada setor produtivo na formação do PIB é

distinta, tem-se que a parcela agregada do trabalho é igual à média das parcelas setoriais do

trabalho ponderadas pela parcela do valor adicionado por cada setor respectivo. Destarte, uma

mudança intrassetorial, ou seja, uma mudança na parcela do trabalho dentro de um setor

específico terá seu impacto na parcela agregada do trabalho mediado pelo tamanho relativo do

setor na economia. Assim, mesmo grandes mudanças intrassetoriais podem ter impacto

0,39

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parcela do trabalho sobre PIB parcela do trabalho sobre PIB líquido

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negligenciável na parcela agregada do trabalho se o setor contribui pouco para o produto

nacional. O efeito geral das mudanças intrassetoriais tende a ser dominado pelas mudanças nos

setores com maior parcela de valor adicionado. No que diz respeito ao período 1978-2007,

excetuando o setor industrial – que apresentou aumento na parcela do trabalho até 1995 e, a partir

de 1998, mostrou contínua redução da mesma (trajetória em U invertido), como pode ser visto no

gráfico 1.2 –, os demais setores apresentaram pouca mudança (serviços) ou pequenas flutuações

na parcela do trabalho (BAI & QIAN, 2010). Consequentemente, seja em função da elevada

parcela de valor adicionado gerado pelo setor industrial, seja em decorrência das grandes

variações da parcela do trabalho nesse, o efeito das mudanças intrassetoriais, ao longo do período

em tela, foi dominado pelas mudanças no setor industrial.

Gráfico 1.2 – Parcela do trabalho no setor industrial

(proporção da compensação do trabalho em relação ao valor adicionado no setor industrial)

Fonte: Bai e Qian (2010)

Por outro lado, mesmo que não haja qualquer alteração na parcela do trabalho dentro de

cada setor, o desenvolvimento econômico, ao reduzir a participação da agricultura no produto

0,3452

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0,4221

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nacional e aumentar a contribuição dos setores industrial e de serviços, impactará a distribuição

funcional da renda, na hipótese provável de que as parcelas do trabalho setoriais não são

idênticas. Nesse sentido, como na China, historicamente, a parcela do trabalho na agricultura é

muito superior aos demais setores, é de se esperar que os processos de industrialização e

urbanização exerçam uma pressão baixista sobre a parcela agregada do trabalho. Levando em

conta os principais setores da economia, no período em tela, o comportamento das estruturas

econômicas manifestou-se nas seguintes linhas gerais: a) o ano de 1984 apresenta-se como um

ponto de inflexão para o setor agrícola, que em um primeiro momento cresce em tamanho

relativo e depois passa a declinar; b) a parcela do setor industrial na economia flutuou ao longo

do tempo; c) o tamanho relativo do setor de serviços na economia cresceu desde o início do

período (Bai & Qian, 2010).

Tendo em vista aplicar o método de decomposição acima exposto à evolução da parcela

agregada do trabalho no PIB líquido de impostos indiretos, apresentada no gráfico 1.1, os autores

propõem a distinção de três subperíodos, cujas tendências discerníveis facilitam o

reconhecimento dos fatores que explicam as variações observadas: os subperíodos 1978-1984,

1984-1995 e 1995-2007.

De acordo com Bai e Qian (2010), entre 1978 e 1984, a parcela agregada do trabalho no

PIB líquido de impostos indiretos apresenta crescimento contínuo ao longo do período,

resultando em um modesto incremento total de 3,68 pontos percentuais. Essa elevação responde a

efeitos estruturais e intrassetoriais positivos, respectivamente comandados pela expansão do

tamanho relativo da agricultura, cuja parcela do trabalho historicamente aproxima-se a 0,9 (em

uma escala de 0 a 1) e pelo aumento parcela do trabalho no setor industrial (gráfico 1.2). Segundo

as estimativas dos autores, o efeito de mudança estrutural foi responsável por uma variação de

2,16 pontos percentuais e o efeito de mudança intrassetorial por 1,52 pontos percentuais.

No subperíodo 1984-1995, a parcela agregada do trabalho flutua ao longo do tempo,

resultando em uma leve queda de 1,77 pontos percentuais entre o início e o fim da década em

análise. Como discutido anteriormente, a parcela do trabalho na indústria aumentou durante todo

esse período, de forma que o efeito de mudança intrassetorial foi positivo. Todavia, a diminuição

do tamanho relativo da agricultura, associada à expansão do setor de serviços, produziram um

efeito de mudança estrutural negativo. A combinação desses dois efeitos antagônicos é que foi

Page 39: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

39

responsável pela flutuação da parcela agregada do trabalho e por seu pequeno declínio, quando

considerado todo o subperíodo, revelando o predomínio do efeito de mudança estrutural (BAI &

QIAN, 2010).

De 1995 até 2007, como pode ser percebido no gráfico 1.1, há um declínio dramático, de

12,45 pontos percentuais, da parcela do trabalho no PIB líquido de impostos indiretos e de 11,7

pontos percentuais no PIB. Considerando como denominador o PIB líquido de impostos

indiretos, é possível notar que houve uma queda de 5,25 pontos percentuais entre 2003 e 2004, de

forma que 42,17% do declínio total da parcela do trabalho ao longo de mais de uma década

ocorreu no intervalo de tempo de um ano. Segundo Bai e Qian (2010), tal fato deve-se a uma

mudança na metodologia adotada pela NBS para o computo do PIB pela ótica da renda. Destarte,

devido à referida mudança, os dados oficiais publicados para os anos de 2004 a 2007 não são

diretamente comparáveis com o restante da série. Nesse sentido, excluindo os anos em questão,

observa-se que, entre 1995 e 2003, houve um declínio de 5,5 pontos percentuais na parcela

agregada do trabalho em relação ao PIB líquido de impostos indiretos. Esse declínio deveu-se aos

impactos negativos dos efeitos de mudanças estruturais e intrassetoriais. Nesse sentido, a

tendência à redução do tamanho relativo da agricultura soma-se à reversão da trajetória

ascendente da parcela do trabalho na indústria, tendo como resultado uma queda pronunciada da

parcela agregada do trabalho. As estimativas dos autores revelam que 3,5 pontos percentuais de

variação negativa podem ser atribuídos às mudanças estruturais, enquanto 2,0 pontos percentuais

atribuem-se às mudanças intrassetoriais.

Segundo Bai e Qian (2010), de 2004 em diante, a NBS operou duas grandes mudanças

que afetaram o cálculo do PIB pela ótica da renda: 1) no setor não agrícola, a renda dos negócios

próprios deixou de ser contabilizada em sua totalidade como remuneração do trabalho, de forma

que a remuneração dos empregados continuou a ser computada na parcela do trabalho, enquanto

a renda auferida pelos empregadores passou a ser contada nos lucros operacionais; 2) na

agricultura, os lucros das fazendas de propriedade estatal e de propriedade coletiva, anteriormente

contabilizados como lucros operacionais, têm seu cômputo alterado, pois, a partir de 2004, toda a

renda dessas fazendas, excluindo os impostos indiretos e a depreciação, passa a ser contada como

remuneração do trabalho. Em que pese o antagonismo dos impactos dessas mudanças sobre a

parcela do trabalho na renda nacional, o efeito negativo da transformação na contabilidade da

Page 40: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

40

renda dos negócios próprios preponderou, uma vez que o setor não agrícola tem um peso maior

na economia, exercendo uma pressão baixista sobre a parcela agregada do trabalho. Tendo em

vista essas mudanças, Bai e Qian (2010) estimam o lucro operacional da economia individual

(negócios próprios) nos setores não agrícolas e das fazendas estatais e coletivas em 2004

(presumem que a proporção dos lucros operacionais agrícolas por província no PIB manteve-se

igual entre 2003 e 2004), descontando tais estimativas de suas novas denominações

contabilísticas e adicionando-as às categorias nas quais eram contabilizadas anteriormente.

Assim, com as parcelas setoriais do trabalho ajustadas, os autores propõem estimativas ajustadas

(comparável com os outros valores da série) da parcela agregada do trabalho em 2004. Para os

demais anos, Bai e Qian (2010) assumem que os impactos da mudança de método nas estimativas

de 2004 tiveram efeitos iguais nos anos subsequentes.

Tabela 1.1 – Parcela do trabalho no PIB e no PIB líquido impostos indiretos

(dados oficiais e dados ajustados, em proporção da compensação do trabalho em relação ao PIB e

ao PIB líquido de impostos indiretos)

Ano Parcela do trabalho no PIB Parcela do trabalho no PIB líquido de impostos indiretos

Oficial Ajustado Oficial Ajustado

2003 0,4616 0,5362

2004 0,4155 0,4696 0,4837 0,5466

2005 0,4140 0,4680 0,4821 0,5449

2006 0,4061 0,4601 0,4731 0,5359

2007 0,3974 0,4514 0,4665 0,5294

Fontes: Bai e Qian (2010)

Simarro (2011) faz críticas às estimativas obtidas por Bai e Qian (2010) para o período

2004-2007, especialmente pelo fato de esses autores focarem suas análises na parcela agregada

do trabalho sobre o PIB líquido de impostos indiretos:

Page 41: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

41

“As noted, all these authors exclude net taxes on production from the factors distribution

series they utilise in their analysis. They implicitly exclude depreciation of fixed assets

as well. Including the latter in the operating surplus would actually make it comparable

in international terms; not including the first, however, could distort understanding of

labour‟s share progression insofar as it would neglect significant changes experienced

by net taxes. Indeed the difference between its lowest (11.6 per cent in 1982 and 1983)

and highest (15.8 per cent in 2003) values reaches 4.2 percentage points, equivalent to

more than 30 per cent of its average level (Figure 2).” (SIMARRO, 2011: pp. 11-12)

Assim, Simarro (2011) propõe-se a calcular a parcela agregada do trabalho com referência

no PIB. De fato, Bai e Qian (2010) focam suas análises nas estimativas cujo denominador é o PIB

líquido de impostos indiretos; todavia, os autores não deixam de apresentar estimativas da parcela

agregada do trabalho em relação ao PIB. Nesse sentido, as estimativas de Simarro (2011)

reforçam aquelas feitas por Bai e Qian (2010):

Tabela 1.2 – Comparação entre os ajustes dos dados oficiais da parcela do trabalho no PIB

(proporção da compensação do trabalho em relação ao PIB)

Autores 2004 2005 2006 2007

Simarro 0,4640 0,4650 0,4600 0,4540

Bai e Qian 0,4696 0,4680 0,4601 0,4514

Fontes: Simarro (2011) e Bai e Qian (2010)

Destarte, de acordo com as estimativas ajustadas de Bai e Qian (2010), ao invés de uma

queda de 4,61 pontos percentuais na parcela do trabalho no PIB entre 2003 e 2004, houve um

aumento de 0,8 ponto percentual, que, como explicam os autores, provavelmente deve-se ao

pressuposto de que a proporção dos lucros operacionais na agricultura manteve-se constante. Para

o subperíodo 2004-2007, houve um declínio de 1,82 ponto percentual na parcela agregada do

trabalho. Assim, considerando o subperíodo pós-1995 como um todo, após retirar o efeito da

mudança de método contabilístico, a queda de 11,7 pontos percentuais transmuta-se em declínio

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42

de 6,29 pontos percentuais. Entre 1995 e 2007, essa queda deveu-se a ambos os efeitos estruturais

e intrassetoriais negativos, sendo que no subperíodo 1995-2003 o efeito estrutural foi mais

relevante, respondendo por 2/3 da queda, enquanto que no subperíodo 2004-2007 o efeito

intrassetorial teve mais destaque, responsabilizando-se por 3/4 do declínio. Esse dado adquire

importância especial dado que, para todos os subperíodos anteriores, o efeito das mudanças

estruturais foi sempre superior ao das mudanças intrassetoriais.

Se, por um lado, o efeito das mudanças estruturais revelou-se preponderante na explicação

do movimento da parcela agregada do trabalho; pelo outro lado, os autores sustentam que esse

efeito foi superestimado. O argumento utilizado por Bai e Qian (2010) é de que a China apresenta

elevadíssimo valor para a parcela do trabalho na agricultura, próximo a 0,9, em comparação com

a média internacional (inferior a 0,5). Tal valor seria reflexo do fato de que os domicílios

agrícolas auto-empregados, ou seja, as unidades de agricultura familiar chinesas, têm renda de

natureza mista e que, de acordo com o sistema da ONU, deveriam ser contadas como renda do

capital. Todavia, o sistema de contas nacionais chinês computa tal sorte de renda como

remuneração do trabalho. Ressaltam, assim, que o problema da superestimação estaria no fato de

que a renda da terra não foi separada da remuneração do trabalho na China. Entretanto, parece

não fazer sentido propor tal separação, uma vez que a propriedade da terra rural na China é

estatal/coletiva, diferentemente do padrão internacional de propriedade rural, e por tanto, há

razões concretas para que o valor adicionado pela agricultura familiar seja considerado

remuneração do trabalho. Destarte, advoga-se que o efeito estrutural não foi superestimado, pois,

devido à estrutura proprietária particular da China, o trabalho se apropria da quase totalidade da

renda gerada na agricultura, não levando em conta os termos de troca entre a cidade e o campo e

os impostos.

Por fim, no que diz respeito às principais razões subjacentes ao declínio da parcela do

trabalho na indústria, Bai e Qian (2010) apontam para a restruturação das empresas de

propriedade estatal, cuja parcela do trabalho é muito superior à das não estatais, e para o aumento

no poder de monopólio. Já em relação à trajetória ascendente da parcela do trabalho na indústria

entre 1978 e 1995/1998, os autores afirmam que, até meados dos anos de 1980 o aumento

estatístico pode ser explicado por meio do argumento de Li (1992 apud BAI &QIAN, 2010),

apontando para a substituição gradual dos pagamentos em espécie – que constituíam grande parte

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43

da remuneração do trabalho – por remuneração em salários. Todavia, entre 1985 e 1995, essa

argumentação não seria mais aplicável. Se, após 1998, o declínio da parcela do trabalho na

indústria pode ser atribuído à restruturação das empresas estatais; o aumento da referida parcela

entre 1985-1995 é, em um aparente paradoxo, devido ao declínio da participação relativa das

empresas estatais na produção industrial com a proliferação de empresas não estatais. Tal ocorre

em função do fato de que, entre 1985 e 1995, a parcela do trabalho nas empresas estatais era

inferior à parcela do trabalho nas não estatais (o oposto do que ocorre de 1998 em diante).

Yang, Chen e Monarch (2010) corroboram essa perspectiva ao discutir o comportamento

dos salários urbanos por estrutura proprietária, apontando que durante os anos 1990 os salários

nas não estatais eram 31% mais elevados em relação às estatais, fato que provocou a ida dos

talentos para as empresas privadas, num movimento que ficou conhecido como “pulando no

mar”. Porém, a partir de 1998, os mesmos autores apontam para o rápido crescimento dos

salários nas estatais, que teriam ultrapassado os salários das não estatais em 2003, provocando

um movimento de retorno dos talentos cunhado de “voltando para a costa”. Em 2007, Yang,

Chen e Monarch (2010) estimam que os salários das estatais fossem 11% superiores das não

estatais.

Em que pese todo o esforço de Bai e Qian (2010) e Simarro (2011) em tornar os dados a

partir de 2004 comparáveis com o restante da série, acreditamos que a mudança metodológica

introduzida em 2004 reflete de maneira mais acurada o que, do ponto de vista econômico, é a

parcela do trabalho. Uma vez que os negócios próprios não agrícolas têm se apresentado como

um polo crescente de absorção de trabalho, especialmente de trabalhadores migrantes com baixa

remuneração e sem acesso aos serviços sociais, parece-nos ser de grande importância separar a

remuneração dos empregados em negócios próprios da remuneração dos seus empregadores.

Assim, achamos que seria mais adequado dissipar o impacto da queda de 4,61 pontos percentuais

ao longo dos anos anteriores e obter uma estimativa mais próxima à realidade da classe

trabalhadora, do que prezar pela maior consistência dos dados ao longo do tempo (uma vez que a

operação de alterar os dados entre 2004 até 2007 gera estimativas mais consistentes do que alterá-

los em retrospecto, de 2003 até a década de 1980, o que necessita de inúmeros pressupostos), mas

com um viés de superestimação crescente com o passar do tempo. Destarte, advogamos que, em

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44

2007, a parcela do trabalho está mais próxima das estatísticas oficias, de 39,74% da renda

nacional, do que das estimativas dos autores, de aproximadamente 45%.

Tendo em vista que a parcela do trabalho na renda nacional somente começou a declinar de

forma persistente a partir de 1995, podemos então afirmar que, até 1995, a expansão do setor

privado ocorreu pelo deslocamento da parcela do Estado na renda nacional. Todavia, como se

verá, o impacto da transição não é, à primeira vista, evidente nos dados oficiais.

Gráfico 1.3 – Distribuição funcional da renda

(compensação do trabalho, lucros operacionais e impostos líquidos, em porcentagem da

renda nacional)

Fonte: Simarro (2011) de 1978 até 2003 para todos os componentes e de 2004 a 2007 os dados referentes aos

impostos líquidos e à depreciação; Bai e Qian (2010) para a parcelado trabalho de 2004 a 2007; cálculos próprios

para os lucros operacionais de 2004 a 2007; CSY (2010, 2011) para 2009 e 2010.

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1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010

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45

O gráfico 1.3 baseou-se nos dados oficiais da NBS (ou seja, não ajustados pelos autores

para o período 2004-2007), adotando, todavia, a sugestão de Simarro (2011) de computar

conjuntamente a depreciação e os lucros operacionais líquidos em uma só categoria, a dos lucros

operacionais, de forma a tornar os dados comparáveis internacionalmente. No gráfico 1.3, a renda

nacional divide-se em compensação do trabalho, lucros operacionais e impostos líquidos. Se

considerarmos a renda apropriada pelo governo como sendo os impostos líquidos, concluiremos

que não houve o grande deslocamento esperado nem da parcela do governo, nem da parcela do

trabalho para a expansão do setor privado; como contrapartida, teríamos que entender os lucros

operacionais como a remuneração da propriedade privada dos meios de produção, e, assim, seria

preciso concluir que sempre houve um grande setor privado. Todavia, essa pressuposição é

totalmente irrealista. O que ocorre é a indistinção, na categoria estatística lucros operacionais,

entre a parcela da renda apropriada pelos detentores privados dos meios de produção, a acepção

econômica dos lucros na economia política clássica, e a parcela da renda apropriada pelo Estado

devido ao seu envolvimento direto nas atividades produtivas. Desta forma, em 1978, os lucros

líquidos operacionais somados aos impostos líquidos são a parcela do Estado na renda nacional.

Nesta perspectiva, podemos afirmar que, como a parcela do trabalho somente apresentou

trajetória persistentemente declinante a partir de meados da década de 1990, e os impostos

líquidos mantiveram-se relativamente estáveis ao longo do período, até meados da década de

1990, a expansão do setor privado ocorre por meio de um deslocamento da parcela do governo na

renda nacional interno à categoria lucros operacionais.

A partir de meados da década de 1990, quando se iniciaram as demissões em massa e as

privatizações, até 2003, a intensa expansão do setor privado não afetou a parcela da categoria

lucros operacionais na renda nacional, de forma que, essa expansão continuou a ocorrer às custas

da parcela do governo nos lucros operacionais. Todavia, se levarmos em conta a dissipação do

impacto da contabilidade da remuneração dos empregadores dos negócios próprios na categoria

lucros operacionais de 2003 para 2004, obteríamos uma trajetória crescente para os lucros

operacionais, desde ao menos meados da década de 1990 (ao invés de um comportamento

estagnado até 2002-2003), e um declínio maior da parcela do trabalho, de forma que seria visível

no gráfico a expansão do setor privado à custa da parcela do trabalho. Como visto no gráfico 1.2,

de 1998 a 2004, a parcela do trabalho no setor industrial caiu 7,1 pontos percentuais em função

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46

da expansão do setor privado e da reestruturação das empresas do setor público, impactando a

parcela do trabalho na economia como um todo. Esse fato não pode ser percebido pelo gráfico

1.3, no qual o persistente declínio da parcela do trabalho até 2002 é contraposto pelo aumento dos

impostos líquidos. Provavelmente, o que pode ter ocorrido é que, como um dos objetivos da

“reestruturação” foi “desvincular a provisão dos serviços sociais dos empregadores individuais”

(Yang, Chen e Monarch, 2010: pp. 9), bem como operar um drástico aumento de produtividade

por meio das demissões; os lucros antes dos impostos devem ter experimentado um elevado

crescimento sobre a parcela do trabalho, de forma que, o Estado, que perdia participação na renda

nacional devido às privatizações, ampliou sua arrecadação por meio de maior taxação dos lucros.

No que diz respeito ao período 2008-2010, parece ter havido uma drástica reversão das

tendências que vinham sendo apresentadas, desde 2004, pela parcela do trabalho e dos lucros na

renda nacional nos anos de 2009 e 2010. Tanto 2004 quanto 2008 foram anos nos quais se

realizaram os dois primeiros censos econômicos nacionais, de forma que, nas edições do CSY

correspondentes a esses anos não figuram os dados sobre a distribuição funcional da renda dos

anos de censo econômico, mas dos anos imediatamente anteriores. Assim, não foi possível obter

os dados de 2008. Todavia, quando discutimos anteriormente as mudanças nos cálculos

estatísticos adotados pela NBS em 2004, operados para a consecução do censo econômico

daquele ano, somente foi possível tomar ciência das mesmas alterações metodológicas devido à

pesquisa feita por Bai e Qian (2010), uma vez que as edições do CSY posteriores às mudanças

permaneceram com a mesma definição de compensação do trabalho, incluindo a totalidade da

remuneração dos negócios próprios, mesmo apresentando os dados produzidos pela nova

metodologia. Desta forma, em que pese que não foi possível ter acesso aos censos econômicos, é

muitíssimo provável que em 2008 a NBS tenha alterado novamente a metodologia para

contabilizar a totalidade da remuneração dos negócios próprios na compensação do trabalho, de

forma a inflar a parcela do trabalho e reduzir a parcela dos lucros.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a transição para o capitalismo teve profundo impacto

sobre a distribuição funcional da renda. No que diz respeito à parcela do trabalho na renda, do

ano em que essa atingiu seu pico, em 1985 – ápice de um período que Medeiros (2012) considera

como a Golden Age da distribuição da renda –, até 2007, a mudança estrutural combinada com a

expansão do setor privado foram responsáveis por uma queda de 14,71 pontos percentuais dessa

Page 47: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

47

parcela. Por outro lado, a aceleração dos processos de privatizações, demissões e desvinculação

dos serviços sociais fornecidos pelos danweis, transformando-os em esquemas tripartites de

financiamento, permitiu que, de 1998 a 2007, a expansão do setor privado fosse acompanhada

por um aumento de 11,16 pontos percentuais da parcela dos lucros na renda nacional. Por fim, a

parcela do Estado na renda nacional também se reduziu consideravelmente, em que pese o

aumento de 3 pontos percentuais, entre 1995 e 2010, da participação dos impostos líquidos na

renda nacional, a mudança na composição dos lucros operacionais certamente excedeu esse

aumento em muitas vezes.

3. O atual ciclo de crescimento da economia chinesa

De acordo com Kotz e Zhu (2010), o período 2001-2007 foi o de mais rápido crescimento

do PIB desde 1978, com uma taxa média de crescimento de 10,7% a.a. Todavia, há um intenso

debate sobre a sustentabilidade do atual ciclo de crescimento da economia chinesa, mormente em

função da expressiva queda da parcela do trabalho na renda nacional, impactando drasticamente o

consumo das famílias. A polêmica sobre o a sustentabilidade do crescimento chinês tem em seu

centro diferentes interpretações sobre qual seria a relação entre distribuição funcional da renda e

acumulação de capital. Mesmo com as altas taxas de crescimento dos salários apresentadas nos

anos 2000, a distribuição funcional da renda continuou a beneficiar o capital em detrimento do

trabalho. Grosso modo, podem-se identificar duas formulações opostas que tem ganhado

destaque no debate heterodoxo sobre o caso chinês: a proposição do subconsumo/sobre-

investimento e a do crescimento puxado pelos lucros (profit-led growth).

Os defensores da tese do crescimento puxado pelos lucros interpretam a baixa parcela do

trabalho na renda nacional como uma condição sine qua non para a acumulação de capital em

ritmo acelerado. Na verdade, para esses, a grande deterioração da posição do trabalho na

apropriação da renda nacional seria o segredo do rápido crescimento econômico chinês. Como

vimos na seção anterior, Simarro (2011) fez uma extensa discussão sobre a distribuição funcional

da renda, o intuito do autor era, todavia, demonstrar a validade da tese do crescimento puxado

pelos lucros, como explicitado na seguinte passagem: “The hypothesis is: China‟s annual 10%

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48

growth rate over 30 years has required an annual decline in labour‟s share of national income

in order to feed the accumulation process.” (SIMARRO, 2011: pp. 4). Nessa perspectiva teórica,

os lucros são a fonte de financiamento do investimento, que seria o motor do crescimento

econômico. Invertendo a relação proposta por Kalecki, na qual o investimento determina os

lucros, nesse caso, são os lucros que determinam o investimento. Um dos principais problemas

dessa formulação é pressupor que a mera existência de grandes montantes de lucros implique em

decisões de investimento em mesma escala. Pode ser que, mesmo com fontes de financiamento

disponíveis, que não se restringem aos lucros, os capitalistas decidam por não investir, se

projetarem que não haverá demanda futura a preços que tornem o investimento vantajoso.

Todavia, tendo em vista que, mesmo que não endossemos essa tese, ela não postula nenhum

empecilho à atual trajetória de crescimento da economia chinesa quando consideramos a

distribuição funcional da renda, não nos deteremos em uma análise mais aprofundada sobre ela.

As teses que nos interessam no presente trabalho são aquelas nas quais a distribuição funcional da

renda na China apresenta-se como um óbice à acumulação de capital.

A tese do subconsumo propõe que, dado que a propensão a consumir dos trabalhadores,

especialmente dos que recebem menores salários, é superior à dos capitalistas, o aumento da

parcela dos lucros na renda nacional tende a gerar uma situação de insuficiência de demanda

efetiva. Para a maioria dos adeptos dessa tese, o atual ciclo de crescimento do país estaria

sustentando-se na demanda externa, ou seja, no crescimento das exportações. Assim que a

expansão da demanda externa se desacelerasse, ou mesmo se contraísse em termos absolutos, a

China enfrentaria uma crise de subconsumo. Neste contexto, o atual ciclo de crescimento da

economia chinesa é entendido como um subproduto da expansão da economia do resto do mundo

e do deslocamento de outros países no comércio internacional pela China.

Dentro da corrente que defende a aproximação de uma crise, também podem ser

encontrados autores que advogam que o atual ciclo de crescimento é liderado pelos

investimentos, de forma que a alta taxa de crescimento da economia chinesa nos anos 2000 não

os assemelha como um mero efeito colateral do comércio exterior. Para esses, há uma situação de

sobre-investimento que, cedo ou tarde, se materializará em uma grave crise de realização da

produção. Assim, a tendência pró-lucros apresentada pela evolução da distribuição funcional da

renda, desde 1995, estaria colocando a economia chinesa em rota de colapso, uma vez que, para

Page 49: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

49

os defensores da tese do subconsumo, as exportações não podem continuar crescendo em ritmo

tão acelerado e os investimentos excessivos não poderão ser realizados a preços normais. Nesse

sentido, tratar-se-á de expor as duas principais teses sobre a natureza do recente ciclo, uma delas

cujo centro está nas exportações e a outra onde o núcleo explicativo concentra-se no mercado

doméstico, ou, mais especificamente, nos investimentos.

3.1. A tese do crescimento liderado pelas exportações

Na primeira década do século XXI, as exportações chinesas apresentaram um crescimento

de aproximadamente 25% ao ano, de forma que, em 2008, a razão exportações sobre PIB fosse de

36% (AKYÜZ, 2010). Essa elevada taxa de crescimento, materializada na notável invasão de

produtos chineses nas prateleiras americanas e europeias, gerou um intenso debate sobre o papel

da demanda externa para o crescimento da economia chinesa como um todo. De um lado,

encontram-se aqueles que defendem a tese de que o crescimento econômico chinês é puxado

pelas exportações, de forma que a economia do país estaria extremamente vulnerável a oscilações

na demanda do resto do mundo. Ademais, deriva-se de tal posição que a trajetória de alto

crescimento da economia chinesa não poderá perdurar por muito tempo, uma vez que o país

estaria crescendo a taxas mais altas do que a economia mundial e que haveria um limite para que

a China continuasse a aumentar suas exportações através do deslocamento de seus competidores

nos mercados internacionais. No outro polo do debate, estão presentes os que negam o papel

protagônico das exportações no crescimento da economia chinesa, apontando para o peso do

setor de processamento de exportações¹, o baixo valor adicionado gerado pelas atividades

exportadoras na China e a enorme parcela de empresas estrangeiras no setor exportador chinês,

remetendo para seus países de origem grande parte do valor adicionado gerado na China. Tendo

em vista a polarização das posições acima esboçadas, buscar-se-á, na presente seção, fazer uma

exposição dos elementos centrais desse debate dentro da literatura heterodoxa, tendo, por um

_________________ 1. “Special category of goods produced by assembling and/or processing intermediate inputs that are exempted from tariffs because the final products are sold only in foreign markets.” (Akyuz, 2010)

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50

lado, como representante da tese export-led, Akyüz (2010), e, pelo outro, Anderson (2007).

O que há em comum na análise dos autores aqui tratados é a preocupação de identificar o

modo correto de captar a contribuição das exportações no PIB, isto é, como resolver os

problemas de mensuração. Nesse sentido, eles ressaltam que as medidas tradicionalmente

utilizadas, a razão exportações sobre PIB (X/PIB) e as exportações líquidas (NX=X-M), são

inadequadas. A primeira delas, a proporção das exportações no PIB, não considera o conteúdo

importado das exportações, de modo que valor adicionado gerado fora da economia chinesa é

contabilizado como parcela das exportações no Produto Interno Bruto, superestimando a renda

criada pelas atividades exportadoras. Não é por menos que várias economias asiáticas apresentem

valores superiores a 100% para X/PIB², evidenciando o peso de atividades de reexportação e

processamento de exportações. Por sua vez, as exportações líquidas, de acordo com Akyüz

(2010), tendem a subestimar a contribuição das exportações, já que são subtraídas das

exportações não só as importações utilizadas nas atividades exportadoras, como também as

importações destinadas ao consumo e ao investimento. Desta forma, Akyüz (2010) entende que

para estimar a contribuição das exportações no PIB é necessário identificar, através de tabelas de

input-output, o conteúdo importado direta e indiretamente das exportações.

De acordo com Akyüz (2010), o conteúdo importado médio das exportações chinesas, nos

últimos anos, deve estar entre 40% e 50%. Entretanto, ele aponta a necessidade de diferenciar as

atividades exportadoras de processamento de exportações das demais, visto que há uma enorme

discrepância na intensidade de importações entre esses dois grupos:

“Processing exports accounted for about 55-60 per cent of total Chinese exports in the

first half of this decade (Koopman et al. 2008: Table 1; and Feenstra and Hong 2007:

Table 2). Their import content is several times that of non-processing exports; in 2002 it

was around 75 per cent against 11 per cent. Import content is particularly high − over 80

per cent − in sectors processing high-end manufactures such as electronics compared to

___________________________

2. “How can countries report numbers over 100%? Because the export/GDP ratio compares two incompatible

concepts: exports are defined as total turnover while GDP is measured in value-added terms. To use a microlevel

analogy for a single company, exports are similar to revenue, while GDP is similar to profit.” (ANDERSON, 2007,

pp. 2)

Page 51: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

51

low-skill exports. Foreign firms are active in export processing and have particularly

higher import content in their exports than do domestic firms. Wholly foreign owned

enterprises exhibit the lowest share of domestic value-added, followed by joint venture

companies (Koopman et al. 2008: Table 6).” (AKYÜZ, 2010: pp. 18)

Adicionalmente, o autor aponta para o grande peso das empresas estrangeiras na geração

do valor adicionado pelas exportações chinesas, em particular para a dominância de tais empresas

no setor de processamento de exportações. Tendo em vista a grande participação das exportações

chinesas para os EUA nas exportações totais da China, parcela estimada em aproximadamente

25%, a seguinte passagem é ilustrativa dos efeitos da participação de empresas estrangeiras na

geração de valor adicionado pelo setor exportador chinês:

“It is estimated that of the total domestic value-added generated by Chinese exports in

2002 to the US, around two-thirds went to capital income, some 18 per cent to labour

and 14 per cent to indirect taxes. About 60 per cent of these exports were by foreign

firms, including firms from the US. Even if it is assumed that such firms shared only in

the direct capital income, it can be estimated that an additional 7 per cent of the value of

total Chinese exports to the US went to foreign firms. As a result, income left in China

was no more than 30 per cent of total value of exports to the US.” (AKYÜZ, 2010, p.

19-20)

Em síntese, pode-se afirmar que, apesar dos impressionantes dados a respeito da trajetória

de X/PIB e de NX, para averiguar a real contribuição das exportações para o crescimento do PIB

deve-se levar em conta o alto conteúdo importado das exportações (especialmente no setor de

processamento de exportações, no qual se destaca a indústria eletrônica) e, dado o já reduzido

valor adicionado gerado domesticamente pelas exportações, a grande participação de empresas

estrangeiras na apropriação de tal renda, particularmente quando se leva em conta uma

distribuição de renda extremamente favorável para o capital nas indústrias exportadoras. É

baseado nesse conjunto de fatores que Medeiros (2009) afirma:

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52

“...para algumas interpretações a China, com exportações em torno de 40% da renda,

seria um caso de export-led tal como diversas economias dinâmicas da Ásia. Entretanto

tal medida é ilusória. Uma economia que exporta muito, mas que também importa muito

como é o caso da China (ou do México) com suas plataformas de exportação o

multiplicador das exportações vaza para fora do país.” (MEDEIROS, 2009: pp. 30)

Entretanto, mesmo considerando os fatos acima expostos, Akyüz (2010) afirma que a

trajetória da economia chinesa, na primeira década do século XXI, é um caso de crescimento

liderado pelas exportações. Segundo ele, ainda que se leve em conta as ponderações já

mencionadas, o valor adicionado pelas exportações (VAX) em relação ao PIB continua sendo

muito alto. Em suas estimativas, VAX/PIB estaria entre 18% a 22%, tornando a economia

chinesa um caso de export-led devido, principalmente, às elevadas taxas de crescimento das

exportações que perfizeram, até o início da crise de 2008, uma média de 25% ao ano. Desta

forma, o autor argumenta que o aumento das exportações no PIB seria o grande responsável pelo

crescimento de VAX/PIB, em vez de corresponder à diminuição do conteúdo importado das

exportações. Em suas estimativas: “Some 60 per cent of total imports and over 80 per cent of

intermediate goods imports are used, directly and indirectly, for exports and the rest for domestic

consumption and investment.” (AKYÜZ, 2010: pp.22)

Apesar desse alto conteúdo importado das exportações e estimando que o mesmo seja de

50%, Akyüz (2010) calcula que as exportações tenham sido responsáveis por um terço do

crescimento da economia chinesa entre 2004 e 2008. Esse número, entretanto, não consideraria o

efeito multiplicador das exportações sobre a renda: “A higher level of exports raises domestic

consumption through its impact on income, setting the multiplier to work. In this process imports

also rise depending on the import intensity of consumption, dampening the overall impact of

export growth on income.” (AKYÜZ, 2010: pp.10)

Nesse sentido, assumindo o valor de 8% para o conteúdo importado do consumo, o autor

estima que, com o efeito do multiplicador, as exportações teriam respondido por 50% do

crescimento do PIB no período pré-crise financeira internacional. Todavia, tendo em vista que a

distribuição da renda no setor exportador tem um viés pró-renda do capital e que uma parcela

desta é de firmas estrangeiras, o autor ajusta o valor do multiplicador para baixo (de 1,5-1,6 para

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53

1,2) e chega a uma nova estimativa na qual as exportações teriam sido responsáveis por 40% do

crescimento do PIB no mesmo período. Indo além, Akyüz (2010) afirma que, se também fossem

levados em conta os efeitos das exportações sobre os investimentos, não seria um exagero atribuir

às exportações 50% do crescimento do PIB entre 2004 e 2007. Desta forma, o autor considera

que as evidencias por ele apresentadas corroboram a proposição de que a economia chinesa,

sendo um caso export-led, é extremamente vulnerável a choques de exportações.

Indo de encontro à conclusão apresentada acima, autores como Anderson (2007) e

Medeiros (2009, 2010) apontam que em economias com crescimento liderado pelas exportações a

trajetória de crescimento do PIB anda pari passu com a evolução das exportações, e que isto não

ocorre com a economia chinesa:

“...o que se observa no crescimento recente na China é uma relativa autonomia do PIB

em face de uma muito maior volatilidade das exportações. Historicamente, o

crescimento econômico chinês apresentou uma rota muito mais estável do que as

exportações, que apresentaram uma muito maior variação, ao contrário do que se passou

com as economias menores asiáticas em que a correlação entre crescimento do PIB e das

exportações foi quase de um para um (Anderson, 2007).” (MEDEIROS, 2010: pp.7)

Nesse sentido, Anderson (2007) contrasta o comportamento da taxa de crescimento anual

do PIB com o da taxa de crescimento do total do valor do comércio exterior de um conjunto de

pequenos países asiáticos (Hong Kong, Indonésia, Coréia, Malásia, Filipinas, Cingapura, Taiwan

e Tailândia), dos EUA e da China. Cobrindo um período de 40 anos (1965-2005), o autor calcula

a razão entre o desvio padrão do crescimento do comércio e o desvio padrão do crescimento do

PIB para os três casos supracitados. Em relação às pequenas economias asiáticas, a razão

encontrada foi próxima a um, implicando que oscilações no comércio correspondem a oscilações

de magnitude quase igual no PIB, caracterizando um caso de crescimento liderado pelas

exportações. No outro extremo estão os EUA, no qual o valor da razão em questão é de

aproximadamente três. Sendo esse um caso amplamente reconhecido de crescimento liderado

pelo mercado interno, o valor apresentado reflete uma maior autonomia doméstica em face ao

comércio exterior e às exportações, uma vez que o PIB apresenta-se relativamente estável quando

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54

comparado com a volatilidade do comércio exterior. Por fim, a razão encontrada para a economia

chinesa é de 2,5, demonstrando que o caso da China é de crescimento liderado pelo mercado

doméstico, tendo em vista que está muito mais próximo da situação americana do que àquela

asiática.

Neste ponto da exposição, cabe questionar o porquê de os autores em questão terem

chegado a conclusões antagônicas; já que por um lado, Akyüz (2010) afirma categoricamente ser

o crescimento da economia chinesa um caso export-led, enquanto, pelo outro, Anderson e

Medeiros evidenciam o protagonismo do mercado doméstico. Ou, mais especificamente, por que

os dados empíricos produzidos por Akyüz (2010) não se ajustam à relativa estabilidade da

trajetória de crescimento do PIB chinês face à volatilidade das exportações?

Para responder a essa pergunta é preciso retornar às questões relativas à mensuração

discutidas no início da presente seção. Segundo os cálculos de Akyüz (2010), o valor adicionado

gerado direta e indiretamente pelas exportações em relação ao PIB (VAX/PIB) estaria entre 18%

a 22%. Em uma de suas equações, o termo utilizado pelo autor para mensurar VAX é descrito da

seguinte maneira: “It includes value-added generated in sectors producing exportables (that is,

direct value-added) and in sectors supplying inputs to exports (indirect value-added).” (AKYÜZ,

2010: pp.10)

Adicionalmente, ele diferencia a contribuição do setor de processamento de exportações

das demais atividades exportadoras para a geração de valor adicionado domesticamente, bem

como as parcelas deste último geradas direta e indiretamente:

“Domestic value-added generated by per unit of processing (assembly) exports is around

a quarter of value-added generated by non-processing exports. In non-processing exports

much of the domestic value-added is created in sectors supplying inputs for exports,

rather than in sectors producing exportables. By contrast processing exports rely very

little on inputs from other sectors and an important part of the value-added generated in

sectors producing exportables accrue to foreign companies.” (AKYÜZ, 2010, pág.7)

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55

A passagem acima evidencia a relevância do que o autor chama de valor adicionado

indireto para a formação do VAX, fato que pode ser percebido quando se desagregam os valores

calculados para VAX em valor adicionado direto e indireto:

Tabela 1.3: Valor adicionado das exportações em relação ao PIB

(porcentagem)

2002 2006 2007

VAX/PIB 12,1 18,5 18,3

Direto 4,5 7,0 7,0

Indireto 7,6 11,5 11,3

Fonte: Akyüz (2010)

Todavia, Anderson (2007) argumenta que há uma impropriedade nesta maneira de

mensurar as exportações em termos de valor adicionado. Para tal, o autor afirma que é necessário

não só subtrair o conteúdo importado das exportações, como também os insumos comprados dos

outros setores da economia doméstica. Isso porque as exportações deduzidas de seu conteúdo

importado revelariam somente a receita exportadora gerada pela economia doméstica, ao passo

que, para convertê-la em valor adicionado, é preciso deduzir os insumos provenientes dos outros

setores domésticos:

“The second step may seem counterintuitive; after all, if we’re assessing the role

of exports on the economy, shouldn’t we be measuring the materials and services export

firms buy from the rest of the economy? However, keep in mind that this is precisely

what “value added” means: when calculating GDP we exclude goods and services

purchases for all sectors of the economy, adding up only the wages and profits generated

internally. If we left in purchases of domestic inputs for export firms, we would have to

do the same for every other sector as well – and this would mean a much bigger

denominator than just GDP.” (ANDERSON, 2007: pp. 2)

Ao seguir esta metodologia, Anderson (2007) chega a um número para VAX/PIB bem

diferente daquele encontrado por Akyüz (2010). Em seus cálculos, Anderson (2007) assume que

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56

a parcela do conteúdo doméstico das exportações é de: 50% para os manufaturados leves, entre

20% e 50% para os produtos da indústria eletrônica e 70% para a indústria pesada e exportadora

de recursos. Cabe notar que, apesar de Akyüz (2010) não ter usado valores específicos para cada

tipo de indústria, as proporções apontadas por Anderson (2007) não diferem qualitativamente da

proporção eleita por Akyüz (2010), que pressupôs uma média de 50% para o conteúdo doméstico

do conjunto das exportações. Entretanto, o autor anglo-saxônico não para por aí e realiza a

transformação da receita exportadora cabível à economia doméstica em valor adicionado pelo

setor exportador. Assim, ele assume uma razão de 50% entre o valor adicionado das exportações

e o conteúdo doméstico total das mesmas. Isso implica que, do conteúdo doméstico estimado,

metade dele assumiu a forma de compras feitas pelo setor exportador junto ao restante da

economia. Consequentemente, Anderson (2007) chega a um valor muito mais modesto,

estimando que VAX/PIB seja aproximadamente igual a 9%. Nesse sentido, o número encontrado

aproxima-se das estimativas de Akyüz (2010) para o valor adicionado direto, que foi de 7% em

2006 e 2007.

Se a parcela do valor adicionado pelas exportações no PIB foi tão superestimada por

Akyüz (2010), entre 18% a 22%, resta ver a inconsistência entre os elevados números que o autor

apresenta para a contribuição das exportações no crescimento do PIB e a relativa estabilidade da

trajetória de crescimento do PIB face à volatilidade das exportações. O que parece mais peculiar

em toda a argumentação feita pelo autor para sustentar os dados apresentados é o papel

explicativo conferido ao crescimento das exportações: “Despite high import content of exports,

one-third of growth of income in China in the years before the outbreak of the global crisis is

estimated to have been due to exports because of their phenomenal growth of 25 per cent per

annum.” (AKYÜZ, 2010: pp.7)

Tendo em vista todas as considerações feitas pelo autor a respeito do baixo valor

adicionado gerado pelas exportações, de seu alto conteúdo importado, da parcela do valor

adicionado atribuída ao capital e da participação massiva de empresas estrangeiras, parece

estranho que o autor busque no comportamento de X ou X/PIB o elemento explicativo. Assim, de

maneira consistente com as ponderações feitas acima, Anderson (2007) busca examinar o

comportamento de outras variáveis, como a parcela do valor adicionado pelas exportações no PIB

e a parcela das exportações no produto industrial, chegando a um resultado bem diverso:

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57

“The headline export/GDP ratio may have jumped sharply in the past five years, but the

estimated “true” share of (manufacturing) exports as a share of GDP has been

surprisingly stable. If this is true, then the contribution of exports to overall growth is

pretty much the same as the current share in GDP, i.e., less than 10% of the total. But

how can this be, when the headline ratio shot up from 20% of GDP to more than 35% of

GDP in the space of only a few years? The answer is… overall gross industrial output

also shot up as a share of GDP during the same period, and by a much greater amount

(from 90% to 150%), leaving the export share of overall industrial output relatively

unchanged.” (ANDERSON, 2007: pp.5)

3.2 O investimento como propulsor do crescimento

O recente ciclo de crescimento chinês está sendo profundamente marcado pelo papel

dos investimentos, especialmente na indústria pesada e em infraestrutura. Alguns autores

estimam que a participação dos investimentos no PIB já ultrapasse os 50%. Em cima dessas

estimativas, inúmeras vozes afirmam que o crescimento chinês leva as marcas do

desequilíbrio e da insustentabilidade, pois o consumo interno teria sido comprimido de tal

forma que, sem o aumento constante das exportações, a economia chinesa passará por

problemas de realização da produção trazendo a interrupção de sua trajetória de alto

crescimento e o colapso. Desta forma, a saída seria a promoção de um crescimento

equilibrado nos diferentes componentes da demanda agregada, através de uma redistribuição

da renda que permitisse a expansão do consumo de massas. Entretanto, nem todas as

abordagens que colocam o investimento como propulsor do crescimento aderem à tese do

subconsumo acima explicitada; desta forma, a presente seção buscará debater outras

perspectivas sobre a sustentabilidade do atual ciclo de crescimento chinês centrado nos

investimentos.

De acordo com Lo e Guicai (2006), o alto crescimento sustentado da China desde

1978 deu-se em função de um rápido processo de industrialização, materializado no crescente

aumento da produtividade. Entretanto, os autores defendem que este processo não ocorreu de

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58

maneira linear, tendo havido uma mudança na via de desenvolvimento da economia chinesa a

partir do início da década de 1990, em direção a uma industrialização intensiva em capital.

Durante o primeiro período, que vai de 1978 até 1990, a industrialização chinesa teria

ocorrido no sentido de seu alargamento, e os ganhos de produtividade teriam advindo das

transferências, em escalas gigantescas, de trabalho da agricultura para a indústria. Ademais, a

rápida expansão da força de trabalho industrial e a falta de treinamento dos trabalhadores

teriam impactado negativamente a razão capital-trabalho na indústria. Esta via de

desenvolvimento teria sustentado uma trajetória de crescimento equilibrado, pois a sociedade

chinesa ainda mantinha traços de igualitarismo que permitiam que o consumo se expandisse

ao lado dos investimentos.

A partir da década de 1990, os autores afirmam que a China teria entrado em uma via

de desenvolvimento de intensificação do capital, com enormes investimentos na indústria

pesada. Essa transformação teria contido a enorme absorção de trabalho pela indústria que

estava em curso no período anterior. Para os autores, este caminho traz restrições associadas

às desigualdades sociais, à criação de empregos, e ao alto consumo de energia e matérias-

primas. Ademais, prosseguir nessa via de desenvolvimento requer instituições financeiras não

orientadas pelo mercado, o que estaria em contradição com o rumo das reformas. Por fim, do

ponto de vista da demanda efetiva, os autores acreditam que não haveria maiores restrições:

“The central character of the growth path is that it is based on a process of “producing

investment goods for producing investment goods” (or, for short, “producing machines

for producing machines”). According to Marxist theory of expanded reproduction, the

sustainability of such a growth process on the demand side is ultimately determined by

whether the speed of product innovation is sufficiently fast to match the saturation of the

existing mix of products (Meng 2001). In this regard, there is certain degree of

optimism.” (LO & GUICAI, 2006: pp. 13)

Outra abordagem sobre a sustentabilidade do crescimento calcado nos investimentos é

aquela proposta por Li (2006). De acordo com o autor, nas últimas décadas, a China tem

experimentado um alto crescimento puxado pelos investimentos e pelas exportações, trazendo

elevados custos sociais e ambientais. O consumo tem crescido muito mais devagar do que o PIB,

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59

e os investimentos, segundo Li (2006), provavelmente perfazem mais do que 50% do PIB chinês

na atualidade. Assim, o autor afirma que existe uma situação de sobre-investimento responsável

pelo declínio da produtividade do capital e da taxa de lucro. Essa última, por sua vez, já estaria

em um patamar extremamente baixo. Nesse sentido, haveria uma contradição entre o alto ritmo

da acumulação de capital e o baixo nível da taxa de lucro. Esta aparente contradição é resolvida

pelo autor por meio de três fatores:

a) O peso do setor público no total dos investimentos. Tendo em vista que os investimentos

estatais não são realizados com o intuito primordial de auferir lucros, o baixo patamar da

taxa de lucros não atuaria deprimindo os investimentos públicos. Assim, Li (2006) estima

que aproximadamente 50% do total de investimentos são realizados pelo Estado.

b) A atuação dos bancos públicos. Para o autor, os bancos públicos possuem a capacidade de

mobilizar enormes quantidades de poupança, que são direcionadas para o financiamento

dos projetos de investimento estatais.

c) O acúmulo de reservas internacionais. Li (2006) aponta que esse acúmulo vem

possibilitando o aumento na oferta de moeda e crédito bancário de forma a alimentar o

boom de investimentos. Tais reservas seriam sustentadas não só pelos superávits

comerciais da China, como também pelo influxo de capitais especulativos na economia

chinesa, em um contexto de liquidez abundante do mercado global de capitais face às

baixas taxas de juros exercidas pelas economias centrais.

Todavia, Li (2006) afirma que todos esses fatores que têm sustentado o alto ritmo de

acumulação de capital, a despeito da baixa taxa de lucro, irão deteriorar-se nos próximos anos.

Segundo ele, o investimento privado tornar-se-á dominante na economia chinesa, fazendo que a

taxa de investimentos torne-se muito sensível ao patamar e ao movimento da taxa de lucro. Em

relação aos bancos públicos, o autor afirma que a capacidade de mobilizar a poupança necessária

aos investimentos passou a depender da decisão dos poupadores ricos de realizar depósitos contra

os mesmos:

“As China continues to pursue financial liberalization and China becomes

increasingly integrated in the global capital markets, China’s wealthy

Page 60: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

60

individuals are likely to search for alternative investment opportunities that

offer higher rates of return.” (LI, 2006: pp.11)

Por fim, Li (2006) afirma que o aumento das taxas de juros pelos demais bancos centrais

pode levar a uma queda dramática dos fluxos de capitais para a China. Destarte, o autor prevê

que, na ausência dos fatores elencados acima, a taxa de lucro, que se estabilizou em função do

aumento da parcela dos lucros no PIB compensando a queda da produtividade do capital, tornará

a declinar colapsando os investimentos.

Um ponto questionável em ambas as teses é se de fato haveria tão intensamente uma

aceleração na relação capital produto, ou nos termos de Lo e Guicai (2006) uma intensificação do

capital e nos de Li (2006) uma queda na produtividade do capital. Segundo Medeiros (2010), não

há dúvidas de que o investimento sobre o PIB esteja em um elevado patamar, porém há uma

superestimação em seu valor:

“A origem desta superestimação está no cômputo das aquisições de terras nas

despesas de investimento das firmas, um fato novo na China tendo em vista as reformas

no regime de propriedade recentemente introduzidas. Como nos últimos anos houve um

boom especulativo dos investimentos imobiliários a elevação dos preços das terras

inflacionou as estimativas agregadas de investimentos8 (Lai, 2008).” (MEDEIROS,

2010: pp. 9)

Ademais, Medeiros também questiona o reduzido papel que os autores tem relegado ao

consumo:

“Do mesmo modo, também não encontra apoio a proposição de que o consumo das

famílias diminuiu sua importância para o crescimento econômico tendo em vista as

evidências sobre a extraordinária expansão do consumo de bens duráveis, automóveis, e

massificação do consumo em geral incluindo regiões distantes dos grandes centros.”

(MEDEIROS, 2010, pp. 9)

Page 61: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

61

De acordo com o autor, o atual ciclo de crescimento da economia chinesa, no qual a

indústria pesada ganha maior liderança, tem como elemento principal o prosseguimento do

processo de urbanização. Este processo gera efeitos na construção civil e na indústria pesada,

simultaneamente com a especulação com terras urbanas. Os investimentos estatais também têm

papel protagônico, principalmente na infraestrutura e, em especial, na construção de autoestradas,

afirmando o papel dos automóveis, principal bem de consumo com demanda em expansão no

período. Para Medeiros, esse padrão de crescimento está elevando a dependência do país na

importação de alimentos, matérias-primas e energia, fato que seria o principal obstáculo para a

continuação do desenvolvimento chinês, haja vista que o processo de urbanização está longe de

ter se completado, pois a maioria da população chinesa ainda vive no campo.

Assim, concluímos que a tese do sobre-investimento não se sustenta quando analisamos a

composição do investimento mais de perto. Desinflando o investimento, com a retirada das

despesas com terras urbanas, e levando em conta o elevado peso dos investimentos públicos

(50% do total para Li), cuja maior parcela destina-se à infraestrutura, a elevada taxa de

investimento chinesa não se materializa em uma vertiginosa expansão da capacidade produtiva,

de forma a gerar uma situação de subutilização resultante de sobre-investimento. Ademais, o que

pode ser percebido em ambos os diagnósticos é que boa parte das restrições à continuidade da

atual trajetória de crescimento da economia chinesa não está vinculada a insustentabilidade per se

do padrão de desenvolvimento calcado nos investimentos em infraestrutura e na indústria pesada.

As possíveis restrições levantadas por Li (2006) e Lo e Guicai (2006) seriam de natureza política,

com a deterioração dos seguintes instrumentos de controle estatal da economia: instituições

financeiras não orientadas pelo mercado, o volume de investimentos estatais, a atuação dos

bancos públicos e manutenção dos controles de capitais. A continuidade da utilização destes

instrumentos tem a ver com a disputa política na sociedade e dentro do aparato estatal chinês; ela

passa pela capacidade dos diferentes interesses econômicos de se afirmarem e pelas possíveis

coalizões entre eles, resultados que não estão inscritos em nenhuma sorte de taxas, muito menos

na de investimentos.

Page 62: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

62

4. Sumário das conclusões

Desde 1978, a China tem sustentado uma trajetória de alto crescimento da economia que

foi acompanhada por profundas mudanças estruturais. O eixo condutor destas transformações foi

a persecução da industrialização, que elevou de maneira dramática a produtividade da economia

como um todo, absorvendo o excedente de mão de obra rural. Durante esse processo, a China

logrou mudar o perfil de sua produção industrial; partindo de uma situação onde predominavam

bens leves de consumo intensivos em trabalho (brinquedos, têxteis e calçados), o país afirmou-se

na produção de bens de maior valor agregado, como aqueles da indústria eletrônica e de

tecnologia da informação, máquinas e equipamentos. Apesar da enorme participação de empresas

estrangeiras nestes setores, bem como do alto conteúdo importado, a China tem promovido uma

ativa política tecnológica que, através da transferência de tecnologia e vultosos investimentos em

pesquisa e desenvolvimento, têm permitido encurtar a distância tecnológica em relação aos países

desenvolvidos e promover a substituição de importações, além de permitir a retenção de uma

parcela maior do valor gerado pelo setor de processamento de exportações.

Por trás desse processo, a transformação capitalista teve severos impactos sobre a

estrutura social igualitária legada pelo período maoísta. Num contexto de acelerada urbanização,

agravaram-se as desigualdades entre o campo e a cidade, somando-se a uma enorme

estratificação social vivenciada dentro das urbes. O país encontra-se hoje entre os mais desiguais

do mundo, com seus novos bilionários, enriquecidos especialmente através das privatizações, e

uma massa de migrantes que compões uma segunda classe de cidadãos. Essa enorme polarização

social está na raiz das críticas associadas ao subconsumo e à insustentabilidade do atual ciclo de

crescimento. Todavia, a reprodução ampliada da economia capitalista, com o aumento da

acumulação de capital, não é de toda sorte incompatível com tal situação:

“It is true that success in industrialization crucially depends on the pace of capital

accumulation, which, in turn, depends very much on the volume of profits and the extent

to which they are used for investment. High corporate retentions and a dynamic profit-

investment nexus, rather than high household savings, were indeed the key

distinguishing components of successful industrialization in East Asia (Akyüz and Gore

1996).” (AKYÜZ, 2010: pp.28)

Page 63: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

63

Em que pese a transição para o capitalismo, o Estado chinês ainda dispõe de inúmeros

instrumentos de intervenção econômica, como os planos quinquenais, as agências coordenadoras

em conjunto com os bancos públicos, a alocação de investimentos via empresas estatais, o

controle dos preços-chave da economia, bem como o controle de capitais. A utilização desses

instrumentos para garantir a acumulação de capital acelerada vem possibilitando que esse padrão

de desenvolvimento concentrador de renda se perpetue. Enquanto o Estado dispuser desses

meios, ele poderá atuar na economia suprindo um eventual gap entre oferta e demanda. Se esse

padrão de desenvolvimento é desejável do ponto de vista social e ambiental é uma questão de

cunho político, que deve ser resolvida no interior da luta de classes do país.

Desta forma, o presente capítulo procurou demonstrar que, passando por diferentes

etapas, a industrialização na China permitiu enormes ganhos de produtividade para a economia,

desencadeando um processo acelerado de urbanização, que permitiu a manutenção de uma

trajetória de alto crescimento, centrada em seu mercado doméstico, ao longo das últimas três

décadas. A internacionalização da economia chinesa foi e tem sido controlada pelo Estado,

gerando os pré-requisitos para a continuidade da industrialização, através da ampliação da

capacidade de importar do país e da absorção de tecnologia estrangeira. A manutenção deste

processo, ou sua alteração em um sentido mais equitativo, passam pelos embates políticos dentro

e fora do Estado chinês, não havendo, a priori, nenhum empecilho inescapável dentro do ciclo

atual que permita garantir que o alto crescimento da economia chinesa não perdurará. Do ponto

de vista do padrão de acumulação vigente, não existe nenhum imperativo econômico para que a

distribuição funcional da renda altere-se em favor do trabalho impondo uma reorientação da

inserção externa do país como exportador de manufaturas baratas.

Page 64: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

64

Capítulo II. A estrutura do emprego, os salários industriais e a competitividade das

exportações chinesas.

As rápidas transformações experimentadas pela China desde o final da década de 1970

mudaram o perfil da população e do emprego no país. Essa mudança de perfil está intimamente

relacionada com a ascensão do país como fábrica do mundo. O massivo deslocamento

populacional das atividades agrícolas para as industriais e de serviços, e das áreas rurais para as

urbanas (movimentos que não são sinônimos) foram elementos determinantes para a enorme

expansão da indústria manufatureira exportadora em um contexto de baixos salários. Todavia, na

virada do século XX, os salários industriais entraram em uma trajetória de rápido crescimento,

que muitos associam à exaustão do excedente de trabalho disponível para a continuidade do

enorme fluxo migratório.

Nesse contexto, ao longo do presente capítulo, buscaremos fazer uma detalhada análise

estatística tanto para averiguar o impacto que o rápido aumento salarial teve sobre a

competitividade das exportações chinesas, como para fornecer um panorama geral sobre o

emprego e os salários, que nos habilite a tecer uma discussão teórica fundamentada, no capítulo

III, em relação à natureza dos aumentos salariais industriais. Com esse intuito, o presente capítulo

subdividir-se-á em sete seções além dessa introdução. A primeira delas será dedicada a algumas

observações e comentários fundamentais sobre os sistemas estatísticos chineses e sobre a

estrutura administrativa do país. Nas duas seções seguintes, nos voltaremos para a análise

estatística da estrutura do emprego, e, posteriormente, dos salários urbanos. As seções quatro e

cinco tratarão, respectivamente, do emprego e dos salários na indústria chinesa, buscando apontar

uma estimativa razoável da magnitude do aumento dos salários reais na indústria – em especial

na manufatura exportadora –, bem como as principais limitações das estimativas apresentadas.

Pesando todos os resultados obtidos por essas análises estatísticas, discutiremos os impactos dos

aumentos salarias na competividade das exportações chinesas na sexta seção. Por fim, a sétima

seção será dedicada às conclusões.

Page 65: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

65

1. Considerações iniciais

A primeira observação a ser feita no que diz respeito aos dados oficiais relativos ao

emprego e aos salários na China é que a transição para a economia capitalista tornou muitos dos

métodos estatísticos utilizados no período socialista inadequados à nova realidade. Nas três

últimas décadas, muitas mudanças foram introduzidas nas definições estatísticas e nos métodos

de coleta de dados, com o intuito de corrigir esse descompasso, mas que, colateralmente,

produziram rupturas nas séries e dados que não são diretamente comparáveis. Em que pese a

introdução dessas mudanças, permanecem inúmeros entraves e inadequações para a produção de

estatísticas precisas sobre a economia chinesa. Atualmente, coexistem diferentes métodos de

coleta de dados, com definições estatísticas e coberturas distintas, que muitas vezes produzem

dados contraditórios.

Os dois principais métodos de coleta de dados são o sistema de relatórios anuais e os

censos populacionais, em conjunto com a pesquisa amostral nacional sobre mudanças

populacionais, realizada anualmente entre os censos e revisada à luz dos mesmos. De acordo com

Banister (2005), o instrumento primário de dados relativos ao emprego e aos salários é o sistema

de relatórios anuais sobre as estatísticas do trabalho, pelo qual cada empresa, unidade econômica

com sistema de contabilidade independente (que também inclui unidades administrativas) deve

reportar as condições de trabalho no ano anterior e ao final do ano anterior. Os relatórios são

remetidos às autoridades responsáveis diretamente superiores, que os agregam e os remetem para

cima, até que cheguem ao governo central. Segundo Chan (2007) esse sistema de coletas de

dados é comumente referido como baobiao (“relatórios e tabelas”).

“It was developed to serve the traditional, Soviet-type planned economy characteristic of

pre-reform socialist China. Here the statistical system is part of the apparatus of

economic planning, which relies heavily on use of quantitative indicators to monitor the

economy, society, as well as the performance of local officials. Essentially, the system is

closely aligned with the “planning” needs of the government.” (CHAN, 2007: pp. 389)

Page 66: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

66

Todavia, o sistema de relatórios anuais sobre as estatísticas do trabalho não cobre as

pequenas empresas privadas, os negócios próprios e as TVEs, sendo responsável por produzir

dados somente para as unidades urbanas (formais), que são coletados pelo Ministério dos

Recursos Humanos e da Seguridade Social (MRHS), em conjunto com a NBS. Os dados

referentes às pequenas empresas privadas e aos negócios próprios registrados na Administração

Estatal para a Indústria e o Comércio (AEIC) são fornecidos por essa última (tanto para as áreas

rurais quanto para as urbanas), e os dados relativos ao emprego nas TVEs são coletados pelo

Ministério da Agricultura, também por meio de relatórios anuais, conferindo um caráter

descentralizado à produção de estatísticas sobre o emprego e os salários. O sistema de relatórios

anuais tende a subestimar, em milhões, o número de trabalhadores empregados, fato que se

evidencia quando o sistema de relatórios anuais é comparado com os censos populacionais.

As estatísticas sobre o emprego e sobre os salários publicadas anualmente nas diversas

edições do China Statistical Yearbook são compostas, basicamente, por dados provenientes do

sistema de relatórios anuais e dos registros administrativos, enquanto somente os dados

agregados (população economicamente ativa, número de pessoas empregadas, número de pessoas

empregadas por setor e número de pessoas empregadas por áreas urbanas e rurais) são

provenientes dos censos populacionais e das pesquisas amostrais nacionais sobre mudanças

populacionais.

1.1. Definição de área urbana

No capítulo precedente, o processo de urbanização em curso na China foi caracterizado

como elemento central do atual ciclo de crescimento econômico do país. Do ponto de vista

demográfico, o rápido crescimento das áreas urbanas resulta principalmente do deslocamento de

enormes contingentes populacionais provenientes de áreas rurais, iniciado na década de 1980 e

que se intensificou nos anos 1990 e 2000. Todavia, a despeito da enorme importância da

urbanização no desenvolvimento econômico da China nas últimas décadas, não é uma tarefa

trivial auferir o tamanho da população urbana e do emprego urbano no país. Em primeiro lugar,

devido ao fato de, na complexa divisão administrativa do país, o termo cidade ser empregado

Page 67: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

67

para designar diferentes níveis da administração, correspondendo a regiões e a sub-regiões

compostas por áreas rurais e urbanas. Assim, inúmeras regiões e sub-regiões, de tamanhos

variados, são administrativamente classificadas como cidades ao nível de províncias, cidades ao

nível de prefeituras e cidades ao nível de condados, muitas vezes criando a estranha situação de

cidades estarem sob a administração de outras cidades (CHAN, 2007). Por outro lado, as

pequenas cidades (towns) esparsamente localizadas em meio a unidades administrativas rurais, os

condados não são rotuladas sob o termo cidade, salvo provavelmente aquelas que funcionam

como o centro político dos condados – as county towns –, como ressalta Banister (2005).

As cidades ao nível de província são também designadas como municipalidades

(municipalities) diretamente sob o controle do governo central; elas são quatro: Beijing, Tianjin,

Xangai e Chongqing. Ao lado das províncias e das regiões autônomas, as referidas

municipalidades compõem o primeiro nível administrativo (nível provincial). O segundo nível

administrativo é o das prefeituras, no qual as regiões autônomas e as províncias se subdividem,

em linhas gerais, em prefeituras, prefeituras autônomas e cidades ao nível das prefeituras. As

municipalidades e as grandes cidades nas províncias (cidades ao nível de prefeituras) dividem-se

em distritos e condados. O terceiro nível administrativo, o dos condados, é composto por

condados, condados autônomos, distritos e cidades ao nível dos condados. Como ressaltado

anteriormente, os condados são unidades administrativas rurais; já os distritos são as unidades

administrativas definidas como áreas urbanas (compostas pelo núcleo urbano e por áreas

adjacentes) – é dentro das fronteiras administrativas dos distritos que os serviços sociais são

organizados segundo parâmetros urbanos (CHAN, 2007). As cidades ao nível de condado são

unidades com grande população agrícola e participação da agricultura, não possuindo distritos, e

estão sempre sob a administração de uma cidade ao nível de prefeitura ou superior, em conjunto

com o governo da província.

Page 68: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

68

Ilustração 2.1 – Definição administrativa de áreas urbanas

Fonte: Baseado em Chan e Hu (2003), pp. 53

Page 69: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

69

O quarto nível administrativo é o dos municípios (township level), onde se encontram

subdistritos (streets), pequenas cidades (towns), municípios e “distritos” ao nível dos condados,

que são os subdistritos (streets) pertencentes às cidades ao nível de condado (essas não possuem

distritos, uma vez que os distritos são unidades ao nível de condado). A ilustração 2.1 mostra, em

linhas gerais, a divisão das unidades administrativas da China e o conceito de áreas urbanas

administrativamente definido (as regiões em cinza), que é o mesmo conceito de urbano adotado

pelo sistema de relatórios anuais. Todavia, esse conceito é inconsistente com a própria definição

estatística oficial de área urbana adotada pela NBS e utilizada nos dois últimos censos

populacionais. Ademais, de acordo com Banister (2005), essa natureza administrativa do sistema

de relatórios anuais pode causar outra provável fonte de inconsistência, pois é possível que as

fábricas estatais em regiões rurais sejam contadas no emprego urbano.

A definição estatística oficial de área urbana adotada pela NBS baseia-se, principalmente,

em dois critérios: o de densidade populacional média, que deve ser superior a 1.500 residentes de

facto por quilômetro quadrado, ou no critério de área contígua construída (CHAN & HU, 2003;

CHAN, 2007). A ilustração 2.2 exemplifica a configuração administrativa/espacial típica das

grandes cidades chinesas (cidades ao nível de prefeitura ou superior). A delimitação “A”

compreende toda a cidade, como administrativamente definida, cabendo notar que o conjunto das

grandes cidades sob a delimitação “A” corresponde a quase totalidade da população e da

economia da China.

Page 70: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

70

Ilustração 2.1 – Diagrama conceitual da estrutura especial/administrativa de uma típica

cidade grande na China

(*) Baseado em Chan (2007), p. 387

(*) O esquema foi parcialmente modificado. Onde se apresentam as legendas “Unidade ao nível de município

pertencente ao distrito” e “Condado ou cidade ao nível de condado”, lia-se, respectivamente, “subdistritos” (streets) e

“condados”. A primeira alteração foi feita pelo fato de os distritos possuírem subdistritos, pequenas cidades e

municípios. Todavia, essa modificação não responde meramente a maior rigor classificatório, pois, de acordo com os

parâmetros definidos pela NBS para a delimitação das áreas urbanas no Censo de 2000 (CHAN & HU, 2003), todos

os subdistritos (streets), sejam eles pertencentes a distritos ou cidades ao nível de condado, são considerados áreas

urbanas. Assim, se a legenda fosse mantida como no esquema original proposto por Chan (2007), o diagrama estaria

incorreto, e toda a área delimitada por B deveria estar em cinza.

Page 71: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

71

Segundo Chan (2007), os limites da cidade administrativamente definidos podem ser mais

bem compreendidos pelo conceito de região. Os limites dados por “B” contêm a área urbana

administrativamente definida, formada pelo conjunto dos distritos. Os dados anuais produzidos

pelo sistema de relatórios referem-se a essa área geográfica. Todavia, como se pode perceber

pelas áreas em cinza, as áreas consideradas urbanas pela definição estatística da NBS “raramente

estão em total congruência com as áreas urbanas administrativamente definidas (distritos)”

(Chan, 2007, p.387). As áreas em cinza fora dos distritos são, grosso modo, as pequenas cidades

(towns) em condados e em cidades ao nível de condado e os subdistritos das cidades ao nível de

condado. Em linhas gerais, de acordo com os parâmetros definidos pela NBS para a realização do

censo de 2000 (CHAN & HU, 2003), a população das áreas urbanas é composta pela “população

das cidades” (população das áreas urbanas dos distritos e população dos subdistritos das cidades

ao nível de condado) e pela “população das pequenas cidades”. Destarte, a definição estatística de

urbano, que vem sendo refinada ao longo dos diversos censos populacionais, empreendeu um

enorme avanço em relação ao sistema de relatórios anuais, que computa a população e o emprego

das pequenas cidades (towns) junto com as estatísticas das áreas rurais (BANISTER, 2005;

CHAN, 2007).

É importante notar que a cobertura geográfica distinta dos dois principais sistemas

estatísticos gera uma situação na qual sequer se pode afirmar que as áreas urbanas definidas pelo

sistema de relatórios anuais são um subconjunto geográfico das áreas urbanas definidas pelos

censos populacionais, dificultando ainda mais a análise estatística. Em que pese essa limitação,

para fins práticos, em muitos momentos ignorar-se-á essa incongruência, de forma que as áreas

urbanas dos relatórios anuais serão tratadas como um subconjunto geográfico das áreas urbanas

definidas pelo censo, com a finalidade de comparar os dados dos dois sistemas estatísticos.

1.2. Definição de população urbana

Além da diferença geográfica na definição de áreas urbanas pelos dois sistemas

estatísticos, há um problema adicional, que torna os dados resultantes de ambos ainda mais

discrepantes: a definição de população residente em áreas urbanas. Mais especificamente, a

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72

diferença consiste em como os dois sistemas estatísticos tratam os migrantes. De acordo com

Chan (2008), existem dois tipos de migrantes, aqueles que conseguem o hukou local e os que

migram sem conseguir o hukou local do lugar de destino, fazendo parte da “população flutuante”.

Os primeiros constituem a migração “planejada” pelo Estado, que inclui critérios de

elegibilidade, somados às necessidades administrativas; em geral, são os trabalhadores

qualificados e suas famílias. Os migrantes com hukou local tornam-se oficialmente residentes do

local de destino da migração. Grosso modo, o sistema de relatórios anuais baseia-se na população

de jure (com hukou local), enquanto os censos populacionais consideram a população de facto.

Assim, a respeito do sistema de relatórios anuais, Chan (2007) afirma que “para as estatísticas

populacionais, o resultado primário desse sistema são as contagens baseadas no sistema de

hukou do país, administrado pelo Ministério da Segurança Pública” (CHAN, 2007, p.389).

Todavia, o autor ressalta que, a partir de 1997, o Ministério da Segurança Pública passou a

publicar dados sobre a população sem hukou local que está registrada como “residentes

temporários”, que desde então figuram nas estatísticas anuais (CHAN, 2008). As pessoas que

pretendem ficar três ou mais dias em um lugar onde não possuem hukou local, por lei, devem

registrar-se na polícia e requerer a permissão para ser “residente temporário” (CHAN, 2008). Os

“residentes temporários” não possuem acesso aos serviços sociais destinados à população de jure,

e uma parte deles é constituída por trabalhadores migrantes sem hukou local. Todavia, muitos

trabalhadores migrantes sem hukou local não conseguem a permissão para se tornar “residentes

temporários”.

Em contraste, os censos populacionais de 2000 e de 2010 basearam-se na população

residente de facto. Como população urbana residente, os censos contam todos aqueles que estão

residindo nas áreas urbanas por seis meses ou mais, de forma que, tanto os residentes sem hukou

local habitando determinada área urbana por seis meses ou mais, quanto os que têm hukou local

nessa mesma área urbana e dela saíram a menos de seis meses são contados como população

urbana nessa área específica. Assim, todos os migrantes sem hukou local que estão a menos de

seis meses em uma área urbana determinada são contados no local de seu registro domiciliar;

Esses últimos não são somente os migrantes que acabaram de chegar e ainda não completaram os

seis meses, mas são principalmente aqueles que trabalham parte do ano na agricultura, nos

períodos de plantio e/ou colheita, e aqueles vão de cidade em cidade em busca de emprego. A

Page 73: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

73

ilustração 2.3 mostra onde os trabalhadores migrantes sem hukou local que se encontram em

determinada unidade administrativa urbana, assim classificada pelos dois sistemas estatísticos,

estão nas estatísticas relativas a essa mesma unidade. Somente a categoria de trabalhadores que

estão nessa unidade por menos de seis meses e não possuem permissão de “residente

permanente” não são captados pelas estatísticas referentes a essa unidade, sendo contados nas

unidades administrativas urbanas ou rurais nas quais estão registrados. Na ilustração 2.3, toda e

qualquer pessoa que estiver em uma unidade administrativa na qual não possui o hukou local é

considerada como população flutuante, inclusive os não captados pelas estatísticas. Cabe notar

que essa é a definição mais ampla o possível do termo, uma vez que muitas vezes ela é

empregada somente para designar os migrantes rurais que buscam trabalhar nas cidades.

Ilustração 2.3 – Composição da população flutuante

Fonte: elaboração própria

Page 74: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

74

2. A estrutura do emprego

Como visto anteriormente, a transição para o capitalismo na China foi acompanhada pela

profunda alteração da estrutura do emprego. O gráfico 2.1 mostra a porcentagem de cada um dos

três setores da economia no emprego total. Em 1978, 70,5% dos trabalhadores estavam

empregados no setor primário, 17,3% no secundário e 12,2% no terciário, caracterizando uma

economia predominantemente agrária e rural. Aproximadamente três décadas depois, o

deslocamento de mão-de-obra entre os setores refletiu-se numa acentuada queda da participação

do emprego agrícola no emprego total. Assim, em 2010, 36,7% dos trabalhadores estavam

empregados no setor primário, enquanto 28,7% e 34,6% estavam ocupados, respectivamente no

setor secundário e terciário. O setor terciário foi o que mais cresceu nas últimas décadas e sua

participação no emprego total ultrapassou a do setor secundário ainda na primeira metade dos

anos 1990.

No que diz respeito à agricultura – que corresponde à quase totalidade do emprego no

setor primário, de forma que, doravante, os dois termos serão tratados como sinônimos –, embora

sua participação no emprego total tenha se reduzido, praticamente, à metade entre 1978 e 2010;

seu peso no emprego total é ainda muito elevado quando comparado com países desenvolvidos,

como os EUA, onde apenas 3% da população estão empregados na agricultura. No Brasil, um

país “emergente”, a parcela da agricultura no emprego total é de 10%. Todavia, é bem possível

que a participação do setor primário no emprego total na China esteja superestimada e, como

contrapartida, que os setores secundário e terciário estejam subestimados em suas participações,

como será discutido posteriormente.

Page 75: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

75

Gráfico 2.1 – Estrutura do emprego

(setor primário, setor secundário, setor terciário, em porcentagem)

Fonte: China Statistical Yearbook 2011

Notas:

(1)O setor primário é composto pela agricultura, pela silvicultura, pela pecuária e pela pesca

(2) O setor secundário é formado pela construção, pela mineração, pela manufatura e pela produção e abastecimento

de eletricidade, água e gás.

(3) O setor terciário é composto por todas as demais atividades.

Uma vez precisadas as definições das categorias urbanas nas estatísticas chinesas e, por

exclusão, as categorias rurais, proceder-se-á com a análise dos dados sobre os emprego urbano e

sobre o emprego rural. No ano de início das reformas econômicas, em 1978, a China possuía 401

milhões de trabalhadores empregados, dentre os quais 95,14 milhões eram trabalhadores urbanos

e 306,38 milhões eram rurais, constituindo, respectivamente, 23,7% e 76,3%. Um pouco mais de

três décadas depois, em 2010, o Sexto Censo Populacional revelou que o emprego no país

aumentara drasticamente, em função do crescimento da população em idade ativa, com 761,05

milhões de trabalhadores empregados em uma população economicamente ativa de 783,88

70,5

36,7

17,328,7

12,2

34,6

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

70,0

80,0

1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010

primário secundário terciário

Page 76: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

76

milhões. Em 2010, dos 761,05 milhões de trabalhadores empregados, 346,87 milhões eram

urbanos e 414,18 milhões eram rurais, correspondendo a 45,58% e 54,42% do total,

respectivamente. O gráfico 2.2 mostra a evolução do emprego rural e do urbano entre 1990 e

2010.

Gráfico 2.2 – Evolução do emprego por áreas rurais e urbanas

(número de pessoas empregadas em áreas urbanas e rurais, em milhões)

Fonte: China Statistical Yearbook 2011

Durante as duas últimas décadas, o emprego urbano, que cresceu todos os anos, dobrou de

tamanho, enquanto o emprego rural, em termos absolutos, esteve estagnado na década de 1990 e

passou a declinar nos anos 2000. A estagnação do emprego rural foi precedida por uma grande

expansão do mesmo no período 1978-1990: entre 1978 e 1985, o emprego rural aumentou em

20%, e de 1985 até 1990, verificou-se uma elevação de 28,7%. Assim, associadas ao vigoroso

processo de urbanização do país, as duas últimas décadas presenciaram a intensificação da

migração rural-urbana, que, todavia, somente começou a impactar em termos absolutos o

emprego rural nos anos 2000.

477,08 490,39

414,18

170,41

346,87

0

100

200

300

400

500

600

Emprego Rural Emprego Urbano

Page 77: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

77

Uma vez que os censos populacionais somente fornecem dados sobre o número total de

pessoas empregadas e o número de pessoas no emprego urbano e rural, para obter estatísticas

sobre a estrutura do emprego urbano e do rural, bem como dados relativos aos salários, é preciso

voltar-se para o sistema de relatórios anuais sobre as estatísticas do trabalho, para os dados

produzidos pelo Ministério da Agricultura sobre as TVEs e para os dados fornecidos pelos

registros perante a Administração Estatal para a Indústria e o Comércio (AEIC).

2.1. O emprego rural

Uma das características mais marcantes do emprego rural chinês é a grande participação

do emprego não agrícola, especialmente do emprego industrial. A estratégia de industrialização

geograficamente descentralizada do período maoísta, que promoveu a indústria tanto nas áreas

urbanas, como nas áreas rurais, frutificou-se no período pós-reformas. O gráfico 2.3 mostra a

estrutura do emprego rural de 1990 a 2010.

Gráfico 2.3 – Estrutura do emprego rural

(número de pessoas empregadas nas TVEs, em pequenas empresas privadas e negócios

próprios, resíduo estatístico, em milhões)

Fonte: China Statistical Yearbook 2011

368,39

196,4

92,65 158,92

16,0458,86

0

50

100

150

200

250

300

350

400

Resíduo TVEs pequenas empresas privadas e negócios próprios

Page 78: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

78

As TVEs, as pequenas empresas privadas e os negócios próprios (com registro no AEIC)

correspondem, em conjunto, ao emprego não agrícola rural. Em 1990, a parcela do emprego não

agrícola no emprego rural correspondia a 22,8%, ao passo que, em 2010, esse número saltara para

52,6%. Esse drástico crescimento respondeu a dois processos simultâneos, o próprio crescimento

do emprego não agrícola rural e a redução do emprego rural em termos absolutos. No que diz

respeito às TVEs, o acelerado ritmo de crescimento do emprego experimentado na segunda

metade dos anos 1980 e nos anos iniciais da década de 1990 deu lugar a um lento crescimento

iniciado com o processo de privatização das empresas do setor público. Enquanto o emprego nas

TVEs cresceu em 83,3%, no breve espaço de tempo de 1984 a 1988, nos últimos 20 anos, o

crescimento total do emprego nessas empresas foi de 71,52%. Em relação às pequenas empresas

privadas e negócios próprios, o crescimento do emprego nessa categoria foi muito mais rápido do

que nas TVEs, nas últimas duas décadas, de forma que, em 1990 as pequenas empresas privadas

e negócios próprios representavam apenas 14,8% do emprego rural não agrícola, em 2010, elas já

representavam 27% do total.

A diferença entre essas categorias e o emprego rural estimado pelos censos populacionais

é o resíduo estatístico. De acordo com Cai e Wang (2008):

“In rural areas, the household responsibility system guarantees that everybody

has his or her share of land, so it is a reasonable assumption that rural overt

unemployment according to the International Labor Organization (ILO) definition is

almost negligible because these laborers either work in non-agricultural sectors or in

agriculture. Therefore, this category of “rural employed persons” can be viewed as the

stock of rural laborers as well.” (CAI & WANG, 2008: pp.55)

Como não há desemprego aberto, a princípio, poderíamos assumir que esse resíduo

equivale aos trabalhadores empregados na agricultura. Se aceitarmos essa hipótese, surge

imediatamente um problema: o resíduo estatístico – que é a diferença entre o emprego rural

estimado pelo censo e os dados do sistema de relatórios sobre o emprego não agrícola – é inferior

em dezenas de milhões ao emprego no setor primário estimado pelo censo populacional. Assim,

em 2010, o emprego no setor primário era de 279 milhões de trabalhadores, enquanto os

trabalhadores agrícolas obtidos pela subtração do emprego não agrícola rural no emprego rural

somavam 196 milhões. Contrastando as duas categorias estatísticas, em 2010, havia 83 milhões

Page 79: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

79

de trabalhadores agrícolas “desaparecidos”. Onde estariam eles? Realizando atividades agrícolas

nas cidades? Obviamente que não. Na realidade, há uma pequena parcela de unidades urbanas

que exerce atividades agrícolas – em 2010, essas unidades urbanas empregavam 3,8 milhões de

trabalhadores – provavelmente devido às cidades incluírem os municípios vizinhos aos distritos

em sua área administrativa, para mais bem abastecê-los. Também existem TVEs operando em

atividades do setor primário, mas o montante de pessoas empregadas nessas TVEs é ínfimo,

somando 1,82 milhões em 2009.

Gráfico 2.4 – Diferença entre o emprego no setor primário e o resíduo estatístico

(em milhões de trabalhadores empregados)

Fonte: cálculos próprios realizados com os dados do China Statistical Yearbook 2011

Para encontrar a origem (ou o destino?) dos trabalhadores agrícolas “desaparecidos”,

voltar-nos-emos para a análise da composição do resíduo estatístico, que tem sido alvo de intensa

controvérsia na literatura acadêmica. De acordo com Cai e Wang (2008) pode-se dizer, grosso

modo, que o resíduo inclui os trabalhadores remanescentes na agricultura, inclusive os possíveis

trabalhadores excedentes, e os migrantes rurais, o que impõe uma série de dificuldades à tarefa de

estimar o número de pessoas ocupadas na agricultura. Assim, tentaremos, a seguir, definir a

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

70,0

80,0

90,0

19

90

19

91

19

92

19

93

19

94

19

95

19

96

19

97

19

98

19

99

20

00

20

01

20

02

20

03

20

04

20

05

20

06

20

07

20

08

20

09

20

10

Page 80: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

80

relação entre os migrantes e os trabalhadores agrícolas nesses dados estatísticos residuais, para

estimar o emprego agrícola.

Segundo Chan (2008, 2010), os migrantes rurais são definidos como aqueles

trabalhadores sem hukou local no destino e provenientes do campo; eles constituem um

subconjunto da população migrante. O Ministério da Agricultura (MOA, na sigla em inglês)

conduz anualmente pesquisas amostrais de amplitude nacional para estimar o número de

migrantes rurais. De acordo com Chan (2008, 2010), essas pesquisas são baseadas em definições

relativamente consistentes ao longo do tempo. As estimativas sobre a população migrante feitas

pelo MOA (tanto as pesquisas amostrais anuais quanto os censos agrícolas) diferenciam-se

daquelas produzidas pelos censos populacionais em principalmente dois aspectos: as primeiras

realizam-se nos locais de origem, enquanto as últimas, nos de destino, e as estimativas utilizam

definições diferentes do que seria a população migrante.

Como visto anteriormente, os censos populacionais consideram como migrantes as

pessoas sem hukou local que estão a seis meses ou mais fora do seu local de registro domiciliar.

Já a definição adotada pelo MOA em inglês é lacunar em relação a quem é considerado como

trabalhador rural migrante. Os textos em inglês definem, de maneira confusa, os migrantes em

relação à população residente dos domicílios rurais e não à população com hukou local. A

definição de trabalhadores migrantes rurais pode ser encontrada em inglês nos comunicados

número 1 e número 5 sobre os principais dados do Segundo Censo Nacional Agrícola da China.

No Comunicado n°1 lê-se: “Rural migrant worker: refers to the persons of the residence

practitioners in rural households, who employed outside of the local administrative jurisdiction

of the township more than a month in 2006.(sic)” O Comunicado n°5 fornece uma redação um

pouco melhor: “Rural migrant worker: refers to employed personnel of rural households’

residence who engaged for one month and above outside of the subdivision or district of local

town and township under the administrative jurisdiction in 2006.(sic) ” Todavia, o MOA adota

um critério de facto, o mesmo dos censos populacionais, para estabelecer quem deve ser

considerado como residente de domicílios rurais, de forma a estar apto a integrar tanto as

estatísticas sobre a força de trabalho rural, quanto sobre o emprego rural. Assim, a definição de

população residente em domicílios rurais aparece na definição de força de trabalho rural, presente

nos comunicados supramencionados: “Rural labor force resource: refers to the resident

Page 81: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

81

population of rural households at 16 years old and over, and possess the work abilities at the end

of 2006 (that is, population living in the household more than 6 months). (sic)” Desta forma,

permanece a dúvida de se os trabalhadores migrantes rurais devem ser considerados como

aqueles que, sendo residentes de domicílios rurais pelo critério de terem habitado tais domicílios

por seis meses ou mais, se ausentaram por mais de um mês sem, entretanto, ter excedido seis

meses, pois, se o fizessem, deixariam de ser considerados como residentes daqueles domicílios

rurais e seriam contados como a população residente dos domicílios de destino, não podendo

figurar como migrantes pelo critério de origem; ou se os trabalhadores migrantes rurais são

aqueles que, sendo considerados pertencentes aos domicílios rurais pelo critério do hukou local,

ausentaram-se de seus domicílios por um mês ou mais, inclusive se tiverem excedido seis meses

e não pertencerem mais à população rural tanto para os censos populacionais como para o

agrícola.

Essa diferença é fundamental para estimar a população empregada na agricultura presente

no resíduo. Se por trabalhadores migrantes rurais entendem-se aqueles que estão há mais de um

mês empregados fora de seus locais de registro domiciliar, ou seja, utilizando o critério do hukou

local, a parcela que migrou há mais de seis meses não pode ser descontada do resíduo do

emprego rural, pois tanto para o censo agrícola, quanto para o censo populacional, esses

trabalhadores figuram nos dados do emprego no local de destino e não no emprego na área rural

originária. No que diz respeito àqueles trabalhadores rurais que migraram há um mês, mas menos

de seis, também é preciso ter cautela quanto a subtraí-los do resíduo para encontrar a população

remanescente na agricultura. De acordo com Cai e Wang (2008), existe uma considerável

sobreposição dos dados relativos aos trabalhadores migrantes rurais e daqueles referentes aos

trabalhadores rurais não agrícolas.

A expansão do emprego não agrícola rural não ocorreu somente com a transformação dos

trabalhadores agrícolas das unidades administrativas (pequena cidade ou município) onde as

novas TVEs ou pequenas empresas privadas surgiam, mas também por meio da atração de mão-

de-obra agrícola de outras unidades administrativas, sendo responsável pelo vetor de migração

rural-rural. Assim, considerar-se-á a migração rural-rural como transformação do trabalho

agrícola em não agrícola rural, sob a hipótese plausível de que, salvo em casos excepcionais, é

improvável que haja migração intra-rural com o intuito de continuar exercendo trabalho agrícola,

Page 82: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

82

além de que, quando esse último tipo de migração ocorre, não existem maiores problemas para a

obtenção do hukou local do destino, como ressaltam Chan e Zhang (1999): “changes from urban

areas to the coutryside, from cities to towns, from big cities to small cities, from the countryside

to the countryside were generally not controled, provided that there were “proper” reasons”

(CHAN & ZHANG, 1999, p.828). Assim, uma parcela dos trabalhadores migrantes rurais, aquela

rural-rural, já está contabilizada no emprego não-agrícola e não pode ser descontada do resíduo.

Levando todos os fatores supramencionados em consideração, chega-se à conclusão de

que somente a parcela de trabalhadores migrantes rurais envolvidos nos fluxos rural-urbanos por

um período igual ou superior a um mês e inferior a seis meses poderia ser descontada do resíduo

para obter-se a população empregada na agricultura. Todavia, como discutido anteriormente,

pode-se afirmar que grande parte daqueles que migram por menos de seis meses é de migrantes

sazonais, ou seja, de trabalhadores que pretendem retornar para o trabalho agrícola uma ou mais

vezes ao ano, de forma a também integrarem a população empregada na agricultura. Assim, de

toda a categoria de trabalhadores migrantes rurais estimada pelo MOA, pode-se dizer que, grosso

modo, somente podem ser descontados do resíduo os trabalhadores migrantes que foram para

áreas urbanas por um período igual ou superior a um mês, porém inferior a seis meses, e que não

pretendem retornar ao trabalho agrícola, de forma que, com o decorrer de alguns meses, acabarão

por integrar a população residente de facto do lugar de destino, saindo da força de trabalho rural;

chamaremos tais trabalhadores como “migrantes em processo de conversão em residentes

urbanos”. Deduzida esta parcela daquilo que se chamou anteriormente de resíduo, obter-se-ia a

população empregada na agricultura.

Entretanto, da mesma forma que existe migração rural-urbana sazonal, também há a

migração rural-rural sazonal, na qual os trabalhadores ocupam-se tanto no emprego rural não

agrícola, quanto no emprego rural agrícola durante o ano. Se estes migrantes estão nos dados do

emprego rural não agrícola (TVEs, pequenas empresas privadas e negócios próprios), então, por

definição, não figuram no resíduo, já que este é obtido pela subtração do emprego rural não

agrícola do emprego rural. Assim, para estimar a população empregada na agricultura, devem-se

somar os migrantes rural-rurais sazonais e descontar os migrantes em processo de conversão em

residentes urbanos do resíduo. Como os migrantes em processo de conversão são um fluxo, que

se define por curto lapso temporal de cinco meses, e os migrantes rural-rurais são um estoque de

Page 83: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

83

trabalhadores em constantes movimento, podemos supor que a última categoria é maior que a

primeira, de forma que o número de pessoas empregadas, por algum período do ano, na

agricultura é maior que o resíduo. Todavia, se aumentássemos o resíduo, chegaríamos, então, a

absurda situação de tornar o número de pessoas empregadas em áreas rurais superior a ele

mesmo, sem adicionar nenhuma outra pessoa, ou seja, faríamos dupla contagem.

Todo esse exercício foi feito para demonstrar que, dentre todas as considerações postas, a

grande divergência nas estatísticas é oriunda do tratamento dado aos migrantes sazonais, parcela

crescente da população que permanece em estágio de proletarização incompleta, principalmente

pelo fator institucional do hukou, que, se por um lado, os impede de tornarem-se cidadãos

urbanos plenos; pelo outro, também os impede de tornarem-se completos despossuídos de meios

de produção, donos somente de sua força de trabalho. É essa ambiguidade na transição capitalista

que não se traduz imediatamente nos números. Nesse contexto, cabe a observação feita por

Wladmir Pomar (1980) sobre as relações de trabalho na agricultura (POMAR, 1980):

“À constatação do aumento indiscutível do emprego de assalariados permanentes e

temporários, caberia aos pesquisadores, conforme acentua Lênin, verificar o montante

real de cada uma dessas categorias, a proporção dos assalariados temporários que têm

como ocupação principal a venda de sua força de trabalho. Deslindar, assim, a confusão

normalmente causada pelas estatísticas que consideram assalariados permanentes só os

empregados constantes da exploração agrícola e não também os que só podem viver

assalariando-se permanentemente, mesmo que não encontrem um emprego constante,

que permaneçam grande parte do tempo desempregados ou subempregados.” (POMAR,

1980, pp.5)

A dicotomia assalariamento temporário e assalariamento permanente traduz-se na China

de maneira particular, uma vez que, na presença da propriedade coletiva da terra, assalariamento

é sinônimo de emprego não agrícola. Assim, essa dicotomia na agricultura traduz-se pela lógica

da repulsão/atração dos trabalhadores da/para a atividade agrícola; o que é distinto dos países

com agricultura capitalista, onde o assalariamento permanente/temporário se define não em

oposição ao trabalho agrícola, mas também em seu interior, como no Brasil dos bóias-frias.

Page 84: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

84

Chan (2008) também ressalta a necessidade de que a parcela de migrantes sazonais seja

diferenciada da parcela dos migrantes que permanecem no local de destino, tanto para fins

estatísticos, como para a formulação de políticas:

“To many observers, what stands out in China's recent mobility change is not only the

vast numbers of migrants reported here and there, but also that a great portion of them

are, confusingly, permanent “temporary” population (non-hukou population), and

enormous circulating labour moving back and forth between urban centers and villages

every year (Roberts, 1997; Fan and Taubmann, 1999; Liang and Ma, 2004). Many of

these labourers and circulators may not qualify as migrants defined rigidly in the

conventional way (e.g. requiring residence at the destination for at least 6 months)

because they may stay in one place for only a few months and then move on to another

place in search of jobs. The continuing massive waves of “temporary” migrant labourers

in the urban areas, however, pose a host of data measurement and policy issues, some

similar to but some different from those brought by “permanent” migrant labourers from

the countryside.” (CHAN, 2008: pp. 4)

No que diz respeito ao lugar dos migrantes sazonais em ambas os sistemas estatísticos,

podemos encontrar em Banister (2005) argumentos de que os censos populacionais tendem a

superestimar o emprego no setor primário por contabilizarem os trabalhadores sazonais cuja

principal ocupação é não agrícola, portanto, assalariada, como trabalhadores agrícolas:

“ One reason for this large difference is that the census asked about employment

only in the last week of October 2000, the week just prior to the date the census was

taken. The census surely detected individuals who work in agriculture during peak

planting and harvest seasons, but not the rest of the time, and these workers were

counted as employed in agriculture during peak autumn harvest season.

The way employment questions are asked in China's censuses and the

instructions for filling out the census forms apparently bias rural household respondents

in favor of reporting all household members as agricultural workers, even if some adults

in the family actually work in nonagricultural sectors of the economy most of the time.

Therefore, the decennial censuses may overreport employment in agriculture and

Page 85: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

85

underreport actual employment in many industrial and services sectors of the economy”

(Banister, 2005: pp. 10)

Destarte, concluímos que, dependendo do tratamento que se escolha dar aos migrantes

sazonais, um ou outro dado torna-se mais apropriado. Os censos tendem a contá-los como

trabalhadores agrícolas e o sistema de relatórios como trabalhadores não agrícolas. Como

veremos posteriormente, o tratamento dado a essa categoria de migrantes pelos estudos

acadêmicos que buscam estimar o excedente de mão-de-obra para o desenvolvimento capitalista

na China pode impactar negativa ou positivamente o que é considerado como trabalho excedente.

Em Marx, por exemplo, os trabalhadores assalariados temporários são considerados como parcela

do exército de reserva industrial.

Outra provável fonte de discrepância entre os dados advém das diferentes definições de

área urbana, de forma que, o emprego em muitas TVEs e pequenas empresas privadas e negócios

próprios rurais, localizadas em pequenas cidades (towns) que são consideradas como urbanas

pelos censos populacionais, não figurariam nos números do emprego rural, ao passo que, no

sistema de relatórios anuais, todos eles são considerados como emprego não agrícola rural.

Assim, ao subtrair toda a categoria de emprego não agrícola rural (sistema de relatórios anuais)

do emprego rural (censo populacional), estaríamos descontando uma parcela de trabalhadores

considerados urbanos do emprego rural para obter o emprego na agricultura.

Todas essas incongruências traduzem-se em enormes discrepâncias numéricas. Em termos

percentuais, se em 1978, o setor primário, estimado pelos censos, correspondia a 70,5% do

emprego total, enquanto, em 2010, essa proporção era de 36,7%; pelo sistema de relatórios

anuais, a proporção do emprego agrícola no emprego total era de, respectivamente, 69,3% e

25,8%, em 1978 e em 2010. Desta forma, em 2010, há uma diferença de quase 11 pontos

percentuais entre as duas estimativas. Todas essas considerações são de extrema importância

quando se tem em vista a enorme quantidade de publicações acadêmicas e jornalísticas dedicadas

à estimação da quantidade de trabalhadores excedentes que ainda existem na agricultura.

Page 86: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

86

2.2. O emprego urbano

As categorias do emprego urbano que figuram no sistema de relatórios anuais são o

emprego em unidades urbanas e o emprego em pequenas empresas privadas e negócios próprios

urbanos (com registro no AEIC). A diferença entre a soma dessas duas categorias e o emprego

urbano total, estimado pelos censos, tal como no emprego rural, é o resíduo estatístico ou os

“outros”.

Gráfico 2.5 – Estrutura do emprego urbano

(pessoas empregadas em unidades urbanas, pequenas empresas privadas e negócios

próprios, resíduo estatístico, em milhões)

Fonte: China Statistical Yearbook (CSY), várias edições Notas: (1)Como antes de 2003, não eram publicadas no CSY a categoria pessoas empregadas em unidades urbanas, mas somente a categoria número de staff e trabalhadores em unidades urbanas, para o período 1990-2002, utilizou-se essa última categoria como proxy da primeira. A categoria staff e trabalhadores em unidades urbanas representa aproximadamente 95% das pessoas empregadas em unidades urbanas.

140,59146,68

123,37

130,52

23,12

110,98

6,7

105,38

0

20

40

60

80

100

120

140

160

Unidades Urbanas Resíduo Pequenas Empresas Privadas e Negócios Próprios

Page 87: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

87

De 1990 até 1997, o emprego nas unidades urbanas ficou praticamente estagnado,

apresentou uma queda acentuada no período 1997-2002 e, a partir desse último ano, entrou em

trajetória de crescimento, que se manteve até 2010. Contrastando com essa evolução, o emprego

urbano em pequenas empresas privadas e negócios próprios cresceu durante todos os anos das

duas últimas décadas; todavia, apresentou um baixíssimo crescimento entre 1998 e 2001. A

categoria resíduo, ou “outros”, manteve-se estável até 1995 e, após esse ano, começou a crescer

rapidamente, até praticamente se estabilizar a partir de 2002. Como será visto logo a seguir, a

partir de 1996, o emprego nas unidades urbanas do setor público, que compunham a grande

maioria do emprego nas unidades urbanas, passou por drástica redução até 2002, fato que

responde não somente pela redução do emprego nas unidades urbanas até 2002, como também

pode contribuir para explicar o rápido crescimento do resíduo no mesmo período.

Gráfico 2.6 – Emprego em unidades urbanas

(estatais, coletivas, outras formas proprietárias, em milhões de trabalhadores)

Fontes: China Statistical Yearbook (várias edições)

110,44

90,58

65,16

28,83

19,63

5,97

59,38

0

20

40

60

80

100

120

19

84

19

85

19

86

19

87

19

88

19

89

19

90

19

91

19

92

19

93

19

94

19

95

19

96

19

97

19

98

19

99

20

00

20

01

20

02

20

03

20

04

20

05

20

06

20

07

20

08

20

09

20

10

unidades estatais unidades coletivas outros tipos de unidades

Page 88: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

88

Entre 1997 e 1998, há uma quebra na série das unidades urbanas, representada por uma

queda de 23,31 milhões de trabalhadores empregados. De acordo com Banister (2005), uma das

razões dessa quebra encontra-se no fato de que os trabalhadores demitidos no setor público ao

longo dos anos anteriores e que ainda mantinham vínculo com suas antigas unidades de trabalho

deixaram de ser contados no emprego urbano de 1998 em diante pelo sistema de relatórios

anuais. Assim, grande parte do processo de demissões em massa ocorrido nas unidades do setor

público desde meados da década de 1990 até 1998 foi absorvido nos dados referentes a este

último ano. Essa alteração na cobertura dos dados sobre emprego urbano pode ser mais bem

identificada no gráfico 2.6 que apresenta o emprego em unidades urbanas por estrutura

proprietária, especificamente nos dados relativos ao emprego em unidades urbanas estatais, que

sofreu uma queda de 19,86 de trabalhadores entre 1997 e 1998. Todavia, cabe notar que enquanto

a queda na série unidades urbanas se deve principalmente à exclusão dos demitidos das

estatísticas do emprego, a redução do emprego em unidades urbanas estatais responde tanto pelas

demissões, quanto pelas privatizações. Essas últimas não afetam o total do emprego em unidades

urbanas, mas somente a composição desse. O processo de “restruturação” das empresas estatais

contempla tanto o aspecto de mudança da estrutura proprietária, quanto o de “enxugamento” do

emprego nas empresas, tendo elas mudado de forma proprietária ou não. A “restruturação” das

empresas do setor público continuou até aproximadamente 2002, de forma que, entre os dados de

1997 e os de 2002, houve um declínio de 38,81 milhões no emprego das unidades estatais. O

emprego nas unidades urbanas coletivas, que já vinha declinando desde 1993, também

experimentou enorme redução entre 1997 e 2002, caindo em 17,61 milhões de trabalhadores. A

tendência de declínio do emprego nessas unidades continuou até 2010.

A categoria outras unidades urbanas só passou a existir em 1984 ainda que fosse

desprezível estatisticamente. É no início da década de 1990 que ela começa a crescer de fato, em

uma trajetória de expansão contínua até 2010, atingindo, neste último ano, 45,5% do emprego em

unidades urbanas. Considerando 1995 como o ano em que as demissões em massa começaram a

ocorrer, deste ano até 2002 o emprego em outras unidades urbanas aumentou em 18,06 milhões,

enquanto o emprego em unidades urbanas estatais e coletivas consideradas conjuntamente caiu

em 61,23 milhões. A outra categoria que apresentou grande expansão nesse mesmo período foi o

emprego em pequenas empresas privadas e negócios próprios que cresceu em 22,22 milhões.

Page 89: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

89

Desta forma, o resultado líquido das demissões foi de 20,95 milhões entre 1995 e 2002. Deve-se

notar, todavia, que os empregos perdidos e os empregos criados não ocorreram nas mesmas áreas

urbanas. As demissões atingiram principalmente as áreas de industrialização mais antiga, o

“cinturão da ferrugem” no Nordeste do país, onde o desemprego tornou-se um problema crônico,

em particular entre os trabalhadores mais velhos; enquanto a expansão do emprego,

especialmente na manufatura exportadora, ocorreu no Sul do país, “o cinturão do sol”, com a

contratação de trabalhadores jovens (LEE, 2007).

Uma vez analisadas as tendências gerais das categorias oficiais do emprego urbano, que

figuram tanto no CSY quanto no CLSY, cabe indagar quem são os “trabalhadores desaparecidos”

(resíduo), ou seja, aqueles que figuram nos dados do censo, mas que não aparecem nas categorias

do sistema de relatórios anuais e nos registros da AECI. Tendo em vista o enorme crescimento,

até 2001, da parcela de trabalhadores urbanos que se encontra na categoria resíduo ou “outros”, e

a manutenção dessa parcela em elevado patamar, responder essa questão torna-se uma condição

sine qua non para a compreensão da estrutura e da dinâmica do emprego urbano. De acordo com

Morais (2011):

“Os “outros” são trabalhadores captados pelo censo populacional e que não estão

envolvidos em nenhuma forma registrada de trabalho. Formalmente, para as secretarias

de trabalhos das suas cidades, eles não existem. Em Pequim, por exemplo, eles são os

numerosos ambulantes de calçadas, vendedores de alimentos nas ruas, donos das

barraquinhas que consertam roupas e bicicletas, babás e trabalhadoras domésticas, e

aqueles que transformam suas residências em pequenas lojas de comida, roupas e

utensílios. A maior parte é composta de migrantes vindos das zonas rurais e ainda sem

registro.” (MORAIS, 2011: pp.133)

Além desses trabalhadores migrantes em serviços domésticos, comércio de rua e

domiciliar, bem como toda a sorte de ocupação que for possível exercer nos domicílios ou nas

ruas para sobreviver, o que ficou conhecido na literatura como “desemprego disfarçado”, é

possível, grosso modo, identificar ao menos mais dois componentes relevantes na categoria

“outros”: os trabalhadores das pequenas cidades (towns) e os trabalhadores migrantes em

unidades urbanas. No que se refere aos trabalhadores das pequenas cidades, esses surgem como

Page 90: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

90

resíduo por não serem considerados como trabalhadores urbanos pelo sistema de relatórios anuais

sobre as estatísticas do trabalho. É possível que grande parte dos trabalhadores das pequenas

cidades esteja nos dados relativos ao emprego nas TVEs, sendo contabilizados pelo sistema de

relatórios anuais como trabalhadores rurais, enquanto figuram no emprego urbano estimado pelos

censos populacionais, fato que, como discutido na seção anterior, também afetaria a estimativa

dos trabalhadores empregados na agricultura pelo método residual. Reforçando essa hipótese está

a afirmação de Banister (2005) de que muitas fábricas manufatureiras exportadoras buscam

instalar-se fora dos limites administrativos das cidades, em áreas suburbanas, em zonas

industriais peri-urbanas, em parques industriais, em pequenas cidades (towns) e em áreas rurais

cujas terras estão sendo tomadas para construir zonas manufatureiras, de forma a serem

classificadas como rurais ou TVEs, pois assim devem pagar menos encargos sociais, e os

requerimentos de reportagem de dados sobre o trabalho são mínimos.

Em relação aos trabalhadores migrantes sem hukou local que trabalham em unidades

urbanas formais, especialmente nas grandes fábricas da manufatura exportadora, Banister (2005)

ressalta que, em que pese o fato de as unidades urbanas formais deverem reportar o número de

trabalhadores migrantes empregados, somente um número muito pequeno desses trabalhadores o

é. De acordo com a autora, o Censo de 2000 estimou que nesse mesmo ano havia 14,6 milhões de

migrantes rurais (sem hukou local) na manufatura urbana (inclui pequenas cidades). Todavia, o

número de migrantes rurais na manufatura em unidades urbanas, reportado pelo sistema de

relatórios anuais, em 2002, foi de 4,59 milhões (15% do emprego manufatureiro em unidades

urbanas). Um dos motivos dessa diferença é o lugar das pequenas cidades (towns) nos dois

sistemas, mas existe uma série de outros motivos que concorrem para que as unidades urbanas

sub-reportem o número de trabalhadores empregados, dentre eles: evadir impostos, minimizar os

gastos com a seguridade social e com os fundos de moradia administrados pelas autoridades

urbanas e burlar a legislação sobre a jornada de trabalho e sobre o salário mínimo. (Banister,

2005). Morais (2011) ressalta que, enquanto Banister (2005) afirma que uma pequena parcela dos

migrantes rurais é captada no emprego em unidades urbanas pelo sistema de relatórios anuais, a

vasta maioria da literatura sobre o mercado de trabalho chinês defende que os migrantes sem

registro são totalmente excluídos dessas estatísticas, que somente seriam sensíveis aos migrantes

com registro (MORAIS, 2011: pp. 139).

Page 91: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

91

No que diz respeito ao desemprego urbano, as estatísticas oficiais reportam o desemprego

registrado. Somente podem se registrar nas agências de emprego aqueles trabalhadores em idade

ativa que possuem hukou não agrícola. De acordo com a NBS, a taxa de desemprego registrado é

definida como:

“ Registered Unemployment Rate in Urban Areas refers to the ratio of the number of

the registered unemployed persons to the sum of the number of persons employed in

various units (minus the employed rural labour force, re-employed retirees, and Hong

Kong, Macao, Taiwan or foreign employees), laid-off staff and workers in urban units,

owners of private enterprises [pequenas empresas privadas] in urban areas, owners of

self-employed individuals [negócios próprios] in urban areas, employees of private

enterprises in urban areas, employee of self-employed individuals in urban areas, and the

registered unemployed persons in urban areas.” (CSY, 2011)

Esse índice tem sido muito questionado, seja por não conter os migrantes, seja por não ter

incorporado plenamente, no numerador, os trabalhadores demitidos das unidades urbanas do setor

público. Esses últimos, que até 1997 figuravam nas estatísticas do emprego, foram estimulados a

aposentar-se mais cedo ou direcionados aos Centros de Reemprego (Remployment Centers –

RECs): “The RECs were designed to provide retraining and job-search assistance.

Perhaps more crucially, the REC took over the worker’s affiliation from the enterprise, paid

into the worker’s social security and welfare funds, and typically provided a stipend to

the worker." (NAUGHTON, 2007). Os trabalhadores demitidos encaminhados aos RECs

poderiam permanecer a eles filiados por no máximo três anos, e, enquanto mantivessem esse

vínculo, não eram contados como desempregados. Destarte, Naughton (2007) soma os

trabalhadores demitidos vinculados aos RECs com os desempregados registrados para obter o

desemprego em áreas urbanas.

Page 92: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

92

Ilustração 2.4 – Desemprego urbano

(estoque de trabalhadores demitidos, estoque de trabalhadores desempregados registrados, fluxo

anual de novos trabalhadores demitidos, em milhões)

Fontes: Naughton (2007)

A figura mostra que, no período 1996-1999, o número de demitidos não se traduziu no

aumento do desemprego registrado, que esteve ao redor dos 3%; todavia, com o decorrer do

período máximo para manter filiação nos RECs, o número de desempregados registrados passou

a crescer a partir de 2001, enquanto o número de demitidos anuais diminuía (NAUGHTON,

2007; CAI e WANG, 2010). Segundo Naughton (2007), o pico de desemprego ocorreu em 1997,

quando esteve entre 8% e 10%, ao passo que o desemprego registrado era de 3%. A partir de

2002, esse último índice subiu levemente e esteve entre 4,0% e 4,3% em todos os anos até 2009

(CLSY, 2010). É preciso notar que, mesmo com essa correção, os migrantes continuam excluídos

da estimativa sobre o desemprego.

Cai e Wang (2010) propõem estimar o desemprego indiretamente através dos dados

oficiais. O pressuposto dos autores é que não há desemprego rural aberto, devido à propriedade

coletiva/estatal da terra, de forma que a população rural empregada é igual à população rural

Page 93: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

93

economicamente ativa. Assim, subtraindo o emprego rural da população economicamente ativa,

os autores estimam a população economicamente ativa urbana, e, uma vez obtida esta, tendo os

dados sobre o emprego urbano, é possível obter a taxa de desemprego urbana. O gráfico 2.7

apresenta a taxa de desemprego assim estimada, ou seja, a taxa de desemprego implícita nas

pesquisas populacionais, e a taxa registrada de desemprego.

Gráfico 2.7 – Taxa de desemprego implícita e taxa de desemprego registrada

(em porcentagem)

Fonte: China Statistical Labor Yearbook (2010), Cai e Wang (2010) e cálculos próprios

Cai e Wang (2010) estimam a taxa de desemprego implícita para o período 1995-2000. Os

números apresentados no presente trabalho são idênticos ao dos autores até 2000. De 2001 a 2005

os números divergem, com as nossas estimativas sendo inferiores, devido à revisão das

estatísticas do emprego e da população economicamente ativa feita pela NBS à luz do censo

populacional de 2010. Como é possível notar, diferentemente de Naughton (2007), a taxa de

desemprego implícita proposta por Cai e Wang (2010) não apresenta seu pico em 1997; nesse

ano, ela apresenta o valor de 4,5%, em torno da metade do valor estimado pelo primeiro autor.

Novamente surge a dicotomia que permeia as estatísticas chinesas: a incongruência entre os

dados produzidos por amostragem e os dados obtidos administrativamente. Assim, uma das

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fontes de diferença advém do fato de os dados da PEA e do emprego incluírem os migrantes que

residem a mais de seis meses em áreas urbanas como residentes dessas áreas, bem como

basearem-se na definição mais ampla de área urbana. Destarte, a taxa de desemprego proposta

por Naughton (2007) seria aquela entre residentes com registro domiciliar em áreas

administrativamente urbanas, enquanto a de Cai e Wang (2010) levaria em conta o conjunto dos

residentes urbanos de facto tal como entendido pela NBS.

Tendo em vista que se espera que a taxa de desemprego oficial esteja subestimada,

especialmente se se leva em consideração a exclusão dos demitidos filiados aos RECs, um fato

interessante pode ser notado no gráfico 2.7, no qual a taxa de desemprego implícita nas pesquisas

populacionais é inferior à taxa de desemprego registrado, para os anos de 2003, 2004 e 2007.

Antes da revisão das estatísticas feita NBS, a taxa de desemprego implícita era sempre superior

àquela dos desempregados registrados. Em que pese essa revisão, a taxa de desemprego urbano

implícita mostrou-se mais sensível às demissões em massa ao final dos anos 1990 e levemente

superior àquela oficial em 2008 e 2009, anos de crise financeira internacional. Em 2010, essa

taxa voltou a atingir o mesmo patamar apresentado em 1998, sendo um pouco superior a 6% da

população economicamente ativa urbana. Todavia, dados os múltiplos problemas de definição e

cobertura estatísticas, não possuímos condições de afirmar o quão próximo da realidade está a

taxa de desemprego implícita como estimativa do desemprego entre a população urbana residente

de facto.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a transição para o capitalismo só teve impacto

significante no emprego urbano a partir do início da década de 1990. Uma vez deslanchado o

desenvolvimento do setor privado, o Estado chinês pôde dar início ao desmonte das empresas do

setor público em áreas urbanas, reforçando aquele desenvolvimento. A partir do momento em que

as privatizações vão sendo realizadas e o setor privado adquire reforçado vigor, a categoria

resíduo, que se encontrava estagnada ao redor dos 20 milhões entre 1990 e 1995, passa a crescer

vertiginosamente, refletindo principalmente a migração rural-urbana não planejada pelo Estado e,

provavelmente, também os trabalhadores demitidos. Como discutido no Capítulo 1, o fluxo de

migração voluntária no sistema de hukou somente se torna possível com a dissolução do contexto

econômico no qual esse operava, ou seja, com a desestruturação da situação em que o emprego

era estritamente controlado pela burocracia estatal. Como resultado da transição para o

Page 95: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

95

capitalismo, o perfil do emprego urbano foi profundamente alterado. Em 1990, 81,5% do

emprego em áreas urbanas concentrava-se nas unidades estatais e coletivas, enquanto o emprego

em outras unidades urbanas e na categoria das pequenas empresas privadas e negócios próprios

urbanos respondia por, respectivamente, 1% e 4% do total. Já o emprego urbano fora das

categorias oficiais do sistema de relatórios anuais (resíduo) representava 13,57% do emprego

urbano. Em 2010, o “setor privado oficial” passou a responder pela maior parcela do emprego

urbano, com 47,5% do total - sendo que 17,12 pontos percentuais atribuem-se às outras unidades

urbanas e 30,38 pontos percentuais às pequenas empresas privadas e negócios próprios urbanos-,

os trabalhadores não captados pelo sistema de relatório anuais tornam-se quase um terço do

emprego urbano (31,99%) e os trabalhadores em unidades estatais e coletivas representavam

20,50%. Cabe notar, que os dados referentes ao emprego em unidades urbanas estatais incluem os

empregados na estrutura administrativa do Estado, de forma que, em 2008, das 64,47 milhões de

pessoas empregadas nas unidades urbanas estatais, somente 25,01 milhões estavam em empresas,

enquanto 39,46 milhões encontravam-se nas categorias instituições e agências e organizações.

3. A evolução dos salários urbanos

É de extrema importância ter em perspectiva essa distribuição do emprego urbano, pois a

grande maioria dos trabalhos acadêmicos que tratam do aumento dos salários urbanos refere-se

aos trabalhadores reportados anualmente pelas unidades urbanas, uma vez que, até 2009, as

estatísticas oficiais sobre os salários urbanos limitavam-se a essa categoria de trabalhadores.

Como visto na seção anterior, o emprego em unidades urbanas como parcela do emprego urbano

total experimentou drástica redução ao longo do tempo, saindo de 82,5% do total em 1990, para

37,62% em 2010. Todavia, a partir de 2010, as edições do CSY passaram a apresentar dados

sobre os salários em pequenas empresas privadas, que representavam 12,74% e 12,88% do

emprego urbano total em 2009 e 2010, respectivamente. Mesmo com a expansão da cobertura das

estatísticas sobre os salários urbanos nos dois últimos anos, as estatísticas salariais representam

aproximadamente metade do emprego urbano, mais especificamente, a metade mais bem

Page 96: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

96

remunerada, uma vez que não só os negócios próprios estão fora dos dados salariais, como

também os trabalhadores da categoria resíduo.

Um estudo detalhado e de largo recorte temporal sobre as mudanças na estrutura dos

salários urbanos, tendo como base as estatísticas oficiais, foi realizado por Yang, Chen e

Monarch e Yang (2010). Os autores analisam os salários da categoria staff e trabalhadores em

unidades urbanas para o período 1978-2007. A categoria staff e trabalhadores em unidades

urbanas é uma subcategoria do emprego em unidades urbanas e corresponde a aproximadamente

95% dos trabalhadores em unidades urbanas; essa subcategoria exclui os aposentados, os

aposentados re-empregados, os professores em escolas dirigidas pela população local, os

estrangeiros e pessoas provenientes de Hong Kong, Taiwan e Macau, bem como outras pessoas

que não devem ser incluídas pelos regulamentos relevantes (CSY, 2004). Antes de 1995, somente

eram publicados dados salariais para a categoria staff e trabalhadores em unidades urbanas; a

partir de 1995, passaram a ser publicadas estatísticas salariais para a totalidade dos empregados

em unidades urbanas. Assim, utilizaremos os dados da categoria staff e trabalhadores fornecidos

por Yang, Chen e Monarch (2010) até o referido ano e, para o período 1995-2010, utilizaremos as

estatísticas salariais da totalidade do emprego em unidades urbanas.

De acordo com Yang, Chen e Monarch (2010), de 1978 a 2007, o salário real médio anual

cresceu 7,6 vezes. Para eles, esse crescimento foi influenciado por três fases distintas das

reformas, traduzindo-se em diferentes ritmos de crescimento para os salários em escala nacional.

Na primeira fase, de 1978 a 1985 (ano no qual se iniciam as reformas urbanas), o salário real

médio anual cresceu a uma taxa moderada de 4,9% a.a. Entre 1986 e 1997, na segunda das fases,

a taxa de crescimento dos salários permaneceu modesta, em 3,9% a.a, tendo sido impactada pelos

anos de crescimento negativo (1988 e 1989). Por fim, a última fase, iniciada em 1998 com a

grande restruturação das empresas estatais, foi caracterizada por uma espetacular taxa de

crescimento de 13,2% a.a. até 2007. O gráfico 2.7 mostra a taxa anual de crescimento dos salários

reais médios em unidades urbanas para o período 1996-2010 e em pequenas empresas privadas

urbanas em 2010. Nele é possível identificar o final da segunda fase de crescimento descrita por

Yang, Chen e Monarch (2010), com os anos de 1996 e 1997 apresentando taxas de crescimento

muito abaixo do período 1998-2010, no qual os salários reais médios em unidades urbanas

cresceram a uma taxa média de 12,73% a.a.

Page 97: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

97

Gráfico 2.8 – Taxa anual de crescimento dos salários reais em unidades urbanas e pequenas

empresas privadas urbanas

(unidades urbanas, unidades urbanas estatais, unidades urbanas coletivas, outras unidades

urbanas, pequenas empresas privadas, a preços constantes de 2010)

Fontes: China Statistical Yearbook (2010, 2011)

De acordo com Yang, Chen e Monarch (2010), durante a década de 1990, a enorme

expansão do emprego nas empresas da categoria outras unidades urbanas, especialmente nas

empresas domésticas de capital aberto, joint-ventures e empresas estrangeiras, foi acompanhada

por salários e por taxa de crescimento desses superiores ao das empresas estatais. Assim, os

autores estimam que, durante os anos 1990, como discutido no capítulo anterior, os salários no

setor privado estiveram 31% mais altos, em média, do que nas estatais. Com a restruturação das

empresas estatais em 1998, dando início a terceira fase supramencionada, a taxa de crescimento

dos salários reais nas unidades do setor público aumenta vertiginosamente, sendo acompanhada,

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unidades urbanas unidades estatais unidades coletivas

outras unidades pequenas empresas

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após um ano, por grande aumento na taxa de crescimento dos salários reais em outras unidades

urbanas, sem que, entretanto, o crescimento dos salários nessas últimas atingisse o mesmo nível

das primeiras, salvo pelos anos de 2008 e 2010. Assim, enquanto o emprego se contraia nas

empresas estatais, os salários dessa categoria de empresas passavam a crescer mais rapidamente

do que aqueles das empresas do setor privado. De acordo com os autores, as empresas estatais

cumpriam a importante função política e social de manter baixo o desemprego e contribuir para a

estabilidade social, de forma que os lucros eram limitados e a manutenção de trabalhadores

redundantes traduzia-se em baixa produtividade (YANG, CHEN & MONARCH, 2010). A

restruturação dessas empresas expressou-se em aumentos salariais, seja por meio da monetização

dos salários – uma vez que se buscou desvincular os encargos sociais da responsabilidade direta

das empresas, instaurando esquemas tripartites de financiamento da seguridade social e

realizando a privatização de serviços sociais –, seja por meio do aumento da produtividade:

“Using industrial firm-level data, Deng et al. (2007) find that labor productivity at SOEs

tripled from 1995 to 2003, with more than 34% of productivity growth attributable to

substantial job elimination. Substantial gains in productivity enabled the state sector to

raise wages of their workers.” (YANG, CHEN & MONARCH: 2010, pp. 10)

Se, por um lado, as demissões foram responsáveis por grande parte aumento da

produtividade; pelo outro, elas implicaram em significativo aumento na taxa de desemprego entre

residentes urbanos permanentes, que, de acordo com Giles et al. (2005 apud YANG, CHEN &

MONARCH, 2010), saiu de 6,1% em 1996 para 11,1% em 2002.

O crescimento mais acelerado dos salários reais das unidades urbanas estatais durante a

maior parte do período 1998-2010 fez que esses salários alcançassem aqueles das outras unidades

urbanas, de forma a ultrapassá-los em 2005, como pode ser visto no gráfico 2.9. Assim, em 1995,

o salário real médio nas unidades estatais correspondia a 71,9% do salário nas outras unidades

urbanas; em 2010, essa relação era de 1,07%.

Page 99: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

99

Gráfico 2.9 – Salários reais anuais em unidades urbanas e em pequenas empresas urbanas

(unidades urbanas, unidades urbanas estatais, unidades urbanas coletivas, outras unidades

urbanas, pequenas empresas privadas urbanas, a preços constantes de 2010)

Fontes: China Statistical Yearbook (2010, 2011)

É preciso lembrar que a caracterização geral de que, a partir de 1998, os salários reais

urbanos apresentaram alta taxa de crescimento, de aproximadamente 13% a.a., com as unidades

estatais experimentando taxas ainda mais elevadas, responde por apenas uma parcela da realidade

do trabalho urbano na China. Ao menos até o final dos anos 1980 ou o início dos anos 1990, o

emprego em unidades urbanas ainda respondia pela vasta maioria do emprego em áreas urbanas;

assim, os resultados encontrados pelos autores para o período iniciado em 1978 até a virada dos

anos 1980, refletem de forma relativamente precisa a estrutura dos salários urbanos. Todavia, do

início da década de 1990 em diante, os resultados por eles obtidos devem ser interpretados com

cautela, pois passam a representar uma parcela cada vez mais reduzida do emprego urbano, mais

especificamente, a parcela mais bem remunerada dos trabalhadores urbanos. Como é possível ver

no gráfico 2.9, os salários reais em pequenas empresas privadas, no biênio 2009-2010, eram

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unidades urbanas unidades estatais

unidades coletivas outras unidades

pequenas empresas urbanas

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muito inferiores ao das unidades urbanas, de forma que eles representavam apenas 56,8% dos

salários dessas últimas, em 2010. O gráfico 2.8 mostra a única taxa anual de crescimento dos

salários reais em pequenas empresas privadas disponível, que é aproximadamente a mesma das

unidades urbanas no ano de 2010. Todavia, não podemos inferir nada a respeito da tendência de

crescimento desses salários.

No que concerne à evolução dos salários de acordo com as regiões, a transição para o

capitalismo implicou na dissolução do padrão igualitário de distribuição regional dos salários,

legado pelo período maoísta (YANG, CHEN & MONARCH, 2010). Esse padrão igualitário

manteve-se, grosso modo, na primeira década das reformas. A partir de meados da década de

1980, as variações nos salários médios regionais aumentaram de maneira significativa e

persistente, de forma que, com o passar do tempo, grandes desigualdades regionais constituíram-

se. Considerando as seguintes seis regiões, Bohai (constituída por Beijing e pelas províncias ao

redor), Sudoeste, Sudeste (composta por Shanghai, Guandong e outras províncias costeiras),

Central, Noroeste e Nordeste (onde se localizam várias áreas industriais tradicionais); Yang,

Chen e Monarch (2010) concluem que o Bohai e o Sudeste – onde se concentra a maior parte da

indústria exportadora – são as regiões nas quais se exercem os maiores salários reais médios do

país. Em que pese o rápido crescimento dos salários reais em todas as regiões desde o final da

década de 1990, o Bohai e o Sudeste apresentavam, em 2007, salários reais médios 30% a 40%

superiores às demais regiões.

Dentre as razões para as desigualdades nos salários médios regionais, Yang, Chen e

Monarch (2010) apontam para as condições econômicas iniciais e geográficas, que contribuíram

para a atração de investimentos estrangeiros diretos para as áreas costeiras, bem como para as

estratégias e políticas governamentais para o desenvolvimento das cidades e das regiões costeiras

dentro do contexto institucional do hukou. Todavia, os autores destacam uma mudança na postura

do governo, que teria percebido as ameaças à estabilidade social postas pelo desenvolvimento

regional desigual, resultando na Estratégia para o Desenvolvimento do Oeste, ao final da década

de 1990. Yang, Chen e Monarch (2010) ressaltam que essa política já teria começado a surtir

efeitos, de forma que, em 2006 e 2007, as medidas de desigualdade regional começaram a

declinar.

Page 101: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

101

Se foi possível perceber um padrão de divergência dos salários urbanos entre as regiões,

certamente as maiores desigualdades estão entre os diferentes setores/ramos de atividade

econômica. A ilustração 2.5 mostra a dispersão dos salários nominais por setor/ramo de atividade

nas cidades, incluindo também a remuneração dos trabalhadores agrícolas não urbanos

(MORAIS, 2011: pp. 140).

Ilustração 2.5 – Salários por setor/ramo de atividade

(em yuan, média anual, preços constantes de 2008)

Fonte: Morais (2011), gráfico 3.18, pp. 140

É a partir da primeira metade da década de 1990 que a remuneração entre os diferentes

ramos de atividade começam a se afastar. A principal fonte de discrepância entre os salários

urbanos responde pela dicotomia trabalho qualificado/trabalho não qualificado. Em que pese o

fato de os trabalhadores migrantes sem registro constituírem grande parte da força de trabalho

não qualificada urbana; a grande maioria, ou mesmo a totalidade deles, não está nas estatísticas

Page 102: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

102

salariais, de forma que a dicotomia trabalho qualificado/trabalho não qualificado presente nos

salários urbanos não se traduz na dualidade trabalho migrante/trabalho residente.

Respondendo aos atributos de maior qualificação do trabalho, as atividades econômicas

financeiras, de tecnologia da informação, serviços de informática e software, bem como de

pesquisa científica, podem ser remuneradas em até o dobro da média nacional. Quando levamos

em conta o piso de remuneração dado pelo setor agrícola não urbano, abre-se um fosso ainda

maior entre as remunerações: “A razão entre as remunerações agrícolas e a média da atividade

que melhor remunera nas cidades sai de 1,5 em 1978, para 2,1 em 1995 e para 2,8 em 2008.”

(MORAIS, 2011: pp. 140).

No que diz respeito ao trabalho não qualificado urbano, tendo em vista nosso interesse

particular pela manufatura, nota-se que, em que pese a trajetória ascendente em todos os ramos de

atividade, o salário médio anual no setor manufatureiro cresceu menos que a média nacional.

Nesse sentido, Yang, Chen e Monarch (2010) concluem que:

“Contrary to popular belief that manufacturing wages grew the fastest because of

China’s rapidly increasing volume of exports, wage growth in this sector has been below

the national average. This is despite the fact that manufactured goods accounted for

more than 90% of China’s exports and attracted approximately 60% of FDI in recent

years (NBSa, 2007, 2008). In fact, manufacturing wages have moved in lockstep with

wages in construction and wholesale and retail services, which are largely non-tradable

sectors of the economy. There is strong evidence that competitive labor markets for

unskilled workers have developed across these basic production and service industries,

so that the wages in these industries have moved jointly. The upward movements in

wages have been limited because workers in these industries can be drawn from the

large pool of rural, “floating” laborers in cities, a group which has encompassed 130-200

million people in recent years. Rises in the wages of skilled labor, especially those with

high educational attainment working in advanced service industries, have been the major

force behind China’s dramatic increases in the general wage level.” (YANG, CHEN &

MONARCH, 2010: pp. 14)

Page 103: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

103

Assim, o aumento dos salários manufatureiros urbanos não foi tão rápido quanto aquele

discutido no início da seção, mesmo quando consideramos as principais regiões exportadoras.

Pela ilustração 2.5 é possível constatar não somente a forte relação entre o crescimento dos

salários na manufatura e as demais atividades não qualificadas, como também com a evolução da

remuneração do setor agrícola. Todavia, para termos um quadro mais preciso sobre os salários

manufatureiros, principal categoria do emprego industrial, é preciso levar em conta a manufatura

não urbana. Desta forma, dedicaremos as duas próximas seções à analise dos dados sobre o

emprego e os salários manufatureiros.

4. O emprego industrial

O emprego industrial engloba a mineração, a manufatura e a produção e abastecimento de

eletricidade, água e gás. Tendo em vista que o emprego manufatureiro constitui a vasta maioria

do emprego industrial, correspondendo a aproximadamente 80% do emprego industrial em

unidades urbanas e 93% do emprego industrial em TVEs, bem como somente existem dados para

a manufatura (CSY) e não para os outros componentes do emprego industrial em pequenas

empresas privadas e negócios próprios, consideraremos o emprego industrial como sinônimo de

emprego manufatureiro. Também procederemos assim na discussão a respeito dos salários

industriais.

Até 2002, entre as estatísticas oficiais chinesas figuravam os números do emprego total na

manufatura e do emprego rural na manufatura, publicados pelo MRHS. Todavia, de acordo com

Banister (2005), os dados sobre o emprego rural na manufatura mostravam estar subestimados

quando confrontados com o emprego manufatureiro nas TVEs, de forma que, devido ao fato de o

emprego rural manufatureiro ser um componente do emprego total na manufatura, esse também

se encontrava subestimado. Em 2002, o emprego rural na manufatura era 45,06 milhões de

trabalhadores, enquanto o emprego manufatureiro nas TVEs era de 70,87 milhões, sendo quase

60% maior do que o primeiro. Assim, Banister (2005), propõe utilizar o emprego manufatureiro

nas TVEs no lugar do emprego rural na manufatura para estimar o emprego total na manufatura.

Ademais, essa escolha traz outra vantagem, pois as estatísticas relativas às TVEs são as únicas

Page 104: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

104

com dados sobre o salário na manufatura rural. Desta forma, deduzindo o emprego rural na

manufatura da série oficial do emprego total na manufatura, a autora obtém o emprego urbano na

manufatura, que nunca foi publicado oficialmente, e soma a ele o emprego manufatureiro nas

TVEs, obtendo uma série alternativa do emprego manufatureiro total, que, doravante, será

chamada de série alternativa 1.

O Ministério da Agricultura é o responsável por produzir as estatísticas relativas às TVEs,

apresentando uma série completa do emprego industrial (incluindo a mineração e a produção e

abastecimento de eletricidade, água e gás) nas TVEs para todo o período pós-reformas.

Estatísticas específicas para o emprego manufatureiro nas TVEs começaram a ser publicadas

anualmente a partir de 2002. Para produzir a estimativa do emprego manufatureiro total desde

1990, Banister (2005) aplica a proporção do emprego manufatureiro sobre o emprego industrial

nas TVEs no ano de 2002 (92,4) ao emprego industrial nas TVEs nos anos anteriores, de forma a

obter a estimativa do emprego manufatureiro nas TVEs para o período 1990-2001.

A partir de 2003, tanto o emprego total na manufatura quanto o emprego rural na

manufatura pararam de ser publicados, de forma que os dados sobre o emprego urbano na

manufatura utilizados na série alternativa 1, obtidos por Banister (2005) através da subtração da

primeira estatística na segunda, tornaram-se indisponíveis. Desta forma, Banister e Lett (2006,

2009) e Banister e Cook (2011) passam a utilizar o emprego manufatureiro em unidades urbanas

em conjunto com o emprego manufatureiro nas TVEs para estimar o emprego total na

manufatura, compondo o que será chamado, doravante, de série alternativa 2. Entretanto, o

emprego manufatureiro em unidades urbanas só começou a ser publicado em 1994;

anteriormente, publicava-se o emprego manufatureiro na categoria staff e trabalhadores urbanos.

Assim, para construir a série alternativa 2 iniciando-se em 1990, os autores utilizaram a tendência

encontrada nessa última categoria, que constituía 99% do emprego em unidades urbanas no

período 1994-1997.

O gráfico 2.10 mostra os dados oficiais do emprego manufatureiro e das séries

alternativas 1 e 2, revelando o quanto os dados oficiais subestimam o emprego manufatureiro, de

forma que, em 2002, o emprego manufatureiro oficial correspondia a 76,3% do emprego

estimado pela série alternativa 1 e 82,5% da série alternativa 2.

Page 105: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

105

Gráfico 2.10 – Emprego manufatureiro

(série alternativa 1, série alternativa 2, série oficial, em milhões de trabalhadores empregados)

Fonte: Banister (2005), Banister e Cook (2011), China Statistical Labor Yearbook (2010)

Até 1996, as séries alternativas apresentam uma discrepância relativamente pequena, mas,

de 1997 em diante, elas começam a se afastar cada vez mais, resultando em uma diferença de 8,2

milhões de trabalhadores em 2002. A discrepância entre as séries alternativas 1 e 2 é devida a

diferença entre o emprego manufatureiro urbano e o emprego em unidades urbanas. Analisando

os dados do emprego manufatureiro nas estatísticas urbanas, foi possível identificar que o

emprego manufatureiro urbano pode ser encontrado por um método distinto daqueles utilizado

por Banister (2005). Ao invés de subtrairmos o emprego manufatureiro rural do total, pode-se

chegar aos mesmos números somando o emprego manufatureiro nas unidades urbanas com o

emprego manufatureiro em pequenas empresas privadas e negócios próprios urbanos, para o

período 1994-2002, e somando essa última categoria ao emprego manufatureiro na categoria staff

e trabalhadores urbanos de 1990 até 1994. Assim, não só identificamos a origem das

108,88

100,68

83,07

75,00

85,00

95,00

105,00

115,00

125,00

135,00

1990199119921993199419951996199719981999200020012002200320042005200620072008

série alternativa 1 (urbano derivado) série alternativa 2 (unidades urbanas)

total do emprego manufatureiro

Page 106: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

106

discrepâncias entre as séries, como também foi possível reconstruir a série alternativa 1 para o

período posterior a 2002.

Tabela 2.1 – Componentes necessários aos cálculos do emprego manufatureiro urbano nas

séries alternativas

(em milhões de trabalhadores)

Categoria de

Emprego na

Manufatura /

Ano

Total

(oficial)

Rural

Urbano

(resíduo)

Pequenas

Empresas

Privadas e

Negócios

Próprios

Urbanos

Staff e

Trabalhadores

em Unidades

Urbanas

Unidades

Urbanas

Urbano

(agregado)

1990 86,24 32,29 53,95 0,91 53,04 - 53,95

1991 88,39 32,68 55,71 1,28 54,43 - 55,71

1992 91,06 34,68 56,38 1,30 55,08 - 56,38

1993 92,95 36,59 56,36 1,67 54,69 - 56,36

1994 96,13 38,49 57,64 2,72 - 54,92 57,64

1995 98,03 39,71 58,32 3,39 - 54,93 58,32

1996 97,63 40,19 57,44 4,00 - 53,44 57,44

1997 96,12 40,32 55,8 4,51 - 51,30 55,81

1998 83,19 39,29 43,9 5,64 - 38,26 43,90

1999 81,09 39,53 41,56 6,02 - 35,54 41,56

2000 80,43 41,09 39,34 6,33 - 33,01 39,34

2001 80,83 42,96 37,87 7,17 - 30,70 37,87

2002 83,07 45,06 38,01 8,21 - 29,81 38,02

2003 - - - 10,85 - 29,80 40,65

2004 - - - 11,56 - 30,51 42,07

2005 - - - 13,30 - 32,11 45,41

2006 - - - 15,58 - 33,52 49,10

2007 - - - 17,52 - 34,65 52,17

2008 - - - 19,01 - 34,34 53,35

2009 - - - 19,85 - 34,92 54,76

2010 - - - 21,51 - 36,37 57,89

Fontes: Banister (2005), China Statistical Yearbook (várias edições), China Labor Statistical Yearbook (2010),

cálculos próprios.

Page 107: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

107

A tabela 2.1 mostra os dados utilizados por Banister (2005) e pelo presente trabalho para

estimar o emprego manufatureiro urbano. A coluna “Urbano (resíduo)” é a série encontrada pela

autora subtraindo a coluna “Rural” da coluna “Total (oficial)”. A coluna “Urbano (agregado)” foi

obtida pela soma das colunas “Pequenas Empresas Privadas e Negócios Próprios Urbanos”,

“Staff e Trabalhadores em Unidades Urbanas” e “Unidades Urbanas”.

Nessa tabela, é possível ver que o emprego manufatureiro urbano obtido por resíduo

(BANISTER, 2005) é igual ao emprego manufatureiro urbano construído, neste trabalho, por

agregação. Como o emprego urbano por resíduo não pode mais ser encontrado desde 2002, a

utilização da série unidades urbanas na composição do emprego manufatureiro total passa a

subestimar o emprego manufatureiro em escala crescente, uma vez que o emprego manufatureiro

nas pequenas empresas privadas e negócios próprios urbanos vem aumentando ao longo do

tempo. Se, em 2002, a diferença entre o emprego manufatureiro nas unidades urbanas e o

emprego manufatureiro urbano era de 8,2 milhões, em 2010 essa discrepância passa a ser de

21,51 milhões de trabalhadores. Assim, utilizando os dados do emprego manufatureiro urbano

por agregação, em conjunto o emprego manufatureiro nas TVEs, até 2006, compor-se-á a série

alternativa 3. De 2007 em diante, a série alternativa 3 será obtida por outro cálculo, pois, além do

emprego manufatureiro em pequenas empresas privadas e negócios próprios urbanos, há também

o emprego manufatureiro em pequenas empresas privadas e negócios próprios rurais, que, em

2010, era de 18,82 milhões de trabalhadores.

Como visto na seção sobre o emprego rural, as diversas edições do CSY decompõem o

emprego rural em emprego nas TVEs e em pequenas empresas privadas e negócios próprios. Essa

decomposição ocorre também para os diferentes setores do emprego rural, dentre eles a

manufatura. Em que pese essa categorização oficial, sugerindo que não há sobreposição entre

esses dados; com as poucas fontes estatísticas que tivemos acesso, não foi possível afirmar se os

trabalhadores manufatureiros nos negócios próprios registrados na AEIC também são

contabilizados no emprego nas TVEs. Essa dúvida surge quando notamos a quebra na série do

emprego setorial nas TVEs, em 2007, quando o emprego nos diversos setores, inclusive na

manufatura, cai abruptamente. O CLSY de 2010, em inglês, traz uma nota sobre as mudanças na

cobertura setorial dos dados sobre o emprego nas TVEs: “data in 2007.2009are not included

individuals in each sector ( the same below). (sic)” (CSLY, 2010). Com essa nota não é possível

Page 108: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

108

saber se esses “individuals” são os negócios próprios registrados (self-employed individuals) e,

portanto, contabilizados também pela AEIC, ou se não são registrados, representando grupos

mutuamente excludentes. Caso sejam categorias de emprego mutuamente excludentes, o emprego

manufatureiro em pequenas empresas privadas e negócios próprios rurais deve ser contabilizado

no emprego manufatureiro total, em conjunto com o emprego manufatureiro urbano por

agregação e com o emprego manufatureiro nas TVEs, no que será chamado de série alternativa 4.

Todavia, de 2007 em diante, a possibilidade de dupla contagem é excluída, pois os “individuals”

não aparecem mais no emprego setorial das TVEs; assim, é possível somar os dados das

pequenas empresas privadas e negócios próprios rurais ao emprego manufatureiro urbano e ao

emprego manufatureiro nas TVEs na série alternativa 3 a partir de 2007. Em resumo, propõem-se

as séries alternativas 3 e 4, assumindo para a série de número 3 que os dados das pequenas

empresas privadas e negócios próprios rurais estão computados no emprego nas TVEs até 2006 e,

para a série alternativa 4, assume-se que essas duas categorias são mutuamente excludentes.

O gráfico 2.11 mostra as quatro séries alternativas. A série alternativa 1, proposta por

Banister (2005) é a soma do emprego manufatureiro urbano obtido por resíduo com o emprego

manufatureiro nas TVEs; seu problema é não poder ser obtida após 2002. A série alternativa 2 é

utilizada por Banister e Lett (2006, 2009) e Banister e Cook (2011), sendo composta pelo

emprego manufatureiro em unidades urbanas e nas TVEs. Essa série subestima o emprego

manufatureiro total por excluir o emprego em pequenas empresas privadas e negócios próprios

urbanos. As séries alternativas 3 e 4 são propostas pelo presente trabalho. A série alternativa 3,

até 2006, é composta pelo emprego manufatureiro urbano por agregação e pelo emprego

manufatureiro nas TVEs; ela é idêntica a série alternativa 1 até 2002, mas continua até 2006,

devido à diferença de método empregado para a obtenção do emprego manufatureiro urbano; de

2007 a 2009, a série alternativa 3 iguala-se à serie alternativa 4. Essa última leva em consideração

todos os componentes das séries alternativas 1, 2 e 3, adicionando a eles o emprego

manufatureiro em pequenas empresas privadas e negócios próprios rurais; todavia, até 2006, a

série alternativa 4 pode estar contando duas vezes esse último grupo de trabalhadores, de forma

que se optou por utilizar a série alternativa 3, por ser mais conservadora, como sendo a melhor

estimativa do emprego manufatureiro.

Page 109: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

109

Gráfico 2.11 – Estimativas alternativas do emprego manufatureiro

(série alternativa 1, censo industrial de 1995, série alternativa 2, série alternativa 3, série

alternativa 4, em milhões de trabalhadores empregados)

Fonte: Banister (2005), Banister e Cook (2011), China Statistical Yearbook (várias edições), China Labor Statistical

Yearbook, cálculos próprios.

Notas:

(1). Série alternativa 1 = emprego manufatureiro urbano obtido por resíduo + emprego manufatureiro em TVEs

(2). Série alternativa 2 = emprego manufatureiro em unidades urbanas + emprego manufatureiro em TVEs

(3) Série alternativa 3 até 2006 = emprego manufatureiro em unidades urbanas + emprego manufatureiro em

pequenas empresas privadas e negócios próprios urbanos + emprego manufatureiro em TVEs

(4) Série alternativa 3 depois de 2006 = emprego manufatureiro em unidades urbanas + emprego manufatureiro em

pequenas empresas privadas e negócios próprios urbanos + emprego manufatureiro em TVEs + emprego

manufatureiro em pequenas empresas privadas e negócios próprios rurais

(5) O tracejado que segue a série alternativa três é a aplicação do cálculo da nota (4) para o período posterior a 2006

(6) Série alternativa 4 = emprego manufatureiro em unidades urbanas + emprego manufatureiro em pequenas

empresas privadas e negócios próprios urbanos + emprego manufatureiro em TVEs + emprego manufatureiro em

pequenas empresas privadas e negócios próprios rurais.

(7) O ponto laranja representa a estimativa do emprego manufatureiro pelo censo industrial de 1995

104,38

143,04

95

105

115

125

135

145

série alternativa 1 série alternativa 2 série alternativa 3 série alternativa 4

Page 110: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

110

É interessante notar que, enquanto todas as quatro séries captaram mais de 100 milhões de

trabalhadores na manufatura em 2000, o censo populacional desse ano reportou somente 88

milhões de trabalhadores nesse setor (Banister, 2005), revelando a tendência a subestimar os

setores secundário e terciário, como discutimos na seção sobre o emprego rural.

No gráfico 2.11, é possível ver uma quebra em todas as séries do emprego manufatureiro,

inclusive na oficial, entre 1997 e 1998, devido ao fato, anteriormente discutido na seção sobre o

emprego urbano, de os trabalhadores demitidos e ainda vinculados às antigas unidades urbanas

terem parado de ser contados nos dados do emprego em 1998. Todavia essa não é a única quebra

nas séries do emprego manufatureiro; as séries alternativas, que utilizam os dados das TVEs,

também apresentam outras descontinuidades, que podem ser mais bem identificadas por meio do

gráfico 2.12, que apresenta a evolução dos componentes utilizados na construção das séries

alternativas.

Entre 1996 e 1997, há uma abrupta quebra na série do emprego industrial nas TVEs,

devido a mudanças nas definições estatísticas; todavia, em 1998 percebe-se uma significativa

retomada. De acordo com Banister (2005), em 1998, a NBS reclassificou o grupo de empresas

que deveria se reportar diretamente todos os anos, de forma que somente as empresas com renda

acima de um piso determinado deveriam fazê-lo, excluindo as demais empresas; dessa forma, 7

milhões de trabalhadores teriam saído das estimativas oficiais sobre a força de trabalho. Segundo

a autora, esses trabalhadores podem ter sido captados pelos dados das TVEs em 1998, explicando

a súbita retomada.

Além da quebra entre 1996 e 1998 na série das TVEs, há uma quebra em 2007 nos dados

setoriais do emprego nas TVEs, impactando o número de pessoas empregadas na manufatura,

mas sem afetar o emprego total nas TVEs. De acordo com Banister e Cook (2011), essa quebra é

resultado da exclusão dos negócios próprios dos dados do emprego manufatureiro das TVEs,

como ressaltado anteriormente. Assim, nota-se um súbito declínio de 16 milhões de trabalhadores

entre 2006 e 2007, perturbando a trajetória ascendente do emprego manufatureiro nas TVEs

desde 1998, sendo retomada novamente de 2007 para 2008.

Page 111: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

111

Gráfico 2.12 – Componentes utilizados para a obtenção das quatro séries

alternativas

(pessoas em pregadas em TVEs, no emprego urbano, em unidades urbanas, em pequenas

empresas privadas e negócios próprios rurais, em pequenas empresas privadas e negócios

próprios urbanos)

Fonte: Banister (2005), Banister e Cook (2011), China Statistical Yearbook (várias edições), China Labor Statistical

Yearbook (2010)

A despeito de todas as quebras nas séries, alguns fatos podem ser depreendidos dos

gráficos acima. No gráfico 2.11, relativo ao emprego manufatureiro total, todas as quatro séries

alternativas foram impactadas pelas demissões em massa ocorridas a partir de meados dos anos

1990; todavia, na série alternativa 2, o impacto é mais acentuado e a recuperação do emprego

manufatureiro é mais lenta do que nas séries alternativas 1, 3 e 4, que conseguem captar a

expansão das pequenas empresas privadas e dos negócios próprios na manufatura. Desta forma,

por não ser sensível a essa tendência mais geral do emprego, que não se restringe à manufatura,

na série alternativa 2, o impacto das demissões e das privatizações faz que o emprego

manufatureiro atinja, em 2009, o mesmo nível de 1990. Mesmo se se leva em consideração a

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

TVEs urbano (agregado) unidades urbanas

privadas e self rural privadas e self urbanos

Page 112: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

112

quebra da série em 2007, o nível do emprego em 2006, na série alternativa 2, era ainda muito

inferior ao pico dessa série em meados dos anos 1990, contrastando com as séries alternativas 3 e

4, nas quais, respectivamente, o emprego atinge ou supera o nível de pico experimentado

anteriormente. Em 2009, a diferença entre a série alternativa 2 e as séries 3 e 4 é de 38,66

milhões de trabalhadores.

Além das variações no nível de emprego na manufatura, é possível perceber grandes

mudanças em sua estrutura ao longo do tempo. Excetuando os anos de alterações na cobertura e

nas definições estatísticas, em linhas gerais, o emprego manufatureiro nas TVEs apresentou-se

crescente durante as duas últimas décadas, sendo responsável pela maior parcela do emprego

manufatureiro total desde 1992. Já as categorias rural e urbana do emprego manufatureiro em

pequenas empresas privadas e negócios próprios, insignificantes em 1990, cresceram ao longo

dos últimos vintes anos, comportando aproximadamente 20 milhões de trabalhadores cada uma

delas em 2010. O emprego manufatureiro em unidades urbanas, que se encontrava estável no

início dos anos 1990, declinou a partir de meados da década de 1990 até se estabilizar em 2002,

devido às demissões em massa nas unidades estatais. De 2004 em diante, o emprego

manufatureiro em unidades urbanas voltou a crescer, sem, todavia, ter recuperado o nível da

primeira metade dos anos 1990. A categoria do emprego manufatureiro urbano (agregado)

apresenta as mesmas tendências do emprego em unidades urbanas, porém, por conter as pequenas

empresas privadas e negócios próprios urbanos, o declínio em meados dos anos 1990 foi menos

acentuado que o emprego em unidades urbanas, e o crescimento posterior a 2002 foi mais rápido,

de forma que, em 2010, o emprego manufatureiro urbano recuperou os níveis anteriores ao

processo de “reestruturação” das empresas estatais.

No que diz respeito ao emprego manufatureiro em unidades urbanas, esse respondia, em

1990, por 50,3% do emprego manufatureiro total da série alternativa 3, dentre os quais 32,2

pontos percentuais deviam-se às unidades urbanas estatais, 16,8 às coletivas e 1,3 às outras

unidades urbanas. O gráfico 2.13 mostra que o processo de desmonte das empresas

manufatureiras do setor público alterou diametralmente a estrutura proprietária das unidades

urbanas manufatureiras. Em 2009, o emprego em unidades urbanas representava apenas 24,4%

do emprego manufatureiro total estimado pela série alternativa 3, dos quais 3,1 pontos

percentuais deviam-se às unidades estatais, 1,0 às coletivas e 20,3 às outras unidades urbanas.

Page 113: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

113

Gráfico 2.13 – Emprego manufatureiro em unidades urbanas

(unidades estatais, unidades coletivas, outras unidades, em milhões)

Fonte: China Statistical Yearbook (2011)

Por fim, cabe fazer alguns comentários sobre o efeito da crise financeira internacional

sobre o emprego manufatureiro. Utilizando a série alternativa 2, Banister e Cook (2011) apontam

que, do final de 2007 para o final de 2008, como resultado da crise financeira internacional,

houve uma queda de 311,000 mil trabalhadores na manufatura em unidades urbanas (usada como

proxy para o emprego manufatureiro urbano), que só não impactou negativamente o emprego

manufatureiro total, devido ao crescimento do emprego manufatureiro nas TVEs. Todavia,

considerando a série alternativa 3, o emprego manufatureiro urbano também aumentou de 2007

para 2008. O que a crise financeira internacional fez foi reduzir o ritmo de crescimento do

emprego manufatureiro urbano, que cresceu todos os anos desde 2001, como se pode notar na

tabela 2.2 abaixo:

33,95

4,17

17,73

1,34

1,35

30,86

0

5

10

15

20

25

30

35

40

unidades estatais unidades coletivas outras unidades

Page 114: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

114

Tabela 2.2 – Taxa anual de crescimento do emprego na manufatura urbana

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

0,4% 6,9% 3,5% 7,9% 8,1% 6,3% 2,3% 2,7% 5,7%

Fonte: cálculos próprios

Esses dados contrariam os inúmeros relatos sobre as demissões em larga escala de

trabalhadores migrantes no setor manufatureiro exportador. Acreditamos que dois fatores possam

explicar esse aparente paradoxo. O primeiro diz respeito à cobertura dos dados oficiais. Se apenas

uma parcela pequena dos migrantes sem hukou é captada pelas estatísticas oficiais do emprego

manufatureiro, então as séries são pouquíssimo sensíveis a essas demissões. O segundo fator diz

respeito ao pacote fiscal implementado pelo governo chinês em 2009. Como os dados referem-se

ao emprego no final de cada ano, e não à média experimentada ao longo do ano, é possível que os

efeitos da queda do emprego no final de 2008 não tenham sido suficientes para anular o

crescimento do restante do ano e que a queda do emprego no início de 2009 tenha sido mais do

que compensada pelos efeitos do pacote fiscal ao longo de 2009. Certamente, os empregos

criados na manufatura em função do pacote fiscal não foram gerados nos mesmos ramos da

manufatura que sofreram perdas devido à crise, pois, enquanto os novos empregos centraram-se

na produção voltada para o mercado doméstico, as demissões ocorreram principalmente na

manufatura exportadora.

5. Os Salários industriais

Na seção sobre os salários urbanos, o foco esteve nos salários reais, que são os salários

relevantes do ponto de vista da discussão que estabeleceremos no capítulo III, sobre o

desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra e sobre a natureza possivelmente estrutural

dos aumentos salariais na China. Todavia, na presente seção, o objetivo último é estabelecer o

impacto da elevação dos salários sobre a competitividade das exportações chinesas, de forma que

Page 115: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

115

nossa atenção será direcionada para os salários nominais, especialmente para os salários

nominais em dólares.

Banister (2005) realizou uma pesquisa detalhada sobre as estatísticas relativas aos salários

manufatureiros na China, tendo acesso, inclusive a dados fechados da NBS. O intuito dessa

pesquisa foi estimar o custo de compensação por hora de um trabalhador chinês empregado na

manufatura, de forma a tornar possível uma comparação internacional. A autora utiliza o custo de

compensação, em lugar dos salários, por ser uma medida mais ampla daquilo que o capitalista

deve desembolsar para poder utilizar a mão-de-obra chinesa, sendo esse o custo relevante para a

decisão de produzir na China ou em outros países. O custo de compensação é composto pelos

pagamentos diretos ao trabalhador e pelos gastos indiretos. Os dados sobre os

salários/remuneração do trabalho que figuram nas diversas edições do CSY, considerados por

Banister (2005) como a porção de pagamentos diretos aos trabalhadores, derivam de uma

definição que transcende a renda monetária obtida pelos últimos:

“Total Wage Bill of employees refers to total remuneration payment to all employees in

various units in urban area (excluded urban private sectors and individuals) during a

certain period of time. The calculation of total wage bill is based on the total

remuneration payment. Therefore, wages and salaries and other payments to employees

should be included at all and regardless of its resource, category, both in kind or cash.”

(CSLY, 2010)

As estatísticas sobre os salários médios anuais dos trabalhadores resultam da divisão da

folha total de salários dos empregados pelo número de pessoas empregadas, sem fazer distinção,

como ressalta Banister (2005), entre os trabalhadores empregados diretamente na produção e

aqueles em atividades não relacionadas à produção direta, de forma a superestimar a remuneração

dos trabalhadores alocados diretamente na produção, ou seja, há uma indistinção entre os salários

dos empregados em atividades de gerência/supervisão e os salários dos operários fabris. Sob o

rótulo de salários, a remuneração dos empregados acima definida pela NBS é composta por tudo

o que pago ao trabalhador, incluindo, de acordo com Banister (2005) a remuneração por períodos

não trabalhados, como férias e feriados, adicionais de insalubridade e periculosidade, refeições,

Page 116: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

116

dormitórios e transporte, bem como o imposto de renda e a contribuição para a seguridade social

descontados do pagamento do trabalhador e remetidos em seus nomes para as autoridades

competentes diretamente pelas empresas.

A autora ressalta que ficam de fora dessa definição os gastos que os empregadores devem

ter referentes à contribuição para a seguridade social (a parcela patronal nos esquemas de

financiamento tripartite) e outros impostos trabalhistas, que incluem programas de seguridade

social legalmente requisitados e planos de benefícios contratuais e privados, bem como outros

impostos sobre a folha de salários ou sobre o emprego. Esses gastos variam enormemente entre

as áreas urbanas definidas administrativamente e as áreas rurais, incluindo as pequenas cidades

(towns), nas quais se localizam as TVEs. De acordo com, Banister (2005), enquanto os gastos

com seguridade social dos trabalhadores das TVEs são praticamente inexistentes ou muito

pequenos, de forma que os custos de compensação desses trabalhadores são quase integralmente

captados pelas estatísticas dos salários, nas áreas urbanas, esses gastos têm um peso expressivo:

“In the urban areas, employers pay considerable sums for social welfare benefits on

behalf of their employees, above and beyond the employees' earnings. China's cities

today have built, or are in process of building, municipal social insurance funds and

housing funds to which both employers and employees are required to contribute each

month. There are six kinds of funds: an old-age pension fund, a medical insurance fund,

an unemployment insurance fund, a worker's compensation fund, a maternity leave fund,

and a fund in witch money is set aside for each worker by name - money that the worker

can use to help buy an apartment. These monthly payments by employers to city

governments are mandatory, and stiff penalties are specified for noncompliance, but

noncompliance is rampant and penalties are rarely enforced.” (Banister, 2005: pp. 32)

Para estimar a parcela não salarial dos custos de compensação, Banister (2005) destaca dois

problemas: a divergência nas taxas compulsórias de contribuição para a seguridade social entre

cidades e o expediente, aparentemente corriqueiro, de sub-relatar a remuneração dos

trabalhadores pelos empregadores para minimizar o pagamento de impostos e a contribuição à

seguridade social. Em que pesem essas dificuldades, a autora, baseada em uma pesquisa

conduzida pelo MRHS realizada em 2002, estima que, levando em conta a parcela não salarial

dos custos de compensação, os dados dos salários anuais devem ser aumentados em 53,8%, nas

unidades urbanas, e 8%, nas TVEs, para obter-se os custos totais de compensação.

Page 117: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

117

Uma vez estimados os custos de compensação anuais, deve-se convertê-los em horas; e,

mais uma vez, esse é um expediente que requer uma série de pressupostos, devido à ausência de

dados e à qualidade das estatísticas existentes. Em primeiro lugar, Banister (2005) afirma que

seria necessário saber, entre os trabalhadores captados pelo sistema de relatórios anuais, qual

parcela trabalha durante o ano todo, ou a maior parte do ano, e qual é a proporção de

trabalhadores que trabalha meio período ou uma parcela do ano. Na inexistência de tais dados, e

levando em consideração que muitos dos trabalhadores não reportados pelas empresas não

trabalham o ano inteiro, Banister (2005) assume que os trabalhadores captados pelas estatísticas

anuais são aqueles que trabalham o ano todo, em expediente integral. Em seguida, é preciso obter

o número médio de semanas trabalhadas e o número médio de horas trabalhadas por semana. O

número médio de semanas trabalhadas por ano em unidades urbanas e em TVEs são

hipoteticamente construídos pela autora. Sob inúmeros pressupostos, ela assume que em unidades

urbanas o número de semanas trabalhadas é igual a 48 semanas; enquanto nas TVEs, metade dos

trabalhadores estaria ocupada na manufatura por 40 semanas, devido à participação na colheita e

no plantio, enquanto a outra metade não faria trabalho agrícola, estando ocupada por 48 semanas

ao ano, de forma que a média de semanas trabalhadas nas TVEs seria de 44 semanas. Por fim,

quanto ao número de horas trabalhadas na semana, a autora baseia-se em pesquisas do MRHS

sobre a força de trabalho, em 2002, estimando que em unidades urbanas trabalha-se 45,4 horas

por semana, totalizando 2.179 horas ao ano. No que diz respeito às TVEs, não há qualquer

estatística oficial sobre o número de horas trabalhadas por semana, de forma que a autora assume

que os trabalhadores manufatureiros das TVEs trabalham em média 50 horas por semana, num

total de 2.200 horas trabalhadas durante o ano. Todavia, essas estimativas muito provavelmente

subestimam em demasia o número de horas trabalhadas ao ano, especialmente na manufatura

exportadora, caracterizada pelo emprego em larga escala de trabalhadores migrantes jovens; a

própria autora aventa essa possibilidade:

"It is possible that the above estimates for the number of hours worked, on average, per

year by manufacturing employees in city and noncity factories are too low. Some

investigations in China's export zones in Guandong and other coastal provinces have

discovered many factories in which the employees typically work the entire year, with a

2-week holiday at Chinese New Year. In many such export-oriented factories,

employees usually work 6 or 7 days each week, totaling 60 to 80 hours per week in

Page 118: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

118

whatever period constitutes the peak season for that manufacturing subsector. This

season can last up to 8 months a year. Average yearly hours actually worked per

employee might be as high as 4.000 hours in some China manufacturing enterprises."

(BANISTER, 2005: pp. 37)

Por meio desses procedimentos utilizados por Banister (2005) para os dados de 2002,

foram publicados três outros artigos atualizando esses cálculos até 2008 (LETT & BANISTER,

2006, 2009; BANISTER & COOK, 2011). Para o período anterior a 2002, os autores não

realizaram qualquer estimativa, uma vez que não eram publicados dados sobre os salários

manufatureiros rurais ou nas TVEs. A ilustração 2.6 mostra as estimativas obtidas pelos autores

para o custo de compensação por hora dos empregados na manufatura, em yuan e em dólares, em

valores nominais.

Ilustração 2.6 – Estimativas dos custos de compensação por hora dos trabalhadores

manufatureiros entre 2002 e 2008

Fonte: Banister e Cook (2011), Tabela 4, pp.45

A ilustração 2.6 mostra que os custos de compensação por hora, em yuan, na manufatura

cresceram 100% em um curto período de seis anos; sendo que, nas unidades urbanas esse

aumento foi de 110%, enquanto nas TVEs o crescimento foi de 66,77%. Em dólares, os custos de

compensação por hora na manufatura subiram em 138,60%, no mesmo espaço de tempo, com os

Page 119: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

119

custos nas unidades urbanas subindo 150,52%, ao passo que o aumento verificado nas TVEs foi

de 100%. O maior aumento verificado nos custos de compensação por hora em dólares responde

pelo efeito cumulativo do aumento dos salários e da valorização cambial. Em que pese o rápido

aumento, inúmeras ponderações devem ser feitas a respeito desses dados. No que diz respeito às

variações dos custos de compensação por hora, enquanto os autores mantiveram a relação entre

os salários e a parcela não salarial dos custos de compensação constantes, tanto para as unidades

urbanas, como para as TVEs; em cada ano foram usadas diferentes estimativas sobre as horas

trabalhadas anualmente, observando-se o número médio de horas trabalhadas por semana em

unidades urbanas publicados nos CSLY e supondo a mesma variação para as TVEs. Assim, tanto

o nível inicial de horas trabalhadas por semana nas TVEs, para 2002, quanto as variações anuais

nesse nível, foram hipoteticamente atribuídos pelos autores. Destarte, por exemplo, em 2002

Banister (2005) supôs 45,4 horas trabalhadas por semana nas unidades urbanas; em 2005, Lett e

Banister (2009) estimaram 50,4 horas semanais nessas mesmas unidades e, em 2008, Banister e

Cook (2011) assumiram que esse valor era de 47,9. Como resultado, além das flutuações

nominais dos salários anuais e, nas estimativas em dólares, das flutuações da taxa de câmbio, os

custos de compensação por hora estimados pelos autores também flutuam anualmente de acordo

com as hipóteses sobre o número de horas trabalhadas, especialmente arbitrárias quando se

consideram as TVEs.

Tendo em vista limpar a flutuação do número de horas trabalhadas por semana nos custos

de compensação por hora na manufatura, bem como considerar longas jornadas de trabalho por 6

ou 7 dias por semana, para construir um intervalo para os custos de compensação por hora,

faremos uma simulação assumindo o valor extremo, sugerido por Banister (2005) de 4000 horas

trabalhadas anualmente por pessoa empregada na manufatura. Com esses resultados e com

aqueles obtidos pelos autores acima discutidos, que consideram o número de horas trabalhadas

anualmente entre, aproximadamente, 2100 e 2400 horas, poderemos construir um intervalo em

que os dados produzidos pelos autores são a situação mais conservadora possível.

Page 120: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

120

Gráfico 2.14 – Custo de compensação por hora de acordo com diferentes suposições

de horas anuais trabalhadas

(valores nominais, em dólares)

Fonte: Banister (2005), Lett e Banister (2006, 2009), Banister e Cook (2011), cálculos próprios

Desta forma, quando supomos a situação extrema de 4000 horas trabalhadas ao ano, em

primeiro lugar, controlamos as variações no número de horas anuais trabalhadas que alteram a

taxa de crescimento dos custos de compensação por hora no período. Assim, em dólares, em vez

de um crescimento de 138,60% dos custos de compensação por hora, entre 2002 e 2008,

passamos a ter um aumento de 151,61%, com os custos nas TVEs subindo em 104,34% e nas

unidades urbanas em 159,62%. Em yuan, os respectivos aumentos foram de 108,49, para a

manufatura como um todo, 118,65%, para as unidades urbanas, e 73,80%, para as TVEs.

Em segundo lugar, a suposição de 4000 horas trabalhadas ao ano demonstra como os

custos de compensação por hora são sensíveis a diferentes hipóteses sobre a jornada de trabalho

na manufatura, que, na China, é sabidamente divulgada e reconhecida como sendo

0,57

1,36

0,31

0,78

0,23

0,47

0

0,2

0,4

0,6

0,8

1

1,2

1,4

1,6

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

2100-2400 horas anuais 4000 horas anuais

4000 horas anuais (TVEs)

Page 121: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

121

desumanamente extenuante, especialmente nas empresas multinacionais exportadoras. A hipótese

de 4000 anuais (80 horas por semana e 50 semanas ao ano) por trabalhador em toda a manufatura

chinesa é realmente extrema, mas certamente supor jornadas de trabalho de 45 horas semanais,

por 48 semanas ao ano, ou seja, com um mês de férias, (praticamente a situação brasileira) é uma

hipótese radicalmente conservadora.

Como será visto posteriormente, o nível dos custos de compensação por hora é

fundamental quando formos estabelecer comparações internacionais. Desta forma, advogamos

que os custos de compensação por hora, em dólares, efetivamente praticados, estejam entre 1,36 e

0,78 em 2008.

Gráfico 2.15 – Taxa de crescimento anual dos custos de compensação por hora, com o

número de horas trabalhadas ao ano fixo

(porcentagem de variação anual)

Fonte: cálculos próprios baseados nos dados disponíveis em Banister (2005), Lett e Banister (2006, 2009) e Banister

e Cook (2011)

Nota: há uma quebra nas séries em 2007

0

5

10

15

20

25

30

2003 2004 2005 2006 2007 2008

taxa de crescimento anual em yuan taxa de crescimento anual em dólares

Page 122: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

122

O gráfico 2.13 mostra a taxa de crescimento anual dos custos de compensação por hora

em yuanes e em dólares. Em que pese a quebra na série em 2007, a diferença entre a taxa em

dólares e a taxa em yuanes, que mostra o impacto da valorização cambial sobre os custos de

compensação por hora, tem sido cada vez mais relevante ao longo do tempo. Por um longo

período, a taxa de câmbio do yuan esteve atrelada ao dólar, de forma que a totalidade dos

aumentos nos custos de compensação devia-se às elevações dos salários nominais. Todavia, após

2004, deve-se considerar o efeito da valorização cambial, de forma que, em 2008, do aumento em

25% dos custos de compensação por hora, em dólares, 11 pontos percentuais deveram-se à

valorização do câmbio, enquanto os outros 14 pontos percentuais tiveram origem na elevação dos

salários nominais.

5.1 Salários industriais nas principais regiões exportadoras

Os custos de compensação por hora, em dólares, obviamente, só são relevantes para a

manufatura exportadora. Nesse sentido, seria preciso distinguir os trabalhadores na manufatura

exportadora daqueles empregados na manufatura voltada para o mercado doméstico. De acordo

com Banister (2005), as duas principais regiões produtoras de manufaturas para a exportação são

o delta do Rio das Pérolas e o delta do Rio Yang-tsé, o primeiro localizado na Província de

Guandong e o segundo na Municipalidade de Xangai, na Província de Zhejiang e na metade sul

da Província de Jiagsu. Essas duas áreas incluem, respectivamente, 9 e 15 cidades, além de

muitos centros produtores de manufatura externos às referidas cidades. Segundo a autora, é

provável que a maior parcela das empresas manufatureiras exportadoras nessas regiões sejam

TVEs; todavia, não foi possível ter acesso aos dados dos salários nas TVEs, de forma que

faremos uma comparação dos custos de compensação das unidades urbanas manufatureiras em

regiões exportadoras com a média nacional das unidades urbanas manufatureiras.

Page 123: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

123

Gráfico 2.16 – Custos de compensação anuais em unidades urbanas manufatureiras nas

principais regiões exportadoras

(em dólares)

Fontes: CSY (várias edições) para os salários médios anuais, Lett e Banister (2006, 2009) e Banister e Cook (2011) para as taxas de câmbio Notas: (1)Foi mantida a relação de 1,538 proposta por Banister (2005) entre o salário anual médio e o custo de compensação anual médio. (2)De 2002 a 2005 os dados são referentes a categoria staff e trabalhadores em unidades urbanas, de 2006 a 2008 s dados referem-se ao total de pessoas empregadas em unidades urbanas

No gráfico 2.16 é possível notar que, exceto pela Municipalidade de Xangai, os custos de

compensação anuais em unidades urbanas manufatureiras, em dólares, nas principais regiões

exportadoras aproximam-se da média nacional. A Municipalidade de Xangai, todavia, apresentou

custos de compensação anuais extremamente mais elevados que a média nacional, de forma que,

em 2008, esses custos eram 73,4% mais altos que a referida média. Todavia, para traduzir os

custos de compensação anuais em custos por hora, devemos levar em consideração a possível

diferença entre a extensão da jornada de trabalho nas regiões exportadoras e nas demais regiões.

Para ilustrar o impacto dessa diferença, suporemos que, na média, os trabalhadores

0

1.000

2.000

3.000

4.000

5.000

6.000

7.000

8.000

9.000

10.000

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Xangai

Zhejiang

Jiangsu

Guandong

média nacional

Page 124: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

124

manufatureiros possuem uma jornada de trabalho semanal de 50 horas e trabalham 48 semanas

no ano; enquanto os trabalhadores da manufatura exportadora trabalham 12 horas por dia, 6 dias

por semana (jornada semanal de 72 horas) e 50 semanas por ano. Como resultado, estamos

supondo 2400 horas anuais de trabalho, no primeiro caso, e 3600 horas anuais, no segundo caso,

o da manufatura exportadora.

Gráfico 2.17 – Custos de compensação por hora em unidades urbanas manufatureiras nas

principais regiões exportadoras

(em dólares)

Fontes: CSY (várias edições) para os salários médios anuais, Lett e Banister (2006, 2009) e Banister e Cook (2011) para as taxas de câmbio Notas: (1)Foi mantida a relação de 1,538 proposta por Banister (2005) entre o salário anual médio e o custo de compensação anual médio. (2)De 2002 a 2005 os dados são referentes a categoria staff e trabalhadores em unidades urbanas, de 2006 a 2008 s dados referem-se ao total de pessoas empregadas em unidades urbanas (3)Os custos de compensação por hora nas regiões de Xangai, Zhejiang, Jiangsu e Guandong foram obtidos admitindo-se 3600 horas anuais de trabalho, enquanto a média nacional foi estimada com base em 2400 horas anuais.

0

0,5

1

1,5

2

2,5

3

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Nacional

Xangai

Zhejiang

Jiangsu

Guandong

Page 125: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

125

Quando considerada a superexploração da manufatura exportadora, obtemos um resultado

bem diverso daquele discutido anteriormente. Todas as regiões, salvo a Municipalidade de

Xangai, têm custos de compensação por hora bem abaixo da média. Em relação à média nacional,

em 2008, os custos de compensação por hora foram 35% menores, em Zhejiang, 30% menores,

em Jiangsu, e 31% inferiores em Guandong. Por outro lado, ao invés de 73,4% mais caros do que

a média nacional, os custos de compensação por hora, em Xangai, foram apenas 15,6%

superiores.

Por fim, é preciso lembrar que esses cálculos excluem a grande maioria dos migrantes e

uma parte considerável dos trabalhadores captados pelas estatísticas oficiais, ou seja, os

empregados em pequenas empresas privadas e negócios próprios nas cidades e, depois de 2007,

nas áreas rurais, que, em conjunto, devem puxar para baixo os custos de compensação da

manufatura como um todo. Assim, a tabela 2.3 mostra a porcentagem dos trabalhadores

manufatureiros captados pelas estatísticas anuais cujos salários são cobertos pelos cálculos

realizados por Banister (2005), Lett e Banister (2006, 2009) e Banister e Cook (2011), bem como

pelo presente trabalho.

Tabela 2.3 – Parcela dos trabalhadores manufatureiros captados pelas estatísticas anuais

coberta pelos dados salariais

Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

% 92,47 90,43 90,18 89,27 87,85 72,87 72,71

Fonte: cálculos próprios

Tendo em vista a expansão do emprego na categoria pequenas empresas privadas e

negócios próprios, uma importante mudança foi introduzida a partir dos dados referentes a 2009

para o cálculo dos salários na manufatura urbana: o salário médio na manufatura em pequenas

empresas privadas urbanas. Entretanto, no China Statistical Yearbook não há estatísticas

separadas para as pequenas empresas privadas e para os negócios próprios urbanos desagregadas

por setor. Desta forma, não é possível saber qual é a parcela do emprego manufatureiro em

empresas privadas urbanas, mas, de qualquer forma, esse é um importante avanço. Assim, o

Page 126: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

126

salário anual médio na manufatura em unidades urbanas foi, em 2009, de 26.810 yuanes,

enquanto o salário anual médio em pequenas empresas privadas foi de 17.260 yuanes,

confirmando a hipótese anterior de que a inclusão das categorias faltantes puxará para baixo o

patamar dos salários na manufatura urbana.

Todavia, nos parece ainda mais relevante, para determinar a evolução dos custos de

compensação por hora dos trabalhadores empregados na manufatura exportadora, ter algum

parâmetro sobre o comportamento dos salários daquela categoria que sequer é captada, em sua

maioria, nas estatísticas oficiais anuais: os migrantes rurais. A manufatura exportadora chinesa é

amplamente conhecida por alimentar-se daqueles trabalhadores, simultaneamente, mais

vulneráveis e mais resistentes; mais resistentes fisicamente e mais vulneráveis do ponto de vista

legal e de amparo social, os jovens migrantes rurais. De acordo com Morais (2011):

“Ao se observar exclusivamente os setores de manufatura e construção civil eles [os

migrantes sem registro] são maioria, ocupando, respectivamente, 68% e 80% dos postos

em 2000. Sua remuneração média em 2008 (RMB 13.872), segundo pesquisa do CHIP

project, era menos da metade daquela conseguida, na média, por um trabalhador com

registro urbano.” (MORAIS, 2011: pp. 139)

5.2 A evolução recente dos salários dos migrantes rurais

Ao longo da nossa discussão a respeito das estatísticas chinesas, ficou evidente o quão

difícil é conseguir dados consistentes e minimamente precisos sobre os trabalhadores migrantes

rurais. Assim, como será visto, os dados que apresentaremos sobre esses trabalhadores provém de

diferentes pesquisas amostrais, as quais não apresentam correspondência nem de regiões

geográficas pesquisadas, nem de anos estudados, dificultando a análise comparativa. Contentar-

nos-emos, todavia, em obter somente algum parâmetro de referência sobre a evolução desses

salários.

Page 127: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

127

Knight, Deng e Li (2010) fazem uma revisão sobre a literatura recente a respeito dos

salários dos migrantes rurais. Os dados levantados dos diferentes estudos tratados pelos autores

apresentam grande discrepância. Um desses estudos é o de Du e Pan (DU & PAN, 2009 apud

KNIGHT, DENG & LI, 2010), comparando os salários mínimos estabelecidos com os dados

sobre os salários dos migrantes reportados pelas Pesquisas sobre o Trabalho Urbano da China

(CULS, na sigla em inglês), em cinco cidades, Xangai, Fuzhou, Wuhan, Shenyang e Xian. Os

autores chegam à conclusão de que, entre 2001 e 2005, o salário mínimo mensal médio aumentou

9,4% a.a, em termos nominais, e 8,4% a.a., em termos reais; enquanto o salário mensal médio dos

migrantes aumentou, nominalmente, em 2,6% a.a e, em termos reais, em 1,4% a.a, no mesmo

período. Por outro lado, o salário mensal médio dos residentes urbanos experimentou taxas de

crescimento anual de 4,4% (nominal) e 3,2% (real). Desta forma, o salário mensal médio dos

migrantes caiu não só em relação ao salário mínimo, como também relativamente ao salário dos

residentes urbanos. Outro dado relevante encontrado por Du e Pan (DU & PAN, 2009 apud

KNIGHT, DENG & LI, 2010) foi o de que, quando levado em consideração o grau de

escolaridade, só houve aumento nominal dos salários para os migrantes que possuíam educação

acima do ensino fundamental, entre 2001 e 2005. Como 82% dos migrantes possuía escolaridade

até o ensino fundamental, os autores concluem que não houve aumento nominal dos salários para

a expressiva maioria dos migrantes, nas cinco cidades pesquisadas, entre 2001 e 2005. Knight,

Deng e Li (2010) ressaltam que esses resultados são qualitativamente diferentes daqueles obtidos

pela análise dos dados das pesquisas anuais sobre os domicílios rurais feitas pelo MOA.

O gráfico 2.18 mostra um quadro bem distinto daquele traçado por Du e Pan (2009 apud

Knight, Deng e Li, 2010). A partir de 2006, a taxa de crescimento nominal do salário mensal

médio dos migrantes rurais foi superior a 10% a.a, salvo em 2008, ano no qual a crise

internacional fez-se sentir de forma mais acentuada. Os salários reais mensais dos migrantes, por

outro lado, saíram de uma situação de crescimento negativo, para crescer positivamente, de forma

errática, até atingir o impressionante crescimento de aproximadamente 17% em 2009. Se, por um

lado, esses resultados divergem daqueles apresentados anteriormente; pelo outro, quando

comparados com o crescimento dos salários em unidades urbanas (publicados pela NBS), o

salário dos migrantes diminuiu relativamente aos últimos, tal como apresentado na pesquisa de

Du e Pan (2009 apud Knight, Deng e Li, 2010). Assim, os salários dos migrantes, que

Page 128: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

128

representavam 76% dos salários em unidades urbanas em 2003, passaram a corresponder a 65%

dos mesmos (Knight, Deng e Li, 2010).

Gráfico 2.18 – Crescimento do salário mensal médio dos migrantes rurais

(crescimento anual nominal, crescimento anual real, em porcentagem)

Fonte: Zhao eWu (2008) apud Knight, Deng e Li (2010), MOA apud Knight, Deng e Li (2010)

Em função de a pesquisa do MOA ser mais abrangente, por se realizar nos locais de

origem, seus resultados tendem a refletir as condições gerais de remuneração dos migrantes, ao

passo que a pesquisa do CULS se restringe a somente cinco cidades receptoras. Todavia, os

dados do MOA não nos mostram a evolução dos salários em função do grau de escolaridade, de

forma que, considerando o padrão apontado pelos dados do CULS, de que os migrantes com

menor qualificação (até o ensino fundamental) tiveram uma taxa de crescimento salarial mais

baixa, consideraremos, para a análise da manufatura exportadora, que os salários nominais

cresceram, como mostram os dados do MOA, mas em níveis inferiores aos apontados por essas

estatísticas. Mesmo assim, o aumento dos salários dos migrantes é uma mudança fundamental,

-5

0

5

10

15

20

2004 2005 2006 2007 2008 2009

taxa de crescimento real taxa de crescimento nominal

Page 129: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

129

quando comparada com a longa estagnação dos salários desses trabalhadores na década de 1990

(Cai e Wang, 2010).

6. Mudanças na competitividade das exportações chinesas

Em que pese o questionamento feito ao nível dos salários nas diferentes estatísticas, toda a

discussão que fizemos a respeito da evolução dos salários, sejam eles os salários reais urbanos ou

os salários nominais na manufatura, apontou indubitavelmente para uma aceleração no ritmo de

crescimento dos salários a partir de, ao menos, meados dos anos 2000. Adicionalmente,

constatou-se que a valorização da taxa de câmbio chinesa tem se refletido em um crescimento

ainda mais rápido dos salários nominais em dólares. Esses fatos implicam que a competitividade

da manufatura chinesa também está se erodindo rapidamente?

Cook e Banister (2011) ressaltam que os custos de compensação por hora na manufatura

chinesa são apenas 4% daqueles exercidos nos EUA. Yang, Chen & Monarch (2010) comparam

os salários reais mensais na manufatura urbana chinesa com outras cinco outras economias em

desenvolvimento, a saber, Indonésia, Malásia, Filipinas, Tailândia e Índia, e com mais cinco

economias desenvolvidas – Taiwan, Hong Kong, Cingapura, Coréia do Sul e Japão. De acordo

com os autores, na década de 1980, os salários manufatureiros na China eram muito inferiores às

demais economias em desenvolvimento, mas, com os aumentos salariais desde o final da década

de 1990, esse gap foi sendo fechando, de forma que, os salários manufatureiros chineses teriam

ultrapassado aqueles praticados na Índia e na Indonésia, mas ainda estaria significativamente

abaixo dos salários na Malásia. Todavia, os salários reais na manufatura chinesa ainda são apenas

7% dos salários manufatureiros no Japão, 8-9% na Coréia do Sul e em Cingapura e 18-21% em

Taiwan e Hong Kong.

O fato que se evidencia é que, mesmo com os rápidos aumentos salariais, os patamares de

remuneração na manufatura eram tão baixos, e continuam sendo, que o crescimento acelerado

não minou a competitividade da manufatura chinesa. Se considerarmos que esses patamares

devem estar muito abaixo das estimativas feitas com os dados oficiais, quando levamos em conta

Page 130: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

130

os migrantes sem registro, pode ser que os salários chineses ainda estejam longe de atingir o

patamar dos salários das demais economias em desenvolvimento analisadas por Yang, Chen &

Monarch (2010). Independentemente dessa possibilidade, os autores afirmam que:“These results

are clear evidence of the fact that China’s wages have remained comparatively low and have not

priced China out of its global advantages as the world’s workshop and FDI magnet.” (YANG,

CHEN & MONARCH, 2010, pp. 17)

Todavia, a análise acima exposta é insuficiente para averiguarmos o impacto do rápido

crescimento dos salários na manufatura sobre a competitividade das exportações chinesas. Em

primeiro lugar, devemos levar em consideração a evolução da produtividade na manufatura

exportadora. Se a produtividade aumenta mais rápido do que os salários nominais, então os

custos unitários do trabalho podem cair, mesmo com os salários nominais aumentando; destarte, a

medida que nos interessa não são os salários, mas os custos unitários do trabalho na manufatura

(unit labor costs, ULC), definidos pelos custos de compensação do trabalho manufatureiro sobre

o valor adicionado na manufatura. Kim e Kujis (2007), ao analisarem os dados da NBS,

concluíram que essa razão caiu entre 2002 e 2006, revelando que o aumento da produtividade foi

maior do que o dos salários durante todo o período por eles analisado. Assim, o rápido aumento

salarial não teria se refletido em perda de competitividade das exportações chinesas, que, pelo

contrário, tornaram-se mais competitivas devido aos ganhos de produtividade, ao menos até

2006.

Esses resultados obtidos por Kim e Kujis (2007) não são consensuais. Ceglowski e Golub

(2011) apresentam duas medidas dos custos unitários do trabalho que apontam em direção oposta

aos resultados dos primeiros autores. A primeira baseia-se nas estatísticas disponibilizadas pela

UNIDO – as quais utilizam os dados dos censos e somente incluem os custos de compensação

diretos e a manufatura urbana – e, a segunda, nas estatísticas disponibilizadas pelo Banco

Mundial, em conjunto com os dados da NBS. Na segunda série, Ceglowski e Golub (2011)

seguem os cálculos propostos por Banister (2005) para estimar o emprego e os custos de

compensação totais, isto é, somando o emprego em unidades urbanas com o das TVEs, e

multiplicando os salários por 1,538 e 1,08, respectivamente. Também há uma diferença de

definição de valor adicionado entre as duas séries, fazendo que o valor adicionado na série da

Page 131: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

131

UNIDO seja sempre maior do que a da segunda série, com base na definição empregada nas

contas nacionais.

Ilustração 2.7 – Razão entre custo do trabalho e produto total bruto a preços correntes

(porcentagem)

Fonte: Kim & Kujis, 2007, tabela 10, pp. 15

Ilustração 2.8 – Custos unitários do trabalho na China

(índice em1998 = 100)

Fonte: Ceglowski e Golub (2011), figura 3, pp. 10

Page 132: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

132

Ambas as séries mostram que os custos unitários do trabalho caíram de 1998 a 2003,

corroborando com os resultados de Kim e Kujis (2007). Mas, a partir de 2003 os ULC

começaram a elevar-se, de forma que, em 2007-2008 já superavam o nível de 1998. Esse

resultado obtido por Ceglowski e Golub (2011) aponta que os aumentos de produtividade entre

2003 e 2009 não foram suficientes para compensar os aumentos salariais a partir de 2003. Uma

das explicações para que os dados de Kim e Kujis (2007) difiram da série proposta por

Ceglowski e Golub (2011) que também se baseia nas estatísticas da NBS é a de que os primeiros

não consideraram os gastos com encargos sociais e impostos que os patrões devem efetuar,

relacionados com a folha de salários e com o emprego reportado. Kim e Kujis (2007) basearam-

se nos dados sobre o emprego e o salário em unidades urbanas, sem contabilizar os custos de

compensação indiretos. Tendo em vista que a decisão das multinacionais de produzir em

determinado país leva em conta tanto os custos de compensação diretos, como os indiretos, a

medida proposta pelos autores mostra-se insuficiente.

Por outro lado, Ceglowski e Golub (2011) afirmam que os ULC ainda não são a medida

adequada pra auferir a mudança na posição competitiva da China, pois, mesmo que os custos

unitários do trabalho aumentem, é preciso comparar esses custos com a evolução dos ULCs de

outros países, que podem ter se elevado mais rapidamente, de forma que a China acabe por

tornar-se mais competitiva. Assim, os custos unitários relativos do trabalho (relative unit labor

costs, RULC) são a medida compacta que pode nos informar sobre as mudanças na

competitividade da China relativamente a outros países (CEGLOWSKI e GOLUB, 2011).

Ceglowski e Golub (2005) definem ambos os ULC e RULC como demonstraremos a

seguir. O requerimento unitário de trabalho, ai, é o inverso da produtividade no país i:

(1) ai = Li / VAi,

onde, L é o trabalho empregado e VA é o valor adicionado. Considerando wi como o salário,

temos que:

Page 133: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

133

(2) ULCi = wi Li / VAi, = wi ai

A ULC do país j na moeda doméstica do país i é igual a e w j a j, onde e é a taxa de câmbio

entre a moeda doméstica e a estrangeira. Assim, a RULC pode ser obtida pela equação (3):

(3) RULCi j = wi ai / ei j w j a j

A RULC, desta forma, mede a competitividade do país i relativamente ao país j. Se os

RULC for menor que 1, então o país i terá vantagem competitiva sobre o país j. A ilustração 2.9

mostra os resultados dos RULCs bilaterais da China com diferentes países, além de identificar,

separadamente, as razões entre as produtividades e os salários da China com os demais países

analisados.

Page 134: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

134

Ilustração 2.9 – Produtividade, salários e RULC da China em relação aos seus parceiros

comerciais

(como porcentagem em relação ao país comparado)

Fonte: Ceglowski e Golub, (2011), tabela 4, pp. 19

Page 135: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

135

Pelos dados da ilustração 2.9 é possível ver que embora a produtividade da China tenha

crescido bastante no último período, como constatado por Kim e Kujis (2007), ela ainda é muito

inferior à maioria dos países selecionados, inclusive de muitos países em desenvolvimento.

Mesmo como que a produtividade chinesa na manufatura seja, em geral, inferior a dos demais

países; a diferença entre o patamar salarial da manufatura chinesa e o nível dos salários na

manufatura dos outros países mais que compensa as diferenças na produtividade. Os resultados

dos RULCs também são consistentes com aqueles obtidos por Yang, Chen e Monarch (2010),

mostrando que, salvo pelo caso chileno, somente Índia e Indonésia têm vantagem competitiva, ou

seja, menores custos unitários do trabalho em relação à China. Ceglowski e Golub também

destacam que, embora não existam dados suficientes para fazer o cálculo dos RULC, é bem

provável que Vietnã, Camboja e Bangladesh também tenham vantagem competitiva sobre a

China. Por outro lado, é possível ver como a mera comparação entre patamares salariais é

insuficiente, visto que, se os salários chineses na manufatura são de apenas 4% daqueles

exercidos nos EUA, a relação entre os custos unitários do trabalho entre China e EUA sobe para

33%, mostrando não somente a enorme diferença de produtividade, como o impacto gerado pela

valorização do yuan. De acordo com Ceglowski e Golub, baseados na série da UNIDO, entre

2003 e 2009 os custos unitários do trabalho chineses saltaram de 22% para 33% daqueles

existentes nos EUA.

7. Conclusão

Ao longo do presente capítulo vimos que a China passou por radical transformação em

sua estrutura do emprego. Houve um dramático aumento da PEA ao longo das últimas três

décadas que, em um contexto de aumento da produtividade agrícola, provocou o maior

deslocamento humano da história. Embora o processo de transferência de trabalho da agricultura

para os demais setores tenha tomado fôlego ainda na década de 1980, com um grande fluxo intra-

rural, somente ao final da década de 1990 que a população empregada na agricultura começou a

se reduzir em termos absolutos.

Page 136: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

136

Entretanto, a história desse deslocamento populacional é a história da consolidação do

capitalismo chinês, da criação e expansão da classe capitalista e da constituição de uma nova

classe de assalariados. As inúmeras rupturas que vimos nos números e nas séries são marcas da

violência com que as relações capitalistas implodiram as antigas estruturas sociais. Os resíduos,

os desaparecidos estatísticos, os sabe-se-lá quantos homens e mulheres que estão a correr pelo

país atrás do capital, ora vendendo sua força de trabalho, ora buscando um “amparo social” na

labuta da enxada, são a expressão do processo de formação dessa nova classe assalariada. O

sistema de relatórios anuais, em sua relação visceral com a economia planejada, perdeu-se na

poeira deixada pelo rápido desenvolvimento das relações capitalistas de produção. Surgiu um

mercado de trabalho flexível; surgiram homens, mulheres e crianças que, nas cidades, tem o

único dos direitos: o direito a vender sua força de trabalho. Estão lá, mas não são vistos pelos

serviços públicos; estão lá, mas sequer merecem constar na relação dos explorados reportados

pelas empresas; estão lá, mas não aparecem nas estatísticas.

Os pesquisadores e consultores dos grandes investidores buscam, então, reconstituir uma

realidade cuja lógica é esconder-se, porque mais lucrativa. São inúmeros os enigmas nos números

chineses. Qual é o tamanho da população empregada na agricultura? Quantos migrantes

trabalham nas cidades? Quantos desempregados? Quais áreas são urbanas, mas oficialmente

rurais? Quantas empresas querem se aproveitar desse fato? Quantos os trabalhadores não

reportados? Quantas horas eles trabalham? O quanto eles são pagos? Quantos têm algum outro

direito senão um pagamento não reportado? Perguntas que permanecem sem resposta exata

porque nelas se esconde a natureza mais íntima da acelerada acumulação de capital desde meados

dos anos 1990.

Procuramos ao longo do presente capítulo lançar luz sobre todas essas questões, captamos

algumas tendências, mas os resultados são limitados. Vimos a diminuição do emprego rural e do

emprego agrícola, com a concomitante expansão do emprego não agrícola rural. A estimativa

sobre o emprego agrícola apresenta um intervalo de variação de 11 pontos percentuais em relação

ao total do emprego no país, ou seja, muitos milhões de trabalhadores. Essa variação suscitou

questões teóricas sobre o processo de proletarização e o tratamento conceitual a ser dado àqueles

trabalhadores em estágio de proletarização incompleta, que discutiremos melhor no capítulo

seguinte. Em relação ao emprego urbano, constatamos a vertiginosa expansão do setor privado, o

Page 137: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

137

impacto das privatizações sobre o desemprego e o aumento do resíduo – cuja maior parte é de

migrantes sem registro – pari passu com o desenvolvimento das relações capitalistas de

produção. Notamos também a proliferação de negócios próprios e pequenas empresas privadas,

representando maior precarização do trabalho na estrutura do emprego urbano.

Por fim, discutimos os salários urbanos, o emprego manufatureiro e os salários na

manufatura, todos os três apresentando rápido crescimento nos anos 2000. Todavia, os resultados

são extremamente limitados, uma vez que, com um resíduo de 110 milhões de trabalhadores fora

dos dados sobre os salários urbanos (praticamente um terço do emprego urbano), em 2010, e com

68% (CHIP Project) da força de trabalho manufatureira composta por migrantes, em 2000 –

quase toda ela fora das estatísticas sobre o emprego e os salários –, a esmagadora maioria das

estimativas que apresentamos não são mais do que uma fotografia distorcidamente mais bonita da

realidade da classe trabalhadora chinesa.

No que diz respeito à competitividade das exportações chinesas, vimos que, mesmo com

essa imagem mais graciosa das condições da classe trabalhadora chinesa, as exportações chinesas

continuam competitivas quando comparadas com a maioria dos países, tendo enormes vantagens

sobre os países desenvolvidos. Conclui-se que, a superexploração do trabalho manufatureiro

chinês é de tal magnitude que nem taxas de crescimento dos salários reais maiores que 10% a.a,

nem contando somente os trabalhadores mais bem remunerados, nem considerando o impacto da

valorização cambial, abalou-se o fundamento da inserção internacional da China na economia

mundial: o baixo custo do trabalho. Fizemos inúmeras ponderações, discutimos o papel da

produtividade e os aumentos da mesma, mas quando traçamos o quadro comparativo

internacional, percebemos que o alicerce da competitividade das exportações chinesas continuam

sendo os baixos salários.

Page 138: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

138

Capítulo III. O turning point de Lewis.

“Que o acréscimo natural da massa trabalhadora não

satisfaça às necessidades de acumulação do capital e, ainda

assim, simultaneamente as ultrapasse, é uma contradição de

seu próprio movimento. Ele precisa de massas maiores de

trabalhadores em idade jovem, de massas menores em idade

adulta. A contradição não é mais gritante do que a outra, a

de que haja queixas quanto à carência de braços, ao mesmo

tempo em que muitos milhares estão na rua...” (MARX,

1996, pp. 271)

Desde o início do século XXI, inúmeros artigos jornalísticos e acadêmicos, bem como

relatórios empresarias, têm colocado em xeque a continuidade da principal característica que

alçou a China à condição de fábrica do mundo: os baixos salários do enorme contingente de

trabalhadores não qualificados chineses. Empresas exportadoras localizadas nas principais

cidades costeiras relatam escassez de mão-de-obra; as estatísticas apontam aumento dos salários

reais; e, grande parte da literatura acadêmica e dos jornais alerta para o fim do excedente de mão-

de-obra no campo, o que, segundo os mesmos, é responsável pelo aumento verificado nos

salários. De acordo com expressiva parcela da literatura acadêmica, o aumento dos salários seria

uma tendência que veio para ficar e que pode comprometer a posição do país como grande

exportador de manufaturas baratas, impactando todo o mundo.

Com o intuito de averiguar essa hipótese e expor o debate sobre a natureza dos aumentos

dos salários industriais na China, especialmente na manufatura, o presente capítulo se subdividirá

em mais quatro seções além desta introdução. Na primeira será exposto o principal arcabouço

teórico que tem sido utilizado pela literatura acadêmica para explicar a elevação dos salários e

projetar sua evolução futura: o modelo de desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra

de W. Arthur Lewis. Na seção seguinte, apresentaremos estudos selecionados que aplicam a

referida teoria à China; embora os estudos discutidos sejam poucos, eles são representativos de

uma parcela expressiva da literatura acadêmica sobre o tema. Na terceira seção, será feita não

Page 139: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

139

somente uma análise crítica da maneira como esse instrumental teórico vem sendo aplicado,

como também do próprio modelo teórico. Por fim, a quarta seção dedicar-se-á às considerações

finais, propondo algumas linhas gerais para a interpretação da dinâmica salarial e para o

problema do excedente de trabalho na China.

1. O desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra

Há uma extensa literatura acadêmica, que ganhou destaque nos primeiros anos do século

XXI, centrada no debate sobre o fim da era de oferta de mão-de-obra ilimitada para o

desenvolvimento do capitalismo chinês. A polêmica repousa sobre a formulação de W. Arthur

Lewis (1954) a respeito do desenvolvimento capitalista em economias superpovoadas e

subdesenvolvidas, isto é, em economias caracterizadas, segundo ele, pela marca da dualidade,

distinguindo-se um setor não capitalista, arcaico, e um setor capitalista, moderno, em expansão.

O critério que norteia essa separação é a utilização de capital reprodutível pelo setor capitalista,

cujo uso é remunerado. O eixo analítico de Lewis (1954) está na relação necessária que o setor

não capitalista deve estabelecer com o setor capitalista para que o último possa se expandir, ou

seja, o setor não capitalista deve atuar como fornecedor de mão-de-obra para o setor capitalista.

De acordo com o autor, no caso de países superpovoados como aqueles asiáticos, essa relação

assume uma feição particular, visto haver o que muitos autores denominaram de “desemprego

disfarçado” ou, segundo o próprio Lewis (1954), produtividade marginal ínfima ou igual a zero

no setor não capitalista. Segue-se, então, que pode haver deslocamento de mão-de-obra para o

setor capitalista sem que se afete o nível de produção do setor não capitalista, assumindo que os

trabalhadores que permanecerem nesse setor aceitem trabalhar mais horas. Como resultado, essas

economias caracterizam-se pela abundância de trabalho e pela escassez de capital e recursos

naturais, configurando uma situação de desenvolvimento com oferta de mão-de-obra ilimitada.

O corolário dessa proposição é que, sendo dada a remuneração do trabalhador no setor

não capitalista, o salário no setor capitalista é constituído por essa remuneração mais um

adicional capaz de responder aos maiores custos de vida urbanos e ao transtorno subjetivo gerado

pela migração. Assim, se o salário no setor capitalista é determinado pelo que se pode auferir fora

Page 140: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

140

dele, esse pode se expandir sem exercer pressão sobre os salários enquanto houver oferta

ilimitada de mão-de-obra. O nível de salários no setor não capitalista é igual ao nível de

subsistência, se os camponeses arrendam a terra, ou corresponde ao produto médio dos

camponeses, se esses são proprietários da terra em que trabalham. Como na China a posse da

terra rural é coletiva ou estatal, a segunda situação constitui o parâmetro para estabelecer o nível

mínimo de salários no setor capitalista. Para Lewis, o setor não capitalista seria composto pelos

camponeses, pelos biscateiros, pelos pequenos comerciantes e pelos criados. Adicionalmente, o

autor destaca duas outras fontes de oferta de mão-de-obra: a entrada das mulheres no mercado de

trabalho, que seria regulada pelas oportunidades de emprego, e o crescimento demográfico. Uma

vez posto em marcha o processo de deslocamento do excedente de trabalho em direção ao setor

capitalista, o nível de emprego nesse se situará no ponto em que a produtividade marginal do

trabalho é igual ao salário real, tal como definido anteriormente. A acumulação de capital, ou a

reprodução ampliada, ensejará o aumento da produtividade marginal, possibilitando aumentar o

nível de emprego no setor capitalista, pela absorção do excedente de mão-de-obra, à taxa

constante de salários reais. A absorção paulatina do excedente de trabalho pelo setor capitalista

aumentará a produtividade da economia como um todo, visto que existe um diferencial de

produtividade entre os dois setores.

Ilustração 3.1 - Expansão do setor capitalista

Fonte: Lewis (1969)

Nota: Lewis (1969) é o artigo de 1954 que só foi publicado em português em 1969

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141

Na figura acima, o eixo horizontal representa a quantidade de trabalho e o vertical a

produtividade marginal. Sendo S o salário de subsistência, W o salário real no setor capitalista e

as curvas NᵢQᵢ (ᵢ= 1, 2, ... , n) a produtividade marginal no setor capitalista, o excedente

capitalista NᵢWQᵢ, ao ser reinvestido dentro do setor, desloca a curva de produtividade marginal

para a direita, expandindo o emprego no setor capitalista.

Lewis aponta os impactos da expansão do setor capitalista sobre a distribuição funcional

da renda:

“Se abstrairmos do aumento da população e supusermos que o produto marginal

do trabalho é nulo, o rendimento de subsistência permanecerá constante durante

toda a expansão, visto que, por definição, o trabalho pode ser transferido para o

sector capitalista em expansão sem reduzir a produção de subsistência. Assim, o

processo aumenta o excedente capitalista e o rendimento dos patrões capitalistas,

tomados em conjunto, enquanto proporção do rendimento nacional. ... visto que

os salários reais são constantes, a única coisa que os trabalhadores conseguem é

que um maior número deles obtenha emprego com remuneração acima da do

sector de subsistência. O modelo mostra, com efeito, que se se dispõe de uma

oferta ilimitada de mão-de-obra a um salário real constante e se uma parte dos

lucros é reinvestida em capacidade produtiva, os lucros aumentarão

continuamente em relação ao rendimento nacional, aumentando também a

formação de capital em relação ao rendimento nacional.” (LEWIS, 1969)

Todavia, de acordo com Lewis, o processo de expansão do setor capitalista a salários reais

constantes pode ser interrompido, sem que se tenha esgotado o excedente de trabalho disponível.

Tendo em vista que o parâmetro para a determinação do salário real no setor capitalista está no

rendimento que se pode obter no setor tradicional, para Lewis (1954), tudo o que elevar esse

rendimento, elevará também os salários reais no setor capitalista. Isso posto, o autor elenca

motivos para que os salários reais aumentem, a despeito do excedente de mão-de-obra:

a) O produto médio por trabalhador fora do setor capitalista aumenta devido a um ritmo de

acumulação de capital superior à taxa de crescimento demográfico. Nesse caso, a

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142

redução do número absoluto de trabalhadores no setor tradicional eleva o produto

médio por homem em função da redução do número de pessoas a serem alimentadas

dentro desse setor, e não devido a alterações na produção.

b) Supondo que os dois setores produzem bens diferentes, especificamente, que o setor

tradicional produz alimentos e o capitalista o restante dos bens, os termos de troca reais

entre os dois setores pode ser alterado negativamente em relação ao setor capitalista,

devido ao aumento do tamanho do setor capitalista vis-à-vis o setor tradicional.

Destarte, para manter os salários reais constantes no setor capitalista, uma parte maior

do produto desse setor deve ser paga aos trabalhadores. Nesse caso, os salários reais

aumentam relativamente à parcela do produto apropriada pelo capital e não em termos

absolutos.

c) O setor não capitalista absorve progresso técnico, elevando sua produtividade. Sem que

haja alteração correspondente nos termos de intercâmbio, o aumento do produto médio

por pessoa elevará os salários reais no setor capitalista.

d) Os trabalhadores no setor capitalista podem imitar o modo de vida capitalista,

transformando as convenções relativas ao que é o salário de subsistência, e, por meio de

pressões sindicais, aumentar o diferencial de salários entre os dois setores.

Salvo nessas circunstâncias, a expansão contínua do setor capitalista se processará a

salários reais constantes até absorver o excedente de mão-de-obra. Quando o processo de

absorção se esgota, a economia passa da situação de mão-de-obra ilimitada para a escassez de

trabalho, momento conhecido na literatura como lewesian turning point, no qual os salários

deixam de estar ligados ao nível de subsistência, ou ao produto médio da agricultura camponesa,

e começam a aumentar. Como resultado, o aumento dos salários reais tem impactos sobre a

distribuição funcional da renda, reduzindo a parcela dos lucros na renda nacional. Desta forma,

Lewis conclui que “quando a acumulação de capital alcança a oferta de trabalho, os salários

começam a subir acima do nível de subsistência e o excedente capitalista vê-se afectado de modo

desfavorável”. (LEWIS, 1969) Uma vez que, para o autor, a reprodução ampliada depende da

poupança (determina o investimento), e essa é uma função da parcela dos lucros na renda, o

efeito do aumento dos salários acabará impedindo a expansão do setor capitalista, visto que reduz

a parcela dos lucros e, assim, a poupança que pode ser aplicada em novos investimentos. Esse

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143

prognóstico, associado às circunstâncias em que os salários reais podem aumentar mesmo com

excedente de mão-de-obra, levam Lewis (1954) a afirmar que:

“Chegamos, portanto, à conclusão de que a expansão do sector capitalista pode ser

detida por um aumento do preço dos bens de subsistência ou porque o preço não diminui

tão rapidamente quanto o exige o aumento da produtividade per capita no sector de

subsistência ou, ainda, por os trabalhadores capitalistas elevarem o seu nível de

subsistência. Qualquer uma dessas alternativas aumentaria os salários em relação ao

excedente. Isto pode dar-se ainda que a população aumente... Não podemos dizer que o

capital avançará sempre mais rapidamente que o trabalho (desde logo, não foi o que se

deu na Ásia), mas podemos dizer que se as condições forem favoráveis para que o

excedente capitalista aumente mais rapidamente que a população, chegará o dia em que

a acumulação de capital terá alcançado a oferta de trabalho.” (LEWIS, 1969)

Esboçadas as linhas gerais da proposição teórica de Lewis (1954) sobre o

desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra, centrar-se-á na maneira com a qual a

literatura sobre o desenvolvimento da China na primeira década do século XXI tem utilizado esse

arcabouço teórico. Uma parcela considerável da academia desenvolveu uma obsessão por

determinar se o turning point de Lewis foi ou não foi atingido na China. Obviamente, parte-se

não só da pressuposição de que a teoria de Lewis está correta, como também de que ela seja

aplicável ao caso chinês.

Considerando a indissociabilidade entre teoria e prática política, podem-se identificar,

grosso modo, duas razões políticas distintas para o enorme interesse em determinar qual seria o

momento do turning point na China. A primeira relaciona-se com aqueles que estão preocupados

com a rentabilidade do capital aplicado na China; esses buscam informar aos investidores se

devem ou não se preocupar com o aumento dos salários reais verificado no início do século XXI.

Dentre eles, os partidários de que o turning point está distante buscam acalmar os investidores,

afirmando que ainda há muito trabalho barato a ser explorado pelos anos a vir; pelo outro lado, os

que defendem que o turning point já foi alcançado, alertam os investidores quanto à tendência

estrutural de elevação dos salários reais, que irá deteriorar persistentemente a remuneração do

capital.

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144

Do outro lado do espectro político estão aqueles que se preocupam com as condições de

vida da classe trabalhadora chinesa. Para esses, a chegada do turning point seria o momento a

partir do qual as desigualdades na distribuição funcional da renda começariam a ser revertidas e a

classe trabalhadora progressivamente desfrutaria de melhores condições de vida, aliviando a

pesada carga de exploração que lhe é imposta. Desta forma, a chegada do turning point aparece

como uma solução objetiva e automática para os problemas da classe trabalhadora, dissociando a

resolução desses da capacidade organizacional da classe trabalhadora chinesa e dos resultados

dos embates políticos por ela travados no seio de uma sociedade de classes.

A despeito dos motivos políticos que frutificam as análises relativas ao lewesian turning

point, buscar-se-á, em um primeiro momento, fazer uma crítica interna a esses estudos, ou seja,

assumindo que as premissas de Lewis (1954) sejam válidas e aplicáveis à China, para,

posteriormente, suscitar críticas a respeito do próprio modelo de desenvolvimento com oferta

ilimitada de mão-de-obra.

2. Estudos aplicados sobre o turning point de Lewis à China

Em linhas gerais, os estudos acadêmicos orientados pelo arcabouço teórico do

desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-de-obra buscam duas estratégias

alternativas para averiguar se a economia chinesa atingiu o turning point, a saber, por meio da

estimação do excedente de mão-de-obra, ou por meio da averiguação da ocorrência de aumentos

nos salários reais. De forma a ilustrar a utilização desses métodos, foram selecionados alguns

estudos acadêmicos considerados representativos.

2.1 Lewisian turning point: contando os trabalhadores excedentes

Tendo em vista os inúmeros problemas relacionados às estatísticas chinesas sobre o

emprego, a literatura acadêmica que busca avaliar o tamanho do excedente de mão-de-obra ainda

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145

disponível na agricultura não é consensual em suas estimativas. Os números apresentados por

esses trabalhos variam enormemente, seja pela falta de compreensão dos sistemas estatísticos

chineses, seja pelos diferentes pressupostos feitos pelos autores para preencher as lacunas dos

dados estatísticos. Em geral, as tentativas de estimar o excedente de trabalho na agricultura

dividem-se em duas etapas principais. A primeira delas consiste em, dadas a produtividade do

trabalho e a produção total na agricultura, estimar o número de trabalhadores necessários para

atingir esse nível de produto agrícola. Uma vez determinado o número de trabalhadores

requeridos pela produção agrícola, a segunda etapa passa pela identificação da estrutura do

emprego rural, de forma a poder subtrair os “trabalhadores necessários”, obtendo o trabalho

excedente. Mai e Peng (2009) estão entre os muitos autores que utilizaram esse método; eles

propõem o seguinte esquema para estimar o trabalho excedente na agricultura:

Ilustração 3.2 – Esquema para o cálculo estatístico do excedente de trabalho na agricultura

Fonte: Mai e Peng (2009),

Page 146: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

146

Na ilustração acima, o emprego agrícola é o número de trabalhadores “necessários”, dada

a produtividade do trabalho, para atingir o nível de produto de um ano determinado. Ele varia

positivamente com o produto e negativamente com a produtividade (MAI & PENG, 2009). O

emprego rural não agrícola e o emprego rural são obtidos através do CLSY, lembrando que o

primeiro é majoritariamente composto pelo emprego nas TVEs e provém do sistema de relatórios

anuais, enquanto o segundo é estimado à luz dos censos populacionais e das pesquisas amostrais

realizadas anualmente. O emprego rural-urbano é a estimativa dos migrantes rurais fornecida

pelos censos agrícolas; de acordo com os autores, essa categoria é composta pelos migrantes com

hukou rural que trabalham na indústria ou nos serviços em áreas urbanas a mais de um mês.

Baseados nesse esquema, Mai e Peng (2009) estimam que em 2005, dos 484,76 milhões

de trabalhadores rurais, o número de trabalhadores agrícolas era de 184,55 milhões, o de não

agrícolas era de 128,43 milhões e o de trabalhadores rural-urbanos era de 112,45 milhões.

Subtraindo essas três últimas categorias do emprego rural, eles estimam que o excedente de mão-

de-obra era de 59,33 milhões de trabalhadores em 2005. Em 2015, levando em consideração o

padrão de aumento da produtividade agrícola desde 1997, projeções demográficas e de

crescimento econômico, os autores estimam que o número de trabalhadores rurais será de 475,15

milhões, o emprego não-agrícola rural será de 145,54 milhões e os migrantes rurais serão 133,06

milhões de trabalhadores, enquanto o número de pessoas necessárias na agricultura cairá para

171,17 milhões. Como resultado, o trabalho excedente será reduzido a apenas 25,58 milhões.

Todavia, o emprego rural foi revisado à luz do censo de 2010, reduzindo-se para 462,58

milhões em 2005 e 414,18 em 2010. Assim, se substituirmos o novo valor nos cálculos de Mai e

Peng (2009), o trabalho excedente em 2005 cai para 37,15 milhões. Em uma perspectiva

conservadora, na qual o número de trabalhadores no setor não agrícola rural e de migrantes rurais

não aumentou nos últimos cinco anos, sendo, respectivamente de 128,43 e 112,45, se aplicarmos

o cálculo por eles proposto ao ano de 2010, em que o emprego rural é de 414,18 milhões, ter-se-

ão 173,3 milhões de trabalhadores a serem considerados entre o emprego agrícola e o trabalho

excedente. Se se considera a projeção do número de trabalhadores necessários à produção

agrícola em 2015 e se reduz a metade o número de trabalhadores liberados pelos ganhos de

produtividade desde 2005, o número de trabalhadores necessários para a produção agrícola seria

de 177,86 milhões em 2010. Desta forma, como somente 173,3 milhões de trabalhadores estão

Page 147: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

147

disponíveis para a agricultura, enquanto seriam necessários 177,86 milhões, ou a produtividade

aumentou drasticamente no período ou a produção agrícola teve que ser reduzida em 2010,

devido à falta de braços na agricultura. Todavia, a produção agrícola em 2010 atingiu recorde

histórico, ao passo que, nos últimos cinco anos, o número de trabalhadores não agrícolas rurais e

de migrantes rurais também aumentou, de forma que, considerado os cálculos de Mai e Peng

(2009), ou o aumento da produtividade do trabalho na agricultura foi excepcionalmente alto, uma

revolução na produtividade, ou os cálculos estão incorretos.

Os autores apontam para o fato de que seus cálculos subestimam o trabalho excedente, em

função de utilizarem o número de migrantes rurais obtidos dos censos agrícolas sem descontar o

período em que parcela deles trabalha na agricultura. Todavia, em seus cálculos, Mai e Peng

(2009) não atentam para as múltiplas relações que as categorias estatísticas estabelecem entre si,

considerando-as mutuamente excludentes. Como exposto na discussão sobre a estrutura do

emprego na agricultura, uma parcela dos migrantes rurais destina-se ao setor não agrícola rural,

de forma que há sobreposição de dados entre a categoria migrantes rurais e o emprego não

agrícola rural (CAI & WANG, 2008). Buscando controlar essa sobreposição, Cai e Wang (2008)

utilizam duas estimativas sobre o total da força de trabalho transformada de agrícola em não

agrícola, em 2005. Além disso, os autores estimam três valores diferentes para o número de

trabalhadores necessários à produção agrícola, à produtividade do trabalho corrente, sobre três

hipóteses distintas a respeito do número de dias trabalhados por trabalhador ao ano.

Os três cenários analisados oferecem estimativas muito discrepantes entre si do número

de trabalhadores excedentes na agricultura. Enquanto o cenário 1 estima que quase um quarto da

força de trabalho rural é composta por mão-de-obra excedente, o cenário 2 estima

aproximadamente um oitavo e o cenário 3, um vigésimo. Em que pese a estimativa do cenário 3

ser muito próxima à de Mai e Peng (2009), os pressupostos utilizados pelos dois trabalhos foram

muito diversos. Assim, com uma diferença de 43,4 milhões de trabalhadores nos números

estimados de pessoas requeridas à produção agrícola utilizados por Mai e Peng (2009) e por Cai e

Wang (2008), no cenário 3, os trabalhos obtém praticamente a mesma estimativa do trabalho

excedente.

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148

Tabela 3.1 – Estimativas sobre o excedente de trabalho na agricultura

(trabalho agrícola transformado em não agrícola, trabalho agrícola, trabalho excedente, em

milhões e em porcentagem)

Trabalho transformado Trabalho agrícola Trabalho excedente

Milhões % Milhões % Milhões %

Cenário

1 200,0 41,2 178,0 36,7 107,0 22,1

Cenário

2 232,3 47,9 189,9 39,2 62,8 12,9

Cenário

3 232,3 47,9 227,9 47,0 24,8 5,1

Fonte: Cai e Wang (2008), tabela 2, pp. 56

Desta forma, calcular o excedente de trabalho remanescente na agricultura é uma tarefa

complexa, que requer inúmeros pressupostos, a construção de múltiplos cenários e a consideração

das diferentes definições estatísticas. Por exemplo, é possível que uma parcela expressiva dos

migrantes rurais, definida como força de trabalho transformada, esteja contabilizada no emprego

urbano, não podendo ser subtraída do emprego rural. Desta forma, mesmo que se levem em conta

os inúmeros problemas nas estatísticas, as estimativas resultantes são necessariamente

imprecisas. Como se tratam de números de trabalhadores empregados de enormes magnitudes,

pequenas imprecisões levam a desvios de milhões de pessoas, podendo transformar uma situação

de excedente de mão-de-obra em escassez de trabalho e vice-versa.

Uma alternativa utilizada para escapar dessas complicações pode ser encontrada em Cai e

Wang (2010), que buscam estimar o excedente de trabalho na agricultura de forma indireta. Em

um primeiro momento, os autores analisam as tendências gerais das mudanças na estrutura do

emprego rural; posteriormente, sem propor números para o total de trabalho excedente na

agricultura, buscam identificar a estrutura etária dos trabalhadores remanescentes na agricultura,

associando as faixas etárias à probabilidade de migração. Incialmente, os autores destacam o

dramático aumento do emprego nas TVEs e nas pequenas empresas privadas e negócios próprios,

que teve como contrapartida a redução, entre 1990 e 2007, de 24,8% no emprego na categoria

outros empregados rurais. De acordo com Cai e Wang (2010), essa última categoria deveria

Page 149: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

149

incluir os trabalhadores agrícolas, os migrantes e os trabalhadores excedentes. Para eles, tendo

em vista que o aumento da produtividade na agricultura vem reduzindo o número de

trabalhadores agrícolas e que houve um grande aumento no número de migrantes, os

trabalhadores excedentes devem constituir uma pequena parcela dos outros empregados rurais.

No que se refere à distribuição etária da força de trabalho remanescente na agricultura, os

autores estimam-na utilizando dados sobre a distribuição etária da população rural em idade

ativa, como proxy da estrutura etária da força de trabalho rural, e sobre a configuração etária dos

trabalhadores migrantes rurais permanentes (mais de 6 meses), categoria que saltou de 80

milhões em 2001 para 150 milhões em 2009 (CAI & WANG, 2010). Assim, ao suporem a

mesma distribuição etária dos migrantes para os trabalhadores rurais não agrícolas, os autores

estimam a estrutura etária da força de trabalho remanescente por meio da diferença entre a

distribuição etária da força de trabalho rural total e a dos migrantes em conjunto com os

trabalhadores rurais não agrícolas. Em seguida, Cai e Wang (2010) assumem que a estrutura

etária dos trabalhadores agrícolas e dos trabalhadores excedentes é a mesma. Como resultado, os

autores apontam que 20% dos trabalhadores excedentes na agricultura têm entre 16 e 30 anos,

30% têm entre 31 e 40 anos e metade é composta por pessoas com mais de 40 anos, que possuem

baixíssima propensão a migrar. Ou seja, considerando a tendência mais geral de redução do

número total de trabalhadores “deixados para trás” (trabalhadores agrícolas e excedentes), dentre

os trabalhadores remanescentes, aqueles considerados como excedentes e com disposição para

migrar (pessoas entre 16 e 40 anos) compõem uma parcela ínfima, se ela ainda existir. Como

agravante, os autores ressaltam que a transição demográfica na China, resultado da política de um

filho só e das mudanças socioeconômicas, vem reduzindo a taxa de crescimento da população em

idade ativa. Desta forma, Cai e Wang (2010) concluem que a China entrou na era de escassez de

trabalho, que se reflete no aumento dos custos do trabalho.

A delimitação do perfil etário dos trabalhadores migrantes também tem papel de destaque

na análise de Chan (2010), tornando-se fundamental para compreender o que o autor caracteriza

como o aparente paradoxo da escassez de trabalho migrante em meio à abundância da oferta de

trabalho rural. Esse perfil resulta da liberação de um enorme contingente de mão-de-obra da

agricultura, a partir da década de 1980, associado ao contexto institucional do hukou, que “os

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150

confina, em termos gerais, dentro de uma enorme subclasse de trabalho superexplorado e de

baixo custo” (CHAN, 2010):

“Because of the weak bargaining position of labor, employers in the export industry are

also able to “cherry-pick” workers with the most “desirable attributes.” Often these are

conceived in Dickensian terms so as to run the lowest-labor-cost manufacturing system

possible: stressing the physical abilities of young workers, such as easily trainable

dexterity to handle fast-paced, often military-style, repetitive assembly work (especially

in electronics industry) and endurance for long work-day hours (routine overtime daily

work, and often for 28–29 days per month); and their “work attitudes” such as obedience

to orders and “capacity” for long periods of residence in dormitories or barrack-type

shelters. … In short, the older labor becomes too “costly” to both the industrialists and

the local government. The end result is that the work span of these rural migrant workers

in factory jobs is substantially shortened from the usual 40 years to only 15–20 years.

Combined with limited job training and useful skills gained from working in these

industrial jobs, the short work span points to a very consumptive, wasteful, and

extremely “low cost” (to the employer) way of using labor..” (CHAN, 2010: pp. 516)

De acordo com Chan (2010), esse padrão de utilização da mão-de-obra migrante gera uma

redução na oferta de mão-de-obra para a indústria, cuja contrapartida é o desemprego e o

subemprego rural. Após entrarem na casa dos 30 anos, os trabalhadores migrantes, que saíram do

campo a partir dos 15-16 anos, passam a não suportar mais se submeter às condições de

superexploração da indústria urbana, abandonando o emprego ou sendo demitidos. As condições

de trabalho são agravadas pelas dificuldades de constituir família nas cidades, devido ao alto

custo da habitação fora dos dormitórios e à impossibilidade de colocar seus filhos em instituições

educacionais urbanas, dentre outros percalços. Assim, eles retornam ao campo, para suas famílias

e para o trabalho agrícola. Como consequência, gera-se um aparente paradoxo de escassez de

mão-de-obra em meio à abundância de trabalho na agricultura. Essa contradição também pode ser

encontrada em Marx (1996):

“Que o acréscimo natural da massa trabalhadora não satisfaça às necessidades de

acumulação do capital e, ainda assim, simultaneamente as ultrapasse, é uma contradição

de seu próprio movimento. Ele precisa de massas maiores de trabalhadores em idade

Page 151: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

151

jovem, de massas menores em idade adulta. A contradição não é mais gritante do que a

outra, a de que haja queixas quanto à carência de braços ao mesmo tempo em que muitos

milhares estão na rua, porque a divisão de trabalho os acorrenta a determinado ramo de

atividades. O consumo da força de trabalho pelo capital é, além disso, tão rápido que o

trabalhador de mediana idade, na maioria dos casos, já está mais ou menos esgotado. Ele

cai nas fileiras dos excedentes ou passa de um escalão mais alto para um mais baixo.

Justamente entre os trabalhadores da grande indústria é que deparamos com a duração

mais curta de vida.” (MARX, 1996: 271)

Partindo dessa percepção, Chan (2010) propõe que, em função da heterogeneidade da

força de trabalho, seja devido à faixa etária, ao nível de qualificação ou de outros atributos,

existem várias curvas de oferta de trabalho e não somente uma. Ao aplicar o modelo de Lewis,

Chan propõe considerar dois tipos de trabalho rural, os trabalhadores jovens (até 30 anos), que

são demandados pela indústria exportadora, e os trabalhadores mais velhos. Assim, na ilustração

3.3, S2 é a curva de oferta do trabalho rural jovem, S3 é a curva de oferta de trabalho rural com

idade acima dos 30 anos e S1 é a curva de oferta de trabalho rural jovem na ausência do hukou,

de forma que, observando S2, o hukou tem o efeito de prolongar a situação de oferta ilimitada de

trabalho rural jovem. O eixo vertical representa a taxa de salários e o eixo horizontal representa a

quantidade de trabalho. As curvas D1 até D4 representam as curvas de demanda da indústria

exportadora em expansão.

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152

Ilustração 3.3 – Modelo estilizado de oferta e demanda por trabalho rural na China entre

1980 e 2010

Fonte: Chan (2010), Figura 2, pp. 518

O autor advoga que a economia chinesa estaria na situação representada pela curva D4, ou

seja, no turning point de Lewis no que concerne ao trabalho jovem, mesmo na presença do

sistema de hukou. Todavia, no caso dos trabalhadores mais velhos (S3), onde as curvas D1 a D4

representam a demanda total urbana por trabalhadores rurais mais velhos, mesmo no estágio

representado por D4, ainda há oferta ilimitada de trabalho a baixos salários. Destarte, Chan

compatibiliza a visão de que o aumento de salários nas indústrias exportadoras se deve à escassez

de trabalho e à ultrapassagem do lewisian turning point, com o fato de que a China, com a maior

força de trabalho do mundo, possui abundância de mão-de-obra.

Page 153: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

153

2.2 Lewisian turning point: verificando o aumento dos salaries reais

Tendo em vista as controversas estatísticas chinesas sobre o emprego, Zhang, Yang e

Wang (2010) propõem verificar a chegada do turning point por meio da evolução dos salários

reais na agricultura. De acordo com os autores, o salário real na situação de mão-de-obra

ilimitada, aquele de subsistência, é igual à produtividade marginal do trabalho agrícola. Segundo

os mesmos, com o deslocamento do trabalho para a indústria, o esgotamento do excedente de

mão-de-obra manifesta-se primeiro pela elevação dos salários reais no campo, in tandem com o

aumento da produtividade marginal, até alcançar os salários urbanos, momento no qual os

salários reais em ambos os setores aumentam conjuntamente. Assim, haveria um primeiro turning

point na agricultura, pressagiando a chegada do turning point para a economia como um todo

.

Ilustração 3.4 – Modelo conceitual do turning point de Lewis

Fonte: Zhang, Yang e Wang (2010), figura 1, pp. 2

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154

No gráfico acima, o eixo horizontal representa a força de trabalho existente na economia e

o eixo vertical a produtividade marginal. Om é a origem no setor urbano e Or é a origem no rural.

As curvas AᵢBᵢ e a CD são a produtividade marginal do trabalho na indústria e na agricultura,

respectivamente, e m é o salário de subsistência. Assim, B2 é o turning point na agricultura e B3 é

o turning point para a economia como um todo.

Com o intuito de aplicar esse modelo, Zhang, Yang e Wang (2010) analisaram dados

relativos à população migrante e aos salários reais rurais de pesquisas feitas em inúmeras vilas

nas províncias de Jiangsu, Hebei, Shaanxi, Jilin e Sichuan, para o período 1998-2007, e em três

condados pobres da província de Gansu, cujos dados estão disponíveis de 1993 a 2006. Essa

última província adquire importância especial para os autores, uma vez que se situa distante dos

principais centros criadores de emprego, podendo, segundo eles, ser considerada como um dos

últimos bolsões de trabalho excedente. Em 1993, 16,8% da força de trabalho dos condados

selecionados em Gansu trabalhavam fora deles; em 2006, essa proporção atingiu 40,5%. Entre

1993 e 2003, a taxa média de crescimento anual da proporção de migrantes nos três condados

esteve no intervalo de 2,0% a 2,5%; nos anos subsequentes ela subiu para 9,6%. De acordo com

Zhang, Yang e Wang (2010), esses dados indicam grande declínio na força de trabalho restante,

em especial nos últimos anos.

No que diz respeito aos salários, a análise estatística feita pelos autores apontou que, até

2003, os salários reais diários permaneceram constantes em Gansu. A partir de 2004, os autores

observaram que os salários reais apresentaram elevada taxa de crescimento anual, atingindo, em

Gansu, 6,6% nos períodos de colheita e 5,8% nas baixas estações. Nas demais províncias

selecionadas, os salários reais diários tiveram uma taxa de crescimento anual de 1,8% até 2003.

Para o período 2004-2007, ela subiu para 9,1%. Destarte, Zhang, Yang e Wang (2010) afirmam

que as estatísticas das demais províncias confirmam o que a análise dos dados de Gansu revelou,

isto é, que o Lewisian turning point para a agricultura (o ponto B2) foi atingido por volta de 2003.

Como vimos na seção sobre o desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra,

Lewis aponta vários motivos para que os salários reais aumentem antes que o excedente de

trabalho tenha se esgotado, de forma que, averiguar somente o comportamento dos salários reais

no campo, torna-se insuficiente para auferir a chegada do turning point. O período 2004-2007

caracterizado pelos autores por um rápido crescimento da remuneração real dos camponeses foi

Page 155: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

155

também o período em que o governo central aboliu as taxas sobre a agricultura e no qual houve

uma melhora nos preços dos bens agrícolas (HUNG, 2009), de forma que, o aumento da

remuneração não está necessariamente associado com o fim do excedente de mão-de-obra.

Zhang, Yang e Wang (2010) buscam, então, observar os salários rurais em conjunto com

a evolução da proporção de trabalhadores migrantes em relação à força de trabalho rural. Assim,

para eles, se fosse constatado um aumento na remuneração dos camponeses, ao mesmo tempo em

que existisse uma drástica redução na força de trabalho remanescente na agricultura, estaria

provada a chegada do lewisian turning point. Todavia, eles utilizam dados sobre somente três

condados da província de Gansu, para testar a hipótese de redução da força de trabalho

remanescente no campo. O pressuposto de que Gansu é um dos últimos bolsões de trabalho

excedente, de forma que, se a migração se intensifica em Gansu é porque o trabalho excedente já

se esgotou na maioria das outras províncias, não nos parece adequado. Os condados de Gansu

têm características particulares que não são somente aquela de estarem distantes das grandes

cidades:

“They were in essence poor, remote, agriculture dependent with fragmented

landholdings, and located in unfavorable agroecological environments. More

specifically, Gansu was the poorer of the two provinces [Gansu e Mongólia Interior],

characterized by a higher population density and poorer agro-ecological endowments,

with many living in fragile uplands. The farms were more fragmented and agricultural

productivity was low. The province also had a longstanding tradition of labor mobility

in search of temporary employment, often in the rural towns and the large state owned

cotton farms in the neighboring autonomous region Xinjiang.” (CHRISTIANENSEN,

PAN e WANG, 2010: pp5)

Somando-se a esse quadro de pobreza e baixa produtividade na agricultura de Gansu,

podemos adicionar o impacto da redução das tarifas aplicadas às importações agrícolas após a

entrada da china na OMC em 2001:

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156

“Oxfam Hong Kong reported in December that the import of cheap US cotton into China

resulted in 2005 in the loss of $208 million in income for farmers and 720,000 jobs.

Hardest hit were Gansu and Xinjiang, the country’s two poorest western provinces.

Sugar imports from the EU have reduced the annual per capita income of Chinese sugar

growers by 300 yuan.” (CHAN, 2006)

Nesse sentido, é muito mais provável que o padrão de migração em Gansu seja explicado

pela coerção econômica imposta pela pobreza, agravada pelo impacto das importações, do que

por uma resposta tardia ao êxodo rural em outras províncias, como implícito na ideia de “último

bolsão de trabalho excedente”. Ademais, tendo em vista o longo histórico de migração sazonal

para as vizinhas fazendas estatais de algodão em Xinjiang, a falência de muitas delas pode ter

impulsionado a população trabalhadora pobre para regiões mais distantes e em caráter

permanente. Destarte, vemos quão problemático pode ser, em um país tão vasto e diverso como a

China, estabelecer pressupostos e conclusões baseados em um fragmento particular do mosaico

de realidades chinesas.

Do ponto de vista do arcabouço teórico lewisiano, a proposição de que existem dois

turning points, um para a agricultura, e outro para a economia como um todo, de forma que a

remuneração da agricultura aumenta até atingir a da indústria, não se fundamenta. Para Lewis

(1954), tudo o que aumenta a remuneração real no setor não capitalista, eleva os salários reais do

setor capitalista. Outro fato a notar-se nos resultados dos autores refere-se à mensuração dos,

segundo eles, salários reais na agricultura – o que nos parece uma impropriedade conceitual, dado

que a propriedade da terra rural não é privada – que são medidos em termos diários e não por

hora. Assim, pode ser que os salários por hora, ou o produto médio por hora, não tenha se

elevado, enquanto os salários diários tenham, como ressalta Tignor: “individuals could be

withdrawn from the traditional sectorwithout any diminution of the product because those who

remained behind would andcould work longer and make up for the missing individuals.” (2004,

pp. 707 apud Scherer, 2007). Destarte, não nos parece que os resultados apresentados pelos

autores possam provar a chegada do turning point.

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157

3. Críticas ao desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra e sua aplicação à China

3.1 Críticas gerais aos estudos acadêmicos selecionados

No que se refere às análises anteriormente expostas defendendo a chegada do turning

point, seja partindo da análise dos salários ou do emprego, a primeira questão a saltar aos olhos é

a ausência de qualquer referência à distribuição funcional da renda. Em Lewis (1954), os salários

reais constantes, resultantes do excedente de mão-de-obra, são relevantes em sua relação com a

reprodução ampliada do setor capitalista, que, por sua vez, eleva a produtividade da economia

como um todo, possibilitando o desenvolvimento econômico. De acordo com o autor, os lucros

como parcela da renda nacional são a principal fonte para a concretização de novos

investimentos, responsáveis pela expansão do setor capitalista:

“O nosso problema é, portanto, o seguinte: em que circunstâncias aumenta a

participação dos lucros no rendimento nacional? O modelo clássico modificado que

utilizamos aqui tem a virtude de responder a isso. De início, o rendimento nacional é

quase que totalmente formado pelo rendimento de subsistência. Se abstrairmos do

aumento da população e supusermos que o produto marginal do trabalho é nulo, o

rendimento de subsistência permanecerá constante durante toda a expansão, visto que.

por definição, o trabalho pode ser transferido para o sector capitalista em expansão sem

reduzir a produção de subsistência. O modelo mostra, com efeito, que se se dispõe de

uma oferta ilimitada de mão-de-obra a um salário real constante e se uma parte dos

lucros é reinvestida em capacidade produtiva, os lucros aumentarão continuamente em

relação ao rendimento nacional, aumentando também a formação de capital em relação

ao rendimento nacional. Assim, o processo aumenta o excedente capitalista e o

rendimento dos patrões capitalistas, tomados em conjunto, enquanto proporção do

rendimento nacional.” (LEWIS, 1969)

Neste sentido, a preocupação com o aumento dos salários reais é a preocupação com a

diminuição da parcela dos lucros na renda nacional, reduzindo a taxa corrente de investimentos,

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158

até que o nível dos últimos seja somente suficiente para cobrir a depreciação, de forma a manter

constante o estoque de capital no setor capitalista. Destarte, pelo seu efeito sobre os lucros

enquanto parcela da renda, o aumento dos salários reais leva a estagnação do setor capitalista,

impedindo sua expansão, o aumento da produtividade da economia como um todo e emperrando

o processo de desenvolvimento econômico.

Como visto anteriormente, desde o início das reformas econômicas lideradas por Deng

Xiaoping, a distribuição funcional da renda na China tem evoluído em benefício dos lucros; mais

especificamente, a expansão da parcela dos lucros na renda nacional tem ocorrido à custa da

participação do trabalho na apropriação da mesma. Visto por esse ângulo, o turning point, como o

momento em que a parcela dos lucros para de crescer e começa a diminuir, não foi alcançado; a

expansão do setor capitalista de forma alguma esta comprometida por lucros minguantes em

relação à riqueza nacional. Colocar a questão dos salários reais em Lewis fora de sua relação com

a reprodução ampliada capitalista, relação essa mediada pela distribuição funcional da renda, é

extirpar da análise lewisiana seu objetivo, sua preocupação central: o desenvolvimento

econômico.

Como caracterizar a situação chinesa, na última década, em referência ao

desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra de Lewis? Reunindo as evidências

discutidas ao longo do presente trabalho temos a seguinte configuração:

a) a evolução da distribuição funcional da renda vem ocorrendo em benefício dos lucros,

com a redução da parcela do trabalho;

b) o emprego rural está reduzindo-se em termos absolutos, enquanto o emprego não

agrícola rural continua a expandir-se; todavia, as complicações presentes nos dados

em relação aos migrantes e no tratamento do emprego sazonal, tornam difícil estimar

qual foi a redução do nível de emprego na agricultura. Essas dificuldades, em um

contexto de elevação da produtividade agrícola, conferem um caráter quase

especulativo às tentativas de quantificar o excedente de trabalho na agricultura;

c) os salários reais têm aumentado nas áreas urbanas e rurais, inclusive, aparentemente,

entre os migrantes sem hukou local; entretanto, as estatísticas oficiais oferecem um

panorama sobre os salários limitado à parcela mais bem remunerada dos

trabalhadores. As disparidades regionais e os problemas inerentes ao sistema de

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159

relatórios anuais dentro de um sistema onde o motor é o lucro fazem que seja

extremamente difícil mensurar a magnitude dos aumentos salariais.

Destarte, o que se pode seguramente afirmar é que o deslocamento de mão-de-obra do

setor não capitalista para o setor capitalista, que tomou fôlego no início dos anos 1990, tem sido

acompanhado por rápido aumento dos salários reais dos trabalhadores captados pelas estatísticas

oficiais, desde 1998, e, aparentemente, desde em torno de meados dos anos 2000 para os

trabalhadores migrantes. Esses aumentos não têm, todavia, alterado o padrão de evolução da

distribuição funcional da renda descrita por Lewis (1954). Como compatibilizar, então, o fato

“a)” com os fatos “b)” e “c)”? Uma parte da resposta pode ser encontrada na monetização da

remuneração do trabalho, de forma que os salários monetários aumentam sem pressionar para

cima a parcela do trabalho na renda nacional, considerando tudo o mais constante.

O restante da resposta advém de ganhos de produtividade superiores ao crescimento da

remuneração do trabalho. Como vimos no capítulo I, esses ganhos podem ser tanto devido a

efeitos estruturais como a efeitos intrassetorias, os últimos dominados pelas mudanças no setor

industrial. Certamente, durante a última década, o efeito estrutural concorre para tornar os três

fatos estilizados compatíveis, de forma que mesmo com aumentos salariais, o deslocamento de

trabalho entre os setores reduz a parcela do trabalho na renda nacional. O segundo efeito, todavia,

é controverso, tendo em vista todos os resultados apresentados no presente trabalho. Ceglowski e

Golub (2011), ao calcularem os custos unitários do trabalho, em yuan, chegaram a conclusão que,

entre 2003 e 2009, o crescimento dos salários foi mais rápido do que o da produtividade. Como

vimos, esses dados não levam em conta os salários dos migrantes, que cresceram mais lentamente

que o dos residentes urbanos, até, ao menos 2007, de forma que essa pode ser a explicação para

que os ULCs tenham aumentado nos cálculos dos autores.

Na contramão desses resultados apresentados por Ceglowski e Golub (2011), todos os

demais estudos acadêmicos discutidos no presente trabalho mostraram conclusões inversas. Na

seção 2 do capítulo I, vimos que Bai e Qian (2010) apontam para a redução da parcela do

trabalho no setor industrial como o fator responsável por três quartos do declínio da parcela do

trabalho na renda nacional no período 2004-2007. Corroborando esses resultados, podemos citar

a pesquisa realizada por Kim & Kujis, entre 2002 e 2006, cujos resultados foram expostos na

seção 6 do capítulo II. Também podemos encontrar respaldo a esses dados em Cai e Wang

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160

(2011): “Nationwide data from manufacturing firms shows that while workers’ compensation in

real terms increased by 91.8 per cent between 2000–2007, marginal product of labour increased

by 178.7 per cent.” (CAI & WANG, 2011). Em que pese a polêmica sobre os custos unitários do

trabalho na manufatura, pudemos constatar que houve um rápido declínio da parcela do trabalho

na renda nacional desde os anos 1990. Isto pode ter ocorrido tanto pela predominância de um

efeito estrutural negativo, compensando o efeito intrassetorial positivo da indústria, como por

ambos os efeitos tendo impacto negativo, o que nos parece mais provável quando ponderamos o

rápido declínio da parcela do trabalho na renda nacional observada nos anos 2000.

Destarte, ao consideramos os aumentos salariais (fato “c”) à luz dos ganhos de

produtividade, podemos ver que o comportamento dos salários reais chineses no quadro geral de

Lewis – que diz respeito à reprodução ampliada do setor capitalista –, não impactou

negativamente a distribuição funcional da renda (fato “a”), de forma que o tuninig point,

entendido como o momento em que os lucros começam a se reduzir, não foi atingido, mesmo

com a redução da população empregada na agricultura (fato “b”).

É preciso notar, todavia, que na maior parte dos estudos que aplicam a teoria proposta por

Lewis à China contemporânea, os fatos “b” e “c” observados em conjunto (ou seja, a redução da

população empregada na agricultura, simultaneamente com aumentos dos salários reais no setor

capitalista) são considerados como prova da chegada do turning point no sentido mais estrito da

análise lewisiana, vista meramente como uma teoria sobre o nível dos salários. Entretanto,

advogaremos que esse foco metodológico não somente é impróprio à aplicação do arcabouço

lewisiano à China, como também deriva de uma leitura equivocada sobre os setores em Lewis.

Por outro lado, o fato de a maior parte da literatura acadêmica ignorar o fato “a” nas análises do

turning point resulta de insuficiências teóricas do próprio arcabouço lewisiano, que torna o fato

“a” incongruente com os fatos “b” e “c”, mormente em função do tratamento dado pelo autor à

produtividade no setor capitalista.

Do ponto de vista das impropriedades na aplicação do arcabouço lewisiano, pode-se

destacar a confusão generalizada nos estudos acadêmicos entre a dicotomia indústria e agricultura

como sinônimo da dualidade em Lewis (FIGUEIROA, 2004). Essa simplificação indevida, em

primeiro lugar, afeta o que se considera como trabalho excedente, resumindo-o à agricultura.

Desta forma, a estimativa dos trabalhadores excedentes na agricultura, o fato “b”, capta somente

Page 161: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

161

uma fração do reservatório de trabalhadores excedentes do setor não capitalista lewisiano. Em

segundo lugar, essa leitura da dualidade afeta a forma pela qual o setor capitalista se relaciona

com o setor não capitalista, especialmente como o aumento da produtividade no setor não

capitalista impacta os salários reais no setor capitalista. Por fim, e, em geral, como decorrência da

inobservância das diversas formas específicas pelas quais os dois setores podem estabelecer

relações, é possível destacar a negligência da literatura sobre as diferentes situações, apontadas

por Lewis (1954), em que o aumento dos salários reais no setor capitalista, o fato “c”, pode

ocorrer sem que se esgote o excedente de mão-de-obra do setor não capitalista. Para esclarecer

essas questões, discutiremos de forma mais detalhada a concepção de dualidade em Lewis

(1954). Já os problemas que tornam incompatíveis os fatos “a”, “b” e “c”, mas que advém da

própria formulação teórica proposta por Lewis, serão tratados posterior e separadamente.

3.2 Os dois setores da economia em Lewis e o relacionamento entre eles

É preciso notar que, no quadro teórico proposto por Lewis (1954), não se pode assumir

nem a identidade entre a agricultura e o setor não capitalista, nem a identidade entre indústria e o

setor capitalista. Como mencionado anteriormente, o setor não capitalista de Lewis (1954) é

composto por outros trabalhadores além dos camponeses, como, por exemplo, os biscateiros e os

pequenos comerciantes. Por outro lado, o setor capitalista pode ser composto somente pela

atividade agrícola, ou pode conter toda a sorte de atividades, dentre elas a industrial. A

configuração particular das atividades econômicas nos dois setores e a relação específica entre

eles ensejarão diferentes conclusões em relação ao processo de deslocamento da mão-de-obra e

ao comportamento dos salários no setor capitalista. Com a finalidade de demonstrar as

implicações distintas do referencial teórico lewisiano, considerar-se-ão três casos diferentes de

configuração econômica dos setores capitalista e não capitalista.

Condiremos o “Caso 1”, no qual o setor não capitalista é o setor de subsistência,

pertencendo, nos termos de Lenin (1980), à esfera da economia natural, e o setor capitalista tem

atividades agrícolas e industriais. Se considerarmos o setor não capitalista como sendo o setor de

subsistência, predominantemente agrícola, devemos necessariamente assumir um setor capitalista

Page 162: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

162

autárquico. O setor de subsistência, por definição, produz para si; só eventualmente surge produto

excedente passível de ser comercializado com o setor capitalista, mas esse excedente eventual

não é capaz de sustentar toda a população do setor capitalista, sob bases permanentes, ainda mais

quando se leva em conta o processo de expansão contínuo dessa população no marco do

desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra. Assim, o setor capitalista deve ser capaz

de fornecer alimentos para a população nele ocupada. Nesta configuração, o relacionamento entre

os dois setores dá-se somente por meio da oferta de mão-de-obra do setor de subsistência para a

demanda por trabalho do setor capitalista; o setor não capitalista aparece na função de produtor

de trabalho barato. Neste caso, o aumento da produtividade agrícola no setor de subsistência

eleva os salários no setor capitalista, uma vez que os salários reais devem subir para restaurar o

diferencial de remuneração entre os setores de forma a viabilizar o deslocamento de mão-de-obra.

Deve-se notar que o aumento dos salários só ocorrerá se os trabalhadores do setor não

capitalista puderem se apropriar dos frutos do aumento da produtividade. Por outro lado, se o

aumento da produtividade é verificado na agricultura capitalista, os salários dos trabalhadores no

setor moderno não irão aumentar, uma vez que os trabalhadores do setor de subsistência

continuam “ganhando” o mesmo. Pelo contrário, o aumento da produtividade tornará a cesta de

bens consumida pelos trabalhadores mais barata, tendendo a reduzir o custo do trabalho.

Entretanto, é preciso notar que Lewis (1954) considera a produtividade no setor capitalista

constante, pois o autor traduz as elevações na produtividade do setor capitalista em aumentos no

estoque de capital, o que discutiremos posteriormente.

Admitamos o “Caso 2”, em que o setor não capitalista é o setor de subsistência e o setor

capitalista possui atividades industriais e/ou agrícolas para a exportação. Neste caso, o

relacionamento entre os dois setores permanece o mesmo, ou seja, o setor de subsistência é

produtor de trabalho barato. A “autarquia” do setor capitalista deve ser encontrada no setor

capitalista mundial. Assim, se o setor capitalista nacional concentra-se na monocultura

exportadora, a renda da exportação é utilizada para importar os alimentos necessários à

população empregada nesse setor, de forma que a “agricultura capitalista nacional” é substituída

pelo setor capitalista externo. Por outro lado, se o setor capitalista nacional concentra-se na

indústria, essa não pode produzir somente para o mercado doméstico (que é o próprio setor

capitalista), devendo forçosamente voltar-se para a exportação a fim de adquirir alimentos.

Page 163: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

163

Por fim, consideremos o “Caso 3”, no qual o setor não capitalista é agrícola, mas sua

produção é voltada para o mercado (i.e. não é atividade de subsistência) e o setor capitalista

produz todos os demais bens não agrícolas. Neste contexto, há intercâmbio de bens entre os dois

setores, tornando a relação entre eles mais complexa. Esse caso talvez seja o mais difícil de

imaginar-se, pelo fato de a produção com fins mercantis, em geral, estar associada a relações de

trabalho capitalistas (i.e. com assalariamento). A situação torna-se ainda mais complicada frente à

confusa proposição de Lewis (1969) a respeito da possibilidade de intercâmbio entre os dois

setores:

“Isto supõe que sectores capitalistas e de subsistência produzam bens diferentes. Na

prática é um problema da relação entre indústria e agricultura. Se os capitalistas

investirem na agricultura de plantação ao mesmo tempo que investem na indústria, pode-

se falar de um sector capitalista autárquico. A expansão deste sector não gera, neste caso,

procura de nada do que é produzido no sector de subsistência e, dentro desta hipótese,

não haveria relações de intercâmbio a serem equilibradas de acordo com o quadro

traçado. A fim de se introduzir a relação real de intercâmbio a melhor hipótese a ser feita

é a de que o sector de subsistência é constituído por camponeses que produzem

alimentos, enquanto que o sector capitalista produz tudo o mais.” (LEWIS, 1969)

Na passagem acima, ou a situação de intercâmbio descrita pelo autor é impossível, uma

vez que o setor de subsistência composto por camponeses, por definição, só possui capacidade de

produzir para si; ou deve-se considerar que o setor agrícola não é nem capitalista, nem de

subsistência, simultaneamente. À primeira vista, a distinção fundamental desse setor agrícola em

relação ao setor de subsistência seria a produtividade do trabalho. No caso em análise, a

produtividade do trabalho na agricultura deve ser muito superior à produtividade do setor agrícola

de subsistência, pois o setor não capitalista agrícola mercantil deve ser capaz de alimentar a

população do setor não capitalista e a população do setor capitalista. Não somente a

produtividade do setor agrícola mercantil deve ser muito superior à produtividade do setor de

subsistência, como ela deve ser crescente ao longo do tempo, uma vez que a dinâmica do

desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra impõe que essa agricultura mercantil não

Page 164: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

164

capitalista forneça não somente alimentos, como também trabalho, de forma que cada vez menos

braços na lavoura devam alimentar cada vez mais bocas fora dela.

Nesse caso específico, a relação entre os setores altera-se, pois o setor não capitalista não

é mais somente produtor de mão-de-obra barata, como também de grande parte da cesta de bens

consumida pelos trabalhadores empregados no setor capitalista. Assim, uma vez elevada a

produtividade do trabalho no setor não capitalista, o impacto sobre os salários reais no setor

capitalista não é mais o mesmo dos casos 1 e 2. Se, por um lado, o aumento da produtividade

pressiona os salários para cima, devido ao papel do setor não capitalista de fornecedor de mão-

de-obra; pelo outro, o aumento da produtividade tende a baratear a cesta de bens consumida pelo

trabalhador não-agrícola. O efeito líquido do aumento da produtividade no setor não capitalista

sobre os salários dependerá de como esses fatores interagirão, dentro de um contexto institucional

mais amplo. Assim, no caso em questão, Lewis (1969) considera que o aumento da produtividade

na agricultura pode ser mais que compensado pela redução dos preços, beneficiando o setor

capitalista; todavia, ele também destaca uma série de outros expedientes que podem ser utilizados

em benefício do setor capitalista, de forma que a agricultura financie a industrialização:

“Não havendo esperança de que os preços diminuam tão rapidamente quanto aumenta a

produtividade (devido ao aumento da procura) a melhor atitude dos capitalistas é

impedir que os camponeses mantenham toda a sua produção adicional. No Japão isto foi

alcançado por uma elevação da renda da terra, de modo desfavorável aos camponeses, e

por uma elevação dos impostos, de forma que boa parte do rápido aumento da

produtividade que se verificara (duplicada entre 1880 e 1910) foi desviada dos

camponeses e utilizada para a formação de capital; ao mesmo tempo, a contenção dos

rendimentos dos camponeses também manteve os salários baixos, com vantagem para os

lucros do sector capitalista. Algo parecido verificou-se na U.R.S.S., onde os rendimentos

dos camponeses foram mantidos baixos, apesar da mecanização do campo e da liberação

de mão-de-obra com destino às cidades; isto ocorreu juntamente com a elevação dos

preços das manufacturas em relação aos produtos do campo, verificando-se também

forte tributação sobre as fazendas colectivas.” (LEWIS, 1969)

Neste ponto, cabe perguntar-se o que seria, na prática, esse setor não capitalista de

agricultura mercantil, capaz de fornecer mão-de-obra assalariada para o processo de expansão do

Page 165: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

165

setor capitalista. Aqui, será retomada a associação feita anteriormente entre produção mercantil e

assalariamento, ou seja, relações capitalistas de produção. Ele poderia ser, por exemplo,

composto por camponeses, donos de suas terras, que utilizam mão-de-obra familiar? Nessa

situação, existe propriedade privada, mas não há relação de assalariamento na agricultura.

Todavia, aqui surge uma diferença fundamental, de caráter qualitativo, entre o setor de

subsistência, ou a economia natural, e a economia mercantil, a saber, a operação da lei da

concorrência e seus efeitos, como ressalta Lenin (1980) ao analisar a agricultura dos EUA:

“Trata-se sempre, nestes casos, da evolução da agricultura no regime capitalista, ou

vinculada ao capitalismo, ou sob sua influência, etc.Para avaliar esta influência é preciso

antes e acima de tudo fazer um esforço para separar, na agricultura, a economia natural

da economia mercantil. Todos sabem que a economia natural, ou seja, a produção que

não é voltada para o mercado, mas para o consumo da própria família da farm,

desempenha um papel relativamente importante na agricultura, e que ela só cede lugar à

agricultura mercantil de forma bastante lenta. E se, neste caso, forem aplicadas as teses

teóricas já estabelecidas pela economia política, não de uma forma estereotipada

mecânica, mas criteriosamente, veremos, por exemplo, que a lei da eliminação da

pequena produção pela grande só pode ser aplicada à agricultura mercantil.” (LENIN,

1980: pp. 42)

De acordo com Lenin (1980), na agricultura mercantil, a competição tende a promover a

eliminação das pequenas explorações agrícolas pelas grandes, adotando-se o critério de tamanho

da exploração pelo valor do produto e não pela extensão da superfície agrária.* Como

contrapartida, uma parcela considerável dos antigos pequenos proprietários proletariza-se,

abrindo caminho para relações de produção capitalistas no campo. O aumento das explorações

agrícolas requererá a contratação de trabalhadores, e os camponeses mais ricos acabarão por se

transformar em capitalistas. Assim, a existência da propriedade privada em condições de

produção mercantis, isto é, na qual a tendência à especialização da produção impõe a necessidade

de adquirir, através do mercado, os produtos que o camponês não produz, traz em si o germe do

assalariamento no campo. Nesse caso, o processo de liberação de mão-de-obra do setor não

Page 166: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

166

capitalista é a própria transformação desse setor em capitalista, não correspondendo propriamente

à existência de uma economia dual.

Considerando que “o indicador essencial do capitalismo na agricultura é o trabalho

assalariado” (LENIN, 1980: pp. 63), o que seria um setor não capitalista agrícola mercantil e

fornecedor de mão-de-obra assalariada? A hipótese aqui levantada é a de que a China do período

pós-reformas é, provavelmente, um dos poucos casos onde o “Caso 3” é a forma fundamental da

economia dual lewisiana. Na China pós-reformas, a manutenção da propriedade coletiva/estatal

da terra rural tem impedido que o setor capitalista em expansão desenvolva-se na agricultura. O

sistema de responsabilidade familiar, por outro lado, conferiu caráter mercantil à produção

agrícola, ao impor a obrigação de vender cotas de produção para o Estado, em troca do direito de

uso da terra, e estimulando, pelo menos inicialmente através da garantia de compra a preços

favoráveis, que toda a produção agrícola que transcendesse a cota se voltasse para a venda, seja

para o Estado, seja para o mercado; desta forma, incentivou-se a especialização da produção nas

unidades camponesas (MORAIS, 2011). Assim, a produção voltada à autossuficiência – lógica

presente tanto na economia natural, quanto nas comunas camponesas maoístas – foi sendo

solapada pela especialização produtiva, que se radica no modus operandi da economia mercantil.

Como decorrência, os camponeses tornam-se dependentes do mercado para a satisfação de suas

necessidades básicas e, como veremos, se a eliminação da pequena exploração não pode ser

operada devido ao estatuto jurídico da terra rural, essa dependência torna os camponeses e sua

renda real vulneráveis aos preços.

Tendo em vista essa caracterização particular da China no arcabouço teórico lewisiano,

exploraremos o que ela implica para a aplicação da proposição do desenvolvimento com oferta

ilimitada de mão-de-obra ao caso chinês. Como no “Caso 3”, é preciso que o setor não capitalista

experimente sucessivos ganhos de produtividade ao longo do tempo e, ao mesmo tempo, que a

renda real dos camponeses mantenha-se estagnada; o corolário daí derivado é que os camponeses

devem ser constantemente alienados do produto adicional de seu trabalho. Na China, o Estado é o

único que tem condições de cumprir essa tarefa, pois além de dispor dos mecanismos tributários,

ele tem papel fundamental na determinação dos preços. Assim, o Estado possui os mecanismos

tanto para impedir como para permitir que os camponeses se apropriem dos ganhos de

produtividade na agricultura. Em que pese não poderem, em tese, ser expulsos da terra, existem,

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167

na China, vários meios disponíveis para produzir a ruína e a miséria dos camponeses, provocando

a proletarização. Também podemos encontrar essa percepção em Hung (2009):

.“… an unlimited supply of labour is not a natural phenomenon given by China’s

population structure, as is so often assumed. Rather, it is a consequence of the

government’s rural agricultural policies which, intentionally or unintentionally, bankrupt

the countryside and generate a continuous rural exodus.” (HUNG, 2009, pp. 10-12)

É pela utilização desses meios, que Lewis (1969) caracteriza o papel do Estado capitalista

no processo de acumulação de capital: “o Estado capitalista pode acumular capital de forma

ainda mais rápida que o capitalista privado, visto que se pode valer não só dos lucros do sector

capitalista, mas também daquilo que consiga ou extraia do sector de subsistência através de

impostos.” (LEWIS, 1969). Adicionaremos a essa proposição que, na China, o Estado não

somente pode acumular capital de forma mais rápida, como deve fazê-lo, caso contrário não há

transferência de mão-de-obra a salários reais constantes. É essa mediação fundamental, que

decorre do singular arranjo da propriedade dos meios de produção na China, que escapa aos

estudos acadêmicos discutidos na seção anterior.

Assim, ao buscarem estimar o número de pessoas remanescentes na agricultura ou o

aumento da renda real como expressão natural da entrada em uma era de escassez de mão-de-

obra, eles tratam a transferência de trabalho entre a agricultura e o setor capitalista como um

fenômeno natural e espontâneo, como massas de ar que se deslocam de áreas de alta pressão para

áreas de baixa pressão. Não consideram nem que para a agricultura chinesa aumentar sua

produtividade e fornecer trabalho a salários constantes para o setor capitalista é preciso que essa

zona de alta pressão seja artificialmente construída pelo Estado, nem que essa pressão possa ser

reduzida pela ação do mesmo, impactando a renda real dos camponeses e o nível de salários reais

no setor capitalista, sem que se tenha esgotado o excedente de mão-de-obra. Assim, esses estudos

negligenciam o segredo do desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra na China: o

papel do Estado na acumulação primitiva de capital. Como consequência, mascara-se a natureza

coercitiva do processo de proletarização do campesinato, de forma que, a muitos autores, a

Page 168: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

168

migração recobre-se de uma áurea benéfica, como um fator positivo para o camponês,

aparecendo como política de redução da pobreza; muito embora, se enxergarmos o processo ao

revés, esse êxodo rural se apresente como consequência de uma política de criação e/ou

reprodução da pobreza pelo Estado chinês, que se coloca como o artífice dos salários reais

constantes do modelo lewisiano.

Ademais, não basta que haja um diferencial de remuneração para que o deslocamento de

mão-de-obra aconteça, mas que ele seja construído tendo como base um patamar que não garanta

ao camponês apropriar-se de todo o produto necessário à sua reprodução, de forma que a

proletarização de uma parcela dos membros das células produtivas agrárias aparece como

estratégia para complementar essa produção necessária (haja vista que muitos remetem parcela de

seus salários às famílias), implicando, em Lewis (1954), que os que permanecem na agricultura

passem a trabalhar mais horas. Essa qualificação nos parece fundamental, visto que esse

deslocamento populacional implica em o indivíduo romper os laços que estabelece com o modo

de vida tradicional e com a sua comunidade. Essa é uma ruptura qualitativa e que não pode ser

descrita pela racionalidade do homo economicus. Se o camponês se apropria do aumento da

produtividade de maneira significativa, é provável que a lógica do modo de vida tradicional leve-

o a trabalhar menos horas por dia, ao invés de continuar migrando para se apropriar de um

diferencial de remuneração oferecido pelo setor capitalista. O camponês do setor não capitalista

não está imbuído da lógica da acumulação, que é específica ao capitalismo. A decisão de migrar

para as cidades se deve, principalmente, a fatores de expulsão do campo, coercitivos.

Outro elemento que tende a encobrir essa natureza é o fato de haver a possibilidade de

jure de permanecer na atividade agrícola. Nesse sentido, o elemento coercitivo não é a

expropriação (se bem que essa já esteja ocorrendo), nem a mobilização do aparato repressor do

Estado, mas o mecanismo político-econômico que impede os camponeses de se apropriem

substancialmente dos aumentos da produtividade agrícola:

“O capital encontra as mais diversas formas de propriedade medieval e patriarcal da

terra: a propriedade feudal, a “campesina de nadiel” (isto é, a propriedade de

camponeses dependentes), a de clã, a comunal, a estatal, etc. O capital faz pesar seu jugo

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169

sobre todas estas formas de propriedade fundiária empregando uma variedade de meios e

métodos.” (LENIN, 1980: pp. 16)

Para Lenin (1980), o processo de proletarização dos camponeses não deve ser entendido

somente como expropriação imediata:

“...pode também assumir a forma de um longo processo de ruína, de deterioração da

situação econômica dos pequenos agricultores, capaz de se estender por anos e por

décadas. Esta deterioração se traduz no trabalho excessivo ou na péssima alimentação do

pequeno agricultor, no seu endividamento, no fato de que o gado é mal alimentado e, em

geral, de baixa qualidade, a terra não é bem cultivada, trabalhada,adubada, etc.; não há

progresso técnico, etc.” (LENIN, 1980: pp.45)

Enquanto na passagem acima, Lenin (1980) centra-se nos elementos materiais que

fundamentam o processo de proletarização, Harvey (2003) aponta para um conceito mais amplo

de acumulação primitiva de capital:

“The process of proletarianization, for example, entails a mix of coercions and of

appropriations of precapitalist skills, social relations, knowledges, habits of mind, and

beliefs on the part of those being proletarianized. Kinship structures, familial and

household arrangements, gender and authority relations (including those exercised

through religion and its institutions) all have their part to play. In some instances the pre-

existing structures have to be violently repressed as inconsistent with labour under

capitalism, but multiple accounts now exist to suggest that they are just as likely to be

co-opted in an attempt to forge some consensual as opposed to coercive basis for

working-class formation. Primitive accumulation, in short, entails appropriation and co-

optation of pre-existing cultural and social achievements as well as confrontation and

supersession.” (HARVEY, 2003: pp.146)

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170

Apesar dos elementos de cooptação, quando questionados, os migrantes citam a pobreza

para explicar sua ida para as cidades (WEBBER, 2008). Não queremos afirmar que elementos de

cooptação não concorram para a migração rural-urbana, mas que, na escala com a qual ela tem se

apresentado na China, o processo de deslocamento de mão-de-obra não seria possível se não se

alicerçasse na coerção econômica imposta pela política levada a cabo pelo Estado chinês. Como

veremos posteriormente, o recente aumento da renda real camponesa não solapou o diferencial de

remuneração entre os setores, mas impactou praticamente de maneira imediata o fluxo de

migração rural em direção às cidades, retraindo-o.

3.3 Críticas à formulação teórica do desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra

de Arthur Lewis

No que tange às insuficiências da formulação sobre o desenvolvimento com oferta

ilimitada de mão-de-obra de Lewis (1954), o principal problema advém do tratamento dado por

Lewis ao aumento da produtividade no setor capitalista. A tradução de aumentos da

produtividade nesse setor como aumentos no estoque de capital é a principal responsável pela

aparente incompatibilidade entre os fatos “a” e “c”, ou seja, a situação em que a parcela do

trabalho na renda nacional reduz-se ao mesmo tempo em que os salários reais aumentam. Assim,

em Lewis (1954), aumentos dos salários reais são sempre reduções da parcela dos lucros na renda

nacional:

“dentro do sector capitalista, o conhecimento e o capital actuam na mesma direcção, a

fim de elevar o excedente e incrementar a ocupação. A formação de capital e o progresso

técnico não resultam em salários crescentes, mas na elevação da participação dos lucros

na renda nacional.” (LEWIS, 1969)

Essa passagem elucida as duas principais dificuldades advindas do tratamento dado por

Lewis ao progresso técnico no setor capitalista: a primeira é, como já dito, tornar os fatos “a” e

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“c” incongruentes, e a segunda é a de descartar a possibilidade de desemprego tecnológico,

afetando diretamente o estoque de trabalhadores disponíveis para a expansão do setor capitalista

(fato “b”). É por meio desse último expediente que o autor consegue propor a validade tanto da

economia política clássica, como da economia neoclássica. Para Lewis, a economia política

clássica é o mundo da abundância de trabalho, enquanto a economia neoclássica é a transmutação

desse mundo de abundância em um de escassez de mão-de-obra. Aqui, o turning point figura

como a passagem da economia política clássica para a economia neoclássica (expediente

semelhante ao que a “síntese neoclássica” operou em relação à economia keynesiana). Como não

há desemprego associado ao progresso técnico, a expansão do setor capitalista implicará, cedo ou

tarde, na emergência de um mundo onde o trabalho é o fator escasso.

Para Lewis, no mundo da escassez de trabalho, o progresso técnico faz que os salários,

como sinônimo de produtividade marginal do trabalho, ou aumentem mais rapidamente do que os

lucros, determinados pela produtividade marginal do capital, ou que aumentem com a mesma

velocidade dos últimos, não impactando a distribuição funcional da renda:

“O modelo refere-se também ao caso de uma revolução técnica. Alguns

historiadores assinalaram que o capital para a revolução industrial britânica era

proveniente dos lucros que tornaram possível o dilúvio de invenções que ocorreu

nessa época. Isto é extremamente difícil de encaixar no modelo neoclássico,

visto que implica a hipótese de que tais invenções aumentaram mais a

produtividade marginal do capital do que a do trabalho, hipótese essa difícil de

ser relacionada com qualquer economia onde o trabalho seja escasso. (Se não

aceitamos esta hipótese, temos que supor que os demais rendimentos aumentem

exatamente tão depressa quanto os lucros e que o investimento não aumente em

relação ao rendimento nacional.) Por outro lado, esta hipótese ajusta-se

perfeitamente ao modelo clássico modificado, visto que neste praticamente todo

o lucro proveniente das invenções vai engrossar o excedente e torna-se útil para

uma acumulação maior de capital.” (LEWIS, 1969)

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172

Notamos, assim, que é por meio do tratamento dado a produtividade que o autor opera um

turning point teórico, trocando o instrumental analítico da economia política pelo o da economia

neoclássica. E é esse turning point teórico que responde pela imprecisão conceitual que permeia a

formulação de Lewis sobre o desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra, utilizando

categorias teóricas que se definem em relação a sistemas conceituais fechados, que não dialogam

entre si por partirem de premissas e métodos fundamentalmente divergentes. Assim, conceitos

como produtividade marginal (mais ainda, do capital) e capital reproduzível – o que na economia

política soa estranho, pois implica que possa haver algum capital que seja não reproduzível –,

ombreiam categorias teóricas como excedente e salários de subsistência, tentando dar corpo a

uma formulação que, para não ser contraditória, força-nos a optar pela leitura a mais vaga

possível. Essa falta de rigor teórico também se expressa na discussão que fizemos na seção

anterior, sobre o uso impróprio do conceito de produção de subsistência para caracterizar um

setor que realiza intensa atividade mercantil e alimenta toda uma população urbana em

crescimento.

Outra insuficiência da proposição do desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-

obra é que seu foco no componente latente do exército industrial de reserva em Marx, negando a

existência de desemprego tecnológico e negligenciando as oscilações cíclicas da economia

capitalista, não capta que o processo de absorção da força de trabalho do setor não capitalista, por

um lado, ocorre concomitantemente com a produção de trabalhadores redundantes, pelo outro;

fato esse agravado quando consideramos o curto período de tempo que os novos proletários são

aproveitados na atividade industrial. Nesse sentido, considerando o caso chinês, enquanto

diminuem os trabalhadores excedentes na agricultura, parcela deles reaparece como excedente

nas cidades, seja pela incapacidade de o setor capitalista absorvê-los, seja por não o servirem

mais:

“With millions of workers laid off by industry and abandoning farming, a huge labour

surplus is building up in the cities. Estimates are tricky, given the government’s distaste

for admitting the gravity of the situation, but the International Labour Organization puts

the figure at over 20 per cent of the workforce.” (WALKER & BUCK, 2007: pp. 44)

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173

É interessante notar que o conceito de desemprego só aparece no artigo de 1954 de Lewis

quando o autor se refere às teorias de Marx e de Keynes. Na formulação feita por Lewis (1954)

só existe desemprego disfarçado ou subemprego. Essa particularidade do arcabouço teórico de

Lewis advém da conclusão de que, se no setor tradicional o que existe é o desemprego disfarçado

– ou seja, todos trabalham, mas não necessariamente de forma que se aumente o produto desse

setor –, e se o setor capitalista só absorve mão-de-obra, sem afastá-la do processo produtivo, o

desemprego como ausência de ocupação, independente de sua contribuição para o produto, torna-

se uma categoria teórica irrelevante. Assim, o que existe na teoria do desenvolvimento com oferta

ilimitada de mão-de-obra é apenas o mau aproveitamento da força de trabalho, cuja solução é o

desenvolvimento capitalista. O corolário do fim da dualidade econômica é o pleno emprego. Não

nos alongaremos sobre o quanto o desemprego não é irrelevante em termos concretos em países

de economia dual ou não.

Por fim, se considerarmos que o trabalho excedente também é composto pelos biscateiros,

pelos pequenos comerciantes e pelos criados, parcela essa que vem rapidamente aumentando nas

cidades chinesas, o resultado líquido é que o excedente de trabalho vem se reduzindo mais

lentamente do que a saída de braços da agricultura na China. Todavia, no arcabouço lewisiano,

esse processo não aparece como o que realmente é: entrada e saída de trabalhadores da força de

trabalho capitalista, processo que ao mesmo tempo em que retira violentamente os trabalhadores

da vida tradicional, os dispensa à própria sorte, em geral ainda em idade ativa, de forma tão

violenta como entraram. Destarte, se considerarmos as outras categorias de trabalhadores

excedentes incluídas no setor não capitalista lewisiano, descobriremos que o setor capitalista, ao

expandir-se, vai criando também um “novo setor tradicional”, situação em que a estranheza

teórica só não é maior do que aquela semântica. Esse resultado advém tanto das definições de

setor arcaico/não capitalista e de setor moderno/capitalista em Lewis, como do fato de o autor

descartar a hipótese de que o setor capitalista produza trabalho excedente. Assim, parece-nos

fundamental distinguir o componente latente do exército industrial de reserva, que é onde se

assenta a elaboração lewisiana, do restante do excedente de trabalho, pois, se o “setor tradicional”

vai sendo recriado pela dinâmica capitalista, o componente latente do exército de reserva tal

como entendido por Lewis dificilmente se esgotará.

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174

4. Considerações finais

Tendo em vista as críticas levantadas ao longo do presente capítulo, advogamos que a

análise do excedente de mão-de-obra e dos salários reais do setor capitalista deve contemplar os

dois polos associados ao deslocamento de trabalho, aquele que expulsa e aquele que absorve

trabalhadores. Nesse contexto, são dois os principais eixos sobre os quais a reflexão teórica deve

recair: a política estatal em relação à renda real camponesa e a dinâmica de absorção de mão-de-

obra pelo setor capitalista.

A principal ferramenta para a proletarização do campesinato, na China, tem sido a política

estatal de tributação, investimentos e preços. Isso não significa que a expropriação, que em

muitos países foi o expediente central utilizado para a constituição do proletariado, não esteja

acontecendo na China, mas apenas que seu papel ainda é marginal. De acordo com Hung (2009),

desde a segunda metade da década de 1980, a política do Estado chinês provocou uma crise

social agrária responsável pelos baixos e, relativamente, estagnantes salários do setor capitalista:

“Over the last twenty years, the Chinese government has largely concentrated

investment in the urban-industrial sector, particularly in coastal areas, with rural and

agricultural investment lagging behind. State-owned banks have also focused their

efforts on financing urban-industrial development, while rural and agricultural financing

were neglected. In the last two decades, rural per capita income has never exceeded 40

per cent of the urban level. The result of this urban bias has been relative economic

stagnation in the countryside and a concomitant fiscal stringency on the part of rural

local governments. From the 1990s onwards, the deterioration of agricultural incomes

and the demise of collective rural industries… forced most young labourers in the

countryside to leave for the city, creating a vicious cycle which has precipitated a rural

social crisis. China’s agrarian sector was not only neglected, however, it was also

exploited in support of urban growth. A recent study has found that there was a sustained

and increasing net transfer of resources from the rural-agricultural to the urban-industrial

sector between 1978 and 2000, both through fiscal policy (via taxation and government

spending) and the financial system (via savings deposits and loans). The exceptions to

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175

this trend were the years when the urban economy experienced a temporary downturn,

such as the aftermath of the 1997–98 Asian Financial Crisis” (HUNG, 2009: pp. 13-14)

Como destacamos acima, essa política mais geral do Estado foi secundada por um

processo de incipiente expropriação dos camponeses. As terras urbanas, na China, não podem ser

vendidas, mas são passíveis de arrendamento por períodos tão longos que podem chegar a setenta

anos, de forma a criar, na segunda metade dos anos 1980, um “mercado primário” de terras

urbanas, cujos principais promotores têm sido os governos locais e as SOEs, (WALKER &

BUCK, 2007). No início da década de 1990, com a permissão para a transação dos direitos de

arrendamento, desenvolveu-se um “mercado secundário” de terras urbanas (WALKER & BUCK,

2007). Nesse contexto, muitos governos locais em áreas rurais tem transformado parcela das

terras camponesas em áreas urbanas, para arrendá-las, de forma a obter novas fontes de ingressos

para a administração local: “local governments are motivated, above all, by a fiscal regime in

which their revenues depend more on local taxes and rents than on redistribution of national

revenues.” (WALKER & BUCK, 2007, pp. 63). Assim, as expropriações pela conversão de terra

rural em urbana tornaram-se um importante expediente para o processo de urbanização, como

ressaltam Walker e Buck (2007): “annexation of territory, seizures of farmland and extension of

infrastructure have all been useful in urban expansion” (WALKER & BUCK, 2007, pp. 63).

Ademais, a estrutura fiscal descentralizada também tem sido responsável por permitir e estimular

a imposição de uma variedade enorme de impostos, muitos considerados arbitrários, sobre os

camponeses.

A pobreza rural e as expropriações de terras camponesas criaram grandes tensões e

conflitos sociais no campo:

“In 2004, 74,000 protests and riots took place, involving more three million people—

many of them were by the rural poor. Clashes between police and peasants have become

more bitter. In the village of Dongzhou in Guangdong province last month, paramilitary

police opened fire on protesting villagers, killing at least three. Beijing fears that these

localised protests will lead to the formation of a broader and more politically dangerous

anti-government movement.” (CHAN, 2006)

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176

A reação camponesa ao violento processo de acumulação primitiva de capital que vem

ocorrendo na China desde a segunda metade da década de 1980, somada às inúmeras ondas de

protestos e descontentamento nas cidades, ensejaram uma reorientação da política do PCC em

relação à renda real camponesa e, consequentemente, aos salários reais do setor capitalista. Essa

reorientação não pode, todavia, ser caracterizada como uma guinada radical no projeto político e

econômico do PCC e no papel do Estado na promoção de uma acelerada acumulação de capital.

Ela deve ser vista, antes, como uma tentativa de amenizar os conflitos sociais gerados pelo

modelo de transferência de mão-de-obra a salários reais constantes promovido pelo Estado

chinês.

Nos anos mais recentes, a abolição dos impostos na agricultura e a melhoria nos preços

agrícolas têm apontado para um relaxamento do uso do mecanismo político-econômico de

apropriação do sobreproduto campesino (e também de parcela da produção necessária à

reprodução dos camponeses) pelo Estado, aliviando à situação de pobreza no campo e

diminuindo um pouco o ritmo do processo de proletarização dos camponeses. De acordo com

Hung (2009), as políticas estatais destinadas ao aumento da renda real dos camponeses

começaram em meados dos anos 2000:

“The first wave of such initiatives included the abolition of agricultural taxes and a rise

in government procurement prices for agricultural products. Though these measures to

raise rural living standards were no more than a small step in the right direction, their

effect was instantaneous. Slightly improved conditions in the rural agricultural sector

slowed the flow of migration to the cities, and a sudden labour shortage and wage hike

in the coastal export-processing zones ensued” (HUNG, 2009: pp. 20)

A abolição do imposto agrícola, todavia, não pode ser superestimada, uma vez que

persistem inúmeros impostos locais que constituem um pesado fardo para os camponeses.

Ademais, o imposto agrícola, em 2004, era estimado como apenas uma pequena parcela da renda

camponesa. De acordo com Cao Jinqing (apud CHAN, 2006) “It [the abolition of the agricultural

tax] will give farmers psychological comfort. But the real financial benefit to farmers will be

small compared to its political windfall.” (Cao Jinqing apud CHAN, 2006). Assim, uma pequena

melhoria na renda real dos camponeses seria capaz de fornecer os dividendos políticos

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177

necessários ao PCC para amenizar as tensões sociais e renovar o fôlego do processo de acelerada

acumulação de capital. Podemos encontrar essa percepção também em Chan (2006): “For all its

high-sounding slogans about reducing the burden on farmers, Beijing is careful to ensure that its

agricultural policies do not disrupt the continuing flow of cheap rural labour to urban areas.”

(CHAN, 2006)

Destarte, no que se refere ao primeiro eixo analítico, constatamos que foi a mudança de

direção na política do PCC a responsável por elevar a renda real na agricultura desde,

aproximadamente, meados dos anos 2000, pressionando para cima os salários reais dos migrantes

e dos demais trabalhadores empregados no setor capitalista. Esses aumentos salariais, que tem

sido vistos como o fim do excedente de mão-de-obra, são o resultado das lutas políticas dos

trabalhadores, tanto nas fábricas, quanto no campo, e da resposta dada pelo PCC a elas, operando

um ajuste político dentro de sua estratégia geral de acelerada acumulação de capital.

Em relação ao segundo eixo, o setor capitalista, na China, tem sido incapaz de absorver a

totalidade da mão-de-obra repelida pelo campo; adicionalmente, grande parcela dos trabalhadores

absorvida por esse setor é tornada redundante muito antes da idade de aposentadoria, devido à

própria natureza do setor industrial (que se apoia nos trabalhadores jovens), às oscilações cíclicas

da economia e ao surgimento de inovações tecnológicas que requerem menos trabalho para a

produção da mesma quantidade de produto. Assim, como destacamos na seção anterior, torna-se

importante distinguir o componente latente do exército industrial de reserva do excedente de

trabalho edificado pela expansão do setor capitalista, tal como o expediente levado a cabo por

Patnaik:

“Patnaik’s argument is clarified by his use of a dual reserve army model: the

“precapitalist-sector reserve army” (inspired by Luxemburg’s analysis) and the “internal

reserve army.” In essence, capitalism in China and India is basing its exports more and

more on high-productivity, high-technology production, which means the displacement

of labor, and the creation of an expanding internal reserve army. Even at rapid rates of

growth therefore it is impossible to absorb the precapitalist-sector reserve army, the

outward flow of which is itself accelerated by mechanization. (Foster, McChesney e

Jonna, 2011)

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178

Como resultado desses fatores crescem o desemprego e o desemprego

disfarçado/subemprego nas cidades – caminhando lado-a-lado com a expansão do setor

capitalista –, bem como se reconstitui parte do excedente de mão-de-obra no campo com o

retorno dos trabalhadores tornados redundantes pela acumulação de capital. Todavia, essa

caracterização do resultado do deslocamento de mão-de-obra, que não é prevista no modelo

lewisiano, de forma alguma é específica à China:

“ In the dominant view, these workers would then be absorbed by industry,

primarily in urban centers, on the model of the developed capitalist countries. But

Britain and the other European economies, as Amin and Indian economist Prabhat

Patnaik point out, were not themselves able to absorb their entire peasant population

within industry. Rather, their surplus population emigrated in great numbers to the

Americas and to various colonies. In 1820 Britain had a population of 12 million, while

between 1820 and 1915 emigration was 16 million. Put differently, more than half the

increase in British population emigrated each year during this period. The total

emigration from Europe as a whole to the “new world” (of “temperate regions of white

settlement”) over this period was 50 million.

While such mass emigration was a possibility for the early capitalist powers,

which moved out to seize large parts of the planet, it is not possible for countries of the

global South today. Consequently, the kind of reduction in peasant population currently

pushed by the system points, if it were effected fully, to mass genocide.” (FOSTER,

MCCHESNEY & JONNA, 2011)

Em que pese o fato de as empresas chinesas estarem levando trabalhadores nativos para

seus projetos no exterior, em especial na construção civil, e de existirem agências de exportação

de trabalhadores no país, o número de trabalhadores envolvidos nesses fluxos é marginal em

relação à força de trabalho chinesa, de forma que, de acordo com o Ministério do Comércio, 740

mil trabalhadores estavam fora da China em 2008, sendo que 58% deles haviam saído no ano

anterior (Ministério do Comércio apud WONG, 2009). Vista pelo ângulo da absorção de trabalho

pelo setor capitalista, a recente alteração da política do PCC em relação à renda rural aparece

como um freio ou mesmo uma tentativa de reversão parcial do crescente número de trabalhadores

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179

excedentes, tanto desempregados como subempregados, nas cidades, resultado do próprio

processo de expansão do setor capitalista. O controle do ritmo de modernização da agricultura e

do êxodo rural parece-nos ser o principal desafio posto ao Estado chinês e à acumulação

acelerada de capital no país, e não, como muitos afirmam, a escassez de trabalho para a expansão

do setor capitalista. Essa perspectiva também nos ajuda a compreender por que a expropriação

dos camponeses não tem sido a principal via para a proletarização na China, embora caiba, nesse

contexto, realizá-la gradualmente, como vem ocorrendo. Os potenciais efeitos sociais

desestabilizadores de um ritmo muito rápido de crescimento da relação entre o trabalho repelido

do campo e o trabalho liquidamente absorvido pelo setor capitalista podem não somente

comprometer o sistema político chinês, como a própria existência do capitalismo no país.

O alarde feito pelas grandes empresas multinacionais exportadoras em relação ao rápido

crescimento dos salários nos anos 2000 – que mesmo assim se mantiveram em baixíssimo

patamar – fez que muitos afirmassem que o estoque de trabalho excedente no país se exauriu, ou

estaria em vias de exaurir-se, mesmo com a China tendo a maior força de trabalho do mundo,

com 25% a 36% da força de trabalho ainda na agricultura e com o crescimento do desemprego e

do subemprego urbano. As impropriedades da aplicação do modelo de Lewis à China, bem como

suas limitações, são os principais fatores sobre os quais tais conclusões se edificam. Assim,

endossamos a perspectiva adotada por Hung (2009):

“The prc’s urban-biased development model, then, is the source of China’s prolonged

‘limitless’ supply of labour, and thus of the wage stagnation that has characterized its

economic miracle… Just as China’s ‘unlimited’ supply of labour was more a

consequence of policy than a natural precondition of its development, the arrival of the

Lewisian Turning Point was in fact the outcome of state attempts to reverse a previous

urban bias rather than of a process driven by the market’s invisible hand. The

concomitant to rising peasant income and industrial wages was unprecedented, soaring

retail sales, even controlled for inflation” (HUNG, 2009: pp. 21)

Nesse sentido, concluímos que, em primeiro lugar, se o desenvolvimento com oferta de

mão-de-obra na China recobre-se de uma natureza política, dada pela atuação do Estado, o

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180

aumento dos salários reais no setor capitalista não pode ter um caráter estruturalmente

determinado, de forma que a evolução futura dos salários possa ser conhecida a priori, i.e. os

salários reais irão continuar aumentando rapidamente ao longo do tempo. Assim, a tendência

verificada de rápido crescimento dos salários reais pode manter-se devido à política estatal, mas,

muito provavelmente, será interrompida ou mesmo revertida se começar a impactar

qualitativamente a inserção internacional do país como exportador de manufaturas baratas.

Todavia, nem sempre o Estado consegue realizar aquilo o que deseja; a reversão da tendência de

rápido crescimento dos salários reais pode encontrar obstáculos na luta e na organização dos

trabalhadores. Prever os resultados desses embates políticos e, portanto, a evolução futura dos

salários reais, é sair do campo científico. Em segundo lugar, concluímos que, mesmo que o

modelo de Lewis (1954) operasse na China sem a mediação do Estado, ainda há um enorme

contingente de mão-de-obra a ser liberado da atividade agrícola pela mecanização do campo.

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181

Conclusão

O presente trabalho teve como objetivo identificar se a inserção internacional da China

como exportadora de produtos manufaturados baratos está se erodindo e terá que se reorientar em

função de imperativos/constrangimentos de ordem econômica advindos tanto de um padrão de

acumulação de capital insustentável, quanto de pressões estruturais altistas sobre os salários reais

industriais.

Vimos que, ao longo da transição para o capitalismo, a distribuição funcional da renda foi

profundamente alterada em favor do capital, e o país ascendeu à posição de “fábrica do mundo”.

Esses dois fatores marcam profundamente o debate sobre o atual ciclo de crescimento da

economia chinesa, no qual, por um lado, o crescimento econômico tem aparecido como resultado

do desempenho exportador; enquanto, pelo outro, ele tem sido visto como sendo insustentável

devido à baixa parcela do trabalho na renda nacional. Todavia, refutamos ambas essas hipóteses e

concluímos que o atual ciclo de crescimento chinês é centrado no mercado doméstico, com

destacado papel para os investimentos públicos, especialmente aqueles destinados à

infraestrutura. O processo de urbanização, acompanhado de seus efeitos sobre a construção civil e

a indústria pesada, foram apresentados como os principais motores do recente ciclo de

crescimento da economia chinesa. Por outro lado, constatamos que o Estado chinês ainda dispõe

de inúmeros instrumentos de intervenção econômica, capacitando-o a atuar sobre a demanda

efetiva. Nesse sentido, não haveria nenhum constrangimento econômico resultante do padrão de

acumulação chinês que demandasse a reorientação da inserção internacional do país, seja pela

dependência nas exportações para o crescimento, seja pela necessidade de uma redistribuição da

renda em favor do trabalho – minando a competitividade das exportações chinesas – para que a

economia continue a crescer. Em que pese não existir um imperativo econômico no padrão de

acumulação de capital chinês que exija uma mudança qualitativa na inserção do país na economia

internacional, tal fato pode operar-se em função das decisões políticas e estratégicas do Estado.

Após discutir a natureza do atual ciclo de crescimento da economia, buscamos

empreender uma detalhada análise estatística que nos revelasse a estrutura do emprego na China

e a evolução dos salários urbanos e industriais, bem como seu impacto sobre a competitividade

Page 182: SALÁRIOS INDUSTRIAIS, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E …

182

das exportações do país. Em que pese a inadequação do principal sistema estatístico da China à

realidade capitalista do país, conseguimos traçar um panorama da situação da classe trabalhadora

chinesa, durante as últimas duas décadas, no que diz respeito ao emprego e aos salários,

especialmente aqueles manufatureiros, mas que certamente resultou embelezado pelos dados dos

quais adveio. Vimos que o emprego rural declinou enquanto o emprego não agrícola teve enorme

expansão, mas que permanecem ocupados na agricultura entre aproximadamente um quarto e um

pouco mais que um terço da força de trabalho chinesa. O emprego urbano passou por profundas

alterações, com a expansão do setor privado e a redução do setor público, o rápido crescimento

dos migrantes na força de trabalho urbana e a precarização das relações de trabalho. Os salários

urbanos e os salários manufatureiros tiveram rápido crescimento a partir do final da década de

1990 e, aparentemente, os salários reais dos migrantes também cresceram desde, ao menos,

meados dos anos 2000. Todavia, mesmo com o rápido crescimento dos salários nos últimos anos

e com a valorização cambial do yuan frente ao dólar, os ganhos de produtividade e o baixíssimo

patamar em que se encontravam os salários chineses concorrem para que as exportações chinesas

continuem extremamente competitivas, especialmente quando comparadas com os países

desenvolvidos. Assim, constatamos que não houve uma alteração qualitativa na inserção

internacional do país como exportador de manufaturas baratas.

Apesar de a inserção do país na economia internacional não ter se alterado em função do

rápido crescimento dos salários na última década, investigamos se esse rápido crescimento seria

uma tendência estrutural, inescapável, que acabaria inviabilizando a atual estratégia de inserção

da China na economia internacional. Expusemos a formulação teórica na qual essa análise

tendencial repousa – o desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra de W. Arthur

Lewis –, e alguns estudos acadêmicos aplicados, que embora tenham sido poucos, são bastante

representativos da recente produção acadêmica sobre o tema. Questionamos as metodologias

propostas por esses estudos por não considerarem a excepcionalidade da China no arcabouço

teórico lewisiano. Constatamos que a China faz parte de um caso onde os setores da economia

dual proposta por Lewis relacionam-se tanto pela transferência de trabalho, como pelas trocas,

com especial destaque para o papel da agricultura não capitalista no fornecimento de alimentos

para a população não agrícola em expansão. Nesse contexto, concluímos que algum expediente

deveria ser posto em ação, impedindo que os camponeses se apropriassem do produto adicional

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183

advindo do aumento da produtividade, para que houvesse oferta ilimitada de mão-de-obra a

salários reais constantes. Identificamos esse expediente com as políticas levadas a cabo pelo

Estado, especialmente às de preços e tributação. Desta forma, o rápido crescimento dos salários,

em nossa análise, revestiu-se de natureza política, resultando de mudanças na política do PCC em

direção à elevação da renda real dos camponeses, em um contexto de agudização dos conflitos

sociais.

Todavia, vimos que o modelo lewisiano apresenta graves insuficiências teóricas cuja

expressão é a existência de um setor capitalista que só absorve trabalho, sem afastá-lo da

produção, de forma que o desemprego torna-se uma categoria teórica irrelevante. O desemprego

advindo do progresso técnico, das oscilações econômicas e do padrão de utilização de mão-de-

obra pela indústria não tem espaço no desenvolvimento com oferta ilimitada de mão-de-obra de

Lewis. Assim, ao considerarmos esses fatores na produção da superpopulação relativa, vimos que

o desemprego e o subemprego têm crescido rapidamente nas cidades, engrossando não somente o

excedente de trabalho, como impondo grandes desafios ao Estado chinês. Destarte, a

problemática central em relação ao emprego na China traduz-se em conter o ritmo de

modernização da agricultura e de liberação da mão-de-obra, para que o sistema político e a

acumulação de capital não sejam ameaçadas por graves crises sociais. Nesse sentido, concluímos

que a China não está adentrando em uma era de escassez de mão-de-obra na qual os salários

continuarão em uma inevitável trajetória altista devido a fatores estruturais. O movimento futuro

dos salários será determinado pelos conflitos sociais e pela política do Estado chinês, que

provavelmente buscará limitar o crescimento dos salários se esses ameaçarem qualitativamente a

estratégia de inserção da China na economia internacional.

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