a função social da empresa

29
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA Bruno Haack Vilar SUMÁRIO: Introdução - 1. A empresa: 1.1. A empresa como atividade; 1.2. A empresa como poder - 2. A função social: 2.1. A socialização da economia; 2.2. A recepção da função social pelo Direito; 2.3. A concretização da função social da empresa - Conclusão - Bibliografia. RESUMO: O presente artigo trata da função social da empresa sob uma óptica interdisciplinar, buscando subsídios na Administração, no Direito, na Economia e na Sociologia. Na primeira parte, caracteriza a empresa do ponto de vista jurídico, trazendo a perspectiva de empresa como liame entre empresário e estabelecimento. Na segunda parte, trata da função social, primeiro do ponto de vista da Sociologia e, após, do Direito, trazendo também considerações de caráter econômico e gerencial para estabelecer seu conteúdo jurídico. PALAVRAS-CHAVE: empresa; função social; interesses institucionais; stakeholder theory. INTRODUÇÃO O presente trabalho procura esclarecer o que significa dizer que a empresa deve observar sua função social e quais as consequências desse dever. Na primeira parte, trata-se do conceito de empresa, sob duas ópticas: a da atividade e a da relação entre o empresário e seus bens. A segunda parte trata da evolução histórica que fez com que o exercício de determinados direitos adquirisse função social, como o Direito recebeu isso e como isso influi no direito de empresa. Ao final, conclui-se, tratando da extração imediata de consequências normativas do dever geral de observância da função social.

Upload: cleverson-alves-ferreira

Post on 31-Dec-2015

59 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Função Social da Empresa

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Bruno Haack Vilar

SUMÁRIO: Introdução - 1. A empresa: 1.1. A empresa como atividade;

1.2. A empresa como poder - 2. A função social: 2.1. A socialização

da economia; 2.2. A recepção da função social pelo Direito; 2.3. A

concretização da função social da empresa - Conclusão - Bibliografia.

RESUMO: O presente artigo trata da função social da empresa sob

uma óptica interdisciplinar, buscando subsídios na Administração, no

Direito, na Economia e na Sociologia. Na primeira parte, caracteriza a

empresa do ponto de vista jurídico, trazendo a perspectiva de

empresa como liame entre empresário e estabelecimento. Na segunda

parte, trata da função social, primeiro do ponto de vista da Sociologia

e, após, do Direito, trazendo também considerações de caráter

econômico e gerencial para estabelecer seu conteúdo jurídico.

PALAVRAS-CHAVE: empresa; função social; interesses institucionais;

stakeholder theory.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho procura esclarecer o que significa dizer que

a empresa deve observar sua função social e quais as consequências

desse dever. Na primeira parte, trata-se do conceito de empresa, sob

duas ópticas: a da atividade e a da relação entre o empresário e seus

bens. A segunda parte trata da evolução histórica que fez com que o

exercício de determinados direitos adquirisse função social, como o

Direito recebeu isso e como isso influi no direito de empresa. Ao final,

conclui-se, tratando da extração imediata de consequências

normativas do dever geral de observância da função social.

Page 2: A Função Social da Empresa

2

1. A EMPRESA

Neste capítulo, tratar-se-á de dois conceitos complementares de

empresa: aquele que a define como atividade e aquele que a define

como poder. A compreensão da relação entre os dois conceitos

permite melhor compreender o que é a função social da empresa.

1.1. A Empresa como Atividade

A empresa, enquanto fenômeno jurídico, é pensada e estudada

pela doutrina mais difundida como uma atividade. A forma como ela,

historicamente, vem prevista nos textos legais contribuiu imensamente

para que seja assim.

O Código de Comércio francês de 1807 reputava como atos de

comércio “as empresas de manufatura, de comissão, de transporte por

terra ou por água” e outras.1 Embora não definisse o significado do

termo empresa, pelo teor do dispositivo, deixava entrever que se

tratava de certo tipo de atividade.

Da mesma forma, o Decreto nº 737, de 1850, que regulava o

Código Comercial brasileiro, promulgado no mesmo ano, elencava, em

seu artigo 19, como atos de comércio “as emprezas de fabricas; de

commissões; de depositos; de expedição, consignação, e transporte

de mercadorias; de espectaculos publicos”,2 em redação muito

1 FRANÇA. Loi 1807-09-14 promulguée le 24 septembre 1807. Disponível em: <http://www.legifrance.gouv.fr/aff ichCodeArticle.do;jsessionid=C5865A5D9FB42F10D3EE38C916CF4109.tpdjo07v_3?idArticle=LEGIARTI000006283613&cidTexte=LEGITEXT000006069441&dateTexte=19700709>. Acesso em: 04 mar. 2009. O art. 632, a que se faz referência, está revogado e substituído hoje pelo art. L110-1, com conteúdo idêntico no que tange à citação feita. 2 BRASIL. Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=64752>. Acesso em: 05 mar. 2009.

Page 3: A Função Social da Empresa

3

semelhante à do Código de Comércio francês, se não no conteúdo, na

forma.

Foi com o Codice Civile italiano de 1942, porém, que a empresa

tornou-se central para o Direito comercial e passou a receber maior

atenção dos juristas. E esse diploma reforçou a ideia de que a

empresa é uma atividade.

Segundo esse código, empresário é “quem exercita

profissionalmente uma atividade econômica organizada com fim de

produção ou de troca de bens ou serviços”.3 Esse artigo abre o Título

II do Livro Quinto do Código Civil italiano, cujas disposições (e

também as dos títulos seguintes) revolvem, em grande parte, em torno

da empresa, o que exigiu uma abordagem mais profunda do conceito

por parte da doutrina peninsular.

Asquini talvez tenha sido o primeiro a enfrentar esse desafio,

afirmando que a empresa possuiria quatro perfis: subjetivo, funcional,

objetivo e corporativo, aos quais corresponderiam, respectivamente,

empresário, atividade empresarial, estabelecimento e organização do

trabalho.4

Após Asquini, juristas, como Ascarelli, concentraram-se no

chamado perfil funcional da empresa - a atividade. Estabelecimento e

3 ITÁLIA. Regio Decreto 16 marzo 1942, n. 262. Disponível em: <http://www.altalex.com/index.php?idnot=34794>. Acesso em: 13 maio 2008. V. art. 2.082. 4 ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro: Nova Série, ano XXXV, n. 104, p. 108-126, out./dez. 2006. Nicolò questiona a existência de um perfil corporativo, afirmando que ele não possui, no estado atual, consistência e, “se um dia se tornará indubitavelmente signif icativo, como fato normativo, terá acabado por substituir o atual aspecto subjetivo do fenômeno, ou seja o empresário”. V. NICOLÒ, Rosario. Reflexões sobre o tema da empresa e sobre algumas exigências de uma moderna Doutrina do direito civil. Tradução Cássio Machado Cavalli. p. 11. (Acervo particular). O original pode ser encontrado na Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, ano LIC, Dott. Milano: Francesco Vallari, p. 177-195, 1956.

Page 4: A Função Social da Empresa

4

empresário deixaram de ser tratados como perfis da empresa e

passaram a ser vistos como fenômenos normativos a ela conectados,

e o perfil institucional - cujo destaque por Asquini se deve muito ao

momento histórico em que vivia a Itália, então sob o jugo do fascismo

- não se tornou juridicamente significativo, pelo menos do ponto de

vista do Direito privado.5

No Brasil, a empresa perdera importância do ponto de vista do

Direito devido à fragmentação do Direito comercial, com a paulatina

substituição do Código Comercial por legislação esparsa. O principal

motivo dessa perda de relevância, contudo, foi a extinção da

jurisdição comercial, cuja competência era definida principalmente

pela verificação ou não da qualidade de comerciante de pelo menos

uma das partes e de um ato de comércio (entre os quais se

encontravam as empresas do art. 19 do Decreto nº 737, acima citado).

O Código Civil de 2002, porém, reintroduziu a empresa no

Direito brasileiro, definindo o empresário nos mesmos termos do

Codice Civile em seu art. 966: “Considera-se empresário quem exerce

profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou

a circulação de bens ou de serviços”.6 A marcada influência italiana na

redação do dispositivo fez com que os juristas brasileiros buscassem

subsídios na doutrina peninsular, o que os levou a Asquini, Ascarelli e

a outros autores dessa tradição e fez com que, também no Brasil, a

empresa fosse estudada principalmente como atividade.

Esse não é, porém, o único caminho possível de ser percorrido.

5 V. comentário de Nicolò, reproduzido na nota anterior. 6 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 06 mar. 2009.

Page 5: A Função Social da Empresa

5

1.2. A Empresa como Poder

Rosario Nicolò vê a empresa como um liame entre empresário e

estabelecimento. Como ele reconhece, suas observações, com

relação à visão da empresa como atividade, “possuem somente o

valor de uma especificação conceitual, até mesmo se de notável

momento”.7 Seu objetivo é situar a empresa nos esquemas conceituais

tradicionais do Direito civil.

O autor identifica a seguinte dicotomia:

O empresário pode ser tal ou porque desenvolveu e desenvolve

uma certa atividade, ou porque torna-se titular de uma nova posição

jurídica em relação àquele complexo dos bens que preliminarmente

receberam do sujeito aquela particular destinação. Na primeira

configuração, a atividade do empresário seria uma pura e simples

projeção da pessoa, um modo de ser de sua autonomia subjetiva; na

segunda, a atividade mesma constituiria o exercício dos poderes e

das faculdades (e também dos deveres), que se colocam como

conteúdo daquela nova posição jurídica subjetiva.8

Para o autor, os profissionais intelectuais enquadram-se no

primeiro caso, ou seja, adquirem um status profissional e nada mais;

os empresários, por sua vez, adquirem um direito subjetivo novo, mais

precisamente um poder:

A preexistência daqueles direitos sobre bens singulares constitui

por essa razão o pressuposto que justifica, juntamente com o

certificar-se dos outros elementos da fattispecie, o surgimento de um

poder jurídico novo (aqui a novidade concerne ao poder, não ao

7 NICOLÒ, op. cit., p. 11. 8 Ibidem, p. 8.

Page 6: A Função Social da Empresa

6

objeto, como ao invés é sustentado por aqueles que na organização

dos bens a uma finalidade produtiva vendem a criação de um novo

bem imaterial, ou seja, da organização, sobre a qual surge um direito

de propriedade análogo a este que tem por objeto os bens imateriais)

que possui como seu conteúdo essencial a gestão do complexo (ou

seja, um gozo qualificado da função), mas o conteúdo daqueles

direitos não se confunde e não se identifica com o conteúdo deste.9

E segue, aprofundando a ideia:

A aquisição da qualidade de empresário possui, em sede

construtiva, o significado de aquisição por parte do sujeito de uma

complexa situação jurídica ativa que tem por objeto o

estabelecimento e por conteúdo o poder de gestão. Essa situação

jurídica ativa, perfeitamente ajustável ao conceito de direito subjetivo

(ao menos como o é aquela situação jurídica, igualmente complexa e

uniforme, que é a propriedade), é, a meu modo de ver, aquela que se

esconde sob a denominação empresa. A empresa, considerada como

direito subjetivo, torna-se consequentemente a ponte de ligação

entre o sujeito (empresário) e o objeto (estabelecimento). O

empresário não é senão o sujeito titular do direito de empresa

(expressão que não se confunde com aquela noção, um pouco

evanescente, e relevante, se for o caso, sobre um outro plano, de

direito à empresa), assim como o proprietário é o sujeito titular do

direito de propriedade.10

Esse poder de gestão, que Nicolò afirma ser o conteúdo do

direito de empresa, pode ser equiparado ao poder de controle, tal

como analisado por Fábio Konder Comparato em sua clássica obra “O

poder de controle na sociedade anônima”. O professor paulista afirma,

9 Ibidem, p. 9. 10 Ibidem, p. 10-11.

Page 7: A Função Social da Empresa

7

de forma quase casual, que “o controle não é um bem da empresa e,

sim, um poder sobre ela”,11 e se aproxima ainda mais de Nicolò ao

dizer que o controle só pode ser definido em função do direito de

propriedade.12 Não à toa, Comparato afirma que “[s]e faz algum

sentido introduzir o conceito legal de ‘empresário’, em substituição ao

‘comerciante’ do direito tradicional, deve-se reconhecer que ele se

aplica ao titular do poder de controle sobre bens de produção”.13 Se o

controlador é o empresário, que dirige os bens de produção, o poder

de controle se equipara à empresa, tal como definida por Nicolò.

Assim, direito de empresa, no sentido de Nicolò, e controle, no

sentido de Fábio Konder Comparato, se confundem.

Uma das principais preocupações de Comparato é justamente o

“controle do controle”, pois, segundo ele, “perante uma propriedade

desse tipo [a empresa], a problemática fundamental não é a proteção

e a tutela contra turbações externas, mas sim a de fiscalização e

disciplina do seu exercício a fim de se evitar abuso ou desvio de

poder”.14

Embora faça menção expressa à função social, a preocupação

declarada do autor no trecho citado é com o abuso de poder do

controlador relativamente aos demais acionistas e ao interesse

social.15 Calixto Salomão, porém, adverte logo em seguida que,

na verdade, pode-se sustentar que a função social da empresa e

do empresário que exercita o controle é muito mais e na verdade até

mesmo algo diferente dos deveres com os demais sócios. Trata-se de

11 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 119. 12 Ibidem, p. 121. 13 Ibidem, p. 130. 14 Ibidem, p. 130. 15 V. p. 131 da mesma obra

Page 8: A Função Social da Empresa

8

impor deveres positivos perante terceiros (não sócios) afetados pela

atividade empresarial.16

A visão acerca da função social que Calixto Salomão expressa

rudimentarmente nessas linhas corresponde àquela da maioria dos

doutrinadores. Todavia, grande parte dos estudos que tratam do tema

têm certa dificuldade em definir o conteúdo material do princípio em

questão e os deveres que dele decorrem para o titular de um

determinado direito subjetivo. Tentar-se-á, a seguir, superar essas

dificuldades.

2. A FUNÇÃO SOCIAL

Este capítulo iniciar-se-á indagando o que significa dizer que um

determinado instituto jurídico exerce função social, para em seguida

tratar dos reflexos disso no Direito. Na última parte, serão abordadas

as instituições criadas pela sociedade para garantir que as empresas,

efetivamente, exerçam função social.

2.1. A Socialização da Economia

Karl Renner ilustra como o processo de produção, distribuição e

consumo era eminentemente privado durante a Idade Média:

O patrimônio de uma pessoa fornece o local da produção para o

mestre e os membros de sua casa, ele contém oficina e armazém,

cômodo para fiar e tecer, uma horta e outra área para cultivos e

comumente uma participação no bosque comunitário. Ele fornece, na

forma da pequena loja de rua, o espaço para a troca de bens. Como o

artesão produz diretamente para um consumidor, uma transação cobre

16 Ibidem, p. 131.

Page 9: A Função Social da Empresa

9

venda, compra, resumidamente, toda a distribuição, a realização de

valor e valor excedente. Ao mesmo tempo, o patrimônio serve ainda

como o lugar e a estrutura de consumo, como lar e fogão,17 porão e

despensa.18

Embora houvesse trocas, elas ocorriam entre seres que viviam

uma vida privada (da perspectiva econômica), e não social.

O capitalismo, porém, modifica essa realidade:

Que tomou o lugar da casa familiar? Uma de suas partes, a

oficina, se perdeu. [...] de regra, as muitas pequenas oficinas

fundiram-se em grandes fábricas. O mesmo aplica-se ao local para

armazenagem e ao cômodo para fiar e tecer, que foram reunidos em

grandes fábricas têxteis. As pequenas hortas cederam ao

estabelecimento de fazendeiros profissionais nos limites da cidade

[...].19

Esse movimento leva Renner a afirmar que “de repente torna-se

aparente para nós que a propriedade tornou-se uma utilidade

pública”,20 pois

se o camponês individual deixasse sua terra descansar, ele não

causava prejuízo a ninguém e apenas reduzia seu próprio sustento.

Mas o dono de mina que a fecha corta o combustível de todos, priva

17 A palavra no original é hearth, que, numa tradução literal, corresponderia à lareira. É preciso, todavia, ter em mente a estrutura de uma típica casa medieval, em que a lareira e o fogão se confundiam - ali se cozinhava e se fazia fogo para esquentar a casa. O termo fogão foi preferido em virtude do contexto. 18 RENNER, Karl. The institutions of private Law and their social functions. Introdução Otto Kahn-Freund. London: Routledge & Kegan Paul Limited, 1949. p. 84. 19 Ibidem, p. 87. 20 Ibidem, p. 120.

Page 10: A Função Social da Empresa

10

seus trabalhadores de seu meio de vida e talvez aumente seus

rendimentos com o aumento no preço do carvão.21

A socialização da economia, calcada na divisão do trabalho e na

publicização do consumo, faz com que a propriedade adquira uma

função social - ou seja, um papel no processo social de produção e

reprodução -, transcendendo o âmbito privado, que a caracterizava na

Antiguidade Clássica e Idade Média, e tornando-se pública. Nem toda

propriedade, porém, passa por essa transformação. Como afirma Eros

Grau:

Enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e

familiar - a dignidade da pessoa humana, pois -, a propriedade

consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre função

individual. [...] A essa propriedade não é imputável função social;

apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação,

adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de

polícia estatal.22

Por isso afirma o autor que, “incidindo pronunciadamente sobre

a propriedade dos bens de produção, é que se realiza a função social

da propriedade”.23

Essas transformações, ocorridas no plano dos fatos, acabaram

por gerar reflexos no Direito.

21 Ibidem, p. 267. 22 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 235. 23 Ibidem, p. 237.

Page 11: A Função Social da Empresa

11

2.2. A Recepção da Função Social pelo Direito

Foi Duguit a introduzir a ideia de função social entre os juristas.

Desenvolveu-a em contraposição à noção de direito subjetivo, que

assim apresenta:

Tomad lo que se ha convenido en llamar derechos [...]; veréis

fácilmente que se traducen siempre de hecho en el poder que tengo

de imponer, incluso por la fuerza, a otros individuos mi propia

voluntad.24

Em seguida, nega a ideia de direito subjetivo, afirmando a

função social:

El hombre no tiene derechos; la colectividad tampoco. Pero todo

individuo tiene en la sociedad una cierta función que cumplir, una

cierta tarea que ejecutar. Y ese es precisamente el fundamento de la

regla de Derecho que se impone a todos.25

Segundo o autor:

La regla jurídica, que se impone a los hombres, no tiene por

fundamento el respeto y la protección de derechos individuales que no

existen, de una manifestación de voluntad individual que por si misma

no puede producir ningún efecto social. Descansa en el fundamento

de la estructura social, la necesidad de mantener coherentes entre sí

los diferentes elementos sociales por el cumplimiento de la función

social que incumbe a cada individuo, a cada grupo.26

24 DUGUIT, León. Las transformaciones del Derecho publico y privado. Buenos Aires: Heliasta S. R. L. p. 175. 25 Ibidem, p. 178 26 Ibidem, p. 181.

Page 12: A Função Social da Empresa

12

A proposta de abdicar-se do conceito de direito subjetivo, por

ser incompatível com o liberalismo então reinante, não foi bem

recebida entre os juristas. É de se reconhecer que ainda hoje

permanece essa incompatibilidade com o sistema jurídico dos países

ocidentais, baseado no Estado Democrático de Direito, em que se

reconhece e valoriza a capacidade de autodeterminação das pessoas.

No entanto, as transformações narradas por Renner se impuseram e,

com o tempo, obrigaram a uma revisão da estrutura do direito

subjetivo para nela incluir-se a função social.

Como afirma Eros Grau:

A transformação da faculdade em ato, quando juridicamente

autorizada - e aí o direito subjetivo -, deve ser exercida dentro dos

limites da autorização. [...] O Direito pode, coerentemente, introduzir

como elementos integrantes da autorização a alguém para o exercício

de uma faculdade inúmeros requisitos, inclusive criando obrigações e

ônus para o titular do direito subjetivo.27

Historicamente, o exercício dos direitos subjetivos sempre foi

limitado por normas, como a tradicional neminem laedere. A função

social trouxe um novo tipo de limitação, fundada no valor que o

exercício de um direito tem para a coletividade. Uma de suas

características mais destacadas pela doutrina é assim descrita por

Eros Grau:

O princípio da função social da propriedade impõe ao

proprietário - ou a quem detém o poder de controle, na empresa - o

dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o

exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da

propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos

27 GRAU, op. cit., p. 242.

Page 13: A Função Social da Empresa

13

positivos - prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não

fazer - ao detentor do poder que deflui da propriedade.28

Essa compreensão baseia-se naquilo que observou Renner ao

fazer seu comentário sobre o fechamento de uma mina - o não

exercício de um direito pode ter sérias consequências sociais.

A principal característica a diferenciar a função social de outras

limitações ao exercício de um direito, entretanto, está nos interesses

a que visa proteger. Sua normatividade provém do fato de que o

exercício de certos direitos tem impacto social, e não apenas privado.

Assim, se a boa-fé objetiva, por exemplo, protege as partes em um

negócio, a função social protege a sociedade, ou sua fatia relevante

em cada caso - e sobre a empresa, que, invariavelmente e com

grande frequência, atinge de diversas formas diversas fatias da

sociedade, a função social acaba por incidir determinantemente.

Mas, como afirma Calixto Salomão Filho, “não se pode

evidentemente imaginar que o contrato fique subordinado a qualquer

grupo social cujos interesses são por ele afetados”.29

Calixto Salomão Filho busca um critério para determinar que

tipo de interesse externo poderia então subordinar o exercício de um

direito com base na função social e o encontra nos interesses

institucionais, “em que a proteção do interesse coletivo e a do

individual convivem - e são praticamente indivisíveis”.30 Para que se

28 Ibidem, p. 245. 29 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de Direito Mercantil, Econômico e Financeiro: Nova Série, ano XXXXII, v. 132, p. 7-24, out./dez. 2003. Como indica o título do artigo aqui citado, o estudo do autor concentra-se na função social do contrato. No entanto, entende-se que o trecho ora citado e os que seguem podem ser aplicados ao instituto da função social em geral. 30 Idem, loc. cit.

Page 14: A Função Social da Empresa

14

configure um determinado interesse como institucional, devem ser

preenchidos três requisitos:

a. Presença de interesse individual e coletivo, cumulativamente:

As garantias institucionais têm características bem distintivas.

Em primeiro lugar, todas elas são a um tempo destinadas à proteção

do interesse de cada indivíduo e de sua coletividade, seja ela

numericamente determinável ou não.31

b. Interesse coletivo jurídica e economicamente destacável do

individual:

Mais ainda, em todas elas o interesse institucional é jurídica e

economicamente destacável do interesse individual. Juridicamente, na

medida em que a lei ou a doutrina se encarregam de estabelecer

instrumentos protetores especiais e diversos dos instrumentos

protetores dos interesses privados para esses especiais interesses

[...]. Economicamente, porque a proteção da referida garantia

institucional deve representar uma utilidade para a coletividade que

não se confunda com a utilidade individual e também inconfundível

com a utilidade pública.32

Reconhecimento legal:

Finalmente, os interesses institucionais devem ser dotados de

reconhecimento jurídico e social. Basta o reconhecimento

constitucional dos interesses (ex.: meio ambiente, defesa da

concorrência) para que sua proteção como garantia institucional seja

31 Ibidem, p. 17. 32 Ibidem, p. 17.

Page 15: A Função Social da Empresa

15

imperiosa (desde que obviamente presentes os requisitos

mencionados anteriormente).33

Presentes esses três requisitos, incide a função social, e

deverão surgir obrigações para os responsáveis pelo seu cumprimento

- se houver, concretamente, um interesse que demande proteção.

Calixto Salomão cita o Direito ambiental e o Direito concorrencial

como áreas em que se fazem presentes, com grande frequência,

interesses institucionais - e, portanto, fortemente orientadas pela

função social.34

Ainda que se conte com os esclarecimentos e os parâmetros até

aqui desenvolvidos, pode ser - e geralmente é - muito difícil

identificar, em um caso, o que exige a função social. Esse problema é

contornado pela criação de algumas instituições, por meio das quais

os interesses institucionais possam se expressar.

2.3. A Concretização da Função Social da Empresa

Segundo Karl Renner (v. item 2.1), a propriedade torna-se uma

utilidade pública - e, portanto, adquire função social - quando o

processo de produção, distribuição e consumo de bens passa a

ocorrer na sociedade, e não mais no interior do lar. Em um sistema

capitalista, os principais agentes desse processo são as empresas,

que por meio de suas atividades exercem função social. Pode-se até

mesmo dizer que a função social do direito de empresa é exercer

atividade empresária.

Essa atividade, contudo, deve atender aos interesses

institucionais que a cercam e que, como parte da autorização

33 Ibidem, loc. cit. 34 Ibidem, p. 8

Page 16: A Função Social da Empresa

16

concedida pelo Direito, lhe impõem limites, estabelecendo condições

para que o exercício do direito de empresa seja considerado legítimo.

Esses interesses são extremamente variados, além de amplos; logo,

difíceis de serem identificados e terem seu conteúdo determinado.

Para resolver esse problema, a sociedade cria diversas instituições. A

maior e mais importante delas talvez seja o mercado.

Michael Jensen explica como, em condições normais, a busca

do lucro, mediada pelo mercado, é socialmente eficiente:

Considere agora os efeitos no bem-estar social da decisão de

uma firma de tomar recursos da economia na forma de horas de

trabalho, capital, ou material adquirido voluntariamente de seus donos

em mercados de preço competitivo. A firma usa esses inputs para

produzir outputs,35 bens ou serviços, que então são vendidos para

consumidores através de transações voluntárias em mercados de

preço competitivo.36

E segue:

Nessa situação simples, uma firma tomando inputs da economia

e colocando seus outputs, bens ou serviços, de volta na economia

aumenta o bem-estar agregado se os preços pelos quais vende os

bens mais do que cobrem os custos em que incorre ao adquirir os

inputs. Claramente a firma deveria expandir seus outputs enquanto um

35 Os termos input e output foram deixados no idioma original por serem geralmente usados dessa maneira mesmo em escritos em português, até por não possuírem tradução adequada. O termo input refere-se àquilo que entra na empresa, e o exemplo mais plástico é a matéria-prima; já o termo output refere-se àquilo que sai da empresa, ou seja, os bens ou serviços que ela oferece. 36 JENSEN, Michael C. Value maximization, stakeholder theory, and the corporate objective function. Business Ethics Quarterly, v. 12, n. 2, p. 235-256, Apr. 2002. Disponível em: <http://vnweb.hwwilsonweb.com/hww/jumpstart.jhtml?recid=0bc05f7a67b1790ef409bfd03ef7308db53321785ebc7a499be3a6ee54414904e61f907c736a7858&fmt=H>. Acesso em: 08 abr. 2008.

Page 17: A Função Social da Empresa

17

dólar adicional de recursos tomado da economia for avaliado pelos

consumidores do produto com valor agregado em mais de um dólar.

Note que a diferença entre essas rendas e custos são os lucros. Essa

é a razão (sob a presunção de que não há externalidades ou

monopólios) pela qual a maximização de lucros leva a um resultado

socialmente eficiente.37

Adicionando-se o fator tempo, pouco muda:

O valor em um ano de um dólar poupado hoje para ser usado

daqui um ano é então $1x(1+t), em que t é a taxa de juros.

Alternativamente, o valor hoje de um dólar de recursos a serem

recebidos daqui um ano é seu valor presente de $1/(1+t). Nesse

mundo um indivíduo está tão bem quanto possível se sua riqueza,

medida pelo valor presente descontado de todas suas pretensões

futuras, é maximizada. Quando adicionamos incerteza, nada de muito

importante muda nessa proposição desde que haja mercados de

capitais nos quais o indivíduo possa comprar e vender risco a

determinado preço. Nesse caso é a taxa de juros ajustada pelo risco

que é usada para calcular o valor de mercado de pretensões futuras

arriscadas. A função objetiva da companhia que maximiza o bem-estar

social então torna-se “maximizar o valor de mercado total de firma”.

Ela determina que as firmas expandam seus produtos e investimentos

até o ponto em que o valor de mercado da firma esteja no máximo.38

É interessante perceber que esse processo leva a um “resultado

socialmente eficiente” - usando a expressão de Jensen -, que não se

limita a um aspecto econômico, pois sobre as decisões dos agentes

não influem apenas considerações estreitas de utilidade, mas um

amplo espectro de valores. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos da

37 Ibidem. 38 Ibidem.

Page 18: A Função Social da Empresa

18

América comprovou que fatores como a responsabilidade ambiental da

empresa influem no preço de seus produtos:

Nosso primeiro experimento fez duas perguntas. Quanto a mais

as pessoas pagarão por produtos eticamente produzidos? E quanto a

menos elas estão dispostas a gastar por um produto que acreditam

ser antiético?

Para testar essas perguntas, reunimos aleatoriamente 97

adultos consumidores de café e perguntamos a eles quanto pagariam

por 1 libra, ou 454 gramas, de café de uma certa companhia. Nós

utilizamos uma marca que não é comercializada nos EUA, de forma

que nenhum dos participantes estivesse familiarizado com o produto.

Antes de as pessoas responderem, pedimos a elas que lessem

algumas informações sobre os padrões de produção adotados pela

companhia. Um grupo teve acesso a informação positiva e outro a

informação negativa; o grupo de controle teve acesso a informação

neutra, parecido com o que os compradores normalmente teriam em

um supermercado.

Depois de ler sobre a empresa e o café produzido por ela, as

pessoas nos contaram o preço que estariam dispostas a pagar,

segundo uma escala de 11 pontos, de US$ 5 a US$ 15. O resultado?

O preço médio para o grupo ético (US$ 9,71 por 454 gramas) foi

significativamente maior do que o obtido pelo grupo de controle (US$

8,31) ou pelo grupo antiético (US$ 5,89).

[...]

Nosso próximo teste olhou para os graus de comportamento

ético. Será que os consumidores estão dispostos a pagar mais por um

produto 100% eticamente manufaturado contra outro que é 50% ou

25% eticamente produzido?

Para descobrir isso, testamos as respostas dos consumidores

para camisetas produzidas por uma fábrica fictícia. Dividimos 218

pessoas em cinco grupos e apresentamos a empresa e seu produto.

Page 19: A Função Social da Empresa

19

Um grupo foi informado que as camisetas eram feitas de 100% de

algodão orgânico, outro de 50% de algodão orgânico e o terceiro de

25%. Um outro grupo - o antiético - foi informado de que não havia o

componente orgânico. O grupo de controle não teve informação

nenhuma. Exceto este, todos os grupos foram informados dos efeitos

malignos do algodão não orgânico ao meio ambiente.

Os participantes foram perguntados quanto estariam dispostos a

pagar pelas camisetas numa escala de 16 pontos, com preços

variando de US$ 15 a US$ 30. Descobrimos que as pessoas estariam

dispostas a pagar um adicional para qualquer nível de produção ética,

e elas descontariam um produto antiético mais agressivamente do que

recompensariam um produto ético.39

Embora a pesquisa tenha sido direcionada a consumidores, não

há motivos para supor que trabalhadores e fornecedores, que também

negociam seus preços, não ajam da mesma forma. Aliás, se não o

fazem, a reprovação moral deve recair sobre eles, e não sobre as

empresas, como bem destaca Sternberg:

Quaisquer que sejam as opiniões de uma pessoa, a integridade

moral demanda consistência entre essas opiniões e suas ações;

quando as ações de um indivíduo não estão de acordo com suas

crenças morais, então normalmente elas são frágeis ou ele é fraco. Da

mesma forma, se - por qualquer razão - um indivíduo acredita que a

venda de um determinado produto é moralmente errada, então, as

demais condições permanecendo iguais, será igualmente errado que

ele apóie negócios que vendam esse produto.40

39 TRUDEL, Remi; COTTE, June. Até que ponto vale a pena ser uma empresa ética. Valor Econômico, São Paulo, 12 maio 2008. Disponível em: <http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/empresaetecnologia/empresas/Ate+que+ponto+vale+a+pena+ser+uma+empresa+etica,08125,,51,4924166.html>. Acesso em: 12 maio 2008. 40 STERNBERG, Elaine. The stakeholder concept: a mistaken doctrine. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=263144>. Acesso em: 12 jun. 2008.

Page 20: A Função Social da Empresa

20

Seria ingenuidade, porém, acreditar que o mercado possa

abarcar todos os aspectos da atividade empresária e transmitir todos

os anseios da sociedade. A pobreza, por exemplo, impede que

algumas pessoas possam manifestar-se no mercado, e a ocorrência

de externalidades - situações em que os agentes não arcam com

todos os custos de seus atos ou não recebem toda a recompensa por

eles, havendo uma espécie de “vazamento” dos efeitos - faz com que

os interesses da empresa e da sociedade saiam de alinhamento.

Em alguns casos, os próprios agentes podem resolver isso por

meio de compensações financeiras. Mas nem sempre isso é possível,

devido ao que Ronald Coase chamou de custos de transação:

Uma vez que os custos de levar a cabo transações através do

mercado sejam levados em conta fica claro que tal reorganização de

direitos só acontecerá quando o aumento no valor de produção

consequente à reorganização for maior que os custos envolvidos em

fazê-la.41

Exemplos de situações em que os custos de transação impedem

uma resolução do conflito por meio do mercado são as atividades

poluentes (pois o número de envolvidos é muito elevado) e as

relações negociais duradouras (em que seria impossível prever todos

os possíveis conflitos futuros).42

Para resolver essas situações, a sociedade cria mecanismos

que substituam, de forma tão eficiente quanto possível, o mercado.

Mecanismos de incentivo, como a concessão de descontos fiscais e

41 COASE, Ronald. The problem of social costs. Disponível em: <http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2009. 42 Nesse segundo caso não há, a princípio, qualquer questão atinente a interesses institucionais. O exemplo visa apenas a ilustrar a ideia de custos de transação.

Page 21: A Função Social da Empresa

21

prêmios (privados ou públicos, pecuniários ou não). Mecanismos de

monitoração, em que há grande riqueza de alternativas:

A resposta ao problema de monitoração tem sido a evolução de

uma larga variedade de estruturas institucionais que servem para

economizar nos custos de coleta e análise de informações. Algumas

dessas estruturas são protegidas na legislação (e.g., a exigência de

que sociedades de capital aberto publiquem demonstrativos contábeis

consolidados anualmente). Outras instituições evoluíram numa

tentativa de explorar as oportunidades de lucro em coletar, analisar e

então vender informações a acionistas (e.g., serviços de analistas de

mercado, serviços de informação ao consumidor, etc.). Outros ainda

surgiram como organizações sem fins lucrativos que existem em parte

para monitorar o grau com que administradores atuam no melhor

interesse de certas partes interessadas (e.g., Consumer Watch,

Infact,43 sindicatos).44

E mecanismos de enforcement,45 que visam a desencorajar ou a

evitar determinados atos, como as penas administrativas e criminais.46

Um dos mecanismos mais baratos para realizar esses objetivos

é a imprensa - muitas vezes o temor de publicidade negativa é

suficiente para convencer os administradores de uma determinada

empresa a fazerem ou deixarem de fazer algo.47

43 Consumer Watch é uma organização não governamental de proteção aos consumidores, como seu nome deixa claro; quanto à Infact, não fica claro a que organização se refere o autor, e há entidades com esse nome no Canadá, Reino Unido e Nova Zelândia, entre outros países, cada uma com características e objetivos diferentes. 44 HILL, C. W. L.; JONES, T. M. Stakeholder-agency theory. Journal of Management Studies, v. 29, n. 2, p. 131-154, 1992. 45 O termo é intraduzível; refere-se à capacidade de alguém para compelir outrem. 46 HILL; JONES, op. cit., p. 141. 47 Ibidem, p. 142.

Page 22: A Função Social da Empresa

22

Mas, muitas vezes, a publicidade não basta. A perspectiva de

obter uma maior satisfação de suas necessidades fornece um

incentivo aos interessados para que criem instituições mais eficientes,

por meio das quais possam expressar suas preferências:

Entretanto, em sentido dinâmico a existência de d - b [diferença

entre utilidade presente e utilidade que pode ser obtida

desenvolvendo mecanismos de controle mais complexos] pode ser

vista como fornecendo um incentivo às partes interessadas para

encontrar novas maneiras de economizar com custos de contratos

(para desenvolver novas estruturas institucionais). [...] A evolução de

sindicatos de trabalhadores, organizações de consumidores, grupos

de pressão, mecanismos de incentivos e comprometimento confiável,

regulação de companhias, entre outros, pode ser creditada a esses

incentivos.48

Em outros casos, ainda, devido à impossibilidade de se criar

esse tipo de estrutura, e se a comunidade política considerar o

problema relevante, o Estado assume esse papel. É o caso, p.ex., da

poluição, em que os interessados são, potencialmente, todos em uma

determinada área (que pode até mesmo ser o globo terrestre), o que

tornaria impeditiva a resolução privada; e dos monopólios naturais

(como os serviços de trens metropolitanos), em que o poder de

mercado é incontornável de outra maneira. Por fim, em muitos casos -

talvez na maioria deles - vários sistemas convivem: nas relações

trabalhistas, p.ex., há regulação e fiscalização estatal, presença de

mercado e estruturas privadas (os sindicatos).

48 Ibidem, p. 150.

Page 23: A Função Social da Empresa

23

CONCLUSÃO

Tem-se, assim, que a função social da empresa realiza-se de

diversas maneiras, inclusive por meio do Direito: diante de um

interesse institucional que julgue relevante, a comunidade política

produz normas e cria mecanismos que o protejam.

A dificuldade surge quando se procura extrair do dever de

observância da função social, sem intermédio de outra norma ou

instituição, uma obrigação concreta. Os interesses institucionais são

variados e amplos e, muitas vezes, entram em conflito - o interesse

em um meio ambiente equilibrado pode contrastar, por exemplo, com

o interesse em um mercado competitivo, uma vez que certas

exigências tornam necessários maiores investimentos, elevando os

custos de entrada e afastando potenciais competidores. Determinar o

que eles exigem requer a identificação dos valores socialmente

compartilhados relevantes para o caso e, principalmente, sua relação

recíproca, que varia no tempo e no espaço. Basta lembrar a ideia de

sustentabilidade, que hoje, em maior ou menor grau, influencia a

visão das pessoas a respeito das organizações e que era

desconhecida há cerca de 20 anos, para que a contingência dessa

relação seja evidenciada. Não bastasse ser contingente, a solução

para essa equação é ainda uma resposta que, por definição, se

encontra sempre dispersa entre os membros da sociedade,

dificultando sua cognição.

De fato, é mesmo de se duvidar que, na ausência de uma norma

ou outro mecanismo que concretize a função social, haja qualquer

interesse institucional em jogo. Segundo Hill e Jones, a existência de

uma diferença entre a utilidade que o exercício de um direito

proporciona a alguém (no caso que interessa a este artigo, que uma

empresa proporciona a certo interesse institucional) e a utilidade que

Page 24: A Função Social da Empresa

24

ele poderia proporcionar funciona como incentivo para a criação de

mecanismos de governança mais complexos, que economizem nos

custos de transação e permitam obter o resultado desejado. Como

apontado pelos autores, surgem as mais diversas organizações, como

grupos de pressão, sindicatos, órgãos estatais, etc.

Não surgindo esses mecanismos, ou não atuando os existentes

em um determinado momento, são somente duas as conclusões

possíveis: ou não incide, no caso, um interesse institucional, ou os

custos para protegê-lo são mais altos que a utilidade esperada.

A primeira hipótese é a mais provável na maioria dos casos.

Isso porque grande parte dos mecanismos de governança são

organizações perenes e criadas não para lidar com questões pontuais,

mas com grandes áreas de interesse - como sindicatos de

trabalhadores, por exemplo -, o que lhes permite atuar em temas das

mais diversas magnitudes e enfrentar novos problemas tão logo

quanto surjam.

A polêmica dos organismos geneticamente modificados (OGM)

ilustra como isso funciona. Na medida em que se ampliava seu uso,

diversas organizações - empresas, governos (seguindo a orientação

política dos grupos no poder) e organizações não governamentais

(principalmente ambientalistas) -, a imensa maioria já existente, e não

criada para lidar especificamente com esse tema, passaram a exercer

pressão em diversos sentidos (liberação ou não do uso comercial de

OGM, com ou sem restrições). Passado algum tempo, a polêmica

permanece em novo ambiente (o uso de OGM foi permitido, com

restrições), envolvendo novos atores (como consumidores, que antes

da liberação da venda de produtos que contivessem OGM não podiam

se manifestar diretamente) e ocupando novos fóruns (como a

Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, criada pela Lei 11.105,

Page 25: A Função Social da Empresa

25

de 24 de março de 2005, e integrada por especialistas em diversas

áreas do conhecimento e representantes de alguns ministérios).

O uso de OGM tem incontestável impacto sobre certos

interesses institucionais (notadamente a saúde pública e o meio

ambiente). Seria impossível, contudo, determinar o que esses

interesses institucionais exigem sem o intermédio de instituições que

traduzam os anseios da sociedade e concretizem esses interesses. Se

essas instituições não surgem ou, existindo, não se manifestam,

presume-se que, embora abstratamente, haja um interesse

institucional em jogo, ele não exige nada em concreto naquele caso. A

sociedade manifesta-se no sentido da plena aceitação de uma

determinada conduta.

Quanto à segunda hipótese aventada acima - de que os custos

para a proteção de um determinado interesse institucional em um

determinado caso sejam altos o suficiente para impedir que se

desenvolva um mecanismo de governança -, tem-se que ela possui

caráter residual, dificilmente verificando-se na prática. O principal

motivo é que, mesmo nos casos em que o custo seja superior aos

ganhos esperados, a sociedade pode atribuir a proteção de certos

interesses individuais ao Estado, subsidiando-o por meio de tributos.

Isso sem levar em conta que às vezes esse interesse será tão

comezinho (e justamente por isso os custos para protegê-lo serão

superiores à utilidade esperada por sua satisfação) que a falta de

atuação de mecanismos de governança se dará justamente por falta

de interesse dos que presumidamente interessar-se-iam.

Há, contudo, duas exceções ao raciocínio aqui defendido.

Nenhuma atuação de qualquer instituição pode contrariar o

Direito. As normas jurídicas, num Estado Democrático e de Direito,

Page 26: A Função Social da Empresa

26

são de observância obrigatória, por serem consideradas a mais alta

manifestação da vontade do povo. Assim, qualquer manifestação de

vontade que contrarie o Direito é nula. Da mesma forma, e pelas

mesmas razões, qualquer norma jurídica deve adequar-se àquelas

que lhe são hierarquicamente superiores. Portanto, uma manifestação

de um determinado grupo no sentido da não aplicação de uma norma

é ilegítima, por já ter se manifestado, sobre a mesma matéria, um

grupo considerado, de certa maneira, hierarquicamente superior - a

comunidade de cidadãos.

A segunda exceção é menos prosaica. Quando se trata de

questões muito incipientes - como tecnologias extremamente

inovadoras e ainda pouquíssimo conhecidas -, é possível que nenhum

mecanismo de governança tenha condições (principalmente em

termos de conhecimento) para concretizar satisfatoriamente os

interesses institucionais. É evidente que dessa situação não surge

uma carta branca para aqueles cuja conduta seja potencialmente

danosa a um interesse institucional agirem, pois, como ressaltou

Calixto Salomão,49 basta o reconhecimento constitucional de um

interesse para que sua proteção seja imperiosa. A função social irá

impor, nesses casos, um dever de cautela, determinando o uso

moderado da nova tecnologia ou maiores pesquisas, por exemplo.

Cumpridos todos esses deveres, conforme as exigências do

caso, pode-se dizer que uma empresa cumpre sua função social.

BIBLIOGRAFIA

ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro: Nova Série, ano XXXV, n. 104,

out./dez. 2006.

49 Op. cit., p. 17.

Page 27: A Função Social da Empresa

27

BRASIL. Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850. Disponível em:

<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=64

752>. Acesso em: 05 mar. 2009.

______. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>. Acesso

em: 06 mar. 2009.

COASE, Ronald. The problem of social costs. Disponível em:

<http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf>. Acesso em: 13 mar.

2009.

COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de

controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

DUGUIT, León. Las transformaciones del Derecho publico y privado.

Buenos Aires: Heliasta S. R. L.

FRANÇA. Loi 1807-09-14 promulguée le 24 septembre 1807.

Disponível em:

<http://www.legifrance.gouv.fr/affichCodeArticle.do;jsessionid=C5865A

5D9FB42F10D3EE38C916CF4109.tpdjo07v_3?idArticle=LEGIARTI000

006283613&cidTexte=LEGITEXT000006069441&dateTexte=19700709

>. Acesso em: 04 mar. 2009.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988.

São Paulo: Malheiros, 2005.

HILL, C. W. L.; JONES, T. M. Stakeholder-agency theory. Journal of

Management Studies, v. 29, n. 2, 1992.

Page 28: A Função Social da Empresa

28

ITÁLIA. Regio Decreto 16 marzo 1942, n. 262. Disponível em:

<http://www.altalex.com/index.php?idnot=34794>. Acesso em: 13 maio

2008.

JENSEN, Michael C. Value maximization, stakeholder theory, and the

corporate objective function. Business Ethics Quarterly, v. 12, n. 2,

Apr. 2002. Disponível em:

<http://vnweb.hwwilsonweb.com/hww/jumpstart.jhtml?recid=0bc05f7a6

7b1790ef409bfd03ef7308db53321785ebc7a499be3a6ee54414904e61f

907c736a7858&fmt=H>. Acesso em: 08 abr. 2008.

NICOLÒ, Rosario. Reflexões sobre o tema da empresa e sobre

algumas exigências de uma moderna doutrina do Direito civil.

Tradução Cássio Machado Cavalli. (Acervo particular).

RENNER, Karl. The institutions of private Law and their social

functions. Introdução Otto Kahn-Freund. London: Routledge & Kegan

Paul Limited, 1949.

SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras

anotações. Revista de Direito Mercantil, Econômico e Financeiro:

Nova Série, ano XXXXII, v. 132, out./dez. 2003.

STERNBERG, Elaine. The stakeholder concept: a mistaken doctrine.

Disponível em:

<http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=263144>.

Acesso em: 12 jun. 2008.

TRUDEL, Remi; COTTE, June. Até que ponto vale a pena ser uma

empresa ética. Valor Econômico, São Paulo, 12 maio 2008. Disponível

em:

<http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/empresaetecnolog

Page 29: A Função Social da Empresa

29

ia/empresas/Ate+que+ponto+vale+a+pena+ser+uma+empresa+etica,0

8125,,51,4924166.html>. Acesso em: 12 maio 2008.